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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEAR. CENTRO DE HUMANIDADES. DEPARTAMENTO DE HISTRIA. PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA. MESTRADO EM HISTRIA SOCIAL.

    s armas cearenses, justa a guerra:

    Nao, honra, ptria e mobilizao para a guerra contra o Paraguai na Provncia do Cear.

    (1865-1870)

    Fbio Andr da Silva Morais.

    Fortaleza

    2007

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    Fbio Andr da Silva Morais

    s armas cearenses, justa a guerra:

    Nao, honra, ptria e mobilizao para a guerra contra o Paraguai na Provncia do Cear.

    (1865-1870)

    Dissertao apresentada ao programa

    de Ps-Graduao em Histria Social da

    Universidade Federal do Cear como

    requisito parcial obteno do ttulo de

    Mestre em Histria.

    Fortaleza

    2007

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    s armas cearenses, justa a guerra:

    Nao, honra, ptria e mobilizao para a guerra contra o Paraguai na Provncia do Cear.

    (1865-1870)

    Dissertao defendida e aprovada, em 28 de fevereiro de

    2007, pela banca examinadora constituda pelos professores:

    _________________________________________

    Profa Dra Ivone Cordeiro Barbosa - Orientadora

    _________________________________________

    Prof Dr Frederico de Castro Neves

    __________________________________________

    Prof Dr Jos Olivenor Souza Chaves

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    primeira vista, o ato de agradecer nos parece ser uma tarefa simples e

    objetiva. Doce engano, quando avaliamos a importncia de reconhecer com

    justia e apreo o apoio daqueles que contriburam com dedicao,

    profissionalismo e amizade, a concluso de uma obra aparentemente

    individual.

    Nesse sentido, mais do que agradecer, quero expressar minha gratido

    e considerao para com essas pessoas especiais que possibilitaram a

    concluso desse trabalho.

    Dessa forma, gostaria inicialmente de agradecer o apoio e incentivo

    dado pela profa Terezinha Queiroz ainda na graduao, quando da elaborao

    de um incipiente projeto.

    Sou grato tambm aos amigos e amigas Digenes, Olindina, Eudes,

    Sander, Ldia, Mrjorie e Giovanni, que em diferentes momentos dispensaram

    grande ateno e apoio; e aos colegas da minha turma de mestrado Rodrigo,

    Isaac, Tcito, Egberto, Wagner Castro, Emlia, Eduardo, Terezinha, Carla,

    Camilo, Yuri, Lindeci, Tlio e Soraya.

    Agradeo ao casal Gertrudes e Joo Elmadan, funcionrios do setor de

    micro-filmagem da biblioteca estadual Menezes Pimentel, pelo zelo e carinho

    com que me recebiam nos inmeros dias de pesquisa naquele setor.

    Madalena, funcionria do setor de Obras Raras da referida biblioteca e

    bibliotecria da Academia Cearense de Letras, tambm dispensou grande

    ajuda em minha pesquisa, indicando documentos, livros, artigos e outros.

    O presente trabalho tributrio tambm, da distino e ateno dadas

    pelos funcionrios do Arquivo Pblico do Estado do Cear, em especial Paulo

    Cardoso que sempre atendia prontamente as minhas solicitaes de

    documentos. Nessa instituio, tive a agradvel oportunidade de conhecer e

    conviver com o pesquisador Andr Frota de Oliveira, digno amigo, grande

    auxiliador e profundo conhecedor daquele acervo.

    Quero expressar grande estima a minha banca de qualificao,

    composta pelos professores Frederico de Castro Neves e Edilene Toledo,

    pelas prestimosas crticas, sugestes e elogios. Em especial, agradeo ao prof

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    Frederico, com quem tive a oportunidade de trabalhar na graduao, durante o

    programa de iniciao cientfica, e que tanto contribuiu para o trmino deste

    trabalho.

    Sou grato a todos os professores e funcionrios da ps-graduao em

    Histria Social da UFCe, e aos funcionrios da biblioteca do NUDOC. Agradeo

    tambm, a CAPES, pela concesso de uma bolsa de mestrado para custeio e

    financiamento da pesquisa.

    minha orientadora, profa Ivone Cordeiro Barbosa, devoto os meus

    mais sinceros agradecimentos pela pacincia e dedicao com que me

    acompanhou nessa longa jornada, pois sei que no foi tarefa fcil.

    Por fim, dedico este trabalho e agradeo de corao, minha famlia,

    que por todos esses anos tem me apoiado e incentivado. Meus pais, Sula e

    Malaquias e minha irm Fabola. minha esposa Lidiane, mais do que lhe

    oferecer este trabalho, pelo seu grande esforo e afeto dedicados, ofereo meu

    eterno amor e carinho.

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    SUMRIO

    Resumo............................................................................................................06

    Abstract............................................................................................................07

    Introduo.....................................................................................................08

    Captulo 1: A mobilizao para a guerra contra o Paraguai na

    Provncia do Cear.

    1.1 Os desdobramentos iniciais da guerra na Provncia do Cear...................25

    1.2 Convocao e estetizao da guerra contra o Paraguai: a imprensa e a fala

    oficial no Cear.................................................................................................43

    1.3 Segui o exemplo que acaba de dar-vos o Chefe da Nao: o Imperador e

    a guerra.............................................................................................................68

    Captulo 2: A formao dos contingentes cearenses.

    2.1 O Recrutamento militar no Brasil Imprio: algumas consideraes............85

    2.2 A formao dos contingentes voluntrios na Provncia do Cear...............94

    2.3 Palavriados e muzicas no me illudem. Quem dizer que v l: designao

    e recrutamento forado....................................................................................118

    Captulo 3: O recrutamento para a Marinha de guerra.

    3.1 A Armada imperial no Brasil durante a guerra contra o Paraguai e

    recrutamento na Provncia do Cear..............................................................140

    3.2 Metamorfoses da guerra: o recrutamento de menores para a Armada

    Imperial na Companhia de Aprendizes Marinheiros do Cear durante a guerra

    contra o Paraguai...........................................................................................150

    Consideraes Finais............................................................................174

    Anexos........................................................................................................183

    Fontes e Bibliografia..............................................................................194

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    O presente trabalho tem por objetivo analisar o processo de mobilizao

    militar para a guerra contra o Paraguai (1865-1870) na Provncia do Cear e

    refletir sobre os impactos sociais do esforo blico sobre parte significativa da

    populao cearense do perodo. O esforo de guerra demandou do governo

    imperial um amplo movimento de recrutamento militar at antes nunca visto no

    Brasil e sentido em todo o territrio nacional. O processo de extrao estatal

    de contingentes recrutados e destacados para o conflito, e a interferncia do

    governo central na dinmica da vida local e nas relaes de poder

    estabelecidas, gerou uma grande tenso social na Provncia do Cear. Em

    outras palavras, a ampliao do recrutamento significou adentrar em reas de

    influncia e domnio dos poderosos locais, o que exigia do Estado imperial

    uma complexa e tensa negociao com os potentados. Apesar da afluncia

    considervel de soldados no primeiro ano da guerra (1865), os anos

    posteriores foram de grande violncia e terror nos sertes do Cear. A

    resistncia da populao alvo do recrutamento produziu grandes conflitos no

    interior da provncia, com fugas e resgate de recrutados, arrombamento de

    cadeias, ataques a comisses de recrutamento, auto-mutilaes, leses

    corporais dentre outros. Conjuntamente ao esforo de arregimentao de

    homens para serem incorporados s foras militares brasileiras, desenvolveu-

    se tambm no Cear, um amplo movimento de convocao. O discurso de

    convocao visava tanto legitimar a guerra quanto motivar o engajamento da

    populao no esforo de guerra. Por fim, uma das questes mais delicadas do

    processo da mobilizao militar para o conflito na Provncia do Cear, foi o

    destacamento de menores da Companhia de Aprendizes Marinheiros do Cear

    a fim de serem tripulados nos vasos de guerra da Marinha brasileira em ao

    na Bacia do Prata.

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    The present work has the objective to analyze the process of military

    mobilization to the war against Paraguay (1865-1870) in the Province of Ceara

    as well as to reflect on the social impacts of the war effort on significant part of

    the population of Ceara at that period. The war effort demanded for the imperial

    government a wide movement of military recruitment never seen before in Brazil

    and felt in the whole national territory. The process of state-owned extraction of

    recruited pointed out contingents to that conflict, and the interference of the

    central government in the dynamic of the local life and in the relationships of

    established power, created a big social tension in the Province of Ceara. In

    other words, the enlargement of the recruitment meant to come in areas of

    influence and domain of the powerful locals, what demanded from the imperial

    State a complex and tense negotiation with the potentates. In spite of the

    considerable affluence of the soldiers in the first year of war (1865), the post-

    war years were of great violence and terror in Ceara backlands. The resistance

    of the recruited target population produced great conflicts in the countryside of

    the Province, with escape and rescue of recruited, breaks of prisons, attacks on

    commissions of recruitment, self-mutilations, body injuries, etc. Together with

    the efforts of the men enlistment to be incorporated into Brazilian military forces,

    developed also in Ceara, a wide movement call. The speech of call aimed to

    make war legitimate as well as to motivate the most delicate matters in the

    military mobilization to the conflict in Province of Ceara, was the call of

    underage from the Navy Learners Company of Ceara in order to be crewed in

    the warships of the Brazilian Navy in action in the Prata basin.

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    A memria coletiva prefere habitualmente guardar, no passado da comunidade, dois tipos de situaes: aquelas em que fomos ou heris vitoriosos ou vtimas inocentes. As duas permitem legitimar nossas reivindicaes presentes. Mas tais situaes, que podem ter realmente existido, contribuem para nos cegar com relao ao presente mais do que para nos deixar lcidos. As pginas menos gloriosas de nosso passado seriam mais instrutivas, se ns aceitssemos l-las inteiramente. O passado benfico no quando alimenta o ressentimento ou o triunfalismo, mas quando seu gosto amargo nos leva a transformar-nos a ns mesmos.1

    Quando decidi por estudar o impacto da guerra contra o Paraguai na

    Provncia do Cear, ainda cursava a graduao. Um primeiro esboo do que

    viria a ser a proposta de pesquisa para a seleo de mestrado, foi

    desenvolvido em meados de 2000, quando da elaborao de um projeto de

    pesquisa como requisito para concluso de disciplina. Por essa poca j

    desenvolvia atividades de pesquisa, ligadas ao trabalho desenvolvido na

    iniciao cientfica (PIBIC-CNPq). Paralelamente pesquisa principal do

    projeto, coordenado pelo professor Dr. Frederico de Castro Neves, concebia

    meu estudo particular.

    Aps a escolha do tema, procurei levantar a historiografia existente, a

    fim de inteirar-me melhor acerca das questes que estavam sendo colocadas e

    debatidas. Concomitante reviso bibliogrfica, busquei tambm, investigar a

    documentao primria disponvel no Arquivo Pblico do Estado do Cear e os

    jornais cearenses do sculo XIX, disponveis no setor de microfilmagem da

    biblioteca pblica estadual.

    A Guerra do Paraguai, como conhecida no Brasil, ou Guerra da

    Trplice Aliana, como chamada nos pases platinos (Argentina, Uruguai e

    Paraguai), marcou profundamente o processo de formao histrica dos

    pases envolvidos, especialmente Brasil, Paraguai e Argentina. O conflito tido

    1 TODOROV, Tzvetan. O homem desenraizado. Rio de Janeiro/So Paulo: 1999, p.75.

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    como um dos mais sangrentos do sculo XIX e o maior j ocorrido no

    continente sul-americano. O que em princpio se apresentava como uma sria

    desavena diplomtica entre Brasil e Paraguai, rapidamente deteriorou-se para

    combates extremamente sangrentos e em sofrimento para as populaes

    envolvidas.

    No entanto, apesar de seu papel histrico na formao nacional

    brasileira, o volume da produo historiogrfica no Brasil acerca da guerra

    contra o Paraguai bem inferior quando comparado historiografia paraguaia

    e argentina.2

    Uma das primeiras observaes que pude fazer ao longo do processo

    de reviso de literatura e j durante o mestrado, era a forte presena de uma

    longa linhagem historiogrfica preocupada em explicar e compreender as

    origens do conflito. Correndo o risco de incorrer em simplificaes, podemos

    encontrar de forma bastante clara, pelo menos trs grandes momentos da

    historiografia brasileira da guerra, preocupadas especificamente em buscar e

    explicar suas origens e conseqncias.

    Uma boa parte da produo historiogrfica brasileira da guerra centrou-

    se durante muito tempo na narrativa das batalhas, anlise e descrio das

    estratgias militares e diplomticas adotadas, relatos dos feitos militares dos

    comandantes brasileiros, histrias pitorescas da campanha, dentre outros.

    Essa primeira historiografia do conflito foi produzida principalmente por

    historiadores militares que buscavam, na maioria dos casos, exaltar, de forma

    romntica, os feitos patriticos das armas brasileiras, alm de atriburem a

    culpa da guerra aos planos expansionistas e megalmanos de Solano Lpez.

    Tal historiografia, de carter marcadamente oficial, defende a imagem de um

    Solano Lpez ditador e tirano assassino que pretendia transformar o Paraguai

    na principal potncia da Amrica do Sul.3 Nesse sentido, do lado brasileiro, o

    2 Estudiosos dessa guerra como Muniz Bandeira, Ricardo Salles, Francisco Doratioto e Vitor Izecksohn, foram um dos primeiros a detectar essa disparidade. 3 Liliana M. Brezzo chama a ateno para uma singularidade da historiografia da guerra produzida no incio do sculo XX. De acordo com a autora, tanto em los pases vencedores como em el vencido, la Historia de la guerra exhiba uma interpretacin homologada: em todos los casos el acontecimiento se explicaba como uma respuesta a la agresin de Lpez nico responsable y a sus ambiciones desmedidas de liderar la regin. BREZZO, Liliana M. Paz em paz y guerra a la guerra: Una nueva historiografia sobre la guerra de la Triple Alianza? In: Revista Paraguaya de Sociologia. Ao 38, n111/112, p.11-26, (Mayo-Diciembre de 200 1), p.16.

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    seqestro do vapor Marqus de Olinda e a invaso da provncia do Mato

    Grosso pelas tropas de Lpez so descritas como as causas do conflito, ao

    terem exigido do Imprio uma resposta altiva e enrgica diante de tamanha

    covardia e barbaridade. Essa produo expressava certa nsia pela

    elaborao de mitos nacionais, atendo-se mais aos feitos militares dos lderes,

    exemplares valorosos de patriotas e cidados, do que a uma anlise mais

    crtica dos significados da guerra; alm de relegar ao esquecimento a ao e o

    envolvimento de inmeros setores sociais da sociedade brasileira oitocentista

    no esforo de guerra e do seu impacto sobre as mesmas.

    Obviamente que essa nossa generalizao fundamentalmente de

    carter didtico, tendo em vista no ser possvel esgotar todas as

    potencialidades dessa historiografia.4 Contudo, algumas obras de grande

    qualidade, tornaram-se leitura obrigatria para os estudiosos do assunto.

    Destacaramos ento, pela riqueza dos trabalhos, o magno opus de cinco

    volumes do General Tasso Fragoso, Histria da Guerra entre a Trplice Aliana

    e o Paraguai, rico em dados estatsticos, mapas e boa narrativa;

    destacaramos tambm, Um Estadista do Imprio, de Joaquim Nabuco, que

    dedicou parte considervel do livro a um estudo seminal dos significados

    polticos da guerra para o regime monrquico brasileiro, baseando-se nos

    arquivos pessoais de seu pai, Nabuco de Arajo; apesar da forte idealizao,

    inclumos, tambm, os vrios volumes de Os Voluntrios da Ptria na guerra

    do Paraguai, do general Paulo de Queiroz Duarte; dentre outros.

    Um captulo parte da bibliografia disponvel acerca da guerra, so as

    diversas memrias e dirios redigidos por participantes que estiveram no teatro

    de operaes. Tais obras tornaram-se importantes fontes de pesquisa, como

    as Reminiscncias da Campanha do Paraguai, de Dionsio Cerqueira, A

    retirada da Laguna, Dirio do Exrcito (1869-1870) e Memrias, do visconde

    de Taunay, Viagem militar ao Rio Grande do Sul agosto a novembro de

    1865, do Conde dEu. Outras obras de destaque foram escritas por

    4 Um exemplo disso o fato de, ao contrrio da louvao participao do Brasil na guerra, os idelogos positivistas do comeo do sculo XX, ligados Igreja Positivista do Rio de Janeiro, criticavam duramente o papel do Brasil no conflito; fazendo, inclusive, uma avaliao extremamente depreciativa do episdio no processo de formao nacional brasileiro. Um maior detalhamento dessa discusso pode ser encontrado em ALAMBERT, Francisco. O Brasil no espelho do Paraguai. In: MOTA, Carlos Guilherme (Org.). Viagem Incompleta. A experincia brasileira (1500-2000). Formao: histrias. So Paulo: Editora SENAC, 2000, pp.313-319.

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    observadores estrangeiros que acompanharam de perto o movimento das

    tropas dos Exrcitos envolvidos. Podemos citar como representativas dessa

    categoria Histria da guerra do Paraguai, de Max Von Versen, Cartas dos

    campos de batalha do Paraguai, de sir Richard Burton e A Guerra do Paraguai,

    de George Thompson.

    Uma outra historiografia da guerra, tambm denominada de revisionista,

    surgiu em fins dos anos de 1950, ganhando enorme envergadura e aceitao

    acadmica na dcada de 70. Dentro dessa historiografia revisionista, podemos

    encontrar pelo menos duas teses complementares: sendo a primeira, a idia

    de que o Paraguai pr-guerra de Solano Lpez seria o herdeiro da luta pela

    causa da unidade hispano-americana em continuao s lutas de

    independncia contra o domnio espanhol, como tambm o precursor de uma

    via distinta de desenvolvimento scio econmico;5 e a segunda tese

    compartilhada por esses trabalhos, a de que a guerra foi causada por uma

    maquinao do imperialismo britnico contra um suposto desenvolvimento

    autnomo paraguaio.6

    A tese da interveno britnica7 ganhou no Brasil um papel de maior

    destaque, tendo, inclusive, grande presena nos nossos livros didticos.

    Segundo essa interpretao, Brasil, Argentina e Uruguai teriam sido

    manipulados e levados a uma guerra de destruio contra o Paraguai. De

    acordo com Doratitoto,

    a fantasia revisionista apresenta o Paraguai do pr-guerra como um pas progressista, quase um protocomunismo de Estado que teria proporcionado a modernizao do pas e o bem-estar de sua populao. A Guerra do Paraguai, para esse revisionismo, resultou do confronto entre duas estratgias premeditadas de crescimento econmico: a paraguaia, sem dependncia dos centros capitalistas, e a estratgia da Argentina e do Brasil, dependente do ingresso de recursos financeiros e tecnolgicos estrangeiros. Para o

    5 SALLES, Ricardo. Guerra do Paraguai: escravido e cidadania na formao do Exrcito. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990, p.20. 6 Para uma anlise mais detalhada dessa historiografia ver: SALLES, Ricardo. Op. Cit. Especialmente pp.18-37. 7 Uma defesa dessa tese pode ser encontrada em AMAYO, Enrique. A Guerra do Paraguai em perspectiva histrica. In: Estudos Avanados (USP). So Paulo, v.9, n.24, mai-ago 1995. A crtica pode ser vista em BETHELL, Leslie. O imperialismo britnico e a Guerra do Paraguai. In: Estudos Avanados (USP). So Paulo, v.9, n.24, mai-ago 1995. O prefcio segunda edio do livro de Moniz Bandeira tambm, O Expansionismo Brasileiro e a formao dos Estados na Bacia do Prata: da colonizao Guerra da Trplice Aliana. 3ed. Rio de Janeiro: Revan; Braslia: Editora Universidade de Braslia, 1998.

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    revisionismo esses dois pases teriam sido manipulados por interesses da Gr-Bretanha para aniquilar o desenvolvimento autnomo paraguaio, abrindo um novo mercado consumidor para os produtos britnicos e fornecedor de algodo para as indstrias inglesas.8

    Essa tese est presente de forma marcante nos trabalhos do historiador

    argentino, radicado no Brasil h vrios anos, Leon Pomer, sendo sua principal

    obra La Guerra del Paraguay Gran Negcio!, traduzida no Brasil em 1980

    com o ttulo de A Guerra do Paraguai grande negcio!. Outros dois autores

    que tambm contriburam bastante na divulgao dessa interpretao foram o

    uruguaio Eduardo Galeano, com o livro As Veias Abertas da Amrica Latina

    (1978), e o jornalista brasileiro Jlio Jos Chiavenatto, com o seu Genocdio

    Americano A Guerra do Paraguai (1979). No Paraguai, a historiografia

    revisionista acabou por reformular a imagem de Solano Lopez, que passou de

    tirano a lder antiimperialista e de agressor a vtima,9 reforando ainda mais o

    movimento poltico paraguaio denominado de Lopizmo, que desde 1920

    buscava construir um ideal nacionalista e herico para o pas em torno da

    figura de Lopez.10

    Dessa maneira, comentando a historiografia da guerra at o incio da

    dcada de 1980, Ricardo Salles colocava que:

    Se os estudos tradicionais sobre a guerra pecam por um excessivo oficialismo e factualismo, por sua vez, as verses revisionistas da histria do conflito tendem a simplificaes e nem sempre esto embasadas em investigaes mais profundas. Os acontecimentos so muitas vezes adaptados a esquemas interpretativos extremamente genricos e outros tantos fatos so deixados de lado.11

    O que o autor chamou de esquemas interpretativos extremamente

    genricos, diz respeito principalmente influncia da Teoria da Dependncia

    sobre a interpretao histrica da guerra contra o Paraguai produzida pela

    historiografia dos anos 60 e 70. Doratitoto tambm compartilha da mesma 8 DORATIOTO, Francisco F. M. A construo de um mito. In: Jornal Folha de So Paulo, domingo, 9 de novembro de 1997, Caderno Mais!9 Id. Ibdem. 10 Podemos encontrar uma boa anlise desse processo, feito a partir da historiografia latino-americana e da dinmica poltica paraguaia, no excelente artigo de Liliana M. Brezzo. Op. Cit. 11 SALLES, Ricardo. Guerra do Paraguai: escravido e cidadania na formao do Exrcito. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990, pp.15-16.

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    idia, entendendo que os trabalhos revisionistas sofreram forte influncia do

    contexto histrico em que foram escritos. Segundo o mesmo,

    As dcadas de 1960 e 1970 caracterizaram-se, na Amrica do Sul, por governos militares. Uma forma de combater essas ditaduras era minar suas bases ideolgicas. Da, em grande parte, a acolhida acrtica e o sucesso em meios intelectuais do revisionismo sobre a Guerra do Paraguai: por atacar o pensamento liberal; por denunciar a ao imperialista e por criticar o desempenho de chefes militares aliados, quando um deles, Bartolom Mitre, foi expoente do liberalismo argentino, e, o outro, Caxias, tornou-se patrono do Exrcito brasileiro. impossvel, tambm, no notar, nas entrelinhas do revisionismo, a construo de um paralelismo entre a Cuba socialista, isolada no continente americano e hostilizada pelos Estados Unidos, e a apresentao de um Paraguai de ditaduras progressistas e vtima da ento nao mais poderosa do planeta, a Gr-bretanha.12

    Entretanto, apesar de sua forte difuso e influncia, a tese do

    imperialismo britnico como o causador da guerra comeou a ser revista e

    duramente criticada na dcada de 80. No Brasil, os primeiros estudos que

    buscaram demonstrar e ponderar a inconsistncia dos argumentos centrais da

    tese, foram os de Amado Luiz Cervo, no livro Histria da Poltica Exterior do

    Brasil, e Moniz Bandeira, com a obra O Expansionismo Brasileiro. Assim como

    Cervo, Bandeira tambm defendia que a poltica exterior do Imprio brasileiro

    no se restringira aos ditames dos interesses britnicos. Para Bandeira, a

    poltica continental do Brasil oscilou constantemente, em momentos distintos, 12 DORATIOTO, Francisco F. M. Op. Cit. Da mesma opinio Liliana Brezzo: Hay que admitir que culpar a Gran Bretaa por el inicio del conflicto satisfaca en las dcadas de 1960 a 1980 a distintos intereses polticos: para algunos se trataba de mostrar la posibilidad de construir en Amrica Latina un modelo de desenvolvimiento econmico no dependiente, apuntando como un precedente el estado paraguayo de Lpez. Acabarn, por lo tanto, por negar esa posibilidad en la medida en que presentaran a la potencia central Gran Bretaa- como omnipotente, capaz de imponer y disponer de los pases perifricos, de manera de destruir cualquier tentativa de no-dependencia. Por su parte la visin maniquesta y mistificadora de Solano Lpez tambin interesaba al oficialismo paraguayo de la dictadura de Stroessner. Aquel apareca en condicin de vctima de una conspiracin internacional que prefiri morir a ceder a presiones externas. Por otra parte, estos presupuestos y conclusiones sufrirn una fuerte influencia del contexto histrico en que fueron escritos. Las dcadas de 1960-1970 se caracterizarn en Amrica del Sur por gobiernos militares. Una forma de luchar contra el autoritarismo era minando sus bases ideolgicas. De ah, en gran parte, la acogida acrtica y el xito en los medios intelectuales del revisionismo sobre la guerra del Paraguay: por atacar el pensamiento liberal, por denunciar la accin imperialista o por criticar el desempeo de los jefes militares aliados. Si se profundiza un poco en estas interpretaciones, se notar tambin la construccin de un paralelismo entre la Cuba socialista, aislada del continente americano y hostilizada por Estados Unidos y la presentacin de un Paraguay de dictaduras progresistas y vctima de la potencia ms poderosa del planeta, Gran Bretaa. BREZZO, Liliana M. Op. Cit. pp.23-24.

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    entre uma orientao que respondia a estmulos de grandes naes industriais

    e iniciativas de interesse nacional.13

    Alm de Cervo e Bandeira, vrios outros historiadores, brasileiros,

    paraguaios, argentinos, europeus e americanos, a partir de pesquisas de

    flego, desencadearam, desde meados dos anos 80, severas crticas s teses

    revisionistas.14 No nosso objetivo nos aprofundarmos sobre os argumentos

    dessa crtica, por entendermos ser uma discusso bastante contemplada por

    uma vasta historiografia. A ttulo apenas de referncia, as pesquisas tm

    demonstrado: a) a forte presena de investimentos estrangeiros, inclusive

    britnicos, no processo de modernizao levado a cabo por Solano Lopez no

    perodo pr-guerra; b) as tensas relaes entre Brasil e Inglaterra ao longo do

    sculo XIX, sendo o caso mais emblemtico a ruptura das relaes

    diplomticas entre os dois pases em 1863 (Questo Christie); c) a

    insignificncia do mercado consumidor paraguaio e da produo algodoeira

    para que pudesse despertar uma nsia de lucro dos capitalistas ingleses; d)

    as peculiaridades da formao histrica do Paraguai para se entender a

    singularidade de sua estrutura fundiria e nvel cultural; e) a populao

    paraguaia era bem inferior quela oficialmente registrada pelos censos oficiais;

    f) a herana herdada pelos pases da regio da Bacia do Prata, das tenses

    oriundas ainda das disputas coloniais de Portugal e Espanha; e por fim, as

    pesquisas empricas no encontraram, sequer, indcios, referncias ou

    pronunciamentos, que pudessem levar a crer em uma maquinao britnica

    por trs dos pases envolvidos quanto deciso de eclodir a guerra.

    A historiografia da dcada de 90 veio consolidar as crticas s teses

    revisionistas. Um exemplo disso foi o colquio internacional sobre o conflito,

    Guerra do Paraguai: 130 anos depois, ocorrido no Brasil em 1995, que

    buscou discutir a fundo as teses revisionistas da guerra, assim como teses

    alternativas e outras dimenses da guerra negligenciadas pela historiografia

    13 BANDEIRA, L. A. Moniz. O Expansionismo Brasileiro e a formao dos Estados na Bacia do Prata: da colonizao Guerra da Trplice Aliana. 3ed. Rio de Janeiro: Revan; Braslia: Editora Universidade de Braslia, 1998, p.17. 14 Ricardo Salles foi o primeiro no Brasil a sistematizar, em 1990, a genealogia histrica dessa tese e a elencar uma srie de crticas e questionamentos ao papel determinante do imperialismo britnico como detonador do conflito.

  • 15

    brasileira e latino-americana.15 As palestras do evento deram origem ao livro

    organizado por Maria Eduarda Castro Magalhes Marques, Guerra do

    Paraguai: 130 anos depois, publicado em 1995 pela Relum Dumar. Nesse

    livro podemos encontrar um balano significativo da produo historiogrfica

    brasileira da guerra.16

    Dessa maneira, tem prevalecido na historiografia brasileira mais

    recente, a tese de que as origens do conflito encontram-se no prprio processo

    histrico regional. Ao contrrio da corrente revisionista, esta outra perspectiva

    apia-se em slidas pesquisas histricas, presente nos trabalhos de Alfredo da

    Mota Menezes, Andr Toral, Ricardo Salles, Vitor Izecsohn e Francisco

    Doratioto.17 Desses autores, o que tem ganhado maior relevo e divulgao

    Doratioto, que em 2002 publicou um volumoso trabalho intitulado Maldita

    Guerra: nova histria da Guerra do Paraguai, onde, alm de reavaliar, com

    base em vasta bibliografia e pesquisa documental, uma srie de eventos

    ligados dinmica e significados histricos do conflito, procura embasar

    solidamente que a guerra resultou do processo de construo e consolidao

    dos Estados nacionais no Rio da Prata.

    A Guerra do Paraguai foi fruto das contradies platinas, tendo como razo ltima a consolidao dos Estados nacionais na regio. Essas contradies se cristalizaram em torno da Guerra Civil uruguaia, iniciada com o apoio do governo argentino aos sublevados, na qual o Brasil interveio e o Paraguai tambm. Contudo, isso no significa que o conflito fosse a nica sada para o difcil quadro regional. A guerra era uma das opes possveis, que acabou por se concretizar, uma vez que interessava a todos os Estados envolvidos. Seus governantes, tendo por base informaes parciais ou falsas do contexto platino e do inimigo potencial, anteviram um conflito rpido, no qual seus objetivos seriam alcanados com menor custo possvel. Aqui no h bandidos ou mocinhos, como quer o revisionismo infantil, mas sim interesses. A guerra era vista por diferentes pticas: para Solano Lpez era a oportunidade de colocar seu pas como potncia regional e ter acesso ao mar pelo porto de Montevidu, graas a uma aliana com os blancos uruguaios e os federalistas argentinos, representados por Urquiza; para Bartolom Mitre era a forma de consolidar o Estado centralizado argentino, eliminando os apoios externos aos federalistas, proporcionado pelos blancos e por Solano Lpez; para os blancos, o apoio militar paraguaio contra

    15 Para um balano da historiografia latino-americana da guerra contra o Paraguai, ver os artigos de Liliana M. Brezzo. 16 Ver tambm o caderno Mais!, do Jornal Folha de So Paulo, de 9 de novembro de 1995, dedicado exclusivamente ao conflito com o Paraguai.17 A referncia das obras, encontra-se na bibliografia da dissertao

  • 16

    argentinos e brasileiros viabilizaria impedir que seus dois vizinhos continuassem a intervir no Uruguai; para o Imprio, a guerra contra o Paraguai no era esperada, nem desejada, mas iniciada, pensou-se que a vitria brasileira seria rpida e poria fim ao litgio fronteirio entre os dois pases e s ameaas livre navegao, e permitiria depor Solano Lpez.18

    Contudo, desde o incio da dcada de 90 que alguns pesquisadores se

    ressentiam tanto da necessidade de um processo de ampliao dos horizontes

    de pesquisa acerca do conflito, quanto da construo de um outro olhar sobre

    a histria militar brasileira. Ricardo Salles, em um livro inaugural na retomada,

    no Brasil, dos estudos da guerra contra o Paraguai, comentando as mudanas

    temticas e terico-metolgicas na historiografia dos anos 80, colocava que:

    Pouco a pouco (...) a historiografia moderna descobre novos temas do mundo do trabalho e do cotidiano e coloca sob novo prisma episdios s conhecidos por via de sua carapaa oficial.

    Muito resta ainda por ser feito. H reas, temas, acontecimentos e episdios inteiros que permanecem obscuros.

    A histria militar um desses temas. No de estranhar que os historiadores modernos dem mais ateno ao papel dos militares na histria poltica do Brasil do que histria militar propriamente dita e relao desta com a vida de nosso povo. A histria militar patrimnio da memria oficial ou ento tema tcnico da corporao militar, igualmente prdiga em oficialismo e elogios. Tanto os conflitos internos como as guerras externas so pouco conhecidos, e quase nada se sabe sobre como esses acontecimentos foram vivenciados e protagonizados por soldados e pela massa da populao.19

    Outro importante pesquisador da guerra do Paraguai, Vitor Izecsohn,

    em sua tese de mestrado de 1992, publicada em 1997, chamava a ateno

    para a quase inexistncia de pesquisas que tivessem buscado avaliar o

    impacto da guerra sobre a sociedade brasileira.

    Pouco dito, por exemplo, sobre as dimenses patriticas da mobilizao na sociedade, ou mesmo sobre como essa guerra afetou a vida cotidiana de parcelas significativas da populao, incorporadas ao Exrcito atravs do recrutamento.20

    18 DORATIOTO, Francisco F. M. Maldita Guerra. So Paulo: Cia. das Letras, 2002, p.23. 19 SALLES, Ricardo. Op. Cit. pp.1-2. 20 IZECKSOHN, Vitor. O cerne da discrdia: a guerra do Paraguai e o ncleo profissional do Exrcito brasileiro. Rio de Janeiro: BIBLIEX, 1997, p.22.

  • 17

    Nos ltimos 20 anos, a historiografia brasileira tem deixado mais de lado

    o debate em torno das origens do conflito com o Paraguai e se dedicado mais

    detidamente ao estudo de outras dimenses da guerra. A dcada de 90

    assistiu a um grande crescimento de pesquisas histricas que tm buscado,

    por exemplo, estudar e compreender: as prticas do recrutamento militar

    perpetradas durante a guerra, assim como suas origens histricas;21 a

    utilizao, pelo Exrcito e Marinha, de escravos libertos e foragidos como

    soldados e marinheiros, e os impactos sociais, culturais e institucionais dessa

    prtica sobre a dinmica da sociedade brasileira ps-guerra;22 a influncia do

    conflito na conformao da ao poltica brasileira na Amrica Latina e sobre a

    constituio de uma cultura brasileira;23 o papel paradigmtico do evento na

    inveno da nao;24 o processo de mobilizao da sociedade brasileira para

    o esforo de guerra, centrando-se no apenas nas provncias do sul e sudeste,

    mas abrangendo a anlise para as provncias do norte (Pernambuco, Cear,

    Maranho, Par, Paraba, Piau etc.); dentre outros.25 No caso do Cear,

    temos visto, mais recentemente, o surgimento de pesquisas importantes em

    torno do impacto da guerra em nvel local. Com base em documentao

    indita, tais estudos, a partir de diferentes ngulos e olhares, tm buscado

    refletir acerca das mltiplas experincias sociais vividas por diversos

    segmentos sociais da sociedade cearense oitocentista ao tempo do conflito

    contra o Paraguai.26

    21 Principalmente os trabalhos de Hendrik Kraay e Vitor Izecksohn. Chamaria aqui a ateno para o artigo de Renato Pinto Venncio, Os aprendizes da guerra, em que o historiador trata do recrutamento de menores para a Armada Imperial durante o conflito. 22 Especialmente os estudos de Ricardo Salles, lvaro Pereira do Nascimento, Jorge Prata de Sousa e Hendrik Kraay. 23 Consultar a tese de doutorado defendida na USP de Francisco Alambert. 24 A tese de Alambert trata um pouco dessa questo. Jos Murilo de Carvalho tambm tem discutido essa dimenso da guerra, ainda que no sistematicamente. Apesar de centrar-se em aspectos no ligados ao conflito, o artigo Construindo uma nao no Brasil do sculo XIX, do brasilianista Richard Graham, nos oferece uma srie de indicaes para uma reflexo acerca da construo nacional brasileira. 25 Liliana M. Brezzo tem desenvolvido um intenso trabalho de pesquisa e anlise da historiografia da guerra do Paraguai produzida nos ltimos anos. Entretanto, suas anlises tm se centrado na produo argentina e paraguaia, com esparsas referncias brasileira. No nosso caso, apesar da publicao em 1995 do livro Guerra do Paraguai: 130 anos depois, no temos assistido a nenhum esforo, ainda, na sistematizao e anlise mais detalhada da historiografia brasileira mais recente que tem estudado essas diversas dimenses do conflito da qual fizemos referncia. 26 Alm da dissertao de Xislei Arajo Ramos, nosso estudo tambm caminhou nesse sentido, alm de um outro trabalho em andamento, que trata principalmente da questo dos Voluntrios da Ptria do Cear.

  • 18

    Boa parte dessa historiografia fruto, tambm, do surgimento de

    pesquisas no campo de uma nova histria militar brasileira.27 De fato, nos

    ltimos anos tm-se desenvolvido uma intensa produo acadmica de

    historiadores, cientistas polticos, socilogos e antroplogos, em torno de

    questes relacionadas histria militar brasileira . Pesquisadores especialistas

    no tema apresentam a dcada de 90 como um momento crucial na retomada

    pela historiografia brasileira dos estudos militares.

    Por volta de 1990, uma confluncia frutfera de democratizao e maior influncia da histria social, da antropologia e mesmo das perspectivas ps-modernas sobre os estudos militares propiciou a reviso da histria militar (...). O fim do regime militar removeu alguns dos estigmas associados histria militar que limitavam a pesquisa acadmica e permitiu o acesso a fontes militares at ento inacessveis.28

    Essa nova historiografia militar brasileira desviou o foco de pesquisa das

    temticas mestras abordadas pela histria militar tradicional a saber, o

    estudo das batalhas, tticas e principais figuras militares, para a questo da

    interao entre Foras Armadas e sociedade.

    Essas pesquisas estudam a origem social, os vnculos de sociabilidade, as operaes formais e informais das hierarquias, os sistemas de progresso e punio operantes nos quartis e destacamentos espalhados pelo pas. Estudam tambm as ocasies em que as Foras Armadas entraram em combate: as poucas guerras externas, a participao no processo de unificao territorial, a formao dos oficiais e os episdios de violncia coletiva, especialmente as revoltas. Finalmente, se debruam sobre questes de gnero, incluindo a identidade masculina, o homossexualismo e a participao de mulheres nos contingentes.29

    Nessa perspectiva, os estudos dos aspectos militares de nossa

    formao histrica tm se configurado em uma excelente tica de anlise para

    importantes reflexes acerca da dinmica social brasileira e de suas

    instituies. Quanto aos aspectos da sociabilidade, valores, convenes

    sociais e polticas, relaes de poder, por exemplo, os estudos sobre o

    27 Para um balano dessa historiografia, ver: CASTRO, Celso; IZECKSOHN, Vitor; KRAAY, Hendrik. (Orgs.) Nova Histria Militar Brasileira. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004. 28 CASTRO, Celso; IZECKSOHN, Vitor; KRAAY, Hendrik. (Orgs.) Nova Histria Militar Brasileira. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004, p.23. 29 CASTRO, Celso; IZECKSOHN, Vitor; KRAAY, Hendrik. Op. Cit. pp.12-13.

  • 19

    recrutamento militar no Brasil, nos oferecem importantes elementos acerca de

    um melhor entendimento dessas dimenses da sociedade brasileira colonial e

    imperial.30 No campo da Cincia Poltica e da Sociologia, o estudo das prticas

    do recrutamento militar no Brasil, tornaram-se campos frutferos nas pesquisas

    sobre a formao e organizao do Estado brasileiro, especialmente sua

    burocracia, suas estruturas de funcionamento e organizao e suas relaes

    com a sociedade.31 Assim, essa nova historiografia militar, fortemente

    influenciada pela Histria Social e pela Antropologia, com uma abordagem

    mais centrada na relao das instituies militares com a sociedade e vice-

    versa, tem propiciado um rico debate e uma intensa produo acadmica. A

    pesquisa que ora apresentamos pde desenvolver um intenso dilogo com

    essa nova historiografia militar, na medida em que compartilhvamos muitas

    das inquietaes levantadas por essa produo. Ela tambm foi de suma

    importncia, pelo fato de ter nos oferecido um importante suporte terico-

    metodolgico, para nosso processo de investigao.

    Dito isso, de uma forma geral, o nosso estudo objetivou refletir a

    respeito do processo de mobilizao militar para a guerra contra o Paraguai na

    provncia cearense e os impactos sociais desse esforo blico sobre parte

    significativa da populao do Cear oitocentista.

    A provncia do Cear enviou um contingente de soldados estimado em

    5769 homens. Trata-se de um nmero bastante expressivo, especialmente

    quando comparado com outras provncias do Imprio bem mais populosas,

    mas que enviaram contingentes menores. O processo de arregimentao de

    soldados no Ceara foi extremamente traumtico e conflituoso. O esforo de

    guerra demandou uma mobilizao militar, at antes nunca assistida no Brasil.

    A necessidade de se angariar um grande nmero de soldados, a fim de

    30 Sobre essa questo ver os trabalhos de Hendrik Kraay, lvaro Pereira do Nascimento, Peter M. Beattie, Joan E. Meznar, Christiane F. Pagano de Mello, Shirley M. Silva, dentre outros. 31 Nessa rea, destacamos os estudos de Fbio Farias Mendes, Vitor Izecksohn e Wilma Peres Costa. No devemos nos esquecer tambm, de um trabalho inaugural nesse aspecto, o de Fernando Uricoechea, O Minotauro Imperial, em que desenvolvida uma excelente anlise sociolgica da burocratizao do Estado brasileiro no sculo XIX, a partir de um estudo histrico da Guarda Nacional. Ainda nesse quesito, h uma outra produo, tambm histrica e sociolgica, que buscou investigar a questo do envolvimento do Exrcito na poltica brasileira. Sobre essa produo destacamos os trabalhos de John Schulz, Nelson Wernek Sodr, Hlio Jaguaribe, Alfred Stepan e Edmundo Campos Coelho. Para uma avaliao crtica desses estudos, ver o artigo de Antonio Carlos Peixoto, Exrcito e Poltica no Brasil, e tambm o livro de Adriana Barreto de Souza, O Exrcito na consolidao do Imprio.

  • 20

    organizar uma fora militar que se encontrava em uma situao bastante difcil

    pois o Exrcito brasileiro at o incio da guerra contava com um efetivo

    diminuto, disperso e com formas instveis de recrutamento , implicou na

    ampliao quase irrestrita do recrutamento. Essa questo foi uma das pedras

    de toque do esforo de guerra, pois ao no contar com um exrcito profissional

    e nacionalmente organizado e estruturado32, o Estado imperial passou a

    interferir em zonas delicadas de poder, ou seja, ampliar o recrutamento

    significou adentrar nas reas de influncia e domnio dos potentados locais.

    Nesse sentido, o sucesso do esforo de guerra exigia uma complexa

    negociao entre as partes, o que no ocorria necessariamente de forma

    pacfica. Alm disso, o estigma social historicamente construdo no Brasil em

    torno do servio das armas, produzia na sociedade uma aguerrida ojeriza ao

    engajamento no esforo de guerra. Entretanto, mesmo nesse quadro hostil, o

    primeiro ano da guerra assistiu a um grande movimento de voluntariado com a

    formao de vrios batalhes de Voluntrios da Ptria no pas, fato tambm

    observado na provncia cearense. Contudo, a guerra durou mais de cinco

    anos. Se no incio das hostilidades, pelas circunstncias singulares postas

    (presena de tropas estrangeiras em territrio brasileiro), foi possvel a

    existncia de fortes manifestaes populares de voluntariado, o mesmo no

    ocorreu nos anos seguintes; pelo contrrio, houve uma crescente resistncia

    32 A ausncia de um Exrcito profissional no Brasil Imprio o que nos parece ser uma das questes primordiais para compreendermos muitos dos dilemas e impasses enfrentados durante o esforo de guerra , tem sido um tema pouco visitado pela historiografia. Acerca dessa discusso, Wilma Peres Costa desenvolveu uma importante reflexo sobre o tema em seu livro A Espada de Dmocles (Ver especialmente o captulo 1 e ver tambm o artigo A Guerra do Paraguai e a problemtica militar no Imprio). Ao refletir sobre o papel das foras armadas profissionais, particularmente o Exrcito brasileiro, na crise e derrocada final do Estado Imperial, Costa procurou explicitar as fortes resistncias colocadas pela ordem escravista contra a constituio de um monoplio estatal da violncia por meio de uma fora armada profissional, o que implicava em um armamento do Estado e o conseqente desarmamento da sociedade. Segundo a autora, alguns aspectos foram determinantes enquanto impedimentos para a constituio do monoplio da violncia pelo Estado imperial: a) a ausncia de uma guerra de independncia que tivesse sido capaz de revolucionar as estruturas militares herdadas do perodo colonial, ou seja, uma independncia capaz de gerar a constituio de um exrcito nacional; b) o estreitamento da base de recrutamento, tendo em vista que o escravo no era por definio recrutvel; c) a dominao e coero privada de largos contingentes de homens livres para a manuteno da ordem no interior dos domnios fundirios dos potentados locais; d) a manuteno de uma fora militar patrimonial, a Guarda Nacional, que apesar de subordinada aos sabores partidrios do centro poltico, permanecia sob controle privado na esfera local, impedindo a concentrao do poder de coero nas mos do Estado; e) a no participao do senhoriato escravista no exrcito de linha, concentrando-se, por exigncia das formas de dominao, no exerccio do poder em seus domnios.

  • 21

    ao recrutamento, principalmente entre os anos de 1866-1868, perodo tambm

    de grandes ondas de arregimentao.

    A resistncia ao recrutamento se deu, sobretudo, de duas maneiras: ou

    de forma aberta e violenta ou de forma silenciosa e cotidiana.

    Nos momentos de maior tenso do esforo de guerra, quando se

    aumentava a arregimentao de soldados, o recrutamento acabava por recair

    tanto sobre os vadios, vagabundos e criminosos, quanto sobre a populao

    cearense pobre livre. Nessas circunstncias, um dos principais mecanismos

    sociais de resistncia postos disposio dessa populao sertaneja pobre,

    era se aliar com os notveis locais, a partir de complexas relaes

    paternalistas de subordinao e deferncia, como forma de conseguir proteo

    e segurana.33 Em caso de insucesso dessa aliana, ou do no cumprimento

    dos acordos, o que era na verdade extremamente perigoso para um grande

    proprietrio, especialmente se interpretado como manifestao de fraqueza,

    recorria-se a resistncia aberta e violenta. Normalmente ela se dava na forma

    de luta aguerrida contra as comisses recrutadoras, no arrombamento de

    delegacias e resgate de recrutados e leses fsicas.

    Contudo, uma das formas de resistncia ao recrutamento mais

    utilizadas pela populao sertaneja pobre livre do Cear oitocentista, foram

    aquelas que James Scott chamou de formas cotidianas de resistncia;34 ou

    seja, uma silenciosa guerrilha baseada num conjunto de dissimulaes, falsa

    submisso, sabotagem, incndios, deseres dentre outros. Para Scott, essas

    formas brechtianas de resistncia teriam como caracterstica comum, a

    requisio de pouca ou nenhuma coordenao e planejamento, 33 De acordo com Ramos, as prticas paternalistas dos sertes cearenses caracterizavam-se enquanto prticas porosas que se esgaravam na medida em que os homens pobres livres buscavam alianas com os patres e Estado, passando da condio de homem submisso e deferente para a posio de aliado. Muitas vezes essa condio de aliado permitia ao homem pobre livre exercer autonomia diante de decises inerentes a sua prpria condio de subordinado, podendo resultar em lutas e resistncias contra o poder de mando discricionrio das autoridades locais. Alm disso, (...) essas alianas entre essa complexa rede de relaes patrono-cliente foram a base de sustentao para que as camadas pobres buscassem nas prprias leis institudas pelo governo imperial os seus direitos de cidados (...). Ver RAMOS, Xislei Arajo. Por trs de toda fuga, nem sempre h um crime: O recrutamento a lao e os limites da ordem no Cear (1850-1875). Fortaleza: 2003, 213p. Dissertao (Mestrado em Histria Social) Universidade Federal do Cear, p.11. 34 SCOTT, James C. Formas cotidianas da resistncia camponesa. In: Razes. Campina Grande: UFCG, n 9, pp. 10-31, 2003. Apesar da convergncia de vrios de seus estudos com as temticas levantadas pelas pesquisas em Histria Social no Brasil, ainda um autor pouco conhecido por estas paragens, tendo como nico trabalho traduzido para o portugus o artigo ora citado.

  • 22

    representariam uma forma de auto-ajuda individual e evitariam geralmente

    qualquer tipo de confrontao simblica com a autoridade ou com as normas

    da elite.35 Dessa maneira, as deseres, as fugas para as matas, a

    recorrncia s isenes legais, as auto-mutilaes tornaram-se as armas

    principais daqueles cearenses que buscavam lutar e resistir ao amplo

    movimento de recrutamento militar implementado no s Cear como em

    todas as provncias do imprio.

    Contra esse repdio e resistncia da populao cearense ao servio da

    guerra, que se construir todo um conjunto de argumentos retricos e

    ideolgicos, visando legitimar a causa belli e motivar o engajamento da

    populao no esforo de guerra. No por acaso que diversos historiadores,

    como Jos Murilo de Carvalho, por exemplo, vm chamando a ateno para o

    carter paradigmtico da guerra contra o Paraguai, na gnese, um primeiro

    ensaio, de um discurso oficial patritico e nacionalista no Brasil, mesmo que

    efmero. De fato, durante o esforo de conclamao nacional, termos como

    Nao, Ptria, Honra nacional, Civilizao contra a Barbrie, dentre outros,

    tornaram-se recorrentes nas pginas dos jornais, na retrica oficial e no bico

    da pena da elite letrada. Outro evento de grande destaque desse processo de

    conclamao foi a partida do imperador D. Pedro II para o teatro de operaes.

    A atitude do monarca foi divulgada em verso e prosa. Pelos quatro cantos do

    pas o imperador era apresentado como o Voluntrio nmero um, o rei da

    guerra. Os jornais e revistas ilustradas do imprio divulgavam desenhos e

    imagens do imperador em trajes militares, frente das tropas, socorrendo

    feridos e inspecionando instalaes. De maneira geral, em conjunto, toda a

    retrica de conclamao e as idealizaes acerca da presena de Pedro II na

    zona de guerra, tinham como objetivo primordial evocar a populao para o

    engajamento no esforo de guerra. No caso da atitude do imperador, ela serviu

    para prolongar por alguns meses a onda de voluntariado assistida no ano de

    1865 e agilizar as aes militares que culminaram na expulso das tropas

    paraguaias do Rio Grande do Sul.

    Dessa forma, tomadas essas consideraes, nosso trabalho foi dividido

    em trs captulos.

    35 SCOTT, James C. Op. Cit. p.12.

  • 23

    No primeiro captulo, buscamos primeiramente realizar uma breve

    explanao em torno dos primeiros impactos e recepes do processo inicial

    de mobilizao militar na provncia cearense. Em um segundo momento,

    buscamos desenvolver uma reflexo a respeito do processo de conclamao

    para a guerra contra o Paraguai no Cear. Alm de acompanhar os primeiros

    desdobramentos do esforo blico na provncia, procuramos mais

    detidamente, analisar as formas e argumentos utilizados na convocao para a

    guerra presentes na fala oficial e da elite letrada e na imprensa cearense.

    Tnhamos como horizonte, compreender a funo desse discurso e o porqu

    de sua necessidade to premente, assim como inferir alguns sentidos

    histricos de vrios conceitos manipulados como honra, ptria, nao, e, por

    fim, algumas das imagens construdas em torno da ida de D. Pedro II ao teatro

    de operaes.

    O segundo captulo dedicado, de maneira geral, apreciao e

    discusso do processo de recrutamento militar na provncia, analisando sua

    dinmica, seu significado social e sua ligao com as estruturas de poder,

    formais e informais. Nesse sentido, fez-se necessrio, tambm, refletir a

    partir de uma avaliao histrica , sobre as prticas do recrutamento militar

    no Brasil imperial, a fim de avaliarmos criticamente a percepo que a

    populao tinha do servio das armas, compreender como tal expediente era

    organizado e foi posto em prtica noutros momentos de nossa formao

    histrica e durante a guerra. Feito tais consideraes, buscamos em um

    segundo momento analisar a formao dos contingentes cearenses de

    Voluntrios da Ptria, particularmente durante o primeiro ano da guerra. Por

    fim, examinamos o processo de designao de guardas nacionais para o

    servio da guerra e o recrutamento para o exrcito. Sobre esse ltimo ponto,

    ele configurou-se como um dos momentos mais crticos do processo de

    mobilizao militar, a resistncia dos guardas nacionais contra a designao e

    da populao em geral contra o recrutamento produziu uma das pginas mais

    sangrentas dessa histria.

    O ltimo captulo trata de um tema polmico e praticamente inexplorado

    tanto pela historiografia militar brasileira quanto pela historiografia da guerra do

    Paraguai, a saber, o recrutamento de menores das Companhias de Aprendizes

  • 24

    Marinheiros do imprio para a Marinha durante o conflito.36 No caso especfico

    do recrutamento para a Marinha, esse foi um dos aspectos mais dramticos do

    processo de arregimentao de marinhagem, visando completar os

    contingentes necessrios para tripular os vasos de guerra do Brasil em ao

    no Paraguai. Alm de realizarmos uma anlise do recrutamento para a

    Marinha na provncia, procuramos, com base em uma documentao primria

    e alguns trabalhos historiogrficos, examinar a estrutura, caractersticas e

    funes da Companhia de Aprendizes Marinheiros do Cear e o destacamento

    de seus componentes, abaixo da idade legal, para serem enviados Corte e

    em seguida tripulados nos vasos de guerra.

    Por fim, nas consideraes finais desse nosso trabalho, buscamos

    agregar s nossas reflexes gerais desenvolvidas a partir da pesquisa, uma

    breve meditao filosfica em torno de alguns significados do fenmeno social

    da Guerra e do seu papel na constituio histrica e simblica da experincia

    humana.

    36 A exceo fica por conta do excelente artigo de Renato Pinto Venncio, Os aprendizes da guerra.

  • 25

    Senhores! O Cear em longa distncia do Paraguay, no tem sido indifferente ao reclamo da ptria, que acaba de ser ultrajada pelo prfido selvagem Solano Lpez. Dezenas de bravos cearenses se offereceram espontaneamente ao governo, para marchar com o brioso corpo de 1a linha, cnscios de que, sem honra no existe soberania nacional; porque s nella est consignado o direito de um povo livre, e em sua fora collectiva o fundamento de sua grandesa commum.37

    A guerra com o Paraguai exigiu um esforo de mobilizao material e de

    convocao at antes nunca visto no Brasil. A ausncia de um exrcito

    profissional e estruturado em padres modernos de organizao, mobilizao,

    treinamento e recrutamento, produziu uma situao limite diante de uma

    invaso ao territrio.

    Em todos os conflitos anteriores em que o Imprio esteve envolvido na regio platina, houve sempre uma presena marcante da Guarda Nacional nos efetivos em operao. Os interesses gerais do governo imperial normalmente coincidiram com os interesses dos estancieiros do Rio Grande em relao aos pases limtrofes. Dessa

    37 Discurso proferido pelo Dr. Jos Loureno de Castro e Silva por occasio da reunio popular, em noite do dia 12 de Fevereiro de 1865. Jornal O Cearense, Fortaleza, 16 fev. 1865. Noticirio, p.3.

  • 26

    forma, as foras empregadas provinham da prpria organizao militar local. 38

    As foras disponveis da tropa de primeira linha (Exrcito permanente),

    estimadas entre 16 e 20 mil homens poca, eram insuficientes para as

    necessidades que o conflito exigia. Ao contrrio dos conflitos externos

    anteriores ocorridos naquela regio em que o Imprio esteve envolvido que

    ficavam restritos rea da trplice fronteira entre Brasil, Argentina, Paraguai e

    Uruguai , essa guerra se distinguiu por algumas caractersticas especiais:

    primeiro, pela magnitude das foras mobilizadas pelo inimigo39; segundo, pelo

    fato de o pas ter tido seu territrio invadido por foras estrangeiras e o quase

    que completo desconhecimento por parte dos comandos militares brasileiros no

    que diz respeito capacidade de combate das foras paraguaias; e por fim, a

    ausncia de mapas e informaes precisas acerca do terreno e geografia das

    reas palco das aes militares defensivas e ofensivas.

    Estudos mais recentes, baseados em informaes mais ponderadas e

    maturadas, calculam que o Brasil mobilizou para os quase seis anos de guerra

    (12 de Novembro de 1864 at 3 de Maro de 1870), cerca de 139 mil homens.

    Quanto s baixas produzidas nas foras brasileiras, elas so estimadas em

    torno de 50 mil mortos. Apesar das polmicas em torno da fixao e

    determinao objetiva e real desses nmeros40, eles nos do uma boa amostra

    e parmetro de comparao quanto extenso, mortandade e violncia dessa

    guerra que marca o processo final de conformao das fronteiras dos pases

    envolvidos e da dinmica do poder geopoltico na regio do Prata, com

    predominncia dos interesses brasileiros e argentinos; assim como, o incio do

    fim do regime monrquico no Brasil conforme a interpretao clssica de

    Joaquim Nabuco em relao ao episdio41 diante das contradies sociais,

    econmicas e polticas que a guerra desnudou ou se no, pelo menos as

    deixou mais expostas.

    38 SALLES, Ricardo. Guerra do Paraguai: escravido e cidadania na Formao do Exrcito. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980, p. 56. 39 As foras no Paraguai, alcanavam 64 mil (soldados), afora uma reserva de veteranos, avaliada em 28 mil. SOUZA JNIOR, A. Guerra do Paraguai. In: HOLANDA, S. B. de. (Dir.) Histria Geral da Civilizao Brasileira. 4ed. So Paulo: Civ. Brasileira, 1984. Tomo II. V4. p.301. 40 Sobre essa questo ver. DORATIOTO, Francisco F. M. Maldita Guerra. So Paulo: Cia. das Letras, 2002, pp. 456-470. 41 Ver NABUCO, Joaquim. Um Estadista do Imprio. So Paulo: Cia. Editora Nacional, 1936.

  • 27

    Apesar de toda ojeriza e depreciao que circundava a imagem do

    servio das armas no Brasil, o perodo inicial da guerra foi marcado por uma

    grande comoo social de abrangncia em escala nacional. Tal situao era

    motivada principalmente pela invaso paraguaia da provncia do Mato Grosso,

    o que marcou o incio efetivo das hostilidades armadas.

    Durante essa fase de operaes, o entusiasmo dos voluntrios impressionou as autoridades, muitas delas acostumadas a lidar com populaes extremamente resistentes a qualquer forma de recrutamento. Parte da motivao vinha das caractersticas da campanha. Afinal, a invaso do territrio brasileiro, sem uma declarao de guerra, gerou revolta e alimentou demonstraes patriticas em muitas regies do Imprio. Chama a ateno apenas o fato de que muitas dessas regies tivessem pouco ou nenhum contato com os problemas platinos.42

    De fato a Provncia do Cear se apresentava como uma dessas regies

    de pouco contato com a regio diretamente envolvida nas hostilidades e

    mesmo com as tenses da regio do Prata. Entretanto, essa distncia, que

    teoricamente atrapalharia o esforo de mobilizao, acabou se tornando um

    ponto extremamente explorado por poetas, polticos e figuras ilustres locais que

    a partir de seus dotes literrios chamavam a ateno justamente para este fato

    como elemento de distino e motivao do cearense para empunhar armas

    em defesa do sagrado solo ptrio. Em uma dessas poesias podemos

    encontrar:

    (...) E se a ptria o socorro nos pede, porque nos cearenses confia, Nesses filhos distinctos e honrados Em quem nunca se viu covardia.

    Nossos caros irmos l do Sul Denodados e fortes guerreiros J no campo da guerra mostraram A bravura e valor Brasileiros.43

    (...)

    Dos quatro cantos do pas ecoavam e se noticiavam oferecimentos

    patriticos, manifestaes pblicas de desagravo honra nacional e

    42 IZECKSOHN, Vitor. Resistncia ao recrutamento para o Exrcito durante as guerras Civil e do Paraguai. Brasil e Estados Unidos na dcada de 1860. In: Estudos Histricos, Rio de Janeiro, n.27, 2001, p.87. 43 Jornal O Cearense, Fortaleza, 16 fev. 1865: Cearenses! s armas! Poesia de M. E. C. Nogueira, p.4.

  • 28

    conclamaes acaloradas ao esprito patritico e guerreiro do brasileiro em

    defesa da nao. Poesias exaltando a figura do Voluntrio da Ptria e do

    soldado nacional eram produzidas e publicadas em jornais que em seguida

    corriam de boca em boca pelas praas, reunies pblicas e particulares.

    O Governo imperial, ao realizar e incentivar tais manifestaes, seja nos

    centros urbanos ou nos recnditos do pas, buscava especialmente nesse

    momento inicial e bastante favorvel aos objetivos do Imprio realizar um

    esforo concentrado de coligar a populao em torno de uma cruzada

    patritica. Buscava com isso, empenhar-se em recorrer ao esprito de luta,

    coragem e ao devotamento de todos, concitando-os a combater em defesa da

    Ptria ultrajada e, honrosamente, entregar-se ao sacrifcio extremo, se preciso

    fosse.44

    A notcia da declarao de guerra do Paraguai contra o Brasil chegou

    provncia do Cear em 28 de Janeiro de 1865. Israel Bezerra de Menezes

    tido como o primeiro Voluntrio da Ptria do Cear afirmava que:

    No dia 28 de Janeiro de 1865, por ocasio da chegada do paquete do Sul, e quando procurava na repartio dos Correios, a correspondncia do meu pai, um indivduo, de cujo nome j no me recordo, recebia o Jornal do Comrcio e ali mesmo o lia, e com surpresa de todos disse que o Paraguai declarara guerra ao Brasil, e que o governo apelava para o patriotismo de seus filhos.45

    O mesmo relata ainda que no instante seguinte ao conhecimento de tal

    fato, s 12 horas do dia mais ou menos, se apresentou no Palcio do

    Presidente informando-o do desejo de seguir como Voluntrio da Ptria para o

    front de batalha, sendo essa atitude recebida com satisfao pelo Presidente

    que no mesmo instante lhe solicitou o aliciamento de o maior nmero possvel

    de voluntrios. Ao fim do dia, aps uma passeata realizada pelas ruas da

    cidade de Fortaleza, contabilizava-se um nmero de 53 voluntrios alistados.46

    Dentro desse ambiente inicial de euforia e comoo, rapidamente

    alistara-se um grande nmero de voluntrios. Em 6 de Abril de 1865,

    44 CUNHA, Marco Antonio. A Chama da Nacionalidade: ecos da guerra do Paraguai. Rio de Janeiro: BIBLIEX, 2000, p35. 45 SOUZA, Euzbio. SOUZA, Euzbio. Histria Militar do Cear. Fortaleza: Editora do Instituto do Cear, 1950. (Col. Instituto do Cear, monografia 15), p.133. 46 Id. Ibidem, p.124.

  • 29

    embarcaram com destino ao Rio de Janeiro o 1 Corpo de Voluntrios da Ptria

    da Provncia do Cear, composto de 466 praas, no vapor Jaguaribe, sob o

    comando de Jos Nunes Mello coronel da Guarda Nacional.47

    Com a notcia da invaso do territrio brasileiro por foras externas,

    desencadeia-se uma onda de voluntariado e de doaes. Os jornais cearenses

    da poca esto recheados em seus noticirios de informaes dando conta dos

    chamados oferecimentos patriticos, assim como a documentao oficial. Eram

    professores, funcionrios pblicos, mdicos, polticos dentre outros, que

    doavam parte de seus vencimentos e ganhos em forma de subscries48 com

    vistas a arrecadar dinheiro para ser distribudo com as famlias dos cearenses

    que viessem a se alistar como Voluntrios da Ptria; eram senhoras que

    confeccionavam fardamentos e bandeiras, eram figuras de poder e prestgio da

    cena local que apresentavam filhos, netos, sobrinhos e protegidos como

    soldados, dentre outros.

    No caso especfico das doaes financeiras, especialmente as

    subscries, algumas eram realizadas de uma s vez; em outros casos havia a

    preocupao de que tais donativos tivessem uma continuidade e assiduidade,

    especialmente as destinadas s famlias dos voluntrios e Guardas Nacionais

    destacados. Apesar das opinies convergirem no primeiro momento para a

    idia de um conflito de rpido desfecho, havia a apreenso quanto ao destino

    das famlias com a partida dos homens para a guerra.49 Parece-me bastante

    plausvel que os atos de doao, realizados essencialmente por pessoas de

    posses e prestgio poltico e social da provncia, buscavam dar uma espcie de

    segurana, ou pelo menos sua iluso, aos indivduos que se apresentavam ao

    servio da guerra a respeito da situao a que ficariam entregues suas

    esposas e filhos, assim como, uma estratgia de granjear mais indivduos para

    o alistamento.

    O Presidente da Provncia do Cear, poca, conselheiro Lafayette

    Rodrigues Pereira, publicava, e os jornais tambm noticiavam, discursos de

    47 STUDART, Baro de. Datas e factos para a histria do Cear. Edio fac-sim.- Fortaleza: Fundao Waldemar Alcntara, 2001, Tomo II, p. 185. 48 Subscries eram listas feitas com o intuito de arrecadar recursos para os mais variados fins. 49 Com o desenrolar dos acontecimentos e o prolongamento da guerra, a questo da ajuda e socorro a essas famlias passou a se tornar uma questo potencialmente explosiva e a ser utilizada como elemento complicador na arena poltica cearense diante do acirramento das disputas entre os grupos polticos locais.

  • 30

    conclamao dirigidos populao cearense, solicitando seu empenho no

    esforo de guerra. Circulares suas dirigidas s Cmaras Municipais,

    autoridades judicirias e policiais da provncia eram constantes nas pginas

    dos principais jornais cearenses. Em circular de 6 de fevereiro de 1865 o

    presidente se dirigia s Cmaras Municipais da provncia:

    As gravssimas offensas praticadas contra os subditos brasileiros pelos brbaros governos do estado oriental50 e do Paraguay, com flagrante violao da soberania nacional e dos mais sagrados princpios do direito das gentes, reclamam da honra e dignidade do Imprio um desaggravo solemne e exemplar. necessrio que todos os cidados, abrasando-se no fogo do amor da ptria, dem ao mundo civilizado um brilhante testemunho de que, assim como sabem apreciar os benefcios de uma paz honrosa, no trepidam diante dos sacrifcios da guerra, quando se trata de desanffrontar os brios nacionaes e de combater prfidos inimigos.

    (...) Convencido de que os cearenses, cuja bravura tem sido

    tantas vezes experimentada, no deixaro de seguir um to bello exemplo, fiz um apello briosa Guarda Nacional por intermdio de seus dignos chefes, e agora me dirijo a todos os cidados, em geral, por intermdio das municipalidades, afim de que elles correspondam dignamente aos reclamos da Ptria, e ao convite imperial.51

    As circulares tinham um carter, ora de convocao solicitando a

    participao efetiva das casas legislativas e autoridades no processo de

    sensibilizao de suas comunidades diante da situao de beligerncia que

    estava posta , ora de orientao dos procedimentos, normas e isenes a

    serem empregados na execuo dos decretos imperiais enviados pelo

    governo, onde estava, tambm, estipulado os contingentes que deveriam ser

    destacados pela provncia para o Exrcito e Marinha.

    As manifestaes pblicas com discursos inflamados e declamaes de

    poesias tambm foram intensas no primeiro momento das hostilidades,

    ocorrendo vrias delas em diversos pontos da provncia cearense. Um dos

    principais objetivos desses atos era sem dvida arregimentar e motivar a

    populao masculina para ir s armas, em desagravo honra nacional como

    50 Esta referncia ao Estado Oriental em relao ao Uruguai. Naquele momento o Brasil estava intervindo militarmente no Uruguai em favor de Venncio Flores, chefe do partido colorado. Somente aps ter colocado Flores no poder que o tratado da Trplice Aliana selado entre Brasil, Argentina e Uruguai, em 1 de Maio de 1865. 51 Jornal O Cearense, Fortaleza, 14 de fevereiro de 1865, Parte Oficial, p.1.

  • 31

    era diuturnamente expresso nas falas dos oradores, na forma de Voluntrios da

    Ptria.

    Um exemplo dessas manifestaes patriticas, como eram chamadas

    e noticiadas pelos jornais locais, foi a que ocorreu em 12 de Fevereiro de 1865

    no adro da Igreja Matriz da capital fortalezense. Aps discursos inflamados de

    polticos, os participantes seguiram em passeata, acompanhada de msica, at

    o palcio do governo onde foram recebidos pelo presidente da Provncia.52

    Aps discursar energicamente, Lafaytte erguera uma salva de vivas ao

    Exrcito Brasileiro, Esquadra Nacional e ao povo cearense, segundo relato

    de Antnio Bezerra.53 Alm de polticos e autoridades, discursaram tambm

    membros da Igreja como o padre Verdeixa. Uma das falas ocorridas no dia foi

    reproduzida textualmente no jornal O Cearense de 16 de Fevereiro de 1865 54;

    era o discurso do inspetor de sade pblica Dr. Jos Loureno de Castro e

    Silva. No incio de sua alocuo, a principal preocupao do poltico e inspetor

    de sade era conclamar os cearenses a irem s armas como manifestao de

    honra, bravura e distino. Utilizando-se de uma oratria pomposa e carregada

    de palavras elogiosas, expressava as seguintes palavras:

    Senhores! O Cear em longa distncia do Paraguay, no tem sido indifferente ao reclamo da ptria, que acaba de ser ultrajada pelo prfido selvagem Solano Lpez.

    Dezenas de bravos cearenses se offereceram espontaneamente ao governo, para marchar com o brioso corpo de 1a linha, cnscios de que, sem honra no existe soberania nacional; porque s nella est consignado o direito de um povo livre, e em sua fora colleciva o fundamento de sua grandesa commum.

    Entretanto, em um segundo momento, sua preocupao fundamental

    tornava-se a questo da subsistncia das famlias dos voluntrios em virtude

    das incertezas que a ida do indivduo produziria no seio familiar.

    necessrio tambm; que pela nossa parte, dos que ficam empenhados no dever de coadjuvar o estado, concorramos para que a famlia de cada um soldado, e dos mesmos officiaes, tendo todos mulher e filhos, no se considerem abandonados logo que marchar o corpo de 1a linha e dos Voluntrios da Ptria.

    52 Jornal O Cearense, Fortaleza, 14 fev. de 1865. Noticirio, p.2. 53 BEZERRA, Antnio. Pgina indita de Antnio Bezerra: como me tornei voluntrio da ptria. In: Revista do Instituto do Cear. Tomo LXXX - Ano LXXX, pp.249252, 1968, p.250. 54 Jornal O Cearense, Fortaleza, 16 fev. 1865. Noticirio, p.3.

  • 32

    Que cada soldado no dia do saudoso adeus famlia, leve a doce consolao de que ainda mesmo longe della, seus filhos no soffrero jamais os horrores da misria que em sua longa auzencia, a saudade de todos ser suavizada com a certeza de que em sua volta todos bemdiro a proteo que receberam, ( ... ).

    O ilustre poltico no colocava tais questes sem motivo. De fato, essa

    incerteza se materializava numa certeza de que a ausncia do marido ou do

    arrimo de famlia produziria uma situao de um sem fim de problemas e

    dificuldades materiais aos familiares dos recrutados e designados no

    toa que, quando possvel, as esposas e filhos seguiam para o front de batalha

    com seus esposos. Experincias anteriores davam essa perspectiva e o

    desenlace da guerra comprovaria a situao de penria que ficariam

    entregues estas pessoas, mesmo com a arrecadao de subscries em prol

    das famlias dos enviados. As quantias pagas, quando chegavam, pois sua

    distribuio era bastante irregular assim como os valores, no eram suficientes

    para o sustento das mesmas. A situao de penria, diga-se de passagem,

    no era restrita apenas s famlias, pois os prprios voluntrios e os soldados

    de uma forma geral sofriam privaes de toda ordem no campo de batalha e

    quando retornaram ao fim do conflito. Os dirios e as crnicas da guerra so

    recheados de histrias e relatos dessas situaes. Um exemplo disso est

    presente no dirio do Sr. Francisco Pereira da Silva Barbosa55 um

    Voluntrio da Ptria do Rio de Janeiro que esteve em ao de combate

    durante 5 anos onde podemos encontrar descries de inmeras situaes

    de fome e privaes. No caso do Cear, muitos voluntrios tornaram-se

    pedintes quando retornaram da guerra, seja em Fortaleza ou em outros pontos

    da provncia cearense. Durante a grande seca de 1877-79 o jornal O Retirante

    noticiava a existncia de um ex-combatente cearense mendigando nas ruas de

    Fortaleza e criticava o governo imperial relatando que quando precisou de

    55 SILVA BARBOSA, Francisco Pereira da. Dirio da Campanha do Paraguai. Disponvel em: www.geocities.com/cvidalb2000/. Acesso em: 15 de Agosto de 2002. Este dirio possui uma histria muito curiosa. Foi encontrado pela bisneta do autor do dirio em um sto na casa da famlia; aps descobrir a preciosidade que tinha em mos, transcreveu, juntamente com um neto do autor, e disponibilizou o material na Internet. Trata-se de um relato riqussimo, onde o autor, que assentou praa aos 22 anos de idade como Voluntrio da Ptria no Rio de Janeiro e que esteve em ao de combate durante todo o conflito, relata com grande riqueza de detalhes o seu cotidiano no campo de batalha, seus conflitos com superiores, a dureza da campanha, dificuldades de alimentao, atendimento mdico, lazer, combates dentre outros. Material extremamente rico e de leitura agradvel e instigante.

  • 33

    cidados para defender a ptria em terras distantes soubera recrutar soldados,

    porm, os abandonara nos momentos de maior preciso. O jornal A Razo

    tambm registrou em 24 de novembro de 1929, o falecimento de Jos

    Raymundo, um Voluntrio da Ptria do Cear que morrera em situao de

    pobreza absoluta, j que sua penso mal dava para aliment-lo.56

    Os discursos que eram proclamados por polticos, autoridades e figuras

    ilustres da cena pblica cearense do perodo nessas reunies e manifestaes

    de que estamos tratando, tinham tambm como objetivo, qui o principal,

    demarcar espao e angariar capital poltico junto ao presidente de provncia,

    em esfera local, e, indiretamente, junto corte no poder central. Nesse sentido,

    um complexo jogo de negociaes e clculos estratgicos de engenharia

    poltica, recheados de grande astcia e interesses, estabeleciam-se entre as

    diversas foras polticas, sociais e econmicas, fossem pblicas ou privadas.

    O presidente da provncia procurava prestar satisfao ao governo

    imperial, recrutando, destacando e remetendo os contingentes estipulados.

    Entretanto, o sucesso de sua empreitada dependia diretamente dos poderosos

    locais e seus protegidos, j que estes ltimos representavam os possveis

    recrutados e os primeiros faziam parte da estrutura burocrtico-administrativa

    do Estado imperial que, em boa parte dos casos, eram os responsveis pela

    execuo do recrutamento. Alm disso, a situao poltica de um presidente de

    Provncia no Brasil imperial era extremamente instvel. Segundo Jos Murilo

    de Carvalho, o presidente

    (...) durante o Imprio, era um homem de confiana do Ministrio, no tinha poder prprio, podia a qualquer momento ser removido, no tinha condies de construir suas bases de poder na Provncia qual era, muitas vezes, alheio. No mximo, podia preparar sua prpria eleio para deputado ou para senador. 57

    Dessa maneira, o presidente compreendia que sua carreira, futuro

    poltico, poder e legitimidade dependiam da sua capacidade de cumprir com

    eficincia as ordens imperiais. Tarefa nada fcil de ser realizada tendo em

    vista o sem fim de interesses que estavam envolvidos nesse n grdio. Da

    56 Jornal A Razo, Fortaleza, 24 de nov. de 1929, p.3. 57 CARVALHO, Jos Murilo. Mandonismo, Coronelismo, Clientelismo: uma discusso conceitual. In: DADOS. Rio de Janeiro: IUPERJ, v. 40, n 2, pp.229-250, 1997, p.230.

  • 34

    mesma forma, os chefes polticos locais percebiam que a ampliao de seu

    poder e influncia estava diretamente ligada ao seu envolvimento com as

    polticas provinciais e nacionais, pois se legalmente fortalecido em ser

    nomeado para uma posio oficial com autoridade local, um magnata podia

    oferecer proteo maior ainda e conceder favores adicionais ou impor

    disciplina mais rgida58 a seus sqitos de protegidos. E isso dependia de

    suas realizaes e cooperaes com o poder imperial.

    Diante desse quadro, apesar das oratrias recheadas de referncias

    unidade nacional, fim das divises partidrias, unio de foras dentre outros, a

    arena poltica fervilhava de conflitos e divergncias ideolgico-partidrias,

    especialmente quando o assunto era a formao dos contingentes a serem

    enviados.

    Podemos perceber o estado dos nimos a partir de um relato de uma

    reunio pblica realizada na cidade de Ic, no ms de maro de 1865, exposto

    no jornal O Cearense.59 Inicialmente parecia ser uma manifestao como as

    outras com o fito de dispor a populao ao esforo de guerra: msica,

    zabumba batendo, discursos e vivas. Entretanto, ao que tudo indica, os

    membros do Partido Conservador desencadearam uma srie de crticas ao

    processo de alistamento de voluntrios procurando com isso demarcar espao

    poltico:

    O Sr. Duarte Brando disse, que os vermelhos io procedendo erradamente, que o Sr. Jaguaribe era um asno em promover alistamento de voluntrios da ptria, pois que, se a situao era dos liberaes, deviam elles fazer os sacrifcios: si no podiam com a carga, que largassem-na.

    O Sr. Dr. Fructuoso opinava que era melhor ser escravo do Lopes do que do Pompeu.

    O clima de conflito entre membros do Partido Conservador e do Partido

    Liberal se acirrava na proporo direta da intensificao do recrutamento. As

    experincias com as prticas do recrutamento, no Brasil daquela poca, faziam

    antever, no clculo poltico dos grupos em disputa, que a temporada de caa

    58 GRAHAM, Richard. Construindo uma Nao no Brasil do Sculo XIX. In: Dilogos. Revista do Departamento de Histria da UEM a/c. Coordenao/Editorial da Universidade Estadual de Maring Paran. V. 5, n.1, pp. 11-47, 2001, p.36.59 Jornal O Cearense, Fortaleza, 28 de maro de 1865, Publicaes Solicitadas: Ic, 12 de Maro de 1865.

  • 35

    aos desafetos polticos e sociais estaria aberta assim que o aumento da

    arregimentao de homens para a guerra ganhasse intensidade.

    O controle das autoridades policiais, da Guarda Nacional e do recrutamento transforma-se em importante arma eleitoral nas mos do partido no governo. Praticamente todo cargo pblico da estrutura judicial e policial do governo central tinha em suas mos o poder de exercer sanes arbitrrias sobre os cidados que, numa economia bem estudada, colaboravam para os resultados eleitorais desejados. A ameaa do recrutamento representava poderoso instrumento de persuaso eleitoral, dizimando , moderando ou cooptando os adeptos da faco adversria.60

    Os caranguejos, como eram chamados os membros do Partido

    Conservador da provncia naquele perodo, ao criticarem e atacarem o

    processo de formao dos contingentes a serem destacados, tinham a clara

    percepo que mais cedo ou mais tarde seus membros e seguidores se

    tornariam os alvos preferenciais do recrutamento, especialmente se a situao

    era dos liberaes.61

    Apesar das tenses polticas que j se apresentavam nesses meses

    iniciais do conflito na provncia, a situao ainda guardava certa tranqilidade.

    Essa preocupao dos conservadores se colocava muito mais como uma

    precauo e sinal de alerta diante do que estaria por vir. No entanto, o evoluir

    da guerra comprovou suas apreenses e a necessidade de ampliao do

    recrutamento tornou a situao explosiva, acirrando as disputas.

    O perodo da guerra, compreendido entre dezembro de 1864 a

    setembro de 1865, marcado pela ofensiva paraguaia sobre o territrio

    brasileiro (invaso do Mato Grosso, em dezembro de 1864, e Rio Grande do

    Sul em maio de 1865) e argentino (invaso da Provncia de Corrientes em abril

    de 1865).62 Envolvido por uma estratgia de combate paraguaia alicerada na

    60 MENDES, Fbio Faria. Encargos, privilgios e direitos: o recrutamento militar no Brasil dos sculos XVIII e XIX. In: CASTRO, Celso; IZECKSOHN, Vitor; KRAAY, Hendrik. (Orgs) Nova Histria Militar Brasileira. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004, p.130. 61 Para uma discusso mais detalhada sobre a questo do recrutamento e as disputas poltico-partidrias na Provncia do Cear durante o sculo XIX, ver: RAMOS, Xislei Arajo. Por trs de toda fuga, nem sempre h um crime: o recrutamento a lao e os limites da ordem no Cear (1850-1875). Fortaleza: 2003, 213p. Dissertao (Mestrado em Histria Social) Universidade Federal do Cear. Especialmente o Captulo 2, tpico 2.1. 62 BETHELL, Leslie. A Guerra do Paraguai: histria e historiografia. In: Marques, Maria Eduarda Castro Magalhes (Org.). A Guerra do Paraguai: 130 anos depois. Rio de Janeiro: Relume-Dumar, 1995, (introduo) p.19.

  • 36

    perspectiva da construo de uma espcie de guerra relmpago, que

    buscava surpreender as foras inimigas com ataques rpidos e concentrados,

    o Brasil surpreendido ao se ver diante de um Exrcito paraguaio forte e que

    soube aproveitar a fraqueza do diminuto Exrcito brasileiro do perodo. Essa

    desorganizao das armas brasileiras acabou se materializando numa demora

    de mais seis meses at que o pas, com grandes dificuldades, conseguisse

    organizar uma fora militar capaz de iniciar uma guerra ofensiva.63

    Nesses meses iniciais da guerra (de janeiro at pelo menos julho/agosto

    de 1865) o governo imperial juntamente com as autoridades provinciais do

    pas, aproveitando-se do momento favorvel, procuraram de todas as formas

    arregimentar o mximo de homens para engrossar as fileiras das foras

    brasileiras. A afluncia de voluntrios era tamanha que o governo imperial

    chegou a suspender o recrutamento. Uma circular do Ministrio dos Negcios

    da Guerra de 3 de maio de 1865 suspendia at segunda ordem tal

    procedimento.64 Na provncia cearense esse momento pode ser caracterizado

    como um perodo de intensa mobilizao no processo de destacamento dos

    corpos de guarnio e tropas de primeira linha locais, alm claro, da

    formao e organizao dos primeiros corpos de Voluntrios da Ptria do

    Cear. Os nmeros das foras enviadas pelo Cear corte at o ms de junho

    de 1865 foram os seguintes:

    TABELA 1

    Contingentes enviados pela Provncia do Cear (Jan./Junho de 1865)

    Total

    391

    666

    179

    Fonte

    Corpo de Guarnio*

    Voluntrios da Ptria

    Corpo de Polcia

    Contingentes

    368 praas e 23 oficiais

    1 Corpo = 466 / 2 Corpo = 200

    170 praas e 9 oficiais

    1.236**

    Fonte: STUDART, Baro. Datas e factos para a histria do Cear. Edio fac-sim. Fortaleza: Fund. Waldemar Alcntara, 2001, Tomo II, p.185.

    * Corresponde tropa profissional, o Exrcito de primeira linha. ** O Relatrio de Presidente de Provncia do Cear de 6 de julho de 1866 registra para o mesmo perodo um nmero total de 1.203 homens. Isso deve ao fato do relatrio no ter contabilizado os oficiais que seguiram.

    63 DORATIOTO, Francisco F. M. Op. Cit., p.97. 64 Por aviso circular do Ministrio da Guerra datado de 3 do corrente se ordenou que fossem dispensados por hora os recrutadores desta provncia (...). APEC: Presidente da Provncia do Cear, a diferentes autoridades Militares desta provncia, ofcios (1862-74). Livro 230. Ofcio de 19/05/1865.

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    Como podemos observar na tabela 1, em apenas seis meses a

    provncia destacara, no total, 1.236 homens para a guerra. um nmero

    bastante expressivo e nos d uma idia do clima favorvel ao alistamento que

    tomava conta da provncia. Nesse mesmo perodo, Vitor Izecksohn65 registra

    com base nos dados dos Relatrios da Provncia do Rio de Janeiro, um

    nmero de 3.000 homens recrutados no total para aquela provncia. Apesar de

    serem inferiores os nmeros da provncia cearense, devemos levar em

    considerao que a provncia carioca era a terceira mais populosa do pas

    poca. Alm do mais:

    A provncia do Rio de Janeiro apresentava-se como campo potencialmente frtil para o recrutamento, no apenas devido sua numerosa populao (tomados os padres do Imprio como um todo), mas tambm em razo da proximidade da Corte, o municpio neutro do Rio de Janeiro.66

    As agruras que historicamente acompanhavam as prticas do

    recrutamento militar no Brasil ainda no eram sentidas, pelo menos com

    clareza, nesse momento, na provncia cearense. Nos seis meses iniciais do

    esforo de mobilizao, as principais preocupaes da administrao

    provincial se constituam na organizao e funcionamento das Comisses

    Patriticas67 de recrutamento que estavam sendo nomeadas e estruturadas

    com vistas ao alistamento de voluntrios conforme o decreto imperial de n

    3.371 de 7 de janeiro de 1865 que criou os c


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