Download - O Grupo de Bombos de Lavacolhos
UNIVERSIDADE NOVA DE LISBOA
FACULDADE DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS MUSICAIS
Ao Alto!
Estudo etnomusicológico sobre o Grupo de Bombos de
Lavacolhos
ALUNO: Carla Santos
DOCENTE: Drª. Susana Sardo
DISCIPLINA : Etnomusicologia: Pesquisa de Campo
Set. 97
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Agradecimentos
A realização deste trabalho só foi possível através da colaboração de
várias pessoas, que amavelmente se disponibilizaram para ajudar.
Agradeço ao Sr. Presidente da Junta de Freguesia de Lavacolhos,
entidade a quem pertence actualmente a administração do grupo, que me
forneceu o contacto de pessoas ligadas a este, quer directa quer indirectamente.
Ao Dr. Agostinho Janeira, secretário da Junta de Freguesia, que me
cedeu todo o material recolhido por ele sobre o grupo de bombos, fornecendo-
me alguns dos dados e contactos que levaram à pesquisa efectuada.
Ao Sr. Joaquim Simão, tocador de bombo e construtor de caixas e
bombos, que demonstrou as fases de construção de um bombo, tendo para isso
que desmontar um bombo em fase de construção para depois o montar
novamente.
Ao Sr. Abilio Guerra, tocador de pífaro, que me falou sobre questões
relacionadas com o instrumento que toca e fez algumas demonstrações.
Ao Sr. António Vasco Garcia, tocador de caixa, que me da sua
experiência como tocador deste instrumento.
Ao Sr. Joaquim Real, antigo tocador de bombo, pela simpatia com que
me recebeu, mostrando interesse em recordar os velhos tempos em que
participava no grupo ao tocar bombo.
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A todos os outros membros do grupo que participam ou nele
participaram, em particular: Paulo Gonçalves Gama, Pedro Miguel Agulha,
Pedro Miguel Gravito Garcia, Luis Filipe Barroca Simão, Fernando Miguel
Borges Barroca, David Gonçalves Gravito e António Agulha, que
simpaticamente aderiram colaborar neste projecto.
Aos moradores de Lavacolhos em geral, que tão bem me acolheram e
com tão boa vontade colaboraram por forma a que a realização deste trabalho
fosse possível.
Ao serviço cartográfico do Fundão que me cedeu gratuitamente as cartas
de Lavacolhos e do Fundão.
Ao Jornal do Fundão pela possibilidade de consulta dos jornais mais
recentes e cedencia de alguns dos números gratuitamente.
Ao Sr. Dr. Luis de Vasconcelos do Museu de Etnologia pela
possibilidade que me cedeu de observar os bombos e caixas de Lavacolhos que,
ao que parece, são os mais antigos que existem.
Ao Sr. Dr. Carlos Maduro do Museu Verdades de Faria em Cascais, que
me permitiu o acesso aos registos sonóros da R.T.P. feitos por Giacometti onde
participava o G.B.L.
Ao Elso, que me acompanhou em várias incursões ao terreno, e foi
responsável pela fotografia e algumas das imagens video.
À Srª. Drª Susana Sardo, orientadora deste projecto, que me deu um
grande apoio ao longo de todo o trabalho, sem o qual teria sido impossível a
concretização do mesmo.
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Indice
Introdução........................................................................................................ 5
1 - Problemática............................................................................................... 8
1.1. Objectivos...............................................................................................10
1.2. Metodologia............................................................................................11
1.2.1. Técnicas usadas.............................................................................11
1.2.2. Método aplicado e enquadramento teórico................................. 12
2 - Caracterização do espaço de inserção do grupo de Bombos de
Lavacolhos................................................................................................... 14
2.1. Localização de Lavacolhos............................................................. 14
2.2. O aglomerado populacional............................................................ 16
3 - Caracterização da unidade de observação................................................... 19
3.1. A função social............................................................................... 19
3.2. A administração do grupo................................................................24
3.3. Os instrumentos: materiais e formas de construção........................25
3.3.1.O bombo................................................................................ 27
3.3.2. A caixa.................................................................................. 33
3.3.3. O pífaro................................................................................. 36
3.4. O repertório..................................................................................... 38
4 - Aspectos da masculinidade no G.B.L.......................................................... 51
5 - Conclusão..................................................................................................... 57
6 - Glossário...................................................................................................... 60
Bibliografia.................................................................................................. 63
Anexos
5
Introdução
O estudo etnomusicológico sobre o Grupo de Bombos de Lavacolhos
( G.B.L. ) que segue, integra-se no âmbito da disciplina de “Etnomusicologia:
pesquisa de campo”, do Departamento de Ciências Musicais da Universidade
Nova de Lisboa, inserindo-se a escolha do trabalho num dos domínios de
estudo propostos: Os Zés P’reiras.
Em minha opinião, a “Etnomusicologia” é uma das disciplina com mais
interesse no Curso de Ciências Musicais. Esta é uma posição muito pessoal e
que pode não estar de acordo com a opinião generalizada dos alunos que
frequentam este curso, no entanto, esta é a disciplina que abrange uma maior
área de estudo, não se sujeitando de modo algum, aos condicionalismos
impostos pelo conservadorismo de alguns musicólogos elitistas, que continuam
a argumentar que só existe um género musical digno de estudo: a música
erudita.
No ano passado, no decurso de uma aula sobre a música no contexto
português, a Dr.ª. Susana Sardo sugeriu aos alunos, de entre os quais também
eu estava incluída, uma “excursão” etnomusicológica. Na sequência desta
conversa foram sugeridos vários locais pela docente, entre os quais Lavacolhos.
Ao ouvir este nome nenhum dos alunos acusou desconhecer a localidade em
causa, mas na verdade, penso que nenhum daqueles sabia onde se situava esta
povoação. Apesar da minha insistência e da Professora, o facto é que esta não
se realizou, e, este ano, perante a oportunidade que surgiu, decidi levar a cabo
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um estudo que contemplasse um aspecto particular nesta região, e todo o
interesse em termos etnomusicológicos que o G.B.L. pode suscitar.
Ao recordar o desempenho do G.B.L, no decurso da sua actuação, na
Festa da Nossa Senhora da Boa Viagem na Moita (local onde habito), em
Setembro de 1996, pensei ser interessante trabalhar sobre este grupo. Associado
a esta ideia, está o meu interesse pessoal de conhecer a vida das comunidades
rurais, pela riqueza cultural que lhes está implícita e que por vezes é esquecida,
e de todas as manifestações musicais que lhe estão associadas, motivação que
foi agudizada por esta disciplina.
Este estudo é composto por seis secções. No primeiro ponto surgem os
aspectos teóricos do trabalho, relacionados com a problemática, metodologias e
objectivos. Na problemática afloram-se as questões em estudo, relacionando-se
estas com um problema muito actual que é a questão do gender 1. A
caracterização do espaço no qual o G.B.L se insere, é tratado no ponto dois, o
qual é dividido em duas secções: a localização de Lavacolhos e o aglomerado
populacional. Segue-se a caracterização do G.B.L, subdividida em quatro
secções: a função social, a administração do grupo, os instrumentos usados e o
repertório.
Terminados os aspectos etnográficos do trabalho, surgem agora os
aspectos relacionados com a problemática estudada. Assim, temos no quarto
ponto uma análise sobre aspectos da masculinidade no G.B.L, seguindo-se a
1 Gender é o género ou sexo social, tópico de estudo das ciências sociais e humanas.
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conclusão e o glossário onde existem alguns termos que foram aprofundados ao
longo do trabalho. Termina este estudo com a bibliografia e anexos.
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1 – Problemática
O G.B.L. é um grupo de membranofones que pertence a uma região onde
existem vários grupos similares: o concelho do Fundão. Este grupo é
constituído por três bombos, duas caixas e um pífaro, acompanhados de um
coro, sendo os membros do grupo exclusivamente do sexo masculino. Dizem os
habitantes de Lavacolhos com quem contactei, que o grupo tem cerca de
duzentos ou trezentos anos e que é o mais antigo da região. Em tempos mais
remotos, o grupo era administrado por uma organização de solteiros. Hoje em
dia, perante a impossibilidade de constituir este género de organização, a
administração pertence à Junta de Freguesia. O único repertório usado no
desempenho2 é a Moda do Bombo, que um coro acompanha com as cantigas
dos bombos enquanto os instrumentos produzem o tímbre que lhes foi
conferido. No bombo, principal instrumento do grupo, é usada uma técnica que,
segundo os tocadores, permite que este se evidencie dos demais da região: o
dobrar. Este é tocado de forma peculiar, pois é quase aos saltos que é atingido
pela masseta, após a elevação do instrumento pela perna do tocador. Esta forma
de desempenho não teria qualquer relevância, se o bombo não tivesse 80 cm de
diâmetro.
A questão da constituição do G.B.L. ser formada só por homens, poderá
estar relacionada com o conceito de virilidade destes, que ao não permitirem a
2 Desempenho é o termo usado actualmente na etnomusicologia para designar o acto de actuar,
executar, participar na prática musical.
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participação das mulheres estão a reclamar exclusividade para si deste
desempenho. O romper da pele do bombo significava, como é de prever, que o
executante tinha que comprar uma pele nova para o instrumento, mas o mais
importante é que, ao que parece, este romper era o símbolo dessa virilidade, e
este era um motivo de orgulho em toda a aldeia.
Hoje em dia já existem algumas mulheres que participam neste tipo de
manifestação, contudo, a sua participação circunscreve-se somente ao espaço da
aldeia, devido à população masculina não permitir a sua participação fora do
mesmo, para algumas das mulheres que não participam, o tocar o bombo é algo
que as importuna.
Será que a participação das mulheres revela que a simbologia que estava
subjacente deixou de ter importância na comunidade? Ou será que isto se deve
exclusivamente à falta de população masculina em virtude da emigração
crescente? Ou à afirmação da mulher na sociedade actual, que começa a colocar
em causa a divisão de tarefas.
O que proponho investigar neste trabalho é o G.B.L. sob o ponto de vista
etnográfico, a importância que o grupo tem na comunidade e o significado que
o gender poderá ter no grupo. Esta investigação foi efectuada através do
contacto directo com a população e com os membros do G.B.L.
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1.1 . Objectivos
O objectivo geral do presente trabalho insere-se no âmbito do estudo das
comunidades rurais, sobre a qual a etnomusicologia se debruça desde a sua
existência.
Especificamente, é objectivo principal perceber a importância do género
no G.B.L., e o significado simbólico presente no acto do desempenho. Para tal
há que:
1- Investigar a função musical do grupo na comunidade em que se
insere, bem como o seu significado no quotidiano da população de Lavacolhos
e no contexto circundante.
2- Fazer uma análise musical e poética do repertório praticado: A Moda
do Bombo, relacionando-a com várias questões levantadas ao longo do trabalho.
3- Verificar quais as condicionantes, se existirem, que colocam em causa
a existência do grupo e os factores que estão na origem da preservação do
mesmo, tendo em conta todos os problemas com que este se debate (a falta de
jovens interessados em fazer parte do grupo, a manufactura de instrumentos, a
população envelhecida, etc.).
4- Verificar o papel da mulher e do homem no G.B.L. e o reflexo da sua
participação no mesmo.
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1.2. - Metodologia
1.2.1. Técnicas usadas
Nos contactos que tive com o secretário da Junta de Freguesia de
Lavacolhos, que é um dos principais responsáveis pelo G.B.L, com os membros
do grupo, e com os vários contactados foi-me permitido gravar entrevistas,
efectuar filmagens e tirar fotografias, tendo sido estes os meios utilizados.
Hoje em dia é impensável a recolha etnomusicológica sem um suporte
audio-visual, e no caso específico deste estudo, certos movimentos do corpo
durante o desempenho são de extrema importância, para a compreensão de todo
o processo. O tocador de bombo avança deslocando alternadamente a perna
esquerda e direita, conservando sempre a esquerda à frente, para suportar o
instrumento, e ao mesmo tempo levantá-lo, e é quase aos saltos que ele atinge o
instrumento. Assim sendo, facilmente se compreende que é através da
visualização deste desempenho e de todo o contexto circundante, que se
apreende de uma forma mais completa o fenómeno sonoro inerente.
A entrevista gravada é muito útil, quando pretendemos inquirir uma ou
um número restrito de pessoas, e constitui uma fonte de informação importante
porque permite obter as respostas às questões levantadas no decurso do
trabalho; como é obvio, este método é viável apenas com um número limitado
de pessoas,e por isso usei-o apenas com os informantes que considerei serem os
mais importantes para o meu trabalho, nomeadamente alguns dos membros do
grupo, os intervenientes na manufactura dos instrumentos e alguns dos
responsáveis pela actual administração do grupo.
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A fotografia possibilita a visão estática de um acontecimento, podendo
também ser objecto de estudo e interpretação, para além de dar uma visão
panorâmica do acontecimento, tendo sido neste sentido que aqui foi utilizada.
1.2.2. Método aplicado e enquadramento teórico
Nas técnicas de pesquisa de campo usadas, optei pelo trabalho de campo
com observação participante, em virtude de ser a melhor forma de pesquisa no
domínio que estudei, tendo em conta que não existe qualquer bibliografia
específica sobre o assunto, com excepção de uma tese de licenciatura realizada
para a Universidade de Sorbone, nos anos 70, mas que está mais vocacionada
para questões relativas à povoação do que especificamente com o grupo de
bombos de Lavacolhos.
O modelo teórico de pesquisa onde melhor se enquadra este estudo, é o
modelo tripartido de Timoth Rice, na medida em que este modelo prevê a
componente histórica e a componente individual, presentes nos objectivos deste
trabalho.
Ao estudar os conceitos há que os relacionar com os comportamentos, e
da relação entre estes surge um terceiro: o som musical. Todas estas
componentes estão integradas numa perspectiva histórica, relacionando-se com
o factor social e com a experiência individual de cada pessoa. A construção
histórica compreeende dois processos: o processo de mudança através da
passagem do tempo e a recriação de formas de ligação com o passado e o
presente. Sendo as variáveis propostas inter-relacionaveis, não podemos
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considerar os fenómenos acima descritos isoladamente sem os interrelacionar,
porque uns dependem dos outros. O modelo adoptado tem assim as seguintes
variáveis em estudo que poderão resumir-se no seguinte esquema:
Som musical
Homem Mulher Comportamento Conceito
Construção Histórica Manutenção social
Neste modelo, homem/mulher fazem parte da experiência individual de
que fala T. Rice no seu modelo teórico de pesquisa. Homem e mulher estão
separados entre sí, contudo existe uma relação de compromisso entre ambos,
que não os pode separar do mesmo contexto. Estão separados pela construção
histórica, pela sociedade, pelos conceitos e comportamentos que foram
prendidos, mas cada um deles depende de cada um desses factores, tendo esses
influência no produto final: o som musical.
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2 - Caracterização do espaço de inserção do Grupo de Bombos de
Lavacolhos
2.1. Localização de Lavacolhos
Lavacolhos é uma aldeia do concelho do Fundão, da qual dista 13
quilómetros. Pertence ao distrito de Castelo Branco (a 50 Km), na provincia da
Beira Baixa, e depende do Bispado da Guarda (60 km), fazendo parte da
Relação juridica de Coimbra. Esta povoação eleva-se numa colina, situada a
500 metros do nível do mar, de onde se avistam as serras da Estrela, da
Gardunha, da Maunça e as aldeias circunvizinhas.
Foto nº 1 - Placa sinalizadora da localidade no sentido Silvares/Lavacolhos.
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A norte, já no vale, e a umas centenas de metros da povoação, encontra-
se a ribeira de Ximassas, chamada Ribeira Grande, que nasce numa nascente
subterrânea na Gardunha e desagua no Zêzere, perto de Silvares.
No outro extremo da ribeira, confinando com a freguesia do Barco,
situa-se o Cabeço da Argemela3, concelho da Covilhã, onde existem alguns
vestígios da civilização árabe, e das minas de estanho, que há muito
paralizaram.
A oeste, no flanco da encosta, estende-se um vale regado pela ribeira
Pequena (de 5 Km de comprimento). Esta ribeira nasce na Pedra Grande, no
sítio das malhadas, contorna a povoação de sul para norte, e desagua na Ribeira
Grande.
Mais para oeste, situa-se o Lugar da Panasqueira, onde se encontra a
mina que fez beneficiar Lavacolhos da ligação de camionetas para o Fundão. A
sul, avista-se a parede verde escura de pinheiros e soutos da Maunça,
prolongamento da Serra da Gardunha.
Na opinião de Gesuíno Martins, natural da aldeia de Lavacolhos, que
conta 88 anos, o nome de Lavacolhos tem origem na época em que os Mouros
se instalaram no Monte da Argemela, onde exploravam estanho, volfrânio e
ouro. Ao que parece, os Mouros desciam à ribeira para lavar os olhos que passa
junto à actual povoação, e assim, Lavar os olhos teria dado origem ao nome de
Lavacolhos.
3 Sobre o monte da Argemela existe uma lenda que incluí no anexo 3
16
Não encontrei nenhuma referência sobre a origem etimológica do nome
“Lavacolhos”, existem contudo algumas opiniões sobre esta origem, que passo
a transcrever. A análise feita pelo Sr. Padre Abel Guerra, é baseada na origem
latina e no português arcaico do topónimo-Lavacolhos onde nos surgem
algumas suposições. Em relação à origem latina ele considera no primeiro
elemento duas possibilidades: Levo, elevar, levantar, e Levis, na acepção de
suave, belo, aprazível; e no segundo outras duas: Collum, colo ou pescoço, e
Collis, colina, outeiro, estas teriam passado para o português como Leva Collus,
que terá dado Levacolos, Lavacollos e Lavacolhos. Segundo Abel Guerra, o
sentido está na “terra que levanta cabeça”, o que quadra perfeitamente com a
localização elevada da povoação, ou ainda na “terra das suaves colinas”, porque
o monte sobre o qual fica Lavacolhos divide-se em várias colinas, que são
realmente suaves pela sua constituição geográfica de forma arredondada.
Relativamente à origem do nome segundo o português arcaico, encontramos as
palavras Levar (levantar), Colho (cabeça), e Colle (outeiro), que podem ter
elementos conotativos com significancia idêntica à primeira.
2.3. O aglomerado populacional
A população atinge, de acordo com os dados do recenceamento de 1991,
os 311 residentes, distribuidos por 274 edifícios. Tendo ao longo das últimas
décadas sofrido um esvaziamento populacional, decorrente do fenómeno da
emigração, somente em determinados períodos do ano é que a aldeia conta com
este número de residentes.
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Como tantas aldeias do interior, Lavacolhos é por eminência terra de
emigração. A população permanente vive essencialmente da agricultura, dos
serviços locais, ou de serviços prestados na sede do concelho, existindo ainda
uma grande percentagem de reformados.
A comunidade debate-se com o problema das vias de comunicação. A
estrada que dá acesso ao Fundão, tem vindo a degradar-se ao longo dos tempos,
e as obras de restauro nem sequer estão previstas. Este problema afecta muitas
pessoas residentes em Lavacolhos, que têm necessidade de fazer este trajecto
várias vezes por dia.
O descontentamento da população face às necessidades existentes dentro
da comunidade, refletem-se no seu pessimismo. Entre 1994 e 1995 a povoação
beneficiou de saneamento básico. Esta obra de primeira necessidade, já era
esperada há meio século e todo este tempo de espera causou um acentuado
desânimo na população. Muitos outros problemas continuam a subsistir, como é
o caso de espaços de diversão para os jovens, o que provoca o êxodo destes e
da população activa para outras freguesias, a falta de verbas para a continuação
do projecto da escola de música e do grupo coral, entre outros.
Em 1974 surgiu a Associação Recreativa de Lavacolhos, que foi
legalizada em 1978. Esta associação constitui o único espaço de encontro dos
jovens de hoje em dia, que aqui encontram um local de convívio onde podem
conversar, jogar e vêr televisão. Porém este espaço já não satisfaz as
necessidades dos seus frequentadores, que pretendem um espaço mais activo,
que vá ao encontro de novas aspirações.
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Segundo os responsáveis por esta associação, além da falta de infra-
estruturas para construir um espaço maior, existe também falta de motivação e
um certo comodismo dos seus frequentadores.
Para salvaguardar o futuro da freguesia, é necessário, segundo os
responsáveis pela Junta de Freguesia, a criação de uma dinâmica que leve à
fixação dos jovens e da população activa.
Foto nº 2 - Casa em pedra, construção típica da região de Lavacolhos, seguida de uma
construção de cimento, que começa a sobrepôr-se às construções antigas de pedra.
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3 - Caracterização da unidade de observação
3.1. A função social
“ Em Lavacolhos, cidadão que se preze ou possui um bombo em casa, ou
sai de imediato para a rua mal ouve os primeiros catrapuns-puns-puns,
esquecendo o mau ano agrícola ao som dos enormes ecos que provocam as
porradas administradas, com ganas de aflito na pele de cabra, esticada nos aros
de lata (...) em lugar de batatas, milho ou carne de porco, exporta alegria na
forma de grupos de Zés Pereiras, sendo possível encontrar os bombos de
Lavacolhos tanto a tocarem para o Presidente da República, em cerimónias de
alguma pompa e circunstância, como em festas populares.”( Medenha, 1988,
30)
O G.B.L. é o cartão de visita da aldeia, e tem funcionado como forma de
a retirar do anonimato. Apesar de os instrumentistas por vezes escassearem,
assim como os construtores de bombos, caixas e pífaro; o entusiasmo dos
jovens, motivado pelo reconhecimento do grupo fora do espaço da aldeia, não
deixa antever o risco da extinção do grupo e com ele a identidade da própria
comunidade.
Actualmente o grupo é constituido por três tocadores de bombo, duas
caixas e um pífaro, acompanhados de um coro. Devido à falta de elementos
nem sempre tem esta constituição, evitando, no entanto, que tal não aconteça
quando actuam no espaço exterior ao seu contexto, procurando sempre
representar o melhor possível a sua freguesia. Como referencía o Jornal do
Fundão, 1935 a constituição deste grupo era um pouco diferente. O seu
20
instrumentário incluia dois bombos, duas caixas, um pífaro, três ferrinhos e o
coro, hoje em dia os ferrinhos desapareceram e foi adicionado outro bombo.
Segundo pude constatar junto de alguns membros do grupo, as actuações fora
da aldeia são um estímulo para a participação dos jovens, que as encaram como
uma forma de divertimento, possibilitando-lhes um modo de viajar e, por outro
lado, apercebem-se da alegria que causam nas pessoas aquando da sua
passagem.
Na aldeia, o grupo integra as principais festas: a 15 de Janeiro, a festa do
seu patrono Santo Amaro; pelo Pentecostes, a festa do Espírito Santo; a 15 de
Setembro, a romaria a Santa Luzia; e no terceiro Domingo e Segunda feira de
Agosto, o Senhor da Saúde e o mártir São Sebastião, respectivamente. Mas, tal
como foi referido, a actuação do grupo não se circunscreve apenas ao espaço da
aldeia, comtemplando, sempre que solicitado, todo o país de norte a sul.
A criação deste grupo nesta região está relacionada com uma série de
factores. Um destes factores tem a vêr com a área geográfica na qual se insere.
No triângulo da Beira interior que compreende Idanha, Castelo Branco e o
Fundão existe uma forte tradição de membranofones, existindo aqui vários
grupos de bombos. Este factor pode estar relacionado com a prática de
pastorícia existente e com as invasões a que Portugal foi sujeito, invasões essas
que tanto influenciaram os invadidos como os invasores.
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A certa altura coexistiram em Lavacolhos dois grupos de bombos. Um
era o grupo da Casa do Povo e o outro era grupo do Ti Pedro4, que foi criado na
sequência de atritos pessoais entre este e os membros do primeiro. Segundo
Abílio Guerra e Agostinho Janeira, as questões que levaram a estas
divergências foi a necessidade que o Ti Pedro tinha de inovar, através da
inclusão de várias frases secundárias e uma série de floriados muito pessoais na
Moda do Bombo, quando tocava pífaro. Do ponto de vista dos mais
conservadores, isto ia contra a tradição e por isso não era aceite pela maioria.
Como dizia este senhor ao Diário de Lisboa em 1978, muitas das cartas que
chegavam para o convidar a tocar nas festas nem sequer chegavam às suas
mãos. Em termos de constituição o grupo da Casa do Povo contava com mais
um bombo que o do Ti Pedro. No entanto, segundo a opinião deste, o facto de
ter um bombo a menos não interferia na qualidade do resultado, pois, passo a
citar: “Apesar de eles poderem fazer mais barulho, não tinham um pífaro nem
um bom tocador como nós (...)”, que se distinguia pelo remate que só ele
conseguia tirar do instrumento ( Medenha, 1988, 30 ).
Em 1978 o Cachet para o grupo era de 12 mil escudos, com as refeições
por conta da festa. Dez anos depois os dois grupos mantinham-se ainda activos,
e posteriormente o grupo do Ti Pedro foi extinto, tendo-se dedicado este senhor
à construção de instrumentos.
O que distingue este grupo dos demais da região, segundo os membros
do grupo, é a técnica usada, e esta técnica consiste no dobrar. O dobrar
4 Uso aqui o diminuitivo de Ti Pedro em substituição de Joaquim Pedro porque este é o nome como foi
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segundo o senhor Joaquim Pedro em entrevista na Rádio Jornal do Fundão, em
1990, o “Ti Pedro” atrás referido, era: “ Agente dá duas pancadas, e depois dá
duas ou três vezes, e depois dobra em três ou quatro vezes rapidamente. Isto
com as duas baquetes, uma num lado, outra no outro, e há grupos de vários
lados que é só com uma mão, e a outra segura no bombo. Nós não, é com a
perna é que levantamos o bombo e tocamos com a mão direita e a mão
esquerda”. A técnica do dobrar é novamente abordada no capítulo referente ao
repertório.
Segundo as informações recolhidas junto dos moradores, a origem do
G.B.L. é bem remota, e deve contar já com cerca de duzentos ou trezentos anos
de existência, contudo não existe documentação que comprove esta afirmação.
Esta, é baseada na recolha de informação junto dos moradores mais antigos,
que contam com cerca de 90 anos, que se recordam que os seus pais começaram
a tocar bombo muito novos, e que na época dos seus avós também já existia
esta prática.
A questão da antiguidade deste grupo e o sentido da linha de influência
entre o G.B.L. e os outros grupos existentes na regiâo é, tendo em conta a
informação disponível, algo difícil de investigar, chegando mesmo a ser
controversa, pelo que se demonstra em seguida: segundo os membros do grupo
e os habitantes de Lavacolhos com quem falei, estes são os bombos mais
antigos da região, e todos os outros que existem na zona foram construidos
posteriormente e à sua imagem; curiosamente, nas vésperas da entrega deste
e é conhecido este senhor na aldeia de Lavacolhos e arredores.
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trabalho, no progama do Prof. Dr. José Hermano Saraiva, Horizontes da
memória, dedicado à Cova da Beira, exibido na R.T.P. 2 em 24/8/97, assistiu-se
a uma apresentação de elementos do rancho folclórico de Silvares, que
cantaram Stª Luzia acompanhados por um conjunto instrumental similar ao
grupo de bombos de Lavacolhos e que interpretava a melodia da Moda do
bombo. A melodia do pífaro e o acompanhamento das caixas e bombos era a
mesma que o G.B.L. usa na Moda do Bombo, assim como a coreografia e a
forma do desempenho. Os bombos eram apoiados sobre a perna esquerda e
eram elevados em determinadas ocasiões. Perante isto torna-se difícil
descortinar quem imita quem, porque o grande problema que se coloca nestes
casos é a inexistência de registos mais objectivos.
A Sociedade Portuguesa de Autores, perante toda esta problemática da
autoria na música dita “tradicional”, resolve a questão dando à autoria destes
registos a denominação de “autor anónimo”. Sendo assim, opta-se por acreditar
que nenhuma destas composições pertencem a ninguém e por isso são de todos
ao mesmo tempo, pelo que nenhum grupo pode reivindicar para si a origem
desta técnica.
Giacometti e Lopes Graça, nos anos 70, fizeram recolhas deste grupo e
também de outros grupos da região, como por exemplo o de Silvares, existindo
também nos registos sonoros da R.T.P. um despique entre o grupo de bombos
de Lavacolhos e o grupo de bombos de Souto da Casa; existem também
recolhas anteriores a estas, nomeadamente aquelas que foram feitas por Artur
24
Santos nos anos 50 e que contemplam entre outros, o grupo de bombos de
Lavacolhos e o de Silvares.
3.2. A administração do grupo
Segundo a tradição, só os solteiros é que podem administrar os bombos,
contudo, devido à falta de população jovem capaz de arranjar uma organização
de solteiros, esta administração foi entregue primeiro à Casa do Povo e depois à
Junta de Freguesia. Antes da administração ter sido entregue à actual entidade,
os instrumentos ficavam na posse dos solteiros que primeiro os conseguiam
agarrar, ou daqueles que eram os últimos a tocar.
Os apoios financeiros de que o grupo dispõe são produto das diversas
actuações que faz pelo país. O cachet divide-se em duas partes: uma para os
elementos do grupo, variável, geralmente proporcional ao equivalente a um dia
de trabalho, cerca de 7 a 8 contos por elemento, e outra parte que vai para um
fundo administrado pela Junta de Freguesia, destinado à manutenção dos
instrumentos ou a qualquer beneficio que a aldeia necessite. Quando as
comissões de Festas não têm possibilidades de pagar o cachet pretendido a
parte lesada é a do fundo da Junta de Freguesia. Muitas vezes o grupo participa
também em intercâmbios, e quando as actuações têm como fim a divulgação do
grupo, este participa gratuitamente.
25
3.3. Os instrumentos: materiais e formas de construção
Os materiais utilizados na construção dos instrumentos presentes no
desempenho relacionam-se com a principal actividade económica da região: a
pratica da pastorícia, e, provavelmente, sempre foram manufacturados por
artesãos da aldeia. Um destes artesãos foi o Ti Pedro , assim conhecido na
aldeia, que construia instrumentos, não apenas para o G.B.L. como também
para encomendas exteriores, como é o caso de um bombo por ele construido
para a Brigada Victor Jara. Este senhor faleceu em 1990. Actualmente o único
que se dedica a este ofício é o senhor Joaquim Simão, primo do Ti Pedro.
Segundo o Ti Pedro, em entrevista à rádio da Covilhã, em 1989, no
programa Por Terras da Beira e em relatos em jornais com data anterior ao seu
desaparecimento, a manufactura dos instrumentos tinha certas regras de
construção. Assim, bombo e a caixa têm que obedecer a umas certas
proporções, pois só desta forma é que o som está equilibrado. O segredo está na
dimensão da caixa, que deve ser exactamente metade do bombo, quer no seu
diâmetro, quer na largura - como pude constatar, tal facto corresponde à
realidade. A caixa, dizia o Ti Pedro, é a voz da mulher, tem um som mais
agudo, e está afinada em Lá. O bombo é a voz do homem, tem um som mais
grave, e está afinado em Mi.
Os materiais usados também têm o seu segredo. As peles não podem ser
de uma cabra muito gorda. Esta pode durar mais, mas a qualidade do som não é
a pretendida. Assim, a pele deve ser de uma cabra com 7, 8 ou mais anos,
porque as peles das cabras velhas estão mais magras, e o som resultante tem
26
maior qualidade. A cabra deve também já ter parido, porque assim esta pele tem
mais elasticidade. A pele aconselhada é a de cabra, e nunca a de chibo porque
esta exala um odor desagradável. A afinação do bombo e da caixa é feita
através do aperto dado pelos nós da corda. Esta forma de esticar a pele, segundo
o Ti Pedro, foi estudada em Lavacolhos, e as formas semelhantes que existem,
foram criadas à sua imagem.
Ao indagar junto do actual construtor de bombos e caixas, e de outros
membros do grupo, sobre todas estas questões levantadas pelo antigo construtor
e tocador de pífaro e bombo, verifiquei que estas são menospresadas pelos
mesmos. Não se dá importância à nota que a caixa ou o bombo produzem. A
afinação para obter “um bom som” é conseguida através do aperto da pele, que
necessita estar bem esticada, sem que a altura do som que produz seja muito
importante. A relação que existe entre a caixa e o bombo, tanto nas suas
dimensões como o significado simbólico que o Ti Pedro lhes atribuia e a
selecção na escolha das peles são igualmente desconhecidas. A única exigência
que se mantem é a de que a pele tem que ser de cabra e nunca de chibo, pelas
razões de caracter olfativo atrás apontadas.
27
Foto nº 3 -. Porta de entrada para a antiga oficina de construção de instrumentos do “Ti
Pedro”. Os bombos deste construtor distinguiam-se por serem amarelos.
3.3.1. O bombo
Fazendo um pequeno enquadramento histórico, podemos verificar que o
uso normal do tambor na Europa não se documenta antes do século XII, os
membranofones surgem-nos descritos já em tratados medievais, como no
manuscrito de Arnault De Zwolle, 1440; em 1511 na Musica Getutscht de
Sebastian Virdung onde encontramos algumas iluminuras de bimembranofones,
28
assim como no Theatrum instrumentorum do Syntagmatis Musici de Praetorius,
1620.
O uso de membranofones em Portugal é certamente muito antigo, mas o
que se sabe a seu respeio é pouco esclarecedor. Em Espanha, já o Arcipreste de
Hita, no século XIII, menciona os atambores, que com muitos outros
instrumentos saem a receber Don Amor; vários relatos dos séculos XII e XIV
descrevem cerimónias em que o concurso de instrumentos ruidosos - entre os
quais se contam sempre com os tambores - era tal, que , como se diz num deles,
“ parecia que o céu e a terra se vinham abaixo”; no século XIV, Gil Vicente, na
sua lamentação saudosa do Triunfo de Inverno, diz-nos que “só em Barcarena
havia tambor em cada moinho “.
Como se pode vêr por estes relatos, o uso dos membranofones em
Portugal está pouco documentado; em relação aos de Lavacolhos a tarefa é-nos
ainda mais dificultada uma vez que fazendo parte da tradição oral, a
documentação é inexistente, pelo que apenas nos ficam os relatos que ainda
subsistem na memória dos moradores mais antigos.
O bombo, tal como a caixa, pertence à família dos tambores embora
possuam diferentes estruturas morfológicas, sonoras e funcionais. Como diz
Ernesto Veiga de Oliveira “ Os tambores europeus são bimembranofones de
caixa de ressonância cilíndrica de dimensões e proporções variáveis mas
sempre mais ou menos altas, com peles retezadas por corda corredia ou
parafusos passados entre elas, permitindo a graduação da sua tensão, e de
percussão indirecta, pela pancada de um ou dois bastões complementares. Os
29
tambores portuguses são deste tipo geral, e apresentam-se actualmente sob três
formas principais: bombos, caixas e tamborins ” ( Oliveira, 1966, p.). Os
bombos caracterizam-se pela ausência de bordões, que por isso, sob a pancada
da maceta5, vibram livremente, com uma sonoridade profunda e difusa.
A construção do bombo tem várias fases, que passo a descrever: a pele
de cabra, depois de retirada do animal, é seca, nunca curtida, e, na altura de ser
utilizada na construção do bombo, é posta de molho em água durante cerca de
meia hora. As peles são cortadas em círculo e cosidas a dois arcos de silva, de
preferência flexíveis, com cerca de 2,5 metros de comprimento - noutras
regiões estes arcos de silva são designados por arquilhos - ficando o pêlo da
pele para o lado de fora. Assim, ficam então a fechar cada um dos lados do
fuste de zinco - em Lavacolhos estes são designados por latas, e não são mais
do que aros feitos em metal. As latas, já desde o tempo do Ti Pedro, são feitas
por um latoeiro. Estas são em folha de zinco de 2,5 metros de comprimento,
que ao formar um arco fica com cerca de 80 cm de diâmetro e 32 de altura
adaptando-se assim às dimensões máximas permitidas pela pele de cabra. A
operação seguinte consiste na colocação de aros de madeira de castanheiro ou
mimosa, com dimensões aproximadas de 2,7 m de comprimento e 5 ou 6 cm de
largura. A madeira usada deve ser resistente e de veio corrido, de preferência
que vergue no sentido desse veio. Estes aros de madeira servem para manter as
peles na sua posição, juntamente com uns pequenos ganchos em ferro em forma
5 Vêr glossário.
30
de “S” com 5 ou 6 cm, que através de uma corda entrelaçada em forma de “Y”,
apertam um aro contra o outro, mantendo assim a pele esticada.
As duas macetas que tocam no bombo são construídas com cabos de
madeira com cerca de 30 cm de comprimento, tendo numa das extremidades
uma cabeça larga feita de cortiça, revestida de pele de cabra com o pêlo voltado
para dentro, amarrada com uma guita. Os bombos transportam-se suspensos a
tiracolo com uma correia, que preferencialmente é um cinto que passa sobre o
ombro direito e sob o braço esquerdo ajustado à medida do executante. Os
bombos são apoiados sobre o joelho esquerdo do tocador, que o levanta a cada
passo.
Etapas na construção de um bombo:
Pele de Cabra cortada á medida
31
Arcos de silva cosidos à pele
Aros de castanheiro ou mimosa
Pele e Fuste de zinco
Existem no Museu Nacional de Etnologia dois bombos, que ao que
parece são os bombos mais antigos de Lavacolhos de que há memória. O
depósito destes instrumentos data de 1962 e foram adquiridos pela Fundação
Calouste Gulbenkian, tendo sido registados em 1977 no Museu de Etnologia
com o número de colecção 147. No Museu de Arte Popular existe um bombo de
Lavacolhos no qual se lêem as iniciais S.B.L., não existindo qualquer registo
sobre a data ou qualquer outro dado sobre a proveniência deste instrumento. Os
32
aros de zinco estão pintados de verde, assim como os de castanheiro; Ao lado
encontram-se as duas maçanetas com que o executante tocava.
Foto nº 4 - Bombo pequeno, encomenda do Castelejo, povoação vizinha de Lavacolhos, a
Joaquim Simão.
33
Foto nº 5 - Actual construtor de instrumentos, Joaquim Simão, tendo à sua esquerda um
bombo com as dimensões dos de Lavacolhos, e à direita um bombo encomendado pelo
Castelejo. Actualmente um bombo dos pequenos custa cerca de 40 a 45 contos, e o grande
cerca de 80 contos.
3.3.2. A caixa
As caixas são feitas pelos construtores dos bombos, já que têm a mesma
técnica de construção e usam os mesmos materais, variando apenas as suas
dimensões. O fuste de zinco tem cerca de 0,44 cm de diâmetro e 0,18 de altura.
Estas são igualmente bimembranofones feitos com pele de cabra, com a
diferença de que esta se encontra com o pêlo virado para dentro, sendo a pele
34
utilizada, por vezes, a que sobra da pele do bombo que foi rompida. Outro
aspecto que diferencia a caixa do bombo, são os dois bordões que estão sob a
pele e produzem um efeito a que se chama rufar. Os bordões fixam-se a um
registo que gradua a sua tensão e começaram por ser feitos com fios de pele de
tripa, para depois passarem a ser de guita, e actualmente com os bordões das
cordas das guitarras.
A caixa é tocada quase em posição horizontal, ligeiramente inclinada
para a esquerda, com duas baquetas de madeira, cuja extremidade tem forma
arredondada. As baquetas seguram-se de modo firme e solto com o polegar por
cima e o indicador e médio por baixo, batem-se ambas ou alternadamente
segundo a variedade dos rítmos e unicamente sobre a pele superior,
encontrando-se os bordões na pele inferior. O rufo das caixas que fazem parte
da colecção do Museu de Etnologia e do Museu de Arte Popular em Lisboa é
feito de guita. No Museu de Etnologia existem duas caixas com data de 1962,
adquiridas pela Fundação Calouste Gulbenkian, registadas no museu de
Etnologia em 1977 sob o número 152. No Museu de Arte Popular existe uma
caixa de Lavacolhos, da qual não existe referência à data da sua chegada. Tal
como o bombo, a caixa tem o aro de metal pintado de verde.
35
Foto nº 6 -Três bombos e duas caixas que pertencem actualmente ao grupo de bombos de
Lavacolhos. Esta foto foi tirada na sede da junta de Freguesia, entidade a quem pertence a
administração dos bombos.
36
3.3.3. O pífaro
O pífaro é o termo usado em Lavacolhos para designar uma flauta
transversal sem chaves, que faz parte da família dos aerofones. Este género de
flauta travessa constitui em algumas zonas um passatempo individual dos
pastores. Existe em várias regiões do país, variando o material de que é feita
conforme a região da sua proveniência. No Minho, Estremadura e Algarve é
geralmente feita de cana; na Beira Baixa é feita de sabugueiro e ferro. Os
pífaros de Lavacolhos já foram feitos de sabugueiro ou mesmo de cana,
actualmente o pífaro é feito de metal, não tem qualquer tipo de ornamentação e
está pintado com uma tinta de esmalte côr de cobre.
O pífaro toca-se com as duas mãos e fica virado para o lado direito do
tocador. A mão esquerda é a que está mais próxima da boca e para o lado de
dentro, a direita mais para a ponta e para o lado de fora; os dedos polegares e
mínimos não se usam: os polegares seguram o instrumento por baixo, e os
mínimos ficam no ar. A extremidade perto do insuflador é igualmente cilíndrica
e tem um diâmetro maior que o resto do corpo do instrumento. Nesse extremo,
uma rolha entre o insuflador e o topo permite regular a afinação do instrumento.
A distância entre o insuflador e o primeiro furo deve ser igual à distância entre
este e o último; os demais são fixados por bitola. O comprimento deste
instrumento é de cerca de 45 cm e o diâmetro anda próximo dos 20 mm. Além
do insuflador, no qual o pifareiro ao soprar produz uma coluna de ar,
37
produzindo uma série de remoinhos que colocam em vibração o ar contido no
tubo, existem seis perfurações redondas, que permitem a obtenção de diferentes
alturas sonoras. A distância entre as perfurações do actual pífaro de metal de
Lavacolhos não são simétricas, contudo, isso não intrefere de forma negativa na
sua afinação. O âmbito natural deste pífaro é de uma oitava diatónica, mas os
bons tocadores, graduando a insuflação, conseguem dar outra oitava mais
aguda. A melodia do pífaro é bem aguda e sobrepõe-se ao poderoso troar dos
bombos.
Segundo um dos actuais tocadores, Abilio Guerra, os pífaros de madeira
continuam a ser bons, só que é difícil encontrar um que tenha a afinação
correcta, daí que o seu instrumento preferido seja o de ferro, mas desconhece
qual a sua proveniência. Segundo Abilio Guerra, o pífaro em que toca não tem
uma afinação específica, pois por um lado tal revela-se desnecessário uma vez
que apenas existe um único pífaro no grupo, e, por outro lado, a sua extensão é
suficiente, dado que a Moda do Bombo só tem um âmbito de oitava.
38
3.4. O repertório
O repertório do G.B.L. é constituido apenas pela Moda do Bombo.
Abílio Guerra refere que “A moda do bombo é a melodia do pífaro (...), os
versos que se cantam não têm propriamente nenhum nome (...), são as cantigas
dos bombos.” ( Entrevista a Abílio Guerra 27/3/97 ). Deste modo, é apenas a
música propriamente dita, que se designa como a moda do bombo. Os versos
cantados que a acompanham são apelidados como as cantigas dos bombos. É
curioso verificar que, de certa forma, existe uma separação entre a música e a
poesia no repertório do G.B.L.. Aparentemente, com base na entrevista a Abílio
Guerra, essas cantigas, isto é, os versos, são colocadas de forma arbitrária. A
separação que existe entre as várias partes que compõe o desempenho - música
e poesia - manifesta-se no facto de os cantadores começarem a cantar sem uma
entrada préviamente estabelecida. No entanto, esta influencia aquela, na medida
em que o final de cada estrofe condiciona o dobrar dos bombos e a melodia do
pífaro. Sendo assim, sempre que termina uma estrofe os bombos dobram, o
mesmo acontece sempre que termina a frase musical do pífaro. Por outro lado,
quando a estrofe termina, também esta influencía a melodia do pífaro e
consequentemente, o dobrar.
Todavia, existem algumas ocasiões em que o G.B.L. não dispõe de vozes
- por exemplo quando faltam cantores, pois os tocadores de bombo não podem
cantar devido ao esforço requerido pelo instrumento que tocam - sendo nestes
casos somente o pífaro que condiciona o dobrar dos bombos.
39
Transcrição dos versos cantados durante o desempenho, declamados por
Joaquim Simão e Gesuíno Martins.:
As cantigas dos Bombos
Ó alto, ó alto Ó alto, ó alto
Quanto mais acima maior é o salto
Refrão Ó larilolela.
Ó alto, ó alto
Eu quero, eu queria.
Eu quero, eu queria
Dormir uma noite
contigo, ó Maria
Refrão Ó larilolela.
Eu quero, eu queria.
Ó alto piu, piu.
Ó alto piu, piu.
Passarinho novo
das mãos me fugiu.
Refrão Ó larilolela.
Ó alto piu, piu.
Eu quero-te tanto.
Eu quero-te tanto
como a flôr da Murta
criada no campo.
Refrão Ó larilolela.
Eu quero-te tanto.
Senhora Maria.
Senhora Maria
Lá na sua cama
muita pulga havia
Refrão Ó larilolela.
Senhora Maria.
40
Ó chula de Braga.
Ó chula de Braga
bebeste o vinho,
quebraste a malga
Refrão Ó larilolela.
Ó chula de Braga
Eu bem te dizia.
Eu bem te dizia.
Se tu não me amasses
eu logo morria.
Refrão Ó larilolela.
Eu bem te dizia.
Ó alto penedo.
Ó alto penedo.
Menina tão nova
casada tão cedo
Refrão Ó larilolela.
Ó alto penedo.
Ó Ana vem vêr.
Ó Ana vem vêr
o fogo no mar
os peixes a arder.
Refrão Ó larilolela.
Ó Ana vem vêr.
Ó Ana, tu queres.
Ó Ana, tu queres
que morram os homens
fiquem as mulheres.
Refrão Ó larilolela.
Ó Ana tu queres.
Ó Ana, ó Ana.
Ó Ana ,ó Ana.
Muita cara linda.
muita gente engana.
Refrão Ó larilolela.
Ó Ana, ó Ana.
41
Senhora Maria.
Senhora Maria,
o seu galo canta,
o meu assobia.
Refrão Ó larilolela.
Senhora Maria.
Ó chula, chuleta.
Ó chula, chuleta
Dá-me cá a chave
da minha gaveta.
Refrão Ó larilolela.
Ó chula, chuleta.
Ó chula, chulão.
Ó chula, chulão
Dá-me cá a chave
do meu gavetão.
Refrão Ó larilolela.
Ó chula, chulão.
Quanto á análise poética verifica-se a existência de estâncias pares,
constituídas por sextilhas, onde predominam os versos de cinco sílabas, com a
tónica na sílaba grave e aguda. Estas sextilhas podem ser subdivididas em
quatro versos mais dois, sendo os dois últimos o refrão de cada estrófe.
A rima, por vezes consoante (Ex. 1ª sextilha: alto/salto), tem uma
estrutura inalterável ao longo de todas as sextilhas. Temos assim: os dois
primeiros versos e o último são iguais e rimam com o quarto, e o terceiro e
quinto não obedecem a qualquer tipo de rima, podendo assim ser considerados
versos soltos. Um dos recursos estílisticos usados frequentemente é a anáfora6
A exemplificar temos o seguinte verso: “Ó alto,ó alto...”.
6 Repetição de uma palavra ou expressão para fazer sobresair o que se repete, ou seja, utiliza-se a
insistência para dar mais ênfase à ideia que se pretende transmitir.
42
Os versos da primeira estrofe podem ter múltiplas interpretações. Tanto
podem traduzir a forma de tocar o bombo, na qual o instrumentista o eleva com
a perna; como pode ser uma metáfora à localização geográfica de Lavacolhos.
Apesar destas terem sido recitadas por esta ordem, não existe uma ordem
específica a ser seguida, pois tal como foi referido, os versos são cantados de
forma aleatória. Muitas sextilhas evocam a mulher de forma explícita ( a 2ª, da
4 à 12ª ) e outras através de metáforas ( 3ª ). O tom que denotam algumas
estrofes é irónico ( “Senhora Maria, Lá na sua cama muita pulga havia.),
transmitindo o carácter de divertimento presente no desempenho.
Terminada a análise poética segue a análise musical, cujos instrumentos
são tratados independentemente. A escolha desta forma de análise prende-se
com o facto de, apesar de todos fazerem parte de um mesmo todo, têm uma
certa autonomia. Outra das razões que motivou a análise em separado de cada
instrumento, foi o caracter expontâneo desta música, provocando certas
alterações durante o desempenho.
A transcrição musical da voz, fi-la com algumas reservas, pois certos
intervalos não correspondem exatamente ao meio tom vulgar presente nos
instrumentos de afinação fixa e na escrita musical ocidental. A transcrição
seguinte aproxima-se do original, mas deve ser tido em conta o que foi dito
anteriormente. A tonalidade aqui usada pode corresponder em certos momentos
ao original, mas em outros pode estar longe da realidade, porque, como a
entrada da voz é feita de forma aleatória, a altura sonóra de referência que os
43
cantores têm - e que possivelmente é feita através da melodia do pífaro - nem
sempre é a mesma.
O âmbito geral é de oitava, atingindo o registo mais agudo no segundo e
terceiros compassos, e o mais grave no quarto e últimos compassos. A linha
melódica do primeiro verso acompanha a ideia de subida implícita no primeiro
verso do poema. Melodicamente o intervalo predominante é a terceira,
finalizando a melodia com um intervalo de segunda, à semelhança da melodia
tocada pelo pífaro. O rítmo, baseado na colcheia e semicolcheia, apresenta-se
com duas formas: duas semicolcheias seguidas de uma colcheia, ou uma
colcheia seguida de duas semicolcheias.
A transcrição que segue é a frase principal da Moda do bombo tocada no
pífaro, e foi realizada a partir de uma demonstração feita por Abílio Guerra. As
outras frases tocadas por este instrumento são as frases secundárias, que
intercalam com esta durante o desempenho, não sendo aqui transcritas porque
são apenas variações modificadas desta.
De divisão binária simples7, a Moda do bombo tem um âmbito geral de
uma oitava. O intervalo de quarta domina o âmbito dos três primeiros
compassos, sendo este alargado para uma quinta nos três compassos que
44
seguem. Nos compassos seguintes ( 7, 8 e 9 ) o âmbito é alargado à oitava,
sendo aqui que se atinge o registo mais grave da melodia, terminando a frase no
quarto gráu da tónica. Do ponto de vista melódico predominam os gráus
conjuntos e o intervalo de terceira. Rítmicamente existe uma grande variedade
de rítmos, onde a colcheia aparece subdividida de três formas: quatro fusas das
quais a primeira é uma pausa, uma semicolcheia e duas fusas ou uma tercina de
fusas.
Os modelos rítmicos do bombo e da caixa que apresento em seguida,
foram realizados a partir de uma gravação video efectuada no Seixal. Iniciarei
desta forma a apresentação dos instrumentos de percussão, começando pelo
modelo rítmico do bombo.
O rítmo do bombo mantem-se inalterável durante todo o processo
musical. É no movimento das duas colcheias que a perna esquerda eleva o
bombo, seguindo-se depois a semínima com um movimento do bombo para
baixo, representando assim o descarregar da energia exigida pelo esforço da
elevação do instrumento. À mão direita é conferida a marcação do rítmo
principal, ficando confinado à mão esquerda um movimento em contratempo
que ocorre quando o instrumento começa a descer. O exemplo seguinte
representa o dobrar dos bombos em três vezes. Este é o mais frequente ao longo
do desempenho, embora também possa ser em duplo em vez de triplo.
7 Refiro-me ao compasso 2/4.
45
Como se pode verificar pelo exemplo precedente, o dobrar não é mais do
que o modelo rítmico seguido pelo bombo ao longo de todo o desempenho,
estando aqui as colcheias reduzidas a metade do seu valôr. A coreografia
também é idêntica, pois é nas semicolcheias ( equivalentes às colcheias ) que a
perna esquerda é elevada ao máximo, sendo na semínima que se verifica o
descarregar da tensão e que o bombo vai a baixo.
O próximo exemplo é o modelo rítmico seguido pela caixa. O efeito
produzido por este instrumento é o rufar, que consiste na repetição contínua de
um mesmo rítmo regular. Tocada com ambas as mãos, onde uma segue o rítmo
da outra, a caixa é um instrumento que serve de acompanhamento ao bombo.
Neste caso, e só se considerarmos estes dois instrumentos isolados de todo o
resto, é lícito dizer que o bombo é o instrumento principal, mas se analisarmos
o todo ( pífaro, caixa bombo e voz ), não podemos, em minha opinião, dizer que
o bombo é o instrumento principal, visto que é atrás o pífaro que seguem todos
os outros e é este que tem a melodia que condiciona o dobrar do bombo.
Analisando agora o todo, podemos constatar que existem pontos de
confluência entre todos os instrumentos. Do ponto de vista rítmico, existe um
rítmo comum entre o bombo, a melodia do pífaro e a voz :
A colcheia seguida das duas semicolcheias é uma constante nestes três
instrumentos, surgindo várias vezes sudividida na melodia do pífaro.
Melodicamente, se analisarmos a linha melódica do pífaro e da voz verificamos
46
que os âmbitos gerais são os mesmos, assim como o intervalo predominante e a
cadência final de cada um deles.
Foto nº7 - Grupo de jovens à saida da Junta de Freguesia prepara os instrumentos para o
desempenho nas Festas do Espírito Santo.
47
Foto nº 8 - Volta à aldeia pelo grupo dos tocadores
48
Foto nº 9 - Volta à aldeia pelo grupo dos tocadores
49
Fotos nº10 e 11 – O grupo no VIII Cantigas do Maio, no seixal.
50
Fotos nº12 - Grupo de solteiros que fazem parte do grupo, com o traje próprio para actuar.
51
4 - Aspectos da masculinidade no G.B.L.
Como referi na problemática apresentada, desde os primórdios da sua
existência que este grupo é constituido só por homens, e ao que parece, esta
questão relacionava-se com o facto do desempenho estar ligado à virilidade
destes. Aparentemente, todo o desempenho significava de forma indirecta o
acto sexual. A força com que o bombo era tocado talvez fosse simbolicamente
proporcional à virilidade do homem; daí que a força empregue para tocar o
bombo fosse tanta força que frequentemente a pele rebentava, este era motivo
de orgulho perante toda a aldeia. Possivelmente, o romper a pele do bombo
simbolizava o romper do himen da mulher.
É ainda de salientar, neste contexto, o facto da administração dos
bombos pertencer a uma associação de solteiros, sendo só a eles permitido
agarrar os bombos, onde também pode estar subjacente uma simbologia ligada
à virilidade do homem. Nesta ordem de ideias, poderemos concluir que aos
casados não era permitido agarrar os bombos visto que estes já não tinham
necessidade de dar provas da sua virilidade.
Actualmente existem algumas mulheres que participam neste tipo de
manifestação, contudo, esta circunscreve-se somente ao espaço da aldeia,
devido à população masculina não permitir a sua participação fora do mesmo, e
tem como finalidade o simples divertimento.
As questões levantadas pela problemática do Gender são bastante
polémicas. Pessoalmente preferia que na sociedade actual não se falasse de
52
homem e mulher, mas de pessoas capazes de desempenhar, ou não, certas
funções, independentemante do seu sexo biológico. O facto é que, quer
queiramos quer não, o sexo biológico tem importância em certas formas de
conduta dos individuos.
As questões do gender são desafiadas por muitos, logo no paradigma
linguístico em que a nossa sociedade tem funcionado. Por exemplo, vejamos
isso em relação aos instrumentos usados por este grupo: “o” bombo é
masculino; “a” caixa é feminino; “o” pífaro é masculino, mas a flauta é
feminino. Quando nos referimos ao conjunto de todos estes instrumentos
usamos o artigo masculino “o” no plural, ou seja “os”. Mais uma vez se impõe
aqui a masculinidade para designar um conjunto que é composto por
masculinos e femininos, a superioridade do masculino impõe-se sempre que é
usada para designar um plural constituido pelo género feminino e masculino.
Tal como a História que foi construida na sua maioria pelos homens, também a
nossa sintaxe gramatical foi elaborada maioritariamente por homens. Se tivesse
sido relatada pelas mulheres certamente seria bem diferente.
Será que a atribuição do plural seria constituída pelo feminino para
designar o plural? Em certos circuitos académicos assistimos à substituição de
“os” por o/a. Em certos idiomas, como por exemplo em em inglês, “the” é um
artigo que é aplicado ao feminino e ao masculino.
O artigo determina à partida o género, esta separação dos géneros pode
estar na origem daquilo que falava o Ti Pedro: a caixa, é a voz da mulher, tem
53
um som mais agudo, o bombo é a voz do homem, tem um som mais grave. Esta
pode ser uma razão mas não é a única. O facto da caixa ser mais pequena em
relação ao bombo poderá ser também uma representação da mulher e do
homem.
. O bombo não é visto pelo grupo como um instrumento acompanhador,
mas sim como o instrumento principal. Em minha opinião o bombo acompanha
o pífaro e a voz, sendo estes, pífaro e voz, que condicionam o dobrar, mas
como o bombo é a representação do homem, segundo dizia o Ti Pedro, nunca
poderia ser visto pelos seus executantes como um instrumento meramente
acompanhador, mas sim como o instrumento principal. As suas proporções em
relação à caixa também se adaptam à ideia da superioridade masculina que
pretende ser demonstrada pela força.
Será que o facto da participação de algumas mulheres revela que a
simbologia que estava subjacente deixou de ter importância na comunidade? Os
habitantes de Lavacolhos julgam que não, porque continuam a reivindicar para
si os bombos, e a não permitir que as mulheres façam parte do desempenho,
alegando que aqueles não lhes pertencem, porque este é um espectáculo
exclusivo dos homens.
Para Abilio Guerra a força empregue no toque dos bombos, a violência
fisica que é controlada pelo próprio rítmo, poderá estar na origem de aspectos
da virilidade dos homens, e é a função de descarregar essa força que caracteriza
a masculinidade do G.B.L.. Para tocar bombo é necessário força, violência
física que vai até aos ferimentos nas mãos, o que leva alguns tocadores a
54
utilizarem protecções nos dedos, adesivos ou uma espécie de dedil. Estes
ferimentos não levam os tocadores a parar, porque eles só param quando
terminam a sua função. As razões que impedem a participação das mulheres no
desempenho do grupo, segundo o Sr. Abilio, relaciona-se com o facto de ser
ponto acente que os bombos são tocados por homens, este é um aspecto
másculo dos bombos, porque são eles que conseguem dar o espectáculo
inerente à função, sendo necessário uma demonstração de força para que o
desempenho seja conseguido.
“Às mulheres não pertencem os bombos, às mulheres pertencem é os
adufes, porque elas não têm a reacção para tocar o bombo” ( Cit. Joaquim
Real). Tentei indagar o sentido dado à palavra reacção, mas o informante não
conseguiu explicar-me o sentido. Para ele este termo tinha uma aplicação muito
óbvia e por isso não conseguiu traduzila de outra forma. Esta “reacção” que as
mulheres não têm, poderá ser algo de adquirido pelos homens ao longo de
gerações e estar de alguma forma relacionado com a dominação do macho pela
fêmea.
Estará a participação ocasional da mulher relacionada exclusivamente
com a falta de população masculina em virtude da emigração crescente? Esta
não me parece ser a razão principal porque existe da parte da população
masculina mais jovem um certo empenhamento na proliferação do grupo, como
tive ocasião de verificar, nomeadamente em Maio de 1997, nas festas do
Espírito Santo, onde um grupo de jovens constituído exclusivamente por
rapazes, participavam no desempenho. Devido à impossibilidade da presença
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do actual tocador de pífaro e dos membros mais velhos que constituem o grupo,
os rapazes não tiveram medo da chuva que se fazia sentir, e na primeira
oportunidade saíram para a rua. O pifareiro foi substituido por um jovem com
cerca de 14 anos, que apesar de ainda ter muito que aprender, segundo me dizia
o sr. Presidente da Junta de Freguesia, conseguiu adaptar-se ao grupo. As
raparigas da aldeia limitavam-se a assistir ao espectáculo sem que nele
participassem, tendo a posição de simples espectadoras.
A população continua a querer manter a “tradição” porque pensa que
assim consegue manter o prestígio que lhe foi conferido ao longo do tempo e
qualquer mudança é uma ameaça a ser combatida.
Será que a afirmação da mulher na sociedade actual começa a colocar
em causa a divisão de tarefas e a masculinidade do homem? A divisão de
tarefas numa aldeia do interior, e até em muitas cidades de Portugal, continua a
estar presente na sociedade. Como refere Vitor Jorge em Recuperar o espanto:
o olhar da antopologia, a masculinidade é construida através de um processo de
socialização primária através de modelos comportamentais e morais fornecidos
pelos pais, quer na escola pela divisão de tarefas e nas próprias interpretações
da história nacional, quer em muitas outras situações. A questão da
masculinidade faz parte de um sistema de relações de poder. A perda de capital
de masculinidade, por exemplo quando o homem se acobarda numa situação de
conflito físico, é uma feminização simbólica; ou quando uma mulher fica viúva,
é uma masculinização simbólica, virtual. É usual dizer-se: ela agora é o homem
e a mulher da casa.
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A restrição imposta às mulheres no desempenho do grupo poderá estar
relacionada com o medo da perda deste capital de masculinidade que foi
incutido aos homens através de modelos construídos pela sociedade, “... sendo
necessário uma demonstração de força para que o desempenho seja
conseguido...” (Abílio Guerra). Esta demonstração de força é a masculinidade
que faz parte de um sistema de relações de poder. É ao homem que compete a
liderança.
Não querendo entrar no campo extremista defendido por algumas
feministas, o meu objectivo não é provar a superioridade ou inferioridade de
qualquer um dos sexos, mas apenas constactar um facto existente.
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5 - Conclusão
Nos anos setenta ocorreram grandes mudanças nas Ciências Sociais e
Humanas. Conceitos como popular, exótico, primitivo, selvagem, tradicional,
entre outros, deixaram de ser válidos. Teoricamente, o desaparecimento destas
designações deixou-os os estudantes completamente desnorteados, sem saberem
que termos aplicar. Surgiram outros tópicos de estudo entre os quais o estudo
do género ou sexo social, que em etnomusicologia é o estudo da música em
função da sua sexualidade, e foi sobre este tópico que eu me debruçei.
O G.B.L. sempre teve, e continua a ter, uma grande importância na
comunidade em que se insere, fomentado pela preocupação da população, de
manter activo este grupo. Este continua a ser o cartão de visita de uma aldeia do
interior, que como tantas outras, tem caído no esquecimento, pelos poucos
atractivos que possui. Para a população mais jovem, este chega mesmo a ser,
eventualmente, a única forma de diversão dentro da aldeia, e por outro lado,
uma forma de ultrapassar os seus limites. O G.B.L. chega mesmo a ser uma
forma de exportação de cultura, que tanto agrada às camadas mais simples
como às intlectuais, podendo actuar tanto para o Presidente da República, como
nas festas mais brejeiras.
Em Lavacolhos pretende-se manter a “tradição”, e tudo o que a possa
colocar em risco é severamente banido. Segundo me foi revelado por Abílio
Guerra e Agostinho Janeira, esta foi uma das razões que aparentemente parece
ter levado aos conflitos entre o “Ti Pedro” ( Joaquim Pedro, construtor e
tocador de bombo, caixa,e pífaro ) e os mais conservadores, quando este
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pretendia inovar a melodia da Moda do Bombo, através da inclusão de várias
frases secundárias na referida melodia, e que iam contra aquilo que os
habitantes consideravam ser o verdadeiro e original.
As questões relativas à originalidade e à veracidade neste tipo de
manifestação constituem polémica porque não existem provas físicas, isto é,
documentos escritos, indicadores da prática anterior. Não querendo com isto
mostrar que a escrita musical é o mais importante, porque mesmo esta é alvo de
críticas por parte dos musicólogos, os quais têm sempre algumas dúvidas se as
formas de interpretação são as desejadas pelos compositores, facto é que elas
são uma fonte importante que permite o estudo das alterações das mentalidades
ocorridas ao longo dos tempos. A vontade dos Lavacolhenses de tentar manter
esta “tradição” parece não ter sido de todo conseguida, porque tanto a
participação das mulheres, mesmo que ocasional e circunscrita a um espaço
reduzido, bem como a administração dos bombos, não conseguiram ser
mantidos
A tradição já não é o que era, é um slogan que se enquadra
perfeitamente na actualidade e é provavelmente testemunho das constantes
mudanças ocorridas nos últimos tempos. Tal como o conceito de tradição foi
reformulado, não tendo sido encontrado até agora um conceito mais apropriado,
muitos outros aspectos da vida considerados imutáveis até agora, se preparam
para entrar neste processo de mutação, a que a manifestação musical não vai,
com toda a certeza, ficar indiferente.
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A música é uma forma de expressão extremamente fluida, que assimila
elementos de diferentes espaços, encontrando-se por isso, em perpétua
mudança. Um aspecto a não esquecer, é o facto de a comunicação entre os
diferentes povos e países ser cada vez maior e de certas características deixarem
de ser típicas em exclusivo a uma dada cultura. A “tradição” não tem um tempo
próprio, assumindo-se como tudo aquilo que através do tempo vai
caracterizando o nosso passado e o nosso presente, e não deve ser conotada em
termos culturais, porque a cultura é um conceito que só pode ser tido em conta
como um conjunto de sistemas integrados, um conjunto de diferentes elementos
constituídos por símbolos, valores e padrões de conduta, através dos quais
vivem as pessoas. Não existe uma cultura, existe sim um conceito relativizado
de cultura através de vários factores.
O simbolismo atribuído aos instrumentos pelo Ti Pedro parece ter
desaparecido. Este, poderá ter sido apenas uma mera interpretação pessoal, mas
facto é que, tanto as relações que ele fazia em relação às proporções da caixa e
do bombo, como às notas produzidas por estes instrumentos, como a selecção
das peles, se aproximam muito da realidade.
O título atribuido a este trabalho, Ao Alto, relaciona-se com o
desempenho daquele que, para os instrumentistas, é o instrumento rei do grupo:
o bombo. É este que dá o nome ao grupo (G.B.L.), e é através da técnica usada
neste instrumento - o dobrar - que o grupo se evidencia dos restantes desta
região. Efectivamente, é no dobrar que o bombo vai mais vezes “ao alto” e é
também aqui que marca o final de cada estrofe cantada.
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6 - Glossário
Couvada - Prato gastronómico constituido por couves afermentadas com
bacalhau, a que noutros locais se chama lagarada. É típico do magusto em
Lavacolhos, e é feito numa festa de convívio associada à quadra natalícia.
Consiste no bacalhau cozido com couve e batatas cozidas, que se juntam num
recipiente a meio da mesa e de onde cada um vai comendo com o seu garfo e o
pão, geralmente acompanhado com a broa. Está associado às zonas onde
proliferaram os lagares, sendo esta uma ocasião onde se podia provar o azeite e
determinar a sua qualidade. A couvada continua a fazer-se em Lavacolhos por
altura do Natal.
Dobrar- Segundo Tomás Borba e Fernando Lopes Graça dizem no seu
dicionário de música, o Dobrar consiste na reprodução por outro instrumento,
ao uníssono ou à oitava, um canto, uma melodia ou uma frase musical. Esta
definição não tem contudo, o mesmo significado em Lavacolhos, onde o
Dobrar faz parte da técnica usada durante o desempenho do grupo, e é ao
mesmo tempo aquilo que, segundo os seus membros, o evidencía e distingue de
todos os outros grupos de bombos. Esta técnica tão distinta, consiste na
repetição muito rápida de um rítmo efectuado com ambas as mãos, que surge
em determinados momentos: sempre que termina uma frase no pífaro, ou
termina um verso cantado. Esta repetição pode ser dupla ou tripla, daí os
executantes dizerem que se dobra a música em duas ou três vezes.
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Maceta - Instrumento com que se percute o bombo. Com um cabo de madeira
com cerca de 30 cm de comprimento, tem numa das extremidades uma cabeça
larga arredondada feita de cortiça e revestidade pele de cabra com o pêlo
voltado para dentro.
Piar o pífaro - Fazer soar o pífaro através do ar que é emitido no insuflador.
Este, ao percorrer a coluna de ar, produz vibrações que dão origem ao som.
Pífaro - Flauta travessa que constitui um passatempo individual dos pastores.
Existe em várias regiões do país, variando o material de que é feita conforme a
região da sua proveniência. No Minho, Estremadura e Algarve é geralmente
feita de cana; na Beira Baixa é feita de sabugueiro e ferro. Tem seis furos além
do insuflador.
Joeiras - De joio+eira. Hoje em dia é simplesmente um produto artezanal,
antigamente servia para fazer a limpesa dos legumes secos ( feijão, grão ). Tipo
de peneira, feita de palha e junça, toda cosida à volta com pele de cabra ou de
ovelha. Existe apenas um artesão em Lavacolhos que ainda se dedica a este
tipo de construção, mas que está com idade avançada.
Maranhos - Prato gastronómico da região da Beira Baixa ( Silvares ),
preparado com bucho de carneiro, carne de carneiro, chouriço, touçinho, vinho
branco, hortelã, sal, pimenta e água. Depois de lavado e raspado, o bucho é
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cortado em pedaços com cerca de 10 centimetros, que são cosidos em forma de
sacos. As carnes são cortadas em pedaços muito miudos e misturados com o
arroz. Enchem-se os sacos até meio com a mistura, e coze-se em água com sal e
hortelã. Quandos os sacos apresentarem um aspecto rígido, o prato está pronto.
63
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