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Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e Cincias Humanas
Departamento de Histria
Sinu Neckel Miguel
Movimento Universitrio Esprita (MUE): Religio e poltica no Espiritismo brasileiro (1967-1974)
Dissertao de Mestrado apresentada ao Instituto de Filosofia e Cincias humanas da Universidade Estadual de Campinas, para obteno do ttulo de Mestre em Histria, na rea de concentrao Histria Cultural.
Orientadora Profa. Dra. Eliane Moura da Silva
CAMPINAS 2012
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Resumo A dissertao tem como tema o Movimento Universitrio Esprita (MUE) das
dcadas de 1960 e 1970 que atuou fundamentalmente no estado de So Paulo. Tratou-se de
uma tendncia dentro do Espiritismo que emergiu num momento de fortes tenses sociais
propondo um conjunto de renovaes tericas e prticas ao movimento esprita brasileiro.
Atravs do exame da atuao do MUE e do estudo do pensamento social esprita,
empreendemos uma anlise histrica acerca da especificidade deste movimento dentro da
cultura esprita: um Espiritismo altamente crtico e politizado, voltado para questes
sociais. Tal o carter do MUE, marcado pela participao da juventude universitria esprita
que se politizou e com isso iniciou um processo de construo de snteses em torno de
religio e poltica, propondo um socialismo cristo. Ao final, o MUE, revelando a
existncia potencial de um Espiritismo de esquerda, provocou uma forte reao de oposio
por parte dos principais dirigentes do Espiritismo brasileiro, ensejando assim a sua prpria
extino.
Palavras-chave: Espiritismo, Religio, Poltica, Socialismo.
Abstract This essay has as its theme the Movimento Universitrio Esprita (MUE) of the
1960s and 1970s which acted primarily in the state of So Paulo. It was a trend in the
Spiritism that emerged in a time of severe social tensions, proposing a series of theoretical
and practical renovations to the Brazilian spiritist movement. Through the examination of
the actions of the MUE and the study of the social thinking spiritist, we undertook a
historical analysis about the specificity of this movement into spiritist culture: a critical and
highly politicized Spiritism, focused on social issues. Such is the character of the MUE,
marked by the participation of spiritist college youth who has politicized and thus they
began a construction process of synthesis about religion and politics, by proposing a
Christian socialism. At the end the MUE, revealing the potential existence of a left wing
Spiritism, provoked a backlash from the opposition by the main leaders of the Brazilian
Spiritism, thus occasioning its own extinction.
Key words: Spiritism, Religion, Politcs, Socialism.
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Agradecimentos Ao final de uma jornada, olhamos para trs e percebemos como teria sido
impossvel chegar aonde chegamos sem o apoio de inmeras pessoas. Quero ento
agradecer quelas que mais diretamente (no tempo e no espao) contriburam para a
realizao dessa dissertao de mestrado jornada rdua e venturosa que representa uma
fase crucial da minha vida acadmica.
Prof. Dr. Eliane Moura da Silva, muito obrigado pela confiana depositada em
mim. Sua orientao competente e amiga foi decisiva para o sucesso dessa empreitada.
Aos professores Silvio Seno Chibeni e Izabel Andrade Marson agradeo pelas
excelentes sugestes dadas na ocasio de minha qualificao. J constituindo a banca
examinadora em minha defesa da dissertao, a Prof. Izabel Marson e o Prof. Artur Cesar
Isaia certamente contriburam muito com retificaes e crticas construtivas que foram, na
medida das minhas possibilidades, incorporadas a este trabalho.
A todos aqueles que aceitaram ser entrevistados para esta pesquisa agradeo
imensamente, pois suas falas, suas memrias, suas experincias, deram vida a esta
dissertao. So todos, de certo modo, co-autores, j que nossos dilogos constituem boa
parte do texto. Obrigado, ento, Paulo de Tarso Ubinha, Therezinha Oliveira, Armando
Oliveira Lima, Shizuo Yoshida, Pedro Francisco de Abreu Filho, Claro Gomes da Silva,
Adalberto Paranhos, Ccero Marcos Teixeira, Ana Maria Fargoni, Antnio Carlos Fargoni,
Marlene Adorni Mazzotti, Martinho Januario de SantAna, Nilza Aparecida Vicente de
Mello, Djalma Caselato, Valter Scarpin, Walter Sanches, Edson Silva Coelho, Izao
Carneiro Soares, Angela Conceio Bellucci, Edson Raszl, Telmo Cardoso Lustosa,
Nicolau Archilla Messas, Josilda Rampazzo, Apolo Oliva Filho, Maria Eny Rossetini Paiva
e Claudio Di Mauro.
Ao Armando Oliveira e ao Edson Raszl agradeo com grande alegria por terem
disponibilizado praticamente todo o material escrito relativo ao Movimento Universitrio
Esprita (MUE). Alis, sem a organizao e preocupao com a memria do MUE revelada
por esses dois ex-mueanos esta pesquisa seria simplesmente invivel. Ao Pedro
Francisco, obrigado por fornecer documentos importantes, mostrando-se sempre solcito.
Ao Adalberto Paranhos agradeo pelo esforo em solucionar as minhas dvidas mesmo
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com uma agenda to cheia. Ao Djalma Caselato e ao Walter Sanches meu muito obrigado
por terem viabilizado o aprofundamento dessa pesquisa j na sua reta final, passando-me
contatos e esclarecendo pontos obscuros que no teriam encontrado soluo sem a sua
enorme diligncia.
Ao pessoal de Araraquara, em especial ao casal Antnio Carlos e Ana Maria
Fargoni, agradeo pela tima acolhida.
Dora Incontri, ao Alysson Mascaro e Maria Eny Rossetini Paiva agradeo pelos
dilogos sobre pensamento social esprita. Ao Jder Sampaio e aos interlocutores do
ENLIHPE, obrigado pela oportunidade de trocar ideias sobre a histria do Espiritismo. E ao
Silvio Chibeni muito obrigado por tantas reflexes filosficas acerca da Doutrina Esprita
que pude sorver em diversas ocasies.
Ao pessoal do Ncleo Esprita Universitrio da Unicamp e do Grupo de Estudos
Espritas da Unicamp agradeo pela oportunidade de refletir e dialogar em profundidade
sobre Espiritismo.
Ao Eugenio Lara, pesquisador e militante esprita, um especial abrao pelas diversas
informaes e materiais de fundamental importncia que me foram passados com solicitude
para a realizao dessa dissertao.
Ao Marcius Igor Bigheto obrigado pela troca de ideias sobre o MUE. Ainda que
tenha ocorrido de um modo rpido, foi timo encontrar um interlocutor bem familiarizado
com o tema.
Aos amigos que generosamente me ajudaram com a reviso do texto e com a troca
de ideias, Saulo, Igor e Raphael, meu fraterno abrao. Obrigado tambm ao meu amigo
Davi, pelas interessantes conversas sobre poltica.
Federao Esprita do Rio Grande do Sul agradeo por manter as portas abertas
para a pesquisa. E Federao Esprita Brasileira agradeo por disponibilizarem seu acervo
do Reformador atravs da internet com um sistema de busca muito til para todos os
pesquisadores do Espiritismo. Ao Centro Esprita Allan Kardec de Campinas agradeo pelo
emprstimo de livros utilizados nessa dissertao e pela acessibilidade pesquisa.
A CAPES e ao Programa de Moradia Estudantil da Unicamp, agradeo pelo
fundamental suporte financeiro e material. Desejo que estes recursos assim como a
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prpria universidade brasileira como um todo - estejam cada vez mais largamente
disponveis para que o fazer da pesquisa universitria possa um dia deixar de ser privilgio
de poucos.
Finalmente, no posso deixar de agradecer aos meus familiares, pela compreenso e
enorme apoio que sempre me deram. Sei o quanto tem sido difcil suportar a distncia e a
ausncia fsica destes ltimos anos. Pai, me, irmos, avs, tios, primos... vocs moram no
mais ntimo do meu corao. O amor que nos une foi, e sempre ser fundamental para que
eu possa alar voos cada vez mais altos. Ao meu pai, Alexandre Miguel, e minha me,
Clarice Nunes Neckel, devo reconhecer ainda as marcas profundas que deixaram em meu
carter. A prpria dissertao , de certo modo, resultado da influncia indelvel de meus
pais: as experincias com religio e com poltica me conduziram at aqui.
E, para encerrar, quero dizer do meu profundo amor pela famlia que constitu, com
a qual aprendo muito dia aps dia. Ao Jos Antnio, que est me aceitando como pai, ainda
que me falte o tempo adequado para lhe dar a ateno que merece, meu beijo carinhoso
com o amor de quem j lhe considera como filho. minha esposa, querida amiga,
companheira de tantas lutas, minha profunda gratido por ter me apoiado ao longo destes
anos difceis, cheios de desafios que s fizeram fortalecer nossa unio. Eu te amo muito
Ana Paula! Do tamanho do universo...
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Sumrio Introduo ............................................................................................................................... 1 Captulo 1 Surgimento do Movimento Universitrio Esprita .......................................... 13
1.1 - Espiritismo encarnado: uma breve e necessria histria poltica do movimento esprita brasileiro at 1960 ................................................................................................ 13 1.2 Poltica e questes sociais no movimento esprita brasileiro .................................. 26 1.3 Espiritismo de esquerda: a tradio intelectual esprita de vis socialista .............. 52 1.4 Os anos 1960 e 1970: contexto poltico-cultural nacional e internacional .............. 74
Captulo 2 Ao do Movimento Universitrio Esprita: revolucionar o movimento esprita atravs da crtica em favor do socialismo cristo ................................................................. 83
2.1 Progressismo: crtica e dilogo contra dogmatismo e autoritarismo ..................... 100 2.2 Poltica: revoluo socialista, cristianismo e movimento esprita ......................... 131
Captulo 3 A reao ao Movimento Universitrio Esprita: apoios recebidos e represses sofridas. .............................................................................................................................. 189
3.1 Do apoio represso ............................................................................................. 189 3.2 O fim do movimento e sua herana ....................................................................... 278
Concluso ........................................................................................................................... 289 Bibliografia ......................................................................................................................... 295 Anexo ................................................................................................................................. 313
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Introduo Esta dissertao trata da experincia histrica de um grupo de espritas
universitrios que, aproximadamente entre 1967 e 1974, atuou de forma poltica e
intelectual buscando elaborar uma agenda crtica e socialista no movimento esprita. Sero
analisadas as causas do surgimento do movimento e o seu impacto no meio esprita,
levando em conta os momentos de tenso e ebulio social das dcadas de 1960 e 1970,
sem descurar da prpria trajetria do movimento esprita em geral. O objetivo principal
compreender a emergncia e o ocaso de uma tendncia dentro do movimento religioso
esprita que propunha uma forma de socialismo cristo, de reviso de aspectos doutrinrios
e de crticas s formas hierarquizadas de organizao ento vigentes. Com isso, temos no
MUE um momento particularmente importante para interpretar cultura poltica, lcus de
confrontos de ideias e lutas por poder.
Consideraremos poltica em sentido lato, abrangendo no apenas o universo da
disputa partidria pelo poder na esfera governamental, no apenas o domnio social da
relao entre Estado e sociedade civil. Tomaremos o poltico como um campo e um
trabalho1, isto : um lugar (estruturante e estruturado) de formao dos indivduos para os
tornar componentes de uma dada comunidade ou sociedade, e um processo de embates e
consensos para a definio das suas regras constituintes. Para deixar mais claro nosso ponto
de partida, aproveitamos a orientao de Pierre Rosanvallon:
Falando substantivamente do poltico, eu qualifico assim tanto uma modalidade de existncia da vida comum quanto uma forma de ao coletiva que se distingue implicitamente do exerccio da poltica. Se referir ao poltico e no poltica, falar do poder e da lei, do Estado e da nao, da igualdade e da justia, da identidade e da diferena, da cidadania e da civilidade, enfim de tudo aquilo que constitui uma cidade para alm do campo imediato da competio partidria pelo exerccio do
1 Inspiramo-nos na proposio de Pierre Rosanvallon: O poltico tal como eu o entendo corresponde ao mesmo tempo a um campo e a um trabalho. Como campo, ele designa o lugar onde se formam os mltiplos filhos da vida dos homens e das mulheres, aquilo que d seu quadro de conjunto a seus discursos e a suas aes. Ele se refere ao fato da existncia de uma sociedade que aparece aos olhos de seus membros como formando um todo que faz sentido. Como trabalho, o poltico qualifica o processo pelo qual um grupo humano, que no compe em si mesmo seno uma simples populao, toma progressivamente a face de uma verdadeira comunidade. , portanto, constitudo pelo processo sempre litigioso de elaborao de regras explcitas ou implcitas do participvel e do partilhvel que do forma vida da cidade (ROSANVALLON, 2003, p. 12; livre traduo nossa).
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poder, da ao governamental cotidiana e da vida ordinria das instituies. (ROSANVALLON, 2003, p. 14; livre traduo nossa)
Nesse sentido, o Espiritismo sempre esteve ligado ao poltico (e poltica), tanto
por sua vinculao com o campo de representao e articulao dos poderes pblicos,
quanto por sua incurso em discusses relativas s grandes ideias concernentes
organizao da sociedade. A parte terceira dO Livro dos Espritos est recheada de
candentes questes sociais, como o problema das desigualdades sociais e das riquezas, a
funo do trabalho e o direito de propriedade. No Brasil, ainda na Repblica Velha, o
deputado e mdico Bezerra de Menezes (1831-1900) foi fundamental para a consolidao
do Espiritismo frente s oposies da lei. J na Era Vargas a atuao dos militares espritas,
bem como juzes e mdicos, contribuiu bastante para salvaguardar as prticas espritas das
investidas de psiquiatras e clrigos que apelavam para a represso do Estado2. Em segundo
lugar, o socialismo no posio indita entre os espritas3. A comear pelo filsofo Lon
Denis (1846-1927), de militncia no movimento operrio francs e escritor da obra
Socialismo e Espiritismo4. No Brasil, esta obra foi prefaciada pelo poltico e jornalista
socialista Jos de Freitas Nobre (1921-1990). Lembremos que j em finais do sculo XIX e
comeo do XX abre-se, no Brasil, uma crescente vaga religiosa no-catlica que permitiu
uma circulao de iderios entre maons, livre-pensadores, positivistas, espritas,
anarquistas e socialistas, aproximando de algum modo estes grupos5. Outro importante
exemplo: filiado ao PCB, tendo sido prefeito de Ilhus BA, Eusnio Lavigne (1883-1973)
2 Em estudos anteriores (MIGUEL, 2009b, 2010 e 2011b), tratei do problema poltico no movimento esprita e das suas relaes com o Estado, verificando, por exemplo, a importncia dos militares espritas na defesa do Espiritismo na Era Vargas. 3 Por socialismo, entenda-se um leque bastante amplo de teorias que tem em comum alguma forma de apelo igualitrio (o que implica, em geral, em fortes restries ao direito de propriedade privada em prol do bem comum, normalmente postulando-se a necessidade de extinguir a propriedade privada dos meios de produo e distribuio da riqueza). Na terceira parte do primeiro captulo abordamos alguns dos diferentes tipos de posturas socialistas adotas por pensadores espritas. 4 Originalmente publicado como uma srie de artigos na Revue Spirite em 1924, sob o ttulo Socialisme et Spiritisme. No Brasil publicado pela editora O Clarim em 1982. 5 Ver, por exemplo, a figura do pioneiro esprita e maom, Carlos Pareta, apresentado em outro estudo de minha autoria Espiritismo fin de sicle: a insero do Espiritismo no Rio Grande do Sul (MIGUEL, 2009). No texto Maonaria, anticlericalismo e livre pensamento no Brasil (1901-1909) apresentado por Eliane Moura Silva no XIX Simpsio Nacional de Histria da ANPUH, conhecemos a figura de Everardo Dias, grfico, jornalista, maom, espiritualista, anarquista e depois comunista. Antnio Guedes Coutinho outro socialista esprita, militante no movimento operrio, tomado como tema do livro de Benito Schmidt Um socialista no Rio Grande do Sul: Antnio Guedes Coutinho (1968-1945) (SCHMIDT, 2000).
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expe a possvel conciliao entre Comunismo e Espiritismo num artigo chamado Os
espritas e o Comunismo, publicado na Tribuna Popular e transcrito nO Estado de Goiz
em 26 de dezembro de 1945 (S, 1998, p. 6), alm de escrever, junto com Sousa do Prado,
outro esprita comunista, o livro Os espritas e as questes sociais (interpretao
progressista de O Livro dos Espritos).
No MUE temos a organizao de um grupo que procurava articular um discurso
programaticamente dirigido a transformar, por dentro, o movimento esprita
institucionalizado sob a estrutura federativa ligada Federao Esprita Brasileira (FEB),
claramente hegemnica desde o chamado Pacto ureo de 1949 polmico acordo de
unificao federativa nacional que confere grande poder FEB. Derrubar o autoritarismo,
promover o dilogo com a cultura contempornea, defender o esprito crtico e encampar a
disseminao de um socialismo cristo eram os principais tpicos do projeto de
transformao do MUE dirigido para o conjunto do movimento esprita6.
Um balano bibliogrfico Os estudos acadmicos em Cincias Humanas sobre o Espiritismo existem com
alguma variedade de enfoques. Contudo, poucos trabalhos aprofundaram as anlises sobre
as relaes entre o movimento esprita e a discusso poltica.
Vejamos ento quais so, em geral, os tipos de estudos realizados acerca do
Espiritismo para nos situarmos com nosso projeto. Num primeiro grupo podemos encontrar
os trabalhos que explicam as modelaes do Espiritismo atravs da influncia de
elementos externos, seja de modo funcionalista, seja de um modo culturalista, com
referncia a uma identidade cultural brasileira. Outro grupo de estudos foca a interao
mais ou menos imprevisvel de diversos agentes e instituies sociais na definio dos
rumos do movimento esprita, visualizando tambm a marca que este imprime na sociedade
em geral e em outros grupos em particular.
6 Houve a tentativa, em escala muito reduzida, de divulgar um Espiritismo crtico no mbito universitrio, o que se concretizou com a revista Presena, publicada pelo MUE de Campinas de 1969 a 1973, circulando na Universidade Catlica de Campinas e na Universidade Estadual de Campinas.
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No primeiro grupo podemos relacionar a anlise funcionalista de Cndido Procpio
Camargo em Kardecismo e umbanda (1961) e Catlicos, espritas e protestantes (1973), os
trabalhos culturalistas de Marion Aubre e Franois Laplantine, com a ideia de um
espiritismo brasileira, conformado por uma cultura da mediao (AUBRE e
LAPLANTINE, 1990, p. 185), de Donald Warren Jr., que remete para uma configurao
mental brasileira tanto o sucesso da penetrao do Espiritismo no Brasil, quanto sua
inflexo em um sentido religioso (GIUMBELLI, 1997, p. 27) e Sylvia F. Damazio
afirmando que o principal fator da expanso do Espiritismo, em suas vrias vertentes, foi a
prtica da medicina mgica arraigada na cultura brasileira (DAMAZIO, 1994, p. 153).
Um trabalho importante por servir como um contraponto s anlises que explicam o
perfil do Espiritismo por influncias externas o de Maria Laura Viveiros de Castro
Cavalcanti. Em O mundo invisvel: cosmologia, sistema ritual e noo de pessoa no
Espiritismo, Cavalcanti enfatiza o fato de que religio no apenas expressa ou traduz
outras realidades, como tambm uma matriz de produo de valores, de maneiras de
pensar e se relacionar com a realidade social mais abrangente (CAVALCANTI, 1983, p.
10). Podemos destacar tambm o antroplogo David Hess, que, no entanto, mesmo
articulando diversos domnios poltica, religio, cincia, etc. no que chama de arena
ideolgica (HESS, 1991, p. 1-9), explica a atuao dos espritas pela marca, em ltima
instncia, da cultura da mediao, entendida como um trao da cultura brasileira. Com
metodologia diversa, inspirando-se em Marshall Sahlins e Clifford Geertz, e centrando sua
anlise em personagens paradigmticos e definidores de determinadas conjunturas do
movimento esprita (STOLL, 2003, p. 12), Sandra Jacqueline Stoll pinta as cores de um
Espiritismo Brasileira (STOLL, 2003).
J Eliane Moura Silva aborda o Espiritismo em sua anlise comparada de diversas
religies no que respeita s suas formulaes do fenmeno da morte e do ps-morte,
procurando permanncias universalizadas e especificidades (SILVA, 1993).
Nos estudos mais recentes sobre o Espiritismo podemos enfim perceber uma
preocupao geral em explic-lo de modo relacional, isto , na interao entre agentes
sociais diversos - com suas prticas e representaes - no interior do movimento esprita e
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desse com outros grupos e instituies (psiquiatras, clrigos catlicos, juzes, Medicina,
Cincia, Igreja etc.). Vejamos alguns desses estudos.
Marcelo Camura em Fora da Caridade no h Religio! Breve Histria da
Competio Religiosa entre Catolicismo e Espiritismo Kardecista e de suas Obras Sociais
na Cidade de Juiz de Fora: 1900-1960 (CAMURA, 2001), Flamarion Laba da Costa, em
Demnios e anjos: o embate entre espritas e catlicos na Repblica Brasileira at a
dcada de 60 do sculo XX (COSTA, 2001) e Artur Cesar Isaia em Catolicismo e
religies medinicas no Rio Grande do Sul (ISAIA, 2002) mostraram as lutas prticas e
simblicas entre espritas e catlicos no campo religioso, constitutivas de suas respectivas
identidades. Isaia vem trabalhando frequentemente com a temtica do Espiritismo,
mostrando sua proximidade com a modernidade e a repblica (ISAIA, 2005) e os embates
no campo da medicina (ISAIA, 2006, 2007, 2008a, 2008b e 2008c).
O relacionamento entre espritas e mdicos psiquiatras o tema da dissertao de
Anglica Boff Espiritismo, alienismo e medicina: cincia ou f? Os saberes publicados na
imprensa gacha da dcada de 1920 (BOFF, 2001), da monografia de Graziele Schweig
Espiritismo e Medicina Psiquitrica: estudo de caso no Hospital Esprita de Porto Alegre
(SCHWEIG, 2006), dos artigos de Roberta Scoton Idias psiquitricas sobre as religies
medinicas em Juiz de Fora MG (1890-1940) (SCOTON, 2005) e A loucura esprita
em Juiz de Fora MG (SCOTON, 2004) e o de Giumbelli Heresia, doena, crime ou
religio: o Espiritismo no discurso de mdicos e cientistas sociais (GIUMBELLI, 1997b).
Exemplo mais recente desse tipo de abordagem a tese de doutorado Uma fbrica de
loucos: Psiquiatria X Espiritismo no Brasil (1900-1950) (ALMEIDA, 2007) de Anglica
Aparecida Silva de Almeida que analisa os embates entre a Psiquiatria e o Espiritismo entre
1900 e 1950 em torno da mediunidade e da loucura, atravs de suas representaes e
instituies no campo cientfico, delineando assim suas respectivas posies.
Com ateno especfica relao entre Espiritismo e Cincia, temos Homeless
spirits: modern spiritualism, psychical research and the anthropology of religion in late 19th
and early 20th centuries de Joo Vasconcelos (VASCONCELOS, 2003), Aspetti della
ricerca scientifica sullo spiritismo in Italia (1870-1915) de Fabrizio Pesoli (PESOLI,
1999), The other world: spiritualism and psychical reserach in England, 1850-1914 de
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Janet Oppenheim (OPPENHEIM, 1985), O espiritismo e as cincias e Spirits and
scientists: ideology, spiritism and brazilian culture de David Hess (HESS, 1987 e 1991) e,
tangencialmente, Estudando o invisvel: William Crookes e a nova fora de Juliana
Mesquita Ferreira (FERREIRA, 2004).
Cabe destaque ainda aos estudos antropolgicos de Bernardo Lewgoy, que
abrangem desde a cultura escrita e oral dos espritas (LEWGOY, 2000), at interpretaes
sobre o relacionamento do Espiritismo com a Igreja (LEWGOY, 2006a), a Cincia
(LEWGOY, 2006b), a Medicina e o Estado (LEWGOY, 2004), ora numa poltica de
legitimao demarcacionista, distinguindo, por exemplo, a teraputica esprita da
teraputica mdica oficial, ora em operaes sincrticas com os valores do Estado
nacionalista e autoritrio (Era Vargas) ou com a caridade catlica.
Alm do estudo de Artur Isaia que trabalha a relao do Espiritismo com a
modernidade e a repblica (ISAIA, 2005) e da pesquisa de Bernardo Lewgoy que levanta
questes importantes sobre a relao dos espritas com o Estado (LEWGOY, 2004), temos
apenas mais alguns poucos trabalhos sobre Espiritismo que abordam a poltica Na
abordagem de Emerson Giumbelli em O cuidado dos mortos: uma histria da condenao
e legitimao do espiritismo (GIUMBELLI, 1997a), as relaes dos espritas com a justia
so a via de interao com o Estado, mas no se chega a discutir projetos polticos e sociais
dos espritas para a sociedade. Uma exceo relevante com relao ao enfoque poltico o
livro de Fbio Luiz da Silva, Espiritismo: histria e poder (1938-1949) (SILVA, 2005).
Trabalhando com a noo de economia das trocas simblicas (Bourdieu) e com o
processo de definio dos estabelecidos e dos outsiders(Elias), analisa os usos possveis
do discurso esprita da histria como parte de uma estratgia de legitimao do
Espiritismo frente aos campos religioso, cientfico e estatal, e como um modo da
Federao Esprita Brasileira marcar fronteiras entre os de dentro e os de fora, ou seja,
aqueles que se submetem autoridade da FEB e aqueles que a questionam; entre o
verdadeiro e o falso Espiritismo (SILVA, 2005, p. 8). Essa problemtica permear a
presente dissertao, levando-se em considerao o fato de que os conflitos internos do
movimento esprita entrelaam-se com os conflitos externos. Um trabalho que parece
interessante, do qual tomamos conhecimento apenas muito recentemente intitula-se
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Espiritismo Kardecista brasileiro e cultura poltica: histria e novas trajetrias
(FERREIRA, 2008). Tambm tardiamente, viemos saber de um trabalho de concluso de
curso realizado na PUC-Campinas por Marcius Igor Bigheto tratando justamente do MUE,
realizado em 2006 (no consta um ttulo especfico no trabalho). Com relao s ideias
sociais espritas, registramos a dissertao de mestrado em histria de Cleusa Beraldi
Colombo intitulada Histria das Idias Sociais Espritas Um sculo de Espiritismo:
Frana-Brasil, 1857-1957, publicada em livro com o ttulo Idias Sociais Espritas
(COLOMBO, 1998). Implcita e explicitamente, dialogamos com as reflexes dessa autora.
Ainda com ateno s ideias sociais espritas, destacamos o artigo Espiritismo,
Conservadorismo e Utopia de Artur Cesar Isaia (ISAIA, 2004).
Finalmente, cabe mencionar nossos trabalhos j citados Espiritismo e poltica: o
compasso dos espritas com a conjuntura dos anos 1930-1940 (MIGUEL, 2009b), O
Espiritismo frente Igreja Catlica em disputa por espao na Era Vargas (MIGUEL,
2010) e A questo poltica no Espiritismo: o sagrado e o profano em tenso (MIGUEL,
2011b), nos quais tratamos das representaes produzidas pelos espritas sobre os temas da
poltica e da questo social conjugadas aos conflitos e alianas com Estado.
Contudo, parece-nos evidente que a relao do Espiritismo com o Estado e a
discusso poltica tem sido relegada a plano secundrio (principalmente no que se refere
aos valores polticos dos espritas), em geral apenas perpassando alguns trabalhos. Assim,
esta pesquisa sobre o MUE se prope a examinar um problema pouco estudado na
bibliografia sobre Espiritismo, encarando como relevantes os posicionamentos polticos, a
defesa, oposio ou indiferena s doutrinas sociais que marcam as diferentes coloraes
ideolgicas da cultura esprita.
No caso do nosso estudo, procuramos identificar o impacto gerado pela cultura
universitria dos anos 1960 e pelo contexto poltico, social e cultural mais amplo (no Brasil
e no mundo) nos jovens universitrios espritas que construram o MUE. Este impacto foi
(como no poderia deixar de ser) mediado pelo campo social7 especfico do movimento
esprita brasileiro. Ao analisarmos as culturas polticas dspares que passam a ser 7 Tomamos de Pierre Bourdieu a definio de campo social, como um espao relativamente autnomo, (...) microcosmo dotado de (...) leis prprias, um campo de foras e um campo de lutas para conservar ou transformar esse campo de foras (BOURDIEU, 2004, p. 20, 22 e 23).
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tensionadas no interior do movimento esprita a partir da atuao do MUE, perceberemos
que o prprio campo social objeto de luta tanto em sua representao quanto em sua
realidade (BOURDIEU, 2004, p. 29). Isto , partindo-se de representaes sociais distintas
que diagnosticavam diversamente a situao presente do Espiritismo no Brasil, o que estava
em jogo era a prpria definio do que deve ser o movimento esprita e o Espiritismo. O
singular na nossa pesquisa est justamente em prestar especial ateno s representaes
sociais sobre poltica que concorreram no interior do campo religioso do movimento
esprita brasileiro, com implicaes prticas explosivas.
Objetivos Explicar, articulando questes externas e internas ao movimento esprita, as
causas do surgimento e do trmino do MUE;
Caracterizar o MUE levando em conta as possveis diferenas existentes entre seus participantes;
Mapear a diversidade de posies e aes no interior do movimento esprita brasileiro acerca do MUE;
Comparar o MUE com outros movimentos que envolveram religiosos com a questo poltica no mesmo perodo (a Juventude Universitria Catlica, por
exemplo) e
Resgatar o impacto social, cultural e poltico do MUE no movimento esprita.
Material e mtodos Para apreendermos tanto as intenes do MUE e as influncias que sofreu, quanto a
recepo de suas ideias pelos espritas, precisamos examinar as representaes em jogo na
documentao escrita de parte a parte e nas falas dos agentes histricos a serem
entrevistados. Portanto, se faz necessrio o uso de diversas fontes para cobrirmos todos os
lados mais significativos da histria que pretendemos contar. Analogamente
reconstituio verossmil da cena do crime, poderemos com isso, moda de detetives,
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reconstituir de um modo aproximado a dinmica relacional mltipla do processo histrico,
entendido como em parte determinado pelos sujeitos e em parte limitador de suas aes e
pensamentos8.
Tratando com diversas fontes escritas revistas, livros, correspondncias
necessrio estar atento s especificidades de cada produo, j que suas variadas formas
condicionam seus contedos (LUCA, 2005, p. 132-141). Por exemplo, enquanto A
Fagulha, revista produzida pelo MUE, dirigia-se ao pblico esprita em sua totalidade, uma
correspondncia escrita por um membro do MUE estaria voltada especificamente a um
determinado opositor do grupo. Assim, no primeiro caso a linguagem e os argumentos
devem revestir-se de um carter mais impessoal, persuadindo um leitor sem face a
concordar com as teses do movimento. J no segundo o leitor tem rosto e voz bem
definidos, marcando mais fortemente o carter dialgico da produo escrita, com toda a
carga emotiva que isso implica para os missivistas envolvidos. Por fim, um livro constitui
de forma completa o estatuto de obra, com a marca do autor elevada a primeiro plano e
uma estruturao mais rigorosa das ideias, visando um sucesso de longa durabilidade e
munido de um poder de penetrao mais contundente pela respeitabilidade que uma obra
bem acabada suporta.
J ao trabalhar com fontes orais, devemos levar em considerao uma srie de
aprendizados acumulados na tradio da histria oral. No que se refere pertinncia
especfica da histria oral, destaca-se a vantagem de podermos perscrutar a experincia
pessoal de cada agente social a partir da sua prpria subjetividade, o que incide diretamente
nas nossas interpretaes acerca das causas de tal ou qual atitude dos sujeitos histricos.
Contando com a verso do entrevistado sobre o que ele vivenciou, arrecadamos precioso
material para anlise do fenmeno investigado, o que contribui para diminuir os riscos de
interpretarmos mal as motivaes dos atores histricos.
Porm, alguns cuidados especiais ao se tratar com fontes orais precisam ser
estabelecidos, em razo de basicamente duas peculiaridades enquanto fonte: a fonte oral
8 Christopher Lloyd, em As estruturas da histria, procura formular uma combinao realista entre
o poder dos sujeitos e o das estruturas, a qual eu adoto: as pessoas que so teorizadas como agentes da histria, mas sempre dentro de determinadas situaes sociais e culturais capacitadoras e incapacitadoras (LLOYD, 1995, p. 222).
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construda a dois (pesquisador/entrevistador e entrevistado) e feita do presente para o
passado.
As entrevistas nessa pesquisa sero temticas, procurando saber o que o
entrevistado tem a dizer com respeito ao seu envolvimento com o MUE nosso objeto de
estudo. De todo modo, o eixo das entrevistas no deixa de ser biogrfico, no sentido de que
sempre partem da vida narrada do entrevistado sob a sua prpria perspectiva, versando
sobre a sua experincia e a sua viso acerca dos temas desenvolvidos na pesquisa.
O roteiro geral das entrevistas foi definido com base no levantamento prvio dos
nomes dos possveis entrevistados elencados pela relevncia diagnosticada a partir da
leitura das outras fontes e indicaes fornecidas por contatos preliminares com aqueles que
participaram do MUE. claro que ao longo da pesquisa vrias questes novas foram
surgindo bem como novos entrevistados.
Resumo dos captulos Esta dissertao est dividida fundamentalmente em trs captulos, dando conta do
surgimento, da ao e da reao ao Movimento Universitrio Esprita. O primeiro captulo
explora o contexto de emergncia do MUE, tanto interno ao movimento esprita quanto
externo. Veremos como os espritas tm pensado (e se posicionado) a respeito da poltica e
das questes sociais, identificando tambm uma tradio (minoritria) intelectual esprita
de vis socialista. Por outro lado, examinaremos o contexto poltico, social e cultural mais
amplo no qual emerge o MUE, fazendo um paralelo com a Juventude Universitria Catlica
(JUC). Assim, esperamos situar o leitor quanto s condies de possibilidade de existncia
do MUE.
J no segundo captulo cuidamos em analisar exaustivamente o pensamento do
MUE, utilizando-nos principalmente do seu mais importante veculo de manifestao: a
revista A Fagulha. Em torno de dois grandes eixos articuladores progressismo e poltica
pretendemos dar conta do conjunto de elementos estruturantes das propostas dos
universitrios espritas, dentre as quais destacamos a do criticismo (ou esprito
universitrio) e a do socialismo cristo. Sublinhamos que a ao do MUE resumiu-se
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basicamente disseminao de ideias, o que justifica a especial ateno dada ao seu
pensamento.
Finalmente, no terceiro captulo voltamo-nos ao estudo da reao ao MUE. Esta
reao foi fortemente negativa por parte da imensa maioria dos dirigentes espritas e
consideravelmente simptica por parte da juventude esprita. A dinmica dos confrontos,
encontros e desencontros que agitaram o movimento esprita brasileiro atingido pelo MUE
ser explicada com base numa reflexo em torno de trs elementos: o contexto poltico
mais amplo, as ideias correntes de religio e poltica e a seletividade ideolgica.
Na concluso, alm de fazermos o clssico balano do conjunto da dissertao,
pretendemos aproveitar o nosso estudo sobre o MUE para pensar a respeito do problema da
poltica no universo religioso do Espiritismo.
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Captulo 1 Surgimento do Movimento Universitrio Esprita
Recordemos, a propsito, a tentativa farisaica no sentido de envolver Jesus politicamente nos acontecimentos da sua poca. Quiseram mesmo faz-lo lder do movimento de libertao material dos judeus. O Mestre no apenas se furtou manobra, mas situou clara e explicitamente a sua presena entre ns, alheando-se poltica de Csar e to-somente preparando os homens para a redeno espiritual. A aluso ao seu Reino, que no era nem deste mundo, desestimularia qualquer jogada poltica, de quem quer que fosse. (Reformador, jul, 1970, p. 163)
A condenao da propriedade privada, que gera os conflitos do egosmo, em Cristo mais veemente e profunda do que em Marx. (PIRES, 1946, p. 29)
1.1 - Espiritismo encarnado: uma breve e necessria histria poltica do
movimento esprita brasileiro at 1960 Para entendermos o que era o movimento esprita poca do surgimento do
Movimento Universitrio Esprita (MUE) devemos desenhar um panorama histrico que
ressalte os seus traos mais marcantes produzidos ao longo de processos, rupturas,
influncias, confluncias, embates internos e externos, que se deram desde os seus
primrdios no sculo XIX at a dcada de 1960. O enfoque deve ser mantido sobre as
questes poltica e religio, porm sem perder de vista a totalidade de fatores significativos
nos diversos campos de relaes em que esteve inserido o Espiritismo ao longo de sua
histria no Brasil.
No sculo XIX, notadamente a partir de 1848, com o caso das irms Fox, um amplo
movimento emerge como produto e reao ao cientificismo da poca trata-se do moderno
espiritualismo (SILVA, 1993). O espetculo das mesas girantes toma conta dos sales de
Paris9. Aparecem diversos mdiuns que alegavam ter a capacidade de intermediar a
manifestao de Espritos desencarnados. Inmeras revistas especializadas proliferam a par
de um crescente interesse pelos proclamados fenmenos espirituais. Comisses de
9 A propsito, Karl Marx, em tom irnico, deixa entrever a popularidade deste espetculo ao dissertar sobre o fetichismo da mercadoria, exemplificando com a descrio do aparecimento da mesa como mercadoria, forma sob a qual se transforma numa coisa fisicamente metafsica. Alm de se pr com os ps no cho, ela se pe sobre a cabea perante todas as outras mercadorias e desenvolve de sua cabea de madeira cismas muito mais estranhas do que se ela comeasse a danar por sua prpria iniciativa (MARX, 1988, p. 70).
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investigao cientfica so formadas para avaliar a sua suposta genuinidade. Os resultados
so divergentes e envoltos em cerradas polmicas: alguns apontavam fraudes, outros
entendiam tratar-se de fenmenos explicveis por poderes mentais desconhecidos, outros
corroboravam a tese espiritualista e outros ainda permaneceram em dvida.
em meio a esse contexto que a doutrina esprita surge na Frana em 1857 com o
trabalho de organizao e teorizao efetuado pelo pedagogo Hippolyte Lon Denizard
Rival o Allan Kardec sobre as mensagens atribudas aos Espritos desencarnados que se
comunicariam com o mundo dos encarnados atravs de diversos mdiuns, residentes em
diferentes localidades. Desse trabalho nasce Le Livre des Esprits. A obra de imediato faz
um grande sucesso, sendo reeditada quinze vezes em apenas doze anos de existncia
(AUBRE e LAPLANTINE, 1990, p. 30).
Atravs de imigrantes franceses jornalistas, comerciantes, professores o
Espiritismo chega ao Brasil10. Rapidamente se formam pequenos crculos de estudos
espritas entre as elites no Rio de Janeiro e em Salvador.
Apesar do mpeto inicial de estudo da Doutrina Esprita ter se dado no Rio de
Janeiro, foi na Bahia que o Espiritismo ganhou destaque e se desenvolveu com mais solidez
na dcada de 1860, despertando a Igreja Catlica para o combate ante a novidade que
comeava a conquistar adeptos de relevo social. Foi com o professor e jornalista Lus
Olmpio Teles de Menezes que se formou o Grupo Familiar do Espiritismo em 1865 na
Bahia (DAMAZIO, 1994, p. 66). Este destacado divulgador do Espiritismo travou um
aceso debate com os representantes do catolicismo, permanecendo, entretanto, numa
postura de submisso Igreja religio oficial do Estado Monrquico.
No Rio de Janeiro, o crescimento vertiginoso dos adeptos do Espiritismo, facilitado
pela tolerncia religiosa dos liberais11, levou criao da Federao Esprita Brasileira
10 Conforme Sylvia Damazio, dentre os introdutores do Espiritismo no Brasil destacaram-se Casimir Lieutaud, Adolphe Hubert e Madame Collard. Casimir Lieutaud, era diretor do Colgio Francs, estabelecimento de ensino dos mais conceituados na Corte [...] publicou o primeiro livro de divulgao da nova doutrina, impresso no Rio de Janeiro, em 1960: Les Temps sont Arrivs. Adolphe Hubert era editor do Courrier du Brsil, jornal de oposio ao governo de Napoleo III e de tendncia anticlerical, cuja redao era um local de encontro da colnia francesa e de discusses sobre os mais variados temas. Madame Perret Collard revelou-se uma mdium psicografa, figura indispensvel s sesses espritas (DAMAZIO, 1994, p. 65).
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(FEB) (GIUMBELLI, 1997, p. 63-64), que viria a ser, poucos anos aps a sua fundao,
com a marcante liderana de Bezerra de Menezes12, um rgo centralizador voltado para
atividade unificacionista do movimento esprita em todo o territrio brasileiro,
autorreferenciado como instituio modelar (GIUMBELLI, 1997, p. 119-129).
No sculo XIX, o Espiritismo no Brasil foi marcado politicamente pela presena do
abolicionismo e do liberalismo, batendo-se principalmente pela liberdade de religio
(DAMAZIO, 1994, p. 112). Muitos espritas tambm eram republicanos engajados, como
Antnio da Silva Neto, Francisco de Bittencourt Sampaio e Otaviano Hudson, sendo que
outros, livre-pensadores que deram espao ao Espiritismo defendendo a separao entre a
Igreja e o Estado e a liberdade de conscincia, tambm assinaram o Manifesto Republicano,
a exemplo de Saldanha Marinho e Quintino Bocaiva, futuramente tambm esprita
(DAMAZIO, 1994, p. 69-72).
Era comum, na poca, o trnsito de alguns indivduos por diversas filosofias e
movimentos sociais, comumente tendo como centro aglutinador as lojas manicas, que
permitiam em seu interior a difuso de tendncias laicistas europias, de positivismo, de
formas alternativas de expresso religiosa tais como o espiritualismo em geral e do
espiritismo em particular, bem como do protestantismo. Era o direito voz e onde se
abrigavam minorias e grupos intelectuais (SILVA, 1997, p. 7). Em razo desse ecletismo,
podia-se ser, sem dificuldades, ao mesmo tempo, maom e esprita, como Carlos Pareta
11 A tolerncia religiosa dos liberais foi fundamental para a divulgao do Espiritismo, principalmente por parte dos lderes republicanos Saldanha Marinho e Quintino Bocaiva, pois, atravs deles, as colunas dos jornais Dirio do Rio de Janeiro, A Repblica e O Paiz ficaram abertas para rebater os ataques do Catolicismo ultramontano, quando da grande querela que se estabeleceu entre a ortodoxia catlica e os defensores da nova doutrina (DAMAZIO, 1994, p. 72). 12 At hoje, ele lembrado, entre os espritas, como o Allan Kardec brasileiro e como uma das figuras a quem o espiritismo mais deve o que atualmente possui. Personagem histrico na lembrana de todos, Bezerra de Menezes tambm presena, visto que continua, enquanto espiritismo e guia, a dar conselhos e orientaes atravs dos mdiuns de hoje. Um dado interessante que essa imagem comeou a ser construda no momento imediatamente posterior a sua morte. Bezerra de Menezes foi saudado pelo Reformador como o mais eminente dos chefes e o mais perfeito dos discpulos do espiritismo. Alm disso, sua passagem para o plano espiritual foi narrada como uma verdadeira ascenso, presenciada por toda a elite celeste (o que inclua os apstolos, Maria Madalena e vrios anjos). De l, Bezerra de Menezes preocupou-se logo em animar seus colegas da FEB: No quebrem essa cadeia sagrada. Glorificado pelos vivos e acolhido pelos mortos mais ilustres, Bezerra de Menezes torna-se, desde ento, um guia para a Federao, sendo constantemente invocado para referendar os caminhos a tomar (GIUMBELLI, 1997, p. 121).
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(MIGUEL, 2009a, p. 161), ou socialista, esprita e positivista, como Antnio Guedes
Coutinho (SCHMIDT, 2000).
Importa enfatizar, no entanto, que quando a monarquia caiu, os espritas j estavam
claramente organizados como um corpo em oposio Igreja Catlica, em franca disputa
num campo religioso de valores muitas vezes compartilhados. a poca da Igreja
romanizada, do chamado ultramontanismo13. Assim, os valores da religiosidade interior
(em oposio a manifestaes exteriores ou idolatria) e da caridade podiam ser comuns a
espritas e a lideranas catlicas (MIGUEL, 2009a, p. 166 e 172-175), levando inclusive a
uma prtica concorrencial no campo da ao social, em campanhas de beneficncia, que se
estendeu com fora por toda a primeira metade do sculo XX (CAMURA, 2001). No
obstante, havia claro diferenas. Dentre elas, talvez a mais importante, era a relao com
a modernidade, em seus vrios aspectos. Note-se a fora de convencimento que a
modernidade presente na Doutrina Esprita exerce sobre determinados grupos sociais que
tinham o desejo de ser moderno (DAMAZIO, 1994, p. 58). De acordo com Lewgoy,
historicamente, o espiritismo uma das primeiras alternativas religiosas especificamente modernas a canalizar a insatisfao de setores emergentes e organizados da sociedade brasileira militares, livre-pensadores, funcionrios pblicos que libertam-se da tutela eclesistica, sem querer engrossar os quadros do atesmo, adotando a linguagem da cincia, da razo e do progresso; bandeiras identificadas com a modernidade. (LEWGOY, 2005, p. 2)
E, conforme j pudemos notar,
na modernidade de finais do sculo XIX vivia-se uma cultura fortemente cientificista, na qual vrias correntes tericas convergiam na valorao da cincia e da tcnica como os melhores instrumentos para a resoluo de todas as principais dificuldades da humanidade (SCHMIDT, 2001, p. 114), valendo-se da noo central do progresso enquanto fora real da natureza, tornando a evoluo um caminho natural rumo a um determinado fim, em geral tido como o da realizao da perfectibilidade. nesse contexto intelectual que devemos situar a forte nfase na
13 A reforma romanizadora, tambm conhecida como ultramontanismo, apareceu como uma reao ao mundo moderno, capaz de conden-lo, ao mesmo tempo que reforava a idia da supremacia das verdades ensinadas pela Igreja sobre os contingentes resultados do conhecimento e da experincia humana. O ultramontanismo correspondia a uma centralizao sob a gide de Roma, culminando com a proclamao do dogma da infalibilidade papal. (...) Com a perda do poder temporal do passado, procura-se firmar a total ascendncia espiritual e moral da Igreja frente ao mundo. O ultramontanismo procurava, portanto, a dominao da autoridade espiritual sobre a temporal (ISAIA, 1998, p. 21).
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racionalidade e na conscincia por parte dos espritas, munidos de um ideal progressista que bebia nas fontes culturais do cientificismo, do liberalismo e do jacobinismo, para derrubar preconceitos e dogmas retrgrados da tradio catlica. (MIGUEL, 2009a, p. 169)
A ideia de progresso, elemento estruturante da modernidade, de fato o eixo da
filosofia evolucionista e reencarnacionista esprita, formando uma cosmologia bastante
dspar da sua concorrente catlica, centrada na ressurreio e no juzo final.
Entretanto, h que se relativizar o posicionamento teolgico da Igreja Catlica
frente modernidade observando a sua prtica no interior do Estado laico (ou
presumidamente laico) brasileiro. De acordo com Emanuela Ribeiro
(...) embora a doutrina teolgica catlica tenha se mantido hostil Modernidade, podemos identificar situaes em que algumas das razes, doutrinas e tcnicas da Modernidade serviram Igreja, tendo sido por ela incorporadas, e, at mesmo usadas para sua prpria legitimao. Neste sentido, acreditamos que a principal convergncia entre ambas encontra-se no disciplinamento da sociedade civil. (RIBEIRO, 2003, p. 9-10)
Portanto, a fora da modernidade se d de modo transversal na sociedade brasileira,
incluindo diversos segmentos, inclusive, no campo religioso, os espritas e os catlicos.
sob esse influxo tambm que, no final do sculo XIX, o Espiritismo ser criminalizado pelo
Cdigo Penal de 1890, que condenava as prticas de cura consideradas como explorao da
credulidade pblica. Tal condenao fazia parte de uma pauta de luta da Medicina, que
buscava assim obter o monoplio de cura da populao, e um esforo de higienizao e
disciplinarizao da populao por parte do Estado. O principal instrumento de defesa dos
espritas, nesse contexto, ser a prtica da caridade14. Se os espritas curavam somente por
caridade, ento a sua prtica no poderia ser caracterizada como explorao j que os
curadores no obtinham com isso qualquer recompensa pecuniria. Apesar de muitos
juristas no concordarem com esse argumento, todos os juzes que julgaram processos que
enquadravam os espritas no artigo 157 do Cdigo Penal os inocentaram.
importante ressaltarmos o fato de que os espritas defenderam-se atravs das vias
polticas. Espritas proeminentes formaram uma Comisso Permanente para fazer frente ao
14 A caridade a chave da defesa legal dos espritas. Se, por um lado, o mdium que pratica a caridade no explora clientes, e sim assiste aos necessitados, por outro a caridade funciona como um smbolo ou marca de uma prtica genuinamente religiosa, e como tal, como um culto, estaria assegurada pela Constituio que garante a liberdade de culto (GIUMBELLI, 1997, p. 180).
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Cdigo, defendendo o direito liberdade religiosa (DAMAZIO, 1994, p. 116 e 121).
Apesar de tentar, atravs de representaes, a reviso dos artigos que restringiam a
liberdade religiosa, por inconstitucionalidade, no obtiveram xito.
Nesse momento de luta com a Lei, com a Medicina e com a Igreja, emergiu,
portanto, no meio esprita a nfase na caridade, na diferenciao dos cultos afro-brasileiros
e na cientificidade e superioridade da sua Doutrina (esposada por pessoas de alta cultura na
Europa). a que a FEB, fazendo frente ao Cdigo Penal, muda o seu carter inicial e
assume a liderana do ainda incipiente movimento esprita, dando apoio e atuando como
representante dos grupos espritas (GIUMBELLI, 1997, p. 179-180) alm de enfatizar o seu
carter religioso (GIUMBELLI, 1997, p. 116)
Com relao imprensa, se no sculo XIX ela estava muito mais inclinada a
condenar o Espiritismo do que a aplaudi-lo, j entre os anos 1910 e 1920 se verifica uma
grande onda de aproximao entre ambos (GIUMBELLI, 1997, p. 237). Em um estudo de
caso realizado com um jornal popular do Rio Grande do Sul, A Gazetinha, entre os anos de
1896 e 1898, pde-se constatar a rapidez com que se deu essa virada, provavelmente pelas
seguintes razes: o razovel prestgio social dos defensores do Espiritismo, membros das
elites mdias urbanas; a cobertura dada pela Maonaria e a intensa produo de peridicos
espritas (MIGUEL, 2009a, p. 160-164). No caso do Rio de Janeiro, vale apontar que a
FEB, mesmo em meio a suspeitas de setores da polcia e dos inspetores de sade,
considerada consensualmente como verdadeiro Espiritismo a partir da segunda metade da
dcada de 1910 (GIUMBELLI, 1997, p. 240).
Ao longo da Repblica Velha, o carter laico e anticlerical do Espiritismo vai se
metamorfoseando numa espcie de anticatolicismo romanizado, isto , os espritas do
Brasil se apropriam e resignificam valores promovidos pela reforma de cpula do
catolicismo, se configurando num movimento de recuperao do cristianismo primitivo que
lana acusaes generalizantes para o conjunto da Igreja Catlica (LEWGOY, 2004,
p.109). O carter predominante do Espiritismo entre os brasileiros, desde o incio do sculo
XX, foi, portanto, o de um movimento tipicamente religioso, ainda que pautado por um
mpeto reformista, defendendo um modelo de religiosidade interior (sem os formalismos e
ritualismos das missas e liturgias catlicas) e de prtica da caridade como nico meio de
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salvao (em oposio ao dogma particularista que afirma que fora da Igreja no h
salvao). Como, entretanto, na prtica, uma srie de caractersticas das instituies
religiosas se faro presentes no movimento esprita, no fora de propsito enfatizar o
carter religioso do Espiritismo que se realizou no Brasil. A constatao desse fato muito
importante para compreendermos o contexto no qual o Movimento Universitrio Esprita
surgir com um vis crtico ao igrejismo, ou excesso de dogmatismo religioso.
Tambm importante observarmos a caracterizao scio-profissional dos espritas
para melhor entendermos as posturas adotadas e o ethos que conduziram o movimento
esprita a determinadas prticas e representaes perante o conjunto da sociedade e em seus
conflitos internos. Na Repblica Velha, os condutores do Espiritismo eram
majoritariamente militares, funcionrios pblicos, mdicos e advogados (LEWGOY, 2004,
p. 110). Com esse perfil social, talvez se possa explicar a conformao que levou o
movimento esprita a estabelecer uma relao assistencial com os pobres, cvica com a
Nao, afrancesada com a cultura ocidental e competitiva com a Igreja Catlica
(LEWGOY, 2004, p. 109-110).
Na chamada Era Vargas, com o fim da Repblica Velha, os espritas flertaram com
o nacionalismo15, o autoritarismo, o militarismo e a ideologia do estado organicista
corporativista (LEWGOY, 2004, p. 68-69). Conforme j examinamos em estudo anterior,
amparando-nos nos estudos de Fbio Luiz da Silva (SILVA, 2005) e de Bernardo Lewgoy
(LEWGOY, 2004),
Duas obras de grande relevo na literatura esprita conjugam-se para formar os cdigos que do forma ao nacionalismo e ao autoritarismo elitista que impregnaram boa parte do imaginrio esprita da poca: Brasil Corao do Mundo, Ptria do Evangelho e A Grande Sntese. Na
15 Fbio Luiz da Silva, em Espiritismo: histria e poder (1938-1949), investiga em profundidade a obra psicografada por Chico Xavier, Brasil Corao do Mundo, Ptria do Evangelho, central para a construo do nacionalismo esprita brasileiro. Silva observa que a histria do Brasil narrada nessa obra uma criao divina, uma histria sagrada, trabalho de seres sobrenaturais (SILVA, 2005, p. 38). Tal observao de grande importncia para entendermos o relacionamento dos espritas com a poltica. O autor, referindo-se obra psicografada por Chico Xavier, explica que o Brasil, sendo solo santificado, local do Paraso terrestre, no poderia ficar sujeito s imposies de ordem poltica, pois o seu destino j estaria traado e garantido por Jesus e pelo prprio Deus descrito como Supremo Senhor, bem ao gosto medieval de relaes de vassalagem (SILVA, 2005, p. 52-53). Para Fbio Luiz da Silva, h um certo desprezo pela poltica na obra de Chico Xavier, o que corresponde ao discurso da neutralidade poltica que veremos adiante (SILVA, 2005, p. 53).
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primeira obra, psicografada por Chico Xavier e atribuda ao esprito Humberto de Campos, fixa-se o sentimento nacional no movimento esprita, de tal forma que este passa a ver o Brasil como o grande arauto da nova era pela qual a humanidade encontraria o reflorescimento do evangelho. (...) J em A Grande Sntese, fica evidente a afinidade eletiva entre as concepes organicistas do Estado corporativista, que sustentavam ideologicamente o Estado Novo varguista e a defesa de um Estado orgnico, explicitamente um Estado corporativista colaboracionista, defendido por Pietro Ubaldi (UBALDI, 1937, p. 394). (MIGUEL, 2009b, p. 40-41)
Foi, portanto, uma poca de profundas transformaes no modo de ser esprita.
Importa destacarmos a questo poltica no movimento esprita desta poca, j que se
contraditava um discurso de iseno poltica com diversos posicionamentos polticos por
parte dos espritas expostos nas pginas do peridico oficial da FEB, o Reformador. Para
no nos alongarmos, em sntese pode-se dizer que uma grande parte do movimento esprita
brasileiro encaixou-se, em boa medida, ordem vigente no Brasil16,
pendulando a nfase em determinadas interpretaes doutrinrias de acordo com o peso da conjuntura (colocada principalmente pelo Estado, pela disputa com a Igreja Catlica e pelo contexto internacional): ora desvalorizando, ora valorizando a democracia e adaptando um discurso patritico ao universalismo da Doutrina Esprita. A questo do sistema scio-econmico colocada pelo embate entre capitalismo e socialismo resolvida geralmente por uma moderao moralizadora do regime capitalista, com raras excees de um pendor para o socialismo cristo, de carter mais reformista e certamente no-violento. A ordem um valor bastante permanente, permeando diversos discursos, ligando-se comumente idia de harmonia que, em termos de proposta poltica, se d na defesa da harmonia entre capital e trabalho. Todo esse posicionamento
16 Mais uma vez concordamos com as concluses de Fbio Luiz da Silva: No campo do Estado, os espritas, aqui representados pela FEB, escolheram isentar-se da participao poltico-partidria por entender que os destinos do pas j estariam traados pelos espritos superiores, e a tarefa que competia aos espritas era colaborar na obra de construo do Corao do Mundo, conforme anunciado. O discurso de neutralidade poltico-partidria foi estratgia eficaz naquele momento da histria do pas, permitindo menor nmero de atritos com a mquina do Estado. Tal opo, porm, no isentou a FEB de ter e defender uma posio poltica, conforme podemos inferir do que expusemos at aqui e fica evidente neste trecho do livro Brasil, Corao do Mundo e Ptria do Evangelho: Nesta poca de confuso e amargura, quando, com as mais justas razes, se tem, por toda parte, a triste organizao do homem econmico da filosofia marxista, que vem destruir todo o patrimnio de tradies dos que lutaram e sofreram no pretrito da humanidade, as medidas de represso e de segurana devem ser tomadas a bem das coletividades e das instituies, a fim de que uma onda inconsciente de destruio e morticnio no elimine o altar das esperanas da ptria. Que o capitalismo, visando prpria tranqilidade coletiva, seja chamado pelas administraes ao debate, a incentivar com os seus largos recursos a campanha do livro, do saneamento e do trabalho, em favor da concrdia universal. (XAVIER, 1998, p. 236) (SILVA, 2005, p. 112)
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contraria obviamente a pronunciada neutralidade poltica das instituies espritas, j que vimos que essas posies eram defendidas atravs dos seus rgos de imprensa, muitas vezes por representantes das federativas, no caso examinado, a FERGS e a FEB. Dizer-se isento de posies polticas, entretanto, permitia um reforo oficializante dos discursos dos espritas capaz de estabilizar opinies de forma sacralizada sem abertura para o debate. E ainda, por outro lado, construa-se uma cobertura a qualquer eventual instabilidade poltica que pudesse causar disputas internas ao movimento esprita e intervenes externas do Estado, j que, sendo politicamente neutro, os espritas poderiam, mais facilmente, se acomodar estrategicamente a diversos regimes. (MIGUEL, 2009b, p. 68-69)
S para darmos um exemplo de posicionamento no contexto em exame, curioso
que, na mesma edio do Reformador (set, 1937, p. 355-356) em que se publicou um texto
fortemente restritivo poltica (aconselhando os espritas a no se envolverem de modo
algum na poltica, exceo do uso do direito de votar), foi publicado tambm um artigo de
Vinicius de explcito contedo poltico, intitulado Poltica internacional. O articulista
ataca o modelo protecionista e expansionista vigente nas relaes internacionais,
considerando-o fruto do egosmo. Defende o livre-cmbio como preveno para as guerras.
A soluo para os problemas econmicos, polticos e sociais nasce assim da aplicao de
um princpio moral o do amor. Este princpio, aplicado vida econmica chama-se
solidariedade, e, ordem social, chama-se fraternidade (Reformador, set, 1937, p. 358).
No perodo varguista, devemos destacar ainda que a luta pelo estado laico, contra o
domnio catlico, foi uma constante no movimento esprita. Vale citar, por exemplo, a luta
pelo ensino laico opondo-se investida catlica de promoo do ensino religioso, pelo qual
a Igreja exerceria amplamente seu poder de doutrinar dentro de todas as escolas do pas.
Essa batalha poltica foi coordenada pela Coligao Nacional Pr-Estado Leigo, criada em
17 de maio de 1931, que congregava pessoas das mais diferentes orientaes intelectuais,
na defesa da separao entre Igreja e Estado e na luta pela igualdade de credos na futura
constituio (ISAIA, 1998, p. 103). O temor que uniu espritas, maons, metodistas,
luteranos, episcopais, entre outros religiosos, era de que a oficializao do ensino
facultativo e a assistncia espiritual no obrigatria s Foras Armadas pudessem se
transformar em instrumentos de reafirmao do catolicismo, rumo a uma possvel unio
Igreja-Estado, ou assinatura de uma concordata, capaz de privilegiar a religio catlica
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(ISAIA, 1998, p. 103). Chegou a ser presidente da Coligao um dos espritas mais
destacados do movimento esprita: o Lins de Vasconcelos17, que lutara constantemente pela
laicidade do Estado (WANTUIL, 1981, p. 493). Uma pista interessante para a investigao
futura do sentido dessa luta pela laicidade do Estado encontra-se no jornal dirigido por
Vasconcelos, o Mundo Esprita, no qual se encontra em destaque a seguinte frase, no topo
do jornal: As Sociedades Espritas do Brasil so crists e apolticas e sustentam o princpio
da laicidade do Estado (Mundo Esprita, 27 de ago. 1949, p. 1). Com isso, a deduo que
podemos fazer em princpio que, na reflexo de muitos espritas, o discurso de no
interveno das instituies espritas na poltica significava no misturar religio com
Estado, garantindo sua laicidade, obviamente se tal princpio fosse estendido para as outras
religies. Evidente, entretanto, que a luta pela laicidade constitui um ato poltico.
Observemos que o fato de a Igreja Catlica ter ganhado bastante espao poltico na
Era Vargas reforou a necessidade dos espritas atentarem para o Estado no seu esforo de
legitimao social. O resultado, conforme nosso estudo, foi que os espritas
Organizaram-se para isso, reivindicando direitos legais que lhes permitissem manter suas atividades sem coibies, como os passes e os receiturios medinicos. Lutaram por um Estado laico, pelo reconhecimento censitrio, pela liberdade religiosa, utilizando-se da Coligao Pr-Estado Leigo, de recursos judiciais, de propaganda via rdio e imprensa escrita, com intensa produo editorial. A busca por espao no Estado foi facilitada para os espritas pela proeminncia social das suas lideranas, atingindo o funcionalismo pblico, a imprensa e o meio militar at altos escales. Valores convergentes tambm contriburam para aproximar o movimento esprita e o governo Vargas, como a nfase na educao e no trabalho e as ideologias do nacionalismo e do corporativismo, com aproximao nesse caso tambm com o catolicismo. (MIGUEL, 2010, p. 219-220)
17 Lins de Vasconcelos foi uma grande liderana do movimento esprita. Alm de ser engenheiro agrnomo, se tornou muito rico como empresrio e assim financiou diversas obras de caridade e instituies espritas, atuando como presidente da Federao Esprita do Paran (FEP) j aos 25 anos, frequentando a presidncia dessa instituio por seis mandatos e atuando como Secretrio Geral por cinco vezes, num perodo de dezoito anos, integrando-a a Liga Brasileira de Analfabetismo e realizando o II Congresso Esprita Paranaense. Foi diretor da Revista do Espiritualismo e do jornal Mundo Esprita, empenhou-se junto com Leopoldo Machado pela realizao do I Congresso de Mocidades Espritas do Brasil e fundou a Ao Social Esprita, no intuito de desenvolver o trabalho scio-assistencial do Espiritismo. Foi tambm membro efetivo da Assemblia Deliberativa da FEB, vice-presidente da Liga Esprita do Estado da Guanabara (sucednea da Liga Esprita do Brasil) e 1 secretrio da Sociedade de Medicina e Espiritismo do Rio de Janeiro, figurando ainda como seu presidente de honra (WANTUL, 1981, p. 488-497).
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importante falarmos tambm sobre o problema da unificao no movimento
esprita, j que esta questo remete diretamente aos seus conflitos internos, levantando
questes sobre poder, organizao hierrquica, diretrizes doutrinrias, movimentos
paralelos, entre outras. Questes caras ao quadro conflituoso no qual se moveram os
universitrios espritas que se sentiram descontentes com o panorama do movimento
esprita brasileiro em que estavam situados nos anos 1960-70.
Na dcada de 1940 o movimento esprita brasileiro passou por um processo
turbulento em torno da definio de sua organizao institucional nacional. A culminncia
desse processo foi o chamado Pacto ureo, um acordo estabelecido entre a Federao
Esprita Brasileira (FEB) e federativas estaduais que conferiu primeira um poder sem
precedentes no Espiritismo brasileiro, atravs de um Conselho Federativo Nacional (CFN)
subordinado chamada Casa Mter (epteto consagrado FEB).
Em suma, do ponto de vista da engenharia institucional-administrativa, o CFN recm nascido era mais filho da Casa Mter do que das outras federativas. Era de fato um rgo subordinado FEB, pois esta detinha a presidncia do Conselho e a funo de escolher seus membros em caso de impasse nas federativas atravs da lista trplice; alm disso, possua o poder de veto no oramento e a supremacia relativa no seu financiamento. (MIGUEL, no prelo)
Para resumir, mais uma vez remetemos o leitor ao resultado final de um estudo de
nossa autoria:
Em resumo, pode-se dizer que o movimento esprita brasileiro foi bastante conturbado internamente ao longo do seu processo de unificao institucional, com projetos de organizao federativa diferenciados e conflitantes que acabaram por opor entidades umas s outras bem como enfeixar alianas em torno de uma causa comum. A hegemonia da FEB foi construda em torno de muita polmica acerca da sua atividade federativa, detonando rixas que no foram facilmente resolvidas. Uma tenso permanente entre aqueles que reivindicavam maior representao no comando do Espiritismo a nvel nacional, geralmente atravs da defesa da democratizao da organizao federativa, e a FEB que permanecia entrincheirada na defesa da supremacia do seu poder, provocou por um lado o fortalecimento de federativas estaduais que passavam a promover e dirigir eventos visando unificao, caso claro da FERGS e da USE, e por outro uma seqncia de reaes da FEB que foram do extremo do desligamento das federativas dissidentes do seu quadro de filiadas a uma concesso meticulosamente calculada aos insistentes reivindicadores da unificao com incluso representativa, visando permanecer com um
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poder decisrio superior. O resultado final um Pacto ureo que divide radicalmente opinies quanto a sua legitimidade, que serve como um marco na histria da unificao do movimento esprita e como um ponto de articulao da FEB s federativas estaduais gerando uma estabilidade institucional e uma manuteno do poderio da Casa Mter sobre uma nova estrutura federativa que no possibilitava a permanncia de um processo decisrio absolutamente unilateral. Pode-se considerar, desse ponto de vista, que houve um avano democratizante na organizao do movimento esprita brasileiro que, no entanto, permitiu a fixao da legitimidade da FEB num posto de mando superior, como uma entidade independente e acima das outras distribudas pelo Brasil. (MIGUEL, no prelo)
Na dcada de 1950, ento, a FEB j est consolidada com a vitria obtida no Pacto
ureo. No imaginrio popular, Chico Xavier j comea a figurar como um santo. A nfase
evanglica na prtica esprita ganha reforo com a disseminao do Culto do Evangelho no
Lar (LEWGOY, 2004, p. 113). O resultado, conforme Lewgoy, a abertura do espiritismo
a uma vivncia mais evanglica, mais emotiva, menos intelectual e mais familiar da
religio (LEWGOY, 2004, p. 114).
De passagem, notemos que justamente na contramo dessas caractersticas que
surgir o MUE. A cultura que floresceu com os universitrios da dcada de 1960 se fez
presente em alguma medida nos universitrios espritas. Em razo disso, estes sentiram o
choque cultural da sua gerao com a gerao anterior das lideranas espritas.
Destaquemos, por fim, mais alguns elementos que caracterizam a militncia poltica
esprita at os dias de hoje, a qual contrastaremos logo adiante com o discurso de iseno
poltica.
Em 1961 foi promulgada a Lei das Diretrizes e Bases da Educao contra a qual
muitos espritas se mobilizaram18, em razo da questo da liberdade de ensino, que, na
proposio legal do deputado Carlos Lacerda, significava apenas o direito de particulares
de comunicarem a outros os seus conhecimentos (ROMANELLI, 2005, p. 174-175). Era a
investida do ensino privado sobre o ensino pblico, procurando o primeiro obter prioridade
absoluta de ao e proteo do Estado em detrimento do segundo. Era tambm mais uma
tentativa da Igreja Catlica de controlar a educao no Brasil. Apesar de ampla oposio
dos educadores, intelectuais, estudantes e lderes sindicais, unidos na Campanha em Defesa
18 Ver notcia Espritas tomam posio pr Escola Pblica no Jornal Cruzeiro do Sul, 05 jul, 1960, p. 8.
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da Escola Pblica, Lei das Diretrizes e Bases da Educao, na sua nova forma pr-ensino
privado, sua implantao se efetivou (ROMANELLI, 2005, p. 182-183). Nesse episdio, o
Clube de Jornalistas Espritas, presidido por Herculano Pires, redigiu o Manifesto em
Defesa da Democratizao Escolar, enviado ao Senado em protesto aprovao da Lei
pela Cmara dos Deputados (Revista Internacional de Espiritismo, mar, 1961, p. 53-54)19.
J na poca da Ditadura Militar podemos citar dois exemplos de posicionamento
quanto a discusses acerca de polticas pblicas. importante deixar claro, porm, que
estes posicionamentos, at onde pudemos verificar, no foram levados aos poderes pblicos
ou imprensa laica, ficando restritos ao pblico esprita, como uma orientao doutrinria.
Vejamos quais foram eles. Um foi a defesa da legalizao do Divrcio, como direito
queles que malograram na tarefa de harmonizao do casamento (no entanto, por
entender-se que o casamento um compromisso mtuo do casal antes de reencarnar, aos
espritas recomendado seguir em frente com o casamento, mesmo sob o peso de agruras,
carregando a sua cruz) (Reformador, mai, 1975, p. 98). Outro foi a postura de alguns
contra o controle de natalidade atravs do advento das plulas anticoncepcionais (Revista
Internacional de Espiritismo, ago, 1966, p. 155-157 e A Reencarnao, 1970).
Por outro lado, parece-nos evidente a omisso com relao ditadura. A
interpretao mais plausvel que as lideranas espritas estrategicamente preferiram
ignorar a ilegitimidade de um governo autoritrio e violentamente repressor, a fim de evitar
qualquer tipo de problema para as instituies espritas diante de um Estado ameaador20.
O nico contraponto que encontramos a este posicionamento dos espritas , de fato, o
MUE, por se caracterizar como um setor dentre os espritas que se organizou para reclamar
das injustias sociais e propor abertamente, como soluo para estas injustias, um
socialismo cristo calcado, doutrinariamente, no Espiritismo.
19 Sobre o assunto, conferir o artigo de Dora Incontri: A contribuio esprita no debate da escola pblica disponvel em: http://www.pedagogiaespirita.com.br/tiki-read_article.php?articleId=28. 20 Tambm se pode considerar a omisso ou o silncio como estratgia de resistncia. Se pensarmos o movimento esprita como uma minoria sem foras para resistir ao poder do Estado, esta interpretao faz bastante sentido. Por outro lado, se pensarmos o movimento esprita do ponto de vista das suas relaes de poder internas, a omisso conjuga-se a uma imposio frente a uma minoria neste caso o MUE diante da hegemonia as instituies federativas e os representantes de centros espritas.
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Passado o to combatido MUE, temos na atualidade, como exemplo de prtica
poltica dos espritas, a Campanha Em Defesa Da Vida, promovida pela FEB. Nessa
Campanha, alm de outras bandeiras, milita-se contra o aborto e a eutansia, constituindo-
se tambm como uma forma de presso poltica contra a legalizao dessas prticas por
parte do governo. Ilustrativo do seu carter poltico foi a participao dos espritas na
Marcha da Cidadania pela Vida, ocorrida em So Paulo, dia 20 de maro de 2010, no
intuito de barrar a aprovao do Projeto de Lei 1135/91 que pretendia legalizar o aborto at
setembro do mesmo ano.
1.2 Poltica e questes sociais no movimento esprita brasileiro Na terceira parte deste captulo demonstraremos a existncia de uma tradio
intelectual esprita de vis socialista. Porm, importante analisar a presena do iderio
socialista em meio a um vasto campo de concepes acerca dos problemas sociais
expressas no meio esprita. Ou seja, no basta identificar o iderio socialista na figura de
alguns intelectuais espritas; necessrio coloc-lo em relao a outras posturas para
melhor dimension-lo no conjunto do movimento esprita.
Para realizar essa tarefa, examinaremos agora artigos publicados na revista
Reformador, da FEB, que tratem de questes relacionadas ao tema dos problemas sociais,
com posicionamentos frente questo poltica e proposta socialista, enfatizando o papel
reservado aos espritas na sociedade. Como o Reformador uma revista de ampla
circulao no movimento esprita brasileiro, tendo consigo a fora de verdade advinda das
representaes coletivas em torno da Casa Mter, poderemos generalizar os
posicionamentos frequentes nessa revista para uma ampla populao de adeptos do
Espiritismo, especialmente aqueles mais ligados s instituies federadas. Isto
fundamental para situarmos o iderio socialista no meio esprita, circunscrevendo-o a suas
devidas dimenses e visualizando o imaginrio esprita acerca do social, em sua
complexidade de representaes, dando-nos com isso o quadro de referncias com o qual o
MUE ter de lidar na sua empreitada reformadora. Com isso, tambm almejamos definir
melhor a especificidade do MUE com relao ao conjunto histrico de representaes
circulantes no meio esprita acerca da poltica e das questes sociais.
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Uma observao crucial merece ser feita de imediato. J no artigo primeiro do
Regulamento da Sociedade Parisiense de Estudos Espritas, fundada em 1858 por Allan
Kardec, encontramos uma taxativa interdio s questes polticas e de economia
social: Art. 1 - A Sociedade tem por objetivo o estudo de todos os fenmenos relativos
s manifestaes espritas e suas aplicaes s cincias morais, fsicas, histricas e
psicolgicas. So defesas nela as questes polticas, de controvrsia religiosa e de economia
social (KARDEC, 1996 [1861], p. 445). O fato muito significativo, pois tal interdio
pode servir de fundamento doutrinrio para o movimento esprita. Embora no tenhamos
encontrado qualquer referncia direta ao artigo primeiro do Regulamento por parte dos
articulistas do Reformador, certamente o texto de grande valia para explicar as
subsequentes posturas do movimento esprita brasileiro. Afinal, trata-se do artigo primeiro
do regulamento do primeiro centro esprita do mundo, fundado pelo codificador21 do
Espiritismo. No pretendemos discutir aqui as razes pelas quais Kardec obstou a discusso
de questes polticas, de controvrsia religiosa e de economia social na Sociedade
Parisiense de Estudos Espritas22, mas no podemos deixar de notar que ele, na prtica,
21 Notemos, de passagem, que os termos codificador e codificao (que, por sinal, no so encontrados nas obras de Kardec), utilizados para indicar o papel de Kardec com relao ao Espiritismo e a prpria Doutrina Esprita, so altamente significativos na demarcao do Espiritismo como religio. Um cdigo legal um conjunto sistematizado de disposies legais relativamente a um determinado campo do direito e um cdigo religioso um conjunto sistematizado de dogmas, de artigos de f. A rigidez, o carter de sistema fechado, caracterstica de ambos. Assim, a codificao kardequiana algo altamente sistematizado e fechado, com o adicional de que a ideia de revelao dos Espritos superiores tende a reforar ainda o sentido de perfeio do cdigo, por ter origem divina. Ainda que os espritas no queiram chamar de dogmas os elementos constituintes da sua doutrina, o modo como eles so assumidos possui portanto uma enorme fora dogmtica. 22 Deixamos indicado ao leitor interessado em aprofundar a questo passagens muito significativas da Revista Esprita (na qual Kardec anotava vrios temas que estavam em um estgio inconclusivo com relao Doutrina Esprita): (Revista Esprita, mai, 1861, p. 204; fev, 1862, p. 62; mar, 1863, p. 125; jan, 1864, p. 15; jun, 1865, p. 248; set, 1866, p. 355; dez, 1868, p. 540; nov, 1869, p. 449-450). Para dar um exemplo da maior importncia, vejamos uma orientao de Kardec aos espritas de Lyon: Devo ainda vos chamar a ateno para outra ttica de nossos adversrios: a de procurar comprometer os espritas, induzindo-os a se afastarem do verdadeiro objetivo da doutrina, que o da moral, para abordarem questes que no so de sua competncia e que poderiam, com toda razo, despertar susceptibilidades e desconfianas. Tambm no vos deixeis cair nessa armadilha; afastai cuidadosamente de vossas reunies tudo quanto disser respeito poltica e s questes irritantes; nesse caso, as discusses no levaro a nada e apenas suscitaro embaraos, enquanto ningum questionar a moral, quando ela for boa. Procurai, no Espiritismo, aquilo que vos pode melhorar; eis o essencial. Quando os homens forem melhores, as reformas sociais verdadeiramente teis sero uma conseqncia natural. Trabalhando pelo progresso moral, assentareis os verdadeiros e mais slidos fundamentos de todas as melhoras, deixando a Deus o cuidado de fazer que as coisas cheguem no devido tempo. No prprio interesse do Espiritismo, que ainda jovem, mas que amadurece depressa, deveis opor
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tratou desses campos do saber em suas obras. Allan Kardec opinou, de acordo com o seu
arcabouo cultural, em temas como a desigualdade das riquezas (temtica da economia), a
igualdade de direitos e a liberdade de conscincia (temas da poltica), e ainda diversos
temas de controvrsia religiosa, como as doutrinas do cu e do inferno.
Tendo em mente este marco zero da interdio poltica e economia social na
histria do Espiritismo, voltemo-nos para o movimento esprita brasileiro.
Primeiramente, tratemos dos textos publicados no Reformador que discutem
diretamente a respeito da poltica23. Em 1937, durante a era Vargas, a FEB, atravs da sua
revista oficial e de um opsculo de larga divulgao (Reformador, ago, 1937, p. 311),
definiu-se frente questo da poltica. Ao que parece, deste opsculo que se retirou um
excerto publicado na revista A Reencarnao (dez, 1937, p. 3-4), pertencente Federao
Esprita do Rio Grande do Sul (FERGS), em que se resume a postura da FEB em oito itens:
basicamente se defende a liberdade cvica do voto poltico, a respeitabilidade geral das ideologias, ainda que todas efmeras, quando no se apiam em mtodos violentos, devendo prevalecer sempre a fraternidade e por isso no sendo admitidas as atividades coletivas com carter de partidarismo poltico, j que essas levam ao fracionamento e desarmonia. Fiando-se no carter cristo do Espiritismo, este deve estar acima das lutas e competies partidrias, (...) [no recomendando candidaturas polticas quaisquer], limitando-se a deprecar a Deus luzes, paz e foras do Alto para aqueles que houverem de arcar com as responsabilidades de governo e considerando desligadas do seu quadro federativo as sociedades adesas que prefiram atuar politicamente. (MIGUEL, 2009b, p. 50-51)
uma firmeza inabalvel aos que buscarem vos arrastar por um caminho perigoso (Revista Esprita, fev, 1862, p. 62). 23 Utilizamos para pesquisa a base de dados do Reformador que a FEB disponibiliza em seu site. A busca se d a partir de termos constantes nos ttulos das matrias publicadas no peridico. Para pesquisar o tema poltica, optamos simplesmente por buscar artigos que tivessem o termo poltica em seu ttulo, acrescidos de alguns outros do qual j tnhamos conhecimento. No total, trabalhamos com vinte artigos, selecionando os quatorze mais relevantes para a nossa anlise. claro que o ideal para uma apreciao mais rigorosa sobre o tema da poltica no Reformador seria a pesquisa extensiva por toda a revista em busca de discursos relacionados ao tema que certamente esto espalhados por diferentes textos (e no somente aqueles em que o termo poltica consta no ttulo). Entretanto, devido ao limite de tempo disponvel para essa pesquisa, tivemos de nos contentar com uma reduzida base documental. Cremos, porm, que tal base um importante marco inicial para delinear um caminho de pesquisa sobre o tema da poltica no pensamento esprita brasileiro.
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Cabe destacar a ideia de neutralidade na postura da FEB, no apoiando esta ou
aquela agremiao poltica. No chega a ser discutida a questo da participao do esprita,
enquanto cidado (sem falar em nome do Espiritismo), na vida poltico-partidria.
Em artigo publicado no Reformador (ago, 1937, p. 311-313) sem identificao de
autoria, comenta-se uma mensagem de Emmanuel sobre Espiritismo e poltica, dizendo que
a mensagem corrobora os pontos de vista usualmente apresentados na revista oficial da
FEB e no opsculo j referido tratando do tema.
Na mensagem, Emmanuel alerta para os perigos da poltica, mas no veta a
participao do esprita. A misso evangelizadora e a atividade poltica, alis, no so
colocadas como mutuamente excludentes (apesar do alerta para que no seja abandonada a
funo evangelizadora em razo da funo poltica), como quer fazer parecer o comentrio
do ms seguinte no Reformador.
Emmanuel ainda d palpites quanto s ideologias nacionalistas e quanto a tomar
partido de classes ou de bancos. Ou seja, opina politicamente. Aqui cabe um parntesis a
respeito de Emmanuel. O respeitado Esprito guia de Chico Xavier dissertara sobre
temticas polticas, econmicas e sociais de alto relevo desde a sua primeira obra
publicada, que leva o seu prprio nome. Nela discute-se a experincia sovitica, o nazismo
e o fascismo, o imperialismo e chega-se inclusive a defesa de um socialismo de Jesus
(XAVIER, 1938)24. J em outra ocasio, conta-se o seguinte episdio:
24 Falando da relao do catolicismo com o fascismo e o nazismo, Emmanuel afirma que os pases democrticos, que se encaminham, com os seus estatutos de governo, para o socialismo cristo do porvir, sentiriam dificuldade em suportar tutelas dessa natureza. Trabalhadores por doutrinas libertrias, eles vm pagando com sangue os sues progressos penosamente obtidos. Longe de ns aplaudirmos a poltica nefasta de Stalin ou as suas atividades nos gabinetes de Lon Blum ou de Azaa; apenas salientamos a tendncia das massas para a liberdade, sacudindo o jugo milenar do Catolicismo, que, a pretexto de prosseguir na obra crist, apossou-se do Estado para dominar e escravizar as conscincias (XAVIER, 1938, p. 57). Em outra passagem, diz que dentro das vibraes antagnicas do fascismo e do bolchevismo, frmulas transitrias de atividades polticas do Velho Mundo, todos os que falam em decadncia do liberalismo esto errados. Os governos fortes da atualidade, tenham eles os rtulos de nacionalismo ou internacionalismo, ho de voltar-se, do crculo de suas experincias, para as conquistas liberais do esprito humano, caminhando com essas conquistas na sua estrada evolutiva, progredindo e avanando para o socialismo cristo do porvir (XAVIER, 1938, p. 108). Destacamos que Emmanuel joga pesadamente a responsabilidade por diversos males nos desvios da Igreja Catlica: A estabilidade da Civilizao Ocidental, sua evoluo para o socialismo de Jesus, dependiam da fidelidade da Igreja Catlica aos princpios cristos. Mas, a Igreja negou-se ao cumprimento de sua grandiosa misso espiritual e o resultado temo-lo na desesperao das almas humanas, em face dos problemas transcendentes da vida (XAVIER, 1938, p. 110).
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Durante as reunies pblicas da Comunho Esprita Crist, de Uberaba, Chico recebe uma mensagem de Emmanuel destinada Freitas Nobre. Nela, Emmanuel falava de sua longa tarefa de pacificao do Brasil. E Chico acrescentou Dr. Nobre, Emmanuel est dizendo que o senhor ser chamado a atuar em poca muito difcil para o nosso pas, quando haver, inclusive perigo de derramamento de sangue. Primeiramente o Brasil cair muito esquerda, depois direita e finalmente caminhar pelo centro, at encontrar seu verdadeiro destino. Haver turbulncia nesses perodos de mudana e o senhor atuar como pacificador, evitando confrontos e radicalizaes.
Era maio de 1962. O pas ainda se refazia da renncia de Jnio Quadros, Jango Goulart deposto e os militares t