Modelagem de Escoamentos Multifásicos Prof. Fernando de A. França Depto. de Engenharia de Petróleo, sala CE 302
INTRODUÇÃO
Falar sobre engenharia de petróleo, especificamente o que se refere à produção e
transporte de óleo e gás, é falar, muitas vezes, sobre escoamentos multifásicos. Quando se
produz óleo de um poço de petróleo, quase sempre esta produção é bifásica, pois as frações
mais leves de hidrocarbonetos ou já se dissociaram (gás livre) ou se dissociarão à medida
em que o óleo escoa através do poço e sua pressão diminui. O mesmo pode-se dizer da
produção de gás: há frações pesadas de hidrocarbonetos que se mantêm na fase líquida, ou
se liquefazem à medida em que a temperatura do gás produzido se reduz ao escoar através
do poço, ou ainda se condensam à medida em que há uma redução de pressão no sistema.
Para complicar mais ainda, o que a natureza nos dá é efetivamente um escoamento
multifásico, pois é usual que poços de óleo e gás produzam água e, em certa medida,
também areia proveniente da formação rochosa.
Neste curso estaremos concentrados no estudo de fenômenos e processos nos quais o
escoamento bifásico é dominante na produção de óleo e gás (isto é, os efeitos dominantes
são, via de regra, ditados pelo escoamento bifásico gás-líquido). Ele, por sí só, já é muito
mais complicado que o escoamento monofásico de líquido ou gás, e prescindiremos da
“mãozinha” complicadora da Mãe Natureza, isto é, a presença de mais que duas fases no
escoamento. Entretanto, é importante ressaltar que a abordagem do Modelo de Dois Fluidos
é genérica, e pode ser ampliada para escoamentos bifásicos gás-sólido, líquido-sólidos,
desde que equações constitutivas apropriadas sejam utilizadas, e mesmo para escoamento
multifásicos, isto é, três ou mais fases, desde que certos procedimentos de dedução sejam
aplicados de forma mais genérica.
Escoamentos simultâneos de gás e líquido - escoamentos bifásicos gás-líquido - estão
presentes não somente na produção de petróleo, mas em inúmeros processos de interesse da
engenharia. Pode-se citar:
- produção e transporte de óleo e gás na indústria do petróleo;
- torres de extração de líquidos, destiladores e outros processos da indústria química;
- escoamentos em equipamentos de refrigeração (condensadores, evaporadores,
torres de resfriamento);
- misturadores siderúrgicos ( um gá inerte, argônio, por exemplo, usado para misturar
componentes e o líquido, o aço fundente);
- bombeio de água por processo de elevação por ar ("gas-lift pump");
- escoamentos em plantas de potência;
- escoamentos em reatores nucleares em situação de emergência, entre outros.
O escoamento multifásico é um fenômeno cuja análise é mais complexa que a
aplicada ao escoamento monofásico, quando processos correlatos são analisados. Os
motivos são variados:
1- Inicialmente, a presença de mais de uma fase no escoamento, exigindo um número
adicional de equações para o fechamento ("closure") dos modelos matemáticos que
expressam o fenômeno físico;
2- No escoamento multifásico geralmente há uma distribuição espacial das fases, a
qual não é conhecida "a-priori". Ademais, a distribuição espacial das fases não deixa de ser
um fenômeno de difícil quantificação. Em muitos casos a interface gás-líquido que separa
as fases tem forma complicada, além de apresentar movimento aleatório;
3- Ademais, há mudanças de padrões de escoamento (a distribuição espacial das fases
determina padrões de escoamento) que dependem de características físicas e operacionais
do sistema. Estes padrões (algumas vezes também denominados de "regimes do
escoamento bifásico”) por sua vez alteram e/ou determinam os fenômenos de transferência
interfacial, isto é, os processos de transferência de massa, de quantidade de movimento e
energia entre as fases;
4- E, mais, na medida em que há grande influência do escoamento de cada uma das
fases no escoamento da outra, a realidade mostra que as variáveis locais (referentes a uma
posição espacial) de cada fase, como a velocidade, a pressão, etc, podem flutuar no tempo
com amplitude considerável. Consequentemente, definir, ou calcular ou mesmo medir o
valor médio de uma variável em escoamento bifásico, requer procedimentos mais
complexos que aqueles aplicados às variáveis de escoamentos monofásicos
A título introdutório, vou formular, em procedimento muito simplificado, as equações de
Conservação da Massa e da Quantidade de Movimento para ambos, o escoamento
monofásico e o escoamento bifásico, para ilustrar os três primeiros aspectos mencionados.
As Equações Básicas e o Escoamento de Duas Fases
Seja um escoamento monofásico (gás ou líquido) ou bifásico (gás + líquido), em uma
tubulação genérica, como representado na figuras seguinte. Considere a aplicação das
Equações de Conservação da Massa e Conservação da Quantidade de Movimento
("Momentum") a um volume de controle delimitado pelas seções transversais 1 e 2 e pela
parede interna da tubulação.
A- Conservação da Massa
Sejam VL e VG as velocidades dos escoamentos de líquido e gás nesta tubulação
(quando o escoamento monofásico for considerado, só uma das fases existe). Sejam ρL e ρG
as densidades das fases, tidas como substâncias isotrópicas em A, a área da seção
transversal, e A1 e A2 as áreas de entrada e saída, respectivamente. Nossa análise
simplificada será realizada para escoamentos unidimensionais, apesar de haver uma
distribuição das velocidades locais nas seções de entrada e saída, 1 e 2, veja figura seguinte.
As equações para o escoamento unidimensional monofásico e bifásico serão escritas:
1 - Escoamento monofásico
=⊄=== ρρ AVAV 2221 11W massa de fluxo &
1
2
z
z'
β
φ
1
2
VG
VL
VG
VL
onde ξ é o símbolo que indica o valor médio da propriedade genérica ξξξξ na seção
transversal ao escoamento.
Solução: conhecidos ρ, A1 e A2, mede-se W& e obtém-se-se as velocidades do
escoamento monofásico (líquido, no caso) em 1 e 2, V1 e V2 . Para que se recupere a
informação sobre a distribuição da velocidade na seção transversal, é necessário o
conhecimento da sua função de distribuição (parabólica, para escoamento laminar, ou perfil
de potência 1/7, para o escoamento turbulento).
2 - Escoamento bifásico (gás + líquido), sem transferência de massa
( ) ( ) =⊄=== ρρ AVAVW LLLLLL 21L líquido de massa de fluxo &
( ) ( ) =⊄=== ρρ AVAVW GGGGGG 21G gás de massa de fluxo &
onde AG e AL são as áreas ocupadas pelo gás e pelo líquido na seção tranversal,
respectivamente, e VG e VL são as velocidades médias do gás e do líquido na seção
transversal ao escoamento, obtidas de
∫==
dAA
1VV kL,Gk
Relação entre as áreas: se AG é uma fração da área transversal da tubulação, A, pode-
se escrever:
AAG α= , e ( )A1AL α−= ,
sendo a variável αααα denominada de "fração de vazio".
As equações para o líquido e o gás podem ser reescritas como
( )[ ]α−ρ= 1AVW LL 1L&
[ ]αρ= AVW GG 1G&
Solução: conhecidos ρL, ρG e A, e medidos WL& e WG
& , teremos duas equações e
três incógnitas: V 1G , V 1L e αααα1. O mesmo procedimento é aplicado à seção transversal 2.
Note, mais ainda, que para recuperar os valores locais das velocidades, e não somente os
valores médios, as respectivas funções de distribuição deverão ser conhecidas.
Temos então as seguintes possibilidades para resolver o escoamento,
matematicamente representado pelo sistema de equações:
1 – fazer, a priori, VV 1L1G = (razão de deslizamento - "slip ratio" -, unitário
1/ VV 1L1G = ), característica do que se denomina de “escoamento homogêneo”. Se tal
modelo é assumido, pode-se escrever:
( ) ( )
α
α
ρ
ρ
α
α
ρ
ρ −=
−=
1
1
G
L
1
1
1G
1L
G
L
G
L 11
V
V
W
W
&
&
Obtém-se então uma solução para α1, V 1G e V 1L . Os escoamentos que têm o "slip
ratio" unitário geralmente são idealizações e não acontecem na realidade. Veja o que ocorre
em um copo de cerveja, logo após você enchê-lo: o gás dissolvido na solução aquosa (e
alcoólica) de malte, de uma forma quase homogênea em relação à cerveja (líquido)
dissocia-se e sobe através do meio líquido. Observe que quanto menores são as bolhas,
menor é a sua velocidade de ascenção. Bolhas maiores sobem mais rápido. Se o líquido
também estivesse em escoamento, as bolhas também estariam se deslocando em relação ao
líquido da mesma forma: as menores com menor velocidade relativa, as maiores com maior
velocidade relativa. Assim, o escoamento de cerveja (e de muitas e muitas outras
combinações de fluidos em inúmeros sistemas práticos) não pode ser considerado um
escoamento verdadeiramente homogêneo (as bolhas podem se formar homogeneamente
distribuídas em relação à cerveja, mas a velocidade das fases não é a mesma, e isso tira uma
das características de homogeneidade do meio bifásico, que requer a distribuição espacial
uniforme das fases e homogeneidade do campo de velocidade das fases). De fato, a razão de
deslizamento é uma função complexa de inúmeras variáveis, como dimensões e
características geométricas do sistema (diâmetro da tubulação onde ocorre o escoamento,
sua inclinação com a horizontal, etc), características operacionais (velocidade e pressão do
escoamento, forma de dispersão de uma fase na outra), propriedades dos fluidos, e mesmo
da fração de vazio αααα e da distribuição espacial das fases.
2 - ( )xn,...,4x,3x,2x,1xf/ VV LG = , isto é, o “slip ratio” é uma função complexa de
grande número de variáveis, função esta a determinar (experimentalmente, analiticamente,
etc).
B - Conservação da Quantidade de Movimento
Forças superficiais atuando no VC, vetores velocidade e campo gravitacional
1 - Escoamento Monofásico
Forças provenientes da ação de:
Pressão:
∆
∂
∂
∆
∂
∂+−
∆
∂
∂+− z
z
Az
z
pz
z
ppApAp 11111
Cisalhamento:
- φ∆πτ coszDHW
Gravidade:
β∆πρ− zsen4
gD
2H
Assim, a Equação de Conservação da Quantidade de Movimento é escrita em termos
diferenciais (usando a Equação de Conservação da Massa, dividindo todos os termos por
A∆z, e fazendo ∆z→0):
z
A
z
V
A
Wsengcos
4
z
p
A
pC
D 1
1V
H
W
∂
∂+
∂
∂+βρ+φ=
∂
∂−
τ &
p1
p2=p1+(dp/dz)dzττττw
V1
V2
ττττw
g
z
z'
g
∆∆∆∆z
Na equação anterior DH é o diâmetro hidráulico da tubulação, o ângulo φφφφ determina a
forma da tubulação, o ângulo ββββ é a inclinação do eixo de simetria da tubulação em relação à
horizontal, CV é o coeficiente de distribuição davelocidade, o qual leva em conta sua
distribuição na seção tranversal do escoamento e V é a velocidade média do escoamento
nesta seção transversal. O coeficiente de distribuição da velocidade surge quando se faz a
média dos termos da equação na seção tranversal, para determinar a equação
unidimensional: como a média do produto da velocidade em ∫ ρA
VVdAA
1 não é igual ao
produto de valores médios, Vρ V , surge o coeficiente de distribuição:
AVV
VVdAC A
V ρρ= ∫
Os termos que constituem a perda de carga total, zp
∂∂
são, respectivamente, a perda
de carga por atrito, a perda de carga gravitacional, a perda de carga por aceleração e, neste
caso particular, a perda de carga pela variação da área transversal da tubulação (o último
termo à direita do sinal de igualdade). A solução para esta equação é obtida recorrendo-se à
equação da conservação da massa. Por exemplo, neste caso de A variável, se o fluido é
incompressível podemos escrever
0z
AV
z
VA =
∂
∂+
∂
∂
Se o fluxo de massa e a geometria da tubulação são conhecidos, pode-se calcular
dV/dz. No caso do escoamento de um fluido compressível, necessita-se de uma equação de
estado adicional. Ainda, é necessária uma equação constitutiva para τW. Assim, seja
V2
W2
1f ρ=τ
Onde o f é obtido de correlação (diagrama de Moddy, p. exemplo, ou a correlação de
Blasius para tubo liso, etc).
Desta forma chega-se à solução de zp
∂∂
, dados W, ρ, A, g, φ, θ e a função
distribuição da velocidade na seção transversal do escoamento (e uma equação de estado ρ
= ρ(p,T) e também a temperatura T se o fluido é compressível). Da mesma forma como
fizemos anteriormente, pode-se assumir um modelo: por exemplo: distribuição uniforme da
velocidade na seção transversal, o que implica em CV = 1, fluido incompressível, etc, etc.
2 - Escoamento bifásico
Uma solução simplificada seria dada por
( ) ( )( ) ( ) ( )VWVWVWVWpp G GL L 1G GL L 2LzW21ZsengA1ZDA &&&& ++ρρτ −=θ∆α−+α−∆π−−
onde considerou-se que as pressões e velocidades são são uniformes nas seções 1 e 2 (note
então que não teremos o termo de covariância Cv no termo de aceleração). Ademais, que a
tubulação tem diâmetro constante (φ=0), que as fases também estão uniformemente
distribuídas na seção transversal, e que τW é a tensão cisalhante na parede que resulta do
escoamento da mistura bifásica. Em termos diferenciais chega-se a:
( )( ) ( )( )
α+
α−∂
∂+θ∆α−+α+=
∂
∂−
ρρ
−
+ρρ
τ
G
2
L
2GL
2
LGW xx1
A
WW1z
senZgA1D
4
z
p &&
sendo o título, x, definido por
WW
WW
LG
GG
Wx
&&
&&&
& +==
Notar que a solução para a perda de carga desta equação já razoavelmente
simplificada, quando comparada com a de um escoamento monofásico, é muito mais
complicada. Observe o termo da aceleração. No caso geral, o processo de transferência de
massa entre as fases deve ser conhecido, isto é, necessita-se de uma equação constitutiva
para expressar a variação do título com a posição. Há a necessidade ainda de uma equação
para a fração de vazio e de uma equação de estado para a densidade. Seja agora um caso
simples: não há mudança de fase no escoamento (x=⊄), o gás pode ser considerado como
incompressível e o escoamento está desenvolvido (α=⊄). O termo de aceleração se anula e
a solução de
∂
dzp
depende de equações para τW e α.
Suponha que τW possa ser calculada por equação similar à utilizada em escoamentos
monofásicos. O problema se transfere então para a determinação do fator de atrito f e da
pressão dinâmina (1/2ρV2). Referem-se a uma das fases em escoamento ou à mistura? Sob
que condições operacionais e configurações físicas do sistema? E a fração de vazio, α?
Suponha que a distribuição espacial das fases seja tal, etc, etc...
De uma maneira geral, o efeito físico resultante de um escoamento bifásico, quando
comparado a um escoamento monofásico operacionalmente similar, é o incremento dos
processos de transferência. E isto se reflete nos modelos matemáticos através dos termos
mais complexos nas equações de conservação de massa, quantidade de movimento e
energia. As figuras abaixo são ilustrativas destes efeitos.
Na Figura 1, é positiva a variação da taxa de incremento do coeficiente de
transferência de massa, para uma dada variação do número de Reynolds do gás, à medida
em que adiciona-se líquido ao escoamento (aumento do número de Reynolds do líquido).
Na figura seguinte é claro o aumento do gradiente total de pressão (atrito mais
gravitacional mais aceleração) à medida em que o conteúdo de gás aumenta no escoamento,
para uma dada vazão de líquido, ou vice-versa (implicando, inclusive, na mudança de
padrão de escoamento). Evidentemente, há um claro aumento no gradiente de pressão em
relação ao de um escoamento monofásico.
A última figura ilustra um processo de transferência de calor em um escoamento
vertical ascendente de ar e água, em termos do coeficiente de película bifásico, htp, versus a
razão entre as vazões volumétricas de ar e água, jg/jl. Neste caso, a menos de uma pequena
faixa de condições operacionais nas menores vazões de líquido, o coeficiente de película
cresce à medida em que aumenta a concentração volumétrica de ar no escoamento. Também
aquí observa-se a diferença entre os coeficientes associados aos vários padrões de
escoamento vertical ascendente.
Coeficiente de transferência de massa (escala relativa) de um escoamento bifásico gás-
líquido gas versus número de Reynolds do gás, tendo como parâmetro o número de
Reynolds do líquido, de Kafesjian, 1961.
Gradiente de pressão versus vazão de ar, tendo a vazão de água como parâmetro, em um
escoamento horizontal, do livro de Gouvier e Aziz, Flow Of Complex Mixtures in Pipes
(veja a lista de referências)
Transferência de calor em escoamento vertical ascendente de ar e água,
do livro do Collier, Convective Boiling and Condensation (veja a lista de referências).
Sugestão de exercícios:
1- Formular a Equação de Conservação Unidimensional da Quantidade de
Movimento do escoamento bifásico, passo a passo, preservando as complexidades inerentes
ao fato de que a tubulação pode ser genérica, com área de seção transversal crescente, que a
velocidade das fases tem uma distribuição na seção transversal, que as fases podem não ser
uniformemente distribuídas na seção transversal e que as pressões do líquido e do gás
podem ser diferentes.
2- Utilizando o gráfico do gradiente de pressão total retirado do livro de Gouvier e
Aziz, calcular o gradiente de pressão por atrito em um escoamento de água e ar horizontal
que tem por velocidades superficiais do líquido e do gás: jL = 0,3 ft/sec e jG = 3,0 ft/sec
(G&A usam VSL VSG para nomear a velocidade superficial de líquido e gás,
respectivamente).
Desprezar o gradiente de pressão por aceleração. Lembrar que a velocidade superficial, jk, é
a vazão da fase (k = L ou G) dividida pela área da seção transversal da tubulação. O diâmetro
da tubulação está dado na legenda do gráfico, 1,026 inch pipe.