A longa conquista do voto na história política brasileira
Vera Chaia1
A extensão dos direitos políticos no Brasil nem sempre esteve ligada ao aumento
da participação política no processo eleitoral. Esta questão decorre do próprio processo
histórico de extensão desses direitos e da forma como essa movimentação se deu.
Numa democracia representativa o poder conferido à autoridade para agir em
nome de alguém se dá por meio de eleições, ou seja, o mecanismo eleitoral é
compreendido como uma forma de autorizar uma ação. Nesse sentido, tal mecanismo de
renovação se realiza em períodos determinados, o que significa que a autoridade tem o
seu reconhecimento limitado a um período.
Portanto, será por meio de eleições que a autoridade escolhida pelo voto popular
poderá agir em nome de outros e que sua representação será legitimada. Daí a
importância de conhecermos a história da extensão do voto no Brasil, pois ela
representa a busca no aprimoramento da representação política e a ampliação do
significado da participação.
Durante o Império, logo após a Proclamação da Independência do Brasil em
relação a Portugal, em 1822, é que poderemos deparar com o processo eleitoral, que
consistia no seguinte: o voto era a descoberto e oral, como maneira de controlá-lo. Os
analfabetos possuíam o direito ao voto, e eles constituíam a grande maioria da
população brasileira daquele período (70% a 80%). A eleição era feita em dois
momentos: primeiro havia a escolha dos eleitores que participariam da votação e, num
segundo momento, escolhiam-se os eleitos propriamente ditos. O imperador escolhia os
senadores a partir de uma lista tríplice. Eram considerados eleitores somente os
indivíduos do sexo masculino, maiores de 25 anos e que tivessem uma renda líquida
anual de 100 mil réis. Os eleitores do 2º escrutínio teriam de ter todos esses requisitos,
mais uma renda de 200 mil réis.
1Professora do Departamento de Política e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais;
pesquisadora do Neamp (Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política) da PUC-SP e do CNPq.
Quem controlava esse processo eleitoral? O próprio governo, o que significa
dizer que havia uma falta de liberdade no exercício do voto e a qualificação era exercida
por uma mesa eleitoral, formada por homens considerados importantes em termos da
política local. Portanto, havia um poder absoluto atribuído às mesas eleitorais. O
resultado desse processo eleitoral durante o Império era marcado pelo controle, por
fraudes e por corrupção.
Em 1881, ainda durante o Império, foi promulgada a Lei Saraiva ou Lei do
Censo, que estabelecia uma modificação nas eleições: elas passaram a ser diretas e
ocorreu um aumento no requisito para participação: a exigência de 200 mil réis. A
justificativa para não tornar o voto universal, e sim censitário, era que as pessoas sem
renda não estavam interessadas em resolver os problemas do país, pois, segundo essa
concepção elitista, o povo não possuía ilustração e capacidade para exercer o direito do
voto.
Com a proclamação da República, em 1889, alterou-se o direito político dos
cidadãos, porém não necessariamente ocorreu um aumento da participação política.
No período da República Velha, entre 1889 e 1930, algumas alterações foram
executadas: aboliu-se a restrição da renda; o analfabeto perdeu o direito do voto; a
Constituição de 1891 instituiu que os eleitores deveriam ser maiores de 21 anos;
excluíram-se mulheres, mendigos, praças de pré e religiosos em comunidade claustral.
O argumento utilizado para a exclusão de analfabetos e mulheres do processo eleitoral
justificava-se pela ideia de que seriam mais influenciáveis, fosse pelos patrões, fosse
pelos maridos e pais. Portanto, por esse argumento as mulheres e os analfabetos não
teriam opinião política própria.
O controle sobre o processo eleitoral desse período era feito pelas mesas
eleitorais a partir de regras que tentavam moralizar as eleições. Instituiu-se o voto
secreto, que consistia em colocar uma cédula numa carta antes de depositá-la na urna.
Mas cada cédula era diferenciada por candidato, o que facilitava a descoberta do voto
do eleitor. O alistamento não era obrigatório e ficava sob o controle das autoridades
judiciais.
Esse período, em que a falta de participação continuava a existir, também foi
marcado pelo falseamento na apuração dos votos, pela produção de atas falsas, pela
ressurreição dos mortos e pela eleição bico de pena. Portanto, quem detinha o controle
sobre o processo eleitoral era o poder central e a política local, através da máquina
montada pela chamada política dos governadores.
Com a Revolução de 1930 as condições para a realização das eleições e o
exercício do voto mudaram. A elaboração do Código eleitoral de 1932 e a Constituição
de 1934 possibilitaram o voto às mulheres, mas somente àquelas que trabalhassem fora.
A idade foi reduzida para maiores de 18 anos e o alistamento se tornou obrigatório.
Ainda estavam excluídos os analfabetos, as donas de casa, as praças de pré, os
mendigos e os privados de direitos políticos.
O Código Eleitoral de 1932 trouxe várias modificações: instituição do voto
secreto; criação da Justiça Eleitoral – Tribunal Superior Eleitoral e Tribunais Regionais
Eleitorais –, centralizando o processo eleitoral nesses órgãos do governo; determinação
de que os trabalhos de alistamento, a organização das mesas de votação, a apuração dos
votos e o reconhecimento e proclamação dos eleitores seria feito pela Justiça Eleitoral.
Com esse novo Código tentou-se moralizar o processo eleitoral e acabar com o controle
pela política local, já que toda centralização se daria pela Justiça Eleitoral.
A instauração do Estado Novo, com Getúlio Vargas (1937-1945), extinguiu
todos os direitos políticos dos cidadãos brasileiros, bem como qualquer tipo de
participação política. O argumento utilizado pela corrente autoritária que detinha o
poder era de que faltava capacidade e maturidade ao povo brasileiro e que somente esta
elite política poderia representar e construir a nação brasileira. Todos os cargos eletivos
foram eliminados, a escolha dos governadores e prefeitos passou a ser comandada pelo
governo central, e o Poder Legislativo, em todas as esferas, foi fechado.
Com a queda de Getúlio Vargas e o processo de redemocratização, em 1945,
restauraram-se os direitos políticos, porém poucas alterações foram feitas: revogou-se a
exclusão dos mendigos; ainda prevaleceu a restrição aos analfabetos, que
representavam, em 1950, cerca de 50% da população brasileira com mais de 18 anos.
Também ocorreu uma mudança com a Lei Agamenon, referente ao alistamento: além
daquele feito pelos eleitores nos TREs, também deveria ser efetuado nos locais de
trabalho. Essa prática visava evitar fraudes eleitorais e, devido à exigência do
preenchimento do formulário, provocava, consequentemente, a exclusão dos
analfabetos.
A cédula oficial só foi instituída em 1962, durante o governo de João Goulart, e
objetivava obter um controle maior do processo eleitoral e promover a moralização das
eleições. Apesar dessas medidas, continuaram a existir fraudes e compras de votos,
além de intimidação e assédio junto aos eleitores.
O período de 1945 a 1964 foi marcado pela crescente participação e mobilização
em todas as esferas da sociedade brasileira. Esse período e a experiência participativa
foram abortados pelo golpe de 1964, que provocou o limite e a exclusão da participação
política.
Com o golpe foi cassado o direito de voto do cidadão brasileiro, pois várias
restrições marcaram o processo eleitoral: os prefeitos das capitais, áreas de segurança
nacional e estâncias hidrominerais eram nomeados pelo governador, que, por sua vez,
era eleito indiretamente pelas respectivas Assembleias Legislativas. O presidente
também deixou de ser eleito diretamente pelo povo. Tal atribuição passou para o
Colégio Eleitoral, formado pelo Congresso Nacional, que escolhia o presidente por via
indireta.
Vários casuísmos foram criados para controlar o processo eleitoral: decretos-
leis, atos institucionais, reformas no sistema partidário brasileiro, fechamento do
Congresso Nacional, cassações, censura aos meios de comunicação, supressão dos
direitos políticos, prisões e banimento políticos.
As eleições para a escolha de governadores foram restabelecidas em 1982. Um
importante passo para o restabelecimento das eleições diretas no Brasil se deu com a
proposta da emenda constitucional Dante de Oliveira, derrotada pelo Congresso
Nacional nas eleições históricas de 25 de abril de 1984.
Com uma transição negociada e uma retirada acordada, os militares saíramm do
poder após a vitória de Tancredo Neves, político mineiro do Partido Liberal (dissidência
do Partido Democrático Social) em 1985. A posse do último presidente eleito
indiretamente foi marcada por uma tragédia: Tancredo morre sem tomar posse, e seu
vice, José Sarney (PMDB), assume a faixa presidencial.
Esse período é denominado de Nova República e foi marcado por uma série de
avanços na legislação eleitoral: eleições diretas para prefeitos (daqueles casos
excepcionais) em 1985; inclusão dos analfabetos e conquista do direto de votar; reforma
partidária com a legalização de siglas partidárias de esquerda; voto facultativo para
jovens, maiores de 16 anos; estabelecimento de eleições diretas para a Presidência da
República em 1989, após 29 anos. Depois desse período, outras mudanças no sistema
eleitoral foram feitas, porém sem alterações significativas.
A história política brasileira viveu períodos de exclusão e de impossibilidade de
participação popular, oriundos da ação casuística de diversos governos que tivemos ao
longo dos tempos.
O voto foi uma conquista. Vivemos um novo período eleitoral, e os cidadãos são
chamados a participar de novas escolhas. A nossa democracia continua avançando,
vivemos atualmente uma rotina democrática, com processos eleitorais livres e sem
constrangimentos. Os sobressaltos autoritários ficaram para trás. Temos de aproveitar e
desfrutar deste momento de direitos e deveres de nossa cidadania.
Referências bibliográficas
CHAIA, Vera Lucia M.. Reformas do sistema partidário e o poder central no Brasil,
em Revista São Paulo em Perspectiva, São Paulo: Fundação SEADE, vol.3, no. 01 –
jan/mar/1989.
KINZO, Maria D’Alva Gil. Representação política: perspectivas e um exame da
experiência brasileira. Dissertação de Mestrado. São Paulo: PUC-SP, 1978.
LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto. São Paulo: Alfa-Omega, 1975.
SOUZA, Maria do Carmo Campelo de, Estado e Partidos Políticos no Brasil (1930-1964),
São Paulo: Alfa-Omega, 1976.