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Departamento de Letras e Educao Especializao em Literatura e Cultura Afro-brasileira e Africana
Monaliza Rios Silva
A GUIN-BISSAU NO FUNDO DO CANTO: O PICO
IDENTITRIO DE ODETE SEMEDO
Guarabira PB,
Dezembro 2010.
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MONALIZA RIOS SILVA
A GUIN-BISSAU NO FUNDO DO CANTO: O PICO
IDENTITRIO DE ODETE SEMEDO
Monografia apresentada Universidade Estadual da Paraba, Campus III - Centro de Humanidades para obteno do ttulo de Especialista em Letras sob a orientao da Professora Dra.
Rosilda Alves Bezerra.
Guarabira PB,
Dezembro 2010.
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FICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA SETORIAL DE GUARABIRA/UEPB
S587g Silva, Monaliza Rios
A Guin-Bissau No Fundo do Canto: o pico identitrio de Odete Semedo / Monaliza Rios Silva. Guarabira: UEPB, 2010.
53f.
Monografia (Especializao) Universidade Estadual da Paraba.
Orientao Prof. Dra. Rosilda Alves Bezerra.
1. Literatura Africana 2. Poesia Guineense 3. Identidade I.Ttulo.
22.ed. CDD 896
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Dedico este trabalho s vozes mudas dos negros e
das negras que engolem lgrimas e mastigam dores.
A eles e elas, todo meu carinho, admirao e
respeito.
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AGRADECIMENTOS
A Deus, pelo Amor incondicional sem O qual nada em minha vida seria possvel. Aos meus pais Odcio e Mrcia pela fora, apoio, compreenso, amor e, sobretudo, pela F que depositaram em mim. Aos meus irmos Odcio Jr.; Luiz Manuel e minha irm Caroliny por serem testemunhas de meus dias e cmplices em tudo o que fao. s minhas sobrinhas Maria Clara, Maria Isabel e Maria Ceclia por me darem contnuos motivos para seguir em frente. Aos meus avs, parentes, cunhado e cunhadas pela confiana e carinho. professora Dra. Rosilda Alves Bezerra, minha orientadora, que me recebeu e me confiou em meu trabalho. minha companheira e amiga Hellen Farysa pela fora, pacincia e compreenso neste momento difcil em minha vida. Aos meus grandes amigos de Recife e de Joo Pessoa pelo carinho, amor e compreenso com que tm me tratado. s amigas Alecsandra Moreira e Amanda Marques pelo gentil olhar em parte deste estudo. UFPE por minha formao e em especial Dra. Abundia Padilha, eterna professora e orientadora, por tudo que sei de minha profisso e vida acadmica. Dra. Lucila Nogueira, ao Dr. Esman Dias e ao Dr. Jos Rodrigues, professores e queridos mestres da UFPE que me ensinaram a magia da Literatura. UEPB pela oportunidade que me deu para a realizao deste intento. A todos os professores e a todas as professoras que me lecionaram neste curso pela formao e pelos excelentes momentos. Em especial: Ms. Ivonildes Fonseca, Dr. Lus Toms, Dra. Suely Costa e Dr. Waldeci Chagas.
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Milagres do Povo
Quem ateu e viu milagres como eu Sabe que os deuses sem Deus
No cessam de brotar nem cansam de esperar E o corao que soberano e que senhor
No cabe na escravido, no cabe no seu no No cabe em si de tanto sim pura dana e sexo e glria E paira para alm da Histria
Ojuob ia l e via
Ojuobahia Xang manda chamar Obatal guia
Mame Oxum chora lagrimalegria Ptalas de Iemanj Ians-Oi ia
Ojuob ia l e via Ojuobahia
Ob
no xaru que brilha a prata luz do cu E o povo negro entendeu que o grande vencedor
Se ergue alm da dor Tudo chegou sobrevivente num navio
Quem descobriu o Brasil? Foi o negro quem viu a crueldade bem de frente
E ainda produziu milagres de f no extremo Ocidente.
(Caetano Veloso)
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RESUMO
Este estudo tem por objetivo defender que o gnero literrio constitutivo do livro de poesias da autora guineense Maria Odete da Costa Soares Semedo o gnero pico. Desta forma, pode-se entender que o narrador/mensageiro dos feitos hericos do povo guineense protagoniza a narrativa nacional de Guin-Bissau, uma vez que apresenta imagens, smbolos e representaes das experincias compartilhadas do povo deste pas africano ps-independente. Dialogando com as teorias de identidade cultural (HALL, 2006) e de identidade nacional (BAUMAN, 2005); as teorias de cultura nacional em Okonkwo (1998), Cabral (1998) e Fanon (1983); e as teorias de memria individual X memria coletiva apresentadas por Bosi (2009) e Halbwachs (2006), pode-se entender que o gnero pico do livro No Fundo do Canto da autora guineense supracitada mostra as marcas identitrias do povo daquele pas no perodo de ps-colonizao.
PALAVRAS-CHAVE: Literatura Africana. Poesia Guineense. Identidade.
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ABSTRACT
This treatise aims to demonstrate that the literary genre which constitutes the poetry book by the Guinean writer Maria Odete da Costa Soares Semedo is the epic. On being so, one perceives that the narrator/messenger of the heroic deeds of the Guinean people stands the national narrative of Guinea-Bissau, once that it carries images, symbols and representations of peoples shared experiences from this post-independent African country. Concerned with the theories of cultural identity (HALL, 2006) and national identity (BAUMAN, 2005); theories of national culture in Okonkwo (1998), Cabral (1998) and Fanon (1983); and the theories of individual memory X collective memory that lie in Bosi (2009) e Halbwachs (2006), one can understand that the epic genre of the book named No Fundo do Canto (Deep in a Corner) by the Guinean writer mentioned may show identity registers of Guinean people by the time of post-colonialism.
KEYWORDS: African Literature. Guinean Poetry. Identity.
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SUMRIO
Introduo ................................................................................................... 01
1. De onde/quando fala Odete Semedo? ................................................. 03
1.1. De qual tempo/espao fala Odete Semedo? .................................... 04
1.2. A literatura africana de lngua portuguesa: da esttica de onde fala Odete Semedo ........................................................................................... 12
2. Para quem fala Odete Semedo? ........................................................... 18
2.1. Da identidade e da identidade nacional ........................................... 20
2.2. Da memria individual; da memria coletiva .................................... 26
3. Como Odete Semedo canta No Fundo do Canto? ................................ 29
3.1. O gnero literrio: o pico transgressor guineense .......................... 30
3.2. No Fundo do Canto: o grito esbravejado pelo vento ........................ 37
Consideraes Finais .................................................................................. 49
Referncias .................................................................................................. 51
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INTRODUO:
No esboo da literatura africana de lngua portuguesa encontra-se uma
infinidade de estticas, temas e gneros literrios devido grande diversidade
cultural de frica e, mais especificamente, dos pases lusfonos, a saber: Cabo
Verde, Moambique, So Tom e Prncipe, Angola e Guin-Bissau.
Considerando este tipo de literatura, divergente do cnone europeu e
notoriamente marcada pela luta da resistncia mediante a histria da
colonizao, este estudo defende a literatura de Guin-Bissau como uma
escrita da diferena.
Baseado em Homi Bhabha (1998), a escrita da diferena atesta marcas
identitrias afastadas do cnone europeu e denota a identidade nacional do
pas de nascena do(a) escritor(a). Tal escrita se processa numa negociao
entre o hibridismo cultural e o lugar de pertencimento.
Ademais, com o objetivo de perceber as marcas identirrias de Guin-
Bissau no texto No Fundo do Canto (2007) da autora Maria Odete da Costa
Soares Semedo, o primeiro captulo intitulado De onde/quando fala Odete
Semedo? tematiza o panorama do perfil scio-histrico, poltico, econmico e
cultural a que o pas em questo se encontrava no perodo retratado no livro
pico guineense.
Mediante a defesa de que o livro se configura no gnero pico, este
estudo entende que o narrador que narra a histria do povo guineense no
perodo de ps-independncia o arauto da memria nacional. Ao se declarar
como o mensageiro da Guin-Bissau, o narrador se reveste das caractersticas
de contador de histrias tal qual Walter Benjamin (1994) acredita: o verdadeiro
contador de histrias o narrador por experincia.
Ainda considerando este narrador por experincia categorizado por
Benjamin (1994), faz-se relevante entender como as experincias narradas a
partir de uma memria individual podem oferecer meios para a compreenso
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da coletividade. Para tanto, o segundo captulo desta pesquisa, intitulado Para
quem fala Odete Semedo?, utiliza-se de um esboo terico sobre memria
individual e memria coletiva com base em Maurice Halbwachs (2006) e Ecla
Bosi (1994). Os autores citados defendem que a reconstruo do passado
possvel atravs do relato das lembranas de um indivduo que testemunhou
um fato. Sendo assim, o narrador do pico de Semedo (2007) se configura
como o portador da memria nacional.
Em comunho com as teorias de memria, o mesmo captulo enfatiza as
questes sobre identidade nacional calcado em Stuart Hall (2006) e Zygmunt
Bauman (2005). O argumento principal deste captulo que o narrador, ao
trazer elementos narrativos como os smbolos e outras representaes
nacionais, garante a identidade nacional de um pas ps-colonizado e em
formao.
Para finalizar, o terceiro captulo intitulado Como Odete Semedo canta
No Fundo do Canto? traz uma anlise mais aprofundada das poesias que
compem o livro citado. Utilizando-se da categoria do narrador, este captulo
defende que o texto se trata do gnero pico pela natureza do narrador e da
linguagem com que o texto est escrito.
Aps a defesa do gnero literrio no que o texto est formatado, a
anlise procura demonstrar como os aspectos contextuais (scio-histricos,
polticos e culturais) esto funcionando internamente no texto a partir da
utilizao de smbolos e representaes culturais de Guin-Bissau.
Entendendo que o objetivo principal desta pesquisa fundamenta-se na
defesa de uma escrita da diferena em que subjazem as marcas identitrias
nacionais, este estudo pretende mostrar como a narrativa da nao apresenta
a identidade nacional deste pas ps-colonizado.
Portanto, a poesia pica da guineense Odete Semedo, ao trazer o
narrador por experincia, traduz a identidade nacional atravs de elementos
culturais, tais como: religio, lngua, costumes. Este narrador, que se declara
como o mensageiro das futuras geraes, conta a histria do povo guineense
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com a autoridade de quem experienciou/vivenciou a Histria viva da nao
Guin-Bissau.
1. De onde/quando fala Odete Semedo?
No fundo de mim mesmo eu sinto qualquer coisa que fere a minha carne,
que me dilacera e tortura...
[...] que faz sangrar meu corpo, que faz sangrar tambm
a Humanidade inteira! (Amlcar Cabral)
Neste captulo ser abordado o contexto poltico/histrico que perpassa a
narrativa do livro de poesia No Fundo do Canto (2007)1 da escritora guineense
Maria Odete da Costa Soares Semedo.
Ademais, com o objetivo de traar um perfil de onde fala a poetisa
supracitada, este captulo traz aspectos socioculturais em consonncia com a
literatura produzida em pases africanos de lngua portuguesa, com nfase na
produo de Odete Semedo, autora da Guin-Bissau.
Mas, de onde/quando fala Odete Semedo? Nascida em 1959 em Guin-
Bissau num perodo embevecido pelas ideias libertrias, Maria Odete da Costa
Soares Semedo foi marcada pela luta de libertao do seu pas. Crescia em
meio aos terrores da guerra e da fragmentao de guerrilhas em seu pas que
varria a populao incrdula de que um dia experimentaria a paz sonhada.
Deste caldeiro de dores e de incredulidade, Odete Semedo conta a sua
histria to arraigada Histria da coletividade guineense. Atravs de sua
poesia, preencheria o imaginrio do povo da Guin-Bissau com bombas de
encorajamento e resistncia na luta.
1 A data da primeira publicao do livro No Fundo do Canto de Maria Odete Semedo de
2003, editado pela Cmera Municipal de Viana do Castelo, Portugal.
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Todos os aspectos co-textuais acima mencionados evidenciados nos
poemas picos2 que compem o livro No Fundo do Canto, este captulo
descrever alguns fatos histricos constitutivos do imaginrio potico
guineense que contriburam para a formao de uma literatura incipiente, mas
marcada pela escritura da memria coletiva guineense e da construo da
identidade nacional.
1.1. De qual tempo/espao fala Odete Semedo?
O contexto histrico a que se refere o livro o conflito poltico, conhecido
como a Guerra dos Onze Meses, de 07 de junho de 1998 a 07 de maio de
1999. Em seu livro, a escritora citada se refere ao conflito civil como Os
Trezentos e Trinta e Trs Dias e Trinta e Trs Horas, perodo em que durou o
conflito armado.
No fundo... No fundo... da Histria, sero descritos aqui os Preldios da
guerra para fins de contextualizao da primeira parte do livro em questo. No
entanto, faz-se importante reportar ao leitor sobre a poca da pr-
independncia de forma a discutir a criao do P.A.I.G.C. (Partido Africano
para a Independncia da Guin e Cabo Verde - 1956).
O PAIGC (conforme a sigla ficou cunhada) consistia num movimento pela
independncia dos dois pases interessados. Seu objetivo fundamental era a
conquista da Independncia Nacional e a construo do progresso, bem estar
social e paz contnua para os Povos da Guin e Cabo Verde (PAIGC, 2003)3.
O Programa do PAIGC tinha como princpio o lema Unidade e Luta,
visando especificamente :
a) Conquista da independncia nacional;
2 Sobre a defesa de que o livro composto por poemas picos, vide captulo III da estrutura de
No Fundo do Canto (2007) de Odete Semedo.
3 A fonte desta citao est no site .
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b) Construo do progresso social, atravs do desenvolvimento econmico e tcnico cientfico, pela valorizao e reforo das capacidades nacionais;
c) Criao de condies para estabelecimento e consolidao da democracia e do Estado de Direito;
d) Proteco famlia, mulher e criana; e) Defesa e promoo dos Direitos da pessoa humana; f) Proteco e preservao do patrimnio histrico-cultural; g) Promoo de polticas visando conscientizao da populao
para a defesa e proteco do meio ambiente e para o equilbrio orgnico do nosso ecossistema;
h) Prossecuo de uma poltica externa dinmica baseada na promoo e diversificao de relaes de cooperao ao servio dos legtimos interesses do Povo Guineense. (PAIGC, 2003)
De incio o movimento era composto por cinco patriotas da Guin e Cabo
Verde, a saber: os angolanos Agostino Neto; Mrio Pinto de Andrade; os
moambicanos Eduardo Mondlane; Samora Machel; Amlcar Cabral
nascido na Guin e criado em Cabo Verde. Estes insurretos tinham em comum
os estudos em Lisboa, as reunies polticas na Casa de Estudantes e os ideais
libertrios importados da Frana. Dado o movimento de Negritude, surgido a
partir de ideias de Lopold Sdar Senghor e Aim Csaire, o carter poltico-
esttico de mobilizar a populao e classes dirigentes para a luta contra o
colonialismo tambm se fazia sentir atravs de manifestaes estticas como a
poesia de Amlcar Cabral.
Alm de ser o lder da Resistncia Unificada (PAIGC), Amlcar Cabral foi
um terico da luta armada e um poeta de flego, cuja produo terico-literria
contempla uma dimenso transcendente ao nico caso da luta armada na
Guin-Bissau (LOPES, 1986, p. 19) e cuja importncia para a Histria da
Guin-Bissau, Carlos Lopes (1986) atesta:
Cabral foi capaz de dimensionar o fenmeno nacionalista nos seus diferentes componentes, privilegiando o facto cultural e vendo na insurreio, sobretudo um ato de cultura. Qual a mais bela prova de civilizao do que um povo que pega nas armas para lutar pelo seu destino e para ser senhor dos seus objectivos? (LOPES, 1986, p. 19-20).
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Apesar da unio pela independncia da Guin e de Cabo Verde (PAIGC), a
partir da dcada de 1960, Amlcar Cabral v dividido o prprio partido. Cria-se,
assim, uma bipartio entre Guin e Cabo Verde dada s rixas internas da
classe elitista guineense que no aceitava a unio com o pas insular alegando
ser Cabo Verde formado por burmedjus mestios de ascendncia quer
guineense quer cabo-verdiana, diferentemente de uma adequada formao
pretu-nok os de pura ascendncia guineense. Com a liberalizao poltica
esta bipolaridade burmedjus x pretu-nok volta tona, marcada por vrias
tentativas de instrumentalizao das pertenas tnicorraciais.
Desta forma, houve um enfraquecimento da aliana entre as partes
acarretando um efeito domin de guerrilhas internas que s fortalecia os
interesses dos colonos. Com o assassinato de Amlcar Cabral e com a quebra
da aliana de Guin e Cabo Verde, o primeiro pas foi obrigado a agir
unilateralmente e proclamou sua independncia em setembro de 1973, sendo
esta reconhecida por Portugal um ano aps o feito. Cabo Verde s
experimentaria sua emancipao em 1975.
Guardada a devida importncia do PAIGC e dos processos polticos a que
este se vincula, tratemos do perodo que antecede ao conflito armado
conhecido como a Guerra dos Onze Meses ou A Histria dos Trezentos e
Trinta e Trs Dias e Trinta e Trs Horas, segunda parte do livro de poesias em
anlise neste estudo.
Para uma eficiente compreenso das causas deste momento histrico na
Guin-Bissau, o estudioso Carlos Cardoso (2000) defende trs hipteses: 1-
historicizante; 2- partidria; 3- estatizante.
A primeira hiptese traz a tese de que o conflito teria se dado devido
revitalizao da tendncia hegemonista da etnia Mandinga, a que professa a f
islmica sob uma vertente mais ortodoxa e remonta ao Imprio de Gab. Desta
forma, o conflito armado seria unicamente de ordem tnica, eclodido pela soma
de guerrilhas. Esta ideia no se sustenta sozinha, uma vez que conflitos
tnicos em frica so registrados desde a poca que antecede a chegada do
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europeu no continente negro e as causas do conflito armado de 07 de junho de
1998 consistem numa natureza poltica, envolvendo relaes exteriores (em
especial com o Senegal).
A segunda hiptese defende que as causas do conflito de 07 de junho tm
origem na crise do PAIGC, j fragmentado e imerso em contradies e
divergncias internas e externas. Ora, prudente salientar que o
recrudescimento da Junta Armada s foi concretizado quando o Chefe do
Estado-Maior das Foras Armadas, General Ansumane Man, foi destitudo de
seu cargo pelo ento presidente Joo Bernardo Nino Vieira (Nino Vieira) por
ser acusado de contrabandear armas para o Senegal. Desta forma, o estopim
do conflito armado foi o forte armamento liderado pelo A. Man contra o
governo, fato que conduz compreenso da hiptese estatizante.
A terceira hiptese estatizante alega que as causas do conflito foi o
enfraquecimento geral do Estado. O que se observa que um vasto elenco de
situaes concorreu para a represlia comandada por A. Man em 07 de junho
de 1998. Ao privilegiar esta hiptese, Carlos Cardoso (2000, p. 89) informa:
Apesar de qualquer uma dessas hipteses ter contribudo para clarificar as origens do conflito, importa sublinhar que, a julgar pelo estado das pesquisas levadas a cabo at a presente data, nenhuma delas conseguiu fornecer explicaes cabais sobre os acontecimentos que tiveram incio na madrugada de 07 de junho de 1998 e se prolongaram at 07 de maio de 1999. Alis, so cada vez mais correntes as opinies que recorrem a uma multiplicidade de fatores para explicar esta mesma crise, tal como o fez um estudioso sobre a histria recente do pas, que escrevia: as causas desta crise so inmeras. Comea na forma como o PAIGC conduziu a sua luta nacionalista, passa pelo tipo de regime que se seguiu independncia e mais recentemente na forma como a democracia representativa foi introduzida no pas e, sobretudo, no modo como a Guin-Bissau tem sido conduzida at aqui4.
4 Sobre a referncia de Carlos Cardoso (em nota de rodap), v-se: Jos V. Lopes, Pblico,
16.6.99. O jornalista autor da obra Cabo Verde. Os Bastidores da Independncia, Instituto
Cames e Centro Cultural Portugus, Lisboa/Praia, 1996.
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Para alm da crise do PAIGC, a Guin-Bissau desde a conquista da
liberao poltica, vem enfrentando uma crise de etnonegrismo (rixa entre
pretu-nok e burmedjus). Segundo a anlise de Nado Mandinga5, a crise na
Guin-Bissau de carter global da sociedade aportada em ideologias
tnicorraciais. Para tanto, Mandinga argumenta:
... Quanto a ns, dentre estes factores, a ordem ideolgica oficial determinante, tendo em conta que voluntariamente fascina: os intelectuais, polticos, artistas, charlates, e, mais desastrosa ainda, a irrefutvel capacidade mobilizadora desta ordem ideolgica junto s massas populares. Baseada em evidncias, aparentemente no questionveis, de natureza racial de forte emoo psicossocial, pretende restaurar uma hierarquia social atravs da utilizao das capacidades humanas, por confiana poltica, por identificao tnica, por identificao cultural e nunca pela competncia, alis deixando esta de ter qualquer valor social. A vacuidade com que se caracteriza esta ordem ideolgica apresenta-se como a antecmera do carreirismo medocre e subserviente, por vezes associado a um falso independentismo poltico... Uma vez morto o profissionalismo e enterrado o seu valor social, abre-se, desta feita, o caminho instrumentalizao da luta das massas populares, impondo-lhes modelos de organizao social e de poder poltico hierarquizados em falsa etnicidade... MANDINGA, 1994)6.
Esta uma viso mais apurada das supostas causas do conflito,
corroborando com o que Cardoso (2000) defende sobre a hiptese estatizante.
O Estado era corrodo por dentro, no havia organismos sociais se
deteriorando isoladamente.
Mas, esta pesquisa indaga como o social vivia em meio a tudo isso,
questionamento este crucial para a compreenso do contexto que envolve a
obra posta em anlise.
Num pas em processo de descolonizao, encontra-se um panorama
de ndices sociais precrios. Considerando-se os indicadores econmicos,
percebe-se uma porcentagem de 87% da populao vivendo com menos de
5 Dirigente de oposio dando sua declarao no Debate Nacional em 1994.
6 In.: Etnonegrismo venceu? Dirio da Guin-Bissau, no. 37, 17/12/1994, p. 10.
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US$ 1,00 por dia, apresentando uma renda per capita de US$ 192,00 por ano.
Somado a isso, a taxa de desemprego no pas nas primeiras dcadas de ps-
independncia (1980-1990) altssima com uma mdia de empregos formais
que no passam do nmero de 10.000 em todo o territrio nacional7.
Partindo para a educao, a situao no diferente. A marca da
colonizao est mais presente na lngua oficial de ensino, o portugus,
desconhecida pela maioria da populao. Em relao aos indicadores
educacionais, Moema Augel (2007) nos informa que:
a taxa de analfabetismo foi calculada em 74%, atingindo de forma diferenciada os homens (59%) e as mulheres (82%). A taxa de escolaridade muito baixa, sendo estimada em 54%, havendo uma clara diferena entre os gneros: 68% dos meninos frequentam a escola contra apenas 38% das meninas. O nmero de professores com uma formao pedaggica e acadmica mnima, predominando os professores leigos e com um precrio preparo. [...] Quando se deu a independncia, o nmero de guineenses com formao acadmica no superava os quatorze, aos quais se somavam apenas mais dezessete com formao mdia, o que mostra o deplorvel estado de desinteresse de Portugal para com essa sua colnia (AUGEL, 2007, p. 72-3).
Est claro nos ndices sociais aqui apresentados a condio atual da
Guin-Bissau sem, no entanto, asseverar-se os resultados dos destroos da
guerra de 1998-1999. O que interessa para a anlise do livro de poemas em
questo este mapeamento social para uma maior compreenso do tempo-
espao do qual Semedo fala em seus poemas.
Percebe-se em todos os dados que os indicadores sociais apontam
alguns aspectos culturais que concorrem para um esfacelamento de uma
unidade nacional quando no tratados apropriadamente pela classe dirigente.
Como exemplo, tem-se: os grupos tnicos, a questo lingustica e as religies.
Ora, numa ambincia de multiculturalidade, tais questes no podem ser
preteridas em favor das determinaes da cultura do colonizador. Preconizar
7 Dados encontrados em Human Development Report, UNDP, vrios anos.
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uma cultura outra num contexto de ps-colonizao fato capaz de gerar
conflitos e faces entre as vrias etnias de Guin-Bissau, elemento este
ameaador da unidade nacional.
Com o intuito de esclarecimento sobre as questes culturais acima
mencionadas, sero mostrados substratos da cultura de Guin-Bissau,
elementos estes necessrios para a anlise posterior do livro de poemas em
pauta.
Embora o territrio da Guin-Bissau seja muito pequeno, testemunha-se
ali a existncia de vrios grupos e subgrupos tnicos muito heterogneos. Esta
realidade compe o famoso mosaico tnico africano constitudo por grupos
populacionais de origens distintas. Para citar os mais relevantes, observa-se:
Balanta (27%); Fula (22%); Mandinga (12%); Mandjaco (11%); Pepel/Papel
(10%).
Estes grupos majoritrios tm a sua base econmica na produo
agrcola e agro-pecuria de subsistncia. Sobre suas relaes intertnicas, M.
Augel (2007) relata que:
So hoje em dia pacficas, constatando-se um vnculo em geral positivo interligando os vrios grupos num sistema social englobante, controlado por um sistema estatal dominado pelo grupo crioulo da capital, embora haja espaos para a diversidade cultural, sobretudo no que diz respeito s atividades religiosas e domsticas (AUGEL, 2007, p. 78).
Para contemplar a questo lingustica, observam-se dez lnguas mais
faladas em Guin-Bissau, so elas: balanta (245.000 falantes); fula (200.000
falantes); mandinga (100.000 falantes); mandjaco (80.000 falantes); pepel
(72.000 falantes); beafada (20.000 falantes); bijag (20.000 falantes);
mancanha (19.000 falantes); felupe (15.000 falantes), segundo mostra
Scamtamburlo (1997 apud AUGEL, 2007, p. 78-9.
Autores como Scantamburlo (2002); Augel (2007) defendem o uso do
termo lngua guineense para se referir lngua crioula, esta ltima de maior
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vinculao e prestgio da Guin-Bissau. Como argumento que sustenta o uso
do termo lngua guineense, Scantamburlo (2002, p. 06) esclarece que:
[...] a escolha do nome Guineense para designar a lngua crioula da Guin-Bissau, termo j utilizado por Marcelino Marques de Barros em 1897, ajudar a respeitar e a evitar a conotao depreciativa que o termo crioulo tem ainda no pas e no mundo (apud AUGEL, 2007, p. 80, grifo da autora).
Ademais, o fenmeno de crioulizao marca do processo de
colonizao como resultado da necessidade de uma comunicao em
sociedades multilngues.
Quanto s religies, deve-se salientar que a base da religio da Guin-
Bissau est na ligao entre o visvel e o invisvel; o natural e o sobrenatural na
intermediao entre as aes individuais e as foras sobrenaturais. Alis, estes
fundamentos so recorrentes em religies de matriz africana.
A populao guineense est dividida em duas grandes vertentes
religiosas: uma com base nas chamadas religies animistas; a outra
islmica8. No total da populao de base religiosa animista, encontram-se 54%
dos adeptos da crena do culto aos antepassados, na fora da natureza e no
poder da espiritualidade, entre as etnias Balanta, Pepel, Mancanha, Mandjaca,
Falupe e Bijag. J aqueles que professam a religio islmica tm-se: 38% dos
adeptos nas etnias Fula e Mandinga.
importante reportar neste estudo o fato de que as religies tradicionais
guineenses tm prticas religiosas em forma de invocaes aos irans (ir, yran,
outras formas de grafia) e seus intermedirios balobeiros e os djambakus. Esta
informao imprescindvel na anlise da terceira parte (O Conslio dos Irans)
do livro No Fundo do Canto em que o narrador eu-lrico invoca a fora dos irans
para intercederem pelo povo em polvorosa de guerra. Conforme Carlos Vaz
(1994, p. 18),
8 registrada tambm uma minoria crist (8%) entre os Fula e os Mandinga.
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os irans so cultuados nas balobas (santurios, locais de culto, de evocao ou de consulta), o os balobeiros so seus sacerdotes ou intermedirios. O local marcado por uma rvore sagrada, em geral um imponente e secular poilo de enormes propores e que to bem caracteriza a paisagem africana, rvore de razes tubulares, gigantescas, com seu tronco rugoso e acidentado, esgalhando-se em todas as direes, formando uma copa majestosa, como um imenso abrigo umbroso. [...] so inmeras as ocasies para as cerimnias de evocao aos irans. Vo desde o pedido de proteo e conservao do poder dos rgulos, a uma aco de justia, ao respeito pela tradio, at aos pedidos de bom sucesso na lavoura e nas colheitas e em outros domnios da vida familiar (In.: AUGEL, 2007, p. 93-4).
Ao ser disposto aqui o contexto scio-histrico em que o livro em
questo est inscrito, pretende-se em seguida demonstrar outros aspectos que
compem a legenda cultural guineense e, desta forma, estabelecer o espao
da composio potica do livro citado de Odete Semedo, fulgurando na
esttica da literatura africana de lngua portuguesa.
1.2. A literatura africana de lngua portuguesa: da esttica de onde fala Odete
Semedo
No subcaptulo anterior foi demonstrada a que poca se reporta a obra No
Fundo do Canto da escritora guineense Odete Semedo. Deve-se,
intencionando coerncia com a trade autor-obra-leitor, explicitar de onde e de
que canto a autora fala/canta seus versos, considerando seus aspectos sociais
e culturais. Sendo assim, a anlise literria se torna coesa aos elementos de
produo artstica.
Este estudo entende a escrita da diferena no sentido em que o cnone
ocidental posto em discusso e focaliza os momentos ou processos em que
so produzidas as narrativas de uma determinada literatura. Para Homi Bhabha
(1998), desconstruir a base da tradio ocidental , sobremaneira, entender
que:
a articulao social da diferena, da perspectiva da minoria, uma negociao complexa, em andamento, que procura conferir autoridade aos hibridismos culturais que emergem em
-
13
momentos de transformao histrica (BHABHA, 1998, p. 20-1).
Mas, de onde fala Odete Semedo? Da Guin-Bissau ps-independente,
mas ainda tomada pelos ranos de muitos anos de colonizao portuguesa.
Nota-se que o fato histrico retratado no livro um momento de conflito gerado
pelas foras polticas de um pas recm-independente com amarras no sistema
autoritarista ps-colonial.
Mas, qual a posio do colonizador na estrutura ideolgica de um pas em
formao em relao constituio de uma cultura nacional? O colonizador
no se preocupa em estabelecer fronteiras para a percepo de cultura de pas
A ou B. Este se pauta na concepo de raa inferior (neste caso particular, o
negro). Sendo ele mesmo o representante da raa superior, estipula-se a
relao de paternidade entre colonizador e colonizado em que o primeiro o
protetor/salvador na defesa da criana colonizada contra os infortnios de sua
raa inferior em nveis biolgicos, psicolgicos; enfim, em toda ambincia de
suas desgraas ontolgicas.
Desta forma, torna-se infrutfera a tentativa de intelectuais do
colonialismo em buscar a identidade nacional de um pas colonizado na era
colonial. Este argumento se sustenta quando Frantz Fanon (2004) admite que
o colonialismo, pouco preocupado com as nuances, sempre preconizou que o negro era um selvagem, no um angolano ou um nigeriano, mas um negro. Para o colonialismo, este vasto continente era um espao de selvagens, infestado com supersties, amaldioado por Deus, uma terra de canibais, uma terra de negros. A condenao do colonialismo em escala continental (FANON, 2004, p. 150)9.
Na tarefa de historicizar a literatura africana de expresso portuguesa,
Manoel Ferreira (1987) defende que desde a colonizao da frica no processo
ultramarino de Portugal testemunhada uma produo cultural em frica.
Objetivando uma historiografia da literatura daqueles pases, segue uma
descrio dos escritores de destaque dos pases em foco. propositado o tom
9 Traduo livre.
-
14
heroico no estilo de escrita da autora deste estudo ao fazer uma apresentao
historicista da literatura atravs da perspectiva ocidental de classificao
cronolgica, a partir da escritura portuguesa.
Contava-se o sculo XV o momento em que intelectuais e literatos
portugueses tratavam de escrever sobre seu saber de experincia feito em
suas aventuras no Alm-Mar. Mas a partir dos anos 40 do sculo XIX que
surge um desenvolvimento literrio e cultural de povos de frica de Lngua
Portuguesa. Tal feito creditado ao aparecimento de instituies de ensino
oficial e instalao do prelo.
Segundo Ferreira (1987, p. 09), o prelo foi instalado nas atuais ex-colnias
portuguesas, seguindo esta cronologia: Cabo Verde, 1842; Angola, 1845;
Moambique, 1854; So Tom e Prncipe, 1857; Guin- Bissau, 1879. Mas
s aps a dcada de 1950 que estes pases vo experimentando seu processo
de independncia poltica. Ainda segundo o mesmo autor, e por mtodos
didticos, a literatura africana de expresso portuguesa pode ser dividida em
duas etapas: literatura colonial e literatura africana. A primeira inicia-se a partir
de 1849 em Angola, protagonizada por Jos da Silva Maia Ferreira, com sua
obra Espontaneidades de minha alma, embora no representasse uma obra
literria primeira escrita por um autor africano.
No entanto, no se pode entender a literatura colonial como cone de uma
literatura de autoria de negros, uma vez que aspectos identitrios no conjunto
de sua obra no representassem os interesses dos povos africanos nativos dos
pases em questo. Uma viso eurocntrica, eminentemente portuguesa,
permeava toda a obra. J a segunda, a literatura africana surge como
portadora da voz do sujeito africano e que expressa o universo africano
perspectivado de dentro, consequentemente saneado da viso folclrica e
esttica (FERREIRA, 1987, p. 13).
intil, de acordo com Fanon (2004), uma anlise de um elemento da
cultura nacional (a literatura, neste caso) sob o olhar ocidental. Segundo Fanon
(2004), ao se referir literatura africana, temos que em frica, a literatura
-
15
colonizada dos ltimos vinte anos no tem sido uma literatura nacional, mas
uma literatura de negros (FANON, 2004, p. 150)10.
Na dcada de 1940, poca a que Fanon se reporta (vide nota de rodap
no. 05), observa-se em Guin-Bissau uma literatura acanhada sobre as
questes nacionalistas. quela poca, a Guin-Bissau nem existia, no havia a
independncia poltica guineense. J na dcada de 1950 so registrados
poemas de Amlcar Cabral de cunho revolucionrio e intimista que j apontam
para uma identidade nacional. Mas a partir de 1980 que aspectos culturais de
Guin-Bissau so documentados desde escritores como Abdulai Sila e Tony
Tcheka at Odete Semedo.
No entanto, longe de se estabelecer um olhar ocidental e metodicista da
literatura africana de lngua portuguesa, este estudo busca comprender uma
literatura de uma negra da Guin-Bissau no perodo de ps-independncia.
Intenciona-se explicitar as particularidades deste tipo de literatura e de autoria
a partir de uma anlise centrada em elementos contextuais: histricos, sociais,
polticos, culturais; e em elementos textuais: estticos e de teoria literria.
medida que as particularidades da literatura da Guin-Bissau so
colocadas em pauta, a tese de uma literatura nacional explicitada. O real
motivo que se constroi uma relao entre o que este estudo preconiza com a
premissa de Fanon que esta anlise parte do lugar africano, diferentemente
do olhar ocidental sobre a literatura e o cnone. Sobre algumas
particularidades da escritura de autores africanos de expresso portuguesa,
consideremos as autoras Macdo; Chaves.
Considerando as autoras Tnia Macdo; Rita Chaves (2007, p. 44), devido
ao prolongamento da empreitada colonial e a problemas sociais diversos nos
pases africanos de lngua portuguesa, uma efervescncia cultural nos mesmos
era incipiente e limitada at os anos 1970 quando os processos de
independncia foram concretizados. Este momento histrico presencia um
10
Data de maro de 1961 a primeira publicao deste texto. No original: Damns de la Terre.
Paris: F. Maspero.
-
16
desenvolvimento e uma consolidao de uma literatura genuna e poderosa, de
cunho poltico e de densidade potica incomparveis; sem citar um caminho
ficcional caracterstico.
inegvel o fato de que o aspecto lingustico aponta uma particularidade
desta escrita africana em que a lngua portuguesa encara uma roupagem toda
ntima e inovadora, revestida por uma oralidade rica em termos e linguajares
nicos de emprstimos lingusticos das vrias lnguas em convvio com aquela
mesma lusitana.
Desta forma, percebe-se que a lngua constroi um espao identitrio
cultural nos textos literrios de escritores como: Mia Couto, Luandino Vieira e
Boaventura Cardoso. Entremeados com leituras de nossa literatura brasileira,
esses novos autores africanos tomam a audcia de um Guimares Rosa ou um
Manoel de Barros para personificar suas tradies, mitos e fbulas e constroem
um universo ficcional que edifica um novo espao no panorama literrio
mundial.
Outro aspecto importante a ser mencionado o da esttica da linguagem
utilizada por estes autores. A ironia se destaca no intuito de estabelecer um elo
com a memria de um Cabo Verde no muito distante dos tempos coloniais.
Ademais, est em enfoque o tom cido com que uma acanhada prosa
guineense mostra um perodo de ps-independncia amargurado que, segundo
Macdo; Chaves (2007, p. 49) o que se convencionou de chamar fantstico
utilizado para expressar a deteriorizao de valores que se quer apontar.
J a escrita de autoria feminina nesses pases, segundo as autoras citadas,
tmida devido principalmente condio de subalternidade a que seu gnero
carrega (CHAVES; MACDO, 2007, p. 51). H dvidas quanto veracidade de
que tal escrita seja tmida, uma vez que encontramos nomes fortes e
eternizados pela qualidade de escrita desta autoria, ora em prosa ora em
poesia. S para citar algumas: Alda do Esprito Santo e Conceio Lima (So
Tom e Prncipe); Nomia de Souza e Paulina Chiziane (Moambique); Maria
Odete da Costa Soares Semedo (Guin-Bissau); entre outras que compem o
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17
cenrio intelectual/literrio desses pases que caminham com maturidade para
uma independncia literria por meio de uma trilha ficcional e potica de
enorme importncia no contexto mundial.
Foram destacados neste captulo alguns aspectos histricos, sociais,
polticos e culturais que envolvem a Guin-Bissau em seu processo de
descolonizao. Estes fatores contextuais so de valor essencial para a
compreenso da obra No Fundo do Canto da escritora guineense Maria Odete
da Costa Soares Semedo.
Inscrevendo a poesia de Odete Semedo na ambincia de escrita africana
de lngua portuguesa, pode-se traar um perfil de uma escrita da diferena,
defendida por H. Bhabha, percebendo a descentralizao do modelo europeu
que afasta a matriz africana do cnone ocidental.
Segundo Thomas Bonnici (2009, p. 26), estabelecer uma esttica de
literatura ps-colonial centrar os estudos culturais mais recentes no resultado
da experincia de colonizao baseada na tenso com o poder colonizador.
Desta forma, a literatura ps-colonial passa pelo discurso da cultura nacional
perpassada no perodo ps-independncia com nfase nas caracterizaes
regionais de um determinado pas ex-colnia.
Sendo assim, o prximo captulo dialoga com as teorias de identidade e
memria com o objetivo de subscrever a literatura guineense, mais
precisamente a poesia de Odete Semedo, como um produto cultural
constitutivo da identidade nacional.
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18
2. Para quem fala Odete Semedo?
[...] E so para a minha Guin-Bissau estes
versos, mansos no seu estar e humildes no
seu fazer, um fazer que quer uma Guin-
Bissau firme, com os ps bem fincados no
cho, esse cho-nosso de todos os tempos.
(Odete Semedo)
Este captulo prope discutir a abordagem das teorias sobre identidade e
memria individual X memria coletiva como elementos de construo de uma
identidade nacional. Deve-se, ainda, salientar que o foco desta discusso
contempla o livro de poesias No Fundo do Canto da guineense Odete Semedo
(2007).
Na defesa de que as poesias do livro citado configuram-se no gnero
pico, percebe-se que o narrador revela aspectos scio-histricos, polticos,
sociais e culturais de um determinado lugar e poca. Desta forma, estes
substratos da cultura de um povo denunciam as marcas identitrias da nao
Guin-Bissau ps-independente.
Para comear, faz-se necessrio reconhecer o gnero literrio pico, de
acordo com Aristteles em sua Potica (1962)11. Sendo assim, pode-se
estabelecer a coerncia do gnero literrio do livro em questo e das
discusses propostas por este captulo.
De acordo com Aristteles (1962, p. 12), o gnero pico consiste numa
narrativa longa, escrita em versos imbicos12 que narra os grandes feitos de
um heroi (representante de um povo). Observa-se no livro de Semedo (2007), a
figura do narrador como o mensageiro (ou tcholonadur), narrando um evento
do perodo ps-independncia: a guerra civil conhecida como a Guerra dos
Onze Meses, j descrita no captulo anterior. Semelhante categoria de heroi
pico em Aristteles, o narrador das primeiras poesias que compem o livro em
11
A primeira edio da traduo para o ingls data de 1925. Traduo de Ingram Bywater,
Oxford: Clarenton Press.
12 Unidades mtricas de quatro slabas longas e breves alternadas (COHEN, 1974, p. 59).
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anlise relata claramente o propsito de ser portador/mensageiro da(s)
histria(s) de Guin-Bissau, conforme se v nos versos a seguir:
[...] Aproxima-te de mim pergunta-me e eu contar-te-ei pergunta-me onde mora o dissabor pede-me que te mostre o caminho do desassossego o canto do sofrimento porque sou eu o teu mensageiro. (SEMEDO, 2007, p. 22)
No entanto, no foco deste captulo fazer uma anlise mais caudalosa
do gnero literrio em que as poesias de No Fundo do Canto esto
configuradas. Discutir-se- a estrutura do livro no captulo seguinte. Antes,
pretende-se abordar algumas teorias sobre identidade e memria e, desta
forma, estabelecer uma ligao entre as poesias picas de Semedo (2007) e a
construo da identidade nacional por meio da literatura ps-colonial da
guineense Odete Semedo.
Stuart Hall (2006), por exemplo, diz que a questo da identidade cultural
na ps-modernidade desnudada de forma a esclarecer que o sujeito
encontra-se multifacetado e fragmentado mediante a dinmica da globalizao
e a moderna aldeia global.
Em se tratando de um ser em trnsito, supostamente desterritorializado,
Zygmunt Bauman (2005) esclarece a interculturalidade e os simulacros em que
o sujeito em dispora se encontra. Sendo assim, pode-se entender at que
ponto a identidade pessoal e a identidade nacional se interceptam.
Sobre cultura nacional e identidade, os africanos R. L. Okonkwo (1998);
Amlcar Cabral (1998) e o martinicano Frantz Fanon (1983) defendem uma
identidade nacional africana, em contrapartida cultura de missionrios
europeus que tentavam impor seus costumes e cosmoviso aos colonizados.
Entendendo que esta postura consistia num movimento de resistncia
cultural, alguns representantes (polticos, escritores, professores e cineastas)
de pases ps-colonizados pautaram seus esforos na reconstituio de
-
20
smbolos e representaes nacionais em seus feitos. Odete Semedo fulgura
entre os artistas de Guin-Bissau que se preocuparam com a cultura nacional.
Em se tratando de substratos da memria, principal aliado ao elo entre o
ser deslocado e o lugar de nascena, por reconstituio de lembranas do
passado, de vivncias e experincias compartilhadas com lugares e pessoas,
este estudo entende o narrar da memria individual que configura uma
memria coletiva atravs de Ecla Bosi (1994) e Maurice Halbwachs (2006).
Por vias da memria coletiva, o narrador de No Fundo do Canto tem o
possibilidade de versar sobre a identidade nacional da Guin-Bissau ps-
independente.
2.1. Da identidade e da identidade nacional
Tratar sobre a identidade requer cautela mediante o fato de que h
vrias concepes do termo atravs da histria e das perspectivas terico-
metodolgicas de cada poca.
Ao se referir ao sujeito iluminista (sculos XVII; XVIII), a concepo
unvoca de homem perpassa a ideia unilateral de que o sujeito o ser
antropolgico, baseado em sua esfera biolgica. Visto desta maneira, o homem
era um s, mediante sua natureza ontolgica. O indivduo, segundo esta
concepo, era totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de
razo, de conscincia e de ao (HALL, 2006, p. 10).
J o sujeito sociolgico (sculo XX) punha em jogo as relaes do
indivduo com as pessoas em sociedade. Haja vista a premissa de
sociointeracionismo, o sujeito sociolgico refletia a crescente complexidade do
mundo moderno e a conscincia de que este ncleo interior do sujeito no era
autnomo e auto-suficiente (HALL, 2006, p. 11).
Diante desta concepo sociolgica do sujeito, a esfera cultural do
indivduo posta em anlise. Assim, o fato de que as mudanas socioculturais
interagem com o sujeito tomada em considerao medida que se entende
-
21
que o sujeito passa a ser fragmentado, travestido de vrias identidades
contraditrias e no-resolvidas entre si.
Da a ideia do sujeito ps-moderno, aquele que apresenta uma
identidade formada e transformada continuamente em relao s formas pelas
quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos
rodeiam (HALL, 2006, p. 13).
Admitindo-se um sujeito ps-moderno, este estudo pode dialogar com a
representao que um povo faz de outro povo, considerando a supremacia de
raas e justificando algumas prticas, tais como: a escravido e a colonizao.
neste ambiente que se enquadra a Guin-Bissau ps-colonialista.
Como definir ou, ao menos, entender uma identidade nacional num pas recm-
formado e costurado por uma colcha de retalhos tnica? o que se procura
defender neste captulo: atravs da narrativa da nao, em especial da
literatura, este estudo procura demonstrar aspectos culturais que demarcam a
identidade nacional de um pas ps-colonizado.
Desta forma, percebe-se que as identidades nacionais so construdas
atravs de pontos de vistas diferentes que constituem a narrativa de cada
narrador de uma determinada cultura. Diante disso, Stuart Hall (2006, p. 51)
comenta: as culturas nacionais, ao produzir sentidos sobre a nao, sentidos
com os quais podemos nos identificar, constroem identidades [...] a identidade
nacional uma comunidade imaginada.13
Consoante com Hall, o polons erradicado na Inglaterra, Zygmunt
Bauman, concorda que a identidade na modernidade lquida no deve ser vista
como algo preestabelecido, antes, ela deve ser vista como um processo, tal
como sua compreenso e anlise (BAUMAN, 2005, p. 11). A identidade
nacional se impe no sentido de tornar uma coletividade em uma unidade
atravs do crivo da nascena. Neste ponto, o Estado tem papel fundamental
em assegurar esta suposta unidade. Assim, a identidade nacional constituiu-se
13
Grifos do autor.
-
22
em uma criao do Estado e de suas foras sociais (Igreja, Escola, Famlia)
para construir a dita unidade nacional (BAUMAN, 2005).
Esta mesma integrao nacional foi barganhada, desde o sculo XIX,
pela luta de resistncia por pases africanos colonizados por europeus. Como
exemplo, deve-se citar o movimento de nacionalismo que se espalhou por
todos os pases colonizados em frica e Amrica no sculo XX. Tal
manifestao ficou conhecida como Pan-africanismo protagonizada por figuras
africanas e transatlnticas como o nigeriano R. L. Okonkwo, o antilhano Aim
Csaire, o caboverdiano (erradicado em Guin-Bissau) Amlcar Cabral, o
martinicano Frantz Fanon, entre outros.
Este movimento de nacionalismo consistia em minimizar a imposio
cultural europeia. Esta ltima se caracteriza como uma poltica colonizadora
que pretendia a aculturao dos pases africanos ou americanos em que era
instalado o sistema de colonizao. Tendo em vista esta atitude de natureza
positivo-afirmativa em relao cultura africana, cabe explicitar qual foi o
projeto cultural criado para cumprir com os objetivos apontados pelos
representantes acima mencionados.
Em primeiro lugar, o projeto se voltou para polticas de afirmao da
cultura africana, incluindo a positividade da raa negra e a resignificao de
smbolos e representaes da cultura do continente negro. Uma vez garantidos
os elementos culturais de frica, intenciona-se formar uma auto-estima
positivada dos negros colonizados de forma a incentivar a elevao da
condio subalterna para uma condio independente, atravs da reafirmao
da identidade nacional.
Dialogando com a produo literria, o movimento conhecido como Pan-
africanismo lanou uma esttica em poesia cunhada como poesia de
resistncia (MACDO; CHAVES, 2007) que permeava as temticas da
Negritude e da Cultura Nacional. Alm da iniciativa em torno da Arte, outros
livros educativos eram produzidos que primavam por aspectos histricos e
religiosos. Diante disto, Okonkwo (1998) esclarece que:
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23
A educao foi uma rea de crucial importncia para os nacionalistas culturais. Eles buscavam financiar suas prprias escolas, que ensinariam a cultura tradicional, as lnguas nativas e a histria africana. As escolas gerenciadas por africanos eram a resposta para os efeitos de desnacionalizao da educao do governo colonial e missionrio (OKONKWO, 1998, p. 257)14.
As aes do movimento nacionalista tambm se mobilizaram na
imprensa, desta forma os objetivos do Pan-africanismo contra a represso das
autoridades colonizadoras foram gradualmente sendo alcanados. No entanto,
vale o questionamento: como estas manifestaes de nacionalismo cultural
puderam contribuir para a liberao dos pases colonizados? E, por outro lado,
como os imperialistas europeus reagiram a esta manifestao rebelde dos
nativos de pases colonizados?
A principal caracterstica da dominao estrangeira a pases colonizados
a negao dos processos scio-histricos e culturais dos povos dominados,
atravs de atos de violncia que usurpam a autonomia e a auto-estima
daqueles colonizados. Sendo assim, a fonte essencial de resistncia contra os
mtodos de represso a revalidao destes mesmos processos scio-
histricos e culturais, pois, segundo Amlcar Cabral (1998):
[...] o valor da cultura como um elemento de resistncia dominao estrangeira recai no fato de que a cultura uma manifestao vigorosa ao plano ideolgico ou idealista da realidade fsica e histrica da sociedade que dominada ou est para ser dominada. A cultura , simultaneamente, o fruto da histria do povo e uma determinante da prpria histria pela influncia negativa ou positiva que ela enxerta na evoluo das relaes entre o homem e seu meio-ambiente, entre homens e grupos de homens dentro de uma sociedade, bem como entre diferentes sociedades. A ignorncia deste fato pode explicar a falha de vrias tentativas na dominao estrangeira, bem como a falha dos movimentos de liberao internacional (CABRAL, 1998, p. 261)15.
14
Traduo livre.
15 Traduo livre.
-
24
Em outras palavras, a resistncia pela livre manifestao da dinmica
cultural de um povo colonizado garante a demarcao da identidade cultural de
uma nao. Desta forma, um povo ou grupo tnico no deixa de existir por
conta da imposio arbitrria e violenta de uma cultura sobre a outra. E a
literatura um meio bastante profcuo para a veiculao das ideias
nacionalistas, sendo ela mesma um produto cultural.
Por outro lado, o colonizador instala representantes que suportam as
ideias dominantes que so, de certo modo, aceitos por uma parcela da
populao colonizada por meio de estratgias ideolgicas que inibem
significantes atividades culturais do pas dominado. Esta parcela da populao
aliada aos preceitos dos colonizadores, muitas vezes, faz parte da classe
dominante que detm o poder econmico e poltico do pas.
Como efeito, uma crise interna instalada e os conflitos se tornam
iminentes: de um lado, uma parte da populao almeja manter o sistema, pois
so beneficiados econmica e politicamente; por outro, uma grande maioria
deseja se livrar da represso que ocasiona desigualdade social e misria
generalizada. desta maneira que se observa a luta pela liberao nacional e
independncia poltica de pases africanos colonizados.
Aps a conquista da independncia poltica, chegada a vez da luta
pela unidade poltica e moral, dados os permanentes conflitos internos que os
pases recentemente ps-colonizados enfrentam como forma de atingir a
hegemonia nacional. Estes conflitos internos se caracterizam por motivos
polticos e tnicos, conforme j descritos no primeiro captulo. Tal unidade
mencionada acima, de acordo com Cabral (1998, p. 263), s pode ser atingida
atravs de duas medidas: 1- pela total identificao com a realidade da nao
recm-formada e com os problemas e aspiraes fundamentais do povo; 2-
pela progressiva identificao cultural de vrios grupos sociais participantes da
luta pela liberao nacional.
Esta busca pelo mapeamento da cultura nacional de pases ps-
colonizados encontra dificuldades, haja vista a considervel diversidade tnica
-
25
e a carncia de institutos governamentais (tais como: bibliotecas, arquivos
pblicos, instituies de pesquisa e de patrimnio histrico, museus, entre
outros) que incentivem a produo cultural e o arquivamento de documentos e
instrumentos de pesquisa e estudos sobre a cultura de um determinado pas.
De acordo com Frantz Fanon (1983), o problema da colonizao
abrange no apenas a interseo de condies objetivas e histricas, mas
tambm a atitude do homem a respeito dessas condies (FANON, 1983, p.
72). A partir desta observao do martinicano, pode-se perceber que os
movimentos nacionalistas e de liberao dos pases colonizados dialogam com
a promoo da unidade nacional a partir da identidade cultural.
Mas de que forma esta cultura nacional pode ser evidenciada? Segundo
Hall (2006), h cinco formas de se narrar a cultura nacional: 1- a narrativa da
nao; 2- nfase nas origens, na continuidade, na tradio e na
intemporalidade; 3- inveno da tradio; 4- mito fundacional; 5- ideia de um
povo puro ou original. Este estudo toma como parmetro a narrativa da nao,
pois nesta se inclui a produo literria, foco desta pesquisa.
Ainda com base em Hall (2006), a narrativa da nao entendida como
um aparato que constroi e d continuidade identidade cultural de uma nao,
pois:
contada e recontada nas histrias e nas literaturas nacionais, na mdia e na cultura popular. Essas fornecem uma srie de estrias, imagens, panoramas, cenrios, eventos histricos, smbolos e rituais nacionais que simbolizam ou representam as experincias partilhadas, as perdas, os triunfos e os desastres que do sentido nao (HALL, 2006, p. 52).
Entendendo a narrativa da nao como um instrumento de continuidade
e valorao da cultura nacional, cabe a pergunta: como esta narrativa
contada? Um dos artifcios de narrativa das histrias de uma nao a
lembrana de fatos do passado, artifcio este que constitui a memria de um
legar. Uma melhor apreciao sobre como a memria do narrador se
transfigura na memria coletiva ser dada no subcaptulo que se segue.
-
26
2.2. Da memria individual; da memria coletiva
Uma histria pode ser contada de vrias formas. A categoria
responsvel pela diferenciao de narrativa(s) o narrador. Partindo de uma
perspectiva da microhistria de Guinzburg16, este estudo privilegia o sujeito
histrico comum, aquele que narra a histria de si, mas que representa a
histria da coletividade da qual faz parte.
Sendo assim, a defesa do narrador como intrprete de uma nao,
sendo este marcadamente pertencente ao mesmo lugar de onde fala, garante
algumas marcas identitrias representantes da cultura de uma nao. Porm, o
que importa para este subcaptulo a forma como se processa esta narrativa,
atravs da memria.
Considerando que a memria um recurso imprescindvel para a
narrativa de fatos do passado, este estudo recai sobre a memria individual e a
memria coletiva como instrumentos da narrativa de uma nao. O francs
Maurice Halbwachs (2006)17 entende que a memria individual registra a
percepo do eu acerca da realidade, percepo esta pautada em situaes
que presenciou e/ou em testemunhos de outros. Desta forma, a memria
individual formada pelo acmulo de lembranas do passado que se adaptam
s percepes do presente inseridas num contexto scio-histrico.
Ainda de acordo com o socilogo e filsofo mencionado, h uma relao
ntima entre aquilo que se lembra e o envolvimento emocional do sujeito que
recorda. Sendo assim, existe um processo de descontinuidade entre a
lembrana e o esquecimento no sentido de que, uma vez esquecidos fatos,
16
Carlo Guinzburg (1939 - ), historiador e antroplogo italiano que defendeu a metodologia da
microhistria. Esta ltima consiste na escrita da histria narrada por pessoas annimas, cuja
narrativa do cotidiano tida como fonte histrica para a anlise do historiador.
17 A publicao da teoria da memria coletiva de Maurice Halbwachs (1877-1945) encontra-se
em Les Travauxs de LAnne Sociologique. Paris: LAlcan, 1925. Esta pesquisa se baseou na
2 edio (2006) de La mmoire collective, Presses Universitaires de France, Paris, 1968, data
da 1 edio.
-
27
pessoas ou lugares, no resta ao sujeito que lembra meios para a reconstruo
de uma imagem.
Por esta concepo halbwachsiana, a memria assume um carter
social que, de acordo com Ecla Bosi (1994), d-se de forma radical. A autora
citada acredita que a memria no se trata apenas de um condicionamento
externo de um fenmeno interno (BOSI, 1994, p. 59). Antes, deve-se entender
que no interior da lembrana,
[...] no cerne da imagem evocada trabalham noes gerais, veiculadas pela linguagem, logo, de filiao institucional. graas ao carter objetivo, transubjetivo, dessas noes gerias que as imagens resistem e se transformam em lembranas (BOSI, 1994, p. 59).
Este estudo considera que as relaes entre o eu e o outro so
mediadas pela linguagem, sendo esta ltima j caracterizada como uma
representao do real. Assim, entende-se que, atravs de Bosi (2009), a
discusso sobre a narrativa da nao nas poesias picas de Semedo (2007)
toma relevncia. Isto , ao aceitar que as lembranas so um resultado da
permanncia de uma imagem expressada/evocada por meio da linguagem,
torna-se validada a hiptese de que existe um narrador/mensageiro destas
mesmas lembranas do passado.
Com efeito, admite-se que as lembranas narradas a partir da memria
individual de um sujeito que vivenciou situaes em um dado lugar, num
determinado momento, envolvendo certas pessoas uma reconstruo do
passado. Consequentemente, o narrador protagoniza a cena ao transmitir fatos
histricos que contribuem para a sociedade como um arquivo vivo da memria
coletiva.
Percebe-se no livro de poesias da autora guineense em questo, a
preocupao do narrador/mensageiro em registrar o dado momento histrico
de Guin-Bissau de forma a conscientizar as geraes futuras sobre a luta de
seus antepassados para a libertao nacional. Certo que as dores passadas
so recapituladas, porm o enfoque dado ao texto no potencializa o
ressentimento da guerra. Antes, apresenta um carter moralizante e devolve s
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28
geraes vindouras a valorao da cultura do seu povo que resistiu nos tempos
mais inspitos, atravs da(s) narrativa(s) da nao ps-independente,
conforme se pode observar nos versos a seguir:
Vou contar aos meninos da minha terra do meu cho a histria do corpo sem cabea que sucumbiu a espumar pelos ps por no ter cara No vou me esquecer da histria do homem sem rosto que se perdeu na multido e que um dia cansado do aleijo fez uma mscara ajustava-lhe bem... Os meninos da minha terra vo acompanhar-me no coro de silimbique-nbique juntaremos os nossos risos as nossas vozes [...] Construindo (SEMEDO, 2007, pp. 163-4)
desta maneira que se entende a narrativa da nao, contada a partir
da memria individual que se transfigura na memria coletiva. Fazendo assim,
aspectos histricos, sociais e culturais so evidenciados e veiculados atravs
de smbolos e representaes que demonstram as marcas identitrias de um
pas ps-colonizado.
Mediante tudo acima descrito, esta pesquisa parte para o terceiro e
ltimo captulo para a apreciao destas marcas de identidade nacional no
texto potico de Odete Semedo. Espera-se demonstrar que o livro No Fundo
do Canto se trata de um pico, cujo narrador conta a nao guineense a partir
de elementos e smbolos nacionais.
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29
3. Como Odete Semedo canta No Fundo do Canto?
Os meus filhos os filhos dos meus filhos ho-de perguntar um dia
[...] Nada omitirei
nem uma slaba No esconderei a verdade
Responderei aos meninos da minha terra
cantando a histria dos bichos (Odete Semedo)
Este captulo traz o texto potico da autora Maria Odete da Costa
Soares Semedo de Guin-Bissau para a anlise de smbolos e representaes
nacionais que contribuem para a narrativa da nao.
Ademais, com o objetivo de traar um perfil de onde fala a poetisa
supracitada, este estudo traz os contextos scio-histrico, poltico e cultural em
consonncia com o livro de poesias No Fundo do Canto da autora j citada.
Todos os aspectos contextuais acima mencionados evidenciados nos
poemas picos que compem o livro No Fundo do Canto descrevero alguns
fatos histricos que contriburam para a formao do livro de poesias
supracitado.
Desta forma, percebe-se que o livro de Semedo (2007) composto por
poemas picos no sentido em que os poemas so verdadeiras narraes de
feitos histricos e hericos do povo guineense, condensados na voz do
narrador.
Aspectos como invocaes aos irans (espcie de deuses ou entidades
espirituais) e a figura do mensageiro como portador da voz do povo so alguns
dos elementos que configuram o carter pico ao texto mencionado.
Portanto, analisando os poemas que compem o livro em questo,
espera-se observar como os aspectos scio-histricos, polticos e culturais da
Guin-Bissau no perodo de ps-independncia so contemplados a partir da
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anlise da posio do narrador que constitui a identidade nacional da Guin-
Bissau ps-independente.
3.1. O gnero literrio: o pico transgressor guineense
Este subcaptulo tem o propsito de verificar a natureza pica do texto
No Fundo do Canto (2007) de Odete Semedo. Portanto, cabe caracterizar o
gnero pico na sua concepo clssica, alm de demonstrar a ruptura com o
cnone na escrita do livro citado da autora guineense.
Levando em considerao a Potica de Aristteles (1962), o gnero
pico consiste em apresentar um enunciador discursivo (heroi) que narra as
aventuras grandiosas em terras distantes e baseia-se no mito como
componente da ao narrativa.
Desta maneira, o heroi pico constitui a representao de um povo cujos
grandes feitos atestam a imponncia deste mesmo povo sobre outros. A
mobilidade, ora espacial ora simblica, do pico aristotlico se manifesta
metonimicamente na trajetria da vida humana. Segundo Christina Ramalho
(2005), toda epopia ser fruto de um plano literrio que define as opes e as
inventividades formais, alm dos recortes mtico-histricos a ser enfocados
(RAMALHO, 2005, p. 20).
No plano formal, os versos que constituem o pico so realizados numa
mtrica de versos pentmetros imbicos cuja disposio potica est em
quatro slabas longas e breves alternadas (COHEN, 1974). A palavra imbico
determina o tipo de p ou marcao rtmica que cada slaba potica produz
como efeito de musicalidade. A palavra pentmetro marca a quantidade de ps
que um verso possui.
Alm da mtrica dos pentmetros imbicos, o pico consta de versos
hexmetros, dispostos em seis slabas poticas. A configurao mtrica dos
versos hexmetros produz um efeito meldico cujo tom anunciado pelo eu-
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31
lrico do pico (personificao do povo) e se aproxima do carter heroico. Em
outras palavras, segundo Jean Cohen (1974):
[...] o verso hexmetro dactlico (ou heroico), constitua-se essencialmente de seis ps, cada um com um elemento bem marcado e outro mais fraco; o tempo bem marcado correspondia sempre a uma slaba longa, e o tempo fraco a uma slaba longa ou duas breves. Havia geralmente uma pausa ou cesura no meio do verso (terceiro p), de modo a permitir a respirao do declamador (COHEN, 1974, p. 65).
A escolha do pentmetro imbico ou do hexmetro dactlico emprestava
ao verso um ritmo peculiar e dependia do efeito que o poeta deseja produzir.
Os versos imbicos, que se assemelhavam bastante fala durante uma
conversao comum, conferia um ritmo mais acelerado. Na poesia pica, a
mais antiga forma conservada de poesia grega, a preferncia recaa sobre o
hexmetro dactlico, de efeito lento e solene. Ainda de acordo com Cohen
(1974, p. 67), a poesia pica ou epopeia tem geralmente uma certa extenso e
relata aventuras heroicas mticas ou histricas em estilo elevado.
Atravs da enunciao do eu-lrico, a narrativa toma forma e o fato
histrico dialoga com o mito, este ltimo assume a natureza maravilhosa das
aes do heroi. Apesar de todas as caracterizaes acima ser baseadas nos
clssicos gregos, cabe uma apreciao do clssico pico de lngua portuguesa,
guisa de exemplo. Sendo assim, nota-se nestes versos do Canto I de Os
Lusadas, escrito por Lus Vaz de Cames em 1572:
As armas e os bares assinalados, Que da ocidental praia Lusitana, Por mares nunca dantes navegados, Passaram ainda alm da Taprobana, Em perigos e guerras esforados, Mais do que prometia a fora humana, E entre gente remota edificaram Novo Reino, que tanto sublimaram. (CAMES, 1968, p. 10)18
18
Data da edio crtica de Francisco da Silveira Bueno (1898-1989) professor de Histria,
Lngua Portuguesa, Latim e Literatura Portuguesa da USP.
http://greciantiga.org/arquivo.asp?num=0160http://greciantiga.org/arquivo.asp?num=0160http://greciantiga.org/arquivo.asp?num=0160
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32
Analisando os versos acima da epopeia portuguesa do sculo XVI, nota-
se que cada verso constitudo por dez slabas mtricas (decassilbico). Na
sua maioria, so versos decasslabos heroicos ou homricos, uma vez que a
marcao rtmica acentuada nas sextas e nas dcimas slabas.
Segundo Geraldo Chacon (1975), existe uma distino entre a mtrica
clssica e a mtrica medieval. Esta ltima onde se encontra Os Lusadas de
Cames. Sendo assim, temos a seguinte diferenciao dos versos clssicos
para os versos medievais:
Na mtrica clssica, destacam-se o hexmetro (com seis ps) e o pentmetro (com cinco ps). O hexmetro classifica-se segundo o tipo do penltimo p: hexmetro dactlico com o quinto p dctilo, e hexmetro espondaico com o quinto p espondeu. J o pentmetro classifica-se como o imbico, com uma slaba breve seguida de uma longa [...] A mtrica medieval era elaborada preferencialmente com poemas cujos versos eram os isomtricos, isto , com a mesma medida. Por exemplo, a epopia camoniana foi construda toda ela com versos decasslabos. (CHACON, 1975, p. 06)
Mediante as palavras de Chacon (1975), percebe-se que a epopeia tem
mudado sua forma lrica atravs dos tempos. A epopeia, enquanto gnero
literrio definido por Aristteles, refere-se ao modo como a elaborao
discursiva ganha sentido a partir da fuso dos referentes histrico e mtico,
independentemente da forma lrica que assuma (RAMALHO, 2005, p. 22).
Isto posta, vlido afirmar que a rigidez formal do pico tenha se diludo
ao longo da histria. O que se espera defender neste estudo que h o pico
moderno. Tal afirmao encontra fundamento nas palavras de Anazildo
Vasconcelos da Silva (1984), a saber: todo texto que possui dupla instncia de
enunciao (ora ephos narrador; ora lrica eu-lrico), elabora uma matria
pica e se insere num percurso, seguido por um sujeito pico, ser uma
epopia, no importa a linguagem e o tempo histrico que a componham
(SILVA, 1984, p. 27).
Desta forma, o gnero pico moderno se insere nas discusses literrias
na medida em que se considera a passagem do estruturalismo para o ps-
http://pt.wikipedia.org/wiki/Hex%C3%A2metro_dact%C3%ADlico
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33
estruturalismo em que se observa uma desconstruo das instncias de poder
e, dentro delas, o cnone.
Ademais, considerando a guinada da Nova Histria e seu conceito de
sujeito histrico, aquele que protagoniza as aes e fatos histricos, tem-se
genuna a concepo do sujeito ps-moderno de Stuart Hall (2006). Ao
reclamar a identidade nacional em pases ps-colonizados, o sujeito ps-
moderno, sendo descentralizado, compactua com as ideias de Homi Bhabha
(1998) do entre-lugar.
Assim, conforme Ramalho (2005), se o entre-lugar traz consigo a marca
da diferena, no pode deixar de integrar sua estrutura complexa dimenses
diversas da experincia humano-existencial, entre elas, a mtica (RAMALHO,
2005, p. 26). Alis, a experincia mtica se une experincia histria na
configurao da identidade nacional. O gnero pico a forma discursiva que
melhor dialoga com a presena do mito em se tratando de literatura.
neste nterim que esta pesquisa subscreve o livro de poemas No
Fundo do Canto da autora guineense Odete Semedo como um pico
transgressor devido s discusses sobre literariedade e canonicidade. Mais
adiante, espera-se demonstrar como o corpus em anlise se enquadra no
gnero pico.
Considerando o enunciador duplo, ora pico ora lrico, este estudo
entende o sujeito pico como narrador eu-lrico. Cumpre esclarecer que esta
abordagem da Semitica e da enunciao na Anlise do Discurso no foco
desta anlise. Apenas utilizamos o que preconiza Michel Maffesoli19 (apud
RAMALHO, 2005) na caracterizao do sujeito pico como sujeito nmade.
Segundo o socilogo, o que move o sujeito pico o desejo de evaso. Sendo
assim, [...] um tal nomadismo, claro, no corresponde ao conjunto da
19
Michel Maffesoli (1944 -), socilogo francs e professor da Universit de Paris-Descartes
Sorbonne FRA em estudos sobre Teoria da Comunicao, da Ps-modernidade e do
Imaginrio em sua obra: Sobre o nomadismo. Vagabundagens ps-modernas, 2001.
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34
populao, mas vivido, de modo paroxstico por alguns, alimenta um imaginrio
coletivo global (MAFFESOLI, 2001, p. 51 apud RAMALHO, 2005, p. 29).
Este carter mvel do sujeito pico tem consonncia com o que prega
Hall (2006) sobre o sujeito ps-moderno, deslocado e multifacetado. Alm
disso, mister salientar que esta mobilidade do sujeito pico se relaciona s
imagens arquetpicas do expansionismo, da predestinao, da superao e da
fundao (RAMALHO, 2005, p. 28, grifos da autora). Desta forma, este sujeito
enunciador do pico estabelece o vnculo entre o indivduo e a sua terra,
contribuindo para a construo e a reafirmao da identidade nacional. Quanto
a isso, observa-se nos versos da poesia O Prenncio dos Trezentos e Tribnta e
Trs Dias:
Meninos velhos meninas e rapazes homens e mulheres todos ouviram falar da mufunesa20 que um dia teria de cair nos ombros da gente da pequena terra [...] Caso passasse o predito perodo sem que o tormento amainasse apenas trezentos e trinta e trs dias trinta e trs horas separaria aquela gente da tal maldio assim est escrito no destino da nova Ptria. (SEMEDO, 2007, p. 24-5)
Nestes versos, nota-se o afastamento do narrador eu-lrico no sentido
em que assume o papel de contador da histria de Guin-Bissau, num perodo
especfico de guerra civil, conhecida como Guerra dos Onze Meses (jun/1998-
mai/1999). Sendo assim, o heroi se transfigura no prprio povo, uma vez que
este presenciou a guerra e resistiu a ela, pois: [...] apenas trezentos e trinta e
trs dias/trinta e trs horas/separaria aquela gente/da tal maldio [...]
(SEMEDO, 2007, p. 25).
20
Mufunesa: s. do crioulo (lngua guineense): azar, desgraa, infelicidade. In: Glossrio
(SEMEDO, 2007, p. 176).
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35
importante notar que a palavra apenas, no primeiro verso citado, no
plano semntico em que aparece, conota algo de pequena importncia. Tal
conotao representa um paradoxo, uma vez que os trezentos e trinta e trs
dias e trinta e trs horas o perodo pelo qual a Guin-Bissau enfrentou uma
guerra civil por motivos de hegemonia poltica.
Entendendo este pico guineense como transgressor da pica
cannica, percebe-se neste aparente paradoxo a ruptura com a categoria de
heroi: o heroi clssico teria enfrentado a guerra com grandes faanhas. No
entanto, o heroi pico de Semedo (2007), no representa o povo em seus
mirabolantes feitos e enfrentamentos com seu oponente: o heroi o prprio
povo. Mais adiante, observa-se que o narrador eu-lrico no representa o
heroi, uma vez que se utiliza do termo aquela gente para se referir ao
verdadeiro heroi histrico, em outras palavras, o povo guineense.
Do ponto de vista formal, os versos acima no esto dispostos na
rigidez clssica, sob mtrica compassada e estruturada. Analisando os
seguintes versos: Meninos velhos/meninas e rapazes/homens e mulheres [...]
(SEMEDO, 2007, p. 24), percebe-se uma sequencia de quatro cinco quatro
slabas poticas com marcao rtmica intercalada. diferena dos versos
pentmetros imbicos bem compassados do clssico, estes versos de matriz
africana apresentam um descompasso harmonioso, tpicos de uma guerra mal
anunciada e consonante com o terror do povo, mediante a incredulidade da
cena.
Estas so umas das diferenas entre o pico clssico e o pico
transgressor guineense. Observa-se, assim, que h a escrita da diferena, uma
vez que se acredita no sujeito pico inscrito na ps-modernidade. Esta potica
do ps-moderno se caracteriza por apresentar elementos diversos na
composio rtmica e na ruptura com o modelo de heroi clssico (RAMALHO,
2005), conforme j demonstrado acima.
Verifica-se nesta tipologia de heroi representado pela voz da
coletividade guineense a problemtica do indivduo como unidade fixa
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36
psicolgica ou social. A discusso j apontada sobre o sujeito ps-moderno
estabelece o ser multifacetado e descontnuo, projetado na sociedade como
um mltiplo de si, mas que representa uma unidade circunscrita numa
totalidade. Quanto a isso, Christina Ramalho (2005) atesta que se observa a
morte do sujeito nico, numa perspectiva do pensamento ocidental. Sendo
assim, no h a possibilidade de:
negar a abertura de viso e compreenso da experincia humano-existencial [...] a multiplicidade do sujeito no uma impossibilidade de identidade, mas uma nova forma de compreenso da identidade (RAMALHO, 2005, p. 29-30).
Considerando o carter fragmentado do sujeito ps-moderno, faz-se
legtimo afirmar que o sujeito heroico deste pico guineense enunciado por
um indivduo (narrador eu-lrico) estabelecido no espao histrico, que
representa uma coletividade, presente no espao mtico.
Quanto categoria de espao, observam-se dois espaos que
compem o prprio gnero pico, a saber: 1- o espao histrico presentes
nas duas primeiras partes: Parte I No Fundo... No Fundo... Do Preldio; Parte
II A Histria dos Trezentos e Trinta e Trs Dias e Trinta e Trs Horas; 2-
espao mtico presentes nas duas ltimas partes: Parte III O Conslio dos
Irans; Parte IV Os Embrulhos, subdividida em trs subpartes (O Primeiro
Embrulho, O segundo Embrulho e O Terceiro Embrulho).
Considerando o espao histrico nas duas partes, o enunciador
(ephos) o narrador tpico: o contador de histrias. Este enunciador que se
autodenomina o mensageiro ou tcholonadur assume uma posio de destaque
no sentido de que toma a palavra e fala pelo povo guineense. Retomando aos
conceitos de Benjamin (1994), neste ponto que se testemunha o verdadeiro
narrador, uma vez que o enunciador da verdade de quem experienciou os
fatos narrados.
J o espao mtico nas duas ltimas partes prenuncia a nacionalidade
cultural, pois faz uso dos elementos culturais e smbolos que representam a
nao guineense. Entre eles, h a natureza do prprio narrador que se
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37
transmuta na voz dos irans (entidades espirituais). Estas entidades vo
funcionar no texto como um enunciador mtico (o eu-lrico), haja vista a carga
de dramaticidade dos veros que compem estas partes do pico No Fundo do
Canto (2007).
Demonstrar o que os dois pargrafos anteriores apontam o intuito do
subcaptulo que se segue. Espera-se, ainda, mostrar de que forma esta
disposio do narrador eu-lrico, em consonncia com o espao narrativo e
com as narrativas a partir do recurso da memria, constroi uma narrativa da
nao e traz como efeito uma caracterizao do espao identitrio guineense.
3.2. No Fundo do Canto: o grito guineense esbravejado pelo vento
Neste subcaptulo, intenciona-se analisar o livro citado de Odete
Semedo de forma a estabelecer o carter do gnero pico de matriz africana.
Ao dialogar com os aspectos contextuais (scio-histricos, polticos e culturais)
e com a esttica da literatura africana de pases de lngua portuguesa acima j
descritos, espera-se demonstrar que o livro de poesia em questo traz um
narrador que demarca um espao identitrio ps-colonial da Guin-Bissau,
vista do fundo de um canto.
Antes do incio de uma anlise mais cuidadosa do livro em questo, cabe
contextualizar a macroestrutura de No Fundo do Canto (2007) da escritora
Odete Semedo para fins de evidenciarmos os aspectos culturais do espao
ps-colonial guineense na referida obra.
A primeira parte intitulada No fundo... No fundo... Do Preldio em que a
escritora traz a figura do tcholonadur (mensageiro) como o narrador eu-lrico
que vai narrar a mufunesa ou o mal que se aproxima e anunciado pelos
lderes espirituais das vrias etnias. Ricardo Riso (2010) atesta que, com a
guerra fratricida, o sujeito potico sente-se isolado, recupera os valores
autctones e clama aos antepassados e entidades. Nota-se que um fato
histrico narrado neste poema pico de forma a dialogar com alguns
-
38
aspectos peculiares da cultura da Guin-Bissau, tais como: o valor dado aos
antepassados e a f nas entidades espirituais.
A segunda parte do livro, A Histria dos Trezentos e Trinta e Trs Dias e
Trinta e Trs Horas narra, sob uma perspectiva interna dos acontecimentos, o
conflito armado acima mencionado conhecido como a Guerra dos Onze Meses.
Neste episdio, a crueldade da guerra descrita ora em lngua portuguesa ora
em crioulo (ou lngua guineense, conforme AUGEL, 2007) contestando a
brutalidade com que o povo guineense viveu as agruras da guerra.
A terceira parte, O Conslio dos Irans, um epteto s entidades de vrias
etnias que compem a nao da Guin-Bissau. Segundo Ricardo Riso (2010),
a convocao das entidades de todas as etnias e subetnias, seus irans e
totens em rituais mostra a pluralidade cultural guineense. Nesta parte do livro,
as poesias que trazem as vozes das entidades esto impregnadas de valores
de territorialidade, de clamor pela defesa da Guin-Bissau. Esta impresso
cultural marca indelvel de que h uma identidade nacional na escrita de
Odete Semedo.
A quarta parte, Os Embrulhos, est dividida em trs subpartes intituladas
da seguinte forma: O Primeiro Embrulho, O Segundo Embrulho e O Terceiro
Embrulho. As trs subpartes dialogam entre si a partir do registro da memria
do povo guineense representada pelas trs instncias do passado, do presente
e do futuro. A voz do povo guineense se mescla voz do narrador eu-lrico
figurado no mensageiro (tcholonadur) no fim do livro, num tom grave e de
resistncia. Nesta ambincia, percebe-se que a voz do narrador eu-lrico
carrega a voz de uma nao inteira, num espao mtico, que sempre resistir
atravs da poesia.
Sendo assim, considerando que a voz do narrador eu-lrico estabelece a
identidade nacional atravs de: 1- o recurso da memria, de quem conta o
passado; 2- o mtico, de quem conta a narrativa nacional; relevante a
compreenso de como este narrador eu-lrico funciona internamente no texto
em anlise.
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Esta pesquisa preconiza a categoria do narrador para a discusso da
identidade nacional, uma vez que o tipo de narrador que os poemas picos em
No Fundo do Canto apresenta est configurado nas seguintes tipologias: 1- o
narrador tpico que conta a histria a uma audincia e aproxima-se do povo
guineense; 2- o eu-lrico mtico que traz os elementos culturais da nao
guineense a partir de smbolos e representaes nacionais. E com base em
Walter Benjamin (1994)21, nas suas categorias de narrador, que se norteia esta
anlise. Segundo o autor citado, h o narrador por experincia, caracterizado
como: 1- o portador das histrias orais de um povo; 2- o conselheiro de sua
comunidade.
Embora se considere que o texto est escrito em forma de poemas, no
intento desta anlise trazer uma abordagem terica sobre gnero literrio,
especificamente, em que caberia a categorizao de hibridismo de gnero: ora
pico ora lrico. Se considerar esta abordagem, seria necessrio um arcabouo
terico na rea da Semitica e da Anlise do Discurso. Portanto, esta pesquisa
se deter na defesa da tese de que o texto perpassado pelo discurso pico,
pois apresenta uma linguagem heroica e est configurado no gnero pico,
conforme j se apresentou no subcaptulo anterior. Da, o uso do termo
narrador eu-lrico.
Tambm relevante esclarecer que, segundo Benjamin (1994, p. 200-
1), a arte de narrar est definhando porque a sabedoria o lado pico da
verdade est em extino. O filsofo alemo ainda afirma que h a morte da
narrativa na era moderna a partir do advento do romance. Sendo assim, a
nfase dada na apreciao do texto de Semedo perceber de que maneira
este narrador narra a nao de Guin-Bissau de forma a garantir a identidade
nacional.
Este tipo de narrador por experincia estabelecido por Benjamin (1994)
encontra-se nas duas primeiras partes do livro que narra o tempo-espao real
21
Walter Benjamin (1892-1940). Texto escrito em 1936, cujo ttulo O narrador: consideraes
sobre a obra de Nikolai Leskov.
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da Guerra dos Onze Meses (pr-guerra e durante a guerra) na Guin-Bissau.
J as duas ltimas partes do livro se reportam a um espao mtico, aquele que
descreve os horrores do ps-guerra e estabelece a marca nacional a partir da
valorizao dos elementos nacionais na reconstruo de um pas em
estilhaos.
No livro intitulado No Fundo do Canto (2007) observa-se uma invocao
do narrador por experincia como mensageiro da voz do povo da Guin-Bissau
de forma a estabelecer o contador da histria do pas recm-formado. Ao trazer
este tipo de narrador, os poemas a ser analisados inscrevem o espao mstico
africano nas poesias de No Fundo do Canto.
O narr