O pensamento africano de Cheikh Anta Diop: elementos para incluir o componente
histórico nos currículos de ciências e re-educar relações étnico-raciais1
Thiago Leandro da Silva Dias
Universidade Federal da Bahia
Claudia Alencar Serra e Sepulveda
Universidade Estadual de Feira de Santana
Juan Manuel Sánchez Arteaga
Universidade Federal da Bahia
Introdução
Partindo da necessidade de aprofundar questões históricas, epistemológicas e
curriculares no Ensino de Ciências capazes de tornar real o Ensino de História e Cultura
Afro-Brasileira e Africana e a Educação das Relações Étnico-Raciais nas escolas,
pretendemos realizar um ensaio teórico que fundamente a construção e aplicação de
Materiais Curriculares Educativos (MCE) a partir da seleção e análise histórica de fatos e
aspectos do pensamento africano moderno, tendo como foco a produção científica e
sócio-histórica de Cheikh Anta Diop.
Estimular práticas educativas nesse sentido é romper o silenciamento sobre a
contribuição da matriz civilizatória dos povos africanos e afrodescendentes para a ciência
e tecnologia, ao invés de privilegiar uma “história única” que coloca a ciência em geral
como um atributo essencialmente ocidental, desconsiderando o fato de que, assim como a
humanidade, as primeiras civilizações, os primeiros passos da ciência, foram dados no
continente africano (DIOP, 1974; MACHADO, 2014). Além disso, tal abordagem é uma
1 Agradecemos ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq-Brasil) pelo
apoio financeiro ao projeto de pesquisa “Investigação Colaborativa sobre Materiais Curriculares Educativos
para as Relações Étnico-Raciais baseados na história do Racismo Científico”.
forma de educar relações étnico-raciais com base na História da Ciência, levantando e
problematizando questões históricas, filosóficas, sociológicas e culturais da ciência.
O intelectual senegalês Cheikh Anta Diop empregou toda disciplina e rigor
científico para demonstrar e provar suas principais conclusões, mesmo vivendo em um
contexto extremamente hostil às suas ideias de reavaliar e reconstruir o passado africano
de modo a produzir uma visão mais ampla sobre a contribuição e protagonismo da
população negra. Suas teses vêm sendo validadas teórica e empiricamente por vários
campos do conhecimento científico, reiterando não apenas que a humanidade nasceu na
África, como também que os negros africanos estão entre os primeiros a construir
civilizações humanas e erigiram as bases da própria civilização ocidental
(NASCIMENTO, 2008). O estudo de suas produções reverbera o que tem se denominado
contemporaneamente de pensamento africano moderno, emergido durante os períodos da
colonização europeia, descolonização e reorganização das sociedades africanas, ao longo
dos séculos XIX/XX, onde diversos intelectuais nascidos na África apropriaram-se de um
vasto conjunto de referenciais teóricos, conceituais e metodológicos, empregando-os para
expressar a posição de seus coetâneos em relação ao mundo (MACEDO, 2016).
Nesse sentido, para produzir Materiais Curriculares Educativos (MCE) no Ensino
de Ciências a partir da análise histórica de aspectos do pensamento africano moderno,
utilizaremos uma abordagem da pesquisa de design educacional (educational design
research). Os resultados dos estudos em História das Ciências irão produzir
conhecimentos esperados em uma fase preliminar da pesquisa em desenvolvimento,
juntamente com resultados de estudos já desenvolvidos a partir dos quais foi produzida
uma matriz de objetivos educacionais para trabalhar pedagogicamente relações étnico-
raciais (DIAS, 2017), resultando assim na proposição de heurísticas de design e
construção dos primeiros protótipos dos MCE a serem aplicados e avaliados em
contextos de ensino. Sendo assim, como uma das etapas dessa proposta de pesquisa,
objetivamos com esta escrita realizar um ensaio teórico sobre o potencial que o
pensamento de Diop apresenta para o desenvolvimento de um caso com base no qual
podem ser formulados MCE voltados para educação das relações étnico-raciais no ensino
de ciências, integrada a uma abordagem da história e filosofia das ciências.
História da Ciência e Relações Étnico-raciais no Ensino de Ciências
Considerações sobre a importância e necessidade de integrar abordagens e
conteúdos históricos, sociológicos e filosóficos aos currículos de ciências, tem sido
recorrentes na literatura e associadas ao interesse crescente pelo ensino contextual de
ciências, sobretudo a partir da década de 1970. A despeito de tal importância, Teixeira et
al. (2012) ressalvam que há poucos trabalhos que fornecem corroboração empírica para
tal integração, reiterando a necessidade de realizar e investigar intervenções educacionais
com uso de História e Filosofia da Ciência (HFC), a fim de compreender melhor, em
situações concretas de sala de aula, qual a real contribuição que a HFC pode oferecer ao
ensino e aprendizagem das ciências.
Aprofundando o estudo sobre as definições do que exatamente compreende a
História da Ciência nos currículos, MCcomas (2011) organizou uma tipologia de
abordagens do conteúdo histórico no ensino, a partir de uma ampla revisão de literatura,
destacando, por exemplo, abordagens baseadas em interações dos estudantes com obras
originais, ou com estudos de caso, histórias e outras ilustrações, assim como com
biografias e autobiografias de cientistas e suas descobertas. A proposta de ensino e
pesquisa que estamos apresentando, está alinhada à uma abordagem inclusiva da História
da Ciência nos currículos científicos (MATTHEWS, 1992, PRESTES; CALDEIRA,
2009), que trata da introdução de episódios históricos específicos (ou estudos de caso de
História da Ciência) em unidades pedagógicas. Especificamente, apresentamos uma
proposta de desenvolver um caso com base na história da produção do pensamento
africano moderno, que possa estruturar o planejamento de uma intervenção de ensino de
ciências, que além, e de forma integrada a abordagem histórica, filosófica e sociológica
das ciências, promova educação das relações étnico-raciais.
Historicamente, o uso do conceito de raça para descrever a variabilidade humana
esteve fortemente relacionado ao desenvolvimento da antropologia, etnologia e das
tecnociências biomédicas, ao tempo em que práticas e discursos produzidos por essas
ciências estiveram envolvidos em processos de hierarquização e marginalização de
grupos humanos, e mesmo legitimaram o extermínio de grupos étnico-raciais e sociais
por outros grupos que impunham sua dominância política, econômica e social. Em todo o
século XIX, por exemplo, um período marcado pelo imperialismo e guerras coloniais, os
conceitos relativos ao pensamento darwinista contribuíram para mistificar cientificamente
determinadas hierarquias raciais no imaginário coletivo do mundo ocidental (SÁNCHEZ-
ARTEAGA, 2017). Exemplos históricos de racismo científico mostram que a subjugação
de diferentes comunidades humanas sob bases científicas tem sido uma prática recorrente
nas ciências biomédicas (SÁNCHEZ-ARTEAGA; SEPULVEDA; EL-HANI, 2013),
inclusive, na contemporaneidade (SÁNCHEZ-ARTEAGA et al., 2015).
A análise histórica das potencialidades do discurso tecnocientífico para a
marginalização de determinadas comunidades, como no caso do racismo científico,
fortalece o argumento para a defesa da inclusão de mais conteúdos históricos, filosóficos
e sociológicos a respeito da ciência nos currículos. Segundo Matthews (1992), tanto a
teoria como, particularmente, a prática do ensino de ciências, podem ser enriquecidas
pelas informações colhidas da história e da filosofia da ciência.
A abordagem educacional a partir dessa perspectiva, abre caminhos no Ensino de
Ciências para implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das
Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana
(BRASIL, 2004), envolvendo um esforço de trabalho pedagógico que procura desafiar as
estruturas sociais, políticas e epistêmicas da colonialidade2, que mantêm padrões de
2 A colonialidade se refere a um padrão de poder que emergiu como resultado do colonialismo moderno,
mas em vez de estar limitado a uma relação formal de poder entre dois povos ou nações, se relaciona à
forma como o trabalho, o conhecimento, a autoridade e as relações intersubjetivas se articulam entre si
através do mercado capitalista mundial e da ideia de raça (MALDONADO-TORRES, 2007). Graças à
poder enraizados na racialização, no conhecimento eurocêntrico e na inferiorização de
alguns seres (WALSH, 2009). Tal esforço, conforme a autora, no campo educativo,
incentiva os debates em torno do problema da ciência em si, isto é,
a maneira através da qual a ciência, como um dos fundamentos centrais
do projeto modernidade/colonialidade, contribuiu de forma vital ao
estabelecimento e manutenção da ordem hierárquica racial, histórica e
atual. (WALSH, 2009, p.24)
Esse enfoque se constitui como um projeto alternativo ao racismo epistêmico e à
colonialidade do ser, do saber e do poder, o que compreende a denominada pedagogia
decolonial (WALSH, 2009; OLIVEIRA; CANDAU, 2010).
A relevância de incluir, na agenda de pesquisa da área, e nos currículos, as
interfaces entre educação científica e educação das relações étnico-raciais é defendida
por Douglas Verrangia (2014), que levanta questões prioritárias do ponto de vista dessa
diretriz educacional, incluindo os estudos sobre o papel que as ciências naturais tiveram,
e ainda têm, na construção de relações sociais e étnico-raciais injustas, como é o caso dos
diversos processos de alterização3 recorrentes na História das Ciências (SÁNCHEZ-
ARTEAGA et al, 2015). Outra temática de pesquisa relevante e ainda pouco explorada
no Brasil, segundo Verrangia (2014), envolve as relações entre História e Filosofia das
Ciências Naturais e História e Cultura Africana e Afro-brasileira, destacando a
necessidade de sistematizar as contribuições de africanos e afrodescendentes para as
Ciências Naturais e produzir matérias didáticos para compreender de forma mais acurada
a própria História da Ciência moderna, sua origem nos chamados povos antigos, e, nesse
contexto, os vários grupos africanos que contribuíram para a produção de conhecimentos
e tecnologias.
colonialidade, a Europa pode produzir as ciências humanas como modelo único, universal e objetivo na
produção de conhecimentos, além de deserdar todas as epistemologias da periferia do ocidente
(OLIVEIRA; CANDAU, 2010). 3 Refere-se a processos pelos quais determinados grupos étnicos, sociais, culturais e/ou políticos assumem
uma visão idealista de si mesmos como norma, padrão ou modelo de normalidade (SÁNCHEZ-
ARTEAGA; EL-HANI, 2012), a partir do qual julgam e descrevem e categorizam outros grupos humanos
não só como “diferentes”, mas como anormais, ou mesmo, inferiores, gerando segregação e
marginalização.
Sendo assim, ao invés de apenas abordar a existência e impacto do racismo
científico como contribuição para inclusão do componente histórico nos currículos de
ciências em diálogo com o processo de re-educação das relações étnico-raciais, é profícua
a contextualização de tais currículos com aspectos do pensamento africano moderno e de
sua relação com a própria história e historiografia da ciência, tendo como foco a
produção e contribuição científica de Cheikh Anta Diop - químico, físico, antropólogo,
arqueólogo e historiador senegalês, que desafiou alguns dos conceitos mais básicos da
ciência, ao demonstrar, com rigorosa pesquisa científica conduzida de acordo com os
padrões metodológicos da época, a origem africana da humanidade e da própria
civilização ocidental (NASCIMENTO, 2008).
Investigando tais temáticas de pesquisa e desenvolvendo propostas e ações
educativas, tem sido desenvolvido um projeto com apoio do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) que envolve a colaboração entre
pesquisadores e estudantes de graduação e pós-graduação de duas universidades públicas
baianas e professores-pesquisadores da educação básica na investigação de inovações
voltadas para a educação das relações étnico-raciais baseada na história do racismo
científico. Essa colaboração teve início a partir da construção autoral-coletiva da
exposição “Ciência, Raça e Literatura” que, desde 2013, tem sido apresentada ao público
em geral, professores e estudantes da educação básica e ensino superior, e, em processo
de itinerância por museus, escolas e universidades, encontra-se em sua décima terceira
edição.
Ao longo da itinerância, a exposição tem sido alimentada por estudos da história
do racismo científico do passado e do presente, e recentemente tem embasado o
desenvolvimento de Materiais Curriculares Educativos (MCE)4 orientados tanto por
4 O uso do termo material curricular educativo (MCE) foi proposto por Davis e Krajcik (2005) para
designar materiais curriculares que não se preocupam exclusivamente com a aprendizagem de estudantes,
mas são, também ou prioritariamente, planejados para promover a aprendizagem de professores. Têm como
características distintivas apoios aos professores por meio, por exemplo, de descrições do uso de
abordagens inovadoras em sala de aula, como narrativas, relatos de episódios, e de sugestões de como eles
podem ser transformados para melhor se alinharem com o conhecimento prévios, as experiências dos
estudantes (SCHNEIDER; KRAJCIK, 2002).
estudos teóricos como empíricos, por meio de abordagens baseadas em pesquisa de
design. Como qualquer inovação educacional, o desenvolvimento de MCE deve ser
inicialmente baseado em uma compreensão teórica de seus objetivos, combinada com o
conhecimento experienciais sobre práticas bem sucedidas, e a medida que sues protótipos
sejam implementados, devem passar por refinamentos fundamentados por resultados de
investigação empírica (DAVIS; KRAJCIK, 2005).
As contribuições Científicas do Pensamento Africano Cheikhantiano
A ciência e tecnologia na África tem se desenvolvido desde os primórdios da
história humana (MACHADO, 2014), e o seu estudo deve reconhecer a proeminência dos
valores e das tradições, tanto no tocante à filosofia africana quanto em relação à ciência
africana (SILVÉRIO et al., 2013). Segundo Ambrósio e Diémé (2016), a África não
esperou o contato com o mundo árabe-muçulmano nem com o ocidente para dispor de
uma estrutura social, cultural, religiosa, política, técnica, filosófica e científica
consolidada. Em outras palavras, o continente africano é considerado berço da
humanidade e da própria civilização ocidental!
No entanto, até pouco tempo, a ideia de que o ser humano original fosse negro e
africano soava entre ridícula e absurda, e ao longo de séculos, a ciência ocidental
construiu uma série de teses que supostamente comprovavam que os africanos eram
criaturas inferiores e incapazes de criar civilizações (NASCIMENTO, 2008). Embora o
Egito seja milhares de anos mais velho que a antiga Grécia, e a maioria das realizações
dos antigos gregos tenha sido aperfeiçoada no Egito muitos séculos antes, “a ideia de que
uma nação africana pudesse realmente ter criado a civilização e repassado aos gregos era
simplesmente inadmissível” (FINCH III, 2009, p.73), por isso o esforço sistemático
erudito de construir e solidificar um conhecimento que situasse o Egito como não negro e
não africano, originário de outra civilização caucasoide.
A cultura desenvolvida na Grécia clássica se formou a partir de uma amalgama de
componentes culturais diversos, entre os quais as influências dos fenícios e do antigo
Egito tiveram um papel fundamental. A historiografia ocidental - e também a
historiografia das ciências - se desenvolveu no seio de uma matriz de pensamento
eurocêntrica que, com o devir dos séculos, atravessou fases de descarnado racismo, e se
manifestou também numa seleção - consciente ou inconsciente - das fontes que iam ser
consideradas "canônicas" para ocidente, e no esquecimento ou negligência de outras que
também tiveram uma influência fundamental para os gregos. A própria construção da
ideia de cânone e sua identificação com determinados arquétipos helênicos foi marcante
na história da arte, da estética, da literatura, mas também das próprias ciências naturais,
na antropologia física por exemplo (cf. BINDMAN, 2002). A mesma situação acontece
quando estudamos o cânone filosófico, ou quando olhamos para a história do pensamento
religioso. A influência de antigas tradições orientais ou africanas, provenientes do Egito,
nas tradições filosóficas gregas dos gnósticos, no orfismo, nas religiões dos mistérios, no
pitagorismo, no platonismo-neoplatonismo e, finalmente, no cristianismo, é indubitável,
mas parece que todas essas correntes originárias fundamentais ficam esquecidas, fora do
foco no ensino da história do pensamento e da cultura ocidentais, na maioria dos casos.
Resgatar e trazer para o debate acadêmico essa herança negra fundamental foi uma das
grandes contribuições de Diop ao mundo científico e acadêmico.
Segundo Dr. Diop (1974), o ocidente não teria sido suficientemente objetivo para
ensinar corretamente a nossa história sem falsificações grosseiras. Nesse sentido, o autor
reitera que
[...] quando eles explicam seu próprio passado histórico ou estudam
suas línguas, aquilo parece normal. No entanto, quando um Africano faz
o mesmo para ajudar a reconstruir a personalidade nacional de seu
povo, distorcida pelo colonialismo, é considerado ultrapassado ou
alarmante. (DIOP, 1974, p.15)
Foi nesse sentido de que Diop dedicou-se, com sua determinação de recolocar o
Egito no contexto da história africana (FINCH III, 2009). Ele produziu um volume
substancial de textos com o objetivo de propor, elucidar e demonstrar suas ideias e teses5,
dentre as quais podemos citar a que defende uma origem africana da humanidade e da
civilização ocidental, ao considerar a África como nascedouro do ser humano e berço da
civilização6.
Enquanto participante do comitê científico que dirigia, no âmbito da UNESCO7, a
redação de uma História geral da África, Diop escreveu o texto intitulado “A origem dos
antigos egípcios” como resultado de sua participação no Colóquio Internacional do Cairo
em 1974, onde apresentou e confrontou, juntamente com Théophile Obenga, seus
métodos e resultados com o de outros especialistas mundiais. Nesse simpósio, Diop e
Obenga, com argumentos históricos, antropológicos e linguísticos defenderam a hipótese
de origem africana da civilização egípcia, trazendo dados produzidos por eles, e de outros
estudiosos, de uma variedade de fontes: da antropologia física, dos estudos de
representações humanas do período proto-histórico, de testes de dosagem de melanina de
múmias provenientes das escavações de Marietta, no Egito, de análise de grupos
sanguíneos e considerações de autores clássicos da Antiguidade, como Heródoto (DIOP,
1983).
É importante destacar que as ideias defendidas por Diop ao longo de sua produção
sofreram diversas críticas, com opiniões controversas e especialistas defendendo teses
5 No período de 1959 a 1967, Diop publicou Unidade cultural da África negra (1959; 1962), África negra
pré-colonial (1960) e A anterioridade das civilizações negras (1967; 1993), trabalhos pioneiros que
introduziram uma nova abordagem analítica ao estudo do passado africano. Vale destacar também que em
1954 ele apresentou sua tese perante uma banca de doutorado, detalhando capciosamente as evidências de
uma origem africana da civilização egípcia - e a tese foi rejeitada, mas publicada em formato de livro sob o
título Nações negras e culturas (FINCH III, 2009). 6 Ressalta-se, que a defesa de tais ideias não é original do pensamento africano de Diop, valendo-se do fato
de que no século XIX o próprio Darwin tinha defendido essa hipótese da origem africana em termos
evolutivos. E dentro da comunidade negra, vários intelectuais anteriores a Diop tinham defendido as
origens africanas do ser humano, da civilização ocidental e a negritude dos Egípcios. Em relação a estes
primeiros autores negros, Bernal (1987) aponta que o pioneiro nesse esforço foi George G. M. James que
em 1954 publicou um livro intitulado “O legado roubado”, segundo o qual os gregos não eram os autores
da filosofia grega, mas sim o povo do norte da África, comumente chamados de egípcios. O livro do James,
a partir de uma pesquisa em fontes antigas, mostrava até que ponto os próprios gregos admitiram que
tinham tomado emprestado seu saber dos egípcios durante a Idade do Ferro (BERNAL, 1987, p. 435). Só
muito mais tarde, Cheikh Anta Diop escreveu prolificamente sobre o que ele viu como a integral relação
entre a África negra e o Egito, assumindo como verdadeiras as teses de James expostas no seu “Legado
Roubado”. 7 Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura.
opostas sobre a caracterização racial dos antigos Egípcios como sendo exclusiva ou
predominantemente “negros” em termos raciais fenotípicos8. Nesse sentido e importante
reconhecer e esclarecer que a ideia de um Egito fenotipicamente negro (1) é anterior a
Diop, (2) foi defendida por outros intelectuais negros antes dele, e (3) tem sido contestada
por outros especialistas contemporâneos, que defendem que a antiga civilização egípcia
surgiu como uma amalgama miscigenada de elementos genético/culturais de origem
semita, mediterrânea, asiática, e subsaariana9.
Como podemos perceber, Diop travou uma disputa no campo científico contra
ideias do mundo colonizador. Conforme apontam Diallo e Diallo (2008), ele combateu
ideias de teóricos como Voltaire, Hume, Hegel, Gobineau, Levy Bruhl e instituições
europeias que se empenhavam para justificar atos abomináveis legitimando, no plano
moral e filosófico, a inferioridade intelectual do negro e a visão de uma África sem
história, cujos habitantes nunca foram responsáveis por um único fato de civilização.
A África Negra, notadamente o Egito Antigo, serviu de exemplo inspirador para o
mundo em diversos aspectos. Diop cita a invenção da escrita, do calendário, da
arquitetura, os conhecimentos astronômicos e matemáticos, medicinais, dentre outros.
Suas obras evidenciaram que a África Negra foi um grande templo de conhecimento
científico (NASCIMENTO, 2008; FINCH III, 2009; AMBRÓSIO, DIÉMÉ, 2016).
Notada a singularidade do seu legado para ciência, vale ressaltar ainda que o autor
8 Em tempos recentes, alguns especialistas na história antiga da África admitem que o Egito teve sim uma
influência negra muito importante, mas que os elementos principais da antiga civilização egípcia se
originaram a partir de migrações asiáticas e não subsaarianas. Para estes outros autores contemporâneos, o
Antigo Egito exibe muitas semelhanças culturais e religiosas com a África subsahariana, porém não pela
difusão da África Subsaariana para o Egito nos tempos neolíticos, mas pelo movimento contrário,
carregando uma parcela significativa de genes asiáticos, bem como elementos culturais, religiosos e
linguísticos (cf. VAN BINSBERGEN, 2009). 9 A hipótese de que os antigos Egípcios não eram mais parecidos aos negros subsaarianos de hoje do que as
populações mediterrâneas atuais, tem sido defendida a partir de estudos genéticos. Em 2017 foi publicado
na Nature Communications um artigo que descreve a extração e análise de DNA de 151 indivíduos
egípcios antigos mumificados. Para os autores, essas amostras forneceram o primeiro conjunto de dados
confiáveis obtidos de antigos egípcios usando métodos de sequenciamento de DNA de alto rendimento,
demostrando que estes tinham maior afinidade genética relativa com as populações modernas do Oriente
Médio do que com os africanos subsaarianos. No entanto, havia um componente significativo da África
subsaariana na ancestralidade de cada múmia estudada, porém, com nível de ascendência
significativamente menor do que nos egípcios modernos (cf. SCHUENEMANN et al., 2017).
traduziu parte da Teoria da Relatividade de Einstein para seu idioma nativo wolof e como
base para seus estudos, fundou o laboratório para datação de carbono 14, denominado
Instituto Fundamental da África Negra (IFAN), na Universidade de Dacar (atualmente
denominada Universidade Cheick Anta Diop) (figura 1).
Figura 1: Cheikh Anta Diop em seu laboratório no IFAN, em Dakar, Senegal (SILVÉRIO et al.,
2013).
Segundo Moore (2007), contar uma outra história da África é dar um estatuto
epistemológico aos povos subalternizados e deslocar o foco de constituição e dinâmica da
própria formação do ocidente europeu e da nação brasileira, assim como de todos os
povos da diáspora africana. A contribuição de Cheikh Anta Diop representa, sem sombra
de dúvida, um impacto profundo na epistemologia e na historiografia, ao defender e
promover, como bem recorda Ambrósio e Diémé (2016), “uma epistemologia negro-
africana da ciência, até então, desenvolvida por ocidentais” (AMBRÓSIO; DIÉMÉ,
2016: p. 99).
Considerações sobre a Produção de Materiais Curriculares Educativos com base em
episódios históricos sobre o intelectual Cheikh Anta Diop
Os primeiros requisitos a serem observados na elaboração de um MCE dizem
respeito à sua acuidade, coerência e abrangência no que diz respeito ao conteúdo e à sua
eficiência em termos pedagógicos (DAVIS; KRAJCIK, 2005). Esperamos que este ensaio
teórico e outros resultados dos estudos em História das Ciências possam auxiliar nos
primeiros requisitos, no que se refere, especialmente, à acuidade do conteúdo; juntamente
com resultados de estudos já desenvolvidos em que fora produzida uma matriz de
objetivos educacionais10 para trabalhar pedagogicamente relações étnico-raciais (DIAS,
2017). A continuidade dessa pesquisa resultará assim na proposição de heuristicas de
design e construção dos primeiros protótipos dos MCE a serem aplicados e avaliados em
contextos de ensino.
Como destacado anteriormente, esta proposta de pesquisa parte de um contexto
investigativo mais amplo que tem se desenvolvido em torno da “Exposição Ciência, Raça
e Literatura”. É a partir de uma de suas unidades temáticas11 - contribuições científicas
da população africana e afro-brasileira - que pretendemos aprofundar o estudo para
produzir MCE. Nesta unidade (figura 2) são expostos, através de cartazes A4, resumos
biográficos e contribuições científicas de intelectuais negros, como Cheikh Anta Diop,
Ernst Everest Just, Lewis Howard Latimer, Benjamin Baneker, Rebecca J. Cole, além de
um artefato em madeira do professor Milton Santos, grande intelectual negro brasileiro.
Complementando esses elementos, foi elaborado um vídeo na segunda edição da
exposição (2013) sobre o Legado Científico, Tecnológico e Cultural Afro-brasileiro12,
10 Destacamos, preliminarmente, os seguintes objetivos derivados da referida matriz que subsidiarão a
produção e aplicação dos MCE: (I) Construir visão crítica sobre a África na superação de ideias
estereotipadas e reducionistas sobre sua conjuntura histórica, sociocultural, ambiental, política e
econômica, enfatizando a importância de perceber o continente africano como berço da humanidade e do
Egito africano como fonte da civilização ocidental; (II) Estimular a crítica a visões estereotipadas sobre as
falsas ideias de superioridade/inferioridade biológica/intelectual de certos grupos étnico-raciais em relação
aos outros; e (III) Difundir a história de produção de conhecimentos no continente africano, na diáspora e
dos povos indígenas brasileiros, que contribuíram para o desenvolvimento científico, tecnológico e cultural
da humanidade. 11 É possível visitar o acervo on-line contendo informações e registros dos materiais expositivos de cada
unidade temática: <https://expocrl.wixsite.com/acervo>. 12 Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=Zz6eJLnFxNc&feature=youtu.be>.
contendo discursos sobre a história de produção do conhecimento no continente africano
no passado e sobre representantes contemporâneos deste legado no Brasil (DIAS, 2017).
Figura 2: Cenarização da unidade expositiva “contribuições científicas da população africana e
afro-brasileira”, 8ª edição da Exposição Ciência, Raça e Literatura (disponível em:
<https://expocrl.wixsite.com/acervo/contribuicao-do-povo-negro-e-indige?lightbox=dataItem-
j10y9hs3>).
Na tentativa de selecionar um episódio histórico específico que fundamente a
proposta de MCE em questão com base nos elementos discutidos no tecer dessa escrita,
percebemos o quão relevante seria desenvolver estudos não apenas de um episódio, mas
de variados casos sobre a contribuição científica do pensamento cheikhantiano, incluindo
os meandros dos debates acadêmicos relacionados à crítica e questionamento da sua obra,
assim como as rupturas e permanência do seu pensamento na contemporaneidade.
Acreditamos que são contribuições essenciais para abordagem histórica e filosófica no
contexto de ensino de ciências, considerando o fomento à crítica de concepções
equivocadas da atividade científica, ao demonstrar a relação intrínseca da Ciência aos
contextos histórico e cultural vigentes nos diferentes momentos, o que significa,
consequentemente, que o conhecimento científico atual é suscetível de ser transformado
(MATTHEWS, 1992). No contexto de ensino, ao ilustrar um caso em que uma nova
teoria ou proposta não é aceita prontamente, o professor terá subsídios para discutir em
sala sobre os “modos em geral que levam à aceitação ou rejeição das teorias científicas”
(PRESTES; CALDEIRA, 2009: p.11), problematizando e superando as práticas
educativas que apresentam a ciência como uma retórica de conclusões onipotentes e de
origem e hegemonia ocidentais.
Toda essa produção é estopim para descolonizar tanto a História como o Ensino
de Ciências, e alenta novos processos, práticas e estratégias de intervenção educativa que
reconheçam e valorizem o continente africano como berço da humanidade e fonte da
civilização ocidental, e difundam a história de produção de conhecimentos em África e na
diáspora.
Referências
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PromoteTeacher Learning. Educational Researcher, v. 34, n. 3, 3-14. 2005.
DIALLO, O. A.; DIALLO, S. C. Vida e Obra de Cheikh Anta Diop: o homem que
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