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ROBERTO DE ALMEIDA GALLEGO
O UNO E OS ONS: A SOTERIOLOGIA EM PLOTINO E EM SUA POLMICA ANTIGNSTICA
Pontifcia Universidade Catlica
So Paulo 2006
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ROBERTO DE ALMEIDA GALLEGO
O UNO E OS ONS: A SOTERIOLOGIA EM PLOTINO E EM SUA POLMICA ANTIGNSTICA
Dissertao apresentada como exigncia parcial para obteno do grau de Mestre em Cincias da Religio Comisso Julgadora da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, sob a orientao do Prof. Dr. Eduardo Rodrigues da Cruz.
Pontifcia Universidade Catlica
So Paulo 2006
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COMISSO JULGADORA
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Dedico este trabalho ao meu pai, presena eterna, in
memoriam. E tambm ao saudoso Fernando Rodrigues
Pappalardo: Por que to precocemente, irmo, sem a
ningum avisar, na traioeira madrugada? Com quem
conversarei, agora, sobre Deus?
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AGRADECIMENTOS
Ao Prof. Dr. Eduardo Rodrigues da Cruz, que, com generosidade e competncia, orientou-me
na realizao deste projeto;
Aos docentes e funcionrios do Programa de Cincias da Religio da PUC-SP, por me
permitirem compartilhar de seu conhecimento e usufruir seu convvio;
CAPES, pela concesso da bolsa respectiva;
minha famlia, fonte, abrigo e esteio, sem a qual nada teria sido possvel;
minha me, tenacidade e amor infinitos, farol na noite escura;
Andra, pela compreenso de um destino;
Aos estimados mestres da Associao Palas Athena, exemplos vivos da excelsa comunho
entre o pensar e o agir modulados pelo Bom, o Belo e o Justo;
A todas as pessoas que, atravs de grandes aes ou pequenos gestos igualmente
significativos - participaram, cada qual na medida de sua particular excelncia, deste esforo.
Por trs de cada linha, como que a inspir-la, um rosto inesquecvel e uma lio inestimvel.
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Restringe-te e examina-te. Tira o que suprfluo [...] no cessa de esculpir
a tua prpria esttua.
Plotino, Enada VI, 7, 10, 30 e I, 6, 9, 7.
Esta a vida dos deuses e daqueles abenoados dentre os homens,
libertao daquilo que nos aliena e nos oprime, um viver que no se
compraz no gozo das coisas do mundo, a passagem do solitrio para o
solitrio.
Plotino, Enada IV, 9, 47-50.
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RESUMO
O presente trabalho tem, como objetivo, estudar a problemtica da salvao em Plotino - a um s tempo filsofo e mstico, e o mais notvel representante do ltimo perodo da filosofia grega - e a gnose, um importante movimento religioso que conheceu o seu pice nos primeiros sculos da era crist. Inicialmente, buscou-se contextualizar tal temtica no cenrio histrico em que se deu a denominada polmica antignstica de Plotino, isto , a Antiguidade Tardia, na qual prevaleceu a percepo de que a existncia terrena, repleta de sofrimentos e carncias, haveria de ser transcendida. O ser humano, um estrangeiro no mundo, deveria retornar sua ptria espiritual, sua verdadeira origem. , neste quadro histrico, que tem lugar a proposta de Plotino, bem como a dos gnsticos, acerca da salvao, que, embora se mostrem convergentes em alguns aspectos, divergem, profundamente, em outros. Em seguida, tratou-se de alinhavar os traos fundamentais dos sistemas em confronto, sendo que, com relao aos gnsticos, privilegiou-se a escola sethiana, autora de dois tratados, constantes da chamada Biblioteca de Nag Hammadi, conhecidos e criticados por Plotino: o Zostrianos e o Algenes. Na seqncia, cuidou-se de examinar o tema da salvao luz da cosmogonia/cosmologia, antropogonia/antropologia e tica, dos sistemas plotiniano e gnstico, particularmente o gnstico sethiano. Por ltimo, enfocou-se o procedimento salvfico das duas tradies cotejadas, assim como o papel reservado ao homem no processo de redeno e, ainda, a abrangncia da salvao. Recorreu-se, para a realizao da pesquisa, a comentaristas nacionais e estrangeiros, bem como, na medida do possvel, s fontes primrias, quais sejam, as Enadas de Plotino e os tratados gnsticos, contidos na referida Biblioteca de Nag Hammadi, em especial os j mencionados Zostrianos e Algenes. A justificativa para este trabalho reside no fato de que, no Brasil, no h muitos estudos acerca da relao entre Plotino e os gnsticos, e menos ainda, no campo especfico das soteriologias respectivas. Desta forma, a pesquisa espera estimular, em nosso pas, o interesse pelo estudo das construes filosfico-religiosas apontadas, que lidam com problemas fundamentais da alma humana.
Palavras-chave: Plotino, gnose, salvao.
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ABSTRACT
The aim of the present study is to explore the issue of salvation as proposed by
Plotinus who was both a philosopher and a mystic, and the most noteworthy representative of the last period of Greek philosophy and also the experience of gnosis, an important religious movement that reached its climax in the first centuries of the Christian Era. Initially, the study sought to contextualize this theme within the historical framework in which the so-called Plotinuss antignostic polemic occurred, namely, during the Late Antiquity, when the notion prevailed that the earthly existence replete with suffering and privation would have to be transcended. The human being was but a stranger in the world that surrounded them and, therefore, should return to their spiritual homeland, their true ancestry. It was within this historical context that Plotinuss and the Gnostics doctrine on salvation took place. Although they converged on some of its aspects, there existed a profound divergence of views between them. This study also sought to outline the fundamental concepts behind confront systems. With regard to the Gnostics, the Sethian school was analyzed since it formulated two Gnostic treatises contained in the so-called Nag Hammadi Library, which were acknowledged and criticized by Plotinus: the Zostrianus and Allogenes. In addition, the study went on to examine the theme of salvation vis a vis the theories of cosmogony/cosmology, anthropogony/anthropology, and ethics of the Plotinian and Gnostic systems, especially the Sethian Gnostic texts. Lastly, the study focused on the salvationary aspects of both traditions, the role ascribed to man in the redemption process, and also the scope of salvation. As the basis for research, works by Brazilian and foreign commentators were resorted to, as well as primary sources such as Plotinuss Enneads and the Gnostic treatises held in the Nag Hammadi Library, mainly the aforementioned Zostrianus and Allogenes. The reason for undertaking this research lies in the fact that in Brazil there are few studies about the relationship between Plotinus and the Gnostics, and there are even fewer studies conducted in the spectrum of their soteriology. Therefore, the present research hopes to arouse the interest of Brazilians for the study of philosophical and religious construction addressing the fundamental issues of the human soul.
Key words: Plotinus, gnosis, salvation.
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SUMRIO
1. INTRODUO............................................................................................................... 001
2. A ATMOSFERA ESPIRITUAL DA ANTIGUIDADE TARDIA .............................. 007
2.1 Do Homo Civicus ao Homo Interior: as transformaes religiosas, no mundo antigo, a
partir do perodo helenstico........................................................................................... 007
2.2 As Relaes entre o Ocidente e o Oriente, e o Sincretismo Religioso........................... 016
2.3 As Inquietaes de uma poca: no basta explicar o mundo, preciso transcend-lo.. 023
2.3.1 A percepo do homem comum................................................................................... 023
2.3.2 O incorpreo e a transcendncia, segundo as escolas de pensamento do perodo,
influenciadores do porvir ............................................................................................. 024
2.3.2.1 Filo de Alexandria .................................................................................................... 027
2.3.2.2 O mdio-platonismo ................................................................................................. 031
2.3.2.3 O neo-aristotelismo................................................................................................... 037
2.3.2.4 O neopitagorismo...................................................................................................... 039
2.3.2.5 O hermetismo............................................................................................................ 044
2.3.2.6 Os orculos caldaicos................................................................................................ 047
2.4 Sntese Conclusiva do Captulo...................................................................................... 050
3. PLOTINO E OS GNSTICOS, DAS AFINIDADES AO CONFLITO, LUZ DE
SUAS IDIAS FUNDAMENTAIS................................................................................ 053
3.1 Plotino e o Neoplatonismo ............................................................................................. 054
3.1.1 Amnio Saccas, precursor do Neoplatonismo ............................................................. 063
3.1.2 Plotino, filsofo e mstico ............................................................................................ 067
3.1.3 As Enadas................................................................................................................... 069
3.2 A Gnose e o Gnosticismo............................................................................................... 073
3.2.1 A questo terminolgica .............................................................................................. 073
3.2.2 O surgimento da Gnose, enquanto proposta de salvao............................................. 078
3.2.3 As idias fundamentais da Gnose ................................................................................ 084
3.2.4 Os sethianos, contemporneos e provveis antagonistas de Plotino............................ 087
3.3 A Polmica Anti-Gnstica e os seus Textos Fundamentais ........................................... 092
3.3.1 O Tratado Zostrianos ................................................................................................... 093
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3.3.2 O Tratado Algenes ..................................................................................................... 095
3.3.3 A Tetralogia Antignstica: Enadas III, 8; V, 8; V, 5; II, 9 ..................................... 097
3.4 Sntese Conclusiva do Captulo...................................................................................... 100
4. A SALVAO, EM PLOTINO E ENTRE OS GNSTICOS, NO MBITO DAS
ORIGENS E DA CONDUTA ........................................................................................ 102
4.1 Conceitos de Salvao.................................................................................................... 102
4.2 Salvao e Cosmogonia/Cosmologia na Gnose ............................................................. 105
4.3 Salvao e Cosmogonia/Cosmologia em Plotino........................................................... 110
4.4 Salvao e Antropogonia/Antropologia na Gnose ......................................................... 115
4.5 Salvao e Antropogonia/Antropologia em Plotino....................................................... 121
4.6 Salvao e tica na Gnose .............................................................................................. 125
4.7 Salvao e tica em Plotino............................................................................................ 127
4.8 Sntese Conclusiva do Captulo...................................................................................... 131
5. O CAMINHO PARA A SALVAO, EM PLOTINO E ENTRE OS
GNSTICOS................................................................................................................... 133
5.1 O Modus Operandi da Salvao: xtase e revelao...................................................... 133
5.2 Os Atores da Salvao: salvao ativa e salvao passiva............................................. 145
5.3 A Abrangncia da Salvao: salvao individual e redeno csmica .......................... 153
5.4 Sntese Conclusiva do Captulo...................................................................................... 160
6. CONCLUSO................................................................................................................. 162
7. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS.......................................................................... 166
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1. INTRODUO
J na infncia, tomado por um assombro, talvez precoce, acerca da existncia,
eu, rotineiramente, buscava a solido para refletir. O que a vida?, O que este
mundo?, Por que nascemos, vivemos e morremos?, O que devemos fazer na vida?,
Por que o sofrimento?, Por que a morte?, eram questes que, reiteradamente, me
ocupavam.
A perplexidade aumentava medida que eu crescia e tinha contato mais direto
com o fenmeno da morte e de seu irmo-gmeo, o sofrimento. Pessoas amadas, bichos
queridos, nada parecia estar a salvo de desaparecer do alcance de nossos olhos atnitos.
De outra parte, parecia-me que a maior parte das pessoas vivia mecnica e
superficialmente, sem investigar o mundo, ou pior sem se auto-investigar.
Tal realidade levou-me, por um lado, ao estudo apaixonado da filosofia e da
religio, e, por outro, a uma busca interior por vezes dolorosa. Logo fui capturado pela
beleza da filosofia, enquanto criao sublime da razo humana. Ao mesmo tempo,
fiquei embevecido com a sabedoria proveniente das vrias tradies religiosas de nosso
vasto mundo.
Entretanto, parecia-me que, se a razo, quando levada a extremos, sucumbia
diante de aporias insanveis, a religio, na seara das verdades ltimas, mostrava-se
dependente da f, o que tambm implicava em um freio ao conhecimento (ao menos da
maneira como eu o concebia).
Foi ento que passei a estudar a vida e os escritos de msticos de diversas
tradies, haurindo, de suas falas sobre o Indizvel, o alimento para empreender a minha
busca pessoal. O que me seduzia nas experincias-cume dos msticos era, justamente, a
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verdade pessoal, porm, incontrastvel, ao menos por parte daquele que as vivenciava
das quais elas so portadoras.
Cada vez mais embevecido com as descries do Invisvel, realizadas por Lao-
Ts, Patanjali, Milarepa, Rumi, Mestre Eckart, So Joo da Cruz, Santa Tereza de vila
dentre outros, passei a me perguntar se no haveria, no mbito da filosofia grega que
eu tanto admirava algum que se revestisse das caractersticas de filsofo e mstico, a
um s tempo. Alguns personagens extraordinrios se me apresentaram nesta procura
(como no sucumbir diante de Plato, o divino?), nenhum, contudo, to fascinante
quanto Plotino, o genial fundador do Neoplatonismo e expoente do ltimo perodo da
filosofia grega.
Nada obstante, quando, em 2004, candidatei-me a uma vaga no Programa de
Ps-Graduo em Cincias da Religio da Pontifcia Universidade Catlica de So
Paulo, tencionava estudar a mstica em geral, enquanto princpio norteador e inspirador
das religies. Porm, como se cuidasse de tema vastssimo, ocorreu-me a idia de
estudar Plotino, e, mais especificamente, o problema da salvao neste singular filsofo.
Ponderou-me, ento, o meu orientador, que seria interessante contrapor as concepes
de Plotino e dos gnsticos em chave soteriolgica, com o que aquiesci, com entusiasmo.
Ao lanar-me a tal empreitada, no entanto, no vislumbrava as dificuldades que
despontavam no horizonte dos meus estudos: poucos livros, artigos e teses publicados
no Brasil, acerca de Plotino e os gnsticos, em geral, e, praticamente nada, acerca da
temtica da salvao, nos mesmos; a inexistncia de uma traduo integral das Enadas
de Plotino e dos tratados gnsticos de Nag Hammadi, em portugus; literatura, quase
toda, em lngua estrangeira, o que, aliado complexidade, em si, do assunto tratado,
tornava ainda mais penosa a tarefa.
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Alm disso, cabia como ainda cabe a pergunta: Por que, no sculo XXI,
estudar o tema da salvao da alma, em Plotino e entre os gnsticos? O que ns, refns
(fascinados e cativos) da tecnologia e do consumismo, esquecidos de nossa
transcendncia, temos (ou teramos) a aprender com ecos antigos, de cerca de dezoito
sculos? Por que nos debruarmos sobre esta temtica em um tempo que, em tese, lhe
to hostil? Porque vivenciar o estado de redeno , em suma, superar uma condio
enfermia, manifestar, em plenitude, as possibilidades que se encontram latentes no seu
mais profundo abismo, livrar-se de grilhes e carncias, resgatar a parte mais preciosa
do prprio ser, consumar a unio com o Princpio Primeiro.
Ns, homens e mulheres contemporneos, tal qual Hefesto - o deus grego da
forja e, por extenso, da tecnologia - temos os ps voltados para trs. Parece que, quanto
mais nos fazemos senhores do mundo, menos senhores de ns prprios nos tornamos,
quanto mais adquirimos objetos fantsticos e mais assistimos nossa mente se entulhar
de informaes (teis?), mais infelicidade e incompletude parecemos ostentar. O ser
humano atual bem como o do sculo II da nossa era guardadas, evidentemente, as
diferenas, de fundo histrico e psicolgico, entre ambos - tem sede de plenitude, o que
torna justificvel abordar o tema da salvao em nossa poca.
Mas, qual seria a melhor forma de abordar o tema da salvao, em Plotino e
entre os gnsticos?
Uma vez que um determinado pensamento se faz mais compreensvel, a quem
dele se aproxima, se devidamente contextualizado em sua respectiva poca, optei por,
no primeiro captulo, descrever, ainda que de forma singela, a atmosfera espiritual
vigorante na bacia do Mediterrneo, a partir do perodo helenstico at chegar
denominada Antiguidade Tardia, quando se mostraram especialmente atuantes as
propostas de salvao, notadamente aquelas engendradas por Plotino e pelos gnsticos.
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No segundo captulo, ocupei-me de traar as linhas gerais do Neoplatonismo e
da gnose, detendo-me, ainda, na chamada polmica anti-gnstica de Plotino. Tal
polmica teve lugar porque Plotino (que tanto tempo convivera com gnsticos e os
recebera em suas aulas, na condio de amigos) passou, j na sua maturidade intelectual
e espiritual a ter necessidade de refutar - com nfase e por escrito - teses gnsticas, que
ele julgava falaciosas. Neste diapaso, suas crticas tambm se voltaram contra a postura
tica dos gnsticos com os quais travara contato.
Porm, a, surgiu um problema: que gnsticos eram estes, com os quais Plotino
polemizou, tendo em vista as vrias escolas, ou os diversos sistemas, ento existentes?
Na biografia que o discpulo de Plotino, Porfrio, escreveu sobre o seu mestre, h
a referncia a cinco apocalipses ilegtimos, de matriz gnstica, que teriam sido
conhecidos e criticados pelo fundador do Neoplatonismo: o de Zoroastro, o de
Zostrianos, o de Nicoteo, o de Algenes e o de Mesos. Pois bem, destes cinco, o
Zostrianos e o Algenes fazem parte da denominada Biblioteca de Nag Hammadi,
descoberta, casualmente, por um campons, no Egito, em 1945, sendo que os
comentadores tendem a atribuir escola gnstica sethiana a composio destes dois
tratados, atualmente traduzidos do copta e acessveis para anlise.
Desta forma, parece possvel afirmar que Plotino, muito embora conhecesse o
iderio de outros sistemas gnsticos, se voltou, na polmica antignstica, contra
apocalipses compostos pelos gnsticos sethianos. Por conta disso, este trabalho
confere mais destaque a tal sistema, embora no se restrinja s concepes pelo mesmo
arquitetadas. Isto porque, tanto em Plotino quanto na gnose, o centro para o qual
convergem todos os raios, a questo soteriolgica - a preocupao com a salvao da
alma - de sorte que, ao cuidar deste assunto, e na tentativa de bem compreend-lo, o
pesquisador se v compelido a juntar as peas de um grande quebra-cabeas.
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No terceiro captulo, esforcei-me por responder s seguintes perguntas: H
diferenas entre as soteriologias, plotiniana e gnstica particularmente a gnstica
sethiana no que tange criao do mundo e do homem, e tambm no que concerne
tica? Em caso positivo, quais seriam estas divergncias? O referido captulo todo
tendente a cotejar as cosmogonias/cosmologias, bem como as
antropogonias/antropologias e tambm as ticas, em confronto, assinalando as
caractersticas fundamentais de cada qual e destacando as dessimilitudes entre elas.
Por fim, no quarto e ltimo captulo, procurei examinar o procedimento salvfico
em Plotino e na gnose, bem como as caractersticas da redeno preconizada pelos
mesmos. Diante de tal quadro, trs indagaes se me mostraram interessantes: Qual o
modus operandi da salvao, nas propostas estudadas? A redeno, em Plotino e na
gnose, alcanada e consumada pelo homem, ou, ao contrrio, no pode prescindir de
fatores alheios a ele? A salvao individual ou pressupe um grande resgate final, uma
redeno em escala csmica?
Mostraram-se especialmente valiosas em meu esforo por tentar responder estas
espinhosas perguntas, as contribuies tericas de mile Brhier, R.T. Walis, Lloyd P.
Gerson, Jos Alsina Clota, E. R. Dodds, Jean Brun, Hans Jonas, Kurt Rudolf, Giovanni
Reale, Jos Igal, Reinholdo Ulmann, Henri Charles Puech, Pierre Hadot, James M.
Robinson, John D. Turner, John Dillon, Elmer OBrien, Antonio Piero, Jos
Montserrat Torrents e Francisco Garcia Bazn, dentre outros estudiosos de escol.
Ao lado dos comentrios, procurei, na medida do possvel, recorrer s prprias
Enadas, de Plotino, e aos tratados gnsticos da Biblioteca de Nag Hammadi
(especialmente os tratados Zostrianos e Algenes).
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No que concerne s Enadas, fiz uso, preferencialmente, da verso, em lngua
inglesa, de Stephen Mackenna, bem como daquela, em lngua francesa, de mile
Brhier, e, ainda, de partes daquela outra, em espanhol, de Jos Igal.
Quanto aos tratados constantes na Biblioteca de Nag Hammadi - especialmente
o Zostrianos e o Algenes - me vali, precipuamente, da traduo, do copta para a lngua
espanhola, realizada por Antonio Piero, Jos Montserrat Torrents e Francisco Garca
Bazn, e, na fase final da pesquisa, da recm publicada verso, em portugus, da
traduo que James M. Robinson fizera, do copta para o ingls.
Se, ao final das pginas seguintes, o leitor se sentir motivado a buscar um maior
aprofundamento no tema estudado ou suprema audcia um aprofundamento em si
mesmo, esta tentativa ter sido exitosa.
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2. A ATMOSFERA ESPIRITUAL DA ANTIGUIDADE TARDIA
2.1 Do Homo Civicus ao Homo Interior: as transformaes religiosas, no mundo
antigo, a partir do perodo helenstico
Diante de uma exterioridade adversa, o mergulho nos abismos interiores. Aps a
prevalncia do material e do imanente, a redescoberta do incorpreo e do transcendente;
depois do aqum, o alm, mas o alm a partir de si mesmo. Esta flexo, de contornos
religiosos e msticos, a um s tempo, centrpeta (porque introspectiva) e centrfuga
(porquanto almejasse a superao do mundo sensvel) o mote da Antiguidade Tardia, a
era histrica que se circunscreve entre Marco Aurlio (161-180 d.C) e Justiniano (527-
565). Denominou-a, Dodds, (1965, passim) a Era da Ansiedade1, pela atmosfera de
insegurana material e inquietao espiritual que a caracterizou.
Tal perodo histrico iniciou-se j com Cmodo (180-192), filho de Marco
Aurlio, e, com suas crises, cuidou de instaurar, entre as populaes, um intenso desejo
de transcendncia da dura e spera existncia corprea. Muitos fatores sociais
desempenharam o seu papel na percepo, pelas conscincias da poca, do mundo como
um lugar hostil, a ser abandonado em prol de uma nova ptria, de natureza espiritual,
1Explica-nos, E.M. Dodds, em sua obra Pagan & Christian in an age of anxiety, p. 3, que a referida expresso foi cunhada, originariamente, por seu amigo, o poeta W.H. Auden, que, todavia, a utilizara para caracterizar os tempos atuais. Tendo em mente, porm, a insegurana material e moral prprias do perodo que medeou entre Marco Aurlio e Constantino, houve, o douto helenista, por bem, qualifica-lo, outrossim, de Era da Ansiedade. Pode-se argumentar que tal qualificativo vago, eis toda era histrica portadora e produtora, cada qual a seu modo, de ansiedade. Entretanto, na Antiguidade Tardia tal sentimento parece ter sido a tnica do viver, independentemente de classe social e grau de instruo. Tanto assim , que Plotino tinha, entre seus ouvintes, desde gente do povo at o prprio Imperador, passando por senadores e altos dignitrios do Imprio, todos sequiosos de salvao. A gnose, igualmente, um caminho de salvao, que, embora reservado a uma elite, colocava em relevo as agruras da existncia material e a necessidade de transcend-la. Este desesperado e onipresente anseio pela salvao parece ter sido poderosamente estimulado seno mesmo desencadeado pela atmosfera de intensa insegurana individual que caracterizou o perodo enfocado.
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alm do devir, do sofrimento e da morte: as guerras externas travadas, por Roma, contra
os persas e os germanos, as comoes internas e disputas pelo trono, os assassinatos de
imperadores, a crise econmica e conseqente presso fiscal, a diminuio da
populao, a reduo da atividade agrcola, o que trazia a fome ao povo, alm das pestes
horrendas, que ceifavam milhares de vidas.
Entretanto, para que se possa bem compreender o cenrio no qual teve lugar o
embate entre Plotino e os gnsticos, preciso recuar at as conquistas de Alexandre
Magno (334-323 a.C) e as transformaes que as mesmas operaram no mundo antigo.
Mister se faz, destarte, antes de esquadrinhar a referida Era da Ansiedade, lanar os
olhos sobre as contribuies culturais da denominada poca helenstica, compreendida
entre 338 a.C., quando Felipe da Macednia, pai de Alexandre, vence os gregos na
batalha de Queronia, e 31 a.C., ano em que Otvio derrota Marco Antonio e Clepatra,
na batalha naval do Actium, dando incio ao perodo romano ou imperial. Isto porque, se
o processo de interiorizao do indivduo atinge o seu acm, o seu ponto mximo, na
Era da Ansiedade, seus primeiros contornos j so traados no perodo helenstico.
Com efeito, a longa e vitoriosa expedio de Alexandre rumo ao Leste no
somente interligou mundos, mas propiciou a emergncia de um clima espiritual
radicalmente diverso do que at ento tivera lugar, da Grcia ndia.
No mbito da cultura grega, a conseqncia mais visvel da expanso
macednica foi a fragmentao da polis. Procurando levar a efeito o seu projeto de uma
monarquia de carter universal e divino, capaz de abarcar cidades, naes e raas
diversas, Alexandre acabou por modificar a estrutura social e poltica dos gregos. E,
com o seu falecimento, os novos reinos que se formaram no Egito, na Sria, na
Macednia e em Prgamo, sob a espada dos seus generais, primaram pela concentrao
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do poder nas mos do monarca e a supresso das liberdades polticas. No dizer de Andr
Bonnard (1984, p. 613-614):
Aps a morte de Alexandre, desaparece uma civilizao j declinante, a da Grcia de Slon, de squilo, de Aristfanes, caracterizada na sua estrutura poltica pela forma da cidade. Mas uma outra, que em alguns dos seus aspectos prolonga a velha tradio grega, est a nascer, a civilizao a que chamamos helenstica. A estrutura poltica desta nova civilizao inteiramente diferente. Nas costas do Mediterrneo Oriental e no Prximo Oriente, como na Grcia, no h mais vestgios de cidades livres e democrticas. Quatro ou cinco grandes Estados, dirigidos por uma dinastia de prncipes, ocupam agora todo o espao conquistado por Alexandre. (...) O fato que mais impressiona nesta poca o retraimento do povo. Nestes grandes Estados, nestas cidades muito populosas como Alexandria, Prgamo ou Antioquia j no h cidados livres. Apenas uma multido de sditos. (...) Onde est o povo? Ser ele, nas cidades, essa massa confusa de indivduos de mestre mltiplos, de nacionalidades e religies amalgamadas, multido sem gostos comuns, a quem apenas une uma vaga lealdade para com o prncipe, mas no a comunidade de interesses, no a conscincia cvica ou o empenhamento numa obra empreendida por todos glria dos deuses ou para espanto dos homens futuros?
Ora, para o grego da era clssica, havia uma correspondncia quase absoluta
entre o homem e o cidado; a verdadeira existncia se dava no horizonte moral da polis.
Consoante o autorizado magistrio do historiador Fustel de Coulanges (apud REALE,
(2002, p. 6) , o Estado grego, no qual resplandeciam as poleis era aquele
em que a religio a senhora absoluta da vida privada e da vida pblica; o Estado, uma comunidade religiosa; o rei, um pontfice; o magistrado, um sacerdote; a lei, uma frmula sagrada; o patriotismo, piedade; o exlio, excomunho. O homem v-se submetido ao Estado pela alma, pelo corpo e pelos bens. obrigatrio o dio ao estrangeiro, pois a noo do direito e do dever, da justia e da afeio, no ultrapassa os limites da cidade...
A sublinhar esta idia, o helenista Werner Jaeger, (apud REALE, 2002, p. 9)
assevera que
a polis impe-se aos indivduos de maneira vigorosa e implacvel, imprimindo-lhes o seu marco. a fonte de todas as normas de vida vlidas
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para os indivduos. O Estado-cidade mais antigo era para os cidados a garantia de todos os princpios ideais de sua vida;.....; significa participar da existncia comum. Tem tambm simplesmente a significao de viver.
Por conseguinte, com o apequenamento da polis, deixou de existir a tradicional
base para que algum se legitimasse enquanto ser humano, na relao consigo mesmo, e
com os outros. De cidado, passa-se a sdito, deixando de ter importncia o valor cvico
de algum. A existncia dos novos Estados se desenvolve sem a participao consultiva
do sdito; as decises relativas res publica no carecem, de modo algum, de sua
contribuio. O resultado deste enfraquecimento da polis a depreciao do antes
cidado e agora sdito: ele, que somente se reconhecia no mbito de sua cidade-estado e
que era valorizado por suas virtudes cvicas, passa a experimentar um doloroso vazio,
um triste desenraizamento, que o far desinteressar-se pelo Estado, quando no sentir
averso por ele.
No havia, mais, portanto, como extrair, da polis, os valores pelos quais viver.
Neste cenrio, a instncia doadora de sentido parece deixar o mbito exterior e cvico da
cidade e se deslocar para a seara da intimidade de cada ser humano. A partir desta
dolorosa ruptura, algum ter seu valor aferido no mais em funo da cidade na qual
nasceu, mas de suas capacidades individuais. O homem, neste contexto, mostra-se como
o nico artfice de si mesmo, o verdadeiro arteso do seu destino. A tica, que antes
versava sobre o agir do homem-cidado, passa a considerar o homem na sua
singularidade. Este estado de coisas, se por um lado torna o homem mais livre, por
outro, o angustia e aflige, ao lhe retirar antigas certezas habituais:
Se as exigncias feitas ao indivduo pelas cidades-estados acabaram por provocar uma tenso excessiva na vida helnica, a distenso se fizera ao custo de um pouco do antigo sabor e significado da vida. Os indivduos viram-se realmente emancipados das cidades-estados sem dispor ainda de outro objeto de dedicao satisfatrio. A emancipao da tirania da cidade-estado fora comprada ao preo do desaparecimento da devoo e do
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entusiasmo. Agora que os velhos dolos haviam cado, quais seriam os novos deuses dos helenos? (TOYNBEE, 1975, p. 127).
Nada obstante, as conquistas de Alexandre aproximaram os gregos dos demais
povos, contribuindo para um ideal de igualizao das raas e a superao da idia de
que alguns so livres e outros escravos por natureza. Alexandre imaginou um tipo de
unidade mais profunda entre os povos, a homonoia ou concordia, que congregaria todos
em uma espcie de irmandade global.
A cultura grega, de outra banda, sentiu, fortemente, os influxos do Oriente,
merc da entrada em contato com tradies e crenas que lhe eram estranhas. Se Atenas
perdia prestgio, novos centros de cultura e comrcio, tais como Prgamo, Rodes e,
sobretudo, Alexandria, comandavam o intercmbio de idias por todo o Mediterrneo.
Alexandria, por conta de sua localizao geogrfica privilegiada, recebeu estmulos
culturais da Europa, da sia e da frica, tornando-se um cadinho de especulaes
filosficas e religiosas. Por outro lado, a cultura helnica, espraiando-se por povos e
naes os mais diversos, tornou-se helenstica.
No que tange filosofia, as circunstncias histrico-culturais do perodo
helenstico, bem como a transformao espiritual j descrita, levam a uma perda de
interesse pela teoricidade e a especulao, dando lugar a indagaes acerca do problema
da vida e do viver. A filosofia se torna, por conseguinte, a fonte da qual o homem
helenstico haure os valores e a justificao que, antes, lhe davam a polis e a estrutura
social dela decorrente. Mais do que tudo, a filosofia passa a ter a funo de fornecer, a
quem fora dado viver neste perodo, novas perspectivas para a vida espiritual; longe da
especulao pura, indica o correto caminho do viver e da busca da felicidade, nesta
vida. A preocupao dos filsofos da poca , eminentemente, tica. Cada fundador de
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escola filosfica, antes de qualquer abstrao, sente o mundo, percebe-o intuitivamente,
para, somente ento, emprestar contornos teorticos a esta percepo.
Como salientado por Giovani Reale (1994b, p. 12), ao filsofo helenstico e aos
seus seguidores, na realidade, importava no a sophia, mas a phronesis; isto ,
importava resolver o problema da vida. E esta phronesis, esta sabedoria, implicava no
reconhecimento de que a verdadeira riqueza jaz no interior de cada um, no sendo
dependente de quaisquer coisas exteriores, seja uma cidade organizada, um deus, ou um
alm post mortem. No as coisas exteriores, mas a opinio que fazemos delas que
repercute sobre a nossa felicidade. Tratava-se, desta forma, da busca de aquisio de
uma sabedoria prtica, permeada pela perfeita coerncia entre a teoria e o modo de viver
e morrer. O sbio bastava-se a si mesmo e extraia, do seu mago, todos os recursos para
bem viver (dispunha de autarquia, isto , gerenciava a si prprio), buscando a felicidade
que no era mais do que o reto logos - pela negao e a renncia de si mesmo; o
estado propcio e pretendido - para este modo de viver era a ataraxia, tida como a
eliminao de qualquer perturbao de nimo. Para tanto, haveria de se retornar paz
simples da natureza no contaminada pelas inquietaes do mundo. Vive escondido,
recomendava Epicuro, ilustrando a passagem do homem cvico para o homem interior.
Entretanto, tais escolas filosficas epicurismo, estoicismo, ceticismo
buscavam resolver a problemtica do viver segundo um vis imanentista, fisicista e
materialista. A felicidade, para os filsofos helensticos, consoante j se afirmou, no
est no Alm, mas no aqum, sobre a Terra. por esta razo que o pensamento
posterior, representado, sobretudo, pelo mdio-platonismo, o neo-pitagorismo e, acima
destes, o neoplatonismo, foi qualificado, pelos estudiosos, como uma redescoberta da
transcendncia e do incorpreo, instncias, estas, que se mostravam prescindveis para o
ideal do sbio da poca helenstica.
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A passagem do homo civicus para o homo interior, iniciada com a expedio
vitoriosa de Alexandre ao Oriente e aprofundada no perodo helenstico, atingir o seu
pice na denominada Era da Ansiedade, quando, todavia, o anseio pela transcendncia
e no mais o ideal do sbio que encontra a felicidade na existncia terrena - revelar-se-
o motor da vida cotidiana. O anelo principal de populaes inteiras passa a ser a
salvao individual, um tema religioso por excelncia que perpassar o perodo imperial
romano e se agudizar a partir do reinado de Cmodo, filho de Marco Aurlio.
Em 31 a.C., quando Otvio derrota Marco Antonio e Clepatra na batalha naval
do Actium, Roma se consolida como a grande potncia do mundo antigo, condio, esta,
que j se vinha delineando desde o fim das guerras pnicas e a destruio de Cartago.
Aps aniquilar a ptria de Anbal, Roma faz difundir, entre as populaes sob sua
influncia, uma terrvel sensao de impotncia e amesquinhamento do indivduo diante
do imprio da fora. Neste contexto, as cidades perdem ainda mais prestgio e
independncia frente a um avassalador poder central.
A noo de comunidade, por seu turno, se esvai, eis que, se por um lado, muitos
so agraciados com a cidadania romana, por outro, perdem o vnculo com a comunidade
de pertena, tornando-se, esta, um ente abstrato e incerto. Neste cenrio,
o indivduo foi liberado, mas deixado a si prprio e, logo, desamparado. Neste mundo confuso e mvel, circula-se, expatria-se, emigra-se... A urbanizao do mundo romano contribua para cortar o indivduo de suas razes e para desmoraliz-lo (TURCAN, 1989, p. 22).
Tem lugar, ento, mais do que uma mudana poltica, uma transformao de
cunho antropolgico e psicolgico. Toma relevo uma nova viso da existncia,
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caracterizada, a um s tempo, pela aguda percepo das agruras do mundo, e pela
interiorizao, como forma de superao destas vicissitudes. Assim,
no sculo II que se inicia a grande reviravolta; o mundo torna-se cada vez mais feio enquanto o homem interior j no se recusa o conhecimento no estilizado de seus sofrimentos, impotncias e abismos (ARIES e DUBY, 2004, p. 221).
De outra parte, com a pax romana, variados cultos penetram no Imprio, e, a par
de serem interpretados segundo as crenas romanas, acabam por colocar em cheque a
religiosidade tradicional do povo do Lcio. Estes cultos, vindos do Egito, da Anatlia,
Prsia e Sria, dentre outros rinces do mundo ento conhecido, caracterizavam-se por
uma extica irracionalidade, pelo sensualismo e o misticismo, albergando, em seus
contornos, ritos mais emocionais e menos formais do que aqueles da religiosidade
romana; convidavam, aquele que dos mesmos se dispunha a participar, a um maior
envolvimento, de ordem sensorial e perceptiva, oferecendo-lhe, ademais, explicaes
relativas ordem do Cosmos e promessas de superao da tribulao cotidiana.
semelhana do que ocorrera com as pleis, no perodo helenstico - mas, a esta
altura, de forma amplificada - o destino pessoal de algum no mais estava assegurado
pelo coletivo e nem por sua religio tradicional. Desenraizado de suas tradies,
oprimido pelo poder das armas, inseguro quanto razo de sua existncia, perplexo ante
a mirade de cultos que se lhe apresentam, o homem da Antiguidade Tardia se angustia.
Se o exterior lhe hostil, resta-lhe o mergulho mstico no mago de si mesmo, em busca
do maior dos tesouros: a salvao. Com efeito,
o homem do final da Antiguidade, pois, se encontra diante de um fato que lhe parece incontestvel: o mundo, ou carece de sentido, ou mau. O ser
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humano se sente estranho diante dele e busca, ansioso, a sada, a soluo que lhe permita encontrar-se a si mesmo e que o ajude a regressar ao lugar do qual procede. Alcanar a paz espiritual: este o grande tema. O homem do final da antiguidade busca esta salvao, via de regra, no recolhimento. (CLOTA, 1989, p. 21).
A salvao, neste contexto, buscada, pelo indivduo, em solido, e responde a
uma necessidade afetiva. Henri-Charles Puech (1982, p. 102) sintetiza, com esmero,
este fenmeno:
A transformao da cidade (polis) em um universo civilizado (oikoumn), em conseqncia do estabelecimento das monarquias helensticas e, a seguir, da unificao do mundo mediterrneo pela conquista romana, fora desprendendo, progressivamente, o homem da cidade, onde encontrava sentido e onde empregava suas foras; a cidade tinha feito do animal poltico (zon poltikon) de Aristteles, o animal social (zon koinnikon) de Crisipo, o cidado do mundo, solidrio do universo inteiro, que, em quaisquer rinces, se sentia em sua casa e infinitamente livre, vale dizer, solto, s em todas as partes e deixado a si mesmo, reduzido absolutamente a si prprio. (...) A solido, enquanto padecida, aparece como uma desgraa; enquanto aprofundada, se revela como nostalgia de um estado anterior ou transcendente, atravs do qual o eu se encontrava em plena posse do seu ser, em meio ao exerccio efetivo e jubiloso de sua liberdade. Da, perguntas como estas: Por que estou aqui embaixo? Qual a minha origem? Como regressar a onde eu estava, l onde eu, verdadeiramente, sou eu mesmo?
Muitas pessoas esto imersas na solido e no anonimato, sentindo-se como que
estrangeiras no mundo ou exiladas de sua verdadeira ptria, o reino do esprito. Para
Turcan (2005, p. 18), o sucesso das seitas gnsticas em Roma, Lyon, Cartago e
Alexandria, explica-se, dentre outros fatores, pelo fato de o tema do estrangeiro no
mundo ser uma de suas pedras basilares. Na Antiguidade Tardia, muitos percebiam a
existncia corprea como um exlio, tal como ocorria no mbito da gnose.
Por conseguinte, o processo de interiorizao, que remontava aos antigos
Mistrios, passara por Herclito, Scrates, Plato e Aristteles e que tivera um vis
fortemente moral no perodo helenstico, aprofunda-se na Era Imperial Romana e se
torna mais ainda mais agudo aps a morte de Marco Aurlio. A realidade, cada vez mais
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hostil, parece conferir ao Mal, ento, um status ontolgico. Firma-se, neste cenrio, uma
radical dualidade entre o mundo da matria e as instncias alm dela, infensas ao seu
doloroso e mortal abrao.
2.2 As Relaes entre o Ocidente e o Oriente, e o Sincretismo2 Religioso
A perplexidade com relao ao Oriente sempre se fez sentir no mundo greco-
romano. Cumpre no olvidar, a propsito, a admirao que os gimnosofistas, ou sbios
nus, despertou naqueles que acompanharam Alexandre s terras do Leste. Sculos mais
tarde, o prprio Plotino, sequioso por conhecer a filosofia que se praticava entre os
persas e os hindus, como anota Porfrio, reuniu-se malfadada expedio do Imperador
Gordiano, o que quase lhe custou a vida.
Assim, no se pode perder de vista as mutaes religiosas que se fizeram sentir,
no Mediterrneo e adjacncias, a partir da era helenstica, com o influxo das crenas
orientais, primeiro no mundo greco-romano e, depois, na Roma Imperial. Tais
transformaes moldaram o forte sincretismo religioso de ento e participaram da
fermentao espiritual ensejadora das construes soteriolgicas posteriores.
Segundo a lio de Pierre Lvque (1987, p. 160):
Na confrontao da Grcia com o Oriente, provocada pela conquista de Alexandre, difcil medir o que que o Oriente forneceu civilizao helenstica; por assim dizer nada na literatura e na cincia, um pouco mais na arte e na filosofia e quase tudo na religio.
2Sincretismo designa, atualmente, a fuso de doutrinas e sistemas religiosos e ideolgicos originariamente no relacionados entre si. O termo grego synkrtisms foi utilizado, originariamente, por Plutarco, para designar a coalizo de comunidades cretenses, comumente em litgio, para a defesa contra inimigos comuns, vindos do exterior. A concepo hodierna de mistura uma derivao do grego syn-kernnymi = misturar (KNIG; WALDENFELS, 1998, p.554).
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O influxo religioso vindo do Leste veio a coroar uma mudana, de carter
religioso, que se iniciara com o declnio da religio oficial. De fato, a perda de
importncia das pleis repercute, decisivamente, sobre o cidado, incidindo, outrossim,
sobre a religio, que, de coletiva, passa a ser individual.
A religio pblica preconizava que todos os fenmenos da vida estavam ligados
aos deuses e eram condicionados por eles. De sua parte, os deuses no eram
qualitativamente, mas, apenas, quantitativamente diferentes dos seres humanos. Eram,
pois, homens amplificados e idealizados, da decorrendo que a divindade exigia do
homem no uma transformao interior da sua forma de pensar ou a negao de suas
tendncias e de seus impulsos naturais, mas, antes, o desenvolvimento, elevado ao
mximo, de suas foras humanas. Esta religio naturalista (j que, nela, tudo divino,
no sentido de que obra dos deuses) no resiste crise que fez reduzir a importncia
das cidades, frente ao agigantamento do poder central.
Tal crise enfrentada, pelo homem da era helenstica, de duas formas
antagnicas. Alguns, diante da destruio da antiga ordem, abraam o ceticismo,
duvidando de tudo e suspendendo o juzo acerca das questes fundamentais. Surge,
neste cenrio, um novo culto, qual seja o da deusa Tyche, ou Fortuna. Esta divindade
personificava a desordem, o acaso e o fortuito, representando, assim, de modo reflexo, a
negao da providncia divina. A percepo corrente, entre os cticos, era a de que os
deuses no se preocupam com as coisas do mundo, estando, a existncia humana, pois,
sujeita a errticos ventos. Parcela maior da sociedade, porm, no acolhe o ceticismo,
mas, ao revs, robustece o fervor religioso. De fato, desgarrado de suas crenas
tradicionais e dos valores antigos, em meio a uma crise social de grandes dimenses, o
contemporneo deste duro cenrio busca, desesperadamente, a salvao individual e
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somente consegue aquietar-se atravs de cultos emocionais e extticos, que lhe
proporcionam um contato direto e ntimo com o deus de sua eleio.
Sem embargo do exposto, tem-se que, em um primeiro momento, como herana
de Alexandre, floresceu o culto dos reis salvadores. Longe dos assuntos terrenos e,
muitas vezes, desinteressados deles, os deuses antigos mostravam-se menos eficientes
do que os soberanos salvadores, mais prximos estes ltimos - das aflies humanas.
Os cognomes destes reis expressam claramente tal realidade: Soter (Salvador),
Evergetes (Benfeitor), Epfanes (que se revela em uma Epifania), Theos (Deus).
Os reis salvadores, malgrado a sua atuao poltica e material, no se revelaram
capazes de saciar a sede religiosa dos seus sditos, o que implicou na difuso do culto
de deuses transcendentes, muitos dos quais vindos do Oriente.
O contato entre os mais afastados rinces do Imprio de Alexandre se perfez,
no somente no nvel comercial, mas, sobretudo, no campo das idias, ensejando um
rico intercmbio de crenas e prticas religiosas entre o Oriente e o Ocidente. De fato,
na poca helenstica deu-se uma notvel orientalizao da religio, com a importao,
por parte do mundo grego, de cultos do Leste. Estes deuses no somente passaram a ser
venerados no Ocidente, mas acabaram por mesclar-se s divindades gregas, dando
origem a um curioso sincretismo. A divindade sincrtica Dioniso-Osiris foi seguida por
Zeus-Helios (Baal), rtemis-Anaitis, Afrodite-Astarte, dentre outras. Talvez o exemplo
mais conhecido desta estranha realidade seja o deus Hermanubis ou Hermes Thot, uma
combinao entre o Hermes Psicopompo, o condutor de almas helnico, e Anbis, o
deus egpcio da morte (SARTON, 1993, p. 169). Outras associaes conhecidas so a
de Amon com Zeus, sis com Demter, Hator com Afrodite, Imhotep com Asclpio,
Khonsu com Heracles (LVQUE, 1987, p. 149).
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A influncia das religies orientais, no mundo grego, j se vinha fazendo sentir
desde antes do perodo helenstico, aclimatando-se, paulatinamente, nos portos
comerciais, como o Pireo. Entretanto, a partir do sculo III a.C., ganham, elas,
amplitude entre as populaes flutuantes que erravam de um lugar para outro. Este
processo de orientalizao se far sentir, com a mxima amplitude, no Imprio Romano,
entre os sculos II e III d.C., principalmente por obra dos cultos egpcios, assrios,
babilnicos, bem como da religio judaica (OHLWEILER, 1990, p. 115).
Realmente, durante a dinastia dos Severos (193-235 d.C.), Roma conheceu o
pice da profuso de cultos orientais em seu territrio. Honrava-se a divindades to
dspares como Haddad e Helipolis (que, romanizado, tornou-se Jpiter
Heliopolitamus), Baal de Damasco (Jpiter Damascenus), Baal de Doliquia em
Comagem (Jpiter Dolichemus), Atargatis de Bambice (Dea Sria), todos eles trazidos
da Sria. Da Arbia, provieram os cultos de Teandris e Manef; da Frigia, os cultos de
Ciblis e tis; do Egito, os de sis, Osris e Serpis (OHLWEILER, 1990, p. 178-179).
Com efeito, em um mundo no qual os seres humanos estavam merc de foras
astrais e aos caprichos de Tyche - a divindade que representava o acaso - os cultos
orientais ofereciam, aos seus adeptos, variadas formas de salvao. As divindades
invocadas em suas liturgias e iniciaes garantiam, aos iniciados, integral proteo,
neste e no outro mundo, sem quebra de continuidade (TURCAN, 2005, p. 26).
Durante o reinado de Aureliano (270-275 d.C.), por exemplo, sobressaram-se os
cultos sincrticos de Mitra (de origem iraniana), assim como o culto srio de Sol
Invencvel. Tanto um como outro difundiram, entre as populaes, as crenas na
imortalidade da alma, da vida no alm, com o paraso e o inferno, da ressurreio e do
juzo final.
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Com o desprestgio dos deuses locais, muitos se voltaram para divindades de
cunho mais universal, tal como Zeus, de origem pan-helnica, que, no perodo
helenstico, passa a ser reverenciado por suas caractersticas salvficas, acima das
punitivas e terrificantes. O mesmo se aplica a Dioniso (deus epfano, que sempre se
mostra aos homens e, pelo xtase mstico, os salva de sua condio natural sofredora),
cujo culto se liga difuso dos Mistrios, e Asclpio, tambm tido como Salvador.
Por seu lado, os antigos Mistrios3, com sua proposta de salvao, continuavam
operantes, em toda bacia do Mediterrneo, da Grcia sia Menor, passando pelo
Egito, ao lado das vrias divindades sincrticas. Na Hlade, conheceram amplo
reconhecimento os cultos mistricos de Elusis, Dioniso, dos Cabiros de Lemnos e da
Samotrcia, e os rficos. Na sia Menor, os de Cibele, tis, Adnis e Sabzio. No Egito
helenizado, os de sis, Osris e Serpis. Cabe mencionar, tambm, o culto de Mitra, que
mesclava elementos persas e helensticos e, para alguns estudiosos, a prpria gnose,
tendo em vista a iniciao que lhe era imprescindvel e a diviso dos membros do culto
em graus distintos, caractersticas, estas, comuns aos Mistrios em geral.
Os Mistrios demandavam uma iniciao prvia para aqueles que deles
almejavam participar e traduziam, a um s tempo, uma atitude religiosa mais
individualista e um desejo de maior proximidade com o deus cultuado. Expressavam,
ademais, uma necessidade de maior interiorizao, sempre negligenciada pela religio
oficial da polis. Os mistrios tinham, em seu cerne, a ambivalncia morte/renascimento,
tal como no ciclo vegetal. O deus celebrado morria para poder renascer4, assim como,
3Segundo o magistrio do saudoso Junito Brando (2000, vol. II, p. 134), mistrio significa, etimologicamente, coisa secreta, ao de calar a boca, derivando de mstes = o que se fecha, o que guarda segredo, o iniciado, sendo, pois, mystiks, aquilo que concerne aos mistrios, que penetra os mistrios. Mistagogo, por sua vez, o sacerdote encarregado de iniciar algum nos mistrios. 4 Diferentemente do que ocorria na gnose, para a qual era inconcebvel a morte e o renascimento de um deus, j que os entes da dimenso incorprea no se misturavam com a matria. Pelo mesmo motivo no tem lugar, no seio da gnose, a encarnao.
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nos Mistrios de Elusis, Cor, filha de Demter, que, raptada por Pluto e, aps descer
ao Hades, retorna ao mundo da superfcie no mais como a jovem virgem, mas como
Persfone, rainha dos Infernos. Ao ser iniciado em um determinado mistrio, seu adepto
almejava participar do destino do deus que o protagonizava, passando pela morte e
alcanando a condio de ressurecto; o iniciado, por conseguinte, passava a ser um
outro, algum que fora introduzido na seara da salvao.
Tomem-se, como exemplo, os vetustos Mistrios rficos, cujo prestgio no foi
afetado na poca helenstica. Neles, diferentemente do que ocorria na religio oficial
grega, a tarefa do homem no era exercitar, ao mximo, a sua natureza, mas, sim,
purificar o elemento divino, que nele habita, mortificando, via de conseqncia, o
corpo, tido como o lugar de expiao da alma. Faz-se presente aqui, a concepo
dualista da alma, que, como se ver no correr deste trabalho, assume especial relevo no
pensamento de Pitgoras, Herclito, Empdocles, Plato, Filo de Alexandria, Numnio
de Apamia, Apolnio de Tiana, os neoplatnicos e os gnsticos.
A partir do perodo helenstico e tambm na Antiguidade Tardia, as tendncias
sincretistas fizeram com que vrios Mistrios entrassem no panteo dos deuses oficiais.
No era incomum, naquela realidade adversa, que algum se iniciasse em vrios
mistrios no af de superar as vicissitudes da vida ordinria. Tambm o envolvimento
emocional com o deus mistrico, o ato de render-se a ele e servi-lo, asceticamente, por
toda a vida ganha relevo no perodo helenstico (GUNTHRIE, 1966, p. 252). J aqui,
portanto, se vislumbra a atmosfera de inquietao religiosa e de busca da salvao
pessoal, que fertilizar o solo na qual Plotino e os gnsticos semearo suas
soteriologias.
Caracterstico, tambm, deste perodo, foi o gosto pelo maravilhoso e pela
magia, que grassava em todas as camadas sociais. A magia, naqueles dias difceis, se
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apresentava como um instrumento capaz de inverter a ordem natural dos fenmenos e,
desta forma, alterar o destino original dos seres humanos. A influncia do Leste acabou
por incentivar este gosto pelo sobrenatural, ligado satisfao das necessidades
humanas. A demanda pela magia no decresceu mas, antes, s fez aumentar com o
fim do perodo helenstico. Na poca imperial, o anseio pela salvao tentar ser
saciado, no raras vezes, pelo recurso s prticas mgicas. Contra isso Plotino se
postar, muito embora, aps a sua morte, certa corrente do Neoplatonismo v abraar a
teurgia, entregando-se a prticas mgicas.
De tudo se depreende que o cenrio religioso que recebeu os iderios do
neoplatonismo e da gnose era extremamente difuso e complexo. Para arrematar o
quanto j dito, vale observar que a cidade de Roma, entre os sculos I e IV abrigava, em
seus limites, santurios para a realizao de numerosos e dspares cultos, tais como: o
romano (Trajano), o grego (Esculpio), o de Mitra, o de Cibele, os srio-fencios
(Elagabal), os egpcios (sis e Serpis), dentre outros. Veneravam-se deuses estrangeiros
e locais por toda a cidade, desde o Capitlio, at o Circo Mximo, passando pelo
Frum, o Palatino, o Aventino, o Campo de Marte e o Frum Boarum (WATTEL, 2001,
p. 76). Vale dizer, poucos passos separavam um local de culto, de outro.
Tal invulgar profuso de divindades apenas expressava o anseio desesperado das
populaes pela salvao. Salvar-se era, enfim, transcender o mundo e as vicissitudes
prprias da existncia corprea, buscar um estado de plenitude infenso ao mal, que, para
muitos, era o senhor da Terra.
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2.3 As Inquietaes de uma poca: no basta explicar o mundo, preciso
transcend-lo
2.3.1 A percepo do homem comum
a partir do governo de Marco Aurlio, o imperador-filsofo, que o sonho da
pax romana comea a esvaecer, com as invases brbaras. O Imprio convulsionado
por guerras civis e assolado por epidemias e inflao galopante. O quadro ento
vivenciado por seus habitantes , pois, de extrema insegurana individual, seja de cunho
material, seja de matiz tica.
O declnio material e as convulses sociais so acompanhados pela
intensificao do sentimento religioso e mstico5, trazendo, ambos, consigo, uma
notvel mudana na viso de mundo, por parte daqueles a quem foi dado viver neste
perodo. Entretanto, parece mais correto dizer, com Dodds (1965, p. 4), que foi a
insegurana moral e intelectual que antecipou a material, e no o contrrio.
A idia de Infinito substitui a de Beleza do Paraso e do mundo. A introspeco
passa a ser, cada vez mais, valorizada. A anttese entre o mundo terrestre e o mundo
celeste , como nunca, enfatizada.
O prprio Marco Aurlio, um estico, v a ao do ser humano como
desimportante e mesmo um tanto irreal, mais se assemelhando a um trgico bal de
marionetes em um mundo dominado por Tyche. A vida, neste contexto, nada mais do
5A correlao entre distrbios sociais e a disseminao, no meio social que suporta a crise, de uma viso religiosa e mstica da vida no fato novo. W. Nestle e N. Jahrbb, citados por Dodds (1965, p. 100), elencam quatro perodos da histria grega, na qual teria tido lugar tal fenmeno: o sculo VI a.C, com Pitgoras e o orfismo; o perodo ps-guerra do Peloponeso, com a filosofia de Plato; o sculo I d.C., com Possidnio e o neo-pitagorismo e, finalmente, o sculo III d.C., com o advento de Plotino e o Neoplatonismo. Malgrado considere relevante tal enumerao, Dodds no a reputa exaustiva.
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que sonho e delrio; o homem, por seu turno, no passa de um estrangeiro, um exilado,
em uma terra hostil.
Por todo o mundo mediterrneo, o logos sistematizante perde flego, porquanto
incapaz de transcender as mazelas da existncia. A adorao do cosmos visvel cede
lugar percepo de que o mundo fsico ou sublunar se encontra sob a gide de poderes
malignos, o que implica na correlao necessria entre matria e mal. Neste diapaso,
resulta imperiosa no a busca de uma unidade com o mundo, mas, ao contrrio, a
superao dele; salvar-se, eis o que deve mover o homem em sua dura existncia. De
fato, conforme assevera Dodds (2002, p. 249):
Os pensamentos dos homens passaram a se voltar cada vez mais para tcnicas de salvao individual, algumas delas calcadas em livros sagrados, pretensamente descobertos em templos orientais ou ditados por Deus a algum profeta. Outros buscaram revelao pessoal atravs de orculos, sonhos ou vises, e outros, ainda, foram buscar segurana em rituais de iniciao (nos numerosos mysteria de ento) ou tentaram se valer dos servios de um mago em particular. Havia uma crescente demanda pela prtica do ocultismo, que no seno uma tentativa de capturar o reino dos cus atravs dos meios materiais o que tem sido descrito como uma forma vulgar de transcendentalismo.
2.3.2 O incorpreo e a transcendncia, segundo as escolas de pensamento do
perodo, influenciadores do porvir
O fato que o sentimento das ruas encontrou abrigo nas correntes filosficas da
poca, que trataram de elaborar novas construes que contemplassem o apelo pela
transcendncia, bem como redimensionassem o logos grego luz do impulso religioso
oriental. O estudo de tais correntes, ainda que de forma perfunctria, revela-se oportuno,
j que tanto o neoplatonismo quanto a gnose aproveitaro elementos ventilados em tais
construes tericas, que lhes foram precedentes, para moldar os seus prprios sistemas.
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No mbito da filosofia grega, tal interregno, ps-era helenstica, coincide com o
perodo denominado religioso ou mstico, o ltimo antes do advento da Cristandade e da
transio para o mundo medieval.
Com efeito, como se sabe, em um primeiro momento, com os chamados
pensadores originrios ou pr-socrticos, a especulao grega tratou de perquirir acerca
da physis. Era o tempo de Tales, Anaximandro, Anaxmenes, Anaxgoras, Parmnides,
Herclito, dentre outros. A preocupao principal destes pensadores era a de,
perscrutando a natureza, descobrir o elemento constituinte fundamental de todas as
coisas. As explicaes, at ento, advindas do mito, no mais resistiam ao exame do
logos. Com o surgimento dos sofistas e de Scrates, a preocupao maior dos
pensadores passa a ser o homem e, por extenso, as complexidades da vida social.
Morto Scrates, seus discpulos Plato e Aristteles, se debruaram sobre, virtualmente,
todas as questes importantes da existncia, procurando delas tratar, de forma
sistemtica. No perodo helenstico, isto , aquela nova ordem instituda por Alexandre,
o Grande, d-se um exaurimento das especulaes anteriores. uma poca de
decadncia da polis grega, e a demanda pela melhor ou mais sbia forma de viver em
um mundo permeado pela ruptura com os valores antigos. Surgem, ento, escolas de
pensamento para responder a estes anseios, como a estica, a cnica, a epicurista e a
ecltica; a filosofia, aqui, um estar-no-mundo. Para Sneca, por exemplo, a
investigao de coisas que no podemos conhecer ou cujo conhecimento intil, no
devia merecer a ateno de ningum. Todavia, tais diretrizes do bem viver no mais se
mostram adequadas aos reclamos e s peculiaridades do perodo seguinte, no qual
sobressaem o poderio blico de Roma, o sincretismo religioso e o clamor pela salvao
individual. No h mais lugar, ento, para a curiosidade desinteressada; muitos tm a
alma enferma, carecendo de uma senda salvfica que lhes propicie a almejada
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transcendncia do mundo material. A filosofia no se manter alheia a este anseio, o
que ensejar a construo de sistemas que reinterpretaro a rica herana helnica, a ela
incorporando elementos provindos do Leste, o que resultar em snteses originais. Tal
empreitada, no por acaso, ter incio na Alexandria dos Ptolomeus.
Alexandria, na foz do Nilo, por sua condio geogrfica e pela diversidade
tnica de sua populao, era a cidade mais receptiva ao influxo das idias e crenas
orientais. No de admirar, portanto, que as mais extraordinrias tentativas de sntese
entre o racionalismo helnico e o esprito religioso e mstico do Oriente, l se tenham
verificado.
O anseio pela transcendncia ganhou roupagem filosfica, primeiramente, pelo
pensamento de Filo, o Judeu, assim como pelos comentaristas e exegetas mdio-
platnicos, neo-pitagricos e neo-aristotlicos, que reenquadram, em sintonia com os
clamores da poca, a sabedoria anterior. O Hermetismo e os Orculos Caldaicos, por
seu lado, com seu vis menos especulativo e mais mgico tambm desempenharam
importante papel no perodo. Nada obstante, conceitos ventilados pelos filsofos da
poca helenstica - esticos, epicuristas, cticos e cnicos so, tambm, agora
retomados, seja como objeto de crtica, seja para reelaborao. O fato que muitos dos
aportes trazidos por tais escolas e pensadores, assim como pelas religies do Oriente,
parecem ter pavimentado a estrada que levou ao surgimento e ao desenvolvimento do
neoplatonismo e da gnose.
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2.3.2.1 Filo de Alexandria
A importncia de Filo de Alexandria, neste horizonte, de tal jaez, que Giovani
Reale (1994c, p. 217), o qualifica como um personagem de ruptura, sem o qual no se
pode compreender o transcendentalismo posterior.
Filo, que era hebreu de nascimento e grego por formao, contraps, viso
imanentista da poca helenstica, uma sofisticada construo transcendentalista, que fez
impregnar, o helenismo, com ares indubitavelmente religiosos e msticos. Sua tentativa
de fuso entre a teologia hebraica e a filosofia grega, com a interpretao alegrica da
Septuaginta6, inaugura a aliana entre f bblica e razo filosfica helnica (REALE,
1994c, p. 219-220). O sbio judeu influenciado pelo pitagorismo, pelo aristotelismo, e,
especialmente, pelo platonismo. Sem embargo, do cinismo retira a idia do prazer como
mal e fonte de pecado; j, o ceticismo, lhe pe a claro as aporias e as impotncias da
razo para, sozinha, esquadrinhar o Absoluto.
Filo retoma o conceito platnico do incorpreo, remodelando, entretanto, a
concepo de Deus, que passa a figurar acima das Idias, consideradas, estas, como
produes e pensamentos divinos. Ademais, concebe o agir demirgico como ato de
criao, no sentido bblico, e reformula a lei moral, transformando-a em um
mandamento do Supremo Ser. Demais disso, pe em relevo a idia de revelao a
divina inspirao da Escritura - que perpassaria tanto o sentido literal (e inferior),
quanto o alegrico (e superior) da mensagem bblica.
6Traduo grega da Bblia, iniciada em Alexandria, no reinado de Ptolomeu Filadelfo (285-246 a.C.), para atender as necessidades da grande comunidade hebraica helenizada que l se tinha instalado. Filo conheceu a Septuaginta por completo, mas privilegiou o Pentateuco (a Lei ou Torah, em hebraico), buscando descortinar o sentido que jazia oculto sob a narrativa literal. O alegorismo tornou-se, assim, o seu trao principal e mtodo filosfico.
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De outra parte, Filo de Alexandria aproxima a interpretao alegrica dos
mistrios, o que no de admirar, visto que a idia de que a verdade se faa oculta sob
smbolos, bem como de que se faz necessrio um mtodo para desvel-la, deve ter
surgido, provavelmente, entre os mistrios rficos7.
Do exposto se depreende que, ao esposar firmemente sua crena na revelao
divina, Filo d a lume, no seio da filosofia grega, um novo e instigante problema, qual
seja, o de conciliar razo filosfica e f. Realmente, cumpre observar que a religio
helnica jamais conhecera algo como uma verdade revelada. verdade que Plato,
em uma famosa passagem do Fdon (85, c-d), que cumpre, por sua beleza, transcrever,
cogita de uma divina revelao, que, entretanto, remanescia apenas como uma distante
possibilidade na busca da Verdade. Assim:
De fato, tratando-se desses problemas [sobre os destinos do homem e sobre sua sorte escatolgica], s possvel fazer uma dessas coisas: ou aprender de outro qual a verdade; ou descobri-la por si prprios; ou, se isso impossvel, aceitar, entre os raciocnios humanos, o melhor e menos fcil de refutar, e sobre ele, como uma jangada, afrontar o risco da travessia no mar da vida: a menos que se possa fazer a viagem de modo mais seguro e com menor risco sobre uma nave mais slida, ou seja, confiando-se a uma divida revelao.
Para Filo, a revelao (Palavra Divina) no uma distante aspirao, mas uma
realidade passvel de ser conhecida pelo ser humano. Sendo assim, ele subordina a
filosofia (razo humana) revelao; a filosofia, desta forma, se torna serva da
sapincia, entendida, esta, como a cincia das coisas divinas e humanas, e suas causas.
O fundamento da sapincia, por sua vez, a f, concebida como a convico slida e
inabalvel que se posta alm da incerteza dos argumentos humanos. Neste diapaso, a
7Orfeu se expressava simbolicamente e ressaltava a superioridade deste falar sobre o de carter denotativo.
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filosofia seria o esforo para se alcanar a sapincia, o que implica em uma superao
da mxima helenstica, segundo a qual a phronesis, ou sabedoria, estaria em um patamar
mais alto do que a sophia, ou sapincia. Filo, de modo original, concebe a sapincia
como o conhecimento e o culto de Deus, deslocando, a sabedoria, para o reino da tica,
da conduta do homem em sua vida prtica. Sem embargo, ele reenquadra a diviso da
filosofia em lgica, fsica e tica, cara aos filsofos helensticos, propondo, ademais,
como ponto axial, desta ltima, um agir no mundo tendente ao conhecimento de Deus.
Assim, o mestre hebreu acaba por retirar a teologia do mbito da cosmologia, ligando-a
ao contexto da tica porque repudia a concepo materialista e imanentista de Deus e
do divino, sustentada por todas as escolas helensticas, em particular a do Prtico, e at
mesmo redimensiona radicalmente o sentido e o alcance da prpria cosmologia
(REALE, 1994c, p. 235). Isto porque, na cosmologia de contornos filonianos,
sublinhada a realidade do incorpreo, que, longe da negao que conheceu dentre os
filsofos helensticos, aparece como verdadeira causa do corpreo, que, por seu turno,
passa a carecer de autonomia ontolgica, no se sustentando por si mesmo. Deus, na
viso de Filo, incorpreo, absolutamente simples (j que no composto por partes) e
incorruptvel, j que absolutamente transcendente ao mundo, no cessando, ademais, de
agir, por ser o princpio e o operar de todas as coisas. No , entretanto, um demiurgo,
mas um criador, j que produz coisas que no eram antes de Sua ao, que se manifesta
por sua graa.
O escopo fundamental da filosofia de Filo um caminhar para Deus, que se
inicia pelo abandono da adorao do cosmo (a cosmolatria) e seguida pela
interiorizao, tendente ao conhecimento de si prprio. Esta auto-anlise pressupe o
conhecimento do prprio corpo, dos prprios sentidos, da prpria linguagem e o
afastamento progressivo destas trs instncias, que se revelam enganadoras: o corpo,
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porque considerado como uma priso, dominada pelos prazeres e os desejos; os
sentidos, porque tm o poder de atrair, o ser humano, para os objetos dos desejos,
concitando-o a abrir mo do que lhe inerente em prol de algo que lhe exterior e
estranho; a linguagem, porque a bela retrica, via de regra, nos descortina um mundo de
aparncias, eclipsando a realidade. Superadas estas trs esferas de engano, cabe, ao
buscador de Deus, refugiar-se na prpria alma (intelecto), certificando-se de que ela
mesma deve ser transcendida, porquanto incapaz de aproximar-se mais das realidades
incorpreas e, por conseguinte, de Deus. H que se empreender, ento, pelo xtase
mstico, uma sada de si, entregando, o prprio pensamento, sua Causa, vale dizer, a
Deus.
Em suma, o ser humano est ligado ao mundo inteligvel atravs da parte mais
elevada e ao mundo sensvel pela poro inferior, de sua alma. A salvao do ser
humano implica no abandono da existncia inferior para que tenha lugar a ascenso a
Deus. A renncia aos prazeres do mundo material uma condio preliminar para o
alcance da intuio profunda de Deus. Entretanto, no a percepo sensria e nem
mesmo a razo que podem fazer o homem aproximar-se de Deus, mas a iluminao
mstica, que, por sua vez, no pode prescindir, em seu ltimo estgio, da graa divina.
Esta, tal qual um raio, surge, espontaneamente, quando a luz da mente humana est
extinta. Assim, a sublime tarefa do homem o preparar-se para a recepo deste divino
raio; em sua derradeira fase, pois, a salvao demanda a graa e a revelao (LEWY,
2004, p. 20). Nada obstante, mesmo assim dado ao homem conhecer to somente a
existncia no a natureza de Deus, tendo em vista a radical distncia entre Criador e
criatura; o conhecimento do homem acerca de Deus , assim, necessariamente limitado
(JONAS, 2000, p. 149).
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2.3.2.2 O mdio-platonismo
Outra corrente filosfica que, sensvel atmosfera do perodo histrico tratado,
cuidou dos temas do incorpreo e da transcendncia, elaborando e ressignificando
conceitos que tiveram eco entre o neoplatonismo e a gnose, foi o mdio-platonismo, isto
, o platonismo do incio da era imperial romana (WALLIS, 1995, p. 1). De fato, sem o
movimento mdio-platnico o neoplatonismo seria praticamente inexplicvel (REALE,
1994c, p. 287). Plotino valeu-se, largamente, de textos mdio-platnicos em suas aulas,
bem como de escritos provindos de seguidores de Aristteles, interpretados luz do
mdio-platonismo. A influncia das idias mdio-platnicas na construo do edifcio
plotiniano de tal monta, que, nas Enadas, sequer se d ao trabalho, o licopolitano, de
demonstrar ou explicitar alguns conceitos, porquanto j os tivesse como devidamente
assimilados pelo leitor ou pelo ouvinte, dada a penetrao do pensamento mdio-
platnico em seu mundo e sua poca.
Para R.T. Wallis (1995, p. 30), as fontes mdio-platnicas do pensamento de
Plotino, no so fceis de inferir, j que nenhuma obra dos filsofos mdio-platnicos
sobreviveu, em sua inteireza. De todo modo, afigura-se importante consignar que havia
muitos esticos entre os mdio-platnicos, tanto que Plotino, em seus escritos,
freqentemente critica os platnicos que haviam sucumbido ao materialismo estico.
Rodolfo Mondolfo (1965, p. 357-358), por sua vez, prefere denominar os mdio-
platnicos de platnicos pitagorizantes, tendo em vista a afinidade entre o
neopitagorismo e o pensamento de expoentes do referido platonismo mdio, como
Plutarco de Queronia, Apuleio de Madaura e Numnio de Apamia.
O termo mdio-platonismo, assim, reservado, por aqueles que aceitam tal
denominao, ao platonismo que se desenvolveu entre os sculos I a.C. e II d.C., vale
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dizer entre o platonismo do prprio Plato e dos seus seguidores imediatos, e o
neoplatonismo de Plotino e seus continuadores.
A caracterstica mais marcante deste platonismo, a meio caminho entre o velho e
o novo, a recuperao do supra-sensvel, do imaterial e do transcendente; em suma,
o rompimento com o materialismo que vicejou, com nfase, na era helenstica.
Abandona-se a viso imanentista e fisicista de esticos, epicuristas, cticos, cnicos e
eclticos, em prol de uma recuperao do incorpreo, que passa a ser considerado como
o fundamento do sensvel e do corpreo. Nesta esteira, o elemento metafsico-teolgico
da filosofia retomado e mesmo alado a um grau de proeminncia sobre os demais.
Os mdio-platnicos tratam de repropor a teoria das idias de Plato, buscando
concilia-la com o aristotelismo. Assim, as idias, no seu aspecto transcendente, so
consideradas como pensamentos de Deus, ao passo que o mundo inteligvel
identificado com a atividade e o contedo da suprema Inteligncia; j em seu aspecto
imanente, as idias so entendidas como formas das coisas (REALE, 1994c, p. 276).
O dilogo platnico mais caro a esta corrente era o Timeu, j que, por conta de
sua densidade, o mesmo se afigurava mais apto almejada sistematizao e sintetizao
da filosofia platnica. Nesta empreitada, a doutrina platnica do Uno e da Dade , em
parte, retomada, dando ensejo s construes tericas em torno da Mnada e da Dade.
Nada obstante, o mdio-platonismo, dominado por um intenso sentimento
religioso, bem como considerando a marcada transcendncia de Deus e do divino, com
relao instncia da matria, dispensou grande interesse doutrina dos demnios,
ventilada, desde h muito, entre os helenos, seja no mbito dos pr-socrticos, dos
rficos, de Plato, e mesmo dos esticos. E isto se explica sem dificuldade: se o divino
era de tal modo transcendente ao mundo material, necessria se fazia a intermediao
dos daimons entre um mundo e o outro. Por outro lado, os demnios se faziam
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necessrios para explicar o mal no mundo, j que, diferentemente dos deuses (que
somente podem ser bons e fontes do bem), em razo de sua constituio mista,
poderiam, eles, ser fonte, tanto fonte do bem, quanto do mal.
Tal absoluta transcendncia do divino, em relao s coisas do mundo material,
assinalada por Plutarco de Queronia8 (apud REALE, 1994c, p. 289):
No verossmil nem conveniente, como afirmam alguns filsofos, que Deus se encontre misturado com alguma matria sujeita a todas as afeces e com coisas que sofrem inumerveis formas de necessidade, causalidade e mudana. Mas Deus, em si mesmo, est muito longe da terra, incontaminado, incorruptvel, puro de toda matria que sofre destruio e morte.
Demais disso, o novo vigor religioso propiciou uma reavaliao, por parte dos
mdio-platnicos, da sapincia oriental, notadamente a egpcia.
A problemtica tocante ao correto viver, ou vida tica, tambm foi objeto de
reexame cuidadoso: o conselho helenstico Segue a natureza, foi substitudo pela
exortao Segue a Deus, ou Imita a Deus. A existncia tica, neste diapaso, passou
a ser aquela norteada pela busca, por parte do ser humano (que habita o mundo sensvel
e da corporeidade), da assimilao ao divino transcendente e incorpreo.
Outro tema caro aos mdio-platnicos, e j referido por Filo de Alexandria, o
da incognoscibilidade e da inefabilidade de Deus. Sim, se Deus absolutamente
transcendente ao mundo, no possvel, ao ser humano, captar a Sua essncia e nem,
tampouco, transmiti-La por palavras. Representativas, nesta esteira, so as
8Plutarco, nascido em Queronia, viveu entre a metade do sculo I d.C. e o terceiro decnio do sculo II d.C., tendo sido discpulo do egpcio Amnio. Grande representante do mdio-platonismo, escreveu sobre filosofia, religio, cincia, poltica, retrica, hermenutica literria. Todavia, mais bem conhecido pela obra biogrfica Vidas Paralelas, assim como pelas Moralia, escritos de temtica moralista. Prope a existncia de um Deus transcendente como o Uno platnico, antes do Intelecto (nous) e da alma (psych). Sensvel teologia egpcia, escreve Isis e Osris. Influenciado pelo estoicismo de Posidnio de Apamia, distingue trs partes no ser humano: o intelecto, que solar, a alma, lunar e mida e o corpo sublunar, propriamente terrestre. Destes, apenas o primeiro imortal (DUMONT, 2004, p. 722).
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consideraes do mdio-platnico Albino9 (apud REALE, 1994, p. 293), acerca de
Deus:
inefvel e captvel apenas com o intelecto, como se disse, pois no nem gnero, nem espcie, nem diferena especfica e nem mesmo, por outro lado, lhe compete qualquer especificao, nem boa (pois seria bom por participao em alguma coisa, e especificamente na bondade); nem indiferente (porque isso no corresponde sua noo) Nem se lhe atribui qualidade (porque no tem nada a ver com qualidades e perfeito independentemente da qualidade), nem sem qualidade (porque no privado de qualidades que com ele possam competir). No parte de alguma coisa, nem tem partes como um todo, nem, por conseqncia, igual a qualquer coisa, nem diferente, nada, com efeito, se lhe acrescenta por fora da qual possa ser separado das outras coisas; nem move, nem movido.
Emergem, de tal excerto, duas importantes constataes: a primeira diz com a
marcada anttese entre o pensamento mdio-platnico e o imanentismo das escolas
helensticas, particularmente do Prtico; a segunda pe a descoberto uma diferena
fundamental entre o mdio-platonismo e o neoplatonismo, que lhe sucedeu, no que
concerne posio ocupada por Deus nas hipstases: para aquele, Deus coincide com a
Suprema Inteligncia; para este, est acima tambm dela.
Ainda um ponto a se destacar foi o esforo, levado a efeito pelo mdio-
platonismo, para conciliar as vises de Plato e de Aristteles, no que tange doutrina
as idias como pensamentos divinos. Como se sabe, Plato estabelecera o Absoluto
como o Inteligvel (o mundo das idias), postando-o acima da Mente e da Inteligncia;
as Idias, para ele, se situam acima da inteligncia demirgica, superando-as tanto sob o
prisma do ser, quanto do valor. Aristteles, por seu lado, entendera o Absoluto como a
9Filsofo mdio-platnico, autor do Didasklikos ou Eptome (Compndio), prepara o neoplatonismo, dando especial ateno ao Timeu, lido luz de A Repblica. O primeiro Deus o Intelecto imvel, a saber, o Demiurgo. O segundo deus o intelecto eternamente em ato: o Cu. O terceiro deus o intelecto em potncia, que uma potncia da alma do mundo. Assim, o primeiro, ainda que inefvel, no ainda o Uno de Plotino: ele pode ser apreendido por um intelecto divino, inspirado, de uma maneira negativa. O demiurgo, primeiro intelecto que se pensa a si mesmo, como o deus de Aristteles, produz sues prprios paradigmas e imita assim as idias (DUMONT, 2004, p. 722).
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Inteligncia enquanto pensamento de si mesmo, isto , Pensamento de Pensamento;
assim, o Estagirita fixou as Idias no mbito do Sensvel, tornando-as imanentes e
fazendo, delas, formas intrnsecas s coisas.
Ambas as concepes acabavam por ter elementos aporticos: na viso
platnica, porquanto tivesse, Plato, concebido as Idias como estando acima da
inteligncia criadora, demirgica; na viso aristotlica, por ter, Aristteles, arquitetado
as idias como estando muito abaixo da Inteligncia divina, inserindo-as, pois, no
mbito material e, conseqentemente, no intelecto humano, que as pensa.
Para os mdio-platnicos, tais concepes no eram inconciliveis. De fato, por
um lado, diziam eles, Aristteles est certo quando afirma que o primeiro princpio o
Pensamento; nada obstante, Plato tambm est correto, no que tange ao seu mundo
das idias: a concluso que o mundo das idias o contedo do Pensamento. Os
pensamentos de Deus (que pensa a Si mesmo) s podem ser eternos, imutveis e o
paradigma para todas as coisas; ora, tais pensamentos nada mais so do que as Idias
platnicas. Nesta linha de raciocnio, as Idias transcendentes so os fundamentos e as
causas e, as formas imanentes, as conseqncias e efeitos; as formas imanentes s
coisas individuais so as imagens ou os reflexos das Idias impressos pelo Demiurgo na
matria (REALE, 1994c, p. 296-297).
O mdio-platonismo repercutiu, decisivamente, na construo do edifcio
plotiniano, sobretudo atravs da doutrina das hipstases10. Ao menos em estgio
embrionrio, as hipstases plotinianas parecem estar esboadas em escritos de Plutarco,
Apuleio e no Didasclico de Albino.
10Plotino denominou hipstases, as trs substncias principais do mundo inteligvel, a saber, o Uno, a Inteligncia e a Alma. A acepo latina do vocbulo substncia (ABBAGNANO, 2000, p. 500).
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De fato, os filsofos mdio-platnicos, fiis sua viso de mundo no
materialista e antiestica, situavam o nous (a mente, o intelecto) acima da psych (a
alma). Se, ao lado da alma e do intelecto, for introduzido o Ser, o Uno, enfim, Deus, ter-
se- uma trade semelhante plotiniana. Para Albino, a hierarquia do divino
comportaria trs hipstases, a saber: o Primeiro Deus ou o Primeiro Intelecto, o
Segundo Intelecto ou o Intelecto da alma do mundo e a prpria alma do mundo.
Sublinhe-se, aqui, que uma das idias fundamentais do mdio-platonismo a
identificao de Deus com o Supremo Intelecto. Com o passar do tempo, porm, os
filsofos mdio-platnicos, sobretudo Plutarco, tenderiam a retornar doutrina da
Mnada e da Dade, acentuando o dualismo entre bem e mal, princpios opostos que se
digladiam eternamente, sem prejuzo do demiurgo (referido, por Plato, no Timeu) que
coloca ordem na matria, a partir do paradigma das Idias; neste contexto, a gnese do
cosmo espelharia a imagem do Ser na matria e o devir no passaria de uma imitao do
Ser.
Outro ponto de contato entre o mdio-platonismo e Plotino diz respeito tica,
isto , ao correto modo de viver e conviver. Para os mdio-platnicos, o objetivo
supremo da existncia terrena a contemplao, consubstanciada na busca da
assimilao, do homem, a Deus e ao divino. Trata-se de fugir para o alto, o quanto antes
possvel, assimilar-se a Deus, enquanto possvel, tornar-se justo e santo com o
pensamento. E, para tanto, h que ter lugar o cultivo de todo o ser. A verdadeira
felicidade no depende dos bens humanos, mas dos divinos, j que, no belo dizer do
Didasclico, de Albino, somente atravs destes, a alma poder contemplar a plancie da
verdade (apud REALE, 1994, p. 315). Mais uma vez, Albino (apud REALE, 1994c, p.
311):
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Podemos chegar a ser semelhantes a Deus, se tivermos uma natureza adaptada, costumes, uma educao e uma vida segundo as leis e, sobretudo, se usarmos a razo, o ensinamento e a tradio das doutrinas, de modo a manter-nos afastados da maioria das coisas humanas e de modo a estarmos sempre voltados s coisas inteligveis. Se queremos ser iniciados nos conhecimentos mais elevados, a preparao e a purificao do demnio que existe em ns devero acontecer atravs da msica, da aritmtica, da astronomia e da geometria, e deveremos nos ocupar tambm do corpo com a ginstica, a qual adestra e bem dispe os corpos guerra e paz.
enfatizada, outrossim, pelo mdio-platonismo, a presena, no ser humano, de
uma dimenso no material. Alm disso, a alma provm de Deus e, por conta de sua
incorporeidade e imaterialidade, naturalmente destinada a retornar, depois de
purificar-se atravs dos supremos conhecimentos, instncia do divino. Ademais,
embora as conseqncias das aes da alma venham a se cumprir segundo o Destino,
ela senhora do seu agir.
Tal presena de algo incorpreo, no mbito do corpreo, apregoada tambm
por Plotino e pelos gnsticos, para os quais a salvao implica em fazer retornar,
origem, esta contraparte no material do ser humano. Entretanto, a maneira pela qual
esta centelha ou a alma veio se imiscuir com o corpo e como, pode, ela, abandon-
lo, recebem explicaes diferentes, por parte daquele e destes, como se procurar
demonstrar, oportunamente.
2.3.2.3 O neo-aristotelismo
Outra corrente filosfica que, influenciada pelo mdio-platonismo, legou,
histria do pensamento, elementos posteriormente tratados pelo neoplatonismo e o
gnosticismo, foi o neo-aristotelismo. Plotino bem conhecia as obras de Aristteles e dos
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seus comentadores, em especial as obras de Alexandre de Afrodisia (OMEARA, 1996,
p. 71).
Aps conhecer um perodo no qual tiveram lugar, exclusivamente, as
interpretaes e comentrios das obras do Estagirita, e durante a qual esposou uma viso
materialista e naturalstica, o Perpato conhece, em Alexandre de Afrodisia e Aristocles
de Messina, no sculo II d.C. uma mudana de rumo, sob os influxos do mdio-
platonismo.
O aristotelismo da poca parece guardar grande apreo por Plato, ou, ao menos,