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O Avião

Nos tecidos de céu desse cosmos enorme que nos rodeia havia um belo avião que deixava toda a gente espantada. Era especialmente penetrante vê­lo cruzar o céu na companhia de um sol doirado, grande, majestoso, silencioso e incapaz de cair. Talvez por isso, ou por outras misteriosas razões, todos queriam entrar nele e participar na emocionante viagem que empreendia. Mas o avião que parecia imenso e incapaz de esgotar a nossa propensão para a conquista, chegou ao ponto de se encontrar integralmente lotado. A viagem que eu imaginara emocionante, não o era na verdade, pelo contrário, deixava­me deprimido e constrangido, pois, por onde quer que passasse, não encontrava um lugar vago para me sentar e só deparava com uma inquietante anarquia que ninguém parecia reconhecer, nem mesmo os raros comissários de bordo a quem me queixei.

Como era possível promover viagens com tão pouco espaço para oferecer aos viajantes? Já eram milhões os lugares em falta, por isso não era de estranhar que se encontrassem os passageiros em excesso nos locais mais insólitos. As arreca ­dações, os porões de carga, os receptáculos dos trens de aterragem, estranhos recantos da fuselagem e outros locais inima gináveis alojavam um número indeterminável de passa­geiros, uma vez que as áreas convencionais já não comportavam mais ninguém. É verdade que alguns passageiros seguiam

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viagem de uma forma mais prazenteira que outros, mas nenhuns tinham piores lugares que os penduras e os topos. Uma vez que o espaço útil dentro do avião estava esgotado, alguns passageiros, penso que os mais fracos e menos influentes, mas não menos empreendedores e criativos, não conseguindo lutar de igual para igual por um lugar lá dentro, viram­se obrigados a recorrer ao espaço exterior do avião para poderem prosseguir viagem. Verifiquei que havia milhares de cordas penduradas onde famílias inteiras se agarravam; centenas de milhares de cordas urdindo uma trama densa que dava guarida a tantas pessoas quanto as que viajavam dentro do avião em relativa segurança; e há gerações esquecidas que a viagem era, para eles, isto. A esses passageiros chamaram de penduras. Comparativamente a estes, os topos eram passageiros mais privilegiados, pois gozavam da aparente vantagem de não terem evidente o perigo que oferecia a altura. Eram assim chamados porque haviam ocupado o espaço disponível sobre as asas e sobre a carlinga, lugar onde erigiram construções caóticas, enlaçadas umas nas outras, como colmeias exíguas repletas de gente cheia de tarefas inventadas.

Ao tomar conhecimento das condições de todos estes passageiros não pude deixar de admitir que a minha situação, apesar de má, era mais fácil que a deles. Eu até era, afinal, um passageiro cheio de sorte. Tinha entrado para a classe turística e se não encontrava um lugar agradável só para mim, pelo menos sentia­me um verdadeiro passageiro, com o direito mais ou menos reconhecido de reclamar por isso, e não um empecilho de que todos se querem livrar. Mas atentar nessa diferença não me trazia qualquer vantagem, nem anulava a consciência que os passageiros estavam a ser mal tratados. Havia uma incongruência de raiz em oferecer a viagem e privar de a desfrutar, semelhante a dar e tirar ao mesmo tempo.

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Se naqueles recônditos espaços a vida era difícil e quase um milagre de insistência, também nos espaços considerados mais civilizados a viajem era difícil. Na terceira classe, por exemplo, havia uma repartição desigual dos lugares, já que era comum encontrarem­se zonas onde vinte lugares eram ocupados por dois ou três passageiros poderosos, que dominavam pelo medo e pela economia os restantes, como outras zonas onde quatro lugares eram ocupados por uma família inteira, com vários filhos e acompanhados de duas gerações mais velhas. O lixo multiplicava­se com uma rapidez estonteante, para não dizer nauseabunda. No entanto, esse lixo era importante na economia local, pois tornara­se a base da sua subsistência, já que para fazer dinheiro tudo era reutilizado ou reaproveitado; e no furor do comércio ia­se delapidando, inclusive, partes da estrutura do avião.

Ainda que a distribuição de espaço na classe turística fosse menos caótica, não deixava de ser difícil encontrar lugares vagos. Cada família protegia o seu quinhão de espaço com afinco disciplinado e neurótico, e, apesar de todas as contrariedades, uma boa percentagem destes passageiros conseguia conquistar, ao fim de um longo e esmiuçado currículo, um lugar seu onde se podiam sentar com o pleno peso da existência; alguns mais felizardos até conseguiam um fulgurante lugar à janela. Mas também nessas zonas era vulgar encontrar excepções escandalosas, e indignas, de passageiros proxenetas que conseguiam tornear as leis da normalidade deixando os honestos com um curriculum ainda mais esmiuçado.

Havia, no entanto, uma área no avião em que as condi­ções de espaço e habitabilidade não eram tão precárias. Vim a saber que na primeira classe se viajava com todo o conforto e comodidade, mas que era difícil lá entrar se não se tivesse entrado originalmente. Quem mo disse, falava disso

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com uma certa aura de mistério, como se se tratasse de um local paradisíaco, abençoado, o que me levou a suspeitar que o homem que mo revelava não tinha bem a certeza se tais lugares realmente existiriam. Sabendo que era lá que se encontrava o Comandante do avião, tomei por empresa indagar a localização de tais espaços, e acabei por descobri­ ­los; mas não sem esforço. Deparei amiúde com barreiras nos corredores onde se cobrava uma espécie de portagem, em que, caso não se pagasse uma comissão alfandegária, era­se liminarmente assaltado. Também foi frequente encontrar o caminho bloqueado por guerras privadas entre grupos de passageiros poderosos, o que obrigava, para não ser abatido, a esperar que algo acontecesse, fosse o extermínio de um dos grupos, fossem tréguas temporárias para rearmamento das hostes. E quando era possível progredir de compartimento em compartimento, de corredor em corredor, não me faltavam ocasiões para ser testemunha de outros tipos de violência sobre os mais indefesos passageiros.

Eu estava diante do perigoso portão negro e esperava que alguém viesse abri­lo. Ao bater com os nós dos dedos na chapa de ferro percebi como era espesso e robusto, e que nunca ninguém ali entraria pela força. Esperei pacientemente entre cada batida, evitando olhar aqueles que em meu redor esperavam ver uma desgraça; sentia no silêncio profundo a expectativa dos presentes, um silêncio que quase permitia ouvir o bombardear dos meus pensamentos. Para dispersar os meus temores dispus­me a analisar o portão enquanto esperava. Não encontrava nele nada de relevante, já que era todo liso e pintado de preto, se bem que na sua parte superior existisse um estranho friso, quase despropositado, de efeitos artísticos pintados em dourado e vermelho.

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Quando já não esperava obter qualquer reacção, abriu­se um janelo protegido por rede, um quadrado com não mais de vinte centímetros, e lá do outro lado um rosto bolachudo perguntou com irritação na voz,

«Que é que se passa?».Eu disse­lhe bem alto, mas educadamente, que pretendia

entrar para falar com o Comandante do avião. O rosto guardou silêncio, mas os olhos, tanto quanto eu podia perceber, miravam­me circunspectos.

«Pretendes entrar?», e repetiu, «Pretendes entrar?!?», como se não acreditasse ser possível ouvir tal declaração num passageiro da classe turística,

«Mas quem pensas que és para entrar aqui?»«Sou passageiro!», e mostrei­lhe o meu bilhete para certi­

ficar a dignidade das minhas palavras. O outro pegou no bilhete com a ponta dos dedos, como que o analisou, e depois de breve hesitação disse,

«Espera aí», e afastou­se.Quando ali havia chegado pela primeira vez encontrei

mais um daqueles panoramas irritantes e incompatíveis com os meus direitos de passageiro. A entrada para a primeira classe fazia, afinal, fronteira com a classe turística numa zona da qual sempre me havia afastado devido à excessiva concentração de passageiros e à consequente facilidade com que a violência irradia. Naquele sítio os passageiros aglomeravam­se de braços cruzados nas proximidades de um grande portão negro, como numa manifestação aparentemente sem propósito. Quando indaguei o motivo daquela concentração ansiosa responderam­ ­me que estavam a Fazer a espera. Percebi que todos esperavam o momento em que o portão se abrisse. E enquanto perscrutava, tentando inteirar­me das regras secretas daquele local, vi o grande portão blindado abrir­se por duas vezes. E o que acontecia nesses momentos era de espanto. Das duas vezes

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que o vi aberto, a multidão afastava­se e comprimia­se contra as paredes de modo a manter uma distância de segurança em relação aos passageiros armados que de lá saíam, e que tinham por missão proteger aquela entrada, ao mesmo tempo que outros transferiam, para o lado de cá, caixotes cheios de material inútil. Cada abertura do portão nunca demorava mais de um minuto e nunca acontecia segundo uma regularidade previsível.

Mas o mais extraordinário acontecia depois de concluída a transferência e quando o portão blindado se fechava, deixando fora, cá deste lado, as bugigangas. Num momento, aqueles passageiros que aguardavam pacientemente pareciam pessoas normais com as suas gravatas listadas, os seus casacos fora de moda, os seus pulóveres coçados, os seus sapatos deformados pelo uso, os seus cabelos dobrados num penteado que denotava a falta do banho da manhã; mas, num instante, ao fechar­se o portão negro, transformavam­ ­se em comerciantes com habilidades marciais, com as quais habilmente disputavam a mercadoria. E depois do violento esforço negocial, a densidade da caterva junto ao portão diminuía à medida que a dinâmica comercial tomava o seu curso natural nas horas imediatas.

Eu não tinha qualquer interesse em participar naquele comércio, ainda por cima se exigia habilidades marciais. Os passageiros com quem me foi possível trocar palavras sem intenções comerciais, ficavam muito espantados ao saber que o meu interesse principal era entrar na primeira classe. Quando ouviam as minhas palavras riam­se desabridamente e depois olhavam­me descrentes ao notar a minha convicção firme, da mesma forma que se olha um lunático que ignora a sua condição. E quando a notícia do meu projecto se espalhou, rodos de gente, desde os simples sobreviventes à elite crimi­nal, vinha comprovar o rumor, perguntando­me se eu ia

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mesmo tentar lá entrar; e eu confirmava que sim, que queria lá entrar, uma vez que era na primeira classe que se encontrava o Comandante; e só lá entrando poderia protestar contra as condições que me eram oferecidas para seguir viagem.

E todos me faziam a mesma pergunta,«Mas como pensas entrar no espaço dos soldaditas?»Soldadita era o nome que habitualmente se dava aos

passageiros que tinham tido a sorte de ocupar os lugares da primeira classe.

Era, de facto, uma pergunta pertinente para a qual eu ainda não tinha uma resposta adequada. Mas havia de encontrar uma. Antes de me decidir, achei por bem observar minuciosamente todas as transferências de material inútil que os soldaditas tinham a gentileza de dispensar de tempos a tempos. Ora, para partilharem connosco tais materiais, os soldaditas tinham que abrir o portão; e notava­se como isso os deixava nervosos, conscientes que essa exposição os tornava vulneráveis e constituía uma oportunidade para uma possível invasão; por essa razão havia tantas armas a garantir a protecção. Não deixavam ninguém aproximar­se durante as operações; e quem se arriscasse numa temerosa aproximação, com a ganância da mercadoria, podia sair magoado. Pude testemunhar como deve ser doloroso ver os próprios dentes espalhados no chão metálico. Concluí, portanto, que sempre que o portão se abria, criava­se um momento de tensão durante o qual a comunicação com eles era impossível. Mas, ao mesmo tempo, essa era a única circunstância em que o portão blindado se abria e se viam os soldaditas.

Enquanto meditava e revia aquelas cenas de agitação, cheguei à conclusão que a única maneira possível de comunicar com sucesso seria dirigir­me ao portão precisamente quando ele estava fechado. Não se sentindo vulneráveis, os soldaditas falariam comigo se os interpelasse. Assim, um dia levantei­me

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do meu canto e dirigi­me ao portão e bati com determinação. Os passageiros do comércio ficaram a olhar­me pasmados, pois já me tinham por inconsequente e fala­barato. Além disso, eu sabia que já corriam apostas que me eram largamente desfavoráveis.

Foi, aliás, por causa das apostas que vim a conhecer o meu companheiro Hitlodeu. Abordou­me poucos dias depois da notícia do meu projecto se ter espalhado. Primeiro tocou­ ­me no braço com a ponta do indicador e observou­me de rosto neutro como quem aprecia as qualidades de um cavalo. A qualquer instante, pensei cá para comigo, agarrar­me­ia a boca para analisar os dentes. Mas em vez disso perguntou­ ­me,

«Estás disposto a ir até ao fim?»Apesar de me ter atirado, sem mais, com a pergunta,

percebi logo qual era o assunto, recorrente nas últimas horas. Já me incomodavam aquelas intrusões insistentes, de modo que lhe devolvi um olhar silencioso que continha toda a determinação de Caim. Bom, depois disso nunca mais lhe consegui fechar a boca nem ver­me livre dele. Declarou que não descolaria da minha sombra nos próximos dias, uma vez que tinha um importante investimento a proteger; e assim veio a acontecer.

Aquilo que me pareceu muito tempo pode não ter passado de dois ou três minutos. O soldadita regressava, eu podia ouvir perfeitamente as suas passadas fortes no chão metálico, espreitou pelo janelo, devolveu­me o bilhete e disse,

«Não pode entrar.»«Não posso? Mas o meu bilhete diz: Liberdade, Igualdade,

Fraternidade, Tolerância e Inteligência.»«Pois diz…», resmungou o outro, levemente perturbado.«Então eu quero aquilo a que o meu bilhete me dá

direito.»

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«Mas eu não o conheço. Você é amigo de alguém na primeira classe?»

«Não.»«Então não me chateie! Não vê que não pertence aqui?»,

e fechou­me o janelo na cara.

A irritação apoderara­se de mim como excrescência estrepitosa. Naquele momento o espalhafato da desilusão foi tão grande que provocou dois enganos de uma só vez. Se não consegui descobrir no rosto de Hitlodeu uma alegria imensa, e o repudiei por não o tomar ainda por meu amigo, outros passageiros descobriram na minha reacção um potencial que eu não imaginava e pensei ver neles a defesa dos meus interesses. Um passageiro sinistro aproximou­se com a serenidade das cobras e foi sem o mínimo esforço que sacudiu as dezenas de olhares curiosos em redor; e disse­me, em segredo, que me achava apto para entrar no Clube dos Irritadistas. Quando lhe perguntei em que consistia tal clube, ele chamou­lhe a elite dos desiludidos com a anarquia generalizada que, segundo ele, era culpa exclusiva dos soldaditas. Isso interessava­me. Tal clube tinha por objectivo máximo mudar o actual status quo custasse o que custasse. E explicou­me como os soldaditas eram uns gananciosos egoístas, incapazes de partilhar o quer que fosse com quem quer que fosse,

«Não nos deixam entrar nos melhores lugares do avião. Não têm esse direito!»

Na verdade, à parte os soldaditas, só alguns passageiros especiais conseguiam transitar com alguma facilidade entre a primeira classe e o resto do avião: os padrecos. Estes anda­vam de um lado para o outro, murmurando palavras que não preveniam o ambiente claustrofóbico e não ajudavam ninguém a viver melhor, a não ser quem já vivia bem e

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precisava de apaziguar a consciência. Cheguei mesmo a ver alguns padrecos oscilando nas perigosas cordas dos penduras, que, de tão raros, acabavam por ganhar um título especial, os “santos”, especialmente quando morriam desgraçadamente por lá.

Estive perto de entrar para o Clube dos Irritadistas, com pactos de sangue e palavras sagradas fundadas no ódio, levado pelo desejo visceral de contribuir para a mudança e pôr termo imediato à injustiça. Mas Hitlodeu, que assumira a estranha atitude de um comparsa, opunha­se e insistia em mostrar­me como era imprudente e insensato aderir a um clube do qual pouco sabia. Segundo ele, os Irritadistas eram responsáveis por uma tentativa de detonar uma bomba no motor do avião com o objectivo de acabar com a hegemonia dos soldaditas. A ser verdade, era a estratégia mais imbecil de que jamais ouvira falar.

A discussão que entretanto se gerou prolongava­se fasti­diosamente sem conseguir colher satisfação ou remédio para o meu desespero. Mas subitamente, algo aconteceu que esvaziou a fúria. O avião abanou. Eu e os outros passageiros sentimos uma forte explosão e um abalo profundo no avião. Todos suspendemos a respiração. As luzes tremelicaram. No pensamento de todos seguia a impressão que o avião ia despenhar­se.

Durante horas não soubemos qual teria sido a causa de tamanho abalo. Só no fim da tarde desse dia tivemos alguma informação, ao espalhar­se o boato que um míssil fora lançado por um grupo de passageiros envolvido numa das dezenas de guerras privadas. No dia seguinte ficámos a saber que a explosão ocorrera na asa esquerda do avião; já não eram apenas boatos que circulavam, mas também descrições pormenorizadas de destruição. Eu não conseguia imaginar como havia isso sido possível, mas, pelos vistos,

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era prática comum o comércio de armamento pesado dentro do avião em que nos fora oferecida a viagem. Como podiam os passageiros ter comprado um míssil? Mais: como era possível os passageiros quererem atingir outros passageiros? Mais: como era possível um passageiro produzir um míssil para ser usado no avião?

«A culpa é dos soldaditas…», sentenciou Hitlodeu, escla­recendo­me que só eles produziam aquele tipo de arma.

Mais tarde descobrimos que se podia vislumbrar ao longe o local do desastre a partir de certas janelas não muito distantes do local em que nos encontramos. Podemos, por isso, ver a asa quebrada, retorcida, fendida, esburacada, onde labaredas vulcânicas crepitavam e arrepiavam a nossa peque nez de mortais. A violenta explosão lançara o avião num estado de equilíbrio precário, para além de haver a lamentar a vida de milhares de passageiros, especialmente entre os penduras e os topos, cujas cordas de sustentação e frágeis construções haviam caído no abismo. Podíamos ver milhares de passa­geiros em agonia, ou assim acreditávamos, espalhados na asa fragilizada, sentindo uma crescente sensação de horror e desespero a entranhar­se pelos olhos.

Estávamos naquele intenso estado de alarme quando se aproximou um estranho grupo de passageiros. Os anciãos da nossa classe manifestaram surpresa reverente ao julgarem ver o Comandante no grupo de soldaditas que se aproximava, o que, a ser verdade, seria absolutamente inédito; e o mesmo se poderia dizer dos dois Padrecos­mor que o acompanhavam. O espanto era geral. Na verdade nunca ninguém vira passa­geiros daquela estirpe nestas partes do avião.

Também eu fiquei desarmado pelo espanto de ver diante de mim, inesperadamente, alguns dos mais altos dirigentes do avião, de tal modo que, foi superior às minhas forças, dirigi uma palavra de acolhimento aos eminentes passageiros,

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«Sejam bem­vindos!»Nenhum deles fez caso das palavras de acolhimento que

eu e outros oferecíamos. Resolvi, então, ser mais directo e dirigi a palavra ao passageiro político de aspecto mais importante,

«É, por acaso, o Comandante do avião?»O homem olhou­me com assombro, como se tivesse ouvido

precisamente o que não queria ouvir. E como não me respondeu, desviando, num gesto de desprezo, o olhar para uma das janelas que permitia observar a asa a arder, voltei a insistir,

«É que, se for, tenho uma enorme urgência em falar­lhe. Pessoalmente tenho uma reclamação a apresentar­lhe!»

O soldadita voltou, então, a olhar­me impaciente, com um certo enjoo cansado, detendo­se para escolher as palavras. Olhava­me para me avaliar; eu fazia o mesmo. Era um homem já entrado na idade, mas ainda mostrando o vigor próprio do viço intelectual, cheio de dignidade e atitude, transferindo para as abas da toga cinzenta a sensação de leveza e de agilidade física, que só podia ser ilusão. O cabelo abundantemente grisalho combinava coerentemente com a barba quase integralmente branca, mas os olhos que eram firmes e assertivos, num tom cinzento­água, desmentiam a imagem de paz que as vestes poderiam veicular. Para além da cor das vestes e do porte nobre que lhe era próprio, exibia um insólito sinal distintivo comparativamente aos restantes soldaditas do grupo: trazia nas mãos um gracioso feixe de trigo.

«Lamento mas não é oportuno», respondeu­me, «o que interessa agora é debelar esta catástrofe…»

Percebi pela resposta evasiva que aquele não era o Coman­dante do avião, mas o sentido de oportunidade impelia­me a continuar o diálogo,

«Precisamente! Isto que está a acontecer, e não falo apenas da asa destruída, é uma verdadeira catástrofe. É demasiado grave para que o Comandante não compareça!»

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«Não me fale do Comandante! Ele está muito ocupado!», e afastou­se irritado, criando aqueles que estavam armados uma barreira que me impedia de o seguir.

De um momento para o outro, os passageiros anestesiados com a presença de tão importantes figuras ficaram como que contagiados pela urgência de soltar os protestos reprimidos ao longo de tantas gerações. A multidão ficou agitada. Quando os membros do Clube dos Irritadistas começaram a agitar no ar múltiplas reivindicações ao ritmo de punhos cerrados, a multidão seguiu­os com uma facilidade surpreendente e ficou tudo descontrolado. Era a melhor oportunidade de sempre para se protestar contra a hegemonia dos soldaditas.

Reagindo à exaltação da caterva, os guardas formaram um perímetro de protecção aos seus superiores e não me deixaram aproximar mais; todos sabíamos que se aquelas armas entrassem em acção iria correr sangue. Ainda tentei prevenir o confronto, colocando­me entre os dois grupos e gritando de braços no ar,

«Calma! Calma!»

Só muito tempo depois da escaramuça voltou a ser possível dialogar com algum discernimento. Apesar de se manter ainda muita tensão ambiente, chegou­se a um entendimento entre os líderes das várias partes. Depois de tantos anos sem comunicar, havia a necessidade de falar: uns comprometeram­ ­se ouvir; e outros comprometeram­se falar adequadamente. Mas à medida que prosseguiam as conversações, mais cresciam as acusações e as contestações contra os soldaditas. E todas as críticas, todas as queixas, todas as reclamações iam desaguar na evidência da falta de condições para os passageiros prosseguirem a viagem com dignidade, o que os soldaditas se recusavam reconhecer.

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O velho soldadita político ouviu com desagrado vários relatos concretos das situações degradantes em que muitos passageiros se encontravam, ficando cada vez mais vermelho e incomodado, até que ao fim de um par de horas, não podendo ouvir mais, resolveu falar em sua defesa,

«Se não fossemos nós, este avião seria um absoluto caos. Somos os guardiães da cultura e da educação, enquanto que todos os demais passageiros são uns desordeiros. Se não param quietos vão dar cabo do avião!»

O tom era ríspido; mas nem ele próprio parecia acreditar no que dizia.

«Que eu saiba nenhum outro passageiro, que não os cultos soldaditas, sabe conceber um míssil!», atirei eu como um escarro desabrido, deixando­o pregado a um corpo sem vontade.

O velho olhou­me triste e derrotado. Não conseguiu falar.

Um dos Padrecos­mor, assombrado, dirigiu­se ao velho e murmurou,

«Será este o escolhido?»«Lá está você com esses disparates!», ripostou o outro.Mas o Padreco­mor, obeso na pança e na idade, não o

ouvia e fixava o olhar em mim com uma espécie de devoção pateta.

«Mas afinal quem é você?», retomou o soldadita mais velho.

«Eu? Eu sou um passageiro como outro qualquer. E você? Quem é você?»

«Eu sou Washington, o tour leader!»«Eu sou Dimitri, o Padreco­mor nº 33», apressou­se a

apresentar­se o obeso, estendendo a mão sapuda para me cumprimentar, o que também era inédito. Tal comportamento inesperado provocou uma reacção de espanto nos presentes,

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inclusive em Hitlodeu e naqueles que agora o seguiam. O segundo Padreco­mor quedou­se atrás, apático, solene como uma múmia em local despropositado.

Já sem armas entre nós, pude aproximar­me do tour leader e num tom mais calmo perguntei­lhe,

«Não estará na altura de chamar o Comandante?»O velho soldadita hesitou; algo nos seus gestos bruscos

denotava inquietação, «O Comandante não pode vir», disse ele exibindo um

olhar triste que na altura não soube interpretar, apesar de me ter parecido sincero. Depois remeteu­se ao silêncio e não consegui recolher dele nenhum outro contributo.

Aquela inércia enervava­me.Fiz sinal a Hitlodeu, que se aproximou, e procurei

encontrar com ele uma solução para tanta conversa que não levava a lado nenhum,

«Bem, pelos vistos, ninguém vai tomar medidas para ajudar as vítimas deste acidente… Por isso vamos que ter de ser nós a fazê­lo!»

«O que vai fazer?», volveu o político incrédulo, «Sabe o que fazer? Como pode pensar que sabe o que fazer?»

«Não podemos é ficar aqui parados com medo de existir!»

Reunimos um grupo de homens voluntários e partimos afoitos com a ingénua intenção de prestar auxílio. Só nesse momento percebi que Hitlodeu tinha agora um numeroso grupo de seguidores. Hitlodeu era agora um homem influente.

Nove dias depois estávamos de volta.Ao esforço da campanha somou­se uma viagem de

regresso muito atribulada e cansativa, pelo que quando finalmente chegámos ao local donde havíamos partido estávamos exaustos. Mas para meu espanto, depois daquela

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longa ausência alguns dos soldaditas ainda estavam à espera da improvisada equipa de salvamento. O tour leader levantou­ ­se logo ao ver­nos chegar, e, sem qualquer saudação, começou a questionar­me quanto ao que fizera, o que vira, quem encontrara, o que se passara.

Desta vez foram os homens de Hitlodeu que criaram o efeito de obstáculo, impedindo o soldadita de me seguir. Unidos fraternalmente pelo cansaço fomos todos dormir. O soldadita não obteve nenhuma resposta.

Na verdade, aquela campanha de socorro tinha sido uma experiência reveladora do ponto de vista pessoal. Depois de controlado e extinto o fogo, houve um momento em que tive de obedecer ao corpo e parar. Tive a noção, pela primeira vez na minha vida, que a minha juventude já fazia parte do passado. Muitos homens ainda procediam ao rescaldo e prestavam auxílio aos feridos, mas eu já não conseguia acompanhá­los. Acabei por me sentar perto de Hitlodeu e tentei recuperar energia, enquanto ele se afadigava a fazer curativos de toda a ordem. Eu estava dessorado, sentia dormente cada músculo, os pulmões exauridos e a mente turva, por isso limitei­me a ficar quieto e calado, a partilhar com ele o desespero das células. Foi nesse momento que percebi que tinha em Hitlodeu um amigo.

Na manhã do dia seguinte ao do meu regresso, o tour leader Washington ainda teimava em esperar. Vi­o a dormitar de cansaço, protegido pelos mantos da sua longa toga cinzenta e pelos guardas armados. Quando percebeu que o observava ergueu­se, tinha um ar tresnoitado, mas rapidamente retomou a posse das suas atitudes e falou,

«Você, venha comigo! Temos que falar.»Acto continuo, virei­me para o meu amigo e disse­lhe,«Hitlodeu. Vem comigo.»«Não. Você vem sozinho.»

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«Não vou a lado nenhum sem o meu companheiro!»O velho soldadita ficou dividido entre a necessidade e a

raiva arrogante. Estava habituado a que tudo se determinasse sob o ângulo da sua vontade. Olhou­me altivamente, mas cedeu em silêncio, sem uma palavra, virou­se e começou a andar. Eu segui­o, com Hitlodeu a meu lado, e não se falou mais nisso. Foi assim que entrei na primeira classe.

Confesso que senti espanto quando vi pela primeira vez aqueles lugares. Eram como nada que já tivesse visto: espaçosos e confortáveis. Percebia­se que tudo estava devi­da mente organizado de modo a nada faltar a cada um dos passageiros. Todos eles estavam bem alimentados, bem vestidos, perfumados e elegantes; e mostravam­se satisfeitos e educados, em suma, felizes. A comitiva fez um longo percurso sem que qualquer entrave se nos deparasse, o que para mim e para Hitlodeu era absolutamente inédito.

Quando chegámos ao departamento político da primeira classe, o tour leader Washington disse ao pavão que o esperava,

«Convoque os membros do Conselho. Dê indicações aos tarefeiros para que se preparem, pois precisamos de reunir.»

«E esses cavalheiros?», disse, apontando o indicador de maneira ao mesmo tempo arrepiada e dissimulada.

«Não se incomode com eles. Eles acompanham­me.»Entrámos na sala do Conselho por uma porta automática

extravagante que se abria em duas metades. Apesar de ser de menores dimensões e estar pintada em branco, não pude deixar de achar semelhanças entre esta porta e o portão negro, porque era igualmente lisa, apenas exibindo como que um friso criado pelos efeitos artísticos pintados em dourado e vermelho na sua parte superior. Desta vez fiquei tentado a decifrar algo naquele jogo de impressões de cor.

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O Conselho de Primeiros Passageiros reuniu­se com a pompa que lhe era habitual. Havia música protocolar, longos discursos de apresentação solene e outras movimentações rituais. Ali estavam os primeiros entre os primeiros. Em dois ou três notei o langor desprovido de realidade, noutros notava­ ­se o cultivo do gosto esteta, noutros, o enfado nervoso. A sessão propriamente dita iniciou­se com um discurso retórico do tour leader Washington no qual descrevia todos os episódios relevantes desde que se deslocara à classe turística para averiguar a gravidade da “infeliz ocorrência”.

Quando o discurso já levava mais de meia hora, um primeiro passageiro interrompeu­o, por meio de uma gestualidade ritual de espantar, e interpôs uma objecção,

«O que o levou a abusar da nossa serenidade introduzindo em espaços que não lhes são adequados sujeitos de outra natureza?»

Vi o tour leader a gaguejar, pigarreou várias vezes tentando disfarçar a hesitação,

«Caro passageiro Falfoy…», o que repetiu três vezes para ganhar tempo, e, apesar dos iniciais balbucios, acabou por produzir uma resposta contundente,

«É bem verdade que contrariei os costumes, mas por uma razão fundamental: estes passageiros mostraram qualidades que nós recordamos nos ancestrais soldaditas!»

Levantou­se um burburinho que percorreu toda a assem ­ bleia como uma onda. Percebi mais tarde que era uma ousadia, praticamente herética, atribuir a passageiros de hoje as quali­dades dos antigos soldaditas. Era especialmente degradante atribuir essas qualidades a passageiros de outras classes.

Passado um leve instante, o Super­padreco levantou­se e o burburinho sumiu. Este era um homem grande, forte, ainda que não ao ponto de podermos considerá­lo obeso, envergando vestes de um aparato complexo e volumoso em

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amarelo e branco, tendo como único contraponto a tanta exuberância a fragilidade de um pequeno círio que segurava na mão direita.

«Caro tour leader, esclareça as suas palavras para que a gravidade daquilo que declarou não recaia sobre vós.»

O tour leader estava atrapalhado, precisou de limpar a voz, e virou­se de frente para a bancada onde estavam todos os Padrecos ilustres,

«Eminência, eu explico­me.»Pelos rictos e semblantes carregados dos inúmeros

Padrecos­mor que rodeavam o Super­padreco, talvez excepção feita ao Padreco­mor nº 33, poder­se­ia dizer que acreditavam não haver explicação possível.

«Eminência, acredito que estes dois passageiros serão uma ajuda preciosa para resolver os graves problemas que afectam o nosso avião. São objectivos, pragmáticos, enfrentam as situações problemáticas e são determinados.»

Fez­se silêncio. De certa maneira parecia que os soldaditas não sabiam de que se estaria a falar.

«Com que então estes passageiros podem resolver os nossos problemas?», voltou à carga o passageiro Falfoy, sorrin­do de forma afectada para os que o ladeavam.

«Não sabia que tínhamos problemas!», gracejou à sua direita o passageiro Grabbe.

«Ui! Mas que problemas!», insinuou à esquerda o passa­geiro Coyle, e ficaram os três a rir de maneira esgazeada. E estimulados por estes, ouviram­se risos de canícula prove­nientes de diferentes sectores da assembleia.

«Tentarei, então, ser mais claro», retomou o tour leader num tom de desdenhosa concessão, «O recente acidente na asa do avião é o sintoma da existência de um conjunto de problemas que estão a fugir ao nosso controle. A administração está a perder a sua eficácia. Podia ter sido um desastre fatal para

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todos nós. Talvez só não o tenha sido graças à oportuna intervenção que estes passageiros ajudaram a implementar.»

«Bom, mas se está resolvido… então está resolvido… não havia razão para os trazer, não é assim?», insistiu Falfoy, com uma rectidão de postura que quase desmentia o pensamento vilipendiário.

Quanto mais penetrávamos naquele mundo perfeito, mais a felicidade dos soldaditas revelava outras facetas menos interessantes; quanto melhor os conhecia mais me apercebia que havia neles uma indiferente despreocupação pelo que se passava no resto do avião. Para eles era como se o resto do avião não existisse.

«Senhores!…», Hitlodeu levantara­se.Havia­me olhado de esguelha e decidira­se a intervir ao

ver­me de dentes em riste. Ele não estava menos furioso que eu, mas conseguia adoptar a atitude diplomática que a mim me faltava,

«Senhores, permitam que intervenha para vos fazer notar o seguinte…»

Mas a sala caiu automaticamente num silêncio espasmódico e o Super­padreco levantou­se outra vez, o que não impediu Hitlodeu de continuar o que tinha para dizer,

«O acidente de que falou o tour leader foi mesmo muito grave: provocou inúmeros mortos e deixou inúmeros passa­geiros maltratados. Há urgência no socorro! Há muitos passageiros que estão em necessidade e em sofrimento, especialmente aqueles que prosseguem a sua viagem na asa, pois não têm modo de sair dela.»

A uma pausa de Hitlodeu, o Super­padreco interveio com voz severa,

«Washington! Esta assembleia agradece que informe os estranhos que aqui trouxe que não lhes é permitido pronunciarem­se sem serem solicitados.»

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«Queira desculpar eminência, eles não conhecem o proto­colo…», e com um gesto apaziguador de mãos e uma espécie de esgar trocista pediu a Hitlodeu que se sentasse, «No entanto, eminência, peço­lhe que não se perca tempo inutilmente e se ouça o que estes homens têm para dizer.»

O Super­padreco respondeu em tom cortante,«A sua sugestão fica registada.»Ficava claro que havia entre os dois soldaditas uma adver­

sidade irreconciliável, algo mais que a simples concorrência de influências que, como homens poderosos, ambos teriam.

Quando nos foi finalmente endereçado o convite formal para nos pronunciarmos, Hitlodeu deu seguimento ao que iniciara. Repetiu o pedido de auxílio às vítimas do míssil e depois abordou a necessidade de introduzir mudanças na administração para que casos como aquele nunca mais voltassem a acontecer. Neste ponto os membros do Conselho reagiram numa explosão de indignação,

«Mudanças!? Que mudanças?», repetia­se por toda a parte.O Super­padreco voltou, num ímpeto, a levantar­se,«Washington!», fervilhava de irritação, «Avise esses estra­

nhos que aqui trouxe que não podem insultar este Conselho com… ideias… heréticas. Nós não podemos mudar!»

«Queira desculpar eminência!», também se levantara o tour leader e a sua voz não revelava qualquer timbre de servilismo, pelo contrário, brandia a hostilidade e o sarcasmo de uma lide galharda, «Porém, devo declarar que eu, enquanto tour leader, estou de acordo com a análise deste passageiro.»

Nova onda de alvoroço interrompeu­o,«Acredito que este Conselho deveria estar mais atento às

vozes da consciência e da inteligência; e tecer menos críticas com base na tradição.»

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Os dois homens permaneciam em pé a vociferar, nutrindo a agressividade em cada gesto, o que contrastava violentamente com a asma da vasta assembleia,

«Excelência, está a passar das marcas!»«Excelência, eu sei quais são as minha prerrogativas.»E mesmo se parecia que estavam prestes a estoirar de

raiva, não voltaram a emitir um som; e acabaram por se sentar, simultaneamente, os dois.

Ante uma assembleia que sufocava, o passageiro Falfoy ergueu­se e arrebatou a palavra,

«Permitam­me excelentíssimos… Aquela tirada do turista é muito interessante, mas talvez fosse curioso saber que tipo de mudanças se propõe, mais concretamente, realizar.»

Percebendo que a intervenção lhe era dirigida, Hitlodeu levantou­se pressentindo uma armadilha,

«Bem, segundo a perspectiva de quem está de fora, é possível apontar já alguns problemas óbvios para os quais é preciso mudar as mentalidades, as atitudes…»

«Siiiiimm?…», ajudou, divertido, Falfoy.Coyle, aquele que dos três tinha mais aspecto helmin

­tóide, observava com nítido entusiasmo a prestação do seu líder.

«O problema mais grave, pelo menos aquele que mais se sente no resto do avião, é o excesso de passageiros e a falta de condições que deriva desse excesso de passageiros.»

«Muito bem. Identificou um hipotético problema. O que se propõe fazer?»

Já havíamos discutido este mesmo problema vezes sem conta.

«Muito simples: se sabemos que há passageiros a mais, então não podemos deixar que o número aumente. Sejamos objectivos: não há espaço para mais passageiros.»

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As reacções imediatas foram muito díspares, ouvindo­se risadas vexatórias em alguns sectores da câmara, para além dos protestos, assobios e o patear mais comum.

«Em resumo, devíamos impedir a entrada de novos passageiros neste avião, é isso que advoga? É isso?», vincava friamente Falfoy.

O Super­padreco voltou a levantar­se, impôs o silêncio na câmara e retorquiu, numa voz litúrgica,

«Sabe, senhor passageiro, não se devem colocar as questões que está a levantar. Não é ético. Todos têm direito de entrar, pelo que não depende de nós tal decisão. Não nos cabe o direito de impedir a dádiva da entrada, porque o avião é de todos.»

Apeteceu­me gritar. Aquilo que acabara de ouvir era precisamente o género de discurso pouco honesto que ofusca a verdade em nome de certos preconceitos mascarados de virtudes, ainda para mais na boca de um homem que conduz o destino de outros homens e que, por isso, deveria ser lúcido e visionário. Como é possível, pensei eu, admitir infinitamente a entrada de passageiros se os lugares reservados para os passageiros não são infinitos? Que eticidade existe num raciocínio que esconde o descontrolo perigoso através de um exercício de cegueira? Pensava nisto furiosamente, de tal modo que fui cortante quando interrompi o Super­padreco,

«Essa ideia preguiçosa de que o avião é de todos permite que os cuidados e as reparações sejam de ninguém.»

Funcionou como uma pedrada seca na nuca. Calaram­se todos.

O tour leader levantou­se mais uma vez e esboçou um gesto desprovido de conteúdo, vagamente semelhante a tantos outros em que tentara acalmar o auditório.

Só Hitlodeu acrescentou,

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«Não se pode fingir que está tudo bem e recorrer a preconceitos éticos para justificar o fingimento. Isso é que não é ético!»

A tensão estava no máximo. Alguns olhares naquela assem bleia poderiam matar. O Super­padreco sentiu­se ofen­dido mas não conseguia produzir uma resposta que não fosse tradicional.

O tour leader foi o primeiro a reagir, num tom hesitante e levemente reconciliador, falando devagar como se se sentisse subitamente extenuado,

«Deixe­me que lhe diga que o preconceito de que nos acusa não é sustentado por todos os elementos desta assembleia. Alguns de nós vêem com um pouco mais de preocupação a causa do bem comum. Mas queira compreender que aquilo que propõe é, para os nossos hábitos de pensamento rotineiro, uma violência inominável. A bem dizer, é uma infâmia.»

Falfoy, que devia ser dos poucos a quem o preconceito não amputava a eficácia cerebral, quebrou propositadamente a sequência da discussão,

«Caros passageiros, na minha opinião estamos a inquietar­nos demasiado com um caso não devia ser trazido a esta câmara, mas sim apresentada à consideração do Comandante. Para que serve ele afinal? Nunca comparece!»

Fizeram­se ouvir imediatamente vozes de apoio. E em coerência com o discurso, retirou­se da sala, seguido de perto por Grabbe e Coyle. Muitos outros primeiros passageiros cumpriram a estratégia do influente Falfoy e também abandonaram, pateando, a sala; e, reticentemente, restaram os Padrecos­mor. A um sinal do Super­padreco, os Padrecos abandonaram a bancada e os guardas cumpriam a tarefa de esvaziar as galerias.

Durante este episódio detectei um intrigante pormenor: por instantes notei uma subtil troca de olhares entre o tour

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leader e o Super­padreco que denotava uma… como direi, sim, uma estranha cumplicidade. Neles, logo neles, não fazia sentido.

Quando já só restava eu, Hitlodeu, o tour leader e o Super­ ­padreco, retomei cheio de impaciência,

«Onde está, afinal, o Comandante?»«Vamos para a sala de comando, não é?», acabou por

murmurar o tour leader, dirigindo de novo o olhar ao outro soldadita.

Atravessámos corredores sombrios e mais estreitos que os anteriormente percorridos, de tal modo que tínhamos que seguir em fila indiana. Todo o percurso foi feito em relativo silêncio, com os dois egrégios soldaditas liderando e nós os dois atrás; até que chegámos a uma pequena antecâmara onde estavam, inseridos nas paredes, vários monitores desligados. Havia ali uma porta blindada, pequena e vermelha, também ela toda lisa e com o característico friso decorativo na parte superior. Imediatamente por cima do vão da porta estava uma placa onde se encontrava a palavra ‘Comando’. Finalmente ia falar com quem decidia alguma coisa.

Os dois soldaditas inseriram códigos conjuntos e uma chave; e a porta abriu­se. Deram­me passagem e quando lá entrei não encontrei ninguém. Não havia ninguém aos comandos do avião. Garanto que fiquei atónito por um bom bocado. Aproximei­me mais dos instrumentos e nos dois lugares de comando não havia ninguém. Ninguém.

O Super­padreco, atrás de mim, fazia cara de Madalena arrependida e o tour leader fazia cara de caso,

«Pronto. Agora já sabe», suspirou o primeiro.Virei­me para eles,«O que é que isto quer dizer?», e não me responderam.

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Corri os olhos pela complexidade de decisões que a humanidade tinha que tomar. Tantos botões, ecrãs, gráficos e sinalizadores, tudo tão complicado que era impossível perceber como controlar o avião. Finalmente, depois de um demorado desfalecimento, verificando um botão amarelo que acendia e apagava continuamente, percebi que o avião seguia em piloto automático,

«Mas isto está no piloto automático!»«Sempre esteve, isso garanto­lho eu», apressou­se o

Super­padreco a justificar, «Várias gerações de Comandantes só tocavam em dois ou três botões, ainda que agora não se saiba bem quais.»

Só então todo o peso do absurdo desabou em mim. Agora tudo fazia sentido. O Comandante estava sempre ocupado, não comparecia às reuniões do conselho, não tomava decisões porque, pura e simplesmente, não existia.

«Há quanto tempo?»«Como?»«Há quanto tempo não há Comandante?»«Quando o último Comandante morreu eu era noviço»,

respondeu o Super­padreco, «Os líderes de então decidiram não revelar tal facto por necessidade de não ferir a serenidade dos passageiros, por isso não sabemos rigorosamente quando faleceu. E nós temos mantido o que então foi feito, de modo que ainda perdura a ideia que o Comandante se encontra terrivelmente ocupado com a difícil tarefa de dirigir o avião.»

«Então ninguém sabe, senão vocês, que não há Coman­dante?»

«Tinha de ser. Senão a intranquilidade provocada por tal notícia colocaria a nossa comunidade num conflito indesejado. A nossa tranquilidade seria afectada.»

«Então e agora?», perguntei absorto.

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«Nós achamos que você daria um óptimo Comandante», precipitou­se o Super­padreco, «Que acha?»

«Mas eu não quero ser Comandante!», devolvi pronta­mente.

O tour leader lançou um ar de censura ao Super­padreco e retomou com voz insinuante,

«Se me permite, adianto­lhe já, para reflexão, que uma das nossas maiores preocupações é este indicador aqui», e apontou para a consola central onde estava um mostrador analó gico, entre trezentos e tal outros, identificado com as siglas I.S.E. Esse mostrador apresentava quatro áreas de medida diferen­tes, sendo a mínima marcada a verde, depois outra em ama­relo, depois a laranja e, finalmente, os valores superiores em vermelho: o ponteiro estava no máximo do limite a vermelho.

«O que quer significar I.S.E.?», perguntou Hitlodeu.«Não sabemos, mas deve ser grave.»«Podemos contar consigo?», teimou o Super­padreco.«Considerem ao menos a possibilidade de nos ajudar

por que nós estamos exaustos… Sentimos que o avião está cada vez mais ingovernável, mas não conseguimos encontrar soluções viáveis para melhorar a situação», reforçou o outro soldadita.

«Lamento, mas eu não tenho nada a ver com isso. Só queria falar com o Comandante por causa do meu lugar. Mas se ele não existe… Não tenho mais nada a fazer aqui…», dei meia volta e sai, um tanto precipitadamente, da sala.

Os demais vieram no meu encalço tão assustados quanto eu. Hitlodeu agarrou­me no braço e fez­me parar,

«Tem calma, que não é assim tão simples…»E voltando­se para os dois soldaditas,«Acho que não temos outro remédio senão prestar o

auxílio que pudermos. Aliás, temos na classe turística, e noutras áreas do avião, muitos passageiros a torcer por nós…»

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Rapidamente fiquei alheado do que diziam, porque a preocupação me sugeria outros pensamentos. Sentia­me aban­donado pela força de vontade que até ali fora tão presen te. De certa maneira ficara estilhaçada sob a surpresa de não haver um Comandante. Sempre assumira que o avião se encontrava num caos não por causa do Comandante, mas porque ele não estava devidamente informado; pelo que, pensava eu, se soubesse o que verdadeiramente se estava a passar, e porque seria seguramente um homem sensato, depressa se encarre­garia de resolver todos os problemas, recuperando eu o meu estatuto de passageiro tranquilo.

Como em qualquer outro avião, a cabine de comando era estreita, com a forma de um rectângulo irregular profus amente revestido de painéis de instrumentos de vital importância; ao fundo, diante da consola central e da magnífica janela panorâmica, estavam os dois lugares indispen­sáveis aos pilotos. Sentei­me num desses lugares e deixei­me trespassar pela misteriosa sensação de poder que emanava dos instrumentos; com eles podia controlar tudo o que se passava dentro do avião; lembrei­me inclusive que poderia haver uma maneira de abrir, a partir dali, o grande portão negro; cheguei até a sentir uma ansiedade febril face à riqueza de opções que tinha diante de mim. Mas preferi contemplar o mostrador ISE, tentando adivinhar o seu significado, negligentemente, apenas percorrendo as hipóteses explicativas que me ocorriam intuitivamente, mesmo sabendo que não teria sucesso espontâneo. E enquanto o cérebro se arrepiava ante os hipotéticos perigos que aquele mostrador poderia pretender alertar, os olhos foram ganhando mais presença de ver até tomar consciência dos milhares de estrelas que a janela oferecia. Era notável, o Cosmos.

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Entretanto Hitlodeu sentou­se no assento que sobrava a meu lado. Perguntei­lhe,

«Já se foram?»«Já», e, após breve pausa, acrescentou, «Deixaram­nos

uma recomendação…»«Qual?…»«Não façam nada de drástico sem nos consultar primeiro,

está bem?» e riu­se. E eu também. Sozinhos, só nos restava isso. Rir. Era uma missão ciclópica, eu sabia, por isso resignamo­nos ao silêncio da expectativa, olhando as estrelas como caniços pensantes.

«Era muito bom se fosse possível ler o funcionamento do universo, não era?»

«Talvez… Mas já viste que se perderia o mistério?»«Perder o mistério? Resta saber o que será mais benéfico

para a Humanidade, se conviver com o mistério, ou se viver com a certeza!»

«Admito que essa contabilidade não está feita. Mas creio que o mistério é importante porque se trata daquela… daquela espe ciaria… que te faz ser curioso e te leva a indagar e a investigar.»

«Mas, em contrapartida, a certeza permite­te decidir sem risco de errar. Porque eu não estou a falar de uma certeza hipotética e transitória, estou a falar da certeza definitiva.»

«A verdade absoluta?»«De certa maneira…»«Não existe, e ainda bem.»«Não estás a perceber! Olha para nós. Não sabemos o que

fazer. Não era óptimo se existisse um manual de instruções que dissesse precisamente o que fazer? Em que botão tocar, qual desligar, qual ligar?»

«Talvez para resolver a questão aqui e agora, mas para todo o sempre, não.»

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«Porquê?»«Porque isso reduziria a Humanidade a uma máquina.

Susceptí vel de ser definida, afinada, acertada, dentro de curtos parâmetros de possibilidades controláveis. Isso seria detestável.»

«Ora bolas! Não estás farto de ter sempre um problema, seja ele qual for, para resolver? Perpetuamente. Continuamente. Mal resolves um, logo aparece outro. E a maioria deles mesquinhos e inúteis.»

«Mesmo assim…»«Oh! Quem me dera ter aqui um manual de instruções…»Nos dias que se seguiram, o nosso trabalho consistiu em

analisar e inventariar atentamente cada um dos painéis de instrumentos. Ao fim de poucas horas percebemos que os instrumentos forneciam demasiados dados para retirar dali uma noção clara e imediata da situação do avião. Além disso, o nosso trabalho era dificultado pelo facto dos painéis emitirem pouca luz; todos os ecrãs estavam como que baços, apesar de acesos; mas via­se que debitavam continuamente novas leituras; os próprios botõezinhos de luz eram fraquinhos, mesmo aqueles que se prestavam a piscar.

Horas depois deparei com um pequeno pormenor que poderia ser significativo para a nossa investigação. Notei que havia um pequeno botão que se encontrava isolado dos demais e fora de qualquer dos painéis. Perguntei a Hitlodeu se já encontrara um botão solitário como aquele, disse­me que não, e em breve chegámos à conclusão que era único em todo o compartimento. Cada painel circunscrevia inúmeros botões relacionados com determinada funcionalidade, mas aquele botão estava fora de qualquer conjunto. Conferenciámos e ponderámos carregar nele para ver o que acontecia.

Seria prudente carregar num botão não identificado discretamente perdido no meio de inúmeros painéis cheios de botões?

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Carregámos.Fez­se ouvir um barulho. Para nossa total surpresa, um

bloco inteiro de painéis desapareceu à nossa frente e abriu­ ­se um buraco escuro. Uma porta secreta? Segundos depois acendiam­se lá dentro luzes hesitantes.

Com uma dimensão semelhante à da sala de comando, estava agora a descoberto uma sala secundária igualmente revestida de painéis de instrumentos. A diferença fundamental em relação à primeira sala era a existência de um objecto extraordinário. Na parede do fundo havia uma porta em madeira. Madeira! Nunca na minha vida vira qualquer objecto concebido em madeira. Eu e Hitlodeu trocámos olhares de espanto e fomos imediatamente impelidos a tocar naquele objecto raro. Quando experimentei a maçaneta, bastou uma leve pressão para abrir a porta. E lá dentro encontrei algo ainda mais espantoso e que nunca pensei ver na vida: livros. Estávamos numa biblioteca.

A princípio os olhos percorreram esgalgados todos os recantos daquele espaço inacreditável, mas depois o sossego dos livros apoderou­se do olhar e tornou a busca mais criteriosa e atenta. Para além das estantes repletas de livros a revestir a totalidade das quatro paredes, estavam também, mais ou menos no centro da sala, duas outras peças extraordinárias em madeira: uma única secretária servida de uma única cadeira. Aproximei­me da secretária ao perceber que sobre o tampo havia um livro aberto. Ao contrário dos livros que já havia consultado, este era um manuscrito inacabado. E ao fim de duas páginas percebi que aquele era o Diário de Bordo, onde gerações de Comandantes haviam registado os principais acontecimentos, e cuja última entrada datava de há cinquenta e dois anos atrás.

Continuámos a espiolhar para satisfazer a curiosidade que não nos levava a lado nenhum, mas que era importante

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para digerir a surpresa e a novidade. Analisei as quatro gavetas da secretária e, para além do normal material de escritório, encontrámos objectos aparentemente inúteis, peças desgarradas de mecanismos inidentificáveis, e uma agenda sem nada escrito a não ser, na última página, a frase: As três portas. À parte disso só havia a salientar dois lembretes colados num placar atrás da porta: um com a mensagem Verificar contagem; o outro repetia a informação As três portas, mas pela caligrafia verificava­se não pertencer ao mesmo autor.

Na manhã do terceiro dia encontrei no Diário de Bordo uma passagem que me deixou preocupado. Um certo Comandante registara a sua inquietação quanto ao futuro do avião caso se desencadeasse a “contagem decrescente” que poderia “desligar” o avião. Mas aquela passagem era tão curta e tão pouco clara, provavelmente porque pressupunha um contexto do qual estávamos excluídos, que não cheguei a perceber efectivamente onde estava o perigo e o que é que era perigoso. Mas percebi que era uma alerta e, por isso, me detive bastante tempo para tentar decifrá­lo. Segundo o tal Comandante, e passo a citar, “Como todos sabemos, se se extinguirem, cumulativamente, quatro das funções vitais, o avião desligar­se­á. Temo que esse terrível aviso, que é o desencadear automático da contagem decrescente, esteja iminente”.

«Hitlodeu?»«Dize.»«Quantos indicadores já encontraste com valores nega­

tivos máximos?»Hitlodeu entrou na biblioteca com um maço de folhas

desalinhadas na mão e manchadas com o mesmo pó que tinha no nariz.

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«Até ao momento… ora deixa­me ver…», consultou umas quantas folhas, «são dezasseis os indicadores no vermelho.»

«No máximo?»«Não. Dezasseis que já entraram na marca vermelha,

ou seja, valores negativos ou desaconselháveis… mas dos quais só três estão no máximo.»

«Três?!?»«Sim. Porquê? Qual é o problema?»«Estou a pensar se o alerta que encontrei aqui no Diário de

Bordo, sobre uma contagem decrescente que pode desactivar o avião, não terá algo a ver com os indicadores em valores negativos máximos…»

«Explica­te melhor.»«Segundo este alerta, com quatro funções vitais extintas

começa uma contagem decrescente que desligará o avião. Ora, será que algum desses indicadores é uma função vital?»

«Olha, o indicador ISE é um deles. Está no vermelho­ ­máximo.»

Hitlodeu fez cara de descrédito.Por cautela realizámos um rastreio de urgência para

verificar se não havia mais indicadores naquelas condições e não encontrámos nenhum outro. Mas, na verdade, não havia muitas razões para alívio, porque, pela enorme quantidade de indicadores no vermelho, percebemos que a sobrevivência do avião estava por um fio. Perante a evidência daqueles números, senti­me invadido por uma sensação de desconfiança, pois a aparente tranquilidade da sala de comando agora parecia­me traiçoeira; nada naquele espaço de comando indicava perigo, o que, face ao que agora sabíamos, parecia contraditório.

Não tive a oportunidade de alimentar esse estranho pressentimento, porque entretanto me distraí com a visita dos dois egrégios soldaditas. Como não tínhamos novidades relevantes, aproveitámos para fazer com eles o ponto da

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situação, nada agradável, da nossa investigação sobre o estado do avião. Depois de confirmar toda a informação que já dominávamos chegámos à conclusão que com a existência de tantos indicadores no vermelho, as condições de higiene e salubridade dentro do avião só podiam ser muito más. A novidade mais positiva que tínhamos para dar era a possibilidade de ter decifrado o significado do indicador ISE: suspeitávamos ser um Índice de Saturação Ecológica.

No entanto, a novidade mais extraordinária deste encontro foi da responsabilidade dos soldaditas. Fomos informados que a verdade sobre o comando do avião fora revelada: agora todos os membros do Conselho dos Primeiros sabiam que nenhum Comandante existia. Como previsto, aquela revelação teve o efeito de uma autêntica hecatombe entre os sereníssimos. Houve manifestações histéricas de desolação e infortúnio, como se cerceadas as próprias vidas. Durante dias nenhum dos primeiros passageiros esteve em condições de se voltar a reunir. E quando isso foi finalmente possível, Falfoy fizera um discurso furioso e exigira que se elegesse imediatamente um novo Comandante, porque era inadmissível, dizia ele, que passageiros de outros estratos ocupassem a sala de comando. Mas estava­se num impasse, porque ninguém se propusera e a eleição havia sido adiada.

Alguns dias mais tarde encontrei no Diário de Bordo outra passagem inquietante. Um Comandante que governara o avião muitos anos mais tarde, cerca de duzentos anos mais tarde, deixara registada uma reflexão sobre os perigos do piloto automático, alertando que algumas funções tendem a desligar­se quando o avião fica durante muito tempo em automático, sendo, por isso, necessário fazer a renovação do sistema para garantir que a informação estava de facto actualizada.

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Há quanto tempo estaria o avião em piloto automático?Levantei­me e fui ter com Hitlodeu à sala de comando,

onde o encontrei sentado no chão a experimentar os botões do painel ACG e fazendo os consequentes apontamentos,

«Acho que encontrei outra informação que pode ser importante. Aparentemente o sistema de piloto automático tem uma falha. Não é tão fiável como pensávamos.»

«Então?»«Parece que é possível que ao estar activado durante muito

tempo outras funções adormeçam.»«E?»«É melhor renovar o piloto automático.»«E isso é difícil de fazer?»«Segundo as instruções que estão no Diário de Bordo,

basta premir levemente o botão do piloto automático, cerca de 10 segundos, sem o desligar».

Hitlodeu ficou a olhar para mim e eu para ele sem que houvesse palavras capazes de amparar as incertezas que sentía ­ mos. Sabíamos que tínhamos, inevitavelmente, de pôr à prova aquela informação, por isso sentámo­nos os dois nas cadeiras de comando. Olhámos o Cosmos diante de nós e depois olhámos a pequenez dos instrumentos onde o botão do piloto automático continuava a piscar amarelo. Estiquei o dedo.

Hitlodeu começou a apertar o cinto,«E se tu desligas o piloto automático sem querer? Nenhum

de nós sabe pilotar este avião!»Ao que também eu apertei o cinto.E, lentamente, coloquei o dedo no botão. Premi­o

levemente e o piscar característico foi substituído por uma contínua cor azul. Mantive a pressão durante os dez segundos necessários e depois foi a confusão geral. Ao largar o botão, a cor azul desapareceu e o botão voltou a piscar de amarelo, mas tudo estava diferente.

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A consola central ganhou vida e encheu­se de luz; os gráficos, que antes eram opacos e difíceis de analisar, tornaram­se nítidos; as luzes que piscavam frouxas passaram a piscar intensamente; e o silêncio arranhado de rumores foi substituído por sons de alarme assustadores. Sirenes agudas acompanhavam luzes amarelas giratórias, uma em cada compartimento, excepto na biblioteca, sendo nítida a mensagem que o avião estava efectivamente em perigo eminente. E na consola central, mesmo diante de mim, acendeu­se um ecrã onde se viam números em contagem decrescente,

«Não pode ser!», repetia Hitlodeu como um eco a saltar sobre as minhas palavras.

Por uma fracção de segundos ficámos como basbaques atarantados ante a novidade que menos queríamos ouvir,

«Então?… Não eram só três os indicadores reduzidos a zero?»

«Depressa! Temos que voltar a verificar todos os indica­dores», disse­lhe, sacudindo a inércia.

Saltámos da cadeira e ao fim de vinte minutos confirmámos que não, não havia mais indicadores no vermelho que aqueles que já havíamos sinalizado. Cruzámos o olhar procurando confiança um no outro, mas só encontrámos o assombro mútuo.

«Outra vez», disse­lhe, deitando os olhos na contagem decrescente, «Alguma coisa nos está a escapar!»

Voltámos a percorrer cada centímetro dos painéis de instrumentos, tentando detectar alguma diferença que nos tivesse escapado, mas não detectámos nada de significativo.

Horas mais tarde Hitlodeu gritou,«Espera!»Corri. Hitlodeu fora buscar a cadeira à biblioteca e agora

servia­se dela para chegar ao remate superior de um dos

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painéis na sala secundária. Esticou­se todo e com a ponta dos dedos começou a limpar uma superfície de plástico que, via­se agora, escondia um indicador minúsculo. Ofereci­lhe um pano e com ele removeu integralmente uma película de pó negro. Era um indicador que apresentava a sigla DES e que também estava no vermelho­máximo.

«Com este são quatro», confirmou ele.«Oh não!»«Então e agora?… E agora?»Ficámos a olhar a contagem decrescente, que, de tão

sinistra, parecia estar a acelerar diante dos nossos olhos, apesar de, na realidade, manter a mesma cadência implacável,

«O que vamos fazer?»Apesar de nenhum de nós o mencionar, víamos com

alarme que o enorme número de vinte e quatro dígitos com que começara a contagem decrescente estava agora reduzido aos quatro algarismos da direita, o que indicava que aquela contagem havia começado há muitos, muitos, anos, talvez dezenas de anos, senão mesmo centenas.

Estávamos completamente imobilizados de pânico quando chegou um grupo de soldaditas. A porta vermelha da sala de comando abriu­se e, sem entrarem, como que receosos, lá estavam Washington, o Super­padreco e o Padreco­mor nº33, mais dois guardas,

«O que é que vocês fizeram?», trovejou o Super­padreco irritado.

O tour leader adiantou­se ao primeiro, tentando silenciá­lo,«Calma Fred…», e voltando­se para nós, «O que o Super­

­padreco queria perguntar é… bom, enfim… O que é que aconteceu?»

«Há mais de cem anos que a nossa serenidade não era afectada por tamanho chinfrim! Ouve­se em todo o avião!», remoeu o outro.

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Eu e Hitlodeu procurámos explicar o melhor possível tudo o que tinha acontecido, mas a certa altura não consegui reprimir a acusação,

«A culpa é vossa!»«Nossa?»«Sim, vossa. Vós soldaditas! Vocês, que têm a mania

que são melhores que os outros passageiros, mais educados, mais inteligentes, mais puros, infalivelmente éticos, afinal permitiram que o avião se degradasse. Melhor dizendo, vocês tornaram­se a causa maior da degradação do avião. Ele está num caos há imenso tempo e vocês não fizeram nada. Nada! Quando foi necessário intervir não o fizeram. Limitaram­se a defender os vossos privilégios. Com tanta cultura e tanto conhecimento não perceberam que o mais importante que tinham a fazer era manter o avião saudável para todos os passageiros nele viverem?»

Os velhos soldaditas ficaram calados e carrancudos.Só um dos soldaditas armados resolveu manifestar­se,«Tour leader Washington, esse sujeito não pode falar para

as eminências nesse tom. Quer que o prenda?»«Esteja calado, palerma!», respondeu­lhe.E virando­se para nós, como que saindo dum transe, disse

brandamente,«O Conselho dos Primeiros elegeu um novo Comandante,

pelo que temos de prescindir da vossa ajuda. O passageiro Falfoy é agora o Comandante deste avião. Pela minha parte, digo obrigado, pelo esforço.»

Ficámos todos calados por um bom bocado. O ecrã do computador sugava­me o olhar quando comentei,

«Então que venha depressa. Isto tem de ser resolvido o quanto antes.»

Acabara de me pronunciar quando apareceu, atrás dos egrégios soldaditas, o passageiro Falfoy e os seus apaniguados.

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O Padreco­mor nº 33 largou imediatamente uma vénia e afastou­se para deixar o novo Comandante passar. E mal entrou, teve como única manifestação,

«Agradeço que saiam os passageiros que não pertencem aqui.»

O tom cínico feriu­nos a todos, mas quem reagiu foi o tour leader a rugir incrédulo,

«Sem ouvir o esclarecimento do que se está passar? Só pode estar a brincar!»

«Eu sou descendente de várias gerações de soldaditas políticos. A liderança está no sangue da minha família. Não preciso que um passageiro da classe turística me venha dizer o que fazer!»

Olhei mais uma vez a contagem na sua imperturbável regressão e resolvi não dispensar qualquer palavra; o som esmagador das sirenes dizia tudo.

O tour leader transbordava de cólera e, enquanto saíamos, ainda o ouvi perguntar,

«Faz alguma ideia do que está a fazer?» e apontava para a consola central, «Tem alguma noção do perigo que aquilo significa?»

Pelo que depois me contou o tour leader, Falfoy decidiu, apesar de não ter a mínima ideia de como pilotar o avião, desligar imediatamente o piloto automático, o que teve a virtude de suprimir as sirenes e as luzes de alarme, mas que conduziu a uma situação inesperada. Nem a contagem decrescente desapareceu, nem o piloto automático se desligou; em vez disso, surgiu no ecrã uma mensagem do computador pedindo uma palavra­chave.

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«Uma palavra­chave?!», exclamou virulento com ar de quem exigia explicações aos velhos soldaditas. Mas aquilo era novidade tanto para uns como para outros.

Falfoy não desistiu de imediato e tentou descobrir prontamente a tal palavra­chave introduzindo uma que lhe ocorreu, o nome de um antepassado, e assim descobriu que queimara irremediavelmente uma das oportunidades que o computador lhe dava. Sobrando apenas duas tentativas, ele e os acólitos esforçaram­se por raciocinar em busca da palavra certa, mas quando inseriram outra, então julgada a correcta, também foi recusada. A certa altura, vendo que a contagem decrescente era inelutável, Grabbe e Coyle abandonaram­no, mas ele continuou sentado a olhar os inúmeros ecrãs e botões, a cismar naquilo, convicto que a experiência dos seus antepassados lhe corria no sangue; e nem os dois soldaditas mais velhos o haviam conseguido demover. Por fim, passada uma solitária e frustrante semana sem que tivesse descortinado nada que pudesse constituir a tal senha de acesso, também ele se foi embora.

Só nessa altura eu e Hitlodeu fomos outra vez chamados. Já só restavam três dígitos no número que decrescia. Também nós ficámos surpreendidos com o novo desafio. Já não bastava ser manifestamente complexo o funcionamento do avião, também tinham de existir níveis de sigilo dentro do sistema! Onde poderíamos descobrir a senha de acesso se mesmo os legítimos herdeiros dos antigos soldaditas nada sabiam? Depois de conferenciarmos até à exaustão, sem chegar a qualquer certeza, ou mesmo a qualquer pista relevante, os velhos soldaditas perderam a esperança. Pareceu­lhes que era chegada a altura de preparar o fim e decidiram juntar­se aos outros primeiros passageiros. Segundo eles, havia que ajudá­los a regressar à serenidade.

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Nós não tínhamos propriamente nenhum lugar para onde voltar, por isso ficámos. Eu, por mim, sentia­me esgotado demais para alicerçar qualquer raciocínio de investigação. Fechei­me na biblioteca sozinho para me afastar de qualquer distracção; sentei­me à secretária a rever as pistas de que dispúnhamos, as incontáveis variáveis, debatendo­me, ao mesmo tempo, com a perplexidade de ver um problema de gestão geral estranhamente convertido num mistério. Perguntava­me que palavra de sete dígitos poderia ter sido usada pelos comandantes como palavra­chave e, por cansaço, acabei por pousar a cabeça sobre os braços no tampo da mesa.

E devo ter adormecido.Sonhei que caminhava ao longo de uma sucessão

interminável de corredores; ao fim de cada corredor havia uma porta, mas sempre que a abria não encontrava nada de definitivo, senão outro corredor que me fazia andar imenso; em alguns corredores cruzava­me com pessoas que me pediam satisfações pela confiança que me haviam votado, e eu, muito envergonhado, dizia que andava à procura.

De súbito acordei.Tinha a solução na cabeça. Talvez.Sem nada dizer ao meu companheiro, parti em demanda

de confirmação da intuição que o sonho aflorara. Quando regressei, horas mais tarde, fui direito à consola central. Hitlodeu, que adormecera sentado num dos lugares de comando, acordou com o clique metálico da mola do cinto de segurança. Ajustei o banco e disse­lhe,

«É melhor apertares o teu cinto.»«Mas o que é que tu estás a fazer?»«Vamos ver se é desta.»Estiquei o dedo com teatralidade propositada para carregar

no botão do piloto automático, esperei que se tornasse azul,

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até que o computador apresentou no ecrã a janela com o pedido da palavra­chave com sete dígitos.

Sem cerimónias, teclei a palavra que tinha em mente. Hitlodeu, sobressaltado, tentou deter­me, mas tranquilizei­o,

«Tem calma. Agora sei o que estou a fazer», e premi Enter.

A surpresa maior viria segundos depois, quando no ecrã do computador apareceu a mensagem Bem-vindo Comandante. Insira as suas ordens, e logo por baixo o cursor piscava ansioso por traduzir as ordens.

Eu e Hitlodeu olhamo­nos surpreendidos. Aceite a palavra­ ­chave, o computador disponibilizava­se automaticamente para receber ordens. Era mais fácil do que poderíamos imaginar.

«Estou tentado…», disse eu a pensar alto.«Bem…Tu sabes que a contagem só terminará se intro­

duzires uma ordem que contrarie a situação de degradação em que o avião agora se encontra, não é?»

«Não espero para falar com eles?», perguntei eu como quem sacode uma dificuldade.

«Esperar ainda mais? A contagem decrescente está quase a terminar e existem muitíssimos passageiros que já estão à espera há muito tempo.»

Achei que podia concordar com Hitlodeu, por isso inseri a ordem: diminuir a admissão de passageiros. E depois carreguei na tecla Enter. O ecrã mostrou que o computador estava a processar a informação, o que ainda demorou algum tempo; e quando o sistema ficou de novo operacional já não havia nenhuma contagem decrescente. Extinguira­se.

Ao mesmo tempo incrédulo e satisfeito, mal se podendo conter de excitação, Hitlodeu perguntou,

«Mas como é que tu descobriste?»

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Adoptei o ar mais douto que pude, quase impossível num rosto tão aliviado, e, fazendo render a minha vantagem, lá lhe saciei a curiosidade,

«Ontem estive na biblioteca, lembraste?»«Sim.»«Quando me fartei de pensar no assunto sem chegar a

qualquer conclusão, distraí­me com os livros. Estava tão cansado que a minha atenção desviou­se para os livros. Comecei a ler arbitrariamente, saltando de livro para livro sem qualquer critério, até que me ocorreu o pensamento: não estaria naqueles livros a palavra que procurávamos tão desesperadamente? O certo é que eu estava sentado no lugar onde muitos Comandantes haviam estado sentados e rodeado dos livros que eles haviam escolhido. Que livro acolheria a tal palavra?»

«E descobriste?»«Como viste, acabei por descobrir.»«Como?»«Imaginei­me na pele de um Comandante, ou, afinal,

na pele de qualquer pessoa que usasse regularmente aquela mesa como mesa de trabalho. Os livros mais importantes e mais consultados estariam à mão, não achas? Eu acho. Então experimentei ver o que encontrava esticando a mão à prateleira mais próxima. Rodando a cadeira para trás, lá encontrei uma meia dúzia de livros que denotavam muito uso.»

«Vá lá! Não comeces com rodeios! Como é que chegaste à palavra certa?»

«Olha, sabes…», senti uma súbita vontade de sair daquele espaço estreito, «conto­te o resto pelo caminho. Anda, vamos embora.»

«Queres ir embora?»«Sim. Acho que já cumprimos aquilo a que nos propúnha­

mos, não te parece?»

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Hitlodeu olhou­me atento, tentando compreender o meu comportamento, e naquele olhar perscrutante reconheci a mesma necessidade de paz e liberdade. Deixámos a sala com um misto de alívio e de sensação do dever cumprido.

«Vá, conta lá!», pediu ele quando já percorríamos os corredores estreitos.

«Bom, como eu estava a dizer, acontece que todos os livros de que te falo estão cheios de palavras e frases sublinhadas. A certa altura percebi que a palavra que buscava podia ser uma daquelas, por isso fiz uma lista com todas as que somavam sete letras. O problema é que a lista acabou por ser grande demais e acabei por adormecer sem conseguir determinar se estava diante de pistas valiosas ou não.»

Hitlodeu ficava cada vez mais impaciente e só queria ir direito ao assunto,

«Só há pouco, ao acordar, se tornou claro. Recordaste do lembrete com a frase As três portas, que encontrámos na biblioteca? Há, de facto, três portas que têm para os soldaditas alto valor simbólico. O portão negro que os isola do resto do avião, a porta branca do Conselho e a porta vermelha da sala de comando.»

«E então?»«Então há nelas pistas importantes que nos passaram

despercebidas. Nem nós, nem os soldaditas de hoje se aperce­beram que os elementos decorativos nos frisos de cada porta contêm mensagens camufladas. À vista de todos. Apesar das ilusões que os efeitos artísticos provocam, com paciência é possível percepcionar no friso do portão negro três letras, “B”, “E” e “L”; no da porta do Conselho dos Primeiros vêem­se mais duas letras “T” e “I”; e ali no da porta da sala de Comando mais duas letras, “O” e “N”. Juntando todas estas letras obtemos a palavra Beltion. Precisamente uma das palavras que constava da minha lista.»

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Caminhando ao longo daqueles corredores sombrios contei a Hitlodeu como foi necessário procurar o livro donde retirara aquela palavra, Beltion, do qual já não tinha memória, para tentar perceber se havia alguma relação com a realidade do avião. Contei­lhe que a reencontrei na Metafísica de Aristóteles e assim descobri que era um conceito usado para designar aquilo que é mais importante. Pareceu­me, a princípio, que nada tinha a ver com a história do avião, mas depois, ao questionar­me o porquê de se terem repartido as partes do grafema pelas partes simbólicas do avião, percebi que havia uma mensagem intencional implícita: os antigos Comandantes estavam a reconhecer que aquilo que é mais importante é o avião como um todo e não uma qualquer das suas partes. E deixei­ ­me convencer que era um pensamento sem mácula.

Naqueles corredores estreitos apenas restava o rumor das solas dos nossos sapatos no chão metálico. Havíamos sucumbido ambos ao silêncio nervoso depois de entusiasmada discussão sobre o significado pleno daquela palavra especial, Beltion. A mim inquietava­me a dúvida: como é possível determinar com certeza aquilo que é mais importante face a outra coisa igualmente importante? Rapidamente dei por mim a recordar todos os passa geiros que conhecera – entre os topos, os penduras, os turis tas, os irritadistas, os de terceira e os soldaditas – e a ponderar, comparativamente, a propriedade da minha humanidade. Que género de homem seria eu se me esquecesse daqueles que conheci? Sentia­me inquieto a a apalpar as possibilidades de conjugar todos os passageiros n’ aquilo que é mais importante e não tardou que sentisse uma angústia gelada a entravar­me o gasganete.

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