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Minayo MCS. O desafio do conhecimento. Pes-quisa qualitativa em saúde. 9ª edição revista eaprimorada. São Paulo: Hucitec; 2006. 406 p.

Everardo Duarte NunesDepartamento de Medicina Preventiva e Social,Faculdade de Ciências Médicas, Unicamp

Num momento em que a pesquisa em saúde atin-ge altos níveis de realização e produção, incluin-do a publicação de muitos textos em âmbito na-cional e internacional, cumpre destacar, no cam-po da pesquisa qualitativa, o livro de Cecília Mi-nayo. Este livro, que atinge a sua nona edição,revelando uma marca importante no campo daspublicações brasileiras, teve desde as suas origens,na tese de doutorado, defendida em 1989, na Es-cola Nacional de Saúde Pública, um trajeto mar-cado pelo sucesso. Este sucesso, que se manifestapela sua presença obrigatória nos cursos na áreada saúde pública/saúde coletiva/ciências sociais,deve-se a muitos fatores.

A lógica da construção do Desafio é a da pes-quisadora que, profundamente envolvida com asua formação no campo das humanidades, escre-ve um texto que se volta para o interior do campolegado pelos clássicos, sem perder a perspectivada dinâmica científica que somente as pesquisasempíricas podem fornecer. Revisitar esta ediçãodo livro é um prazer renovado. Se, desde o início,o desafio era a proposta no enfrentamento de umterreno árduo – o da pesquisa qualitativa, muitasvezes minado pelas visões positivistas – ele nãodesaparece, mas retoma com novo ímpeto quan-do a autora se propôs a rever o texto escrito háquase duas décadas. Não que ele tivesse envelheci-do. Livros bons não são datados. Neste caso, aidéia central é a mesma; há acréscimos vindo denovos desafios temáticos e metodológicos.

Outro fator que marca este livro é a sua for-ma de apresentação: didática, sem apelar para asimplicidade dos manuais (ainda que a autoraconsidere que “por vezes, meu trabalho beira a ummanual”- p. 185), tratando de forma erudita di-versos aspectos que percorrem a construção doconhecimento: a ciência, a metodologia das ciên-cias sociais, a saúde como objeto central. Estessão aspectos presentes, que, nas palavras da au-tora: “Mesmo sendo uma obra voltada para o de-senvolvimento de metodologias e práticas teóricas,julguei que ao leitor interessaria discutir os desafi-os do campo da ciência e da tecnologia que se tor-naram nos mais importantes fatores produtivos ede geração de riqueza no mundo atual. A esse con-texto denomino lado externo da ciência. O lado

interno, que corresponde a um jargão específico e atorna passível de ser reconhecida e apropriada emtodo mundo, é o objeto deste livro”” (p.12). Escolhiesta passagem como um ponto de referência destaobra, como definidora, embora em toda a Apre-sentação a autora revele a sua posição e exposiçãoao campo científico. Nesse sentido, assume a dife-renciação da pesquisa qualitativa na produção deconhecimento, sem deixar de destacar que o pro-cesso de trabalho investigativo, lato sensu, vemsofrendo rápidas transformações, influenciadopelas mudanças socioestruturais, presença (ausên-cia) do Estado, inovação na gestão científica, e pe-las conquistas recentes da pesquisa básica bioló-gica e da computacional. Lembre-se, ainda, que apesquisa busca ultrapassar a antiga dicotomia ciên-cia básica/ciência aplicada, em nome do conceitode pesquisa estratégica.

Neste livro, a historicidade do processo inves-tigativo e a peculiar forma de investigar o social ao“levar em conta os níveis mais profundos das rela-ções sociais” oferecidas pela pesquisa qualitativasão as garantias de um precioso e amadurecidotrabalho. A amplitude do livro, em relação à pes-quisa qualitativa, pode ser avaliada quando a au-tora escreve: “O investimento que faço neste livrodiz respeito à pesquisa qualitativa que visa a com-preender a lógica interna de grupos, instituições eatores quanto a (a) valores culturais e representa-ções sobre sua história e temas específicos; (b) rela-ções entre indivíduos, instituições e movimentossociais; (c) processos históricos, sociais e de imple-mentação de políticas públicas e sociais” (p. 23).

Após situar na Introdução que a problemáti-ca deste livro é discutir as metodologias qualita-tivas, “entendidas como aquelas capazes de incor-porar a questão do significado e da intencionalida-de como inerentes aos atos, às relações e às estrutu-ras sociais, sendo essas últimas tomadas tanto noseu advento quanto na sua transformação, comoconstruções humanas significativas” (p. 22-23), aautora divide o livro nas seguintes partes: Parte I– Conceitos básicos sobre metodologia e sobreabordagens qualitativas; Parte II – Teoria, episte-mologia e métodos: caminhos do pensamento;Parte III – Construção do projeto de pesquisa:fase exploratória; Parte IV – Trabalho de campo:teoria, estratégias e técnicas; Parte V – Fase deanálise do material qualitativo.

Não vou me deter detalhadamente em cadacapítulo – os próprios títulos encaminham o lei-tor para um conjunto de idéias que trazem para ocampo da metodologia em pesquisa uma pers-pectiva que o articula ao campo maior da ciência edas relações com os pólos básicos da pesquisa: o

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teórico, o epistemológico, o técnico e o morfoló-gico, respeitando a especificidade das ciênciassociais quando investigam o domínio da saúde.Farei alguns comentários gerais, tentando situaro que me parece central em cada um deles.

Nas questões conceituais, destaca-se o caráterhistórico, processual, ideológico das ciências so-ciais e que elas trabalham no nível da identidadeentre o sujeito e o objetivo; o controvertido con-ceito de metodologia, sendo que neste livro nãohá separação entre teoria e metodologia, sem es-quecer que em toda a pesquisa a “criatividade dopesquisador” é indispensável; o conceito de pes-quisa como um caminho para se entender a tota-lidade, livrando-a, inclusive, das amarras disci-plinares. Um ponto sobre o qual a autora refletede forma crítica é as dimensões quantitativas equalitativas na pesquisa, destacando as peculiari-dades da pesquisa qualitativa, incluindo as possi-bilidades da combinação de método, discutindocomo essas questões apresentam-se no campoda saúde – não são métodos incompatíveis e nãose opõem.

De forma brilhante, os capítulos dedicadosaos “caminhos do pensamento” trazem ao leitoruma visão abrangente e atualizada das correntesteóricas herdadas do final do século XIX – teoriaspositivistas, funcionalistas, compreensivas, mar-xistas - não se esquecendo das perspectivas quese abriram com o pensamento sistêmico quandoelas propõem “formas alternativas de tratar os ob-jetos, de investigação, a vida, o mundo, as práticas

sociais e, sobretudo, as implicações do investigadorcom seu objeto de pesquisa” (p. 132). Neste sentido,inclui o pensamento sistêmico em saúde, apon-tando para sua incipiente presença neste campo.Da mesma forma, são tratadas as abordagenscompreensivas, destacando a fenomenologia so-ciológica, a etnometodologia, o interacionismosimbólico, a investigação participante e investiga-ção-ação, história de vida, narrativa de vida, his-tória oral e etnobiografia, investigação participantee investigação-ação, o estudo de caso, a herme-nêutica-dialética, como modalidades que interes-sam particularmente à pesquisa qualitativa.

Completado esse amplo e consistente panode fundo, Cecília irá trabalhar a construção doprojeto de pesquisa em todos os seus passos, se-guida das bases teóricas, das estratégias e dastécnicas de trabalho de campo, finalizando comas várias técnicas de análise empregadas. Cecíliaincluiu, também, uma reflexão sobre a validaçãoe fidedignidade em investigação qualitativa e umaproposta para triangulação de métodos qualita-tivos e qualitativos.

Se o livro, como diz Jorge Luís Borges, é umaextensão da memória e da imaginação, ele é tam-bém um produto da posição que o (a) autor (a)assume perante o mundo e a vida. Este livro demetodologia, ao estender a compreensão destecampo além das fronteiras da tecnicidade da pes-quisa social, é um excelente exemplo de como épossível entender e ensinar a pesquisa como umaconstrução social e humana.


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