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UFPR/SCHLA

MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE

O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

Ensaios em comemoração aos 15 anos de Crítica Marxista

Org. Sérgio Braga, Pedro Leão da Costa Neto, Marcos Vinícius Pansardi e Adriano Codato.

Curitiba-PR

1ª Edição

Coletânea de textos apresentados no evento realizado em Curitiba

em Homenagem aos 15 anos da revista CRÍTICA MARXISTA.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SISTEMA DE BIBLIOTECAS

BIBLIOTECA CENTRALCOORDENAÇÃO DE PROCESSOS TÉCNICOS

Ficha catalográfica

Universidade Federal do Paraná. Setor de Ciências Humanas, U58 Letras e Artes. Marxismo & Ciências Humanas : leituras sobre o Capita- lismo num contexto de crise: ensaios em comemoração aos 15 anos de Crítica Marxista / Org. Sérgio Braga... [et al.]. -- Curitiba, 2011. 161p.

Vários autores Coletânea de textos apresentados no evento realizado em

Curitiba em homenagem aos 15 anos da revista Crítica Mar- xista.

Inclui referências e notas ISBN - 978-85-99229-08-8

1.Capitalismo. 2. Ciências Sociais – Coletânea. 3. Mar- xismo – Discursos, ensaios, conferências. 4. 15 anos de Críti-

ca Marxista. I. Braga, Sérgio. II. Título.

CDD 22.ed. 335.4 Samira Elias Simões CRB-9/ 755

Capa

Diagramação

Gustav [email protected]

Marti [email protected]

SCHLA/UFPR,2011

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Sumário

Pág.

Apresentação (Os organizadores) _______________________________ 5

Caio Navarro de Toledo: Desafios e problemas de uma publicação marxista no Brasil: Crítica Marxista faz 15 anos._________________

7

Armando Boito & Luiz Eduardo Motta: Karl Marx no Brasil.________ 17

João Quartim de Moraes: O marxismo e os impasses do capitalismo contemporâneo. ___________________________________________

27

Isabel Loureiro: A recepção de Rosa Luxemburgo no Brasil._______ 43

Robespierre de Oliveira: A teoria crítica como teoria da mudança social: o marxismo de Marcuse. ______________________________

59

Anita Helena Schlesener: Gramsci e a cultura de seu tempo: observações sobre arte e literatura.____________________________

71

Marcos Vinícius Pansardi: Gramsci e as Relações Internacionais: hegemonia, dependência e imperialismo. ______________________

85

Francisco Paulo Cipolla: A evolução da teoria da crise em Marx. ____ 101

Claus Germer: As tendências de longo prazo da economia capitalista e a transição para o socialismo. ______________________________

117

Sérgio Braga: Nicos Poulantzas, as elites e a sociologia política norte-americana. __________________________________________

139

Adriano Codato: Política, ciência e ideologia: sobre o "teoricismo" de Nicos Poulantzas. ______________________________________

165

Pedro Leão da Costa Neto: Notas introdutórias sobre o desenvolvimento do marxismo no Leste Europeu.______________

175

Ligia Regina Klein: A luta pelas leis fabris do século XIX e a definição das idades do trabalho: um estudo sobre a constituição das noções de infância e adolescência. ________________________

185

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5

Apresentação

(Os organizadores)

Os textos que constam desta publicação resultaram de

trabalhos que foram apresentados no evento Marxismo e Ciências

Humanas: leituras sobre o capitalismo num contexto de crise,

realizado em Curitiba em novembro de 2009 e destinado a

comemorar os 15 anos de lançamento da revista CRÍTICA

MARXISTA. Mais do que uma efeméride, o evento destinava-se a

debater com um público mais amplo do que aquele estritamente

universitário algumas questões teóricas importantes abordadas por

esta revista ─ e podemos dizer pelo marxismo de uma maneira

geral ─ ao longo de sua existência. Além disso, buscava-se ao

mesmo tempo ilustrar a vocação interdisciplinar e pluridimensional

desta perspectiva de análise, que desde suas origens transitou por

diversas disciplinas tais como a filosofia, a economia, a sociologia

política, e mesmo a crítica literária e cultural, dentre outras formas

de produção teórica no campo das ciências humanas.

Tudo isso explica algumas das características dos artigos

contidos na presente coletânea: a) em primeiro lugar, seu tom

didático e não-academicista, na medida em que resultaram de

debates e intervenções dos quais tomaram parte não apenas

pesquisadores universitários, mas também uma audiência externa

aos muros acadêmicos e interessada em tomar contato com

algumas das contribuições gerais da problemática teórica marxista;

b) em segundo lugar, sua natureza interdisciplinar, abrangendo

desde testemunhos e tentativas de auto-análise dos editores da

revista sobre a trajetória da publicação ao longo dos anos, até

ensaios nos campos da história do pensamento político, filosofia,

economia, teoria política, relações internacionais e sociologia da

educação; c) por fim, sua perspectiva crítica já que praticamente

todos os artigos reunidos nesta publicação trazem embutidos

dentro de si uma dimensão “normativa” que busca refletir sobre

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horizontes históricos situados para além dos sistemas sociais

capitalistas realmente existentes no mundo contemporâneo.

Tendo em vista esses fatores, a expectativa dos

organizadores é a de que a presente coletânea cumpra de

maneira satisfatória os objetivos não apenas de prestar uma

homenagem ao esforço militante dos editores de CRÍTICA

MARXISTA por terem mantido regularmente uma publicação do

gênero ao longo de todos estes anos e em condições muitas vezes

adversas, mas também o de ilustrar para um público não

estritamente especializado o vigor de um tipo específico de leitura

teórico-política da realidade social moderna cujas potencialidades

e desdobramentos teóricos e empíricos estão longe de terem se

esgotado.

Sérgio Braga

Pedro Leão da Costa Neto

Marcus Vinícius Pansardi

Adriano Codato

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Desafios e problemas de uma

publicação marxista no Brasil: Crítica

Marxista faz 15 anosF

1

Caio Navarro de Toledo (Unicamp)2

ORIGENS: BREVE HISTÓRICO

Dezessete anos atrás alguns professores e pesquisadores, na

sua maioria da Unicamp, reuniram-se para discutir a possibilidade

de criação de uma revista marxista. Nessa conjuntura histórica, a

celebração do fim do socialismo e a hegemonia da doutrina

neoliberal tornavam este projeto um enorme desafio intelectual e

político. Duas formulações – amplamente difundidas pela mídia em

todo o mundo – sintetizavam o contexto ideológico do período: 1)

o triunfo da democracia liberal teria decretado o “fim da história” e

das ideologias (Francis Fukuyama) e 2) “não existiria mais

alternativa ao capitalismo” [tal como a expressão inglesa “There is

no alternative” (Tina) buscava exemplificar].

Os tempos, pois, se configuravam difíceis para os socialistas

e marxistas.

Desde 1992, diversos encontros se sucederam visando definir

o projeto editorial da publicação (seus objetivos, conteúdo,

periodicidade etc.) bem como a busca de uma editora comercial

que aceitasse publicar uma revista... de esquerda e marxista.

Faço uma breve uma digressão de natureza “sociológica”:

o que explicava a presença majoritária de acadêmicos da

Unicamp na discussão desse projeto editorial? Como explicar a

presença de apenas um professor da USP nestes encontros?

1 O texto que se segue orientou a intervenção do autor na abertura do Congresso “Marxismo e Ciências

Humanas”. Como foi esclarecido no início da sessão, as formulações aqui desenvolvidas são da estrita

responsabilidade do autor; ou seja, não expressam elas, necessariamente, o pensamento do conjunto do comitê editorial da revista Crítica Marxista.

2 Caio Navarro de Toledo é professor colaborador do IFCH/Unicamp.

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Descartando a hipótese do sectarismo por parte dos

docentes da Unicamp, a razão parece ser simples: nos anos 1980 e

1990 a teoria marxista deixou de ser uma referência relevante para

a reflexão e a pesquisa dos professores da USP, ao contrário do que

tinha ocorrido nos anos 1960 e 1970. Embora nestes anos a teoria

marxista nunca tivesse sido dominante no interior dos

Departamentos de Filosofia, Ciências Sociais e História da USP, era

inegável que seus docentes não eram indiferentes ao marxismo. O

contexto político e ideológico dos dois períodos – governo Jango e

a resistência à ditadura – certamente foi decisivo para explicar o

interesse pela teoria marxista. Como também observou Roberto

Schwartz, embora a direita tenha sido politicamente vitoriosa em

1964, durante a ditadura, a hegemonia no plano cultural e no

debate das idéias não deixava ser de esquerda.

Assim, se a obra de Marx não era regularmente ministrada

nas disciplinas de graduação da USP, não era, porém, ignorada por

seus docentes. Ignoradas eram, sim, as obras de Engels, Lênin, Rosa

bem como as de outros clássicos do marxismo.

Sabe-se que a obra decisiva de Marx, O capital, foi objeto

de um famoso grupo de estudos na USP; segundo alguns, este

Seminário teve duas edições. Na primeira, de fins dos anos 1950 até

início dos anos 1960, estavam professores que alcançariam

notoriedade nas décadas seguintes: FHC, José Arthur Giannotti,

Paul Singer, Fernando Novais, Octavio Ianni, Francisco Weffort e

outros; na sua 2ª. edição – segundo um artigo de E. Sader –,

estavam presentes jovens assistentes e pesquisadores; entre eles,

João Quartim, Roberto Schwartz, Ruy Fausto, Emília Viotti, Sérgio

Ferro, Michel Löwy, Emir Sader, Lourdes Sola e outros.

Se, de fato, ocorreram as duas edições do grupo sobre O

Capital, verifica-se que a 1ª. edição teve um caráter

eminentemente acadêmico (em uma palavra, a obra de Marx

interessava basicamente pelo seu caráter metodológico),

enquanto a segunda edição estava mais interessada pela

dimensão política do marxismo. Isto se evidenciaria pelo título da

revista criada em fins dos anos 1960: Teoria e Prática, editada por

Rui Fausto, Roberto Schwartz, M. Löwy e S. Ferro.

Nos anos 1980 e 1990, contudo, a teoria marxista deixaria de

estar presente nas cogitações dos filósofos e cientistas sociais da

USP. A rigor, hoje na USP, é possível contar na palma da mão o

número de professores que se reivindica marxista. Nos anos 1990, na

Unicamp, particularmente no IFCH, o marxismo era uma referência

importante e obrigatória nas aulas, na reflexão e nos trabalhos de

vários de seus docentes. Isto explicaria que, nos meios acadêmicos

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dos anos 1990, uma publicação de orientação marxista apenas

poderia surgir das iniciativas de alguns docentes da Unicamp.

Assim, com a colaboração de dois colegas de

universidades federais e um da USP, alguns professores da Unicamp

formularam um projeto editorial que navegaria na contracorrente

de duas intensas celebrações: a de mais uma morte do marxismo e

a do avanço do capitalismo neoliberal em todo o mundo. Um

projeto editorial – consubstanciado num Manifesto de fundação –

foi formulado e amplamente difundido nos meios acadêmicos de

todo o país. A enorme receptividade e o entusiasmo provocados

pelo documento convenceram-nos definitivamente do acerto de

nossa iniciativa intelectual e política. Impunha-se, pois, criar uma

revista que reafirmasse a relevância e a atualidade da teoria

marxista.

Citemos as palavras iniciais do texto fundador da revista pois

elas esclareciam o contexto intelectual e ideológico em que surgia

a revista e seus principais objetivos:

“Nenhuma teoria teve a sua morte tantas

vezes anunciada como o marxismo. O último desses anúncios fúnebres afirma que o marxismo teria sido superado na medida em que os trabalhadores repudiaram seus livros, suas teorias e seus símbolos. No Leste da Europa e na antiga URSS, não restariam hoje senão os escombros do socialismo e do marxismo (...)

Contra essa velha impostura reativada com a virulência que as atuais circunstâncias propiciam à reação internacional, é sempre tempo de relembrar que o marxismo continua sendo o instrumento teórico decisivo e insubstituível para a análise e transformação da realidade social contemporânea”.

CRIAÇÃO E OBJETIVOS DA REVISTA

Em 1994, foi lançado o primeiro no. de CRÍTICA MARXISTA. A

expressão crítica no nome não foi uma decisão arbitrária, pois

buscava identificar o projeto intelectual da revista. Por meio desta

noção, desejávamos afirmar que a teoria marxista é uma obra de

natureza eminentemente crítica; crítica da economia política,

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crítica da filosofia idealista, crítica da ideologia burguesa, crítica do

Estado burguês e da ordem capitalista.

Ressalve-se, contudo, que esta abrangente crítica não

estaria fundada em bases idealistas ou voluntaristas; para os

editores da revista, o materialismo histórico é o fundamento teórico

decisivo e insubstituível para a análise, o conhecimento e a

transformação da realidade social contemporânea. Para nós, a

teoria marxista – que não se confunde com um receituário para a

superação de todas as mazelas e contradições do capitalismo –

dispõe de recursos analíticos que contribuem para o

enfrentamento dos difíceis e complexos desafios intelectuais e

políticos de nosso tempo; seus recursos autocríticos igualmente são

decisivos para a sua própria renovação conceitual e teórica. Para

nós, as teses e os conceitos desenvolvidos nas diferentes vertentes e

tradições do marxismo têm sido fecundos instrumentos de pesquisa

nos diferentes campos da reflexão teórica – na economia política,

nas ciências sociais, na filosofia e na cultura.

Desde o inicio, nosso projeto editorial definiu, pois, como seu

objetivo central o desenvolvimento e o aprofundamento da teoria

marxista. Embora a revista publique artigos e debates sobre

questões de ordem conjuntural, nossa “vocação” ou prioridade

maior é a de buscar contribuir para a discussão teórica do

marxismo no país. Afirmar a importância da dimensão teórica não

significa, no entanto, refugiar-se no terreno da pura abstração

conceitual ou no do mero teoricismo. Embora reconheçamos que

o trabalho teórico tenha uma relativa autonomia, também

concebemos que, freqüentemente, na prática social, teoria e

política estão indissociadas. Esta dimensão do marxismo clássico –

ignorada pelo chamado marxismo ocidental – ocupa um lugar

importante no conjunto de nossas convicções básicas.

Neste sentido, o parágrafo final de nosso Manifesto deve ser

lembrado pois, em certa medida, sintetiza o projeto editorial e

político da revista:

“Propugnar a validade teórica do

marxismo nunca será um ato gratuito e sem conseqüências. Significa reafirmar (...) a possibilidade histórica da revolução, do fim da exploração capitalista e da emancipação dos trabalhadores”.

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Ao contrário daqueles que se orientam por outras teorias

sociais, os marxistas afirmam que estão inteiramente envolvidos

com os conflitos sociais e políticos fundamentais de seu tempo. Não

havendo espaço para a neutralidade axiológica, cabe aos

marxistas identificar quais as opções políticas que, no presente,

melhor contribuem para o aprofundamento da luta anticapitalista

na direção do socialismo.

Como publicação de esquerda e marxista, CM não se

posiciona ou se identifica com as correntes existentes dentro do

espectro partidário no Brasil e no plano internacional. Pela natureza

de nosso trabalho intelectual, a revista não se posiciona sobre

questões conjunturais. Nosso engajamento se expressa

concretamente pelas questões discutidas e assuntos examinados

nas edições da revista. Neste sentido, o posicionamento da revista

se revela pelo fato de que nela colaboram e escrevem apenas

autores que se orientam pela teoria marxista e têm o socialismo

como horizonte político. O ecletismo teórico não tem espaço em

CM.

Embora a revista não se posicione sobre questões

conjunturais, no entanto, em determinadas circunstâncias muito

particulares, poderemos tomar determinadas iniciativas editoriais

na luta político-ideológica em curso no plano nacional ou

internacional. A este respeito, podemos citar duas iniciativas da

revista neste ano de 2009: a denúncia do massacre contra o povo

palestino (janeiro) e a defesa da liberdade para Cesare Battisti

(outubro).

O TRABALHO EDITORIAL: ESPECIFICIDADE, LIMITAÇÕES E

DESAFIOS

De forma sintética, pode-se afirmar que CM é uma revista

que privilegia a pesquisa e o debate teórico pois partimos do

pressuposto de que a obra marxista tem lacunas, dificuldades e

problemas internos que exigem desenvolvimentos e

aprofundamentos conceituais. Por outro lado, reconhecendo que,

na atualidade, são várias as correntes teóricas que se reivindicam

marxistas, entendemos que, na medida do possível, esta realidade

deveria se refletir na composição do comitê e no trabalho editorial

da revista.

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

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Dispensável dizer que o caráter plural da revista impõe que

a democracia interna seja uma efetiva realidade no modo de

funcionamento do comitê de redação e na produção editorial da

revista. Tais características distinguem CM das demais publicações

marxistas. Ou seja, o caráter teórico de sua produção, o pluralismo,

a democracia interna e a autonomia político-partidária são

virtudes do trabalho editorial da revista; tais características a

singularizam no conjunto das publicações marxistas e de esquerda,

ontem e hoje no Brasil.

Quando examinamos os projetos editoriais das demais

publicações marxistas existentes no país, evidencia-se a

especificidade da intervenção intelectual de CM. Valendo-se da

memória – não de uma pesquisa sistemática sobre o assunto –, diria

que poucas publicações, no passado e no presente, privilegiaram,

de forma sistemática, a obra teórica de Marx, os distintos aspectos

da teoria marxista, o debate teórico em torno da luta pelo

socialismo bem como as diferentes concepções ou vertentes do

marxismo contemporâneo.

ESTUDOS SOCIAIS, vinculada ao PCB e publicada do final

dos anos 1950 até o golpe de 1964, talvez tivesse, pelo seu caráter

inovador e crítico, alguma semelhança com nosso projeto; mas,

certamente seus vínculos partidários não deixavam de limitar sua

independência política e restringir o debate teórico interno. TEORIA

E PRÁTICA, citada anteriormente, na sua curta trajetória (apenas 3

nos. publicados), esteve voltada para a questão teórica, mas seus

fortes vínculos com a tendência de esquerda Política Operária

certamente comprometiam sua independência política. TEMAS DE

CIÊNCIAS HUMANAS, nos anos 1970, também privilegiou a reflexão

teórica, mas a orientação fortemente lukacsiana restringia o

debate dentro do marxismo. O mesmo poderia ser dito da revista

ENSAIO dirigida por José Chasin nos anos 1980 e 1990 e, mais

recentemente, editada por seus disciplinados discípulos: a obra de

Lukács da maturidade (a Ontologia do ser social) e os trabalhos de

Istvan Meszaros são referências obrigatórias dos textos que ali foram

publicados.

Igualmente de forma esquemática, mas sem que isso

implique uma análise arbitrária, tomemos as publicações que hoje,

entre nós, se reivindicam marxistas. Começando com a mais

antiga: editada há 23 anos, NOVOS RUMOS é uma publicação do

Instituto Astrojildo Pereira; originalmente vinculada a intelectuais do

antigo PCB, a revista, a rigor, não deixa de manter vínculos com

esta linhagem política e intelectual. Embora publique ensaios sobre

o marxismo têm eles, contudo, um caráter de divulgação teórica.

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MARGEM ESQUERDA é uma verdadeira sucedânea da revista

Praga. Embora publique ensaios marxistas, como informa seu

subtítulo, ME não tem como eixo o debate sistemático sobre a

teoria marxista e as suas diferentes vertentes teóricas. Tal como seu

extenso Conselho editorial, constituído de acadêmicos que têm

distantes vínculos com o marxismo, ME publica, com freqüência,

textos de autores de esquerda, mas que não assumem o marxismo

como orientação teórica central. O estilo ensaístico, como a

própria revista reconhece, predomina na produção editorial de ME.

Por sua vez, OUTUBRO é uma publicação cuja produção e

conselho editoriais estão comprometidos com o pensamento

socialista; nas palavras de seus editores: “Outubro é uma

ferramenta de discussão e de formação teórico-política daqueles

sujeitos sociais comprometidos com a atualização do pensamento

socialista”. Ainda na autodefinição da revista, “suas principais

características são a ênfase na reflexão crítica e inovadora acerca

de problemáticas atuais, o pluralismo no campo da pesquisa e

uma abertura às diferentes vertentes do marxismo”. Criada em

1998, verifica-se que, nos últimos anos, amplia-se a participação na

revista de autores que não se vinculam aos quadros da IV

Internacional; mas, em contrapartida, sua reduzida Secretaria de

Redação não deixa de revelar a presença majoritária de

acadêmicos que se orientam por esta vertente do socialismo. Lutas

Sociais, publicação oficial de um programa de pós-graduação da

PUC-SP, é reconhecidamente uma atuante publicação de

esquerda e na qual colaboram acadêmicos marxistas; no entanto,

em virtude de seu vínculo institucional, não se define como uma

revista marxista.

Longe desta avaliação está um juízo de valor sobre as

revistas aqui nomeadas. O que buscamos ressaltar é a

especificidade ou particularidade do projeto editorial de CM

quando comparado com o das demais publicações marxistas,

ontem e hoje, existentes no país. Acredito que todas estas

publicações – desde que se empenhem com rigor e seriedade

intelectual na discussão e pesquisa sobre o materialismo histórico –

podem desempenhar um papel importante na elaboração e no

desenvolvimento do pensamento crítico e transformador no Brasil.

Que floresçam mais publicações de esquerda e marxistas de

qualidade nos meios acadêmicos e – principalmente – fora deles!

Por outro lado, é de se desejar que os editores de revistas marxistas

e de esquerda saibam criar formas de cooperação e de relações

que permitam difundir ainda mais o pensamento marxista e

socialista no Brasil.

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

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CM completa 15 anos. Isso não deixa de ser uma conquista

tendo em vista o caráter efêmero das publicações de esquerda e

marxistas no Brasil e em todo o mundo. Para chegar até aqui

dificuldades internas e externas foram superadas. Em alguns

momentos, divergências e conflitos no interior da editoria

dificultaram o funcionamento da revista. Igualmente dificuldades

externas existiram: por exemplo, até o presente, cinco foram as

editoras que abrigaram nosso projeto editorial. De forma

humorada, diria que nossos editores respeitam-nos

intelectualmente, mas nem sempre nos tratam bem...

Nesta avaliação de nossa trajetória não podemos também

deixar de reconhecer importantes limitações.

Uma importante limitação de nosso trabalho editorial é a de

que atuamos privilegiadamente nos meios acadêmicos pois aqui

estão nossos leitores, apoiadores e colaboradores. As tiragens da

revista – como das demais publicações universitárias – não

ultrapassam 1.500 exemplares. Certamente raros são os dirigentes e

militantes dos movimentos sociais e das forças políticas de

esquerda que leem a revista. Daí nosso desafio: o de buscar

permanentemente responder, de forma criativa, às necessidades

políticas e intelectuais dos militantes dos movimentos sociais e

políticos transformadores, hoje atuantes no Brasil. O risco do

teoricismo se espreita quando não levamos devidamente a sério

este desafio político e intelectual.

Quando afirmei acima que nossos editores nem sempre nos

“tratam bem” pretendia dizer o seguinte: a produção de cada no.

da revista praticamente depende apenas dos membros do comitê

editorial; as editoras comerciais não colocam seus recursos técnicos

e seu pessoal à nossa disposição pois não assumem a revista como

parte de seu projeto editorial. Não divulgam nem distribuem a

revista de forma ampla e eficiente. Por sua vez, os membros do

comitê produzem CM paralelamente às suas atividades docentes e

de pesquisa; isso significa que não podemos dedicar tempo

integral à revista.

Do ponto de vista editorial, um problema recorrente é o de

manter a qualidade da revista; se temos condições de publicar

traduções de textos de bom nível de revistas estrangeiras, são

reduzidos os trabalhos qualificados e originais que chegam à

editoria. Em certa medida é o domínio da cultura produtivista e o

“império” do curriculum Lattes, hoje presentes na universidade

brasileira, que explicam a produção de textos pouco qualificados

e, por vezes, de natureza quase escolar.

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Por outro lado, forçoso é reconhecer que nos meios

acadêmicos o marxismo cada vez mais deixa de conferir prestígio e

notoriedade àqueles que se orientam teoricamente por ele.

Pesquisas orientadas pelo marxismo não gozam de maior simpatia

e acolhimento por parte de agências financiadoras; centros de

estudos marxistas são mantidos sem maiores recursos em algumas

universidades; nas reuniões da Anpocs a presença de trabalhos

que discutem a teoria marxista é amplamente minoritária. Os

marxistas têm dificuldades para publicar seus textos – ou seja, livros

e ensaios em periódicos especializados. Quando têm seus livros

editados, raramente são eles resenhados; dispensável dizer que os

autores marxistas e socialistas não são convidados pela mídia

burguesa a divulgar e debater seus trabalhos etc. Tome-se o

exemplo de nossa revista: apesar de seus 15 anos de existência, CM

é, praticamente, uma ficção para a mídia burguesa.

Não obstante as limitações, as dificuldades e as

adversidades, creio que temos motivos para comemorar estes 15

anos de existência. Não apenas resistimos num contexto ideológico

e político adverso à existência de publicações marxistas e de

esquerda; por seu trabalho editorial efetivo – artigos, ensaios,

produção de dossiês e debates, entrevistas etc. –, CM conquistou

um lugar privilegiado na cultura política da esquerda brasileira.

Nossa revista é, hoje, uma importante referência para todos

acadêmicos e intelectuais que, no Brasil, se reconhecem no

campo do marxismo crítico e revolucionário.

Por último, um Congresso como o que aqui se realiza na

UFPr – possível em virtude da iniciativa colaboradores da revista – é

uma prova efetiva da relevância, vitalidade e pertinência do

trabalho editorial desenvolvido por CRÍTICA MARXISTA.

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Karl Marx no Brasil

Armando Boito (Unicamp)3 & Luiz Eduardo Motta (UFRJ)4

É crescente o interesse pela obra de Karl Marx no Brasil

atual. Essa tendência está perfeitamente integrada à nova vaga

de interesse pela obra do fundador do materialismo histórico em

escala internacional. Porém, a recepção da obra de Marx no Brasil

está marcada, evidentemente, pelas características da formação

social brasileira, pelas suas tradições intelectuais e pela conjuntura

teórica e ideológica do Brasil das décadas de 1990 e 2000.

A nova vaga internacional de interesse pela obra de Karl

Marx teve início na segunda metade da década de 1990, quando

o modelo capitalista neoliberal começou a apresentar fortes sinais

de desgaste. Alguns acontecimentos representativos desse

desgaste foram, na Europa, a greve geral que paralisou a França

durante os meses de novembro e dezembro de 1995, dando início

a uma nova fase da luta social na França que redundaria na vitória

do Partido Socialista nas eleições gerais de 1997, e, na América

Latina, a posse de Hugo Chávez na Presidência da Venezuela em

1999. No meio-tempo, em 1998, foram realizados, em diversos

países, encontros em comemoração aos 150 anos da publicação

do Manifesto do Partido Comunista de Marx e Engels. Numa época

em que se tinha proclamado, mais uma vez, a morte do marxismo,

a presença massiva de ativistas políticos e de intelectuais nesses

encontros surpreendeu os seus próprios organizadores.

ENCONTROS, CENTROS E ASSOCIAÇÕES

No Brasil, além dos diversos encontros comemorativos dos

150 anos do Manifesto Comunista, tivemos, em 2001, grandes

3 Professor de Ciência Política da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e Editor da revista Crítica Marxista.

4 Professor de Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

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eventos, em diversas cidades do país, em comemoração aos 130

anos da Comuna de Paris de 1871. Esses encontros já exibiam uma

das características da atual fase de interesse pela obra de Marx no

Brasil: de um lado, a aproximação entre ativistas políticos e

intelectuais no trabalho de recuperação do marxismo, porém, de

outro lado, a clara predominância do grupo intelectual e a

dependência desse trabalho de recuperação frente às instituições

culturais do Estado capitalista, principalmente as universidades.

Essa característica de origem estará presente na formação de

inúmeros centros de pesquisa marxista que foram organizados em

diversas universidades do país, nas revistas e nas demais

publicações que surgiram a partir da década de 1990, nos diversos

encontros científicos e culturais regulares que contam com a

participação majoritária de marxistas e na intervenção institucional

e organizada dos sociólogos, cientistas políticos, filósofos,

economistas e historiadores marxistas nas principais associações

científicas brasileiras.

Em 1996, foi criado o Centro de Estudos Marxistas (Cemarx)

na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Depois dessa

iniciativa pioneira, vários centros semelhantes foram criados em

diversas universidades públicas do Brasil. Hoje, existem centros

semelhantes na Universidade Federal Fluminense, na Universidade

Estadual do Sudoeste da Bahia, em universidades do Rio grande do

Sul e outras. O Cemarx realizou em 1999 na Unicamp o I Colóquio

Internacional Marx e Engels. Desde então, esse colóquio bienal tem

sido realizado regularmente, reunindo em cada uma de suas

edições centenas de pesquisadores de todo o Brasil. Na década

de 2000, foram surgindo encontros marxistas nacionais ou regionais

regulares, anuais ou bienais, e especializados tematicamente,

como, por exemplo, o encontro dos pesquisadores marxistas em

educação, o encontro dos pesquisadores de movimentos sociais

na América Latina da Universidade Estadual de Londrina, Paraná, o

encontro dos pesquisadores do trabalho na Universidade Estadual

Paulista de Marília, o colóquio Marx e Engels da Universidade de

São Paulo e outros. Esses e outros encontros reúnem, se somados,

milhares de pesquisadores anualmente ou bienalmente. Outro fato

a ser destacado nessa nova vaga de recuperação dos estudos

marxistas é a intervenção dos pesquisadores marxistas nas grandes

associações nacionais de sociólogos, de historiadores, de filósofos e

de economistas ─ Anpocs, Anpuh, Anpof, SEP. Essas associações

passaram a contar na sua estrutura organizativa com grupos de

trabalho formados por pesquisadores marxistas dedicados a

estudar o marxismo em suas respectivas áreas.

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

19

AS REVISTAS DE ONTEM E DE HOJE

No que respeita às publicações, façamos, inicialmente,

para efeito de comparação, uma remissão às gerações de revistas

e periódicos marxistas que precederam a geração atual. Tivemos

no Brasil algumas revistas ligadas ao Partido Comunista Brasileiro

que foram publicadas antes do golpe de Estado de 1964, como a

revista Problemas, Brasiliense e Estudos Sociais. Como marco inicial

da divulgação do marxismo não oficial, em geral de autores

identificados na corrente denominada de marxismo ocidental,

tivemos a Revista Civilização Brasileira criada por Enio Silveira (dono

da editora Civilização Brasileira e membro do Partido Comunista

Brasileiro) e Moacir Félix publicada entre os anos 1965 e 1968. Nela

foram divulgados os trabalhos de Lukács, Adam Schaff, Jean Paul

Sartre, Herbert Marcuse, Antonio Gramsci, Louis Althusser, além de

intelectuais brasileiros identificados com a teoria marxista ou

próximos desse campo como Nelson Werneck Sodré, José Arthur

Giannotti, Fernando Henrique Cardoso e Theotônio dos Santos. A

revista apesar de sua grande tiragem (10000 exemplares) não

sobreviveu ao fechamento do regime militar, que ampliou seus

poderes discricionários a partir de 1969. Outras revistas posteriores,

como as revistas Princípios e Novos Rumos, essas vinculadas

organicamente a partidos marxistas como o Partido Comunista do

Brasil (PC do B) e o Partido Comunista Brasileiro (PCB),

respectivamente, continuam sendo publicadas. Já a revista Teoria

& Política, lançada em 1980 por intelectuais de tendência marxista-

leninista, deixou de ser publicada nos anos 1990, assim como a

Presença, esta criada por intelectuais oriundos do PCB e afinados

com a perspectiva eurocomunista. Essas revistas de origem

partidária são publicações que, embora contem com a

participação ativa de intelectuais ligados às universidades, se

mantêm, principalmente, graças ao apoio da organização ou do

grupo político a que pertencem.

Com a nova geração de revistas marxistas, dos anos 1990 e

2000, passa-se algo distinto: elas são vinculadas a grupos de

intelectuais que trabalham e atuam, fundamentalmente, nas

universidades públicas do país. A publicação pioneira dessa nova

geração foi criada pelo mesmo grupo de intelectuais marxistas que

fundara o Cemarx da Unicamp ─ trata-se da publicação semestral

Crítica Marxista cujo primeiro número foi lançado em 1994. Os

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

20

intelectuais que a criaram eram, na sua maioria, professores da

Unicamp e não se encontravam organizados em partidos políticos.

Ao longo dos anos que se sucederam, foram surgindo outras

publicações: Outubro, Margem Esquerda, História e Luta de Classes,

Marxismo Vivo, Novos Temas e outras 45.

Pode ser de interesse arrolar os nomes dos intelectuais

fundadores de algumas dessas publicações, pois eles são alguns

dos intelectuais marxistas que participam ativamente dessa fase de

recuperação do marxismo no Brasil. O Comitê Editorial que fundou

a revista Crítica Marxista em 1994 era integrado por Armando Boito,

Caio Navarro de Toledo, Celso Frederico, Décio Saes, João Quartim

de Moraes, João Roberto Martins Filho, Juarez Guimarães, Marcio

Naves, Ricardo Antunes e Sérgio Lessa. A revista Outubro,

publicação também semestral, foi lançada em 1998 e a sua

Comissão de Redação era formada por Álvaro Bianchi, Conrobert

Costa Neto, Edmundo Fernandes Dias, Elisa Guimarães, Flavio Lyra,

Hector Benoit e Marcio Naves. Margem Esquerda foi lançada em

2003 com o seu Comitê de Redação integrado por: Afrânio

Cattani, Conrobert Costa Neto, Celso Frederico, Jesus Ranieri,

Marcelo Ridenti, Marcio Naves, Maria Lúcia Barroco, Maria Quartim

de Moraes, Maria Orlanda Pinassi, Ricardo Antunes, Ricardo Musse,

Sedi Hirano. Essas três revistas, além de serem vinculadas,

fundamentalmente, ao meio universitário, têm o seu núcleo

dirigente localizado na cidade de São Paulo. Já História e Luta de

Classes é uma publicação marxista de jovens historiadores

animada, principalmente, por um grupo do Estado do Rio de

Janeiro. Foi criada em 2004 e tinha a sua Comissão Editorial

formada por Carla Silva, Enrique Padros, Florence Carboni,

Francisco Domingues, Gilberto Calil, Marcelo Badaró, Mario Maestri,

Theo Piñeiro e Virgínia Fontes. A revista Praga, que como já

afirmamos deixou de ser publicada, trazia na sua Comissão

Executiva Carlos Machado, Cilaine Cunha, Fernando Haddad,

Francisco Alambert, Isabel Maria Loureiro, Leda Paulani, Ricardo

Musse e Rubens Machado Jr.

Essas revistas agregam intelectuais marxistas filiados a

correntes marxistas, ou próximas do marxismo, bastante diversas,

correntes cujas obras de referência pertencem a Antonio Gramsci,

George Lukács, Louis Althusser, Escola de Frankfurt, E. P. Thompson e

outros. As revistas apresentam algumas características particulares

5 Duas outras revistas marxistas importantes, a revista Práxis, editada por um coletivo de intelectuais nacionalmente organizado, e Praga, próxima ao grupo de marxistas oriundos da FFLCH da

Universidade de São Paulo, surgiram na década de 1990, mas já deixaram de ser publicadas.

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

21

─ umas privilegiam os textos teóricos ou de análise estrutural da

economia e da sociedade capitalista, como é o caso de Crítica

Marxista, enquanto outras são mais abertas a temas da conjuntura,

como são os casos de Margem Esquerda e Outubro. Em todas elas,

contudo, podemos destacar duas características importantes.

Primeiro, como já afirmamos, a dependência frente ao aparelho

universitário do Estado brasileiro. Os intelectuais que organizam

essas revistas são, na sua quase totalidade, professores universitários

e o público leitor dessas publicações é, também,

fundamentalmente, o público universitário. Isso é verdadeiro

mesmo para revistas como Outubro, que tem vínculos com o

Partido Socialista dos Trabalhadores Unificados (PSTU), e a Novos

Temas, que é vinculada indiretamente ao Partido Comunista

Brasileiro (PCB). Em segundo lugar, essas publicações trazem pouca

coisa sobre a obra de Marx. Predominam a análise da sociedade

capitalista, da conjuntura e, quando se trata de teoria,

predominam análises da obra de teóricos marxistas, como Gramsci

e Lukács, e de temas e polêmicas referentes aos diferentes

marxismos do século XX e dos debates que dividiram essas

correntes. Essas duas características marcam a nova vaga de

estudos marxistas no Brasil: dependência frente ao aparelho

universitário e foco do trabalho teórico, não na obra de Marx, mas

sim nas correntes marxistas do século XX.

Pelas razões apontadas, essa nova fase de valorização do

marxismo difere da fase anterior de estudos marxistas no Brasil. De

fato, nas décadas de 1930, 1940 e seguintes, quando a divulgação

da obra de Marx ganhou força no Brasil e quando a produção dos

marxistas brasileiros se tornou mais significativa, boa parte dessa

produção dava-se nos aparelhos culturais vinculados ao Partido

Comunista Brasileiro, não nas universidades. Podemos afirmar que o

marxismo só chegou à universidade quando, no final da década

de 1950, passou a se reunir o conhecido grupo de estudos de O

Capital, coordenado por José Arthur Giannotti na USP. Além de

correr em grande medida fora da universidade, a produção

teórica marxista era focada na obra do próprio Marx. No que

tange às análises históricas, econômicas e sociais, essa foi a fase

em que os marxistas brasileiros, também diferentemente daquilo

que predomina nas pesquisas marxistas atuais, dedicaram-se à

análise da natureza da sociedade brasileira – escravista? feudal?

capitalista? – e do processo de revolução burguesa no Brasil.

Destacaram-se nessa época os trabalhos de Caio Prado Jr., Nelson

Werneck Sodré, Florestan Fernandes, Luiz Pereira, Jacob Gorender,

Roberto Schwartz, José Arthur Giannotti, Ruy Fausto e muitos outros.

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

22

PUBLICAÇÃO DE OBRAS DE MARX E SOBRE MARX

Voltemos ao período atual. A edição de obras de Marx

também ganhou um novo alento no Brasil. Esse ponto merece um

pequeno retrospecto histórico para informar o leitor.

A edição das obras de Marx e de Engels no Brasil é

deficiente, tanto no que respeita à quantidade de obras

publicadas quanto no que respeita à qualidade das traduções.

Obras importantes desses autores ainda não foram traduzidas ou só

o foram muito recentemente e muitas dessas edições se valeram

de outras traduções e não das obras originais. Consideremos, como

exemplos, a história das edições brasileiras de O Capital, a obra

magna de Marx, e a história das edições de O Manifesto do Partido

Comunista, texto de formação de gerações de militantes

comunistas em todo o mundo. Apenas em 1944, O Capital

apareceu no mercado editorial brasileiro na forma de uma edição

resumida, acompanhada de um estudo de Gabriel Deville –

Edições Cultura, São Paulo. A primeira edição completa de O

Capital e traduzida diretamente do alemão veio à luz apenas no

ano de 1960 graças à iniciativa da editora Civilização Brasileira do

Rio de Janeiro. Em 1986, a editora Abril lançou uma nova tradução

da obra maior de Karl Marx. Quanto ao Manifesto do Partido

Comunista, a sua primeira edição surgiu, salvo engano, apenas em

1945, pela Editora Horizonte da cidade do Rio de Janeiro. Esse texto

teve, no mesmo ano, uma edição publicada pelas Edições

Populares com introdução histórica de D. Riazanov e numerosos

documentos apendiculares, inéditos, inclusive os Estatutos da Liga

dos Comunistas e um estudo crítico comparativo das I, II e III

Internacionais. Depois disso, o Manifesto voltou a aparecer nas

Obras Escolhidas de Karl Marx e de F. Engels, publicadas pela

Editora Vitória, do Rio de Janeiro (José Nilo Tavares 1983: pp. 121-

123). A partir da década de 1970 e, principalmente nas décadas

de 1990 e 2000, o Manifesto teve inúmeras novas edições.

Hoje, duas editoras que têm dado destaque para

publicação de textos de Marx nos seus catálogos são as editoras

Boitempo e Expressão Popular. A Boitempo tem privilegiado a obra

de juventude de Marx (Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, A

Questão Judaica, A Sagrada Família, Manuscritos Econômicos-

Filosóficos), ou de seus escritos da segunda metade dos anos

1840(Ideologia Alemã, Miséria da Filosofia, Manifesto Comunista). A

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

23

Expressão Popular não se detém em nenhuma fase específica da

obra de Marx, publicando desde a Questão Judaica e o Manifesto

Comunista (numa edição popular) até As Lutas de Classe na

França, O 18 Brumário de Luís Bonaparte, Trabalho assalariado e

capital, Salário, preço e lucro, Contribuição à crítica da economia

política.

Nesses últimos 15 anos de revitalização do marxismo no

Brasil, foram publicados aproximadamente trinta livros que trataram

diretamente da obra de Marx, em grande parte resultados de

pesquisas universitárias, e, em destaque, oriundos das faculdades

de filosofia. Destacam-se dentre essas publicações os livros de

Francisco Teixeira, Pensando com Marx: uma leitura crítico-

comentada de O Capital (1995), Carlos Henrique Escobar, Marx,

filósofo da potência (1996), Jorge Grespan, O negativo do Capital.

O conceito de crise na crítica de Marx à economia política (1998),

Marcio Bilharinho Naves, Marx – ciência e revolução(2000), Jesus

Raniere, A câmara escura. Alienação e estranhamento em Marx

(2001), Ruy Fausto, Marx: Lógica &Política - Tomo III (Investigação

para uma reenstituição do sentido da dialética(2002), Celso

Frederico,O jovem Marx:1843-1844 - As origens da ontologia do ser

social(2009), Jose Chasin, Marx:estatuto ontológico e resolução

metodológica (2009), Hector Benoit/Jadir Antunes, Crise: o

movimento dialético do conceito de crise em O capital de Marx

(2009), e a coletânea organizada por Armando Boito, Caio Navarro

de Toledo, Jesus Raniere e Patrícia Tropia A obra teórica de Marx –

atualidade, problemas e interpretações (2000), que publicou os

trabalhos apresentados no I Colóquio Marx-Engels de 1999. Apesar

de não tratar principalmente da obra de Marx, mas do marxismo

no Brasil, merece destaque a obra coletiva História do Marxismo no

Brasil. Esse trabalho, publicado em seis volumes, reuniu dezenas de

autores sob a coordenação de João Quartim de Moraes, Daniel

Aarão Reis, Marcos Del Roio e Marcelo Ridenti. Também a

republicação das obras de autores marxistas como Caio Prado Jr.,

Nelson Werneck Sodré e Florestan Fernandes tem sido uma marca

no campo editorial nesse contexto de revitalização do marxismo.

UMA QUESTÃO PARA ENCERRAR

O crescimento do marxismo no interior do aparelho

universitário pode ser explicado pela situação atual e recente da

sociedade brasileira. O Brasil possui um aparelho universitário

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

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grande, com centenas de cursos de pós-graduação financiados

pelo Estado e que reúne dezenas de milhares de professores,

pesquisadores e estudantes. Muitos desses universitários são de

origem popular. Mas, o Brasil não possui uma forte tradição de

organização partidária de massa da classe operária. O PCB

aproximou-se dessa característica nas décadas de 1940 e 1950,

mas, logo, foi jogado na clandestinidade. O Partido dos

Trabalhadores (PT) também se aproximou do perfil de um partido

operário de massa, mas, desde seu nascimento, sua tendência

majoritária foi indiferente ou mesmo hostil ao marxismo. Um tema

importante a ser analisado seria verificar o quanto a inserção

universitária influi nas características da fase atual de recuperação

do marxismo no Brasil.

Alguns títulos publicados no Brasil nos últimos quinze anos

sobre a obra de Karl Marx:

BENOIT, Alcides Hector e ANTUNES, Jader. Crise: o movimento

dialético do conceito de crise em O capital de Marx. São

Paulo: Tykhe, 2009.

BOITO, Armando; TOLEDO Caio Navarro de; RANIERE Jesus; TROPIA,

Patrícia (orgs.), A obra teórica de Marx – atualidade,

problemas e interpretações.São Paulo, Editora Xamã, 2000.

CHASIN Jose. Marx: estatuto ontológico e resolução metodológica.

São Paulo, Boitempo, 2009.

COUTINHO, Mauricio Chalfin. Marx: Notas sobre a Teoria do Capital.

São Paulo: Hucitec, 1997.

ESCOBAR, Carlos Henrique, Marx trágico: o marxismo de Marx. Rio

de Janeiro Ed. Taurus, 1993.

________________________, Marx, filósofo da potência. Rio de Janeiro,

Editora Taurus, 1996.

FAUSTO, Ruy, Marx: Lógica &Política - Tomo III (Investigação para

uma reconstituição do sentido da dialética). São Paulo:

Editora 34, 2002.

FREDERICO, Celso, O jovem Marx: 1843-1844 – as origens da

ontologia do ser social. São Paulo, Ed. Expressão Popular,

2009.

Page 26: Marxismo&Ciências Humanas-2011

MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

25

________________ e TEIXEIRA, Francisco José Soares. Marx no século

XXI. São Paulo: Cortez, 2008.

GIANNOTTI, José Arthur, Certa herança marxista. São Paulo, Cia.

das Letras, 2002.

GRESPAN, Jorge, O negativo do capital. O conceito de crise na

crítica de Marx à economia política. São Paulo: HUCITEC,

1998.

MELO, Fernando Jader de Magalhães, 10 Lições Sobre Marx. Rio de

Janeiro, Vozes, 2009.

MELLO, Alex Fiúza de. Marx e a globalização. São Paulo, Boitempo,

1999.

MORAES, João Quartim; DEL ROIO, Marcos; REIS, Daniel Aarão;

RIDENTI, Marcelo. História do Marxismo no Brasil. Campinas,

Editora da Unicamp, 2007, 3a edição.

NAVES, Marcio Bilharinho. Marx – ciência e revolução. São

Paulo/Campinas, Ed. Moderna/Editora da Unicamp, 2000.

PAULA, João Antonio de Paula, O ensaio geral – Marx e a crítica da

economia política (1857-1858). Belo Horizonte, Ed. Autêntica,

2010.

POGREBINSCHI, Thamy. O enigma do político. Marx contra a

política moderna. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.

RANIERI, Jose. A câmara escura. Alienação e estranhamento em

Marx. São Paulo: Boitempo editorial, 2001.

ROMERO, Daniel, Marx e a técnica: um estudo dos manuscritos de

1861-1863. São Paulo, Ed. Expressão Popular, 2005.

SADER, Emir. Estado e política em Marx. São Paulo: Cortez, 1993.

SAMPAIO, Benedicto Arthur/ FREDERICO, Celso, Dialética e

materialismo - Marx entre Hegel e Feurbach. Rio de Janeiro:

Editora: UFRJ, 2006.

TAVARES, José Nilo, Marx, o socialismo e o Brasil. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 1983.

TEIXEIRA, Francisco José Soares. Pensando com Marx: uma leitura

crítico-comentada de O Capital. São Paulo: Ensaio, 1995.

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

27

O marxismo e os impasses do

capitalismo contemporâneo

João Quartim Moraes6

Explicito liminarmente a hipótese em que se apóia a

presente intervenção: sem a atualização teórica empreendida por

Lênin a partir de 1916, o marxismo não explicaria o curso histórico

do século XX. Corremos o risco de perturbar os leitores talmúdicos

do Capital e de outros textos fundadores. Mas dirigimo-nos a quem

está interessado em analisar e pensar e não em repetir liturgias.

Que entender por impasses do capitalismo

contemporâneo? À esquerda, não faltam os que, embora

reconhecendo os aspectos perversos da nova ordem liberal-

imperial, aceitam caracterizá-la como "globalização". Imaginam

com isso estar sendo lúcidos e modernos. Talvez a mais séria

tentativa, entre nós, de conferir ao termo globalização um estatuto

teórico foi a empreendida em Poder e dinheiro, obra coletiva

publicada em 1997 (FIORI; TAVARES, M, 1997). Já na Apresentação,

não assinada, deparamo-nos com o argumento de que a despeito

de “sua visível imprecisão conceitual[...] poucas palavras possuem

tamanha força política neste final de século XX” (FIORI; TAVARES, M,

1997: 7).Sem dúvida, é preciso levar em conta o valor de troca das

palavras, tal como elas circulam no senso-comum. Mas para

analisá-las em vez de adotá-las sem crítica. Globalização, por sua

intrínseca ambigüidade e suas conotações falaciosamente

“positivas”, engana muitos. Para ficarmos em nosso país, a

economia colonial brasileira surgiu sob domínio português,

cultivando uma planta asiática (a cana de açúcar) com escravos

trazidos em escala crescente da África, sob controle do capital

6 João Quartim de Moraes é professor titular aposentado do departamento de Filosofia da Unicamp e

membro do Conselho Editorial da revista Crítica Marxista.

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

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mercantil europeu. É possível maior globalização do que essa, que

remonta ao século XVI?

O argumento de que também o termo imperialismo,

quando surgiu, em meados do século XIX, pertencia ao “jargão

jornalístico”, tornando-se, porém, “depois da obra clássica de John

Hobson”, “peça teórica essencial da economia política do século

XX” (FIORI; TAVARES, M, 1997: 7), esquece uma diferença, que não

é pequena,entre os dois termos. Imperialismo não engana

ninguém. É domínio baseado na força. Claro que seus partidários

assumidos, como o célebre Disraeli, atribuíam-lhe missão civilizatória

(Bush e a OTAN não inventaram nada). Assim como os europeus

aniquilaram as sociedades autóctones do Novo Mundo para

catequizá-las (“a good indian is a dead indian”, diria mais tarde o

general Custer), o Pentágono e a OTAN, ditando o argumento da

força no mundo “globalizado”, arrasam países rebeldes por motivos

“humanitários”, para “libertar o Kuait”, impedir “uma limpeza étnica

no Kosovo”, “combater o terrorismo internacional”, implantar o que

eles chamam “democracy”7 etc.

Que não basta invocar a força de uma idéia para levar a

sério, ainda que parcialmente, sua pretensão de objetividade,

comprova-o o apoio maciço que recebeu na Alemanha

"civilizada" a idéia hitleriana da superioridade racial dos povos

"arianos".A idéia de "globalização", até por não se apoiar em

doutrinas intrinsecamente odiosas como o nazismo, difundiu-se com

mais facilidade. O termo serve para ocultar não somente a

permanência, mas também a furibunda exacerbação da opressão

imperialista numa situação internacional caracterizada não mais

pelo predomínio do confronto entre o bloco soviético e o

"Ocidente" e sim pelo predomínio do bloco das grandes potências

capitalistas sob hegemonia estadunidense, cujo braço militar é a

OTAN.

É essa a maior mistificação da ideologia da "globalização":

sugerir que o imperialismo foi ultrapassado e que, com a

derrubada do muro de Berlim, hoje viveríamos num mundo sem

muros nem fronteiras. Com aquele muro, porém caíram apenas as

barreiras estatais que separavam o bloco da OTAN do bloco

soviético. Dois outros muros, muito mais cruéis e mortíferos do que o

7 Na periferia do imperialismo, quando o povo ouve um gringo do Pentágono cacarejar “democracy, democracy”, vai logo correndo se entocar, porque os mísseis costumam vir logo atrás. Em torno de 500

mil crianças morreram de fome no Iraque, antes da invasão e ocupação por tropas do império norte-

americano, por conta do embargo econômico contra aquele país. Madeleine Albright, secretária de Estado do governo de Clinton, quando perguntada sobre o fato respondeu “que é um preço que

pagamos pela democracia”.

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

29

de Berlim, foram respectivamente construídos pelos imperialistas

estadunidenses e por seus sócios facho-sionistas.

A construção do muro do México foi decidida pelo então

presidente Clinton, em julho 1994, no âmbito do plano intitulado

"prevention through deterrence", que colocou a fronteira entre os

dois países, do Pacífico ao Atlântico, sob forte e implacável

vigilância policial. Alguns meses antes, em 4 de janeiro de 1994, o

presidente mexicano Carlos Salinas, saqueador contumaz dos

fundos públicos, tinha assinado com Clinton o tratado que instituía

o “Acordo de livre comércio da América do Norte” (NAFTA em

inglês), cuja lógica consistia na colaboração entre os tubarões e as

sardinhas. Ironia patética, mas funcional: para os capitalistas, total

liberdade de investir onde os lucros são maiores, mas para os

trabalhadores mexicanos, que ganhavam menos de 5 dólares

numa jornada de trabalho de 9 horas, um grande muro para

impedi-los de trabalhar nos Estados-Unidos, onde poderiam ganhar

5 dólares por hora. Naquele momento, cerca de 8 milhões de

"chicanos", dos quais uns 3 milhões em situação ilegal, tinham

conseguidochegar ao outro lado da fronteira, indo somar-se aos 12

milhões de mexicanos de origem nascidos nos Estados-Unidos.

“Latinos" demais, querendo ganhar salários de «primeiro mundo».

O muro da Palestina, cuja edificação começou em 2002,

por ordem do então primeiro ministro israelense, Ariel Sharon (um

dos mais consumados genocidas de nossa época) foi condenado

pelo Tribunal Internacional de Justiça de Haia, em 2004, porque

corta terras ocupadas ilegalmente e isola cerca de 450.000

palestinos. Infelizmente, graças ao apoio irrestrito da Casa Branca e

do Pentágono, Israel ignora cinicamente as condenações que o

atingem e continua a recorrer impunemente ao terrorismo de

Estado.

Há quem, diante da evidente proliferação de muros e de

fronteiras que discriminam sobretudo os pobres da periferia, fale em

globalização imperialista ou em imperialismo globalizado8. Mas isso

só serve para confundir ainda mais a terminologia. Tampouco

ajuda a esclarecer a especificidade do capitalismo

contemporâneo constatar, como fez J. L. Fiori em Poder e dinheiro,

que “a idéia de globalização reina inconteste no discurso das elites

mundiais” e que, portanto, não é provável que sua força “se deva

apenas à capacidade de falsificação e de convencimento dos

8Noções superficiais ou totalmente abstratas como estas prestam-se aos mais diversos usos ideológicos.

Muitos franceses, com cosmético patriotismo léxico, preferemdizer “mondialisation”, para não usar o “globalization” made in USA. Mas a diferença semântica entre um mundo globalizado e um globo

mundializado é a mesma que entre seis e meia dúzia.

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

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meios de comunicação”. Segundo ele, com efeito, o termo opera

uma “inversão ideológica” que, “como tal realiza uma inversão da

própria realidade, desvelando e ocultando ao mesmo tempo

aspectos do mundo contemporâneo que são parcialmente reais”9.

Para não dispersar o argumento, deixemos de lado essa curiosa

categoria de realidade parcial e admitamos que a expressão

“elites mundiais” equivale àquilo que o marxista estadunidense

James O’Connor, menos nebulosamente, designa por “classe

dominante internacional”10. Mas de qual realidade a

“globalization” seria a expressão invertida? O que ela desvela e o

que ela oculta e mistifica?

Já tínhamos adiantado acima que ela camufla o

imperialismo de nosso tempo: sustentar que os interesses nacionais

estariam ultrapassados, é excelente maneira de servir os interesses

nacionais dos Estados Unidos. O que ela desvela é muito pouco:

inflexões no capitalismo internacional que resultam, no essencial,

de decisões impostas pelo imperialismo estadunidense ao sabor de

seus próprios interesses nacionais. Assim, em 1979, Paul Volcker, que

acabara de assumir o comando do Federal Reserve, não tendo

obtido apoio de seus sócios do FMI para fortalecer o dólar (cuja

taxa de inflação se aproximava de 15% ao ano), tomou

unilateralmente a decisão de elevar brusca e brutalmente a taxa

de juros, para atrair os dólares que estavam “flutuando” nas mãos

dos especuladores do mundo inteiro. Esta medida desencadeou

tremendo efeito recessivo, que se propagou por todo o sistema

capitalista internacional e, ainda mais duramente pela periferia,

provocando na América Latina, com a chamada “crise da dívida

externa”, duas décadas de retrocesso econômico. Ao influxo do

estímulo cumulativo da hiperbólica elevação da taxa de juros

estadunidenses e da “desregulamentação” neoliberal11 do

mercado de capitais, massas crescentes de capital-dinheiro,

guiadas pela rentabilidade das aplicações ponderada pela “taxa

de risco”, autonomizaram-se em “mercados financeiros” a cujas

oscilações ficariam subordinadas a riqueza e, sobretudo a miséria

da grande maioria da humanidade. Tal é a origem da

impropriamente chamada globalização financeira.

9 J. L. Fiori, “Globalização, hegemonia, império”, (FIORI; TAVARES, M, 1997: 88).

10 Analisamos mais adiante as teses de O’Connor sobre a teoria do imperialismo.

11O prefixo neo justifica-se plenamente para designar esse liberalismo reacionário, que contrariamente

ao velho liberalismo do século XIX, que se opôs também aos privilégios aristocráticos e ao obscurantismo eclesiástico, combate numa só frente contra as conquistas democráticas da classe

operária e dos trabalhadores assalariados em geral.

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

31

Impropriamente: desde que, no final do século XIX, a

concentração da produção encontrou sua forma jurídica

adequada nas sociedades por ações, consolidou-se a separação

entre a propriedade do capital e o comando do processo

produtivo, transformado em administração de capital alheio. A

possibilidade de negociar ações nas Bolsas, ao lado dos demais

papéis em circulação (obrigações, títulos do Estado etc.)

aprofundou essa separação, que no início do século XX já havia

assumido as dimensões assinaladas por Lênin, que compreendendo

a importância das análises do inglês Hobson e do marxista alemão

Hilferding (mais tarde assassinado pelos nazistas), já discernira a

lógica objetiva que conduzia à ditadura planetária do capital

financeiro:

“O imperialismo é uma imensa

acumulação de capital-dinheiro num pequeno número de países[...]. Daí o extraordinário desenvolvimento da classe ou, mais exatamente, da camada dos que vivem de rendas financeiras (rentiers)[...], totalmente alheios à participação numa empresa qualquer e cuja profissão é a ociosidade. A exportação de capitais, uma das bases econômicas essenciais do imperialismo[...] confere uma chancela de parasitismo ao conjunto do país vivendo da exploração do trabalho de alguns países e colônias d’além-mar”12.

A expansão do parasitismo financeiro foi contida, por um

longo período, pela correlação internacional de forças instaurada

pela revolução socialista de outubro 1917 e mais ainda pelo

equilíbrio político-estratégico resultante da vitória soviética sobre o

nazismo, que permitiu à classe operária dos Estados capitalistas

conquistar os direitos sociais consubstanciados no chamado

“Welfare State”. Mas em 1979, mesmo ano em que Paul Volcker

chamou os dólares de volta para Wall Street oferecendo juros

altíssimos, a política econômica preconizada por Hayek e consortes

da “escola de Chicago” (já aplicada experimentalmente no Chile,

sob a bota de Pinochet, pelos "Chicago-boys"), foi posta em

aplicação na Inglaterra pela ultra-reacionária Margaret Thatcher,

que assumiu fria e explicitamente a “obra” de destruição do

12 (LÉNINE, 1960: 290). No capítulo VIII de Imperialismo, estágio superior do capitalismo: “O

parasitismo e a putrefação do capitalismo”.

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

32

“Welfare State”, promovendo o retrocesso à situação social da

“Belle Époque”. Logo em seguida, em 1980, quando o macartista R.

Reagan chegou à presidência do Império estadunidense, a "nova

economia" se impôs no centro hegemônico do capitalismo

internacional (Nos Estados Unidos, é verdade, havia menos a

demolir: o “sonho americano” de ficar mais rico que o vizinho

nunca abrira espaço para amplas conquistas sociais dos

trabalhadores).

A derrocada soviética de 1989-1991 facilitou novos ataques

ao “Welfare State” e a “desregulamentação” generalizada dos

movimentos do capital especulativo abriu caminho para a

proliferação (aliás “alavancagem”) de títulos cada vez mais

fictícios nas mãos dos sedentos morcegos da especulação

financeira, sugando seu quinhão de juros na massa da mais-valia13.

Entrementes, tendo domado a inflação e reanimado o

dólar, o Federal Reserve foi gradualmente baixando os juros, de

modo a reanimar a carcomida economia estadunidense: ao longo

dos anos 1990, amparado pelo êxito da contra-revolução

capitalista em curso, ocorreu um novo ciclo de expansão dos

negócios, interrompido no início de 2001, mas retomado em 2002.

Da fórmula desse novo surto faziam parte (a) o crescimento

econômico acelerado de países da Ásia oriental, sobretudo da

China, mas também da Índia e do Vietnã; (b) a acumulação de

um colossal déficit externo estadunidense, “financiado” pelo poder

de imprimir dólares; (c) o endividamento dos consumidores

estadunidenses, alimentado pela especulação no mercado de

ações e dos negócios imobiliários.

O baile dos vampiros durou até 2008, quando a

desmesurada “bolha” dos “créditos podres” conduziu Wall Street à

bancarrota. O apelo aos fundos públicos para atenuar os efeitos

dessa grande bancarrota nos põe diante das questões decisivas

sobre o novo curso do capitalismo internacional. Sem dúvida, Bush

e consortes só violaram seu fundamentalismo mercadológico

porque foram forçados pelos fatos. Mas ao violarem as leis do

mercado para salvar o mercado, eles demonstraram na prática

que, contrariamente ao credo do catecismo neoliberal, o

13 Vale notar que a primeira grande “desregulamentação” remonta à ruptura dos acordos de Bretton

Woods, no início dos anos 1970, que levou os países capitalistas dominantes a adotar o regime de câmbio flutuante. A principal conseqüência foi a busca de instrumentos financeiros suscetíveis de

contrabalançar mudanças na taxa de câmbio e em outras variáveis afetando o cálculo de rentabilidade

do “big business”. Daí o surgimento dos “derivativos financeiros”: instrumentos de negociação para liquidação futura cujos preços são determinados em relação a ativos financeiros (geralmente

negociados no mercado à vista), ditos ativos subjacentes, dos quais eles "derivam".

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

33

movimento do capital não tende à auto-regulação e sim à crise e

ao bloqueio das forças produtivas.

Sintomaticamente, o termo globalization, a despeito de sua

“tamanha força política”, foi engavetado pelos ideólogos do

“paradigma neoliberal”, que em sua estulta e míope euforia os

ideólogos tinham erigido em “fim da história”. Quanto aos que na

esquerda levaram o termo a sério, seria bom que oferecessem

argumentos mais consistentes do que os de J. L. Fiori. Até que o

façam, fica a pergunta: como uma tão grotesca impostura

ideológica logrou obter tanto êxito? O marxismo oferece o princípio

de explicação: as idéias dominantes são, normalmente e

sobretudo em períodos de refluxo das esperanças revolucionárias,

como ainda é o atual, as idéias das classes dominantes.

Nossa tese fundamental sobre o capitalismo

contemporâneo se desdobra, pois em três proposições: (a) ele só

pode ser compreendido a partir da teoria do imperialismo; (b) esta

deve ser atualizada; (c) o termo globalization é um contrabando

ideológico neoliberal que apenas mistifica a questão. A proposição

(c) terá ficado clara. As duas primeiras exigem um comentário.

(a) A determinação básica principal dessa fórmula está

expressa no título da obra célebre de Lênin, Imperialismo,estágio

superior do capitalismo. Lembremos rapidamente as teses que a

fundamentam. São cinco as principais transformações do modo

capitalista de produção chegado à maturidade em escala

internacional: (1) concentração do processo produtivo, gerando os

monopólios; (2) predomínio do capital bancário sobre o industrial,

formando a oligarquia financeira; (3) predomínio da exportação de

capitais sobre a de mercadorias; (4) divisão econômica do planeta

entre os trustes; (5) conclusão da divisão territorial do planeta entre

as grandes potências imperialistas.

Há uma grande audácia teórica nesta síntese. Imperialismo

é um termo ausente do vocabulário de Marx e de Engels: os

processos que o configuraram só se tornaram plenamente claros

no final do século XIX. Marx emprega o termo Império num sentido

inteiramente diferente, próximo ao etimológico: o termo latino

imperium designa o poder político oriundo da força das armas (o

grande Bonaparte e o espertalhão que se dizia seu sobrinho).

Também o termo colonialismo não figura no vocabulário dos dois

grandes fundadores do materialismo histórico. James O’Connor

notou a esse propósito que além do breve capítulo final do livro I,

são muito raras as referências do Capital à economia do

colonialismo (O’CONNOR, 1970: 107). Na verdade, o “breve

capítulo” trinta e três não trata do colonialismo, mas como indica

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

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seu título, da “teoria moderna da colonização”. Na nota que

acompanha o título, Marx esclarece: “Tratamos aqui de colônias

reais, solos virgens colonizados por imigrantes livres. Os Estados

Unidos são ainda, falando economicamente, apenas uma colônia

da Europa. Também pertencem a essa categoria velhas

plantações como aquelas em que a abolição da escravidão

alterou as condições anteriores. Acrescenta no corpo do texto que

há colônia “quando a maior parte do solo é ainda propriedade

pública, e cada um que nele se estabelece pode por causa disso

tornar parte dele sua propriedade privada e seu meio individual de

produção, sem impedir os que vêm depois nela se estabelece de

efetuar a mesma operação”.

Com efeito, nos Estados Unidos, cujo território não foi, como

entre nós, monopolizado por donatárias e sesmarias, o acesso à

terra estava aberto, em princípio, a todos os colonos. A

abundância de terras tomadas aos índios favorecia a constituição

de uma larga classe de camponeses independentes. As

companhias de comércio e os grandes proprietários criaram toda

sorte de dificuldades à expansão dessa classe nascente, sem lograr

entretanto atrofiá-la. Daí a insistência de ideólogos como Edward

Wakefield, em meados do século XIX, para que na Austrália e

outras colônias de Sua Majestade britânica se cobrassem altos

preços para as concessões de terra de maneira a delas excluir os

colonos pobres, obrigando-os assim a trabalhar para os capitalistas.

Comentando ironicamente em O Capital as desditas de um certo

Mr. Peel (que levou consigo da Inglaterra para Swan River, na Nova

Holanda, víveres e meios de produção no valor de 50.000 libras

esterlinas), referidas "em tom patético" por Wakefield, Marx

constata que o economista inglês "descobriu nas colônias que a

posse de dinheiro, de meios de subsistência, de máquinas e de

outros meios de produção não torna um homem de modo algum

um capitalista, salvo se dispuser de um complemento preciso, o

assalariado, um outro homem, enfim, forçado a se vender

voluntariamente" e portanto que "em vez de ser uma coisa, o

capital é uma relação social entre pessoas da classe operária".

Com efeito, os 3.000 indivíduos dessa classe, que Mr. Peel também

transportara para o Novo Mundo , desapareceram sem se

despedir, deixando-o "sem sequer um doméstico para fazer-lhe a

cama ou buscar água no riacho". O meticuloso empreendedor

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

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colonial esquecera-se apenas de levar em suas bagagens "as

relações de produção inglesas"14.

(b) Num estudo publicado em 1970, James O’Connor

ponderou que as objeções dirigidas à teoria do imperialismo, tal

como desenvolvida por Lênin, bem como a Hobson (em quem o

grande marxista russo se apoiou criticamente), assim como as

visões alternativas que foram propostas, “constituem menos uma

nova teoria do que um catálogo de fatos históricos não

inteiramente consistentes com as teorias anteriores” (O’CONNOR,

1970: 111). O que, evidentemente, não excluía a necessidade de

atualizá-la. Para tanto, cumpria identificar, dentre os fatos históricos

posteriores à síntese de Lênin, aqueles que configuravam novas

características a serem integradas na teoria do imperialismo,

distinguindo-os dos fatos novos que afetaram as características

enunciadas em Imperialismo, estágio superior do capitalismo, sem,

contudo modificar-lhes o conteúdo essencial.

Nesta perspectiva, O’Connor propôs uma síntese, também

em cinco características, como fizera Lênin, do “imperialismo

contemporâneo”: (a) prosseguimento da concentração e

centralização do capital e a integração da economia capitalista

mundial nas estruturas das gigantescas corporações multinacionais

de base estadunidense [...] e a aceleração da mudança

tecnológica sob os auspícios destas corporações; (b) abandono do

“livre” mercado internacional [...]; (c) participação ativa do capital

estatal no investimento internacional; subsídios e garantias ao

investimento privado [...]; (d) consolidação de uma classe

dominante internacional constituída na base da propriedade e

controle das corporações multinacionais e o concomitante declínio

das rivalidades nacionais promovido pelas elites nacionais nos

países capitalistas avançados e internacionalização do mercado

mundial de capitais pelo Banco Mundial e outras agências da

classe dominante internacional; (e) intensificação de todas estas

tendências provocada pela ameaça do sistema socialista mundial

sobre o sistema capitalista mundial (O’CONNOR, 1970: 121).

14O Capital, livro I, capítulo XXXIII, "A teoria moderna da colonização". Citamos a partir da primeira edição em inglês, de 1887, Capital Book One: The Process of Production of Capital Moscow. A

tradução de Samuel Moore and Edward Aveling foi revista por Engels, o que lhe confere o status de

texto original. A obra foi reeditada na USSR em 1954 (Moscou, Progress Publishers). Versão Online: Marx/Engels Internet Archive (marxists.org) 1995, 1999. Consultamos também a tradução de M.

Rubel, Karl Marx, Oeuvres, I, Paris, Bibiothèque de la Pléiade, 1965, p.1226. Quanto ao fundo, não se

pode desejar elucidação mais límpida do próprio conceito de relações de produção. O texto de Wakefield citado por Marx é England and America. A comparison of the social and political state of

both nations, 2 volumes, Londres, 1833, vol.II, p.33.

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

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Relativamente ao momento histórico da teoria de Lênin, a

grande mudança concerne à hegemonia estadunidense.

O’Connor apenas registrou o que se tornara evidente desde 1947,

com o início da “guerra fria”: as potências imperialistas européias

abrigaram-se sob a tutela estadunidense, adocicada pelos dólares

do Plano Marshall. No plano interno as conquistas sindicais da

classe operária contrabalançaram pela legislação trabalhista, pelo

direito aos serviços públicos de qualidade na saúde, na educação,

nos transportes coletivos,etc. os efeitos mais perversamente anti-

sociais da lógica do lucro. Enquanto perdurou a “ameaça do

sistema socialista mundial”, o capitalismo absorveu as terapias

reformistas para corrigir as "falhas do mercado" pela

regulamentação social.

Teria a super-potência estadunidense confirmado a

tendência ao “ultra-imperialismo” apontada por Kautski em Neue

Zeitde 30-4-1915:

“Não poderia a política imperialista atual ser substituída por outra nova, ultra-imperialista, que em vez da luta entre os capitais financeiros nacionais entre si, estabelecesse a exploração comum do mundo todo pelo capital financeiro unido internacionalmente? Esta nova fase do capitalismo, de todo modo, é concebível. É realizável? Não existem ainda as premissas indispensáveis para decidir a questão” (Apud. LÉNINE, 1960: 316-7).

Lênin criticou Kautski longamente em Imperialismo, estágio

superior do capitalismo, sustentando que as alianças inter-

imperialistas são sempre tréguas, porque “para o imperialismo é

substancial a rivalidade de grandes potências em sua aspiração à

hegemonia” (LÉNINE, 1960: 290). Esta tese valeu até o final da II

grande guerra imperialista. A partir de 1947, perante o poderio do

comunismo soviético, o capitalismo europeu uniu-se num bloco

imperialista sob hegemonia ianque.

A síntese de O’Connor envelheceu. Em parte por causa de

seus pontos fracos, em parte pelas conseqüências da ruptura, em

favor do bloco capitalista, do equilíbrio estratégico EUA/URSS, que

reforçou o cartel político-militar do bloco agrupado na OTAN. Sobre

as funestas conseqüências da derrocada da URSS,

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

37

acrescentaremos apenas que não por acaso o sucesso do termo

globalization remonta aos escombros do bloco soviético. Esse é seu

sentido mais forte: o brado de vitória da contra-revolução

capitalista.

A tese mais discutível de O’Connor é a alegada

“consolidação de uma classe dominante internacional”. Seu

pressuposto implícito é a atrofia da função de articulação e de

condensação da dominação de classe exercida pelos Estados

nacionais. Como se Wall Street fosse possível sem o Pentágono...

Quanto a sua síntese, o principal defeito é não ter levado em conta

as revoluções de libertação nacional vitoriosas na Ásia e na África

a partir de 1949, quando triunfou a grande revolução nacional-

popular chinesa, dirigida pelo Partido comunista. Essas vitórias dos

povos coloniais permitiram a nacionalização das riquezas naturais

até então pilhadas pelo imperialismo, repondo assim em questão a

divisão econômica do planeta entre os trustes e a divisão territorial

do planeta entre as grandes potências imperialistas, quarto e

quinto traços constitutivos da síntese elaborada por Lênin. O

desastre de 1989-1991 abriu a via para um novo surto de agressões

coloniais, mas num contexto histórico em que a China se tinha

tornado uma grande potência econômica.

A grande diferença social no capitalismo contemporâneo

está no nível dos salários. Nos países imperialistas dominantes, o

salário mínimo mensal gira em torno de mil e duzentos dólares

(Estados Unidos), de mil euros (Europa ocidental) e de valores

equivalentes no Japão. Explica-se assim porque dezenas de

milhões de proletários da periferia tenham sido induzidos a buscar

trabalho nesses países onde se concentra a riqueza produzida no

mundo todo. Durante o quarto de século que seguiu o da longa

expansão do capitalismo estadunidense e oeste-europeu (este

estimulado pelos dólares do Plano Marshall), as prósperas

burguesias desses países dominantes sugaram o sangue e o suor

dos trabalhadores imigrantes.

O primeiro sinal evidente de que estavam vindo tempos

mais difíceis foi a crise monetária internacional de 1971, provocada

pela incapacidade dos Estados Unidos em garantir a

convertibilidade do dólar, isto é, de trocá-lo por seu equivalente

legal em ouro. Coube a R. Nixon, em 1973, reconhecer essa

impossibilidade, “passando o calote” (para retomar expressão dos

neoliberais, os quais evidentemente só a aplicam para os países

escorchados pelo imperialismo) no resto do mundo. Desmantelava-

se assim o sistema dito do "padrão de troca-ouro" ("gold standard

Page 39: Marxismo&Ciências Humanas-2011

MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

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exchange")15. Se fosse preciso desmentir a falácia da

"globalização", bastaria considerar que a moeda "global" do

capitalismo entrou em colapso naquele ano, que marcou o

encerramento de um ciclo longo de mais de três décadas de

expansão do capitalismo internacional16. Pouco tempo depois,

concluía-se a gloriosa luta de libertação nacional do Vietnã. Os

valentões do Pentágono abandonaram em debandada a terra em

que tinham cometido abjetos e odiosos crimes de guerra. A

hegemonia estadunidense descia a seu ponto mais baixo, no plano

econômico como no militar e, conseqüentemente, no político.

Durante o retrocesso econômico que se estendeu até o

início dos anos 90, as burguesias do mundo inteiro, seguindo o

exemplo anglo-estadunidense, assumiram o "programa máximo" da

reação neoliberal, notadamente: (a) resolver a "crise fiscal" dos

Estados capitalistas reduzindo os gastos públicos, as prestações

sociais, os serviços de interesse coletivo e as funções estatais que os

asseguravam; (b) suprimir tanto quanto possível, os direitos sociais

dos trabalhadores, para poder reduzir os impostos pagos pelos

capitalistas, aumentando-lhes os lucros; (c) privatizar empresas

estatais, arrecadando fundos para o Tesouro e propiciando belos

negócios aos investidores privados; (d) "enxugar" empregos em

todos os setores de atividade.

Essa frenética campanha neoliberal foi responsável pelo

desemprego crônico de dezenas de milhões de trabalhadores, que

atingiu prioritariamente os mais fracos e vulneráveis (turcos na

Alemanha, maghrebinos e negros na França etc.). A mão de obra

estrangeira foi empurrada para fora, como laranjas já espremidas.

O muro do México é apenas o exemplo mais sórdido e detestável

das novas barreiras policiais que foram sendo erguidas, à medida

que o "enxugamento" neoliberal reduzia drasticamente a oferta de

empregos, mesmo os mais penosos e insalubres. Essa é a causa do

15 Adotado no final da I Grande Guerra e desativado a partir de 1929, pela longa e catastrófica

depressão que seguiu o estouro da Bolsa de Nova Iorque, o "gold standard exchange" foi reativado em 1944, na famosa conferência de Bretton Woods. Nesta segunda versão, o dólar, dinheiro do Estado

capitalista tornado incontrastavelmente hegemônico, foi erigido em moeda mundial, mais exatamente,

em moeda-padrão das trocas internacionais, mediante sua equivalência fixa com o ouro. A base do sistema de Bretton Woods, com efeito, era a paridade legal do dólar com o ouro, a saber, 35 dólares= 1

onça troy= 31,1 gramas de ouro fino. O valor de um dólar correspondia, pois a 35

1,310,888 gramas

de ouro fino.

16 O ciclo ascendente do capitalismo estadunidense, após a grande depressão dos anos 30, iniciou-se,

com efeito, em 1940-1941: as guerras engendram o pleno emprego e a produção maciça de meios de destruição (Na lógica da valorização do capital, não faz diferença produzir coca-cola ou bomba

atômica).

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

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surto virulento de xenofobia e racismo na Europa ocidental, que

contaminou aqueles setores do sindicalismo que, para defender o

emprego (o deles), trocaram a luta de classes pela caça ao

imigrante. Outra não é a origem da proliferação tentacular do

neofascismo, do racismo e do neonazismo em toda a Europa.

Enquanto se alternavam, sem alternativa de fundo, políticas

neoliberais agressivas da direita e frustradas tentativas social-

democratas para executar moderadamente a mesma política de

redução dos “custos sociais” da valorização do capital em escala

mundial, aventureiros truculentos, de ambições sombrias,

prosperavam nos meios burgueses e plebeus mais afetados pelo

desemprego e pela deterioração social. Na Itália, a direita

democrata-cristã, corroída por dentro, tratou de compensar seu

desgaste político aderindo à “Forza Italia”, nome futebolístico de

um improvisado “bloco histórico” reacionário juntando, sob o

comando de Berlusconi, vulgar aventureiro e milionário corrupto,

diversos agrupamentos de extrema-direita, inclusive o neofascismo

explícito.

Aprimorar Marx é difícil. Não nos parece que a noção de

super-exploração, lançada por doutrinários da “dependência” e

do “sub-imperialismo”, ofereça uma explicação consistente para a

grande diferença entre o nível dos salários dos países dominantes e

o dos países dominados. Os argumentos em que eles se apóiam

simplesmente passam por cima da diferença entre preço e valor. A

queda do preço da força de trabalho abaixo de seu valor é

fenômeno geral no capitalismo, principalmente através do

aumento da intensidade do trabalho ou da complexidade das

aptidões exigidas do trabalhador (quadros técnicos, engenheiros

etc.), sem aumento correspondente do salário. É só consultar

publicações sindicais ou de partidos marxistas europeus para

constatar constantes denúncias da intensificação do ritmo do

trabalho nas fábricas. Na França, a denúncia das “cadences

infernales” nas linhas de montagem é recorrente.

O nervo dessa questão está na determinação dos bens que

integram o valor dos meios de consumo considerados necessários.

Essa necessidade é cultural e historicamente determinada: como

lembrava Marx, o operário inglês bebe cerveja, o francês vinho. No

auge do "capitalismo de bem-estar", ao longo do terceiro quarto

do século XX, a maioria dos trabalhadores da Europa mais próspera

tinha pleno acesso à medicina e escola pública, a uma boa rede

de transportes coletivos, além das férias e dos apetrechos

domésticos produzidos em larga escala, da geladeira à TV. Tudo

isso integra o valor da força de trabalho.

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

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Quando a derrocada do bloco soviético, debelando o

"perigo comunista", deixou à vontade a burguesia dos países

imperialistas para ampliar a ofensiva neoliberal contra as

conquistas sociais da classe operária, o nível dos salários nos países

dominantes sofreu certa erosão, mas permaneceu no patamar que

indicamos acima, muitas vezes superior ao dos países periféricos.

Essa diferença, com certeza, não se explica por oscilações

conjunturais. Expressa a desigualdade de desenvolvimento entre

centro e periferia do sistema imperialista, que por sua vez resulta de

toda a história da colonização, da pilhagem voraz das riquezas

vegetais e minerais dos continentes agredidos, da escravidão, da

indizível pobreza das massas rurais, do intercâmbio desigual etc.

Sem dúvida, nada impede falar em super-exploração para

descrever as situações em que aumenta a taxa de mais-valia. Mas

não é preciso um novo conceito para marcar a queda do preço

(salário) relativamente ao valor da força de trabalho. Ambos,

evidentemente, têm limites inferiores objetivos: a mera

sobrevivência. Entretanto, segundo alguns expositores da doutrina

da super-exploração, os mecanismos que a produzem, “ao

retirarem do trabalhador as condições necessárias para que

reponha o desgaste de sua força de trabalho [...]configuram um

modo de produção fundado na maior exploração da classe

trabalhadora”. Difícil acompanhar esse argumento. O peculiar

“modo de produção fundado na maior exploração da classe

trabalhadora”, no qual o operário não consegue repor o desgaste

de sua força de trabalho é, antes, um modo de extermínio, como

nos campos de concentração hitlerianos17.

O fato de que as mulheres costumem ganhar (salvo no setor

público) menos do que os homens para executar as mesmas

tarefas com a mesma qualificação corresponde à mais

generalizada forma de super-exploração do trabalho. Ele nos põe

diante de uma questão que remonta à aldeia neolítica e que

17 Na mesma exposição encontramos outras afirmações do mesmo gabarito: a super-exploração (ou

“maior exploração da classe trabalhadora“??), alienaria do trabalhador “o consumo estritamente necessário para conservar sua força de trabalho”; o consumo do operário seria reduzido “além de seu

limite normal” (??); “a utilização desses mecanismos (isto é, aqueles definidos por R.M.Marini,

principal pensador dessa corrente) acaba fazendo com que o trabalho “seja remunerado por baixo de seu valor” e acarretaria “o dispêndio da força de trabalho em uma proporção maior que o normal”(??).

Notemos enfim que falar em valor do trabalho (que este “seja remunerado por baixo de seu valor“) é

uma aberração do ponto de vista do marxismo e, na mais otimista das hipóteses, um retorno ao ponto de vista da teoria burguesa do valor-trabalho (Petty, Smith, Ricardo). Cf. Pedro Henrique Evangelista

Duarte e Edílson José Graciolli,“Da relação entre a superexploração do trabalho e a política sindical no

Brasil: notas para uma discussão” (Disponível em http://www.ifch.unicamp.br/cemarx/coloquio/Docs/gt5/Mesa2/da-relacao-entre-a-superexploracao-do-

trabalho-e-a-politica-.pdf)

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

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Engels foi o primeiro a analisar em profundidade, a opressão da

mulher pelo homem. Para explicar a persistência dessa opressão, a

despeito dos inegáveis progressos conquistados pelos movimentos

feministas da segunda metade do século XX, a noção de super-

exploração poderá ser útil, mais além das modas intelectuais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DUARTE, Pedro Henrique Evangelista; GRACIOLLI, Edílson José.“Da

relação entre a superexploração do trabalho e a política

sindical no Brasil: notas para uma discussão”.6° Colóquio

Internacional Marx e Engels. Disponível

emhttp://www.ifch.unicamp.br/cemarx/coloquio/Docs/gt5/

Mesa2/da-relacao-entre-a-superexploracao-do-trabalho-e-

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Moscow. Marx/Engels Internet Archive (marxists.org) 1995,

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LÉNINE, V., Oeuvres, Tomo 22. Paris-Moscou: Editions Sociales-

Editions du Progrès, 1960.

O’CONNOR, James. “The meaning of economic imperialism”, in

RHODES, Robert I (org.) Imperialism and underdevelopment,

Londres e Nova Iorque, Monthly Review Press, 1970.

Page 43: Marxismo&Ciências Humanas-2011
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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

43

A recepção de Rosa Luxemburgo

no Brasil18

Isabel Loureiro19

Embora os estudos marxistas tenham pouco espaço no Brasil

(como aliás no mundo todo), eles ainda podem ser encontrados

em algumas universidades públicas,20 sendo que a maior parte das

pesquisas gira em torno de autores como Marx, Lênin, Gramsci,

Lukács e os filósofos da Escola de Frankfurt. Em compensação, há

poucas pesquisas acadêmicas sobre Rosa Luxemburgo o que

talvez seja consequência de que a maioria de suas obras ainda

não foi traduzida em português. Por conseguinte, a recepção de

Rosa Luxemburgo no Brasil não foi acadêmica, mas política. Em

1995, Michael Löwy resumiu bem o que ocorreu entre nós: “Sempre

existiu na cultura da esquerda brasileira uma corrente

‘luxemburguista’, mas até há poucos anos ela era relativamente

marginal. Isso começa a mudar com a fundação do Partido dos

Trabalhadores, cujo primeiro aderente, simbolicamente, foi Mário

Pedrosa, o mais conhecido representante dessa corrente desde os

anos 1940. Muitos dos intelectuais e dirigentes do novo movimento

se dizem herdeiros de Rosa Luxemburgo,enquanto se observa de

alguns aspectos essenciais dessa herança – a democracia

socialista, o élan antiburocrático e libertário, a busca de uma

alternativa à social-democracia e às formas autoritárias do

comunismo – na nova cultura socialista do Brasil” (LÖWY, 2004).

18 Tradução do artigo publicado em Nahiriko Ito, Annelies Laschitza, Ottokar Luban (ed.), Rosa Luxemburg. Ökonomische und historisch-politische Aspekte ihres Werkes, Berlim, Dietz Verlag, 2010.

19 Professora colaboradora do Programa de Pós-Gradução em Ciência Política, UNICAMP, e membro

do Comitê Editorial de Crítica Marxista.

20 Na UNICAMP a cada dois anos é realizado o Colóquio Marx/Engels em que cerca de 400 trabalhos

são apresentados.

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

44

Este artigo tem duas partes. A primeira visa a esclarecer esta

citação que resume de maneira particularmente feliz a

Weltanschauung socialista e democrática de Rosa Luxemburgo a

qual foi desde o início da sua recepção entre nós como uma

espécie de corrente subterrânea na cultura de esquerda no Brasil,

com alguma influência nas origens do PT, embora não houvesse

referência explícita a ela. Na segunda parte gostaria de mostrar

que, ao lado desta dimensão bastante conhecida do pensamento

político de Rosa Luxemburgo, segundo a qual o socialismo

democrático só pode ser realizado pela ação autônoma das

massas populares, há outra dimensão menos conhecida em A

Acumulação do Capital e na Introdução à Economia Política que

também pode contribuir para a renovação do pensamento

marxista.

SOCIALISMO DEMOCRÁTICO, REVOLUÇÃO E FORMAÇÃO

POLÍTICA

Desde o início de sua recepção no Brasil Rosa Luxemburgo

foi vista como o símbolo do socialismo democrático. Mário

Pedrosa,21 nosso mais importante pensador socialista e nosso mais

importante crítico de arte, foi o pai do “trotskismo” e mais tarde do

“luxemburguismo” brasileiro. Durante sua estada em Berlim e Paris

no fim dos anos 1920, ele teve contato pela primeira vez com as

idéias econômicas de Rosa Luxemburgo, conquanto ainda não

tivesse lido suas obras nessa época. Numa carta de 14 de maio de

1928 ao amigo Lívio Xavier, escreve: “A tese de Rosa Luxemburgo

sobre a acumulação do capital explica hoje melhor a situação do

21 Mário Pedrosa (25.04.1900-05.11.1981) entra no PCB em 1926. Em 1927 é enviado à escola do

partido em Moscou, mas tendo ficado doente, precisa interromper a viagem em Berlim, onde conhece a

oposição trotskista. Com isso, deixa o PCB e toma parte na fundação do movimento trotskista na

Alemanha e na França, do qual assume a direção no Brasil em 1929. Em 1933 começa seu trabalho de

crítico de arte com um artigo sobre Käthe Kollwitz. Em 1934 m participe de uma frente de esquerda contra o fascismo brasileiro (“integralismo”) e em outubro é ferido num combate de rua na Praça da

Sé, em São Paulo. Durante a ditadura de Getúlio Vargas (1937-1945) parte para o exílio em Paris e

Nova York. Em 1941 é preso ao voltar ao Brasil e forçado a exilar-se. Em maio de 1940 ele se afasta da IV Internacional por não concordar com a caracterização da URSS por Trotsky como “Estado

operário degenerado” nem com a idéia da “defesa incondicional da URSS”. Em 1945 volta ao Brasil e

funda o jornal Vanguarda Socialista onde adota uma posição muito crítica em relação PCB, influenciada por Rosa Luxemburgo. Em 1947 entra no Partido Socialista (PSB) de onde é excluído em

1956. Durante a ditadura militar (1964-1984), Pedrosa parte para o exílio, primeiro no Chile (onde

Salvador Allende lhe pede para organizar o Museu da Solidariedade), depois em Paris. Em 1977 volta novamente ao Brasil. A partir de 1980 Mário Pedrosa se engaja na criação do PT, tendo sido o primeiro

a assinar o manifesto de fundação em 10 de fevereiro de 1980.

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

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capitalismo mundial do que a de Hilferding, Lênin, Bukharin – que a

deformou como sempre. Etc. A questão do imperialismo. A questão

colonial. Etc. O bolchevismo enfim está em crise”. 22

Mário Pedrosa, que conhecia muito bem a história da

Revolução Russa, foi desde o fim dos anos 1920 um crítico ácido da

degeneração burocrática do partido, dos sindicatos e dos sovietes

na URSS.

A partir de 1945 ele passa a divulgar as idéias políticas de

Rosa Luxemburgo em seu jornal Vanguarda Socialista (1945-1948), o

que acabou tendo uma certa influência num pequeno círculo de

esquerda fora do Partido Comunista. Num país provinciano e

afastado do debate no interior da esquerda, esse semanário

cumpriu seu papel publicando textos desconhecidos dos clássicos

do marxismo (Marx, Engels, Trotsky, Kautsky, Rosa Luxemburgo) e

também de autores contemporâneos que discutiam os problemas

do socialismo (Anton Ciliga, Andrés Nin, Karl Korsch). Vanguarda

Socialista se distinguia de outros pequenos jornais de esquerda pelo

seu alto nível intelectual e a amplitude dos temas que iam da

economia à cultura. Num país periférico como o Brasil onde a

tradução sistemática das obras marxistas só começou nos anos

1960, o jornal de Mário Pedrosa apostava no futuro. Um dos textos

publicados em 1946 foi justamente A Revolução Russa de Rosa

Luxemburgo23, verdadeira heresia numa época em que a URSS

estava no auge da sua glória e a maioria da esquerda brasileira

vivia sob a hegemonia do PCB24. Não é preciso dizer que

Vanguarda Socialista foi posto no índex dos comunistas brasileiros.

22 Ver, José Castilho Marques Neto. Solidão revolucionária. Mário Pedrosa e as origens do trotskismo

no Brasil (MARQUES NETO, 1993: 295, 296). Foi provavelmente Lucien Laurat (pseudônimo de

Otto Maschl), que Pedrosa conheceu em Paris, que lhe apresentou as idéias econômicas de Rosa Luxemburgo. Em 1930 Laurat publicou um livro sobre o tema: L’accumulation du capital d’après

Rosa Luxemburg. Muito mais tarde Pedrosa também escreveu um livro sobre o mesmo assunto, mas

em relação com a América Latina: A crise mundial do imperialismo e Rosa Luxemburgo (PEDROSA,

1979).

23 Esse texto, traduzido por Miguel Macedo, foi publicado em duas partes, em abril e maio de 1946. No

Prefácio à tradução brasileira do livro de Jörn Schütrumpf, Rosa Luxemburg ou o preço da liberdade, Michael Löwy escreve a esse respeito: “Lembro-me ainda do entusiasmo, do fervor mesmo com que

líamos esse precioso escrito, quando participei, por volta de 1956, em São Paulo, da fundação de um

pequeno grupo ‘luxemburguista’, junto com amigos e companheiros de grande valor como Paul Singer, os irmãos Eder e Emir Sader, Mauricio Tragtenberg, Herminio Sachetta, os advogados Renato Caldas e

Luis Carvalho Pinto (…) Estou convencido de que esa brochura de 1918 é um dos textos

indispensáveis não só para entender o passado, mas também e sobretudo para uma refundação do socialismo (ou do comunismo) no século XXI.” (LÖWY, 2006: 10) Uma das ironias da história é que

esse texto só veio a público na RDA em 1975, acompanhado das habituais observações a respeito dos

“erros” de Luxemburgo, e na URSS em 1990.

24 Ver Paul Singer, Mário Pedrosa e o Vanguarda Socialista (SINGER, 2001) Paul Singer, judeu

austríaco, emigrou em 1939 com a mãe para São Paulo. Na juventude começou a ler a obra de Rosa

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

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Em 1946 Mário Pedrosa estava convencido de que Rosa

Luxemburgo era a única socialista no mundo ocidental que,

embora entusiasta da tomada do poder pelos bolcheviques, podia

enfrentá-los de maneira independente: “Sobrava-lhe, para isto, em

valor moral e intelectual, em autoridade e em espírito

revolucionário”25.

Segundo ele, a voz da revolucionária polonesa, com sua

defesa das liberdades democráticas, da ação espontânea e da

experiência das massas era novamente ouvida por todos aqueles

que queriam reconstruir o movimento socialista internacional sobre

novas bases que superassem, tanto o reformismo social-democrata

“carregado de crimes e de senilidade”, quanto o bolchevismo,

“não menos carregado de crimes e degenerado até a horrenda

caricatura do que, hoje, sob a forma stalinista, não é mais do que a

máscara totalitária de um neobarbarismo.” (PEDROSA, 1979: 129).

Contra uma concepção autoritária da política segundo a

qual a consciência é introduzida “de fora” na classe operária por

um partido de vanguarda “esclarecido”, os socialistas brasileiros –

cujo precursor foi Mário Pedrosa – pensavam que o socialismo

pode ser somente uma criação autônoma das massas organizadas,

seja em um (ou vários) partido democrático, seja nos movimentos

sociais, nos conselhos e nas mais diferentes formas de organização

pela base. Afastados de todo dogmatismo organizativo eles

pensavam, assim como Rosa Luxemburgo, que “A hora histórica

exige a cada momento as formas correspondentes de movimento

popular e ela cria ela mesma meios de combate novos e

improvisados, desconhecidos anteriormente, ela escolhe e

enriquece o arsenal do povo, indiferente a todas as prescrições dos

partidos” (LUXEMBURGO, 1987: 149)Além disso, o partido político

idealizado pelos socialistas brasileiros logo após a Segunda Guerra

Mundial não era uma organização centralizada e hierarquizada de

revolucionários profissionais, mas a expressão das experiências

históricas das camadas subalternas da sociedade. Quanto a esse

ponto eles também estavam de acordo com a concepção de

Rosa Luxemburgo segundo a qual o partido abarca “o conjunto

Luxemburgo, não só mas também no jornal Vanguarda Socialista. Foi militante do PSB (1950-1965)

até que a ditadura militar proibiu o multipartidarismo, permitindo apenas dois partidos. Paul Singer foi co-fundador do PT e no momento é coordenador da Secretaria de Economia Solidária do governo Lula.

Para mais informações sobre ele e sobre a influência que Rosa Luxemburgo exerceu sobre suas idéias,

ver Uma discípula de Marx que ousava criticar Marx, (SINGER, 2008). David Muhlmann, Réconcilier marxisme et démocratie, (MUHLMANN, 2010).

25Nota explicativa, A revolução russa (PEDROSA, 1979: 119-20).

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

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dos interesses progressistas da sociedade e de todas as vítimas

oprimidas pela ordem social burguesa” (LUXEMBURGO, 1979: 441).

Em outras palavras, tratava-se de pôr em prática a

declaração da Associação Internacional dos Trabalhadores: “A

emancipação dos trabalhadores é obra dos próprios

trabalhadores”. Assim sendo, era preciso que todos os grupo

subalternos da sociedade se organizassem (não só os operários da

indústria) para defender seus direitos: os negros, os empregados, os

trabalhadores agrícolas, os estudantes, as empregadas domésticas,

as mães, “todos os que trabalham e não exploram o trabalho

alheio”.26 Esta idéia dos movimentos sociais e da luta para criar

embriões de socialismo já na sociedade capitalista – o que hoje se

chama de contra-hegemonia – era algo espantosamente original

na esquerda brasileira daquela época. Para Mário Pedrosa o poder

não era um lugar determinado a ser conquistado (para ser

reformado como queria a social-democracia, ou para ser destruído

como queriam os bolcheviques) mas uma dimensão que era

preciso construir. Nesse sentido, ele escreve em Vanguarda

Socialista: “O socialismo não consiste somente na conquista do

poder pelo proletariado e na realização das reformas de estrutura

com a socialização dos meios de produção. O socialismo é a ação

consciente, quotidiana e constante das massas, mas por elas

mesmas e não por meio de uma ‘procuração’ a um partido de

vanguarda mais consciente”27.

Mário Pedrosa, assim como Rosa Luxemburgo, estava

convencido de que a tomada do poder de Estado, embora fosse

importante, não bastava para mudar a sociedade. Essa idéia é

claramente exposta por ela em seu discurso à assembléia de

fundação do Partido Comunista Alemão (KPD) falando da

revolução socialista: “a história não nos faz a tarefa tão fácil como

nas revoluções burguesas em que bastava derrubar o poder oficial

no centro e substituí-lo por alguns homens, ou por algumas dúzias

de homens novos. Precisamos trabalhar de baixo para cima, o que

corresponde precisamente ao caráter de massa de nossa

revolução (...) devemos conquistar o poder político não por cima,

mas por baixo” (LUXEMBURGO, 1987: 510) Em outras palavras,

Luxemburgo está se referindo à formação de uma hegemonia das

classes subalternas já na sociedade capitalista, o que Oskar Negt

chama de “espaço público proletário” (NEGT, 1974: 190) Uma

experiência nesse sentido, apesar de sua curta duração, foram os

26 Mário Pedrosa (1946b) Vanguardas, partido e socialismo.

27 Mário Pedrosa (1946a), A luta quotidiana das massas e o Partido Comunista.

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

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conselhos de operários e soldados na Revolução de novembro de

1918 na Alemanha.

A tradição dos conselhos como exemplo de democracia

participativa permanece um ponto de referência importante para

Mário Pedrosa para quem o conceito de democracia

representativa deve “ser arquivado num museu de antiguidades”

(PEDROSA, 1966: 438). A vitória de uma revolução socialista-

democrática, tanto na metrópole quanto na periferia, exige que

ela seja feita e controlada pelo poder popular. É preciso construir

“novos centros democráticos de poder” (empresas, escolas,

municípios, regiões, etc.) o que significa descentralização do poder

de decidir, limitação dos poderes do Estado e do capital, “uma

extensão do poder popular, quer dizer, uma vitória da democracia

sobre a ditadura do lucro” (PEDROSA, 1966: 324). Mário Pedrosa

pensava, já em 1946, que o controle dos trabalhadores sobre toda

a vida social é o caminho para o socialismo democrático e que

este começa imediatamente, “antes da tomada do poder”

(PEDROSA, 1946b) Dito de outro modo, não se trata de esperar a

“martelada da revolução” (LUXEMBURGO, 1970: 400), mas de tentar

construir, aqui e agora, o poder popular, uma idéia aplicada hoje

pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) no Brasil e pelos

zapatistas no México (LOUREIRO, 2006; LÓPEZ Y RIVA, 2006) Desse

ponto de vista a revolução é um longo processo, é a construção

de uma contra-hegemonia inseparável da auto-organização e da

autogestão. Ou seja, para os socialistas brasileiros depois da

Segunda Guerra Mundial, e nisso eles estavam absolutamente de

acordo com Rosa Luxemburgo, uma sociedade socialista e

democrática começa pelo controle da vida pública pelas massas

populares, que devem exercer a autogestão em todos os níveis,

começando pela produção (LUXEMBURGO, 1987: 442s).

Mário Pedrosa se considerava sobretudo um revolucionário.

Numa entrevista pouco antes de morrer declarou: “Os homens da

minha idade que não se empolgaram pela Revolução Russa …

alguma coisa lhes falta. E ainda acho que uma Nação que não

passa por uma revolução não é ainda uma Nação formada.

Sempre sonhei uma revolução para o Brasil” (PEDROSA, 1981). Mas

como recusava toda concepção doutrinária de revolução e se

inspirava na crítica de Rosa Luxemburgo aos bolcheviques (contra

a imitação servil da Revolução Russa pela esquerda ortodoxa)

nunca abandonou a idéia de que cada país deve seguir seu

próprio caminho revolucionário, o qual depende das condições

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

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objetivas do desenvolvimento local e não pode ser determinado

de antemão por nenhum partido-vanguarda.28

Pode-se traçar um paralelo entre a recusa do partido-

vanguarda pelos socialistas brasileiros e a herança de Rosa

Luxemburgo no KPD depois de seu assassinato. É o que faz a

historiadora Angela Mendes de Almeida quando lembra que as

idéias de Luxemburgo não estiveram na ordem do dia a não ser

durante o breve período em que a Internacional Comunista (IC),

de maneira tortuosa, adotou a tática de “frente única operária”

sem no entanto reconhecer a paternidade alemã da idéia.29

Angela Mendes de Almeida considera esse comportamento da IC

“uma espécie de oportunismo, que iria pesar muito fortemente em

seguida” sobre a esquerda do mundo inteiro. “Uma sucessão de

camadas de mentiras que, na era stalinista, foram conformando

uma política inexplicável, com ares de falsidade maquiavélica.”

Referindo-se à célebre frase de Rosa Luxemburgo sobre “a

liberdade de quem pensa de maneira diferente”, a historiadora

acredita que embora o stalinismo seja “uma enorme

degenerescência do leninismo, alguns elementos, sobretudo essa

intolerância com aquele que pensa diferente, já estavam presentes

no bolchevismo, ou no leninismo.” (MENDES DE ALMEIDA, 2008: 55).

Após esta curta exposição podemos resumir as idéias que os

socialistas brasileiros herdaram de Rosa Luxemburgo: 1. a defesa de

uma concepção democrática de partido de massas contra a

concepção leninista do partido-vanguarda que, segundo eles,

implica a separação antidemocrática entre vanguarda e massas e,

como mostrou o desenvolvimento dos partidos comunistas no

século XX, a separação entre a direção do partido e a base; 2. a

defesa do socialismo democrático como criação autônoma das

massas populares que se organizam das mais diferentes maneiras e

se politizam na luta diária com a finalidade de transformar o mundo

capitalista dos interesses privados numa sociedade justa e

igualitária; 3. a idéia de que não há modelo para a revolução, de

que a esquerda de cada país deve encontrar seu próprio caminho

a partir de sua própria experiência e de sua situação concreta; 4. a

28 “... revolução não se aprende a fazer em livros ou mesmo em textos escritos, por mais sagrados que

sejam de Marx ou Lênin. Ela é o ditado das coisas da terra, da qualificação dos homens que a fazem, das classes em movimento, da realidade histórica de onde provém ou onde atua. Interpretar textos

sagrados não substitui a experiência vivida nem a prática, mas foi quase o que se limitaram a fazer

tantos dos nossos melhores dissidentes.” (PEDROSA, 1982).

29 Essa era uma antiga palavra de ordem do spartakista Paul Levi (nesse momento já expulso do KPD)

contra a política golpista e aventureira da Internacional Comunista na Alemanha.

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

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crítica da democracia representativa e a defesa da autogestão e

da auto-organização.

Como dissemos no início, essa posição socialista-

democrática era manifesta nas origens do PT. Mas com o passar do

tempo foi sendo abandonada e substituída pela Realpolitik sem

mais, com o intuito de ganhar as eleições e de fortalecer a

máquina partidária. Além disso, muitos acreditam que durante o

governo Lula o PT se transformou num partido da ordem,

burocrático e corrompido.30 A perspectiva socialista-democrática-

revolucionária de Rosa Luxemburgo deixou de fazer sentido para a

esquerda governamental no Brasil.

Os herdeiros de Rosa Luxemburgo estão hoje no MST e entre

os zapatistas, movimentos que ao querer ir além da democracia

representativa e dos limites que o capital lhe impõe, lutam por uma

democracia centrada na autonomia das massas populares. Esses

movimentos sociais opõem à esquerda eleitoral, institucionalizada e

burocrática, a construção do poder a partir de baixo e insistem na

participação das massas populares nos assuntos que lhes dizem

respeito como uma condição indispensável à sua formação

política. Mas no Brasil ocorre precisamente o contrário. É o que

pensa Gilmar Mauro, um dos líderes mais importantes do MST,

constatando que no governo Lula (2003-2010) os movimentos

sociais se enfraqueceram. Segundo ele a formação política é a

única possibilidade de impedir, ou pelo menos de tornar mais difícil

a burocratização interna das organizações e a cooptação dos

ativistas pelo Estado (MAURO, 2008). Penso que a observação de

Rosa Luxemburgo sobre Marx e Lassalle resume bem o dilema em

que se encontram o MST e seus líderes: “(...) quando em vez da

crise e da revolução começou a triste saison morte [época morta]

da reação política, Lassalle e Marx voltam a compartilhar a mesma

idéia – a resignação momentânea e os planos de um trabalho de

toupeira de esclarecimento revolucionário, temporário e

silencioso.” (LUXEMBURGO, 1979: 151). É neste lento e paciente

trabalho de toupeira de formação política, tendo como finalidade

a transformação estrutural da ordem capitalista, que o MST aposta

todas as suas fichas, especialmente numa época em que a

possibilidade de uma reforma agrária em termos clássicos é cada

vez mais improvável.

Gilmar Mauro acredita que se a esquerda no Brasil quiser

estar à altura do desafio que lhe é imposto – em outras palavras, se

quiser construir o ciclo “pós-PT” – tem à sua frente a imensa tarefa

30 Ver Francisco de Oliveira, O momento Lênin, (OLIVEIRA, 2006).

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

51

de organizar os trabalhadores em geral (e não só os trabalhadores

da indústria). Segundo ele, neste momento é preciso “um

movimento político de um tipo novo que parta da idéia de

construção de espaços de poder popular, de conselhos, buscando

as experiências históricas da Liga Spartakus, a experiência da

Comuna de Paris, a experiência dos conselhos de Turim (que eram

conselhos de fábrica), buscando a própria experiência latino-

americana; no México tem várias experiências das comunidades

indígenas” (MAURO, 2008: 100). Dito de outro modo, trata-se de

organizar os trabalhadores a partir das comunidades locais, em

diálogo permanente com seus problemas (p. ex., utilizando a

cultura como canal de participação) com a esperança de

construir uma ampla rede de organizações em todo o país tendo

como finalidade formar “uma poderosa contra-hegemonia”: “(...)

estou convencido de que este é o caminho: ou a gente constrói

este processo dos conselhos populares, organizações populares,

com um projeto político claro de substituição da sociedade

capitalista e construção de uma sociabilidade diferente – o

socialismo – ou efetivamente a esquerda amargará muitos anos.”

(MAURO, 2008: 101). Em resumo, no que se refere à questão do

socialismo democrático construído a partir de baixo Rosa

Luxemburgo é uma referência teórica fundamental para os

militantes dos movimentos sociais.

A ACUMULAÇÃO DO CAPITAL E A CRÍTICA DA CRENÇA NO

PROGRESSO

Em sua recepção no Brasil, Rosa Luxemburgo é além disso

considerada como uma marxista “terceiro-mundista” avant la lettre

por suas obras de economia política, A acumulação do capital e a

Introdução à Economia Política 131Fi.31

Do ponto de vista de Rosa Luxemburgo o capital precisa de

regiões não capitalistas – “algo fora de si mesmo” – para acumular.

Esta idéia foi retomada e atualizada por David Harvey que chama

a esse processo de “accumulation through dispossession”

[acumulação por espoliação], (HARVEY, 2004: 121-26) uma

esclarecedora explicação teórica para a exploração do Terceiro

Mundo. Como mostra Harvey, hoje em dia a expansão capitalista

não é mais geográfica mas econômica, baseando-se a estratégia

31 Ver (PEDROSA, 1979; SINGER, 1991; 1988; 2008 ; LÖWY, 2008).

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

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do capital na transformação de antigos direitos em mercadorias

(serviços públicos, cultura, saúde, educação, agricultura, água,

etc.). Rosa Luxemburgo dá vários exemplos de como a expansão

capitalista provoca a destruição das formas de vida tradicionais,

ou seja, das comunidades indígenas e camponesas (o que ela

chamava de comunismo primitivo). Hoje em dia podemos

constatar esse processo na América Latina, provocado pela

chamada “modernização” da vida rural, introduzida à força pelo

agronegócio e por todas as políticas de integração do espaço na

América do Sul financiadas pelo BID.32

A atualidade de A acumulação do capital de uma

perspectiva latino-americana também é corroborada pelo

economista Paul Singer. Para ele a grande contribuição dessa obra

é “mostrar que nunca houve um modo de produção único no

mundo. Sempre houve diferentes modos de produção que

interagem” ou no passado ou no presente. “Na realidade, o

campesinato, o artesanato – a pequena produção de mercadorias

precede o capitalismo e convive com o capitalismo até hoje. Isto

eu percebi graças à Rosa. Então todo o meu trabalho teórico a

partir daí pressupõe múltiplos modos de produção. Isso tem a ver

com a economia solidária, obviamente. Quer dizer, eu entendo a

economia solidária como um modo de produção, entre outros, que

existe dentro do capitalismo, já há duzentos anos, com maior ou

menor força, mas que pode, diante das contradições que o

capitalismo apresenta, ter um desenvolvimento.” (SINGER, 2001: 18).

A crítica dirigida por Rosa Luxemburgo ao aniquilamento

dos povos primitivos pelo capitalismo europeu é

extraordinariamente próxima de nós, sobretudo se comparada aos

comentários de Kautsky nos quais não figuram nem o Terceiro

Mundo nem os povos não-brancos. Rosa Luxemburgo destaca

insistentemente que o capitalismo, no seu processo de

acumulação, precisa desses povos para explorar regiões onde os

brancos não podem ou não querem trabalhar, para o quê

também Mário Pedrosa chamava a atenção.33 Não podemos

esquecer que em Introdução à Economia Política Rosa

Luxemburgo fica do lado das vítimas da modernização capitalista:

“Para todos os povos primitivos nos países coloniais, a passagem de

seu estado comunista primitivo ao capitalismo moderno ocorreu

32 Um exemplo notável é a IIRSA (Iniciativa de Integração da Infra-Estrutura Regional Sul-

Americana).

33 Ver Rosa Luxemburgo, Die Akkumulation des Kapitals [1912], (LUXEMBURGO, 1985: 311). Ver

também: (PEDROSA, 1979: 58-59).

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

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como uma catástrofe súbita, como um desastre indizível

acompanhado dos mais atrozes sofrimentos.” (LUXEMBURGO, 1985:

717). E ela vê na resistência desses povos contra as metrópoles

imperialistas uma luta digna de admiração.

Michael Löwy foi o primeiro (que eu saiba) a fazer uma

interpretação muito original e fecunda desse livro (LÖWY, 1986)

quase ignorado pelos comentadores,34 talvez por ser um livro

inacabado. Mas é mais provável que a exposição feita por Rosa

Luxemburgo, não convencional de um ponto de vista marxista, seja

a razão. Os capítulos sobre o comunismo primitivo e sua destruição

ocupam mais espaço do que aqueles sobre a produção de

mercadorias e o modo de produção capitalista. A era capitalista

da história da humanidade aparece aí como uma época breve,

condenada a desaparecer. Descrevendo as comunidades

camponesas, Rosa Luxemburgo mostra que essas velhas formas

sociais “comunistas” eram dotadas de qualidades que as

sociedades modernas perderam, podendo assim servir de

inspiração para propostas alternativas. Dito de outro modo, os

povos originários podem ensinar aos “civilizados” uma maneira de

viver em que os interesses da comunidade determinam de maneira

harmoniosa e democrática a vida de seus membros.

Segundo esta perspectiva, Rosa Luxemburgo recusaria uma

concepção teleológica da história, segundo a qual já haveria no

passado “bárbaro” da humanidade tendências inelutáveis rumo à

civilização capitalista. Sua admiração pelo passado não capitalista

da humanidade daria elementos para uma concepção aberta da

história, que se oporia criticamente à idéia de progresso linear da

social-democracia alemã. Michael Löwy escreve: “Ao confrontar a

civilização capitalista industrial com o passado comunitário da

humanidade, Rosa Luxemburgo rompe com o evolucionismo linear,

com o ‘progressismo’ positivista, o darwinismo social e todas as

interpretações do marxismo que o reduzem a uma versão mais

avançada da filosofia do senhor Homais. O que está em jogo

nesses textos, em última análise, é o próprio significado da

concepção marxista de história.” (LÖWY, 1986: 72).

34 Paul Frölich é uma exceção, ainda que não se possa concordar com sua interpretação economicista da obra de Rosa Luxemburgo. Ver: Rosa Luxemburg, sa vie et son œuvre, (FRÖLICH, 1965: 189-191).

Ver também J. P. Nettl, La vie et l'oeuvre de Rosa Luxemburg (NETTL, 1972: 818-822). De qualquer

maneira nenhuma dessas obras faz referência à perspectiva “terceiro-mundista” de Rosa Luxemburgo. Annelies Laschitza em contrapartida na sua biografia de Rosa Luxemburgo: Im Lebensrausch trotz

alledem, (LASCHITZA, 1996: 326) observa: “As explanações de Rosa Luxemburgo abarcam o

Próximo Oriente, a Ásia do sul, a África do norte, a América do sul, a Austrália, o que é um dos méritos da sua pesquisa. Essa perspectiva externa à Europa encontrou um interesse cada vez maior no

século XX.”

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

54

Hoje em dia pode-se ver claramente que a civilização

capitalista ocidental com seu gigantesco desenvolvimento das

forças produtivas e a destruição do equilíbrio ecológico do planeta

não é modelo para o resto do mundo. Esse progresso é ao mesmo

tempo um retrocesso, como constatam Rosa Luxemburgo em

várias passagens de sua obra35 e os filósofos da Escola de Frankfurt.

Um dos grandes desafios da esquerda marxista hoje é fazer a

revisão crítica do conceito de forças produtivas36 e romper com a

“ideologia do progresso e o paradigma tecnológico e econômico

da sociedade industrial moderna.” (LÖWY, 2000: 64). Em nossos dias,

um projeto socialista precisa ter uma dimensão ecológica e mostrar

que o desenvolvimento das forças produtivas não é um bem em si

mesmo e que a “modernização” do Terceiro Mundo (que, entre

outras coisas, reduz a diversidade cultural e ecológica) serve

apenas para valorizar o capital.37 Já nos anos 1970 Mário Pedrosa

defendia a idéia de que cada país deve seguir seu próprio

caminho e recusava vivamente a imitação dos países centrais: “A

civilização burguesa imperialista está num beco sem saída. Deste

beco não temos que participar – os bugres das baixas latitudes e

adjacências” (PEDROSA, 1995: 335).

Os herdeiros desta crítica da modernização, e pode-se ver

em Rosa Luxemburgo um de seus precursores, são hoje os

movimentos sociais formados por aqueles que não encontram

lugar no mundo capitalista. Os índios, os quilombolas, os povos da

floresta, os trabalhadores sem terra – todos aqueles que devem

aniquilados pelo processo de modernização porque supostamente

personificam o atraso – fazem enormes esforços para resistir e

construir uma nova cultura política, aliados a pequenos grupos da

esquerda radical, com o objetivo de erigir uma sociedade mais

humana, sem desperdício dos recursos naturais, baseada na

autonomia das forças sociais.

Mas é preciso reconhecer que, apesar da atualidade de

Rosa Luxemburgo, ela não pode responder a todas as perguntas

postas pelo presente. É evidente que a esquerda precisa,

particularmente no Brasil, de uma nova teoria crítica que leve em

35 “Para os economistas e políticos burgueses liberais, ferrovias, fósforos suecos, esgotos e lojas

significam ‘progresso’ e ‘civilização’. Essas obras em si, enxertadas nas condições primitivas, não

significam civilização nem progresso, porque são compradas ao preço da rápida ruína econômica e cultural dos povos, os quais sofrem de uma só vez todas as calamidades e todos os horrores de duas

épocas: a das relações de dominação da economia natural tradicional e a da exploração capitalista mais

moderna e refinada”(LUXEMBURGO, 1987: 160-161).

36 É melhor falar de forças destrutivas como propõe Michael Löwy (2005: 54).

37 Ver International Ecosocialist Manifesto de Joel Kovel et Michael Löwy.

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

55

conta as mudanças do capitalismo durante as últimas décadas e

seus efeitos nos países do Sul. Essa nova teoria crítica, pelo menos é

o que pensa Paulo Arantes, só virá – se vier – de um novo tipo de

intelectual de esquerda, com boa formação universitária, tendo

assimilado a tradição radical brasileira, com vínculos com os

movimentos sociais, desempregado ou subempregado, ou seja,

relativamente marginal em relação à sociedade de consumo. Esse

novo tipo de intelectual conhece a miséria brasileira dos dois lados,

o do Estado e o dos movimentos sociais, e não alimenta ilusões em

relação a nenhum dos dois. Mas Paulo Arantes reconhece que,

apesar de todos os problemas dos movimentos sociais é neles e a

partir deles que “algo politicamente revelador e contundente”

pode nascer (ARANTES, 2008: 124). Pode ser que essa nova

geração de intelectuais de esquerda produza finalmente o que

Rosa Luxemburgo caracterizava como o núcleo do marxismo: o

vínculo indissolúvel entre a teoria e a prática.

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Page 60: Marxismo&Ciências Humanas-2011

MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

59

A teoria crítica como teoria da

mudança social: o marxismo de

Marcuse

Robespierre de Oliveira (UEM)

“Há, sobretudo, dois momentos que vinculam o materialismo à correta teoria da sociedade: a preocupação com a felicidade dos homens, e a convicção de que esta felicidade seja conseguida somente mediante uma transformação das relações materiais de existência. O caminho da transformação e as medidas fundamentais para a organização racional da sociedade são traçados mediante a respectiva análise das relações políticas e econômicas. O aperfeiçoamento ulterior da nova sociedade não pode mais ser o objeto de qualquer teoria: deve ser, como obra livre, o resultado dos indivíduos liberados.” (Marcuse, Filosofia e Teoria Crítica, 1937)

“Up to now, it has been one of

the principal tenets of the critical theory of society (and particularly Marxian theory) to refrain from what might be reasonably called utopian speculation. Social theory is supposed to analyze existing societies in the light of their own functions and capabilities and to identify demonstrable tendencies (if any) which might lead beyond the existing state of affairs.”(Marcuse, An Essay on Liberation, 1967)

CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES

Gostaria de alertar para questões polêmicas, as quais não

tratarei aqui, por fugirem do recorte necessário. A teoria crítica,

discute-se, é entendida como equivalente a marxismo ou como

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

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algo independente, apesar de ter referências na teoria de Marx. Os

autores principais da teoria crítica, como Theodor W. Adorno, Max

Horkheimer e Herbert Marcuse, fariam parte do chamado marxismo

ocidental, cujo conceito seria de dificilmente determinação. As

principais características, segundo Perry Anderson, seriam o déficit

dessa geração em relação à anterior, marcada pelo êxito

revolucionário. Assim, o marxismo ocidental seria composto por

intelectuais mais afeitos à teoria do que à prática revolucionária,

mais ainda: seu desenvolvimento teórico voltar-se-ia para questões

não tratados por Marx e Engels, como a ênfase sobre a cultura,

faltando-lhe o enfoque econômico e político. Para tal

desenvolvimento teórico, o marxismo ocidental introduziu outros

elementos teóricos “alheios” ao marxismo, como a psicanálise e a

sociologia weberiana. Marcuse, em particular nos anos 1960, foi

muito criticado pela direita e pela esquerda, seja como perigoso

revolucionário, seja como ludibriador do movimento operário.

Sem entrar na discussão sobre o mérito de tais questões,

lembraria que em sua fase inicial a teoria crítica constituiu-se a

partir do debate entre marxismo e filosofia elaborado sobre a crise

do movimento operário no início do século XX. A preocupação

com o problema da consciência surgiu com grande relevância

nesse período em vista da vitória, que já se desenhava, de sistemas

autoritários, como o fascismo e o estalinismo, com apoio dos

próprios operários. Neste sentido, pode-se compreender a teoria

crítica como uma contribuição ao desenvolvimento da teoria

marxista, a qual nunca teve uma elaboração absoluta e universal,

não sendo, portanto, dogmática. O apoio de outras teorias, como

a psicanálise e a sociologia de Max Webber, significava preencher

lacunas da própria teoria marxista. Não seria descabido afirmar

que Marx também se apropriou, a seu modo, da teoria burguesa

de seu tempo. Assim, considera-se que não há um corpo teórico

fechado do marxismo, mas sim interpretações, por vezes

apaixonadas, as quais chegam a digladiar-se visando sua

preponderância sobre as demais. Tais interpretações muitas vezes

censuram Marcuse equivocadamente, a partir de uma crítica

exterior ao próprio pensamento dele.38

38 Sobre o marxismo ocidental, veja-se Anderson, Perry. Considerações sobre o marxismo ocidental.

Considerações sobre o marxismo ocidental. Trad. M. Levy. Revisão técnica. E. Sader. 2ª ed. São

Paulo, Brasiliense, 1989. Sobre a crítica ao marxismo de Marcuse, ver entre outros, Kellner, Douglas. Herbert Marcuse and the crisis of marxism. Berkeley, Los Angeles, University of California Press,

1984.

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

61

A “PERSISTÊNCIA DA UTOPIA”

No presente texto, mostrarei alguns aspectos da

compreensão do marxismo por Marcuse, relevando sua

contribuição para o debate revolucionário, apontando sua

originalidade e limitações. A grande característica do marxismo de

Marcuse é o que Gunzelin Schmid Noerr chamou de “persistência

da utopia”. A perspectiva da felicidade, da liberdade, a

preocupação com o papel do indivíduo, a abolição do trabalho

alienado, a necessidade da ética da revolução estão no horizonte

da perspectiva utópica de Marcuse. Tais parâmetros podem ser

utilizados pela imaginação ou fantasia para vislumbrar uma outra

sociedade racionalmente organizada. Esta realidade possível,

embora não existente, é a utopia. Para Marcuse, o socialismo é a

transformação da sociedade existente numa qualitativamente

diferente, cujos parâmetros podem ser delineados a sua pré-

existência. A utopia não é só o objetivo a ser alcançado, como

orientadora do processo, na medida em que uma sociedade

melhor depende da consciência dos homens desse objetivo para

sua realização. Uma sociedade qualitativamente diferente e

melhor do que é esta é possível, porém não decorre do acaso das

necessidades.

O conceito de utopia recebeu uma conotação pejorativa,

principalmente, a partir de Marx e Engels em seu “Manifesto do

Partido Comunista”. Para eles, tratava-se de combater as visões

anteriores de socialismo como equivocadas, para afirmarem a

validade de sua nova proposição. A nova conotação de utopia

aparece com Ernst Bloch, como “utopia positiva”. Trata-se de

elaborar uma nova realidade a partir da crítica à realidade

existente, elemento comum a diversas utopias (desde Thomas

More), mas a diferença estaria na insistência do caráter material da

crítica, tal como Marx fez em O Capital. Em “Filosofia e Teoria

Crítica” (1937), Marcuse afirma o conceito de utopia em

contraposição à antropologia filosófica, a qual seria apenas

descritiva da situação humana tal como é, enquanto a utopia

visaria afirmar os homens como podem ser. Para Marcuse, os

homens podem ser mais do que efetivamente são.

Essa perspectiva utópica aparece no jovem Marcuse, o

qual participou da revolução fracassada da Alemanha em 1918, e

acompanha seu amadurecimento teórico ao longo de sua obra,

como um fator normativo. O jovem Marcuse abandonou um

conselho de soldados quando viu os oficiais serem eleitos para

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

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cargos de direção. Tal rebeldia, embora acompanhada da falta

de experiência política, retratava a perspectiva libertária de

Marcuse, que desde jovem esteve mais próximo da linha política

de Rosa Luxemburg do que do bolchevismo de Lênin. Apesar de

Marcuse não ter mais se interessado pela participação partidária,

ele se manteve sintonizado com o movimento operário. Isto pode

ser considerado como uma limitação do marxismo de Marcuse, o

fato de não ter uma experiência partidária e ter elaborado um

programa político claro, como as discussões de Luxemburg e Lênin.

Entretanto, deve-se considerar as limitações históricas da época,

como o estalinismo, o nazismo, a Segunda Guerra Mundial, a

Guerra Fria. Mas, também se deve lembrar o papel de Marcuse na

New Left e suas proposições políticas (como as 33 teses publicadas

em Tecnologia, guerra e fascismo, 1998), nas quais ele reafirma sua

perspectiva libertária inclusive para aqueles que desejam uma

futura sociedade livre.

Segundo Marcuse, em “Filosofia e Teoria Crítica” (1937), a

“utopia é o elemento mais progressivo na história da filosofia”. A

perspectiva utópica aparece em Marcuse mediante a articulação

entre ontologia e antropologia, desenvolvendo-se desde uma

ontologia concreta até uma antropologia negativa (abstrata).

Assim, não só sua preocupação com o papel do indivíduo,

subsumido sob várias categorias (como a classe, o povo, o

partido), como a preocupação com um fundamentação

ontológica do marxismo o atraíram para a filosofia de Ser e Tempo

(1927), de Heidegger. Na minha interpretação, corroborada por

Douglas Kellner, Marcuse foi desde o início fundamentalmente

marxista. A filosofia heideggeriana, para ele, visava preencher

“lacunas” na teoria marxista. Assim, formulou o projeto da “filosofia

concreta”, no qual a perspectiva ontológica aparecia com mais

ênfase do que a antropológica. Mais ainda: a perspectiva

ontológica era posta como concreta tendo em vista sua

apreensão da historicidade humana.39 Deste modo, para ele,

torna-se possível determinar o papel do indivíduo no processo

revolucionário. Contrário, a Lukács, para quem só os possuidores da

“correta consciência de classe” seriam revolucionários, Marcuse

insiste na “ação radical” dos descontentes com o sistema, aqueles

que reconhecem sua opressão diária, apesar de não saberem

39 “Apenas com a unificação de ambos métodos — um fenomenologia dialética que representa um

método de extrema e constante concreção — é possível fazer justiça à historicidade do Dasein

humano.” Marcuse, “Contribuições para uma fenomenologia do materialismo histórico” (1928) In: Marcuse, Herbert. Heideggerian Marxism. Richard Wolin and John Abromeit (Eds) University of

Nebraska Press, 2005, p. 21.

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

63

como se livrarem dela. O conceito de ação radical visa incluir

também o conceito de “revolução total”, isto é, que a revolução

não ocorra apenas no plano econômico e político, mas sim no

plano da própria existência vital dos homens.

A filosofia preocupa-se com os homens na medida em que

é produção humana. Neste sentido, a filosofia elaborou verdades

sobre as relações, verdades que não foram efetivadas na

realidade. A consciência dos homens pode ser obscurecida e

oprimida não só pelas condições materiais existentes como

também pelas promessas não cumpridas da filosofia. A dimensão

filosófica, do mesmo modo que para Korsch e Lukács, tem uma

contribuição crítica para a teoria marxista. Daí a necessidade de

justificação filosófica do marxismo para o jovem Marcuse, que via

na ontologia da historicidade humana a chave para a crítica

imanente do processo social dos homens. Apesar da linguagem

heideggeriana, Marcuse insiste na visão marxiana d’A Ideologia

alemã de Marx e Engels, em que ambos autores afirmam a

superioridade das condições materiais frente a elaboração

idealista das mesmas condições. Ao avançar nessa direção,

Marcuse encontra insuficiências na fenomenologia heideggeriana,

cujos conceitos soam muito abstratos e vazios. Bastou a publicação

dos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844 de Marx, para tornar

Heidegger desnecessário. Marcuse encontrara no próprio Marx a

fundamentação que buscara na fenomenologia. Nem é preciso

mencionar o “namoro” de Heidegger com o nacional-socialismo

para mostrar o rompimento entre ele e Marcuse e o abandono do

projeto da filosofia concreta.

No jovem Marx, Marcuse encontra um conceito de essência

humana determinado tanto pela história quanto pelo trabalho e

pela sociedade humana, porém num sentido negativo e com um

caráter antropológico também negativo: os homens não são como

podem ser. Um conceito fundamental de Marx é a essência

genérica (Gattungswesen) do homem: “o homem é o mundo dos

homens”. Assim, no texto “Sobre o conceito de essência” (1936),

Marcuse faz um de ajuste contas com a fenomenologia, que tinha

pretensões de um conceito material de essência. Marcuse mostra

que o conceito de essência da fenomenologia e de outras filosofias

próximas são abstratos justamente por se aterem à descrição do

que o homem é, sendo condescendentes com a realidade tal

como está. O conceito de essência para Marcuse resulta de

características humanas universais abstraídas de seu conteúdo real,

tais como: a linguagem, o trabalho, a racionalidade, a

sociabilidade, a liberdade e a felicidade, entre outros. Tais

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

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características são abstratas (e dadas negativamente) na medida

em que não são efetivadas na realidade, sendo postas então

como potencialidades. A não efetivação delas resulta da má-

facticidade humana e das relações sociais existentes. Neste

sentido, a crítica da economia política é entendida como crítica

das relações sociais. As potencialidades humanas não são

cumpridas devido à opressão dos homens pelos próprios homens.

O conceito de essência humana aparece como necessário

por ser medida da crítica à realidade existente, pois se não

houvesse tal medida a crítica seria infundada. O capitalismo é

considerado como “catástrofe da essência humana” e por isso

uma má-facticidade. Desde o início, o principal método da crítica

é a imanência a seu objeto. O pressuposto da sociedade humana

é a realização plena das potencialidades humanas, entretanto, as

relações econômicas desiguais entre os homens, a divisão social,

privilegiaram uma camada da sociedade em detrimento das

demais, impedindo a realização dos homens como tais. Para Marx,

o comunismo é “humanismo social”, isto é a realização da

sociedade como humanidade, sendo para isso superação da

divisão e da opressão social existentes. A realização das

potencialidades humanas aparecem como utópicas face ao

existente, não como impossibilidade, mas como guia para sua

realização.40

Da mesma forma que se mede criticamente o que é com o

que pode ser, mede-se o conceito com sua existência. Assim,

Marcuse recorre à história da filosofia para avaliar determinados

conceitos em relação ao que é dado empiricamente, como o

conceito de liberdade, indivíduo, felicidade, razão, entre outros.

Neste sentido, afirma em O homem unidimensional (1964) a

importância dos universais, cuja realização particular aparece em

geral como deficiência. O indivíduo existente não é como o

liberalismo clássico proclamou: um indivíduo isolado que devesse

somente a sua razão e vontade os objetivos a serem alcançados.

O indivíduo seria autônomo face às autoridades instituídas pela

40 “The theoretical status of Marcuse’s utopian construction — especially in his later work — has

nothing to do with the possibility of its realization. It serves as a theoretical medium of critique.!” Bundschuh, Stephan, “The Theoretical Place of Utopia – Some remarks on Herbert Marcuse’s Dual

Anthropology”, In Herbert Marcuse – A critical reader, John Abromeit and W. Mark Cobb (eds), New

York and London, Routledge, 2004, p. 158. Bundschuh afirma que Marcuse desenvolve uma antropologia que é normative do seu projeto de transformação social. “In Marcuse’s work the utopian

dimension is a precondition of theoretical critique. But does this imply that a transformation of the

essence of man must also be a real possibility? On this point there is a difference between Marcuse’s understanding of his own theory and the real theoretical position of his utopia. Marcuse thinks that his

new anthropology is not only a theoretical project but also a real form of existence.” (Idem, p. 160.)

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

65

sociedade, de fato seria constituído contra a sociedade. O

diagnóstico de Marcuse, em “Algumas implicações sociais da

tecnologia moderna” (1941), e de Horkheimer, em O eclipse da

razão (1947), aponta para o declínio do indivíduo no interior da

sociedade capitalista avançada. O indivíduo perdeu sua

autonomia, sendo subsumido sob categorias gerais: como massa,

povo, classe, etc. Daí o interesse de Marcuse pelo papel do

indivíduo no processo revolucionário. Os marxistas de sua época

tratavam o indivíduo subsumido sob o coletivo, de tal modo que os

indivíduos desapareciam. Muitos autores chegaram a afirmar isto

como verdade da teoria marxista, que não teria lugar para o

indivíduo. Marcuse buscou, então, em Heidegger a afirmação

existencial do indivíduo. Mas os Manuscritos... de Marx mostraram

não só a não necessidade da filosofia de Heidegger como

também a afirmação concreta do indivíduo. Por isso, Marcuse

escreve em Razão e revolução (1941) que o comunismo é a

realização do indivíduo. Entretanto, não o indivíduo do liberalismo,

o indivíduo isolado, mas sim um indivíduo socialmente inserido.

Mas a inserção do indivíduo na sociedade capitalista ocorre

em meio à divisão social de classes. Os mecanismos ideológicos de

dominação, a integração da classe trabalhadora ao mercado

consumidor, a difusão cultural, são aspectos que corroboram para

a perda de autonomia dos indivíduos. Os regimes autoritários

demonstraram a manipulação dos indivíduos, ao fornecerem para

eles meios de satisfação. Deste modo, não são motivados para a

revolução, a qual, segundo Lênin, não é obra só dos comunistas. Os

trabalhadores e os indivíduos, em geral, participam da revolução

na medida em que a sociedade não atende a seus interesses e

não há perspectivas reais para isso, poucos são os que têm uma

alternativa social, como o socialismo, como objetivo final.

Os homens se formam pelo trabalho, modelam suas

habilidades pelo trabalho. Marx, porém, afirma que além de formar

o trabalho deforma. Mais ainda: a condição de trabalhador nega

a existência do homem, inclusive até à morte. O capitalismo é a

desrealização da essência humana, na medida em que os homens

não desenvolvem suas potencialidades. O caráter alienado do

trabalho e da própria sociedade humana contribui para tal

desrealização. Marcuse recorre a Freud para quem o trabalho é o

principal agente repressor das pulsões humanas. Há repressões

necessárias para a organização social, como a moral, há outras,

porém, que aumentam a carga opressiva dos homens. O princípio

de realidade pode ser considerado como a adaptação necessária

dos homens à ordem social, controlando as pulsões primárias. Mas

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

66

a sociedade humana erigiu-se em sua história de modo mais

repressivo do que o necessário. Marcuse utiliza o termo “princípio

de desempenho” para descrever o princípio de realidade na

sociedade capitalista competitiva. O termo “mais repressão”

designa uma repressão adicional. Os trabalhadores não se

emancipam devido apenas à oposição da burguesia, mas

também devido a si mesmos. A dificuldade pela integração e

adaptação social leva os trabalhadores a terem dificuldade de

romperem com a continuidade histórica e social. O trabalho

alienado ocupa o tempo dos homens de tal maneira que sobra

muito pouco tempo para pensarem sobre si mesmos e viverem suas

próprias vidas. O tempo fora do trabalho também é um tempo

administrado.

Segundo Marcuse, a racionalidade vigente é a

racionalidade tecnológica (ou instrumental). Trata-se da

racionalidade organizada no interior da fábrica expandida para o

todo da sociedade, visando produtividade, eficiência e lucro.

Deste modo é possível entender métodos altamente racionais,

coordenados e organizados, para uma finalidade irracional.

Auschwitz é exemplo disso. A tecnologia não se refere apenas a

aparelhos e instrumentos, mas também a procedimentos. Os

indivíduos são cada vez mais coordenados por instâncias superiores

da sociedade, como a mídia. Eles se guiam pela lógica do cálculo

custo-benefício e pela ideologia dominante do capitalismo: a

compra e venda de mercadorias. O desenvolvimento da

tecnologia aumentou a produção de mercadorias e mudou o

comportamento dos indivíduos, afetando até sua biologia, como

por exemplo a ingestão de fast-food. A moda oferece variedades

do que vestir e de se comportar; o plug-in das rádios, o que ouvir; a

“opinião pública” da mídia, o que pensar sobre certos

acontecimentos; e assim por diante. A própria razão dos homens

está ceifada do poder crítico e de discernir sobre os processos a

que estão submetidos.

Na medida em que seu objetivo o lucro a lógica do

capitalismo é estruturalmente “ilógica”, ela passa por cima de

outros objetivos, como o bem-estar da humanidade e a ecologia.

O desperdício de recursos naturais e de vidas humanas insere-se na

lógica de desenvolvimento do capitalismo. Marcuse foi um dos

primeiros a apontar a ecologia como um problema real para a

sociedade humana. A frase “socialismo ou barbárie” de Rosa

Luxemburg torna-se cada vez mais real na época da sociedade

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

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industrial avançada.41 Segundo Marcuse, “(...) Marxismo como uma

teoria é uma análise — política, sociológica e econômica — do

capitalismo, que chega à conclusão de que o sistema capitalista

só pode preservar-se através de conflitos crescentes, desperdício

de recursos, destruição de recursos, guerras, e assim por diante, e

que a transição para o socialismo é a única solução para esta

filosofia.”42

A sociedade unidimensional eliminou a dimensão da

liberdade. O processo de contenção é organizado em todos os

níveis, onde a indústria cultural não alcança a força bélica é

utilizada. Porém, não se trata de uma repressão declarada, a

liberdade converteu-se em instrumento de dominação. O processo

de dominação se faz por meio da exigência de liberdade, dentro

da ordem estabelecida. A sociedade democrática é autoritária na

medida em que a eleição se torna plebiscitária e é livre apenas

para a escolha dos senhores. A oportunidade de alternativa está

em extrapolar os limites estabelecidos pela ordem vigente, os quais

não são aceitos pela própria ordem. Assim, a exigência de

emprego para todos é impossível de ser cumprida pelo sistema

capitalista que necessita de um exército industrial de reserva para

regular o valor dos salários. Nos anos 1960 e 1970, Marcuse

“apostou” em grupos marginais, não como substitutos da classe

operária, mas como catalisadores de um possível processo

revolucionário. As chamadas “minorias”, como negros, mulheres,

homossexuais, entre outros, poderiam colocar em xeque a estrutura

social vigente conservadora, porém com o tempo tanto elas

quanto a sociedade se adaptaram uma à outra. As minorias

queriam direitos reconhecidos e foram “aceitas” pela sociedade

que descobriu elas serem também consumidoras de mercadorias.

O processo de contenção visa a adaptação ao mecanismo

social, reduzindo focos de contestação. Neste sentido, a New Left43

41 Marcuse, “The classical alternative “socialism or barbarism” is more urgent today than ever before.”,

“The failure of the New Left?” In: Marcuse, Herbert. The New Left and the 1960s. Douglas Kellner

(eds) London and New York, Routledge, 2005, p.191 (Collected Papers of Herbert Marcuse, vol. III)

42 Marcuse, H. “Mr. Harold Keen: Interview with Dr. Herbert Marcuse”, op. cit., pp. 128-9.

43 Marcuse, “The New Left consists of political groups that are situated to the left of the traditional

communist parties; they do not yet possess any new organizational forms, are without a mass base and are isolated from the working class, especially in the United States. The strong libertarian, anti-

authoritarian movements that originally defined the New Left have vanished in the meantime or

yielded to a new “group-authoritarianism.” Nevertheless, that which distinguishes and essentially characterizes this movement is the fact that it has redefined the concept of revolution, bringing to it

those new possibilities for freedom and new potentials for socialist development that were created (and

immediately arrested) by advanced capitalism. As a result of these developments, new dimensions of social change have emerged. Change is no longer defined simply as economic and political upheaval,

as the establishment of a different mode of production and new institutions, but also and above all as a

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

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apareceu como uma alternativa à esquerda ortodoxa, que só

compreendia o desenvolvimento histórico social seguindo dogmas

oficiais. A nova realidade histórica surgida após a Segunda Guerra

não permitia um processo revolucionário como foi com a

Revolução Russa de 1917. A revolução chinesa e a revolução

cubana apareceram como novas alternativas fora do bloco

soviético. Muitos ficaram impressionados e se deixaram levar, como

Jean-Paul Sartre que apoiou o maoísmo. Mas a New Left pretendia

estabelecer uma organização muito mais livre e democrática do

que as organizações tradicionais, visando métodos ação menos

dogmáticos, incorporando debates não registrados pela esquerda

tradicional, como o movimento ecológico, o feminismo, entre

outros. O problema da revolução tornou-se a dimensão total da

existência.

Os jovens militantes sabem ou sentem que o que está em

jogo é simplesmente suas vidas, a vida de seres humanos que se

tornaram um brinquedo nas mãos dos políticos e gerentes e

generais. Os rebeldes querem retirá-la destas mãos e fazer valer a

pena vivê-la; eles percebem que isto ainda é possível hoje, e que o

alcance desta meta necessita de uma luta que já não pode ser

contida pelas regras e regulamentos de uma pseudo-democracia

em um Mundo Livre Orwelliano.44

À GUISA DE CONCLUSÃO

Se em Um ensaio sobre a libertação (1967), Marcuse

desenha uma utopia crítica, pensando o socialismo como uma

necessidade biológica e defendendo uma nova sensibilidade, em

Contrarevolução e revolta (1971), embora mantenha muitas de

suas posições, ele percebe claramente o processo de contra-

revolução instaurado e a prática petrificada da esquerda

institucionalizada e da fraqueza da oposição real. Para ele, a luta

de classes não deixou de existir, age inclusive com mais força por

meios mais sutis, como a indústria cultural, embora a força das

armas continue imperando nos rincões do mundo. O capitalismo é

visto tanto em sua face de abundância quanto de miséria. A

estrutura conjuntural mundial estava mudando. O mundo estava

revolution in the prevailing structure of needs and the possibilities for their fulfillment.” (“The Failure of the New Left”, op. cit., p.183)

44 Marcuse, Um ensaio sobre a libertação (1967), Preface, p. X.

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

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sofrendo um processo de repressão violento, em todos os níveis:

econômico, político, social, cultural, sexual, etc. Marcuse

vislumbrara parte do que estava por vir. Certamente, o fim da

Guerra Fria, o fim da URSS e dos países socialistas do leste europeu,

a transformação em potências da China (com características

capitalistas e poder político vinculado ao partido comunista) e da

Índia, a integração cada vez maior das minorias nos países

capitalistas avançados, o aparecimento de novas doenças, como

a AIDS, o desenvolvimento da engenharia genética, entre diversos

outros fatores, não estavam no horizonte de Marcuse. Mesmo assim,

muitos destes fatores e até a nova ordem mundial após o 11 de

setembro de 2001, corroboram análises desenvolvidas por ele em

seus últimos textos.45

Pode-se notar como características do marxismo de

Marcuse, a busca incessante pela utopia como guia ético do

processo de transformação social e a crítica sem concessões ao

existente. A crítica da economia política como crítica das relações

sociais implica em novas formas de sociabilidade, em novas formas

de relação com a natureza (não mais como mercadoria). A

atitude ética poderia ser pensada como um sistema da vida ética,

visando, porém, a liberdade e a felicidade de todos. Como guia do

processo, não se pode pensar a liberdade e a felicidade como

“presente de natal”, como promessa a ser adiada. A abolição do

trabalho alienado é parte essencial do processo de transformação

social, na medida em que o trabalho alienado além de gerar

riqueza também gera desconforto, miséria e sofrimento. Não,

porém, em Marcuse, uma ética do trabalho, nem uma

sobrevalorização do trabalho. Os trabalhadores não são melhores

por serem trabalhadores. Eles têm destaque no processo

revolucionário devido à sua posição na produção social. Há que se

combater o machismo, sexismo, racismo, autoritarismo e outras

formas nocivas a um processo de mudança social. Deve-se

respeitar o outro e a natureza. A mudança social não pode ser

efetuada de “cima para baixo”, mas deve ser um processo que

afete o todo da sociedade e que os indivíduos devam sentir sua

necessidade. Marcuse entende as dificuldades deste processo e

afirma que a revolução não é para amanhã, não há ilusão nisso. A

contrarrevolução ainda é forte. A paralisia (ou fraqueza) da

oposição tem garantido tal força. Mesmo assim, não se deve deixar

cair a bandeira do socialismo, cuja propaganda necessita ser

45 Cumpre observar que Marcuse contribui para o marxismo, não pretende dar a última palavra ou ser

dogmático.

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

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mantida e debatida para ser compreendida. Trata-se, talvez, de

um trabalho de “formiguinha”, um trabalho muito arriscado, e, para

Marcuse, o risco vale a pena.

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Considerações sobre o marxismo ocidental. Trad. M. Levy.

Revisão técnica. E. Sader. 2ª ed. São Paulo, Brasiliense, 1989.

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

71

Gramsci e a cultura de seu tempo:

observações sobre arte e literatura

Anita Helena Schlesener (UTP)46

O presente trabalho pretende retomar algumas reflexões

sobre o conceito de hegemonia e sua relação com a cultura a

partir das observações de Gramsci sobre arte e literatura. O tema

se insere numa perspectiva recente de leitura dos escritos desse

autor, a partir da publicação da nova edição crítica iniciada em

2007, como parte da Edição Nacional das obras de Gramsci,

acompanhada de um estudo crítico que redefine o contexto de

produção da obra. Os temas sobre a literatura aparecem nas

intenções de pesquisa esboçadas nas primeiras cartas do cárcere

e em alguns projetos de pesquisa, alem da explicitação do desejo

de estudar varias línguas a partir da tradução de textos de

determinados autores alemães e russos, entre eles Goethe, Marx,

Dostoievski, Tchecov, Gogol e Pushkin.47 Gianni Francioni,

organizador da nova Edição Crítica, acentua que a escolha dos

autores e dos textos a traduzir evidenciam tanto interesses

precedentes ao confinamento quanto problemas centrais a

desenvolver nos Cadernos do Cárcere, fato que se pode constatar

principalmente na escolha dos textos de Marx. De qualquer modo,

as idéias de Gramsci sobre a literatura de seu tempo precisam ser

examinadas na sua relação com sua teoria política, na qual se

pode inserir a sua preocupação com uma historia da cultura e os

46 Professora de filosofia política (aposentada) da UFPR; professora do Mestrado e Doutorado em educação da UTP.

47 Esse último nos traz a lembrança da influência do romantismo nas primeiras leituras de Gramsci no

período universitário, tanto na vertente russa quanto na francesa (estudada por GERVASONI,1998). Para Gramsci, a questão do romantismo italiano precisa ser entendida no contexto da relação ou

ligação particular entre os intelectuais e o povo; isto é, trata-se de um problema que envolve, também

aqui, o aprofundamento das raízes históricas e sociais a partir das quais se construíram as relações políticas na Itália. Em linhas gerais, é sempre o significado político que Gramsci busca na literatura. O

que o preocupa é elaborar uma história da cultura e não uma história da literatura.

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

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seus objetivos em relação a uma nova organização social e

política.

Evidenciar a relação entre política e cultura no contexto do

conceito de hegemonia permite salientar as novas dimensões da

luta de classes; esta assume cada vez mais a forma de formação

de hábitos, costumes, modo de pensar que se torna homogêneo e

possibilita que as formas de vida dos dominantes sirvam de modelo

e exemplo para as classes dominadas, que perdem assim a sua

capacidade de agir e decidir autonomamente. Nesse contexto, a

abordagem gramsciana da literatura assume nova configuração

no âmbito da teoria política, sempre tendo como pressuposto a

relação intrínseca entre política, historia e filosofia. Atribui-se para a

literatura uma função ampliada, enquanto enunciadora de

conceitos na forma assimilável no senso comum e enquanto forma

de explicitar relações históricas que constituem a sociabilidade e as

relações de forças que mantém ou renovam uma determinada

estrutura política.

A função mistificadora de um pensamento homogêneo que

anuncia a promessa de participação e de liberdade para todos no

contexto da ordem burguesa, basta que se trabalhe e se consuma,

é abordada por Gramsci por meio da metáfora do carrossel:48 a

sociedade burguesa é um grande parque de diversões que tem no

seu centro um carrossel; a felicidade se traduz em andar nos

cavalinhos, fato que demonstra que se conseguiu o acesso à

propriedade. Acontece que existem milhares de pessoas que

tentam andar nos cavalinhos, mas somente algumas conseguem;

as outras sofrem todos os constrangimentos sem resistência, porque

esperam, um dia, conseguir ascender socialmente e usufruir as

benesses da propriedade. O que se ressalta nessa metáfora é que

a riqueza não se apresenta como um fim em si, mas como um meio

para conseguir a liberdade, isto é, a busca de riqueza não se

circunscreve ao material, mas envolve uma finalidade maior que é

a liberdade e a continuidade do bem-estar gerado; essa

concepção disseminada no senso comum retira da exploração do

trabalho e do conjunto do processo de dominação seu caráter

moral negativo e acresce-a de um elemento meritório vinculado à

preservação da família e à transmissão de valores.

A consolidação da hegemonia de um grupo social

acontece quando se alcança uma homogeneidade de

48 O artigo no qual Gramsci apresenta esta metáfora foi escrito em 1918, publicado em Gramsci (1975) e se encontra traduzido no livro Antologia de textos filosóficos, publicado pela Secretaria de Educação

do Paraná em 2009, como material didático para o ensino médio.

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

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pensamento, ou seja, quando o domínio de uma classe determina

o modo de ser, de pensar, de competir e de conceber a própria

individualidade. A questão da cultura, portanto, reveste-se da

ideologia como pratica de poder, o que pode ser compreendido

somente quando as classes dominadas esclarecerem para si as

varias formas que assume a dominação no contexto do modo de

produção capitalista. Para as classes trabalhadoras a questão

cultural reveste-se das características da luta de classes, que

implica em compreender que, ao assimilar o pensamento

dominante, compartilham um horizonte subjetivo que jamais

poderá ser usufruído verdadeiramente.

A ideologia como prática de poder produz e realimenta o

imaginário social criando no indivíduo expectativas de ascensão

social que nunca serão realizadas, mas que produzem, no senso

comum, uma apatia, uma indiferença política difícil de abalar. No

campo da democracia burguesa, as eleições, o debate

parlamentar (o parlamento é o lugar onde "se parla"), a

proclamação da igualdade de acesso aos direitos individuais e

outras práticas, ocultam a verdadeira situação política, que se

produz para manter e consolidar a relação efetiva entre a estrutura

econômica e o aparato estatal; a pratica e se reforça na medida

em que, no imaginário social se mantém a crença de participação

igualitária e do exercício de uma política democrática no âmbito

do Estado.

Nisso consiste a relação entre política e cultura: esclarecer

como se constrói a sociabilidade como hegemonia dos

dominantes, que desarma e imobiliza qualquer possibilidade de

organização política de massas. A leitura que sustenta essa

exposição tem como base os Cadernos do Cárcere que, entre os

vários temas que abordou e que possuem relevância no contexto

da formação das relações de hegemonia, está a cultura popular,

considerada na sua relação com a arte e a literatura de seu

tempo, com as quais Gramsci tentou estabelecer um diálogo.

Dentro dessa perspectiva, a pergunta que se faz é sobre o

que é efetivamente popular, ou seja, o que é produzido pelas

classes populares e o que é apresentado e veiculado para elas. No

contexto do pensamento de Gramsci a cultura popular assume um

significado próprio, na medida em que pressupõe a luta de classes

e a correlação de forças expressa nas relações de hegemonia: a

cultura se expressa no senso comum por meio de um modo de

pensar; o senso comum se compõe de um conjunto fragmentado e

incoerente de conhecimentos evidenciados por Gramsci no

chamado “folclore” e por elementos coerentes e mais

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

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sistematizados a partir dos referenciais hegemônicos, denominados

pelo autor como “filosofia”. A característica fragmentária e

assistemática do senso comum se constitui na grande fraqueza

desse modo de pensar, visto que a ausência de uma coerência

não permite evidenciar as contradições que permeiam o cotidiano

e se traduzem no antagonismo entre o pensamento e a ação.

Somente a elaboração de um pensamento crítico e coerente, a

partir da organização política, pode permitir aos trabalhadores

identificar na sua prática social e política os germens de um novo

pensamento e renovar a cultura. Enquanto isso não acontece, a

cultura popular se constitui de elementos do pensamento

dominante e dos valores e idéias que provém tanto do passado

mais remoto quanto do ideário das classes que detém o poder. A

organização política, possibilitando uma compreensão do conjunto

de relações econômicas, sociais e políticas, evidenciaria as formas

culturais de dominação presentes na divulgação e consolidação

de um pensamento homogêneo e permitiria a elaboração de um

pensamento rico e peculiar da realidade, que consistiria, então, na

cultura popular.

Gramsci evidencia esta situação no contexto da realidade

italiana de sua época, na análise de situações diversas ocorridas

no curso da história, desde a Revolução Francesa, passando pela

Revolução burguesa italiana, que teve início no renascimento e se

consolidou como revolução passiva no Risorgimento, até a

ascensão do fascismo na Itália. A leitura da história traz implícita a

discussão sobre os intelectuais enquanto funcionários da

hegemonia, ou seja, enquanto responsáveis por uma constante

“direção intelectual e moral” que sedimenta e mantém a

hegemonia de determinados grupos sociais. Da retomada e

reinterpretação da história moderna se elaboram os elementos

centrais do conceito de hegemonia: um grupo social é dominante

tanto pelo exercício da força, que lhe permite submeter os grupos

resistentes, quanto pela direção intelectual e moral, que lhe

permite alcançar o consentimento pela formação de um modo de

pensar homogêneo. El qualquer caso è mais interessante, para os

grupos que desejam conquistar a hegemonia, tornar-se dirigentes

antes de dominantes e, ao conquistarem o poder, manter a

direção intelectual e moral.

Na organização política se criam os mecanismos de direção

e de participação efetiva e consciente, fato que implica em formar

seus próprios intelectuais, cujo compromisso refletir e criticar as

contradições que perpassam seu cotidiano, para “buscar os elos

com o povo, com a nação”, para gerar “uma unidade não servil,

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

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devida a obediência passiva, mas uma unidade ativa, vivente,

qualquer que seja o conteúdo dessa vida” (GRAMSCI, 1977, Q. 9:

1740). A valorização da cultura popular como mecanismo de luta

política permite compreender as idéias de Gramsci sobre a arte e a

literatura de seu tempo, visto que essas encontram seu significado

no contexto da organização social e política e dos conflitos que

permeiam a sociedade italiana dão inicio do século XX; no curso

de sua organização política os trabalhadores podem tomar

consciência das contradições que permeiam seu modo de

existência e elaborar uma nova concepção de mundo a partir da

qual se pode redefinir toda a cultura historicamente produzida,

elemento indispensável para a proposição de uma nova

hegemonia.

Essa leitura ressalta do significado peculiar de “popular”

presente nos escritos de Gramsci: ao mesmo tempo em que

acentua que os intelectuais devem mergulhar nas práticas e

tradições das classes populares para construir a coerência interna

desse material, levanta a pergunta sobre qual literatura pode ser

considerada popular, e responde que os grandes clássicos como

Dostoievski, Goldoni, entre outros, são autores populares porque

abordaram assuntos que apresentam um valor universal e, ao

divulgá-los em sua literatura, contribuíram para torná-los de amplo

conhecimento. Se a arte e a literatura se inserem no conjunto de

relações de hegemonia, trata-se de evidenciar sua importância na

edificação dos princípios necessários para a elaboração de uma

nova concepção de mundo. Se levarmos em conta que o

conhecimento é dinâmico, fruto da constante interlocução dos

homens entre si e com o pensamento historicamente produzido,

arte e literatura cumprem a sua função política renovadora na

medida em que se tornam populares, ou seja, enquanto sejam

restituídas em sua integridade a toda a sociedade.

Nas condições de capitalismo avançado essa formação

tem fundamental importância na luta hegemônica, ou seja, a

cultura tornou-se um dos mecanismos das relações de poder e da

luta de classes que se consolida enquanto exploração do trabalho

firmando-se como dominação das consciências individuais pela

formação das subjetividades. A exploração do trabalho assume

novas proporções na medida em que se consolidam os padrões de

comportamento constantemente reafirmados pelos meios de

comunicação de massa. Dessa perspectiva a leitura de Gramsci

assume sua atualidade, na medida em que seus conceitos nos

permitem refletir sobre questões que se renovam. O problema da

atualidade de um pensamento político de um pensador agora

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

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entendido como um clássico é sempre uma questão polêmica.49

Gramsci falava de um contexto e de uma realidade que se alterou

significativamente nas últimas quatro décadas, tanto no que se

refere a relações de trabalho quanto ao significado da cultura no

contexto da política. Para Accardo,

“a questão a colocar é se, depois das

grandes mudanças da política italiana e internacional a partir de 1989, Gramsci pode ser ainda um ponto de referencia para a esquerda saída da experiência do partido comunista. Não se trata de avaliar a atualidade de um autor com base na possibilidade de encontrar na sua reflexão a resposta para questões precisas e determinadas, mas de avaliar o quanto pode ser fecundo, na realidade atual, o patrimônio moral, político e cultural de sua obra” (ACCARDO, 2009: 11).

Entendemos que existem conceitos que continuam sendo

fundamentais para pensar a realidade contemporânea,

principalmente se tomarmos a relação intrínseca estabelecida por

Gramsci entre filosofia, política e história. Apesar de todas as

mudanças, a noção de hegemonia e a importância da cultura na

formação de um consenso apresentam-se como referenciais

importantes para pensar as novas formas de alienação geradas a

partir da sedimentação da ideologia neoliberal e sua difusão pelos

meios de comunicação.

Seguindo a senda inicialmente aberta, salienta-se que o

conceito de hegemonia e os elos entre política e cultura permitem

a Gramsci redimensionar a arte e a literatura no contexto da

história italiana, por meio de temas como a importância de uma

língua nacional unificadora, a ausência de vínculos consistentes

entre os intelectuais italianos e as classes populares, fruto de um

processo histórico no qual as forças conservadoras prevaleceram; o

caráter progressivo e regressivo do Humanismo e do Renascimento,

a necessidade de mergulhar na cultura das massas para nela

encontrar os elementos universais a serem expressos na linguagem

literária. A literatura, para ser popular, precisa ser expressão

49 Conforme Anglani (2007: 5), as “razões que fazem de Gramsci um ‘clássico’, ou seja, um autor que não se tornou ‘obsoleto’ com as mudanças dos tempos e das condições históricas” se apresentam

precisamente na valorização do ético-estético juntamente ao teórico-político.

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

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elaborada das aspirações e sentimentos mais profundos das classes

populares em determinado momento histórico e, ao mesmo

tempo, obra de arte. Esse elemento não era alcançado pela

literatura italiana de sua época, fato que se evidenciava no

distanciamento dos intelectuais em relação as classes populares,

tanto que estas conheciam e apreciavam romances de folhetim

franceses e desconheciam completamente os autores italianos.

“O erro do intelectual consiste em crer

que se possa saber sem compreender e, especialmente sem sentir e estar apaixonado (não só pelo saber em si, mas pelo objeto do saber), isto é, em acreditar que o intelectual possa ser tal (e não um puro pedante) quando distinto e separado do povo-nação, isto é, sem sentir as paixões elementares do povo, compreendendo-as e, assim, explicando-as e justificando-as em determinada situação histórica, vinculando-as dialeticamente às leis da história, a uma concepção de mundo superior, científica e coerentemente elaborada, o ‘saber’; não se faz política-história sem esta paixão, isto é, sem este elo sentimental entre intelectuais e povo-nação. Na ausência desse elo, as relações do intelectual com o povo-nação são ou se reduzem a relações de ordem puramente burocrática e formal” (GRAMSCI, 1977, Q. 9: 1505).

A ausência de elos e até um certo desprezo de alguns

intelectuais pela cultura popular, a falta de interesse em conhecer

e expressar as aspirações populares, constatada por Gramsci na

literatura italiana, evidencia o compromisso político desses

intelectuais com o movimento conservador que caracterizou a

revolução burguesa italiana; se houvessem esses elos, os

intelectuais poderiam ter contribuído para o caráter mais

progressivo da revolução, fato que poderia fortalecer a própria

burguesia da época.

O aspecto político apresenta-se no fato de a literatura

apresentar um conteúdo ideológico que tem uma grande

importância, visto que o leitor se identifica com o conteúdo e as

escolhas morais dos personagens; porém o critério político de

formação não se sobrepõe ao critério estético: o conteúdo da arte

não pode ser pensado abstratamente, separado da forma. As

questões estéticas como a relação entre conteúdo e forma, por

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

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exemplo, possuem um alcance histórico e político. E é dessa

perspectiva que Gramsci as aborda: no contexto das relações de

hegemonia, interessado em produzir uma história dos intelectuais

italianos enquanto aqueles que contribuem para manter

determinadas relações de poder.

Tomamos como exemplo a leitura de Pirandello: embora

revelando-se um crítico severo da obra pirandelliana, Gramsci

acentua a importância desse autor para a cultura italiana, porque

seu trabalho apresenta um conteúdo cultural mais do que artístico

e, ao apresentar dessa forma seu teatro, Pirandello contribuiu para

renovar o senso comum, separando o “folclore” do “bom senso”.

“Em Pirandello temos um escritor ‘siciliano’ que consegue conceber

a vida camponesa em termos ‘dialetais’, folclóricos (...),, que ao

mesmo tempo é um escritor ‘italiano’ e um escritor ‘europeu’”.

Entretanto, a consciência de ser tudo isso transparece na sua

“debilidade artística, ao lado do seu grande significado ‘cultural’.

Essa ‘contradição’” expressou-se explicitamente em alguns de seus

trabalhos narrativos (GRAMSCI, 1977, Q. 9: 1671-2).

Nesse contexto, nas palavras de Stipcevic, a crítica

gramsciana ao teatro de Pirandello traz uma forte influência de

Croce e de sua posição em relação ao escritor de Mattia Pascal,

Sei personaggi in cerca d’autore e outros belos trabalhos; por

motivos ligados a seus próprios objetivos, Gramsci “isolou o

elemento cultural da criatividade de Pirandello, para poder

examinar a medida de sua influência sobre a transformação do

clima cultural da época” (STIPCEVIC, 1981: 114) Apesar desses

limites que orientam sua leitura, Stipcevic acentua que se deve

“reconhecer que Gramsci expôs, muito antes de tantos outros, uma

das funções principais sustentadas pela obra pirandelliana no

interior da literatura e da cultura italianas”, ou seja, ressaltou o

aspecto cultural da obra, na sua relação com o contexto

ideológico e político (STIPCEVIC, 1981: 115-6). No ponto de vista

gramsciano, a questão principal apresenta-se na capacidade de

uma literatura contribuir para a formação de uma nova

concepção de mundo, para renovar a ética e os costumes, ou

seja, na sua forca renovadora do social, para além de suas

qualidades artísticas.

Ainda no contexto da literatura italiana, algumas

considerações sobre as reflexões de Gramsci sobre Dante Alighieri,

que supõe a sua leitura do livro de Croce sobre a Divina Comedia e

também dos debates gerados por ocasião de sua publicação. As

polêmicas em torno da poesia dantesca se acentuam a partir de

1921, ano de comemoração dos seiscentos anos da morte do

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

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autor, debate que teve como figuras centrais Benedetto Croce e

Luigi Russo sobre a interpretação da principal obra de Dante na

relação entre estrutura e poesia (STIPCEVIC, 1981: 150-1).

Gramsci insere-se nesse debate já a partir de 1918, quando

publica no Avanti! o artigo Il cieco Tiresia, comparando o texto de

Dante com alguns fenômenos populares a respeito de previsões do

final da Primeira guerra. Já nesse artigo a leitura gramsciana do

Canto X do Inferno visa a contrapor a chamada alta cultura

(burguesa e católica) com a cultura popular na perspectiva da

oposição entre teoria e prática na compreensão da

temporalidade (GRAMSCI, 1982: 833-4). O elo entre tradição

literária e cultura popular se esclarece na motivação do artigo, que

é a notícia publicada por um jornal da época sobre uma menina

do interior da Itália que, depois de prever o final da guerra em

1918, fica cega. O dom de prever faz parte do folclore e o

“vidente, embora veja o futuro, não vê o presente imediato porque

tomado de cegueira”. A descrença dos que ouvem as previsões

pode ligar-se ao fato de não se dever alterar a ordem natural das

coisas, como aconteceu com Cassandra, na qual ninguém

acredita; “chora e fala, mas encontra somente céticos, homens

indiferentes que não se preocupam, que não se contrapõe ao

destino. Cassandra vive um drama mais individual, é criação de

poesia culta, literariamente refinada”. Já Tirésias é fruto da

expressão popular e a piedade por ele é imediata. “Parece pouca

coisa: em vez disso, é uma enorme experiência que só a tradição

popular poderia conseguir tentar e concretizar. O décimo Canto

do Inferno dantesco, o sucesso que teve na crítica e na difusão,

dependem desta experiência” (GRAMSCI, 1977, Q. 4: 527)50 Em

1918 Gramsci escrevia:

“Farinata e Cavalcante são punidos por

haverem desejado muito ver no além, saindo fora da disciplina católica: são punidos com o desconhecimento do presente. Mas o drama desta punição escapa a crítica. Farinata é admirado como modelo pela sua atitude orgulhosa, pela sua distinção no horror infernal. Cavalcante é negligenciado, ainda que seja golpeado de morte por uma palavra: ele era, que o faz acreditar que seu filho está morto. Ele não conhece o presente: vê o futuro e nele o seu filho

50 Esse fragmento foi retomado por Gramsci de um comentário feito com um colega de curso

universitário a respeito da monografia, apresentado como nota no artigo Il cieco di Tirésias.

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

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está morto. Dúvida torturante, punição tremenda nesta dúvida, drama altíssimo que se consuma em poucas palavras. Mas drama difícil, complicado, que necessita de reflexão e raciocínio para ser compreendido; (...) Cavalcante não vê, mas não é cego, não tem uma prova corporal evidente de sua desventura. Dante, neste caso, é um peta culto. A tradição popular quer (...) uma poesia mais ingênua e imediata” (GRAMSCI, 1977, Q. 9: 1187)

Essas posições são retomadas, defendidas e ampliadas nos

Cadernos do Cárcere, colocando Gramsci em oposição a todos os

críticos de seu tempo, como se pode deduzir da carta do Prof.

Umberto Cosmo, comentada por Gramsci.51 Concentrando-se no

Canto X do Inferno, que se conhece, em geral, como o Drama de

Farinata, a leitura encaminha-se a salientar os elementos da história

de Cavalcante. Para Gramsci, a figura central desse Canto não era

Farinata, mas sim Cavalcante; dessa perspectiva, contrapõe-se

tanto a De Sanctis quanto a Croce e, na senda aberta por Foscolo,

consegue dar uma interpretação unitária do poema dantesco no

seu aspecto histórico e político. Esta questão é abordada a partir

da escolha desse Canto para análise, visto que nele se apresenta,

com toda a sua força, a paixão política de Dante. Gramsci

acentua que “o décimo canto é político assim como é política

toda a Divina Comedia, mas não é político por excelência”,

(GRAMSCI, 1977, Q. 4: 522) visto que a posição política de Dante

não pode ser determinada apenas por essa obra, mas por toda a

sua produção bibliográfica considerada nos limites da história e das

divisões políticas de seu tempo (GRAMSCI, 1977, Q. 4: 525)

A beleza do texto de Dante transparece no modo de sugerir

as condições do drama: Cavalcante, porque desejou ver o futuro,

representa a alma punida com a impossibilidade de conhecer o

presente. “Quando Dante se aproxima das duas sombras, estas

vêem Guido Cavalcanti, amigo de Dante, filho de Cavalcante e

genro de Farinata, vivo no passado e morto no futuro, mas não

sabem, no momento em que conversam, se ele está vivo ou morto”

(STIPCEVIC, 1981: 154).

Dante não representa os fatos, apenas oferece ao leitor os

elementos (angústia, abatimento, ternura paterna, postura

51 A carta, datada de 1932, diz: “Ao que parece, o amigo acertou no alvo; (...) realizaria uma ótima obra se o iluminasse (o drama de Cavalcante). Mas para iluminá-lo seria necessário entrar um pouco mais na

alma medieval” (GRAMSCI, 1977, Q. 9: 528).

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

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corporal) para reconstruir o drama a partir da estrutura do poema.

Gramsci procura mostrar que o núcleo poético se encontra na

segunda parte, na reação de Cavalcante lançado na dúvida,

expressão da faculdade dos danados de conhecer o passado e

antever o futuro, estando cegos para o presente. Nas figuras dos

dois personagens, as diferenças evidenciadas entre alta cultura

(heroísmo e altivez de Farinata) e cultura popular (sofrimento e

abatimento de Cavalcante) valorizam tanto os elementos

estruturais quando ressaltam o aspecto político da poesia.

Conforme Stipcevic, Gramsci”abriu a possibilidade teórica de dar

uma interpretação desse gênero a toda a Comédia. Valorizando

um detalhe deste grandioso afresco poético, demonstrou como o

resgate da poesia pode acontecer num plano mais vasto”, além

de contestar frontalmente a interpretação de Croce (STIPCEVIC,

1981: 157-8).

Salientamos ainda a defesa de Goethe e de sua

importância cultural, pela sua genialidade, acrescida da

singularidade de sua figura. Gramsci lembra que se afirma que a

função dos grandes intelectuais é “ensinar como filósofos, aquilo

em que devemos crer, como poetas aquilo que devemos intuir

(sentir), como homens, aquilo que devemos fazer” (GRAMSCI, 1977,

Q. 9: 1187) Em seguida se pergunta quais os autores que poderiam

entrar nessa definição e completa:

“Não Dante, por sua distância no tempo

e pelo período que exprime, a passagem do Medieval para a Idade Moderna. Somente Goethe é sempre de uma certa atualidade, porque exprime de modo sereno e clássico (...) a confiança na atividade criadora do homem, em uma natureza vista não como inimiga e antagonista, mas como uma força a conhecer e a dominar, com o abandono sem o lamento e a desesperação das ‘fabulas antigas’” (GRAMSCI, 1977, Q. 9: 1187).

Goethe expressa a mentalidade própria do mundo

moderno, cuja confiança na capacidade e criatividade do

homem se traduz na figura de Fausto, aquele capaz de empenhar

sua vida para alcançar seus objetivos. Para Gramsci esses são os

elementos a serem assimilados pela cultura popular, a fim de

realizar os objetivos de uma nova sociedade. O conceito de

cultura, capaz de transformar a concepção de mundo de uma

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

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época, pressupõe a compreensão de como o modo de pensar

atua nas relações de hegemonia e como, nesse contexto, as

classes trabalhadoras precisam, no processo de organização

política, reformular suas próprias concepções da realidade, a fim

de avançar na luta de classes.

A abordagem gramsciana da literatura insere-se no

contexto da produção de uma “nova literatura enquanto

expressão de uma renovação intelectual e moral” (GRAMSCI, 1977,

Q. 9: 1820) que, por sua vez, pode acontecer somente num

movimento consistente de organização política para construir uma

nova ordem social. A “premissa de uma nova literatura não pode

deixar de ser histórica, política, popular” lançando suas raízes na

cultura popular (GRAMSCI, 1977, Q. 9: 1821).

Para concluir, as considerações de Gramsci sobre a arte e a

literatura inserem-se no objetivo mais amplo da formação de uma

concepção de mundo coerente e unitária para as classes

trabalhadoras. As ambigüidades do movimento futurista, por

exemplo, expressas na contradição entre rebelião-recusa no

âmbito da produção artística e restauração nas posições políticas,

ligam-se não só às raízes pequeno-burguesas e às incertezas que

marcaram o início do século eclodindo na Primeira Guerra, mas

principalmente à história da intelectualidade italiana que, desde o

Duecento distanciou-se do povo e abandonou as posições mais

radicais por atitudes mais conservadoras, analisadas por Gramsci

no fenômeno do transformismo.

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

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Gramsci e Relações Internacionais:

hegemonia, dependência e

imperialismo

Marcos Vinícius Pansardi (UTP)52

INTRODUÇÃO

A influência do marxismo em todas as áreas das ciências

humanas foi imenso ao longo do século XX. Da economia à historia,

da sociologia à teoria literária, o marxismo não pode ser ignorado,

mesmo por aqueles que se opunham a ele.

No campo teórico das relações internacionais isso, no

entanto, não ocorreu. Durante boa parte do século XX o marxismo

e as relações internacionais permaneceram de costas um para o

outro53. O marxismo não teve nenhuma influência nas correntes

predominantes das relações internacionais até o final dos anos 70.

Para Halliday (1999), isso pode ser explicado por dois fatores.

Primeiro o fato de que as relações internacionais se desenvolveram

inicialmente nas universidades britânicas e norte-americanas, locais

onde o marxismo teve pouca influência. Segundo, pelo papel da

teoria do imperialismo, que nunca teve boa recepção nas relações

internacionais, por que era vista como uma teoria que pouco tinha

a dizer sobre a política internacional, centrando-se nos aspectos

econômicos da arena internacional.

52 Doutor em Ciências Sociais – UNICAMP. Prof. do PPGED – Mestrado em Educação da Universidade Tuiuti do Paraná. Email: [email protected]

53 Hans Morgenthau, considerado o “fundador” dos estudos científicos contemporâneos das relações

internacionais, usa apenas duas páginas, no seu livro clássico - Política entre as nações. A luta pelo poder e pela paz (MORGENTHAU, 2003) -, para analisar o marxismo e o imperialismo, afirmando

que todas as suas conclusões são errôneas. Não há nenhuma citação ou referência a Marx.

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

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Por outro lado, o marxismo também não estabeleceu

diálogo com aquelas teorias. Não que o marxismo não se

interessasse pelas questões internacionais, ao contrário, o maior

exemplo seriam a própria teoria do imperialismo, que foi objeto de

amplo debate nas primeiras décadas do século XX.

Assim poderíamos afirmar que a relação entre o marxismo e

as relações internacionais foi historicamente um diálogo de surdos.

Sabemos que o próprio Marx nunca chegou a desenvolver estudos

específicos e aprofundados sobre a questão internacional, apesar

de ter acompanhado por anos a política internacional como

correspondente de um jornal norte-americano. Durante 11 anos

Marx colaborou, como analista internacional, para o influente jornal

norte-americano New York Daily Tribune. É verdade também que

Marx e Engels revelaram grande interesse pelas questões

internacionais, particularmente sobre o fenômeno do

colonialismo54.

Suas análises sobre o tema, contudo, além de pouco

sistematizadas e fortemente conjunturais, muitas vezes revelavam

doses de eurocentrismo e desconhecimento sobre a complexa

realidade para além das fronteiras européias. Assim, se explica

porque estes autores não chegaram a desenvolver uma teoria

coerente sobre as relações internacionais55.

Portanto, foi Lênin a grande referência para o estudo das

relações internacionais no campo do marxismo56, sua utilização do

conceito de “imperialismo” passou a ser a grande, senão a única

referência teórica de peso no marxismo sobre a questão

internacional. No pós-guerra, no entanto, as teorias do imperialismo

perderam força e ao longo dos anos 70 o tema praticamente tinha

desaparecido das análises dos teóricos que reivindicavam o

marxismo.

Por outro lado, no campo acadêmico dos estudos sobre as

relações internacionais, o marxismo foi amplamente marginalizado.

Sendo o campo teórico das relações internacionais essencialmente

anglo-americano (mais americano do que britânico) e, sendo o

54 Textos reunidos na coletânea, em dois volumes, sob o título: Sobre o colonialismo (MARX; ENGELS, 1989).

55 Veja-se, por exemplo: M. FERREIRA (2002), Europa, Afeganistão e África do Norte: uma

introdução às análises de Marx e Engels sobre os conflitos internacionais.

56 Não estamos aqui negando a contribuição fundamental de outros autores marxistas sobre o

imperialismo. Rosa de Luxemburgo, Bukharin, Kautsky, tiveram contribuições importantes, mas

historicamente seus estudos tiveram menos impacto sobre os futuros estudos sobre as relações internacionais do que o de Lênin, que continua até hoje ser a grande referência quando se aborda a

teoria do imperialismo.

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

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marxismo uma teoria reconhecidamente marginal nas

universidades e centros de pesquisa norte-americanos, não seria de

estranhar que assim o fosse. Quando não ignorado, o marxismo era

educadamente descartado como uma teoria simplista e mecânica

(COX, 1981).

É assim que um dos principais teóricos contemporâneos das

relações internacionais, considerado o “pai” da corrente

modernizante do conservadorismo neste campo de estudos,

fundador do chamado “neorealista” (também chamado de

realismo estrutural), Kenneth Waltz, ao buscar classificar os vários

tipos de teorias das relações internacionais, vai dividi-las em dois

grandes grupos: as teorias “reducionistas” e as teorias “sistêmicas”.

Sendo a teoria neorealista sistêmica, o que significa compreender

que o fenômeno internacional é fruto de causas essencialmente

estruturais, externas aos Estados, e não fruto de suas características

internas (nacionais) (WALTZ, 2002).

Consequentemente, as teorias reducionistas seriam aquelas

em que as análises sobre o fenômeno internacional, ou da ordem

internacional, seriam derivadas de alguma característica interna

dos Estados nacionais. Para este autor, o exemplo mais acabado

de reducionismo seria a teoria leninista do imperialismo, pois esta,

ao determinar as características do sistema através de um

determinado estágio de evolução das economias nacionais

(capitalismo monopolista) estaria eclipsando as determinações

sistêmicas que moldariam o sistema internacional. Para Waltz, a

teoria leninista pecava por ser incapaz de compreender as causas

sistêmicas (estruturais) que moldavam a ordem internacional.

GRAMSCI E A QUESTÃO INTERNACIONAL

Nosso objeto de estudo aqui não é a teoria leninista do

imperialismo, e por mais que pudéssemos questionar a leitura de

Waltz sobre ela, vamos partir de suas críticas para analisar as

contribuições de Gramsci ao estudo das relações internacionais.

Para isso nos propomos a fazer uma análise das leituras de Gramsci

desenvolvidas nos Cadernos do Cárcere57 sobre a questão

internacional.

57 Utilizaremos neste estudo a versão brasileira do Cadernos, compostos pelos livros: Maquiavel, a

política e o Estado Moderno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984; Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1988; Concepção dialética da história.

Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1986;Literatura e vidanacional. Rio de Janeiro, Civilização

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

88

Na crítica de Waltz a Lênin colocava-se a questão central

de explicar as causas da guerra, o reducionismo leninista estaria

em compreender este fenômeno a partir de uma forma especifica

de Estado (monopolista). Quando buscamos a explicação de

Gramsci sobre a origem das guerras observamos que a sua leitura

em nada se diferencia da explicação dada por Lênin, pois para

ele, as guerras entre os estados se originam da luta interna entre os

grupos em cada país.

O grupo dirigente tenderá a manter o equilíbrio melhor não

só para sua permanência, mas para sua permanência em

condições determinadas de prosperidade e de incremento destas

condições. Mas, como a área social de cada país é limitada, será

levado a estendê-la às zonas colônias e de influencia, entrando em

conflito com outros grupos dirigentes que aspiram ao mesmo fim,

ou em cujo prejuízo a sua expansão deveria necessariamente se

verificar, já que também o globo terrestre é limitado. Cada grupo

dirigente tende em abstrato a ampliar a base da sociedade

trabalhadora da qual extrai a mais-valia, mas a tendência de

abstrata torna-se concreta e imediata quando a extração da mais-

valia na sua base histórica ficou mais difícil ou perigosa, além de

certos limites que, todavia, são insuficientes (GRAMSCI, 1984: 194).

Segundo Buci-Glucksmann (1980: 183) foi a partir de seus

escritos de 1919 que Gramsci incorporou em suas análises a

questão leninista do imperialismo. Estas leituras propiciaram a ele a

compreensão da nova conformação do Estado e de seus

aparelhos a partir das transformações estruturais do capitalismo e

da expansão da política do imperialismo (BUCI-GLUCKSMANN,

1980: 192).

Partindo do princípio de que as leituras gramscianas sobre

as relações internacionais se fundamentam nas concepções

leninistas não seria difícil concluir, como afirma categoricamente

Carnevalli (2005: 42), que a resposta à questão colocada seria

positiva, pois, ao enfatizar a proeminência do elemento nacional

sobre o internacional, Gramsci estaria subordinando o segundo

elemento ao primeiro. Isso estaria claramente caracterizado na

famosa e sempre citada observação dos Cadernos, na qual ele se

perguntava se na abordagem teórica da política as relações

internacionais determinam ou são determinadas pelas estruturas

sociais (nacionais):

Brasileira, 1986; a edição espanhola do Pasado y presente. Barcelona: Granica, 1977; além do livro A

questão meridional. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1987.

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

89

As relações internacionais precedem ou seguem

(logicamente) as relações sociais fundamentais? Seguem, é

indubitável. Toda inovação orgânica na estrutura modifica

organicamente as relações absolutas e relativas no campo

internacional, através das suas expressões técnico-militares.

Inclusive a posição geográfica de um Estado não precede, mas

segue (logicamente) as inovações estruturais, mesmo reagindo

sobre elas numa certa medida (exatamente na medida em que as

superestruturas reagem sobre a estrutura, a política sobre a

economia, etc.). Além do mais, as relações internacionais reagem

positiva e ativamente sobre as relações políticas (de hegemonia

dos partidos) (GRAMSCI, 1984: 44).

É possível ainda, observar outros momentos em que Gramsci

reforça este argumento, procurando reconhecer que esta sua

visão estaria alinhada com o pensamento já desenvolvido

anteriormente por Marx e por Lênin. Assim “segundo a filosofia da

práxis (na sua manifestação política), seja na formulação do seu

fundador, mas especificamente na definição do seu mais recente

grande teórico, a situação internacional deve ser considerada no

seu aspecto nacional” (GRAMSCI, 1984: 129).

No entanto, é possível encontrar nos escritos de Gramsci

vários trechos onde ele inverte a argumentação, ou seja,

mostrando que a questão internacional tem primazia sobre o

elemento nacional. Em uma passagem dos Cadernos ele afirma

que “as relações internacionais estabelecem um equilíbrio de

forças sobre o qual cada elemento estatal pode influir muito

debilmente” (GRAMSCI, 1984: 93); em outro trecho diz que “só se

pode julgar a atividade econômica de um país em relação ao

mercado internacional, ela ‘existe’ e é avaliada quando inserida

numa unidade internacional” (GRAMSCI, 1984: 217); também

afirma que “não se compreende que o mundo é uma unidade, se

se quer ou não, e que todos os países, que atravessam certas

condições de estrutura, passarão também por certas ‘crises’”

(GRAMSCI, 1984: 215). Por fim, em mais outra citação, diria que

“quando em um Estado a moeda varia (inflação ou deflação),

sucede uma nova estratificação de classes em um mesmo país,

mas quando varia uma moeda internacional, sucede uma nova

hierarquia entre os Estados (...)” (GRAMSCI, 1977: 116).

Assim, é possível então, observar que há uma leitura

sistêmica ou estrutural, mesmo que não seja certamente aquela

defendida por Waltz.

Também é verdade que, uma leitura atenta dos mesmos

Cadernos do Cárcere nos mostra que Gramsci usou raras vezes a

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

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palavra “imperialismo” e quando o fez foi para caracterizar a

época que vivia: “na época atual do imperialismo”, no sentido

clássico do seu uso por Lênin, ou seja, no período da ascensão do

capital monopolístico, do capitalismo monopolista de Estado.

Acredita-se que Gramsci não se interessou particularmente

sobre as questões da política internacional e foi mais um analista

preocupado com a causa italiana; com a incapacidade da Itália

de concluir sua revolução burguesa, da questão do surgimento do

fascismo, dos caminhos da construção de uma revolução

comunista autóctone. Certamente ele foi um autor profundamente

enraizado nas questões nacionais, mas seria um erro grave pensar

que ele não tinha interesse nas questões internacionais ou que

estas eram secundárias em seu pensamento.

Para Jessop, ao contrário, ele foi fortemente interessado em

relações internacionais e foi um estudioso da “geopolítica e da

demopolítica (que passaria a ser chamada bio-política) para

compreender melhor as implicações políticas do equilíbrio de

forças internacionais” (JESSOP, 2005, 434). Para ele a leitura

gramsciana rompe com uma visão estado-cêntrica ou nacionalista

dominante nas relações internacionais58 ao realizar uma

interpretação profunda e complexa do fenômeno internacional.

Para o autor o pensamento de Gramsci combina análises em

diversos níveis (escalas) indo da análise nacional a internacional,

das classes ao estudo das instituições internacionais, das relações

entre o Estado, as organizações internacionais e as ordens

mundiais. Em realidade ele rompeu com a dicotomia tradicional do

realismo entre o mundo interno e o externo da política.

Ao explorar a dimensão internacional das relações

econômicas, políticas e socioculturais, Gramsci não assumiu que as

unidades básicas das relações internacional eram as economias

nacionais, os Estados nacionais, ou as sociedades civis constituídas

a nível nacional. Em vez disso, ele explorou as mútuas implicações

da organização política e econômica, os seus pressupostos sociais

e culturais, e as conseqüências da dissociação das escalas de vida

dominante econômica, política, intelectual e moral. Isso fez-lhe

sensível às complexidades das relações interescalares e ele nunca

assumiu que eles foram ordenados em simples aninhados

hierárquicos (JESSOP, 2005, 433).

58 Para Jessop (2005, 434), apesar de uma defesa de uma concepção sistêmica no estudo da política

internacional, Waltz seria o maior exemplo de uma leitura “nacionalista”, pois coloca o Estado nacional como o único ator relevante das relações internacionais, sem esquecer que sua leitura tem um

viés claramente norte-americano.

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

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Gramsci, procura nos mostrar que a política internacional

tem sua origem na arena nacional, no conflito de classes, na

conformação das forças sociais nacionais, na constituição e na

capacidade de expansão político-econômico-cultural do Estado

nacional para além de suas fronteiras, mas observa que estes

processos não podem ser compreendidos sem a referencia aos

influxos internacionais na ordem nacional. Para ele a própria

construção da ordem mundial moderna esta associada à

necessidade das classes dominantes nacionais de assegurar sua

expansão internacional, ao mesmo tempo em que preservam o

controle político nacional59.

Para este autor, a simbiose nacional-internacional

caracteriza os processos de dominância e não podem ser isolados

ou hierarquizados para além de processos didáticos ou

metodológicos iniciais. É nesse sentido que precisamos reavaliar a

“primazia do nacional” para que não nos limitemos a uma visão

“reducionista”. Como o próprio Gramsci nos alertaria é “necessário

ter em conta o fato de que as relações internacionais entrelaçam-

se com as relações internas dos Estados-nação, criando novas e

únicas combinações historicamente concretas” (GRAMSCI, 1984:

50), ou então, que “é certo que o desenvolvimento verifica-se no

sentido do internacionalismo, mas o ponto de partida é ‘nacional’,

e é deste ponto de partida que se devem adotar as diretivas. Mas

a perspectiva é internacional e não pode deixar de sê-lo”

(GRAMSCI, 1984: 130).

Sua concepção dialética das relações nacional-

internacional não se resume ao espaço estatal, como bem

sabemos o papel da sociedade civil, assim como dos intelectuais, é

fundamental nos processos de construção de uma hegemonia

política. Também nesse caso o fenômeno não pode ser limitado às

fronteiras nacionais:

A religião, por exemplo, sempre foi uma fonte dessas

combinações ideológico-políticas nacionais e internacionais; e

com a religião, as outras formações internacionais: a maçonaria, o

Rotary Clube, os judeus, a diplomacia de carreira, que sugerem

expedientes políticos de origem histórica diferente e levam-nas a

triunfar em determinados países, funcionando como partido

político internacional que atua em cada nação com todas as suas

forças internacionais concentradas. Uma religião, a maçonaria, os

59 Assim: “Toda a história, a partir de 1815, mostra o esforço das classes tradicionais para impedir a formação de uma vontade coletiva deste gênero, para manter o poder ‘econômico-corporativo’ num

sistema internacional de equilíbrio passivo” (GRAMSCI, 1984: 8).

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

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judeus, Rotary, etc., podem ser incluídos na categoria social dos

“intelectuais”, cuja função, em escala internacional, é a de mediar

os extremos, “socializar” as inovações técnicas que permitem o

funcionamento de toda atividade de direção, de excogitar

compromissos e saídas entre soluções extremas (GRAMSCI, 1984:

51).

Sendo assim a teoria desenvolvida por Gramsci não é nem

reducionista e nem sistêmica, sendo esta tipologia uma visão

positivista de ciência bem ao gosto das análises de Waltz, ela é

certamente dialética. O próprio Gramsci faz uma analogia das

relações entre o nacional-internacional da mesma forma que

observaríamos as relações entre o estrutural e o superestrutural,

entre o econômico e o político. Não são relações mecânicas, mas

relações dialéticas de determinação.

Na história real estes momentos se confundem

reciprocamente, por assim dizer horizontal e verticalmente,

segundo as atividades econômicas sociais (horizontais) e segundo

os territórios (verticais), combinando-se e dividindo-se

alternadamente. Cada uma destas combinações pode ser

representada por uma expressão orgânica própria, econômica e

política. Também é necessário levar em conta que, com estas

relações internas de um Estado-nação, entrelaçam-se as relações

internacionais, criando novas combinações originais e

historicamente concretas (GRAMSCI, 1984: 50).

Gramsci coloca todas as questões em torno das quais se

acende a luta política não num plano corporativo, mas num plano

“universal”, pensando assim, a hegemonia de um grupo social

fundamental sobre uma série de grupos subordinados. O Estado,

para ele, é concebido como organismo próprio de um grupo,

destinado a criar as condições favoráveis à expansão máxima

deste grupo. O que caracteriza o processo de construção desta

expansão é exatamente a capacidade destas classes

(dominantes) em expandirem seu domínio para além das fronteiras

nacionais. Mas este desenvolvimento e esta expansão são

concebidos e apresentados como a força motriz de uma expansão

universal, de um desenvolvimento de todas as energias “nacionais”

(GRAMSCI, 1984: 50). Uma ideologia nascida num país desenvolvido

difunde-se em países menos desenvolvidos, incidindo no jogo local

de combinações. Estes países periféricos, exatamente por terem

sido incapazes de realizar sua própria revolução burguesa acabam

incorporando elementos ideológicos dos países dominantes, é o

que Gramsci chamou de “revolução passiva”.

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

93

O modo através do qual se exprime o ser grande potência é

dado pela possibilidade de imprimir à atividade estatal uma

direção autônoma, que influa e repercuta sobre outros Estados: a

grande potência é potência hegemônica, chefe e guia de um

sistema de alianças e de acordos com maior ou menor extensão. A

força militar sintetiza o valor da extensão territorial e do potencial

econômico (GRAMSCI, 1984: 191). Pode-se observar que, na

dialética nacional-internacional, o fato de que os elementos

internos predominarem sobre os fatores externos ou ao contrário,

também se relaciona com a diferença entre uma grande potência

e os países periféricos, pois, os primeiros têm uma maior

capacidade de ação independente e os segundos se colocam em

relações de dependência. O exemplo sempre invocado é o da

Itália entre 1500 e 1700, que permaneceu incapaz de construir seu

estado nacional, limitada que foi pelo jogo internacional de

equilíbrio passivo entre as grandes potências (GRAMSCI, 1984: 17).

A centralidade esta na luta de classes e no papel de cada

classe na estrutura sócio-econômica nacional. As relações entre

centro e periferia e o papel de cada Estado-nação no sistema

internacional não é apenas fruto desta própria estrutura. As

relações de classes internas a cada Estado e a capacidade

dirigente das classes dominantes exercem aí um papel

fundamental.

Uma classe dominante nacional tem que exercer

plenamente a hegemonia sobre o conjunto das classes subalternas,

a incapacidade de hegemonia interna afeta a sua capacidade

de expansão externa. As grandes potências se caracterizam

exatamente pelo grau de hegemonia das classes dominantes e sua

capacidade de criar um consenso interno. Nos países periféricos

suas classes dominantes foram incapazes historicamente de

constituírem sua hegemonia a partir de um projeto “universalizante”

que agregasse todas as classes nacionais. Foram incapazes de

transformar seu projeto individual de poder em um projeto nacional

de desenvolvimento. Assim é que:

Deve-se considerar também a noção de grande potência o

elemento “tranqüilidade interna”, isto é, o grau e a intensidade da

função hegemônica do grupo social dirigente: este elemento deve

ser situado na avaliação da potência de cada estado, mas

adquire maior importância na consideração das grandes potências

(...) Por isso pode-se dizer que quanto mais forte é o aparelho

policial tanto mais fraco é o exército, e quanto mais fraca (isto é,

relativamente inútil) a polícia, tanto mais forte é o exército (diante

da perspectiva de uma luta internacional) (GRAMSCI, 1984: 193).

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

94

As classes dominantes não exercem a hegemonia apenas

para si, mas para a “grandeza da nação”, assim como esta existe

também para a grandeza de suas classes dominantes. Seu projeto

deve ser confundido com o projeto da nação, sua legitimidade

está nesta capacidade de ocultar seus interesses de classe.

Nos países periféricos as classes dirigentes aliam seus

destinos, não há um projeto de desenvolvimento autóctone, mas a

um projeto estrangeiro, a um projeto de dependência. São sócios

menores das classes dominantes internacionais.

Portanto os destinos de um país, sua inserção na divisão

internacional do trabalho, sua situação no sistema internacional,

depende essencialmente dos projetos, das escolhas, das

estratégias de hegemonia construídas pelas suas classes

dominantes. Seu projeto deve incluir as classes subalternas, elas

devem vir a reboque, devem ser aliadas, devem ser a base de

sustentação desse projeto. O “nacionalismo” deve ser também um

projeto “para” as classes populares, mas não um projeto “das”

classes populares. No sucesso de uma ação reformista, das

estratégias de conciliação de classe, esta a chave para um projeto

de hegemonia interna e também externa. Na “qualidade”

dirigente das classes dominantes deve-se encontrar as explicações

fundamentais para o sucesso ou fracasso da construção nacional e

internacional de um país.

A riqueza nacional é condicionada pela divisão

internacional do trabalho e por ter sabido escolher, entre as

possibilidades que esta divisão oferece, a mais racional e rentável

para cada país. Trata-se, assim, essencialmente, de “capacidade

dirigente” da classe econômica dominante, do seu espírito de

iniciativa e de organização. Se não existem estas qualidades, e a

administração econômica baseia-se fundamentalmente na

exploração brutal das classes trabalhadoras e produtoras, nenhum

acordo internacional pode sanar a situação. Na História moderna

não há exemplo de colônias de “povoamento”; elas jamais

existiram (GRAMSCI, 1984: 233).

Gramsci mostra que os destinos de uma nação estão tão

dependentes da história de suas classes dominantes como a

história dos estados periféricos esta entrelaçada com a história dos

estados centrais (GRAMSCI, 1977: 117).

Gramsci antecipa em várias décadas o debate que

movimentou as sociedades nos anos 60. A questão italiana, sua

incapacidade de construir um projeto nacional, autônomo, de

desenvolvimento, aproxima profundamente a abordagem

gramsciana das interpretações dependentistas latino-americanas.

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

95

Os argumentos levantados acima mostram uma aproximação

teórica entre as duas abordagens em vários aspectos cruciais. Seria

Gramsci um teórico da dependência “avant la lettre”? Ou

poderíamos especular se Gramsci chegou a ser um autor de

referência para os autores dependentistas? O conceito de

Revolução Passiva envolve elementos de dependência econômica

e política que poderia certamente ter saído dos escritos de Rui

Mauro Marini, Theotônio dos Santos, etc. Não é o objetivo deste

trabalho fazer um estudo sobre a relação entre Gramsci e a “teoria

da dependência”, ficando este tema para ser desenvolvido em

futuros trabalhos.

HEGEMONIA E IMPERIALISMO NA LEITURA NEOGRAMSCIANA.

A aplicação das teorias de Gramsci às relações

internacionais foi centrado no conceito de hegemonia, é a partir

dele que a chamada “escola italiana”, que paradoxalmente tem

em dois autores canadenses, Robert W. Cox e Stephen Gill, seus

maiores expoentes, desenvolveu uma rica e original contribuição a

este campo de estudos.

Para Arrighi, autor em geral identificado com esta escola, a

definição do conceito em uma perspectiva de relações

internacionais, assim seria definido:

“O conceito de “hegemonia mundial”, adotado aqui, se

refere ao poder que um Estado tem de exercer funções

governamentais sobre um sistema de Estados soberanos. Em

principio, esse poder não envolve só a administração usual desse

sistema tal como foi instruída numa determinada época. No

entanto, como veremos, o governo de um sistema de Estado

soberanos sempre envolve, na prática, algum tipo de ação

transformadora que altera o modo de operação do sistema de

maneira fundamental.Esse poder é algo mais do que “dominação”

pura e simples. É o poder associado ao domínio ampliado pelo

exercício da “liderança intelectual e moral”. Como enfatizado por

Gramsci a respeito da hegemonia no plano nacional (...) a

hegemonia é o poder adicional que resulta da capacidade de um

grupo dominante apresentar, num plano universal todas as

questões em torno das quais gira o conflito (ARRIGHI, 2007: 227-

228)”.

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

96

Esta escola centrou sua análise no conceito de hegemonia,

mas seria este um conceito passível de ser traduzido para o estudo

das relações internacionais? Esta pergunta foi feita pelo próprio

Gramsci, ao refletir sobre as condições políticas de sua época:

Será ainda possível, no mundo moderno, a hegemonia

cultural de uma nação sobre as outras? Ou então o mundo já está

de tal modo unificado na sua estrutura econômico social que um

país, mesmo podendo ter “cronologicamente” a iniciativa de uma

inovação, não pode, porém, conservar o “monopólio político” e,

portanto, servir-se dele como base da hegemonia? Logo, que

significado pode ter hoje o nacionalismo? Não será ele possível

apenas como “imperialismo” econômico-financeiro, e não mais

como “primado” civil ou hegemonia político-intelectual?

(GRAMSCI, 1984: 192).

Parece claro que Gramsci coloca sérias dúvidas na

possibilidade de que algum país construa um projeto de

hegemonia mundial. No período em que ele escreve (entre as duas

guerras mundiais) as relações políticas internacionais seriam

caracterizadas pelo imperialismo e não pela hegemonia. Pela

coerção e não pelo consenso.

Esta citação transcrita acima apontaria que para Gramsci

há uma diferenciação entre hegemonia (primado civil, momento

político-ideológico) e imperialismo (momento econômico-

financeiro). Assim como o período anterior, a Primeira Guerra

Mundial, que Lênin analisou, o período entre guerras, período dos

escritos de Gramsci, se caracterizaria pelo primado da coerção, da

dominação, do imperialismo.

Assim também Cox se pergunta: Seria o conceito de

hegemonia em Gramsci aplicável no nível internacional ou

mundial? (COX, 1981).

A hegemonia para ele deve ser compreendida no contexto

da criação de ordens hegemônicas. Estas construções não são

naturais, ao contrário, são sempre o resultado final de um projeto

de expansão de um Estado hegemônico. Assim estas ordens

podem se caracterizar por terem o caráter hegemônico ou não

hegemônico, ou seja, de serem dominantes.

Para Cox (COX, 2007) a partir de 1845, existiram quatro

períodos distintos: 1845-1875, 1875-1945, 1945-1965 e de 1965 até os

dias atuais.

O primeiro período se caracterizou pela constituição de

uma ordem hegemônica, foi a era da pax britannica, do

predomínio da Grã Bretanha. Seu inconteste domínio econômico e

militar se traduziu na construção de princípios e instituições que

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

97

universalizaram seu domínio: a teoria das vantagens comparativas,

o comércio livre e o padrão de ouro.

No segundo período, ao contrário, se caracterizou pela

desconstrução da ordem anterior, foi um período não-

hegemônico. O equilíbrio de poder se rompe e um período de

instabilidade se abre com vários países lutando pela supremacia.

No terceiro período, estruturou-se a partir do predomínio dos

Estados Unidos, que construíram uma ordem hegemônica a partir

da construção de um amplo leque de instituições econômicas e

políticas internacionais (FMI, Banco Mundial, OMC, ONU etc.).

E finalmente, no quarto período, abre-se um período em

que o grande debate entre os especialistas era sobre a crise da

hegemonia norte-americana60.

Assim, para Cox, fica claro que o período em que escreveu

Gramsci era realmente um período não-hegemônico, ou seja,

podemos reconhecer com ele a impossibilidade de usar o conceito

para aqueles anos, mas a questão seria apenas conjuntural e não

teórica.

Na leitura de Cox, a distinção entre hegemonia e

dominação nos remete à questão do imperialismo. Qual a relação

entre imperialismo e hegemonia? São os conceitos similares,

homônimos ou contrastantes?

Para Cox, o imperialismo é uma dimensão das ordens

mundiais explicitando o caráter vertical das relações de poder

para além das relações horizontais de rivalidade e conflituosidade

inter-imperialistas, as relações de dominação político-econômicos

são relações imperialistas. Isso significa que as relações

hegemônicas não se figuram como relações de subordinação

imperialistas, pois estas se caracterizariam como momentos de

força militares, de guerra de movimento e não de posição? (COX,

1981).

Em outro momento, no entanto Cox se refere aos três

primeiros períodos citados acima com outra terminologia o período

de 1845-1875 seria caracterizado pelo “imperialismo liberal”, o

segundo de 1945-1965 de “novo imperialismo”, e o período

posterior a 1965 de “imperialismo neoliberal”. Mas mesmo ele

reconhece que usar o termo imperial ou imperialismo obscurece as

diferenças entre as ordens hegemônicas e não-hegemônicas

(COX, 2007).

60 Segundo Arrighi o possível declínio do poder mundial dos Estados Unidos nas décadas de 1970 e

1980 levou a uma “onda de estudos sobre a ascensão e queda das ‘hegemonias’ (Hopkins e Wallerstein, 1979; Bousquet, 1979; 1980; Wallerstein, 1984b), ‘potências mundiais’ (Modelski, 1978;

1981, 1987), ‘núcleos’ (Gilpin, 1975) e ‘grandes potências’ (Kennedy 1987-1988)” (Op. Cit., P.227).

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

98

Na releitura da obra de Gramsci, Cox propõe uma outra

abordagem das relações entre imperialismo e hegemonia das

relações internacionais. Nas suas análises não se observa nenhum

questionamento do uso alternado do conceito de imperialismo e

de hegemonia. Assim sendo, minha leitura aponta que, para este

autor, hegemonia caracteriza um tipo de processo político que

coloca a primazia dos momentos de consenso sobre a coerção,

quando o contrário acontece poderíamos chamar este processo

de dominação. O imperialismo abrangeria ambos os conceitos, em

ordens hegemônicas ou não-hegemônicas, isto é dominantes. As

ordens mundiais, por seu turno caracterizariam as construções

políticas geradas pela expansão de uma grande potência.

CONCLUSÃO

Partindo das análises de Cox, poderíamos concluir que em

Gramsci imperialismo e hegemonia são dois momentos, não

excludentes, nem contraditórios, mas dialéticos dos processos de

formação dos sistemas internacionais. Tanto ele como Lênin

viveram e analisaram a política internacional em sua conjuntura

história específica: a era do capitalismo monopolista. Contudo,

Gramsci nos fornece ferramentas para compreender os sistemas

internacionais para além do período histórico do imperialismo e da

ascensão do fascismo.

Assim, poderia ser explicado o fato de Gramsci usar com

pouca freqüência o conceito de imperialismo: ele não abandonou

este conceito, ao contrário, este estaria sempre presente em suas

obras, a partir da sua preocupação com os processos de

construção de projetos hegemônicos mundiais.

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

101

A evolução da teoria da crise em

Marx

Francisco Paulo Cipolla (UFPR)61

INTRODUÇÃO

O desenvolvimento da teoria da crise nos escritos de Marx

inicia com suas observações gerais quanto ao seu caráter cíclico;

passa pela análise de eventos concretos na Inglaterra e no

continente europeu; segue o curso necessário da crítica à

economia política clássica, até culminar em seu estado teórico

mais maduro n’O Capital. Suas primeiras observações sobre a crise

se dão no contexto da concepção materialista da história e,

portanto, como um elemento necessário da dissolução do

capitalismo. No Manifesto Comunista e no Trabalho Assalariado e

Capital a crise se apresenta na forma de esboço genérico quanto

ao seu caráter cíclico, reaparece nas suas reflexões sobre a

revolução de 48 na forma de uma reafirmação das visões já

sedimentadas na fase de desenvolvimento do materialismo

histórico; ganha material factual e empírico durante o período de

atividade jornalística junto ao New York Daily Tribune. À partir do

final da década de 50, principalmente sob o estimulo da crise de

57, começa a se estruturar uma concepção mais explícita da crise

nos trabalhos de preparação d’O Capital, os Grundrisse. A

Contribuição à Critica da Economia Política apresenta uma

discussão detalhada sobre o dinheiro e a crise no sistema

monetário. As Teorias da Mais Valia retomam a crítica aos clássicos

e procuram explicitar as condições nas quais a crise geral de

superprodução é possível. Finalmente n’O Capital Marx reúne todos

os elementos até ali estudados e apresenta com base nos

61Francisco Paulo Cipolla é professor titular do Departamento de Economia da Universidade Federal

do Paraná (UFPR).

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

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resultados sobre o sistema de crédito uma teoria da crise que

retoma a concepção cíclica apresentada 20 anos antes.

CRISE NO CONTEXTO DA TEORIA DA HISTÓRIA DE MARX

Grande parte do esforço teórico de Marx, após a ruptura

com Feuerbach em 1845, se dirige ao desenvolvimento da

concepção materialista da história cujos primeiros elementos

aparecem com a publicação d’A Sagrada Família (1844-45). Não

são as idéias que movem a história, mas as suas contradições. Não

é o que este ou aquele proletário pense que seja sua missão, mas o

que a classe como um todo será compelida a fazer devido à sua

situação material. A divisão de classe fundada na propriedade

privada forçará o proletariado a transcendê-la e a superar a

própria alienação assim como a alienação da classe proprietária

(McLellan 1971, p. 33). Curiosamente, A Ideologia Alemã (1846), a

mais completa apresentação do materialismo histórico, apresenta

poucas referências ao tema da crise. Mandel (1971) observa que

nessa obra Marx e Engels “analisam brevemente as razões pelas

quais crises monetárias podem ocorrer” e que “a crise de

superprodução não é causada pela superprodução física, mas por

distúrbios no valor de troca” (p.69).

Com a Pobreza da Filosofia (1847) vem a público pela

primeira vez a concepção materialista da história (McLellan 1971,

p. 37) uma vez que A Ideologia Alemã escrita em 1846 não pode

ser publicada e foi abandonada à “crítica roedora dos ratos” (Marx

1976, p.22). Na Pobreza da Filosofia Marx critica a idéia de

Proudhon de que a substituição do dinheiro pelo tempo de

trabalho como medida de valor garantiria a proporcionalidade

entre os vários produtos da sociedade. Marx argumenta que a

proporcionalidade entre oferta e demanda foi superada pelo

advento da produção em larga escala baseada na indústria

moderna e que o restabelecimento da proporcionalidade é uma

visão reacionária, pois implica a adoção de forças produtivas

pretéritas menos desenvolvidas, no interior das quais a demanda

determinava a oferta. Com a grande indústria “a produção é

inevitavelmente forçada a passar pelas fases sucessivas de

prosperidade, depressão, crise, estagnação, renovação da

prosperidade, e assim por diante” (CW 1976, v.6, p.137)62. Com a

62 CW se refere aos Collected Works de Marx e Engels cuja publicação pela International Publishers iniciou-se no ano de 1975 e em 2004 ainda se encontrava no volume 50.

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

103

mecanização e o crescimento contínuo da escala industrial a

“produção precede o consumo, a oferta força a demanda” (idem,

p.137).

No Manifesto do Partido Comunista (1848) Marx e Engels

argumentam que assim como na fase de ascensão do capitalismo

o desenvolvimento dos meios de produção entraram em

contradição com as relações feudais de propriedade e tiveram

que suplantá-las, o mesmo estaria ocorrendo já em sua época com

o próprio capitalismo. O desenvolvimento das forças produtivas

teria ultrapassado os limites compatíveis com as relações de

propriedade burguesas. As forças produtivas são limitadas pelas

relações de propriedade burguesas e assim que ultrapassam esses

limites geram uma crise. Daí a ocorrência de crises comerciais que

para eles são a manifestação do choque entre forças produtivas e

relações de propriedade sobre as quais se assenta a classe

capitalista. Essas crises destroem parte da produção e das forças

produtivas acumuladas anteriormente (p.489). São as crises de

superprodução que resultam do excesso de indústria, excesso de

produção, excesso de comércio. “As condições da sociedade

burguesa são muito estreitas para abarcar a riqueza criada por ela

mesma” (p.490). A superação das crises se dá pela destruição

massiva de forças produtivas e pela conquista de novos mercados,

processo que prepara as condições para crises mais abrangentes e

mais severas e ao mesmo tempo diminui os meios para superá-las.

No Trabalho Assalariado e Capital (1849), escrito na mesma

época, a exposição é muito similar. A batalha entre os capitalistas

se dá através do aumento do emprego de maquinaria. O aumento

da escala e da produtividade obtidos com o auxílio do crédito leva

a crises de magnitude cada vez mais amplas (p.47-48). As crises

passam a ser mais freqüentes e mais violentas já que o aumento do

mercado exigido pelo aumento da produtividade encontra limites

uma vez que a cada crise mais mercados são incorporados e

menos mercados restam para serem incorporados (p.48). Aqui Marx

sugere um processo de progressivo esgotamento do capitalismo na

medida em que seu desenvolvimento levaria à exaustão dos

mercados ao mesmo tempo em que provocaria crises recorrentes

cada vez mais violentas.

“E NÃO HAVERÁ REVOLUÇÃO SEM CRISE”

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

104

Marx se instala em Londres em 1849 e à partir de 1850

retoma seus estudos econômicos. Estes últimos, no entanto, são

prejudicados pelo tempo que Marx necessita dedicar à atividade

jornalística. Antes, porém, a necessidade de fazer as contas com a

revolução de 1848 o leva a escrever A Luta de Classes na França

na qual procura entender as razões da derrota da revolução.

No plano da atividade política Marx combate a ala da

Associação Internacional dos Comunistas Revolucionários que

pregava a luta pela conquista imediata do poder. Marx

argumentava que, com a descoberta do ouro na Califórnia e o

clima de prosperidade no início dos anos 50, uma nova revolução

era impossível no plano imediato. Em carta a Ferdinand Freligrath,

datada de 27 de dezembro de 1851, Marx finaliza escrevendo em

francês: “après les derniers événements je suis plus convaincu que

jamais, qu’il n’y aura pas de révolution sérieuse sans crise

commerciale” (CW 1982, v.38, p. 521).

Marx inicia em 1850 a atividade de correspondente europeu

do New York Daily Tribune, para o qual escreve inúmeros artigos,

vários deles analisando as condições de maturação da próxima

crise econômica. É exatamente em relação a essa crise iminente

que ele diz que “os desastres econômicos e as convulsões sociais

que estão a caminho serão as sementes da revolução

européia”(v.12, p.308). E acrescenta: “Desde 1849 a prosperidade

comercial e industrial foi a base segura na qual dormiu em

segurança a contra-revolução”.

No artigo sobre “Pauperismo e livre comércio – a crise

comercial iminente”63 Marx prevê o início da crise para o ano de

1853. Essa previsão se baseia na concepção já apresentada tanto

na Pobreza da Filosofia quanto no Manifesto Comunista de que ao

período de prosperidade se segue a fase de excitação na qual

começam a pulular as bolhas especulativas. Segundo Marx o ano

de 1852 havia sido um ano de prosperidade sem igual na

Inglaterra. De acordo com os dados econômicos á sua disposição,

entre eles a abundância de capital de empréstimo e a baixa taxa

de juros, era de se esperar que essa fase de prosperidade fosse

rapidamente sucedida pela fase de excitação precursora da crise.

“A excitação é o cume da prosperidade; ela não produz a crise

mas provoca o seu início” (v.11, p.362)

A teoria que emerge dos escritos de Marx, até aqui, é uma

teoria de superprodução cíclica que se realiza através do excesso

de capital, excesso de comércio, excesso de mercadorias. Quando

63 “Pauperism and Free Trade – The Approaching Commercial Crisis” (CW 1979, v.11)

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

105

Marx passa a se concentrar no trabalho teórico de crítica da

economia política se depara imediatamente com a visão clássica

dominante, por oposição a Malthus, de que as crises de

superprodução são impossíveis. Suas explorações sobre o tema

ganham um novo foco, qual seja, a explicação teórica de porque

as crises de superprodução são possíveis.

A LUTA PELA TEORIA ANTES DO DILÚVIO

No inverno londrino de 57-58 Marx empreende uma

frenética atividade de pesquisa no museu de Londres. Em carta a

Engels, de 8 de dezembro de 1857, Marx dirá: “Estou trabalhando

como louco todas as noites durante a noite toda na organização

dos meus estudos econômicos para que finalmente eu possa ter o

esboço claro antes do dilúvio” (CW 1983, v.40, p. 217).

Como vimos Marx apresenta ao longo de sua obra pré-

econômica a idéia de que as crises capitalistas são crises de

superprodução. Ao defrontar-se com a crítica aos clássicos deverá

necessariamente fazer as contas com a noção de que não podem

haver crises gerais de superprodução. Marx se depara com a visão

clássica que reduzia as relações capitalistas de produção ao

intercâmbio de mercadorias (M1 – D – M2) e o intercâmbio de

mercadorias, por sua vez, ao escambo (M1 – M2). Desaparecia

assim qualquer possibilidade de superprodução generalizada uma

vez que a produção de M1 constituia um ato de demanda de M2.

Como a crise é a manifestação do fundamento

contraditório do modo de produção capitalista, a análise deve

tomar como ponto de partida um conceito que contenha a

contradição fundamental sobra a qual a crise se assenta, conceito

esse ao mesmo tempo forma mais abstrata da crise e aspecto

concreto de qualquer crise particular. A mercadoria como ponto

de partida é a solução metodológica. Antecipando de 8 anos a

apresentação d’O Capital, Marx argumenta na Contribuição à

Crítica da Economia Política que o dinheiro é a forma com que o

comércio resolve a contradição da mercadoria entre valor de uso

e valor: a mercadoria M1 não precisa encontrar a mercadoria M2

na qual possa expressar o seu valor e que seja ao mesmo tempo

valor de uso para o produtor 1; tampouco é necessário que M1

represente valor de uso para o produtor 2. Todas as mercadorias

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

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agora expressam seus valores numa única mercadoria, a

mercadoria-dinheiro. Essa solução, porém, gera outra contradição,

precisamente a contradição ignorada pelos clássicos: a separação

da metamorfose da mercadoria entre uma fase de venda e uma

fase de compra, o fundamento da possibilidade de crise. A

contradição entre “mercadoria e dinheiro é a forma geral e

abstrata de todas as contradições inerentes ao modo de produção

capitalista” (Marx 1976, p.96).

A metamorfose da mercadoria é composta de duas fases

independentes: a primeira fase é a venda, M – D; a segunda fase é

a compra, D – M. O mesmo dinheiro obtido na venda efetua uma

compra. Porém, essa compra não é necessariamente imediata.

Após a fase de venda a mercadoria assume uma forma durável no

dinheiro; uma forma que pode ser trocada a qualquer momento;

uma fase independente na qual pode permanecer por um período

mais ou menos longo (Marx 1976, p.91). Se a permanência do

dinheiro nessa fase torna a separação entre venda e compra muito

longa, a unidade da metamorfose da mercadoria se afirma através

de uma crise (Marx 1975, I, p.114) na qual mercadorias de todos os

gêneros jazem inertes à espera de um comprador, ao contrário do

que pensavam Ricardo e Say de que somente superproduções

parciais eram possíveis. Nas suas visões as crises gerais de

superprodução eram impossíveis, pois ao reduzirem o intercâmbio

ao escambo, quaisquer mercadorias produzidas encontrariam

outras pelas quais se pudessem trocar até que exaurindo-se as

possibilidades de troca pudessem eventualmente sobrar um ou

outro gênero, mas nunca um excesso geral de mercadorias.

A possibilidade de crise se desenvolve ainda mais à medida

que se desenvolve a função do dinheiro como meio de

pagamento. A função de meio de pagamento implica uma

contradição: enquanto os pagamentos se compensam o dinheiro

funciona apenas idealmente como dinheiro de conta e medida de

valor. Quando os pagamentos devem ser efetivamente realizados

o dinheiro não entra como figura transiente da circulação, mas

como encarnação material do trabalho social (Marx , 1985 p.116).

Com a evolução da circulação de mercadorias a venda se

transforma numa necessidade social independente das

necessidades individuais de quem vende já que com a

generalização da função de meio de pagamento é preciso vender

para pagar (Marx 1976, p. 141). Como comprador a crédito todo

vendedor de mercadoria é obrigado a vender para obter os meios

de pagamento necessários para saldar suas dívidas (idem 141). A

conversão M – D se torna uma função da necessidade de pagar

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

107

(142) e não meramente uma fase da metamorfose da mercadoria.

Daí que qualquer interrupção na cadeia de intercâmbio cause

uma crise monetária: a busca por dinheiro na sua forma absoluta.

Essa crise monetária é parte de qualquer crise. A crise monetária

nesse contexto nada mais é do que a corrida por meios de

pagamento quando a circulação se estanca e todos precisam

pagar.

Na Contribuição à Crítica da Economia Política Marx

distingue entre moeda em suspensão e entesouramento (Marx

1976, p.137). Moeda em suspensão é também referido por Marx

simplesmente como dinheiro por oposição a moeda ativa na

circulação. Esta última, moeda, designa o dinheiro no processo

ativo de circulação. Essa mesma moeda passa de moeda a

dinheiro quando sai da circulação temporariamente não em

virtude do entesouramento, mas devido ao fato de que o dinheiro

obtido com a venda da mercadoria é gasto paulatinamente numa

série de aquisições de modo que uma parte dele jaz dormente

como dinheiro enquanto a outra circula como moeda. É apenas

uma distinção entre dinheiro ativo na circulação imediata e

dinheiro temporariamente inativo. Essa distinção é importante, pois

no capitalismo a acumulação de capital dinheiro latente, capital

na forma dinheiro, mas inativo enquanto capital, é a contrapartida,

na circulação do capital, da moeda em suspensão e não do

entesouramento. No capitalismo o entesouramento é antitético ao

conceito de capital uma vez que implica a esterilização do

processo de valorização na forma de um dinheiro dormente. A

suspensão do dinheiro no interior do circuito do capital é fenômeno

fundamental para a explicação da função do sistema de crédito

assim como sua influência sobre o processo de reprodução do

capital e da crise. Todo o dinheiro que emerge do circuito do

capital e não pode ser imediatamente transformado em capital

produtivo encontra os canais do sistema bancário através dos

quais retorna ao circuito do capital na forma de crédito de capital,

impulsionando assim a reprodução até seus limites máximos. Esse

processo constitui parte fundamental da teoria da crise de

superprodução de Marx, como veremos a seguir.

A CRISE REAL REQUER A CONCORRÊNCIA E O CRÉDITO64

64 “A crise real só pode ser derivada do movimento real da produção capitalista, da concorrência e do

crédito” (Marx, 1968, p.512).

Page 109: Marxismo&Ciências Humanas-2011

MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

108

O Capital retoma a idéia inicial já expressa no Manifesto

Comunista de 1848 de que as crises são parte do comportamento

cíclico da acumulação de capital. A análise da possibilidade da

crise implícita na metamorfose da mercadoria não é abandonada

quando Marx passa à análise do capital. Ao contrário, nas Teorias

da Mais Valia, Marx afirma que as formas abstratas da crise tal

como se depreendem da metamorfose da mercadoria aparecem

na crise como produto de causas relacionadas às propriedades do

capital.65

A análise do crédito e da concorrência efetuada no volume

III d’O Capital permite a Marx retomar as concepções

fundamentais acerca da crise, agora num plano mais concreto da

análise, plano esse que incorpora a concorrência e o crédito no

processo cíclico de expansão e colapso da reprodução.

Dinheiro de crédito e crédito de capital

O prosseguimento da apresentação requer uma breve

digressão sobre as categorias de dinheiro de crédito e crédito de

capital. O dinheiro de crédito é um título de crédito que funciona

como meio de circulação. No processo de circulação do capital

esse mecanismo era realizado pelas Letras de Câmbio até a data

do seu vencimento. Nessa data o dinheiro deveria atuar como

meio de pagamento, isto é, dinheiro de fato, quer seja na forma de

dinheiro-mercadoria, quer seja na forma de notas bancárias que

representavam depósitos em dinheiro-mercadoria. Uma

determinada quantidade de dinheiro deveria, portanto, estar

constantemente disponível para realizar a função de meio de

pagamento.

À medida que a função de dinheiro de crédito passa das

Letras de Câmbio para os próprios depósitos bancários a massa de

dinheiro necessário para a função de meio de pagamento se reduz

a uma fração mínima uma vez que os créditos e débitos são

compensados no interior do sistema bancário. Desse modo uma

fração crescente dos depósitos é disponibilizada para o crédito de

capital. O mesmo ocorre com os fundos monetários de capital

circulante, de depreciação e de acumulação que se formam ao

longo de cada circuito do capital. Sua concentração nos bancos

65 Para um aprofundamento dessa questão ver Aquino (2007).

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

109

permite com que apenas uma pequena fração do seu volume

tenha que permanecer disponível na forma dinheiro, fato que

libera a maior parte do capital dinheiro latente da classe capitalista

coletiva para a reinserção no circuito do capital produtivo na

forma de empréstimos bancários.66

A massa de capital monetário à disposição para

empréstimo aumenta também devido ao fato de que a

acumulação monetária contém elementos que não representam

acumulação real. De fato, a acumulação monetária avança mais

rapidamente do que a acumulação de capital produtivo, pois com

a extensão e desenvolvimento do sistema bancário toda massa de

dinheiro temporariamente inutilizada se concentra nos bancos e se

transforma em capital monetário de empréstimo. Como o lucro

bancário depende do comércio do dinheiro depositado nos seus

cofres pode-se dizer que os bancos pressionam ao máximo o

processo de reprodução através de uma oferta de crédito que

excede as necessidades do processo normal de reprodução. É

nisso que consiste o excesso de crédito ou super-crédito apontado

por Marx como elemento importante para a compreensão das

crises (Marx 1968, p.515).

A contradição implícita na função do dinheiro como meio

de pagamento é assim exacerbada no sistema de crédito

desenvolvido com a dupla função dos depósitos como dinheiro de

crédito e crédito de capital: como grande parte dos depósitos é

emprestada as reservas são suficientes apenas para o volume

normal de saques. No auge da prosperidade a demanda de

crédito pressiona as reservas ao máximo. Por isso, assim que os

bancos percebem um desequilíbrio entre depósitos e saques

tratam de aumentar imediatamente a taxa de juros fato que se

configura como um dos elementos que explicam o início da crise.

Vejamos agora como se apresentam as coisas do ponto de vista

da demanda de crédito.

Concorrência e taxa de lucro de empresário

A tendência do capital de crescer o mais rapidamente

possível faz com que em cada ramo da economia se desenrole,

entre os vários capitais daquele ramo, uma luta encarniçada pelo

66 Para uma análise sistemática do processo de formação de reservas bancárias à partir do circuito do

capital produtivo ver Germer (1998).

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

110

aumento da parcela de mercado, única forma de crescer além do

crescimento médio do mercado. Para conseguir aumentar a

parcela de mercado os capitais individuais procuram introduzir

métodos de produção novos, capazes de diminuir o valor de suas

mercadorias abaixo do valor de mercado. Como essa compulsão

move todos os capitais para adiante, o resultado é uma

superprodução ao valor de mercado vigente. Isso significa que a

taxa de lucro ao novo valor de mercado pode estar caindo, mas

não se manifesta enquanto tal pois a expansão impede a queda

dos preços.

A concorrência entre capitais com o intuito de aumentar a

parcela de mercado se utiliza do crédito para alavancar a

competitividade individual. À medida que a atividade econômica

se recupera, a taxa de lucro começa a aumentar, aumentando

em conseqüência a diferença entre taxa de lucro e taxa de juros.

O aumento dessa diferença implica que quanto mais crédito o

capitalista utilizar maior será a taxa de lucro de empresário

calculada sobre o capital próprio (Hilferding, 1981, p.93) O

aumento da taxa de lucro de empresário instiga a busca pelo

crédito de capital.

Aqui se faz necessária uma digressão sobre a relação entre

taxa de juros e taxa média de lucro. A economia neoclássica

supõe que essas duas taxas se igualam através da concorrência

entre capital produtivo e capital monetário. Se a lucratividade do

capital aplicado na indústria é maior do que a taxa de juros então

capital monetário se transforma em capital produtivo e vice

versa.67 Não há nada disso em Marx. O capital fixo impede essa

perfeita mobilidade entre capital produtivo e capital monetário.

Apenas a fração do capital produtivo que necessariamente se

monetiza no processo de rotação do capital é que encontra a

forma monetária própria para servir de capital emprestável pelos

bancos.68 Desse modo, não existe nenhum mecanismo de

equalização das taxas de lucro e de juros. O juro é uma fração da

mais valia. Não pode ser maior do que a matéria da qual provém

que é o trabalho não pago. Desse modo a taxa de juros é

67 A terminologia da teoria marginalista é diferente: na verdade a equalização se dá entre a

produtividade marginal do capital e a taxa de juros. A taxa de juros é dada pela relação entre consumo

futuro que se ganha com base na abstinência do consumo no presente. Desde que a produtividade marginal do capital seja maior do que a taxa intertemporal de consumo vale a pena sacrificar consumo

presente, até que, com o decréscimo da produtividade marginal esta última se iguale à taxa

intertemporal de consumo. Que mundo harmonioso esse no qual o capitalismo se reduz a satisfazer o consumo e todo o sistema se move de modo a maximizar a utilidade intertemporal!

68 Ver a esse respeito Itoh (1988).

Page 112: Marxismo&Ciências Humanas-2011

MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

111

necessariamente, em geral, menor do que a taxa de lucro. O limite

máximo da taxa de juros é a taxa de lucro. Uma taxa de juros maior

do que a taxa de lucro é um dos sintomas da crise econômica

quando a corrida por meios de pagamento faz a taxa de juros

atingir os níveis mais altos de sua trajetória cíclica. A diferença entre

o lucro médio e o juro é o lucro do empresário. Se todo o capital

produtivo fosse financiado por crédito bancário então a taxa

média de lucro menos a taxa de juros seria a taxa de lucro de

empresário.

Assim, na fase de retomada do crescimento a taxa de lucro

de empresário é alta e os capitais aumentam o uso de crédito. Os

capitais que adotam métodos mais avançados de produção

gozam de lucros extras e, portanto, de taxas de lucro ainda

maiores em virtude do fato de que o preço de mercado

sustentado pela expansão retarda em expressar a estrutura

produtiva mais eficiente. Esse processo coincide com o aumento

das escalas de produção e com a expansão da massa de

produtos levada ao mercado. Obviamente os cálculos são

realizados ao valor de mercado vigente, mas a expansão da

produção se dá com base nas condições técnicas mais

avançadas que se encontram disponíveis e cujo valor de mercado

implícito é mais baixo. Esse processo coincide com a redução das

reservas bancárias até seus limites mínimos enquanto, por outro

lado, a relação Ce/Cp, capital emprestado/capital próprio vai

subindo. Na verdade a relação Ce/Cpc, capital emprestado/capital

próprio circulante aumenta ainda mais já que o crédito de capital

é crédito de curto prazo refletindo a natureza das reservas

capitalistas. O aumento da relação Ce/Cpc implica num aumento

da fragilidade sistêmica da reprodução na medida em que o juro

se paga à partir do refluxo do capital circulante aumentado pelo

lucro médio e como sabemos os valores de mercado implícitos na

mais alta produtividade comportam margens de lucro menores

que os preços vigentes.

O processo de aumento da razão Ce/Cpc é ao mesmo

tempo o processo de diminuição das reservas a um mínimo

compatível com a conversibilidade dos depósitos. O sistema como

um todo se estira até os limites de suas possibilidades tanto na

direção do aumento do endividamento das empresas, quanto no

aumento da produção, quanto na direção da redução das

reservas bancárias. Esse é o sentido, agora substanciado numa

análise concreta do processo cíclico, da idéia de excesso de

capital, excesso de produção, excesso de comércio. Isso significa

que o aumento da produção não pode se realizar indefinidamente

Page 113: Marxismo&Ciências Humanas-2011

MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

112

ao valor de mercado no qual foram calculados o aumento da

escala e os empréstimos tomados para realizá-la.

Temos, assim, um processo no qual simultaneamente e

reciprocamente os bancos reduzem as reservas a um mínimo e os

capitalistas aumentam o endividamento ao máximo. Essa dupla

circunstância se assenta no período de expansão que precede a

fase de super-excitação na qual entra em cena a demanda de

crédito para fins especulativos. Ademais, a expansão da

circulação da renda faz com que diminua a quantidade de

dinheiro que reflui para os bancos precisamente quando a

demanda por crédito de capital se expande ao máximo. A taxa de

juros sofre uma alta significativa. Vejamos agora o comportamento

do ciclo numa visão de conjunto da concorrência e do crédito.

Crise industrial e crise monetária: o movimento cíclico no seu

conjunto

A acumulação de material monetário de empréstimo sofre

os percalços do comportamento cíclico da acumulação

capitalista. Após a crise a acumulação monetária nos bancos

reflete um fator contrário à acumulação de capital, sua completa

estagnação. À estagnação da acumulação corresponde um fluxo

unilateral de depósitos sem as correspondentes retiradas

associadas às compras de meios de produção e força de trabalho.

Após a crise a taxa de juros é baixa porque o capital monetário se

acumula nos bancos e a demanda de crédito bancário é

praticamente nula. A taxa de juro se mantém baixa nessa fase

porque parte substancial do crédito é realizada diretamente entre

os próprios capitalistas. O movimento cíclico se inicia à partir da

fase que sucede a crise, fase essa caracterizada pela pletora de

capital dinheiro de empréstimo e baixa taxa de juro. Com a

recuperação econômica a taxa média de lucro aumenta fazendo

crescer a taxa de lucro de empresário.

À medida que a expansão ganha fôlego os empréstimos

bancários ultrapassam – pois economizam reservas de meios de

pagamento e concentram dinheiro que não representa capital – os

limites da reprodução material que é a contrapartida em meios de

produção e meios de consumo do dinheiro que representa capital

e, por isso começam a elevar-se os preços. Entra em cena a

demanda de capital dinheiro para especulação, fato que força

um aumento na taxa de juros. É precisamente esse período que

Page 114: Marxismo&Ciências Humanas-2011

MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

113

antecede a crise que apresenta a aparência de reprodução

saudável.

A dupla função dos depósitos como dinheiro de crédito e

crédito de capital faz com que sua função de dinheiro de crédito

se exerça sem a sua presença material já que o depósito de A é

emprestado a B. Isso significa que o depósito bancário como

dinheiro de crédito não pode funcionar como meio de pagamento

no montante de sua magnitude nominal, pois o sistema bancário

empresta o dinheiro o que significa que a conversão em dinheiro

de fato é impossível. As condições de convertibilidade dos

depósitos só funcionam dentro dos estritos limites das reservas

baseadas no funcionamento normal de saques e depósitos.69 Ao

reduzir as reservas ao mínimo qualquer sinal de retiradas maiores do

que os depósitos produz um aumento da taxa de juros por parte

dos bancos como forma de proteger as reservas. No sistema de

crédito básico com crédito comercial e crédito de capital

circulante o fenômeno que dá origem ao aumento da taxa de

juros é o aumento da demanda de desconto de Letras de Câmbio

relativamente ao fluxo de depósitos. No sistema moderno no qual

os depósitos bancários substituem as Letras de Câmbio como

dinheiro de crédito o problema emerge quando o fluxo das

reservas começa a desacelerar como reflexo de dificuldades de

realização na fase M’– D’. Portanto, seja no sistema simples seja no

sistema à base de depósito como dinheiro de crédito, o

fundamento da crise cíclica é necessariamente resultado da

elasticidade que o sistema de crédito imprime à reprodução do

capital, elasticidade essa que leva o sistema a ultrapassar as suas

possibilidades de reprodução.

A partir do momento em que começam a se apresentar

problemas de refluxo de reservas, os bancos aumentam as taxas de

juros. As empresas menos sólidas começam a apresentar

problemas financeiros relacionados ao serviço de suas dívidas.

Com as primeiras falências a taxa de juro sobe ainda mais. Nesse

momento todos tentam assegurar-se dinheiro na perspectiva de

que as taxas de juros continuarão subindo. Taxas de juros elevadas

começam a fazer estrago na estrutura fragilizada da reprodução.

As primeiras falências dão o sinal para uma corrida ao dinheiro

com o que a função de meio de pagamento do dinheiro não

pode se realizar levando a uma crise generalizada na qual todos

69 Marx se refere a esse problema tendo em mente depósitos em ouro no capitulo 32 do vol III d’O

Capital.

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

114

vendem para pagar depreciando assim o preço dos seus ativos e

mercadorias.

Neste momento entra em cena a crise monetária: a busca

desenfreada por meios de pagamento que como vimos não pode

ser suprida, pois simplesmente não existe nos cofres bancários. Daí

que a crise monetária, fase de qualquer crise geral, é

necessariamente uma crise bancária. Os bancos não podem

converter depósitos em meio de pagamento e cerram as portas. O

crédito estagna e a crise se aprofunda. Desse modo a crise

bancária é um fator de agravamento da crise. Num sistema em

que tudo depende do crédito a paralisação da atividade

bancária produz uma paralisia na reprodução do capital.

A crise monetária tal como analisada na circulação simples

de mercadorias agora aparece como crise bancária porque os

meios de pagamento estão concentrados no sistema bancário. A

existência contábil dos depósitos em contraste com a sua

inexistência real face à procura desenfreada por meios de

pagamento é a crise bancária.

Assim que a crise se manifesta a desova de quantidades

aumentadas de produção no mercado revela o verdadeiro valor

das mercadorias, fruto das condições mais avançadas de

produção. O preço de mercado cai. A lucratividade se contrai

ainda mais em virtude da liquidação de preços. Empresas se

tornam inadimplentes. A massiva destruição de valor-capital

prepara as condições para o início de um novo ciclo.

CONCLUSÕES

Os 20 anos que separam a Pobreza da Filosofia da

publicação do primeiro volume d’O Capital foram, ao mesmo

tempo, anos de intensa pesquisa e sofrimento material. No final da

década dos anos 50 Marx dirá – munido da ironia em meio às

dificuldades financeiras – que “nunca ninguém escreveu tanto

sobre o dinheiro tendo tão pouco dele”. É precisamente sua

elaboração sobre o dinheiro e suas funções, apresentada pela

primeira vez na Contribuição à Crítica da Economia Política, que

pavimentou o caminho para o desenvolvimento da análise do

crédito, elemento que junto com a análise da concorrência são

fundamentais para o entendimento das crises capitalistas.

Page 116: Marxismo&Ciências Humanas-2011

MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

115

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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de reprodução do capital: elementos para o entendimento

das crises”. Dissertação apresentada para obtenção do

título de mestre. Universidade Federal do Paraná, Programa

de pós-graduação em Desenvolvimento Econômico, 2007.

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da hipótese da endogeneidade da oferta monetária”.

Anais do XXVI Encontro Nacional de Economia da ANPEC.

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Capitalist Development. Londres: Routledge & Kegan Paul,

1981.

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1988.

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1973.

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International Publishers, 1976. Carta a Engels, 8 de dezembro

de 1857, p.217.

MARX, K. O Capital. Crítica da Economia Política. São Paulo: Nova

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MARX, K. Theories of Surplus-Value. Moscou: Progress Publishers,

1968.

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MCLELLAN, D. The Thought of Karl Marx. New York: Harper & Row

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Page 117: Marxismo&Ciências Humanas-2011
Page 118: Marxismo&Ciências Humanas-2011

MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

117

As tendências de longo prazo da

economia capitalista e a transição

para o socialismo

Claus M. Germer (UFPR)70

INTRODUÇÃO

A análise deste tema é oportuna em um momento em que

o capitalismo se considera triunfante e os críticos do capitalismo,

mesmo no campo do marxismo, vacilam na afirmação do caráter

historicamente passageiro do presente modo de produção ou

jogam para um futuro remoto e incerto a possibilidade da transição

para o novo modo de produção, o comunismo.

Uma das principais críticas feitas por Marx à teoria

econômica burguesa (a Economia Política clássica, na sua época,

cujo caráter científico reconhecia) foi o seu caráter a-histórico, isto

é, o fato de não reconhecer a natureza passageira do capitalismo.

Atualmente, no campo do marxismo, isto é geralmente

reconhecido, mas, ao contrário de Marx, parece ser aplicado, na

análise teórica, praticamente apenas ao passado, principalmente

como análise do processo de gênese do capitalismo no interior do

feudalismo. Raramente é aplicado à tentativa de identificar o

processo corrente de gestação dos elementos que emergem no

interior do capitalismo e que apontam para a sua superação, na

forma de elementos constitutivos de um novo modo de produção.

Um esforço neste sentido não se confunde com a tentativa de

prever o futuro ou elaborar receitas sobre a forma concreta que

deveria assumir o novo modo de produção. O de que se trata é de

procurar identificar os elementos emergentes deste no interior do

capitalismo.

70 Professor do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Econômico da Universidade Federal

do Paraná.

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

118

Uma tentativa deste tipo não é uma empresa fácil, uma vez

que a evolução social está sendo tecida cotidianamente, por

intermédio da atividade de milhões de indivíduos e grupos de

indivíduos agindo sem coordenação consciente, portanto sem um

objetivo comum conhecido. As mudanças meramente

incrementais podem ser previstas até certo ponto, mas apenas

para o futuro próximo, uma vez que são mera extrapolação da

situação vigente, que é conhecida. Mas as mudanças que

implicam saltos qualitativos dificilmente podem sê-lo. O

desenvolvimento da manufatura, a partir de meados do século 16,

é um exemplo deste tipo. No início daquele século, quando a

produção artesanal era a forma vigente da produção industrial,

nada permitia prever o surgimento e a difusão da produção

manufatureira, algumas décadas depois, cujas condições de

emergência estavam, porém, sendo gestadas a partir de diferentes

pontos da sociedade, mas cuja combinação em um processo de

convergência para o que viria a ser a manufatura era

imperceptível a qualquer observador. Do mesmo modo, durante o

domínio da produção manufatureira, nada permitia antever o

desenvolvimento da indústria mecanizada a partir dela.

Sendo assim, como é possível antecipar uma mudança

qualitativa tão significativa quanto a natureza do modo de

produção que tomará o lugar do capitalismo? Ou seja, como é

possível identificar o comunismo como o novo modo de produção?

O objetivo desta exposição é retomar os fundamentos teóricos que

tornam isto possível.

Uma correlação de forças de classes extremamente

desfavorável ao socialismo, principalmente nas últimas três

décadas, parece ter produzido uma forte desmotivação para o

estudo do processo de transição em curso e até mesmo uma certa

descrença de que isto esteja ocorrendo. Como consequência, são

escassas as análises que sintetizam os abundantes dados e

informações que identificam o curso deste processo. O objetivo

deste artigo não pode, portanto, ir além da retomada dos

fundamentos teóricos da existência deste processo e da indicação

de algumas evidências mais gritantes da sua realização.

A TEORIA DOS MODOS DE PRODUÇÃO

Não há dúvida de que Marx e Engels consideravam possível

antever pelo menos as características fundamentais do modo de

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

119

produção – o comunismo – que sucederia o capitalismo. Marx não

só referiu-se ao novo modo de produção em numerosas passagens

da sua obra, como pretendia dedicar um volume do O Capital a

este tema, intenção que, lamentavelmente, não pode realizar.

Rosdolsky, citando os Grundisse, esclarece que, “segundo o plano

original de Marx, o último volume da sua obra deveria encerrar-se

com o exame dos momentos que apontam ‘para além do que

está pressuposto’ e que ‘pressionam pela emergência de uma

nova forma histórica’ da sociedade. Este volume deveria ocupar-

se, portanto, com a análise da ‘dissolução do modo de produção

e da forma de sociedade baseados no valor de troca’ e da sua

transição para o socialismo” (Rosdolsky, p. 486). Prossegue o mesmo

autor: como resultado da análise de Marx “o socialismo já não

aparecia como um mero ideal, mas como uma fase necessária do

desenvolvimento da humanidade, para a qual tende a história

decorrida até hoje, de modo que só se poderia falar da futura

forma socialista da sociedade, na medida que embriões visíveis

desta futura sociedade pudessem ser descobertos na história

decorrida e suas tendências de desenvolvimento” (Ibidem, p. 487).

Isto significa que a transição para um novo modo de

produção inicia-se quando elementos do mesmo começam a

desenvolver-se no interior do modo de produção vigente. Um

pouco de reflexão é suficiente para indicar que esta é uma

condição indispensável à possibilidade da passagem a um novo

modo de produção71. Sendo assim, os elementos emergentes e

constitutivos do modo de produção que se seguirá ao capitalismo

devem poder ser observados no interior da sociedade capitalista

atual.

Deve-se notar que, para que embriões visíveis da sociedade

futura possam ser encontrados no interior do capitalismo atual, são

necessários critérios capazes de indicar quais seriam os fenômenos

que constituem embriões da sociedade futura. Tais critérios só

podem ser derivados das leis que presidem a evolução do

capitalismo. É preciso, portanto, identificar estas leis, função que

cabe à ciência. O que se necessita, por conseguinte, é que a

sociedade capitalista seja analisada segundo o método científico

usual, isto é, procurando identificar as leis que presidem o seu

funcionamento e sua evolução, a partir dos fatores materiais que

objetivamente a condicionam, e sem a intervenção da

71 Segundo Marx, “...relações de produção novas e superiores nunca se instalam antes que as condições de existência materiais das mesmas tenham sido geradas no próprio seio da velha sociedade” ( Marx,

1980, p. 101).

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

120

intencionalidade humana. Como Marx esclareceu no prefácio ao

primeiro volume do O Capital, tratava-se nesta obra de identificar

as “leis naturais da produção capitalista (...) [as] tendências que

atuam e se impõem com necessidade férrea”, ou seja, “descobrir a

lei econômica do movimento da sociedade moderna”, que é a

sociedade capitalista (Marx, 1983, p. 12). O método desenvolvido

por Marx e Engels para investigar o processo de desenvolvimento

da sociedade humana, é o materialismo histórico, que consiste na

aplicação do materialismo filosófico e da dialética à análise da

sociedade humana. Ao contrário do que se possa crer, o

materialismo é a filosofia na qual se baseia, consciente ou

inconscientemente, a moderna pesquisa científica burguesa no

campo das ciências naturais72. Sendo assim, se a ciência é

materialista em todos os campos, segue-se que a análise científica

da sociedade requer igualmente uma abordagem materialista.

Mas a possibilidade de analisar o movimento da sociedade

capitalista depende crucialmente de se ter identificado as leis que

presidem a evolução da sociedade humana em geral, isto é, as leis

que movem a ação do ser humano como tal e, mais

especificamente, aquelas que presidem a transição de um modo

de produção a outro. As tendências a serem observadas na

evolução do capitalismo nada mais são do que manifestações da

operação destas leis gerais. Sem elas seria impossível saber quais

fenômenos deveriam ser observados como indicadores do

processo de transição. O estabelecimento destas leis foi realizado

por Marx e Engels nas suas obras iniciais, de cunho eminentemente

metodológico, com destaque para a ‘A ideologia alemã’ e o

prefácio da ‘Contribuição à crítica da economia política’. Marx e

Engels pretenderam analisar a evolução da humanidade

cientificamente, isto é, sem atribuí-la a entes fantásticos ou a

inspirações geniais de grandes personagens. Nestas obras

identifica-se o desenvolvimento das forças produtivas como o fator

material responsável pelo desenvolvimento da sociedade humana

em geral, e a contradição entre as forças produtivas e as relações

sociais de produção como o fator responsável pelo

desenvolvimento das lutas de classes que conduzem à transição de

um modo de produção a outro. Deste modo, a identificação das

tendências de evolução das forças produtivas e da contradição

entre estas e as relações de produção, em determinado modo de

72 Na filosofia não marxista das ciências naturais atuais isto é amplamente reconhecido: “Materialism is now the dominant systematic ontology among philosophers and scientists, and there are currently no

established alternative ontological views competing with it” (Moser and Trout, p. ix).

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

121

produção, permite antecipar as características fundamentais do

modo de produção seguinte. Deve-se ter em mente que as

relações de produção expressam-se na forma jurídica da

propriedade ou da apropriação. Portanto, é necessário observar a

emergência de novas formas materiais de apropriação,

conflitantes com a forma vigente e sua expressão jurídica. Por outro

lado, esta contradição desencadeia uma reação por parte da

classe proprietária vigente, na tentativa de controlar e/ou deter o

desenvolvimento das novas forças produtivas e da nova forma

material de apropriação que lhe corresponde73. A existência destas

reações acrescenta-se ao observador como outro indicador da

intensidade da contradição mencionada.

Não se pode de imediato dizer se as mudanças mais

facilmente observáveis são as que se dão nas relações de

produção ou nas forças produtivas, embora estas sejam a causa

daquelas. Os desenvolvimentos técnicos dos meios de produção

ocorrem no interior das unidades produtivas, longe das vistas da

maioria da população e mesmo de observadores atentos,

enquanto as mudanças nas relações de produção, que se dão

entre indivíduos que circulam na sociedade como portadores de

uma nova relação social, tornam-se por este motivo mais fácil e

rapidamente percebidas. Por outro lado, porém, importantes

desenvolvimentos técnicos nos meios de transporte, que são

também elementos das forças produtivas, e que desempenharam

papel importantíssimo no impulso ao desenvolvimento das novas

forças produtivas e relações de produção como um todo em

diversas fases da evolução da humanidade, principalmente nas

mais recentes, são mais fácil e extensamente percebidas.

Finalmente, deve-se notar que não há leis que permitam antever as

direções dos desenvolvimentos técnicos e a natureza dos saltos

qualitativos que caracterizam a emergência de forças produtivas

portadoras de mudanças cruciais. Sendo assim, parece que os

melhores indicadores da emergência do novo modo de produção

no capitalismo são as mudanças nas relações de produção e a

explicitação do seu conflito com a forma jurídica vigente da

propriedade. Se as relações de produção mudam, é porque as

forças produtivas estão mudando.

Deste modo torna-se possível a identificação do processo

em curso de constituição de uma realidade social futura, antes que

esta tenha se materializado. Esta possibilidade depende de se

73 Uma exposição detalhada da teoria da transição entre modos de produção, elaborada por Marx e

Engels, encontra-se em Germer, 2009.

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

122

poder antever, pelo menos em suas linhas gerais, o formato da

realidade futura, que depende, por sua vez, de ser possível extrair,

da análise do processo evolutivo atualmente em curso, as

tendências evolutivas essenciais e a sua convergência em direção

a uma transição determinada.

O resultado da análise de Marx está sintetizado na lei geral

da acumulação capitalista (Marx, 1983, cap. 23), e pode ser assim

enunciado: na sociedade capitalista os produtores são

independentes e concorrem uns com os outros pela sobrevivência

como produtores. A concorrência conduz à elevação contínua da

composição orgânica do capital e à centralização crescente dos

capitais, isto é, à absorção dos capitais menores pelos maiores e à

proletarização dos menores capitalistas e demais produtores

porventura existentes. Da centralização crescente decorrem duas

tendências: a primeira é a polarização crescente da população

em duas classes: a classe capitalista, cujo número diminui

gradualmente, por um lado, e a classe dos trabalhadores

assalariados, que tende a absorver o restante da população, ou

seja, a maioria, por outro. A segunda tendência é o crescimento

contínuo das escalas dos capitais individuais e a correspondente

expansão do caráter social do trabalho, com contingentes cada

vez maiores de trabalhadores trabalhando combinadamente em

regime de cooperação técnica. Finalmente, com o advento e

difusão da sociedade anônima, os capitalistas são substituídos por

trabalhadores assalariados nas funções de direção nas esferas da

produção e da distribuição dos produtos do trabalho. Todas estas

tendências realizaram-se plenamente após a publicação do O

Capital, mesmo aquelas que, à época, ainda não haviam se

manifestado claramente, como é o caso da difusão da sistema de

crédito, da sociedade anônima e da centralização geral dos

capitais.

Desta síntese decorrem as evidências a serem procuradas

na evolução do capitalismo até este momento: por um lado, as

evidências sobre o processo de polarização social entre capitalistas

e assalariados; por outro lado, as evidências de uma tendência

ainda inexistente quando da elaboração do O Capital, mas

implícita no processo de centralização, que é a progressiva

substituição do mercado pelo planejamento da atividade

econômica, tanto ao nível dos capitais individuais quanto do

capital global.

Page 124: Marxismo&Ciências Humanas-2011

MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

123

OS ELEMENTOS FUNDAMENTAIS DO COMUNISMO NO

INTERIOR DO CAPITALISMO

Entre as referências feitas por Marx ao comunismo,

encontra-se frequentemente a expressão ‘sociedade de

produtores associados’. O conceito de ‘produtores associados’,

cuja base é a propriedade comum dos meios de produção, opõe-

se ao de ‘produtores independentes em concorrência’, cuja base

é a propriedade privada dos meios de produção. É clara nos textos

de Marx a indicação de que o comunismo baseia-se na

propriedade comum ou coletiva dos meios de produção. A

propriedade comum implica, logicamente, que a gestão dos meios

de produção é também comum e unificada, significando que o

conjunto deles é gerido como uma totalidade, ou seja, há

planejamento global unificado da produção e da distribuição.

Pode-se dizer, por conseguinte, que os dois componentes

fundamentais do comunismo são a propriedade comum dos meios

de produção, por um lado, e o planejamento integrado ou global

da produção e da distribuição, por outro.

Ora, o novo modo de produção somente se torna possível

na medida que os seus componentes fundamentais estejam

desenvolvidos a um ponto que se possa considerar suficiente, uma

vez que eles constituem o fundamento material do

desenvolvimento da classe social portadora do projeto do novo

modo de produção, projeto este que nada mais é que a expressão

das exigências objetivas dos componentes já desenvolvidos do

mesmo74. Ou seja, a transição para o comunismo requer que se

desenvolva previamente, no interior do capitalismo, uma classe

cujo destino depende desta transição, e uma tal classe só pode

desenvolver-se caso a apropriação coletiva dos meios de

produção se desenvolva também previamente, em estado

embrionário, no interior do capitalismo. Isto lembra a máxima de

Marx, segunda a qual a sociedade somente se propõe um

problema quando as condições materiais para a sua solução já

estão presentes. Sendo assim, pode-se dizer que as duas

tendências de longo prazo fundamentais do capitalismo são a

progressiva emergência da propriedade comum dos meios de

produção, por um lado, e do planejamento global da produção e

da distribuição, por outro. Conseqüentemente, estas duas

74 “A existência de idéias revolucionárias numa época determinada pressupõe já a existência de uma

classe revolucionária” (Marx e Engels, 1975, p. 68). Ver também Germer (2009).

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

124

tendências devem poder ser observadas no processo objetivo de

desenvolvimento do capitalismo.

A EMERGÊNCIA DA PROPRIEDADE COLETIVA DOS MEIOS DE

PRODUÇÃO

A afirmação de que os componentes do comunismo

devem desenvolver-se até um ponto significativo no interior do

capitalismo não significa que se pretenda que estes se manifestem

abertamente como tais, de modo explícito. Assim, a emergência

da propriedade comum no interior do capitalismo não pode ser

entendido como a difusão desta nova forma de propriedade

explicitamente como propriedade comum, de todo o povo. Isto

nem poderia ocorrer, uma vez que a forma jurídica geral da

propriedade dos meios de produção é a propriedade privada.

Sendo assim, dada a dominância desta, é óbvio que a

propriedade coletiva não pode desenvolver-se a não ser como

uma forma encoberta da propriedade privada. O mesmo deu-se

na transição do feudalismo para o capitalismo, na qual o

capitalista desenvolveu-se na forma de arrendatário do nobre

feudal, ou seja, como uma espécie de vassalo de novo tipo, tanto

da agricultura como na manufatura.

Parece legítimo sugerir que a propriedade comum pode

desenvolver-se de duas maneiras no capitalismo, por um lado de

maneira positiva, isto é, como propriedade efetivamente existente,

mas em forma encoberta pela propriedade privada; por outro lado

de maneira negativa, isto é, como processo de progressiva

redução do âmbito de existência da propriedade privada.

A PROPRIEDADE COMUM DOS MEIOS DE PRODUÇÃO COMO

FORMA ENCOBERTA PELA PROPRIEDADE PRIVADA

Segundo Marx, a propriedade comum dos meios de

produção desenvolve-se, no capitalismo, sob as formas da

sociedade por ações ou sociedade anônima, e das fábricas-

cooperativas75 (Marx, 1985, p. 332-5). É significativo que estas

últimas, em contraste com a sociedade anônima, nunca se

75 Sobre o papel das fábricas-cooperativas na teoria de Marx, consultar Germer, 2006a.

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

125

tenham expandido, o que se explica pelo fato de constituírem uma

forma explicitamente comum de propriedade dos meios de

produção, por parte de não-proprietários convertidos diretamente

em proprietários comuns, e não como forma socializada da

propriedade privada, em âmbito limitado, como é caso da

sociedade anônima. Segundo Marx,

“As empresas capitalistas por ações tanto quanto as

fábricas-cooperativas devem ser consideradas formas de transição

do modo de produção capitalista ao modo associado, só que,

num caso a antítese é abolida negativamente e, no outro,

positivamente” (Marx, 1985, p. 335).

A sociedade anônima representa, para Marx, a forma

extrema da produção capitalista como forma embrionária da

propriedade comum. Ou seja, é a propriedade comum sob a

aparência da propriedade privada. Em carta a Engels, de 2 de

abril de 1858, Marx define a sociedade anônima de modo radical,

como “a forma mais perfeita (que desemboca no comunismo),

com, ao mesmo tempo, todas as suas contradições” (Marx e

Engels, 1974, p. 77). Coerentemente, quase dez anos depois, ao

redigir o livro III do O Capital, a define como “a abolição do capital

como propriedade privada, dentro dos limites do próprio modo de

produção capitalista” (OC, 1985, p. 332).

Assim, a sociedade anônima constitui uma socialização dos

meios de produção, embora no âmbito limitado da própria classe

capitalista. Deste modo, a propriedade comum desenvolve-se

amplamente como derivação da propriedade privada, assim

como a propriedade privada capitalista desenvolveu-se

amplamente no interior do feudalismo, como forma derivada da

propriedade feudal. Com efeito, atualmente a sociedade anônima

apresenta-se como a forma típica e mais geral da empresa

capitalista (Scott, 1986). Como consequência disto, como regra

geral estas empresas deixam de ser geridas, em qualquer

proporção, por capitalistas, para serem geridas por gerentes

especializados assalariados. Na medida que a sociedade anônima

se converte na forma geral da empresa capitalista, a classe

capitalista está afastada da gestão direta da produção e da

distribuição, sendo portanto dispensável do ponto de vista da

reprodução social, apresentando-se crescentemente como uma

classe parasitária, tal como se apresentava a nobreza feudal na

fase terminal do feudalismo. Ao mesmo tempo, a gestão efetiva

dos meios de produção passa às mãos de uma hierarquia de

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

126

gerentes e especialistas assalariados. Embora agentes diretos de

capitalistas, são integrantes da classe dos não-proprietários de

meios de produção, o que significa que, na medida que a

sociedade anônima torna-se dominante, a gestão real dos meios

de produção do capitalismo transfere-se das mãos da classe

capitalista às mãos da classe oposta. O desenvolvimento da

sociedade anônima constitui, portanto, um momento do processo

histórico de transferência da gestão dos meios de produção para

uma nova classe de proprietários coletivos dos meios de produção

sociais.

Ao longo do século 20 a emergência da propriedade

comum deu mais alguns passos significativos. Por um lado, nos

países capitalistas, ingressaram na cena econômica a propriedade

e a gestão estatais diretas de meios de produção, principalmente

a partir da grande depressão dos anos 30 e aprofundando-se após

a II Guerra Mundial, de modo que o Estado assumiu importantes

funções diretas no processo global de reprodução do capital.

Embora o Estado represente a classe capitalista, a sua intervenção

direta na economia amplia consideravelmente o processo de

socialização em relação ao representado pela sociedade

anônima, uma vez que o vínculo direto do Estado ao capital está

oculto pela sua representação como poder acima das classes.

Deve-se também ressaltar o fato de que a direção das sociedades

anônimas é eleita pela sociedade dos acionistas, enquanto a

direção do Estado é eleita pela sociedade dos eleitores.

Por outro lado, o socialismo como forma de organização da

sociedade fez sua aparição histórica, embora apenas na periferia

do capitalismo, mas em dimensões geográfica e populacional

significativas. A abolição da propriedade privada e sua substituição

pela propriedade comum converteram-se em realidade, embora

ainda caracterizando uma fase de transição e sendo interrompida

como consequência de contradições internas e externas.

A propriedade estatal, tanto nos países capitalistas quanto

nos socialistas, vista em perspectiva histórica, constitui um passo

decisivo no processo de desenvolvimento dos elementos do

comunismo no interior do capitalismo como sistema mundial, e no

processo histórico de transição do capitalismo ao comunismo. Nos

países capitalistas, a propriedade comum, que até então se

apresentava apenas na forma da sociedade anônima, encoberta

sob a aparência da propriedade privada, e representando uma

socialização limitada à classe capitalista, converte-se

explicitamente, embora apenas formalmente, em propriedade

comum de todo o povo. Na empresa estatal a forma de sociedade

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

127

anônima é inicialmente apenas uma ficção jurídica, uma vez que o

Estado detém a quase totalidade das ações. Posteriormente, como

reação burguesa à atuação do Estado como produtor direto, a

venda pública de ações e o controle de empresas estatais por

acionistas privados procuram encobrir o caráter público das

empresas estatais que escaparam da onda de privatizações do

período iniciado nos anos 1980. A diluição da participação

acionária do Estado nas empresas estatais toma ainda a forma de

uma associação de capitalistas, que, no entanto, mal encobre a

realidade da socialização capitalista de parte dos meios de

produção nos países capitalistas mais avançados.

Independentemente das vicissitudes das experiências

socialistas ao longo do século 20, constituem elas momentos do

processo histórico de gestação do comunismo, experiências de

gestão unificada da produção e da distribuição, baseada na

propriedade comum dos meios de produção por toda a

sociedade, abolidas a propriedade e a gestão privadas76. Pode-se

dizer ‘independentemente das vicissitudes’, porque os processos

objetivos, materiais, movem-se com a força irresistível das leis da

natureza, como dizia Marx, mesmo que os indivíduos e as classes,

que colocam tais processos em movimento, não compreendam o

sentido histórico do que fazem, oculto sob o manto muitas vezes

espesso das suas contradições.

A POLARIZAÇÃO CRESCENTE ENTRE PROPRIETÁRIOS E NÃO-

PROPRIETÁRIOS DE MEIOS DE PRODUÇÃO: A EXTINÇÃO DA

PROPRIEDADE PRIVADA

A propriedade comum dos meios de produção também se

desenvolve pelo seu negativo, isto é, pela expropriação de uma

proporção crescente da população de qualquer propriedade. A

expropriação de um proprietário implica a sua conversão em não-

proprietário e, de modo geral, em trabalhador assalariado. Deste

modo, a progressiva extinção da propriedade privada pode ser

76 É interessante notar que os críticos de esquerda das experiências socialistas do século 20

concentram-se na acusação de que a socialização dos meios de produção teria se reduzido à mera

estatização, em contraste com a esperada e verdadeira socialização. Concentram-se em um aspecto, mesmo que relevante, mas, na medida que esquecem a contradição presente em todos os processos

sociais, vulgarizam a sua crítica ao ignorarem o significado histórico destas experiências.

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

128

avaliada pelo crescimento da proporção dos não-proprietários, isto

é, dos assalariados na população77.

Este processo tem se realizado consistentemente, indiferente

às contestações tendenciosas dos críticos do marxismo. Com

efeito, a proporção da classe dos trabalhadores assalariados na

população total tem crescido sistematicamente nos países

capitalistas. Nos mais adiantados, como por exemplo os EUA, os

assalariados já ultrapassam os 90% da população (Schneider, 1976,

p. 317; OIT, para dados atuais). No Brasil, segundo o censo

demográfico de 2000, os assalariados somam cerca de 75% da

população total, e entre eles o proletariado propriamente dito

(industrial e comercial/bancário) constitui cerca de 52% da

população total (IBGE). Em todo o mundo, segundo estimativa de

Bensaïd, a proporção da classe de trabalhadores assalariados

aumentou de cerca de 5% no início do século 20, a cerca de 33%

no início do século 21 (Bensaïd, 2001).

A classe capitalista, em contrapartida, nunca representou

uma proporção significativa da população, o que é comum a

todos os modos de produção baseados na propriedade privada.

No Brasil, ainda segundo o censo demográfico de 2000, a classe

capitalista (empregadores, segundo o Censo) conta menos de 3%

da população. Segundo estimativa de Labini, nos anos 1970,

referente a alguns dos países capitalistas mais desenvolvidos, em

nenhum deles a classe capitalista contava mais de 5% da

população (Labini, 1983). É curioso constatar que mesmo autores

que se dizem marxistas dispõem-se a admitir que a luta pelo

socialismo perde a sua legitimidade porque o ‘proletariado’,

definido tendenciosa e restritamente como proletariado fabril,

representa supostamente uma proporção ‘decrescente’ da

população, mesmo assim em torno dos 20%, com o que admite,

impliciticamente, que uma classe – a burguesia –, que nunca

ultrapassa os 5% da população, mantenha seu domínio absoluto

77 “Horrorizais-vos porque queremos abolir a propriedade privada. Mas em vossa sociedade a

propriedade privada está abolida para nove décimos de seus membros. E é precisamente porque não

existe para estes nove décimos que ela existe para vós. Acusais-nos, portanto, de querer abolir uma forma de propriedade que só pode existir com a condição de privar de toda propriedade a imensa

maioria da sociedade” (Marx e Engels, s/d, p. 33). O número parece exagerado, talvez por terem os

autores incluído os pequenos camponeses, maioria da população à época, entre os excluídos da propriedade, entendida provavelmente como a propriedade especificamente capitalista, utilizando

trabalhadores assalariados. Em importante obra posterior, Marx afirma que “o ‘povo trabalhador’

compõe-se, na Alemanha, na sua maioria de camponeses e não de proletários” (Marx, 1875).

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

129

em um sistema baseado no monopólio dos meios de produção

sociais e na exploração desenfreada da força de trabalho da

imensa maioria da população.

Note-se que, no caso das transições anteriores, entre modos

de produção baseados na propriedade privada, o

desenvolvimento das forças produtivas dava origem a uma nova

forma privada de apropriação dos meios de produção, base de

uma nova classe proprietária privada, que se tornaria dominante

no novo modo de produção. Na transição do capitalismo ao

comunismo, ao contrário, o desenvolvimento das forças produtivas

não dá origem a uma nova forma de apropriação privada. O que

cresce persistentemente, ao contrário, é a não-propriedade, ou

seja, a privação da propriedade privada, forma negativa da

propriedade comum em desenvolvimento. Como resultado das leis

de movimento do próprio capitalismo, como se indicará adiante,

expande-se o caráter social da produção, isto é, o seu caráter

cooperativo geral; expande-se a interconexão técnica entre as

unidades independentes de produção e distribuição; cresce a

contradição entre este caráter social da produção e a

manutenção da apropriação privada por uma minoria, de modo

que o caráter privado da apropriação entra crescentemente em

conflito com a destinação social da produção.

A EMERGÊNCIA DO PLANEJAMENTO DA ECONOMIA

À propriedade comum ou coletiva dos meios de produção

corresponde a sua gestão comum ou coletiva, isto é, o

planejamento integrado e global da produção e da distribuição

dos produtos do trabalho social, substituindo o mercado. Sendo

esta uma característica fundamental do comunismo, deve-se

esperar que o planejamento da atividade econômica também se

desenvolva, de modo perceptível e em escala crescente, no

interior do próprio capitalismo. Quando se fala em planejamento

econômico, isto geralmente se refere ao planejamento realizado

pelo Estado. De fato, o desenvolvimento do planejamento da

economia pelo Estado, em graus variáveis de abrangência, em

todos os países capitalistas, é evidente ao longo do século 20. No

entanto, o planejamento econômico não se restringe ao Estado.

Embora o Estado seja uma instituição política da classe proprietária,

e embora o planejamento estatal tenha sido e continue sendo

relevante, do ponto de vista da transição para o comunismo, é

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

130

essencial que o planejamento se desenvolva, principalmente,

como elemento do funcionamento corrente da economia, isto é,

como elemento da dinâmica do capital, individual e

coletivamente. No momento da revolução política, é necessário

que a estrutura básica do planejamento já esteja constituída no

próprio coração do movimento do capital. Juntamente com a

abolição, na prática, da propriedade privada dos meios de

produção para a maioria da população, à medida que o

capitalismo se desenvolve, o planejamento da produção e da

distribuição deve também desenvolver-se espontaneamente e

deve estar constituído no momento da transição política.

Com efeito, a observação mais rigorosa permite constatar

que o planejamento da economia surge e se desenvolve sob duas

formas e não apenas uma: por um lado o planejamento ao nível

da economia como um todo, realizado pelo Estado e, por outro

lado, e mais importante, o planejamento ao nível dos capitais

individuais. Ambos emergem como emanação direta do crescente

caráter monopolista do capitalismo, isto é, constituem uma

característica do imperialismo, entendido como fase estrutural do

capitalismo. Não é casualidade que a gradual substituição do

mercado pelo planejamento, ao nível das empresas, tenha

começado a desenvolver-se no último quarto do século 19, e que o

planejamento estatal da economia tenha começado a

desenvolver-se no século 20, a partir da grande depressão iniciada

em 1929.

Sendo assim, deve-se distinguir duas modalidades de

planejamento econômico: o planejamento na esfera do capital

privado, que se pode denominar planejamento econômico

privado, e o planejamento econômico na esfera do Estado, que se

pode denominar planejamento econômico estatal.

O PLANEJAMENTO GLOBAL DA PRODUÇÃO E DA

DISTRIBUIÇÃO

O planejamento econômico pelo Estado desenvolveu-se,

no século 20, em dois aspectos: por um lado nos países capitalistas,

como evolução das contradições do próprio capitalismo e, por

outro lado, nos países socialistas, como momento da transição ao

socialismo. Ambos os processos estão mergulhados em

contradições específicas, mas o que sobressai é o seu significado

no processo histórico do desenvolvimento social

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

131

A força irresistível dos processos sociais objetivos pode ser

ilustrada pelo fato de que, durante o século 20, a própria burguesia

foi autora de audaciosos experimentos de planejamento global

sob condições capitalistas. A superação da assustadora crise

econômica desencadeada pelo colapso da bolsa de Nova Iorque,

em 1929, foi em grande parte obra da intervenção direta do

Estado capitalista na gestão da economia. A ação planejada do

Estado aprofundou-se durante a II Guerra Mundial: nos EUA, país

hegemônico do capitalismo, a economia foi colocada sob o

controle direto do Estado durante toda a guerra. A produção

industrial foi convertida em produção militar. Como exemplo

paradigmático pode-se citar a proibição da fabricação de

automóveis de passeio pela indústria automobilística e a

destinação total da sua atividade à produção de veículos militares

de todos os tipos. O mesmo ocorreu na indústria da aviação e em

todas as demais. Os investimentos, os preços, o crédito, etc.,

passaram a ser administrados diretamente pelo Estado. O mercado

entrou temporariamente em recesso. A própria classe capitalista

aboliu temporariamente as sagradas leis do mercado, não porque

lhe agradasse, mas porque agia sob a compulsão de uma

realidade objetiva irresistível.

No processo de descolonização, que se seguiu ao fim da II

GM, o planejamento do desenvolvimento, pelo Estado, e não o

mercado, tornou-se o mecanismo central da promoção do

crescimento econômico das ex-colônias. Mesmo nos países

capitalistas mais atingidos pela guerra o planejamento econômico

explícito tornou-se regra: a França e o Japão, por exemplo,

elaboraram planos quinquenais de desenvolvimento até os anos 60

e 70, respectivamente.

No entanto, o planejamento econômico estatal, no

capitalismo, como não poderia deixar de ser, substituiu o mercado

apenas parcial e temporariamente, e não substituiu a propriedade

privada dos meios de produção. Mas constitui um sintoma da

emergência da propriedade social no interior do sistema da

propriedade privada capitalista. Constitui ainda um sintoma de que

o mercado é incapaz de continuar assegurando a reprodução

normal da economia, exigindo a intervenção de um poder

regulador não mercantil, que é o Estado, que deve ser entendido

como embrião de uma autoridade social como gestora global na

economia no socialismo. Dado o seu caráter não mercantil, o

planejamento econômico estatal reflete o crescimento da

propriedade social e entra em choque com a propriedade

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

132

privada. Segundo a tese de Marx, de que a classe proprietária

dominante reage aos desenvolvimentos das relações de produção

que refletem uma nova forma objetiva de apropriação e se

opõem, portanto, à propriedade privada, era de esperar que o

planejamento econômico estatal, nos países capitalistas, entrasse

em choque com os interesses da classe proprietária, a burguesia, e

que esta tudo fizesse para bloquear e mesmo abolir o

planejamento estatal. Efetivamente, o chamado neoliberalismo

pode ser reduzido a uma grande ofensiva da burguesia mundial

contra o planejamento econômico estatal, imposto pelas

circunstâncias dramáticas da crise geral dos anos 1930 e pelos

imperativos do pós-II Guerra Mundial.

É oportuno notar que já é impossível impedir a interferência

direta e ampla do Estado se não no planejamento, pelo menos no

direcionamento da economia, por diversas vias. A receita pública

absorve atualmente, nos países capitalistas avançados, em torno

de 40% do PIB. Por um lado esta receita converte-se em despesas,

que movem uma proporção importante da economia; por outro

lado, a forma da arrecadação e os canais bancários e financeiros

que esta volumosa receita percorre convertem-se em outros tantos

meios através dos quais o Estado influencia o destino de empresas,

ramos de atividade, regiões, etc. Adicionalmente, a centralização

do sistema bancário sob a coordenação do banco central fornece

ao Estado um poderoso meio de influenciar a economia por

intermédio da regulação do crédito e do câmbio. Todas estas

formas de intervenção do Estado não devem, porém, ser

encaradas como se estivesse ao alcance do Estado determinar

características essenciais da economia, sujeita que está esta, e o

Estado por seu intermédio, às leis de movimento do capital. Mas a

proporção da renda que passa pelo Estado, assim como os fluxos

de dinheiro, de crédito e de transações internacionais, que se

centralizam no banco central, fornecem ao Estado meios de intervir

na realização destas leis dentro de certos limites.

As iniciativas estatais no sentido de conter o processo de

centralização do capital, por intermédio das chamadas leis anti-

truste e outras, podem ser interpretadas como uma reação da

classe capitalista representada pelo Estado ao desenvolvimento

das forças produtivas, na medida que a centralização acelera o

aumento das escalas de produção e da produtividade do trabalho

e reduz o âmbito da concorrência, ameaçando a supremacia do

mercado. A relativa ineficácia destas leis apenas reflete a

impossibilidade de bloquear definitivamente o avanço inexorável

do desenvolvimento das forças produtivas. As leis sobre direitos

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

133

autorais atuam no mesmo sentido, na medida que procuram

conter a velocidade de difusão do progresso técnico e a erosão

da concorrência. O mesmo se pode dizer das leis que, nos países

capitalistas mais avançados, bloqueiam o avanço do processo de

centralização do capital na agricultura78.

O PLANEJAMENTO AO NÍVEL DAS EMPRESAS

Nas últimas décadas do século 19 o capitalismo

experimenta um conjunto de transformações que o elevam a uma

nova fase, o imperialismo (Lênin, 1979, p. 594). O imperialismo,

segundo Lênin, não é uma política, mas uma fase estrutural do

capitalismo, caracterizada pelo domínio do processo de

centralização do capital e do monopólio gerado por este

processo, motivo pelo qual Lênin também a denominou fase do

capital monopolista. Nos três primeiros capítulos desta importante

obra, Lênin expõe o processo de formação das grandes empresas

que caracterizam a nova fase, e a elevação generalizada do grau

de concentração em todos os setores da economia. Esta fase é,

segundo Lênin, uma fase de transição “entre a absoluta liberdade

de concorrência e a socialização completa”, e a caracteriza

como um “novo regime social” (594), em que o âmbito do

mercado se contrai, substituído pelo controle dos mercados pelas

empresas monopolistas. Há uma certa complementaridade entre a

ampla análise da evolução histórica da ‘grande empresa industrial

moderna’ (big business), realizada por Alfred Chandler Jr, e a

análise de Lênin, com exceção, obviamente, da base teórica

totalmente divergente.

A história da grande empresa de Chandler e do novo

sistema social ao qual dá origem inicia-se também no final do

século 19 e estabelece-se definitivamente no início do século 20. A

grande empresa surge e cresce com base no salto tecnológico da

segunda revolução industrial, ocorrido neste período, e alimenta-se

da absorção contínua de empresas concorrentes e da integração

78 Em diversos países europeus ocidentais e em diversos Estados dos EUA, há leis que limitam o

tamanho da propriedade da terra agrícola. Nos EUA há também uma proibição legal ao estabelecimento de sociedades anônimas na agricultura. Estas e outras leis de mesmo sentido

constituem sem dúvida obstáculos opostos pelo Estado burguês ao desenvolvimento das forças

produtivas. É interessante notar que a motivação, neste caso, é a manutenção de uma pequena-burguesia conservadora no meio rural, como uma barreira ao avanço da luta pelo socialismo na

agricultura (Germer, 2006b, p. 53-55).

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

134

vertical, que Lênin também destaca sob o nome de ‘combinação’.

Ou seja, a grande empresa moderna, de Chandler, que coincide

com o grande capital monopolista, de Lênin, é a empresa típica da

fase imperialista do capitalismo. Com a integração vertical, ou

combinação, o comércio entre empresas independentes de uma

cadeia produtiva é substituído pela conexão planejada, no interior

da empresa integrada, entre as etapas sucessivas da cadeia de

produção/distribuição, que vai da produção das matérias-primas

até a distribuição do produto final. Segundo Chandler,

“a moderna empresa tomou o lugar dos

mecanismos de mercado na coordenação das atividades da economia e na alocação dos seus recursos. Em muitos setores, a mão visível da gerência substituiu o que Adam Smith denominou de mão invisível das forças de mercado (...) Antes do advento da moderna empresa, as atividades da pequena firma pessoal eram coordenadas pelos mecanismos de mercado e de preço. A moderna empresa, ao assumir o controle de muitas unidades, começou a operar em diferentes lugares, geralmente exercendo diferentes tipos de atividades econômicas e lidando com diferentes linhas de bens e serviços. As atividades dessas unidades e as transações entre elas foram portanto interiorizadas, passando a ser monitoradas e coordenadas por empregados assalariados e não pelos mecanismos de mercado” (Chandler, 1998, p. 248-9).

A necessidade de planejamento cada vez mais detalhado

cresce nas empresas, como resultado da centralização sempre

maior do capital, que resulta em empresas de dimensões cada vez

maiores, cuja produção atende uma proporção cada vez maior

de cada mercado, não só no interior dos países, mas também no

âmbito mundial. Como consequência, as empresas produtoras de

cada produto, ao planejarem a sua produção, planejam

concomitantemente o abastecimento de proporções crescentes

das populações (Schneider, pp. 125ss). Ao combinarem,

forçosamente, o planejamento da produção e da distribuição, tais

empresas traçam, na realidade, planos sociais parciais de

produção e distribuição.

O surgimento da ‘grande empresa moderna’ tornou-se

possível como resultado de um conjunto de transformações na

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

135

base material da sociedade. Na base de todas está o

desenvolvimento das forças produtivas ou, mais restritamente, o

desenvolvimento tecnológico. Nas palavras de Chandler, a grande

empresa moderna

“surgiu pela primeira vez na história

quando o volume das atividades econômicas atingiu um nível que tornou a coordenação administrativa mais eficiente e mais vantajosa do que a coordenação pelo mercado. Este maior volume de atividades foi possível graças à nova tecnologia e à expansão dos mercados (...) Assim, a moderna empresa comercial [big business – CMG] surgiu, cresceu e continuou a prosperar justamente nos setores e indústrias que tinham tecnologia avançada e mercados em expansão (Ibidem, p. 255)

Lênin traduz o mesmo fenômeno como um processo no qual

“a concorrência transforma-se em monopólio”. A redução do

âmbito de atuação do mercado e sua substituição pelo

planejamento interno e externo das grandes empresas, que se

caracteriza como uma situação de transição entre o mercado e o

plano como reguladores da economia, representa, ao mesmo

tempo, “um gigantesco progresso na socialização da produção.

Socializa-se também, em particular, o processo dos inventos e

aperfeiçoamentos técnicos” (Lênin, p. 593).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo desta exposição foi mostrar que a expectativa

de que o capitalismo será sucedido pelo comunismo não é

arbitrária, mas baseia-se em uma análise científica, representada

pelo materialismo histórico, da evolução da sociedade humana. A

pretensão de que o materialismo histórico constitui o método

científico de análise da sociedade baseia-se na utilização, de que

ele lança mão, do método de toda ciência, que é o materialismo,

não necessariamente aos resultados da análise nele baseada.

Assim, os resultados da análise de Marx e Engels podem ser

contestados, mas só podem sê-lo consistentemente, com base,

igualmente, no uso do método científico geral, que é, repita-se, o

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

136

materialismo. Marx e Engels denominaram socialismo científico a

nova forma de sociedade para a qual o capitalismo converge,

como resultado da sua análise, porque esta foi baseada no

método geral da ciência e não em preferências ou motivações

subjetivas.

Procurou-se demonstrar que, na medida que seja possível

identificar, metodicamente, as leis de movimento da sociedade

humana em geral, e com base nestas as da sociedade capitalista,

especificamente, partindo exclusivamente dos fatores materiais ou

objetivos que as condicionam e determinam, como Marx e Engels

pretenderam ter feito, deve ser possível identificar, por um lado, as

tendências gerais de longo prazo que conduzem a sociedade

capitalista à passagem para um novo modo de produção e, por

outro lado, a natureza do novo modo de produção. Esta foi, em

essência, a pretensão de Marx e Engels.

Finalmente, procurou-se também apontar algumas

evidências históricas sobre a realização das tendências

fundamentais de longo prazo do capitalismo, a partir da

elaboração do O Capital. Esta exposição tem um caráter

exploratório inicial, devido à escassez de pesquisas extensas e

aprofundadas sobre este tema.

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

139

Nicos Poulantzas, as elites e a

sociologia política norte-americana

Sérgio Braga (DECISO/UFPR)

“O empréstimo de um conceito

isolado (do seu contexto) não compromete aquele que o fez frente ao contexto de onde o tomou (Assim, por exemplo, os empréstimos do Capital feitos a Smith, Ricardo ou Hegel). Mas o empréstimo de uma verdadeira problemática não pode ser acidental, e compromete o seu autor”

(Louis Althusser, Pour Marx).

INTRODUÇÃO

O objetivo deste texto é recuperar alguns dos principais

momentos do diálogo crítico sobre alguns conceitos fundamentais

de teoria política travado por Nicos Poulantzas em suas obras

iniciais, especialmente em sua obra magna Poder Político e Classes

Sociais (POULANTZAS, 1968), com analistas políticos representantes

daquele paradigma de análise política que, numa definição

ampla, podemos qualificar como pertencendo à “sociologia

política norte-americana”79.

79 Definimos como “sociologia política norte-americana” (ou funcionalista) aquele paradigma de

análise política bastante influente na ciência política anglo-saxã nos anos 60 e 70, cujos representantes produziram uma série de obras significativas sob a influência do funcionalismo sociológico de Talcott

Parsons, e orientados pelo conjunto de questões gerais comuns (ou pela “problemática”) expostos mais

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

140

Dentre estes autores, destacamos neste texto alguns dos

principais cientistas sociais e políticos do século passado tais como

Talcott Parsons (PARSONS, 1951, 1969), Harold Lasswell (LASSWELL &

KAPLAN, 1979), David Easton (EASTON, 1953, 1969), Robert Dahl

(DAHL, 1963, 2005), Gabriel Almond (ALMOND et. Al., 1969, 1972, ) e

Karl Deutsch (DEUTSCH, 1971; 1983), os quais foram interlocutores

privilegiados de Poulantzas em sua primeira fase de elaboração

teórica.

Como se sabe, o próprio Poulantzas afirmou explicitamente

em Poder Político e Classes Sociais que as obras clássicas do

marxismo apresentavam uma série de deficiências e lacunas

analíticas, que tornavam indispensável o recurso a outros tipos de

“matérias-primas” para fundamentar a tentativa de (re)

formulação da teoria política marxista que era o núcleo de seu

próprio projeto teórico original (Poulantzas, 1968: p.: 18)80 Assim,

longe de propor um “retorno (exegético) a Marx”, da mesma

maneira que seu inspirador mais imediato, Louis Althusser, o autor

reconhecia e afirmava de forma explícita as deficiências e os

limites do esquema analítico e do método de exposição

elaborados pelos clássicos do marxismo (embora, naturalmente,

estas referências se constituam em ponto de partida de qualquer

reflexão que se propusesse a permanecer dentro do campo

teórico marxista), assim como a necessidade de um diálogo

teórico-metodológico franco e aberto com as diferentes correntes

da análise política produzidas no ambiente acadêmico de então81.

à frente. Alguns dos subgrupos desse campo intelectual mais geral são a análise sistêmica de David Easton, o pluralismo elitista de Robert Dahl e Seymour Martin Lipset, o modelo cibernético de Karl

Deutsch, a teoria do “governo comparado” e do desenvolvimento político de Gabriel Almond. Esses

autores, fortemente influentes no mainstream da produção acadêmica norte-americana até meados dos anos 80, foram sendo progressivamente substituídos ao longo dos anos 1990 por outros paradigmas tais

como a teoria da escolha racional, a public choice e as diversas vertentes do neoinstitucionalismo que

não demonstram a mesma preocupação em vincular o estudo dos processos políticos com processos

que se dão em sistemas sociais mais abrangentes.

80 Relembre-se de passagem que esta era uma postura simetricamente oposta à de analistas como Ralph

Miliband, que consideravam que os fundamentos de tal teoria já estariam contidos nas obras originais dos “clássicos” do marxismo, sendo a principal tarefa dos marxistas contemporâneos efetuar o “teste

empírico” de tais princípios na análise das sociedades capitalistas visando a desmistificar a visão das

democracias modernas presentes nas obras dos “pluralistas” (Cf. MILIBAND, POULANTZAS & LACLAU, 1988).

81 Já no início Poulantzas de seu livro afirma em relação às obras contemporâneas de Ciência Política

que “o caráter ou a natureza marxista ou não marxista dessas obras de modo algum constitui ─ no estágio atual de investigação e no que diz respeito à sua tomada em consideração como matéria-prima

de investigação ─ um critério pertinente de sua seriedade ou não seriedade”. Em seguida, enfatiza que

“recorremos com freqüência a obras em língua inglesa ─ inglesas e americanas ─ ”, censurando ainda o “provincianismo característico da vida intelectual francesa, da qual uma das características ─ e não a

menor ─ consiste muitas vezes em arrombar portas abertas, isto é, em acreditar serenamente na

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

141

Nesse sentido, um dos elementos constitutivos a nosso ver

mais importantes de Poder Político e Classes Sociais é a tentativa

do autor de renovar a teoria política marxista a partir do diálogo

crítico com alguns dos principais paradigmas analíticos que

compunham a corrente dominante da teoria política de então,

menos do que através do recurso a um “retorno a Marx” ou a um

simples trabalho de explicitação e extração teórica de elementos

que já estariam contidos, de maneira aplicada (ou em “estado

prático” segundo o jargão utilizado), nas obras clássicas do

marxismo. Apenas à guisa de exemplo, podemos mencionar como

resultados analíticos (ou seja, teóricos, históricos e empíricos)

fecundos obtidos por Poulantzas a partir de seu diálogo com outras

perspectivas de análise os seguintes: a) sua teoria do Estado

Capitalista e o conceito de burocratismo, formulados a partir de

um diálogo crítico com a teoria da dominação racional-legal e a

sociologia da burocracia originalmente elaboradas e aplicadas em

análises históricas por Max Weber, Reinhard Bendix, dentre outros

autores; b) suas concepções de estratificação social, classes sociais

e o esboço de uma sociologia dos grupos de intervenção política,

elaboradas a partir do confronto explícito e sistemático com outras

concepções não necessariamente de inspiração marxista, tais

como a sociologia das elites, o funcionalismo conflitualista de Ralph

Dahrendorf, dentre outros autores; c) suas concepções sobre forma

de Estado, regime político e democracia, formuladas a partir de

um confronto crítico com as idéias de Maurice Duverger, um dos

principais expoentes do institucionalismo constitucionalista francês

de então.

Ou seja: qualquer leitura, por mais superficial que seja, dos

textos da “primeira fase” da elaboração teórica poulantziana,

perceberá facilmente que um dos principais elementos do

processo de reflexão teórica e de exposição analítica do autor, era

a tentativa de estabelecer um diálogo sistemático com outros

paradigmas de análise política, dentro dos quais devemos

destacar a “sociologia política norte-americana”. Esse papel

destacado do diálogo com a sociologia política funcionalista nas

obras iniciais de Poulantzas não é casual dado que, apesar das

diferenças substanciais entre os projetos teóricos (ou seja, aquele

que derivava do estrutural-marxismo “althusseriano", por um lado, e

do funcionalismo sistêmico parsoniano, de outro), existem a nosso

originalidade de uma produção teórica, quando esta já se encontra mais elaborada em outros autores estrangeiros” (p. 18).

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

142

ver vários pontos de contato e de interseção teórica entre os

sociólogos funcionalistas norte-americanos e o projeto teórico

original de Poulantzas (tais como a tentativa de elaborar uma

definição geral e “supra-modal” de poder e de política,

concepção de estrutura como o sistema de valores, de motivações

e de normas que orientam a conduta humana ou “as práticas”

reprodutivas, acionalismo interacionista e perspectiva de análise

estruturo-funcional, uso dos conceitos de sistema e de equilíbrio,

dentre outros). Assim, apesar das declarações formais em contrário,

e da tentativa freqüente de se demarcar desse campo teórico,

existem pontos de contato entre estes dois paradigmas que a nosso

ver, salvo raras exceções, ainda não foram devidamente

explorados pelos comentadores da obra poulantziana82.

O objetivo desse texto é recuperar sumariamente algumas

das dimensões desse diálogo, que a nosso ver é de fundamental

importância para a compreensão e, mais importante, para a

restauração, em novas bases, no projeto estrutural-marxista

poulantiziano original83. Para cumprir tal meta, organizaremos nossa

exposição da seguinte forma: a) na primeira parte do texto,

procuraremos reconstituir sumariamente a problemática teórica da

“sociologia política norte-americana” a partir da análise das obras

de alguns de seus autores mais representativos; b) na segunda

parte do texto, buscaremos reconstituir sumariamente os termos do

diálogo crítico empreendido por Poulantzas com estes autores,

tomando por base os seguintes problemas fundamentais de análise

política: (i) Concepção geral de poder e de política; (ii) Definições

gerais de Estado e da interação entre os níveis da totalidade social

82 De nosso conhecimento, uma das poucas tentativas sistemáticas de cotejar as semelhanças e diferenças entre os modelos estruturo-funcionais elaborados por “parsonianos” e “althusserianos” é o

manuscrito não publicado de Erik Olin Wright e Luca Perrone (1973) e o sugestivo opúsculo de

Maurice Godelier (1972). Em seu conhecido texto destinado a criticar o projeto teórico de Nicos Poulanzas, David Easton aponta en passant algumas semelhanças entre estes paradigmas de análise,

como se isso fosse, por si só, algum demérito para os estrutural-marxistas, mas não se aprofunda no

tema (Easton, 1981: p. 137). Autores como Merton e Lipset tentaram explorar algumas semelhanças entre estes paradigmas, mas ao que parece com a intenção algo maquavélica de subsumir a teoria social

e da história marxistas em alguma variante de funcionalismo, o que não é propriamente o escopo deste

texto, esclareçamos desde já (cf. MERTON, 1979; LIPSET, 1992: p. 25-70).

83 Devemos insistir uma vez mais para evitar ambiguidades: referimos-nos aqui a uma “restauração” de

um projeto teórico porque, conforme fica claro para aqueles que tiverem a paciência de executar o tour

de force que é o de percorrer todas as páginas de Poder Político e Classes Sociais, o projeto teórico de Poulantzas nessa obra vai muito além de elaborar uma teoria do Estado capitalista e de “trazer o Estado

de volta para a teoria”, como é enfatizado por uma certa grade de leitura que consideramos bastante

empobrecedora do projeto “poulantizano” original, para não dizer de seus desdobramentos e metamorfoses posteriores.

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

143

e do papel do desempenhado pelo nível político nesse processo;

(iii) concepção de classe social e esboço de uma sociologia dos

grupos de intervenção política; (iv) O conceito de “poliarquia” e o

problema de uma teoria das “formas de governo”.

A hipótese ou proposição básica subjacente a este esforço

de reflexão é o de que, apesar da retórica pedregosa e do

vernáculo pouco atrativo de alguns dos textos poulantzianos, há

um “núcleo racional” das propostas analíticas do “primeiro

Poulantzas” que, a nosso ver, ainda hoje pode ser recuperado de

forma estimulante por aqueles que buscam trabalhar no campo

teórico da análise política marxista “empiricamente orientada”, e

não apenas no nível da análise macro-sociológica global ou da

elaboração de um discurso crítico-“normativo” contra o que seus

elaboradores julgam ser o “capitalismo”.

Assim, o objetivo central desse texto não é o de efetuar

(mais) uma exegese que replique o estilo algo confuso e as

imprecisões e oscilações terminológicas existentes nas obras

originais de N. Poulantzas. Ao invés disso, e seguindo em parte as

lições dos próprios althuserianos iniciais, faremos uma leitura seletiva

e instrumental das próprias formulações e hipóteses deste autor a

fim de reter alguns elementos teóricos que consideramos mais

produtivos para o desenvolvimento de uma sociologia política

estrutural-marxista “empiricamente orientada”.

A PROBLEMÁTICA TEÓRICA DA “SOCIOLOGIA POLÍTICA

NORTE-AMERICANA”: PLURALISMO, SISTEMA POLÍTICO E A

PLATAFORMA DE UMA “MICROSSOCIOLOGIA DO PODER”

EMPIRICAMENTE ORIENTADA

Para os fins da presente análise, podemos definir como

elementos fundamentais da sociologia política norte-americana ou

funcionalista (tanto em sua versão funcionalista original, formulada

por Talcott Parsons, como em suas variantes sistêmico-cibernética e

pluralista (formuladas respectivamente por David Easton e Karl

Deutsch, por um lado, e Robert Dahl e S. Martins Lipset, de outro), as

seguintes idéias e teses fundamentais que, a nosso ver, dão uma

certa unidade a esse campo teórico, possibilitando falar de uma

“problemática da sociologia política norte-americana” (ou

funcionalista) propriamente dita84:

84 Segundo Althusser (desconheço citação de fonte precisa), o conceito de problemática foi criado por

Jacques Martin para caracterizar o conjunto de questões mais gerais que dá unidade a um determinado

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

144

(1) Em primeiro lugar, podemos identificar como aspecto

comum do projeto teórico destes autores a tentativa de

empreender uma reflexão sistemática e “empiricamente

orientada” (ou seja, vinculada a uma preocupação com a

aplicação de modelos teóricos em análises e pesquisas empíricas,

não necessariamente vinculado a um discurso prescritivo sobre a

realidade social) de conceitos gerais que fazem parte de qualquer

comunidade ou coletividade política, inclusive as sociedades tribais

ou comunitárias primitivas, e não apenas das sociedades

modernas, complexas ou com-Estado, que caracterizam a história

humana escrita85.

Assim, é um elemento comum subjacente à reflexão de

todos estes autores a preocupação em definir de maneira

consistentemente lógica e sistemática conceitos gerais tais como

os de “poder”, “política”, “autoridade”, “integração”, “influência”,

“recursos políticos”, “decisão”, “controle”, “dominação”,

“interesse”, “elites”, “governo” etc., a fim de que o analista político

orientado e inspirado por este paradigma pudesse concretamente

identificar, seja ao nível da sociedade global, seja ao nível das

micro-coletividades humanas, os atores, grupos e processos nos

quais estes conceitos políticos gerais pudessem ser aplicados e

utilizados na formulação e pesquisa de problemas de análise

política.

(2) O segundo elemento teórico a nosso ver comum à obra

destes autores, e relacionada a essa preocupação em elaborar

uma teoria geral da política que abarcasse vários tipos históricos de

sociedade humana, é a incorporação sistemática do conceito de

sistema político como um subsistema de um sistema social mais

paradigma de resolução de problemas teóricos. Diga-se de passagem que um desdobramento lógico

não muito explorado do conceito de problemática é o de que ele permite instaurar um diálogo cooperativo e não somente uma relação de “soma-zero” entre os diversos paradigmas de análise

política, como é o caso do próprio Poulantzas, que ao longo de todas as suas obras foi pródigo em

elaborar tentativas de incorporações heterodoxas (embora não ecléticas) de elementos parciais de análise política de outras perspectivas para desenvolver aspectos parciais de seu próprio modelo teórico

mais geral.

85 Salvo engano, esse projeto é particularmente claro nas obras de Parsons (1966) e Lasswell & Kaplan

(1979), onde a preocupação em elaborar conceitos e modelo teóricos para análise de processos e

comportamentos políticos que abrangessem também as sociedades tribais “sem-Estado” e instituições não-estatais é mais evidente. Como bem acentuam estes autores, a finalidade heurística deste

procedimento não é necessariamente a de instaurar uma nova filosofia da história baseada nas noções

de “progresso” ou “fim da história”, mas sim a de elaborar alguns parâmetros analíticos de alto grau de abstração que possibilitem uma análise comparativa sistemática do funcionamento dos sistemas

políticos nos diferentes tipos históricos de sociedade (ALMOND, 1972).

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

145

amplo8611, com a correlata rejeição teórica do conceito de Estado

como elemento central e mais abstrato para a elaboração de

análises políticas sistemáticas. As razões (teóricas) aduzidas por

cada um dos representantes deste paradigma para a rejeição do

conceito de Estado são de natureza distinta: ora pela confusão e

falta de precisão do conceito em si (EASTON, 1981), ora pelo fato

dele não abarcar os processos políticos que se davam em

coletividades humanas primitivas onde inexistia Estado, tais como

as sociedades comunitárias tribais (PARSONS, 1966), ora pela sua

pouca aplicabilidade em análises concretas de processos

decisórios de “governo comparado” e de desenvolvimento

político, que tornam necessárias a incorporação de outras variáveis

de menor nível de abstração para o mapeamento mais detalhado

das diferenças sincrônicas e diacrônicas do desempenho de várias

funções pelos diferentes sistemas políticos (ALMOND et. al., 1972).

Frise-se aqui que, não obstante ser forte a ênfase manifesta

da maior parte desses autores na rejeição do uso do conceito de

“Estado” como conceito mais abstrato e geral para a definição do

objeto de uma ciência política, parece haver uma oscilação entre

estes autores (e também entre comentadores-críticos ou

aplicadores do modelo funcionalista) no tocante ao grau de

compatibilidade teórica entre os conceitos de sistema político e de

Estado: enquanto uns admitem a possibilidade de enfocar o Estado

como um dos subsistemas institucionais integrantes do sistema

político da sociedade global, instituições estas possuidoras de um

atributo ou conjunto de atributos que justificam um tratamento

próprio e diferenciado do conjunto de instituições que delem

fazem parte (JAGUARIBE, 1973; MILIBAND, 1982), outros analistas

postulam veementemente a incompatibilidade radical ou a mútua

excludência entre estes dois conceitos (EASTON, 1981)87.

86 Não entraremos aqui no espinhoso tema das interações (ou falta de) estabelecidas pelos sociólogos políticos funcionalistas entre o subsistema político e os outros subsistemas que formam os sistemas

sociais mais amplos. Importa sublinhar aqui somente que esta interação é frequentemente postulada por

esta corrente de análise política, pelo que o campo da ação política não é visto como um nível inteiramente autônomo de atividade social e desvinculado de outros níveis de uma totalidade social

mais abrangente.

87 Essas duas posições podem inclusive coexistir num mesmo texto como, por exemplo, no texto de David Easton já citado. Embora num certo momento o autor admita a possibilidade de uma

coexistência pacífica entre os dois conceitos, inclusive citando elogiosamente Ralph Miliband por

tentar compatibilizar as duas abordagens através da formulação de seu conceito de “sistema estatal”, por outro lado declara uma espécie de guerra sem tréguas ao conceito (e às teorias) de Estado

(EASTON, Op. Cit.: p. 143-145), exortando os marxistas e os demais analistas a “abandonarem o

conceito de Estado” (sic., p. 144) em detrimento do conceito de sistema político. Sublinhe-se também que há diferenças significativas entre o conceito de sistema político, assim como da definição do

próprio objeto da atividade política entre estes vários autores, mas será impossível explorar estes

pontos nos limites deste artigo.

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

146

(3) Ao lado dessa dissolução do Estado como elemento

nuclear e mais geral de uma teoria da política podemos detectar

uma concepção “pluralista” do exercício do poder político nas

várias sociedades, especialmente nas modernas democracias,

onde o poder político seria exercido de maneira difusa e

desconcentrada. O exercício do poder político não estaria referido

assim a nenhum centro integrador (supostamente o Estado) que

concentrasse maior parcela de poder ou que possuísse uma

superioridade hierárquica normativa sobre as diferentes instituições

ou níveis onde se exerce o poder político e o poder social, mas

estaria “difuso” por diversas instituições. Teríamos no máximo o

“governo” como um ente ou uma entidade neutra sendo

disputado por vários atores, grupos e instituições sociais. Assim, ao

invés de um Estado formado por um grupo de agentes

autonomeados e não-eletivos, o que podemos observar nas

sociedades modernas são diversos tipos de “governos”, uma

instituição entre outras do sistema político mais amplo, e sujeito a

uma multiplicidade de pressões conflitivas por parte de grupos e

interesses organizados, não demonstrando nenhum tipo de viés

invariante em relação a determinado estrato ou grupo enraizados

em outras esferas da vida social (MILIBAND, 1982: 14).

Outro elemento teórico relacionado a essa dissolução do

Estado como ente institucional nuclear e mais geral de uma teoria

da política, especialmente das sociedades contemporâneas, é a

proposta de efetuar/elaborar uma micro-sociologia política do

poder empiricamente orientada que sirva de base para análises e

pesquisas concretas de relações de poder e de processos de

tomada de decisão também no plano micro, e não apenas na

sociedade global, na medida em que o exercício do poder político

e a estruturação dos sistemas de dominação está pluralisticamente

difusa e distribuída por vários níveis sociais (DAHL, 2005).

(4) Por fim, podemos definir como último elemento comum

e mais geral subjacente à obra destes autores, qual seja, a

proposta de estabelecer critérios de comparação entre os

diferentes sistemas políticos de acordo com o grau ou a

intensidade da dispersão ou concentração dos recursos de

exercício do poder político pela pluralidade de elites em diferentes

tipos de sociedade. Haveria assim um continuum na distribuição do

poder político pelas várias elites e grupos que o exercem e esta

distribuição permitiria escalonar os diferentes sistemas políticos

como mais ou menos democráticos, sem que essa diferenciação

implicasse necessariamente uma ruptura institucional nas

prerrogativas de exercício de poder de um ator específico que

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

147

detivesse determinadas prerrogativas decisórias e normativas em

relação aos demais, supostamente o Estado. Assim, não haveria,

nos diferentes sistemas políticos, algo como uma autoridade

política central ou um “Estado” formado por um corpo burocrático

autonomeado e hierarquicamente organizado, cuja ruptura no

monopólio do processo decisório gerasse mecanismos de

“representação política” ou de consulta popular para a

constituição de organismo de deliberação paralelos ao sistema

institucional burocrático, mas sim “governos” que se

caracterizariam como mais ou menos “democráticos”, mais ou

menos “autoritários”, conforme o grau de “pluralismo” vigente na

distribuição de poder entre os diferentes atores que fazem parte de

uma coletividade política qualquer88.

Resumindo, temos a nosso ver os seguintes elementos mais

gerais da problemática da sociologia política funcionalista, apesar

das divergências internas entre seus vários subgrupos: (i) tentativa

de dar mais sistematicidade a conceitos gerais aplicáveis a uma

grande amplitude de coletividades e processos políticos, tanto no

nível macro como micro-social; (ii) uso do conceito de sistema

político em detrimento do de Estado; (iii) concepção pluralista do

poder e entendimento do “governo” como entidade neutra e

pressionada por diferentes grupos de interesse e elites políticas

(entendidas como a somatória de indivíduos que fazem parte das

minorias politicamente ativas nas várias esferas da vida social onde

se exerce o poder político) concorrentes entre si e em disputa pela

definição dos rumos de uma dada comunidade política; (iv) os

vários sistemas políticos podem ser classificados num gradiente

contínuo de dispersão/concentração do poder por uma

pluralidade de elites políticas, estando o caráter mais ou menos

democrático de um determinado sistema político relacionado ao

ponto em que cada sistema político se situa nesse gradiente de

dispersão e concentração de poder político.

POULANTZAS E A SOCIOLOGIA POLÍTICA FUNCIONALISTA

88 Há diferentes versões dessa teoria, desde a primeira versão proposta por Robert Dahl em Análise

Política Moderna, de escalonar os diferentes sistemas políticos segundo o grau de legitimidade, o

número de sub-sistemas e a distribuição de poder existente nos diferentes tipos de sociedade, até as versões mais recentes de distribuir os diversos sistemas políticos em dois eixos de “competição” (inter-

elites) e “participação” (elites X massas) (DAHL, 1969, 2005).

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

148

Qual seria o posicionamento de Poulantzas em relação a

cada um desses elementos da perspectiva de análise funcionalista

em suas obras iniciais? Percorrendo as páginas de Poder político e

Classes Sociais, podemos observar que Poulantzas abordou cada

um desses aspectos, muitas vezes em diálogo direto com as idéias

dos autores acima mencionados, outras vezes de forma indireta,

através da incorporação de elementos de outras problemáticas

teóricas.

Assim, podemos verificar em Poulantzas os seguintes

elementos fundamentais de sua argumentação teórica, de certa

forma homólogos aos anteriormente indicados como fazendo

parte da problemática teórica funcionalista: (i) uma tentativa de

definir certos conceitos gerais, instrumentais à sua teorização sobre

a estrutura jurídico-política do modo de produção capitalista (tais

como os conceitos gerais de poder, política, Estado em geral etc.);

(ii) justificação da importância do Estado como fator específico de

integração ou de coesão das diferentes sociedades de classe,

assim como de sua especificidade em relação a outras instituições

políticas. O aparelho de Estado passa a ser analisado como um

sistema específico de instituições (um “poder político

institucionalizado”) na medida em que possui determinadas

prerrogativas decisórias e normativas específicas em relação a

outras instituições que fazem parte do sistema político; (iii) a tese da

concentração e da interdependência entre a dominação política

e a dominação econômica, na medida em que o exercício do

poder social e do poder econômico dos proprietários é garantido

pela aplicação de um direito público de propriedade que

assegura a apropriação privada do valor agregado pelos

trabalhadores nas unidades econômicas, as quais por sua vez

garantem os recursos necessários à aquisição de status social pelos

membros da burocracia. Os grupos sociais e de intervenção

política se formam assim, nas sociedades de classe, a partir de uma

desigualdade básica na distribuição de recursos econômicos e

políticos juridicamente sancionados por uma autoridade política

central, desigualdade essa que tem efeitos cumulativos (embora

não irreversíveis) na competição entre os diversos grupos políticos

pela influência na definição dos objetivos globais de uma

determinada coletividade humana pelos detentores do poder de

Estado89; (iv) As diferentes formas de Estado e de governo, assim

89 Dessa perspectiva, o ponto de partida para a organização dos grupos de intervenção política é

formado por atores assimetricamente situados numa estrutura estratificada e juridicamente sancionada de papéis sociais, e não simplesmente pela agregação de vontades de indivíduos racionais atomizados

que formam grupos de intervenção política ad hoc para influenciar o “governo” à revelia e

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

149

como os gradientes entre o grau de autoritarismo e democratismo

dos diferentes sistemas políticos são definidos não a partir de um

continuum na distribuição de poder político de uma pluralidade de

grupos concorrentes entre si, mas a partir de uma descontinuidade

básica definida a partir da perda do controle exclusivo sobre o

processo decisório por determinado grupo de atores encarregados

de definir os objetivos globais de uma determinada coletividade

(ou seja, burocracia de carreira e suas cúpulas governantes), assim

como pela existência de mecanismos de consulta política aos

próprios agentes que são objeto de tais decisões.

Nos itens abaixo avaliaremos brevemente a reinterpretação

feita por Poulantzas de cada um dos itens que compõem a

problemática teórica da sociologia política pluralista acima

enumerados. Dada a exigüidade de espaço, teremos que enunciar

rapidamente as principais teses que defenderemos durante a

exposição, procurando responder às seguintes indagações mais

gerais: é possível a incorporação parcial de conceitos oriundos da

problemática teórica pluralista para o interior de uma reflexão

“estrutural-marxista” empiricamente orientada ou a importação de

tais conceitos provocaria desajustes “comprometedores” nessa

própria problemática? Qual a agenda de reflexão teórica e

empírica de pesquisa que se poderia derivar de um diálogo crítico

entre ambas as correntes?

a) Conceitos gerais de poder e de política

No que se refere aos conceitos gerais de poder e política,

devemos recordar que logo no início de PPCS, Poulantzas procura

efetuar um duplo movimento analítico: (i) em primeiro lugar,

elaborar conceitos gerais de poder e de política e uma reflexão

geral sobre estas noções que servissem de suporte à sua própria

proposta de definição dos elementos fundamentais da estrutura

jurídico-política e do conceito de Estado capitalista, que a seu ver

era um ponto cego na teoria marxista anterior; (ii) em segundo

lugar, efetuar uma crítica a outras concepções vigentes em outras

correntes de análise política, dentro dos quais se incluem os autores

anteriormente citados.

independente de uma estrutura de dominação subjacente garantida por uma autoridade jurídico-política

centralizada (= o Estado) .

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

150

Quais críticas que Poulantzas faz a estes autores? Quais as

soluções oferecidas por ele próprio para os problemas acima

formulados (ou seja: formulação de conceitos gerais de poder,

política, dominação, autoridade etc.) e como podemos avaliar tais

soluções?

Inicialmente, deve-se enfatizar ainda que o próprio

Poulantzas admite o caráter provisório e exploratório de suas

definições, assim como a natureza estritamente instrumental de tais

definições em relação a suas teorizações posteriores sobre a

estrutura jurídico-capitalista e o aparelho de Estado burguês: “As

análises referentes ao político em geral não aspiram senão a uma

sistematicidade relativa e de modo algum poderiam ser

consideradas exaustivas. [...] pareceu-me particularmente ilusório e

perigoso avançar mais na sistematização do político na teoria

geral, na medida em que atualmente há falta de suficientes teorias

sistemáticas regionais do político nos diversos modos de produção,

ou mesmo de suficientes teorias sistemáticas particulares dos

diversos modos de produção” (POULANTZAS, 1986: p. 24).

Tendo em vista estes esclarecimentos, seus alvos são tanto o

“historicismo” gramsciano, por um lado90, quanto (ponto que nos

interessa mais especificamente neste texto) a concepção de

político de Talcott Parsons. Como se sabe, a concepção de poder

e de político deste autor foi expressa em várias obras e encontra-se

sintetizada em seus textos de crítica à obra de Wright Mills, Elites no

Poder (PARSONS, 1960). Para este autor a esfera política ─ e o

objeto de uma ciência política autônoma, por conseguinte

─constitui-se num subsistema cuja função é integrar os elementos

analíticos de um sistema social total, embora a ação política esteja

simultaneamente presente em várias esferas de ação, sendo

responsável pela definição dos objetivos coletivos e pela

“integração” dos subsistemas em vários níveis da atividade social

(PARSONS, 1970: p. 96). Sendo assim, o poder político não seria uma

relação de “soma-zero” entre os diferentes atores (como querem

os elitistas monistas), nem um nível de atividade relacionado à

definição dos objetivos globais de uma coletividade territorial, mas

um fenômeno que estaria “difuso” por toda sociedade onde

houvesse definição de objetivos por determinadas associações

estáveis.

90 Embora se refiram constantemente à problemática “historicista” em seus vários textos, não

conseguimos encontrar uma definição precisa do termo entre os “althuserianos”. Podemos inferir,

entretanto, que se trata de uma concepção que vê a história como um fluxo contínuo e evolutivo de mudanças sociais, não buscando construir modelos de estrutura que apreendam eventuais regularidades

que imponham limites normativos às práticas ou ações sociais dos diferentes atores históricos.

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

151

Poulantzas encaminha sua crítica a essa concepção de

Parsons efetuando a operação analítica de identificar a

superestrutura política dos diferentes modos de produção e

formação social ao poder institucionalizado do Estado, e a associar

a atividade política apenas a ações sociais ou práticas que se

relacionam ao Estado, enunciando a definição segundo a qual a

política é a ação social ou a “prática que tem por objeto o

momento atual, que produz as transformações ou a manutenção

de uma formação na medida em que tempo por objetivo

estratégico específico as estruturas políticas do Estado” (Op. Cit. p.

41).

Ora, a solução dada por Poulantzas ao problema ─ ao

restringir a atividade política em geral àquelas práticas que se

relacionam a preservação ou manutenção de um determinado

tipo de Estado, distancia-se de uma grande vertente da tradição

marxista cujo núcleo é exatamente o de dissociar a atividade

política do Estado sentido estrito do termo91.

Mas qual o argumento dado por Poulantzas para restringir a

política apenas àquelas atividades que se relacionam de alguma

maneira com o poder institucionalizado de Estado? Para Poulantzas

o Estado é o objeto privilegiado da política por possuir a função de

manter a coesão de uma determinada formação social em uma

sociedade dividida em classes ou, para usar a expressão de

Poulantzas, como “fator regulador do equilíbrio global de uma

formação social enquanto sistema” (Op. Cit. p. 16).

A nosso ver, são bastante insatisfatórios os termos pelos quais

Poulantzas equaciona o problema, pois ele sequer tangencia duas

questões tradicionalmente abordadas pela teoria política marxista,

de forma razoavelmente sistemática, mesmo em algumas obras

clássicas de análise política marxista do século retrasado: a) A

possibilidade de formas de exercício do poder político e de

91 Apenas a título de exemplo, um dos pontos altos do livro clássicos de Engels sobre as sociedades

tribais é o da reconstituição da dinâmica de organização das instituições políticas e da relação entre

elites dirigentes (chefes e conselheiros tribais) e os cidadãos comuns da tribo que configuravam os sistemas político-jurídicos das sociedades comunitárias primitivas (Engels, Origem da Família: p.

70s). Dentre estes elementos do exercício da atividade política nas sociedades sem Estado enumerados

por Engels, podemos mencionar: a) todos os homens e mulheres que participam dos assuntos comunitários tribais têm direito de eleger o chefe; b) a gens pode depor à vontade o sachem e o chefe

militar; c) cada gens tem uma “assembléia democrática de seus membros adultos, homens e mulheres,

todos com o mesmo direito de voto”. Esta assembléia é o “poder soberano da gens” (p. 72); d) o conjunto das gens formava uma tribo, integrada por determinadas instituições (os conselhos de tribos)

que se constituíam no fator de coesão de coordenação de várias gens territorialmente dispersas; e) essa

sistema jurídico-político assegurava a participação da maior parte dos membros da coletividade nas decisões públicas e na seleção das elites governantes, configurando um sistema político caracterizado

por Engels como uma “democracia gentílica” ou tribal.

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

152

existência de um ordenamento normativo (ou “sistema de direitos e

deveres”, para usar a expressão de Engels) em situações em que

inexiste “dominação de classe” no sentido marxista do termo, ou

seja, situações de exploração e apropriação dos frutos do valor

agregado pelo trabalho humano por terceiros que não aqueles

que participam diretamente do esforço coletivo da execução das

tarefas no processo de trabalho; b) a possibilidade de formas de

exercício do poder ou influência política que não sejam

necessariamente exercidos através da mediação do aparelho de

Estado, ou que não sejam necessariamente referidas ao aparelho

de Estado.

Também em relação ao conceito geral de poder proposto

por Poulantzas, o diálogo com os sociólogos políticos funcionalista

desempenha um papel fundamental (POULANTZAS, 1986: p. 103):

Poulantzas critica as definições de Laswell (poder como

participação no processo decisório), de Weber (poder como

“probabilidade” de imposição de vontade mesmo contra a

resistência de terceiros) e de Parsons (poder como capacidade de

executar funções em proveito de um dado sistema social). No cap.

3 de seu livro, Sobre o conceito de poder elencará vários

“elementos do poder” e enunciará seu próprio conceito de poder

como: “a capacidade de uma classe [ou grupo] social de realizar

seus interesses objetivos” (p. 103) em vários níveis da prática social

(pelo que o poder se desdobraria em poder econômico, social,

político etc.). Também aqui, são a nosso ver insatisfatórios os termos

pelos quais Poulantzas resolve o problema, ao não: a) diferenciar o

poder de outros tipos de imposição de vontade ou de

“capacidade de realizar interesses objetivos”, tais como as relações

de influência, dominação e autoridade; b) elaborar uma reflexão

sistemática sobre a especificidade do poder político em relação a

outras modalidades de exercício do poder; c) definir o objeto do

“político” e, por conseguinte, de sua sociologia política a partir de

tal operação.

b) Estado, sistema político e totalidade social

As principais proposições da sociologia política de origem

funcionalista sobre as relações entre os conceitos de sistema

político e de Estado estão expostas de forma provocativa no

conhecido ensaio de David Easton sobre “o sistema político sitiado

pelo Estado”. Como é sabido, neste artigo Easton explicita as

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

153

motivações mais íntimas que o levaram a formular o conceito de

sistema político em substituição ao conceito de Estado, e não

como um complemento a este, e exorta os analistas políticos a

abandonarem o conceito de Estado sob os seguintes argumentos:

a) o Estado é um “instituição” ou, mais precisamente, um sistema

hierarquicamente organizado de instituições, que não pode ser

definido de forma rigorosa nem desempenha nenhuma função

específica em outras esferas da vida social; b) o Estado não possui

nenhum atributo ou conjunto de atributos que os diferencie das

demais instituições do sistema político; c) a ênfase exclusiva no

Estado como ator político relevante cria obstáculos metodológicos

à uma análise política “empiricamente orientada” ao

desconsiderar a importância de outros atores, instituições e

comportamentos políticos que também participam da ou

influenciam a busca de objetivos e a “alocação autoritária de

recursos” por parte de uma coletividade territorial específica.

No tocante ao primeiro argumento de Easton, podemos

afirmar que ele não procede, já que o “primeiro Poulantzas” é

razoavelmente claro em definir o conceito de Estado como o

conjunto de atores, instituições e aparelhos hierarquizados (ou seja,

responsáveis perante um superior funcional e não perante comitês

eletivos organizados pela sociedade), responsáveis pela

implementação de decisões e pela definição dos objetivos globais

e pela manutenção da “coesão” de uma determinada

coletividade humana cindida em “classes sociais”, e que dispõem

(atores, instituições e aparelhos) de recursos administrativos e

jurídicos para tornar tais comandos e decisões obrigatórias e

imperativas para o conjunto da coletividade sob jurisdição daquele

corpo de funcionários92. No caso do Estado Capitalista moderno,

seriam o conjunto de instituições organizadas segundo o princípio

do burocratismo, ou seja, sob princípios universalistas e submetidos

à hierarquia burocrática que fariam parte do aparelho de Estado.

Por motivos semelhantes, consideramos não ser pertinente a

segunda crítica de Easton, na medida em que, para Poulantzas, o

Estado possui um conjunto de atributos que o diferenciam das

demais instituições políticas e estes atributos estão relacionados

justamente à sua capacidade ou atributo de implementar normas

e políticas de governo a imperativas a toda uma coletividade

92Instituições e atores cujos comandos e ações não fossem devidamente autorizados por uma dada

coletividade para aplicar normas gerais e implementar políticas de governo em nome de um ente

público não fariam assim parte do aparelho de Estado (é o caso de Igrejas, escolas privadas, empresas privadas, partidos políticos, sindicados e outras associações do gênero, cujo caráter “público” não se

impõe à maioria de uma coletividade).

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

154

territorial. Como indicado pelo próprio Easton, a definição de

Poulantzas nesse aspecto específico talvez se assemelhe mais à do

jurista austríaco Hans Kelsen, embora esteja ausente neste autor a

preocupação em estabelecer uma relação invariante entre o

exercício do poder estatal e um determinado tipo ou modalidade

de dominação social, como o fazem Poulantzas e os marxistas de

uma maneira geral.

No tocante ao terceiro argumento de Easton, ele a nosso

ver procede. Os modelos de análise centrados no Estado

geralmente relegam a segundo plano, quando não a plano

irrelevante, os processos e comportamento políticos não

diretamente vinculados ao exercício do “poder de Estado” ou à

alocação imperativa de recursos por um grupo administrativo não-

eletivo em escala global, configurando-se na prática como um

obstáculo metodológico à dinamização da investigação sobre tais

domínios por analistas que reconhecem o Estado como um fator

importante mas não o único para a compreensão das estruturas de

poder e de dominação nas diferentes sociedades. Sendo assim,

faz-se mister integrar o conceito de Estado a outros conceitos que

permitam apreender estas outras dimensões da atividade política

dos diferentes agentes, e que transcendem o aparelho de Estado

no sentido estrito do termo.

c) Classes, grupos e elites: esboço de uma sociologia dos

grupos de intervenção política

Em relação a este tópico específico, o ponto de partida de

Poulantzas também é o confronto/diálogo com diversas outras

perspectivas de análise que abordam o problema, dentre os quais

devemos destacar a teoria das elites. Compreenderemos melhor a

crítica poulantziana à teoria das elites, a partir de uma afirmação

efetuada pelo autor no famoso “debate” Miliband X Poulantzas.

Como se sabe, um dos temas fundamentais aventados neste

debate foi justamente o do emprego do termo “elite” e de

elementos parciais desse paradigma para a constituição de uma

sociologia política marxista e para a explicação dos nexos que se

formam entre os detentores do poder político e os membros da

classe dominante.

Para Miliband, o recurso a elementos da teoria das elites era

fundamental para se explicar a natureza de classe do Estado

Capitalista, enquanto para Poulantzas as funções invariantes do

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

155

Estado Capitalista deveriam ser explicadas não a partir das

características sociológicas dos indivíduos que dele fazem parte,

mas a partir dos padrões prescritivos institucionalizados (de

natureza análoga ao habitus de Bourdieu) que estruturam a

organização dos vários ramos do aparelho de Estado, bem como

organizam os vínculos de identidade simbólica que entre si mantém

os altos burocratas e os gestores das empresas, ambos interessados

na manutenção de um padrão “piramidal” e “autoritário” de

gestão das organizações (seja este padrão escravocrata, tributário,

patrimonial, feudal, gerencial ou burocrático-moderno).

No tocante à posição de Poulanzas em relação ao elitismo

pluralista é expressa com bastante clareza na seguinte passagem e

em outras do famoso debate: “O que Miliband omite é a

necessidade de uma crítica da noção ideológica de elite a luz dos

conceitos da teoria marxista. Se esta crítica tivesse sido feita,

resultaria evidente que a “realidade concreta” ocultada pela

noção de “elites plurais” ─ a classe dominante, as frações de

classe, a classe hegemônica, a classe governante, o aparelho de

Estado ─ somente se pode compreender se rechaça a própria

noção de elite. Já que os conceitos e noções nunca são inocentes

e, se empregamos as noções do adversário para responder-lhe,

legitimamos estas noções e permitimos sua persistência.”

A nosso ver, o debate que se pode desenvolver a partir

dessa posição de Poulantzas envolve pelo menos três níveis de

análise que são frequentemente amalgamados pelos vários

pesquisadores que abordam o tema: a) a questão dos

determinantes das funções invariantes do aparelho de Estado,

especialmente do Estado Capitalista, bem como dos vínculos de

identidade e solidariedade simbólica e material que entre si

mantém os burocratas e os gestores das organizações econômicas,

segundo os “estruturais-marxistas”; b) a questão dos conceitos e

modelos teóricos destinados a analisar os processos decisórios nas

sociedades capitalistas bem como dos determinantes do campo

de variação no conteúdo das decisões políticas contidos nos limites

da reprodução de um determinado sistema social ou modo de

produção específico; c) a questão do emprego puro e simples,

dentro do campo teórico marxista, da expressão ou do conceito

de “elite” desvinculado da problemática original formulada pelo

“maquiavélicos” clássicos que deu origem aos conceitos de “elite”

e “massa” (que, como se sabe, são: pessimismo sociológico,

psicologia de massas, fetiche pelos ocupantes de cargos em

detrimento do conteúdo das decisões substantivas por ele

tomadas, estabelecimento de uma relação de manipulação

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

156

estratégica e não de “confiança” ou de “representação” entre

elites dirigentes ou minoria politicamente ativas e as “massas” nas

várias dimensões de seu comportamento político).

No tocante ao primeiro problema, como já observamos

para o caso específico do Estado Capitalista, Poulantzas elabora o

conceito de burocratismo, que consiste num padrão regular de

valores, comportamentos e de normas (ou seja, um “habitus”) que

enquadra o funcionamento do aparelho de Estado burguês e que

determina que os funcionários envolvidos nesse campo de

atividade social adotem via de regra práticas homólogas àquelas

adotadas pela gestão das organizações no sistema econômico

capitalista: a) recrutamento e hierarquização pelo critério

manifesto do mérito ou competência individual; b) tratamento

formalmente igual aos desiguais; c) adoção de práticas e atitudes

de ocultação do saber burocrático. Essas práticas homólogas dão

origem a relações de identidade e solidariedade simbólica e

material entre os proprietários de produção e os burocratas,

independente das características sociográficas destes últimos, na

medida em que os gestores das organizações (enquanto agentes

desempenhantes de papéis, ou seja, “suportes” de estruturas, e

não enquanto capitalistas individuais ─ cujo comportamento pode

muito bem ser desviante em relação ao padrão imposto pelas

representações coletivas) possuem interesse na manutenção do

status dos burocratas estatais (na medida em que é dele que

deriva a aplicação de um direito de propriedade responsável pela

instauração de seu predomínio na hierarquia das organizações),

enquanto estes via de regra são solidários aos padrões piramidais

de gestão das organizações adotados pelas firmas capitalistas

públicas ou privadas (na medida em que possuem a percepção

de que um processo de apropriação coletiva dos recursos

econômicos e de gestão transparente das unidades produtivas

podem vir a desencadear um processo que ponha em cheque os

valores da distinção burocrática). Ora, essa correspondência entre

dois níveis de habitus ocorre independentemente das

características do recrutamento da burocracia, sendo

determinada pelos processos de ressocialização simbólica e de

inserção nas carreiras profissionais por que passam os funcionários

administrativos do Estado Capitalista em suas trajetórias

profissionais, motivo pelo qual consideramos infudados os

argumentos de Miliband nesse aspecto específico93.

93 Havendo “hiperdeterminismo estrutural” apenas no caso de as relações de propriedade serem relações entre pessoa e coisa sempre sancionadas ex-post pela autoridade política central, e não

relações sociais entre seres humanos desempenhantes de papéis sociais e sancionadas por um

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

157

No que se refere ao segundo ponto, Poulantzas se

envolverá num hercúleo trabalho de elaboração terminológica,

caracterizando os seguintes grupos de intervenção política para

distingui-los dos atores amalgamados pela expressão “elites

políticas”: frações de classe; categorias sociais; classe reinante;

classe dominante; classe detentora; categoria social, camada etc.

Ora, a nosso ver, a tipologia elaborada por Poulantzas não esgota

todas as possibilidades de mapeamento dos atores relevantes que

atuam em um determinado sistema político.

Por exemplo, podem existir pequenos grupos específicos de

vanguarda vinculados aos grupos sociais mais abrangentes

enumerados por Poulantzas, ou mesmo determinados grupos focais

de intervenção política (e. g., membros de um parlamento, elites

dirigentes sindicais, cúpulas dirigentes de determinadas

associações, minorias politicamente ativas de determinados

estratos sociais e grupos de interesse etc.), aos quais se pode no

nosso entender empregar a expressão “elites” para qualificá-los,

sem necessariamente violentar a problemática teórica da

dominação de classe dos estruturais-marxistas, nem trazer para

dentro dessa problemática todo o pacote de proposições dos

maquiavélicos originais. Trata-se de um preciosismo terminológico

que desestimula a pesquisa empírica, e a reflexão mais sofisticada

sobre as formas de intervenção e sobre as motivações dos

diferentes atores que interagem num dado sistema político94.

d) Formas de governo e “poliarquias”

A esse respeito, e para sermos breves, deve-se observar que,

embora alguns comentadores da teoria política marxista afirmem o

contrário (BOBBIO, 1976, THERBORN, 1997), a preocupação com o

problema das “formas de governo” e com os diferentes formatos

institucionais e organizacionais através dos quais se concretiza a

dominação política “de classe” sempre foi uma questão central da

teoria política marxista. Esse também foi o caso de Nicos Poulantzas

ordenamento normativo imposto por um aparelho burocrático autorecrutado que os constituem em

pessoas jurídicas. Além do mais, as regras do burocratismo e de outros padrões de organização de autoridade política central são normas de conduta que cabe a cada ator específico decidir seguir ou não,

sabendo-se é claro das conseqüências advindas de sua não-obediência às mesmas.

94 Procuramos concretizar alguns aspectos da plataforma acima exposta, coqueteando com o conceito de elite ─ e não rejeitando-o liminarmente ─ a partir de uma perspectiva mais geral “estrutural-

marxista” em BRAGA (2002).

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

158

que, em várias de suas obras abordou o assunto, o que nos autoriza

mesmo a afirmar que este foi um dos elementos centrais de suas

preocupações ao longo de sua trajetória (POULANTZAS, 1968; 1970;

1975). Em que consistem as principais contribuições do autor ao

tema e qual o tipo de diálogo travado com a sociologia política

funcionalista sobre o assunto?

As principais contribuições poulantzianas à teoria da

democracia derivam da proposição central de seu modelo teórico

segundo o qual, nas sociedades fundadas na exploração do

trabalho, o aparelho de Estado é uma instituição central de poder,

pelo conjunto de motivos anteriormente enumerados (garantia de

um direito de propriedade que sanciona juridicamente a relação

de apropriação do sobretrabalho; concentração das prerrogativas

de promoção de uma alocação “autoritária” de recursos que

vincula toda uma formação social a partir da aplicação de normas

gerais implantadas através de mecanismos “top down” de

execução de decisões). Sendo assim, nos vários tipos de Estado

existentes ao longo da história da humanidade (escravista,

tributário, feudal-patrimonial, burocrático-moderno) o centro do

poder político é constituído sempre por um corpo administrativo

não-eletivo (i. e. a burocracia estatal de carreira, em suas várias

modalidades) que concentra as prerrogativas de governo em uma

determinada coletividade. A democracia passa a existir justamente

quando um corpo eletivo com efetivo poder decisório (um

parlamento, Executivos eleitos, corporações, parlamentos feudais,

assembléias de cidadãos livres etc.) rompe esse monopólio de

poder do quadro administrativo estatal (ou o reduz drasticamente

no caso das sociedades dominadas por instituições públicas não-

estatais), partilhando com esse corpo administrativo, em níveis

variáveis de intensidade, a prerrogativa de implementar políticas

alocativas globais ou políticas de governo.

Assim, o primeiro aspecto que devemos observar na crítica

poulantziana à teoria da democracia dos pluralistas é a existência

de uma ruptura institucional entre as formas de governo e de

gestão das organizações “autoritárias” (fundadas basicamente no

exercício do poder político por um grupo recrutado mediante

outras mecanismos que não a consulta à opinião pública), e as

formas de governo e de gestão das organizações “democráticas”

(onde existem tais mecanismos de consulta àqueles que são objeto

das normas e decisões implementadas por tais autoridades

políticas), não havendo portanto uma mera “continuidade” entre

os vários tipos de sistemas políticos como sugerem os sociólogos

políticos funcionalistas e sistêmicos.

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

159

Sendo assim, para Poulantzas (assim como para outros

paradigmas de análise política, como por exemplo a sociologia da

dominação de Max Weber), o ponto de partida para a

elaboração de uma teoria da democracia deriva de sua teoria do

Estado, que é o centro de exercício do poder político nas

sociedades fundadas na apropriação privada do valor agregado

durante o processo de trabalho. Talvez seja legítimo inferir das

considerações poulantzianas que o grau de intensidade em que os

diferentes modelos de democracia se concretizam nos diferentes

tipos de sociedade correlaciona-se com o grau de intensidade de

ruptura do monopólio burocrático sobre os processos deliberativos

e a magnitude da incorporação de diferentes atores no processo

decisório global, podendo as diferentes democracias se

diferenciarem entre si conforme o maior ou menor grau de

incorporação de tais atores no sistema político global. Entretanto,

devemos admitir que, em suas obras iniciais, Poulantzas não extraiu

todas as implicações do modelo geral de tomada de decisões por

ele esboçado.

CONCLUSÕES: TRAZENDO O CONCEITO DE SISTEMA POLÍTICO

PARA DENTRO DA SOCIOLOGIA POLÍTICA ESTRUTURAL-MARXISTA

Podemos encerrar este texto fixando alguns pontos a serem

posteriormente retomados com maior grau de profundidade. A

nosso ver, o diálogo instaurado por Poulantzas entre os estruturais-

marxistas e os sociólogos políticos funcionalistas permaneceu

truncado em grande parte devido à divergências ideológicas e

normativas, mas também teóricas, de fundo entre as diversas

correntes. Embora o clima político-ideológico vigente no final dos

anos 60 e na década de 1970 tenha contribuído ainda mais para

truncar este debate, nada impede que ele seja restaurado 40 anos

após a publicação de PPCS. Segundo nosso ponto de vista, esse

diálogo pode ser restaurado pelas seguintes razões:

Ainda falta à teoria política marxista um estoque de

conceitos gerais e claramente articulados entre si

destinado à constituição de uma sociologia política

marxista com o mesmo grau de abrangência da

sociologia política funcionalista. Conceitos que abranjam

não apenas as sociedades de classe, inclusive as

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

160

capitalistas, mas também sociedades sem Estado do

passado95, e tipos ideais possíveis de sociedade sem

Estado do futuro (na melhor das hipóteses), ou sociedades

com uma burocracia regulada e controlada por

instituições civis de trabalhadores, ou mesmo de

“democracia participativa” exercida pela via não-estatal

num futuro próximo previsível.

As definições de “poder” e de “política” esboçadas em

Poder político e classes sociais são a nosso ver insuficientes

para fundamentar uma teoria marxista do político, que

também aborde o problema analítico da dinâmica das

sociedades sem Estado e da desestatização das

sociedades complexas (na melhor das hipóteses) e/ou do

controle da burocracia nas sociedades complexas com

Estado (numa hipótese menos ambiciosa) por instituições

políticas não-estatais. Uma reflexão sistemática sobre tais

conceitos gerais é fundamental para a instauração de

uma sociologia política estrutural-marxista que sirva

também de “guia de ação” para a pesquisa empírica

aplicada, e não apenas para a análise dos macro-

processos sociais que ocorrem nas sociedades globais.

Devemos agregar ainda, à guisa de conclusão, que a

oposição irredutível entre os conceitos de “Estado” e “sistema

político” é mais imaginária do que real, devendo-se a nosso ver

mais a disputas por símbolos de status e espaços de micropoderes

entre uma antiga geração de sociólogos políticos do que a razões

teóricas substantivas. Assim o conceito de sistema político pode

muito bem ser incorporado de maneira sistemática à análise

política marxista, de molde a abranger outras instituições que

participam do jogo político mas não fazem parte do sistema estatal

no sentido estrito do termo. As alegações dos teóricos sistêmicos e

marxistas (EASTON, 1982, BOITO JR., 2007) a respeito da

incompatibilidade irredutível entre ambas as noções devem ser

vistas com cautela, pois ao que parece são motivadas por outros

objetivos que não os estritamente cognitivos.

Entretanto, isso não implica “dissolver” o Estado em outras

instituições políticas que fazem parte do sistema político, na

medida em que o Estado constitui um somatório de instituições

95 Existem um amplo estoque de trabalhos de antropologia política sobre o assuntos que tendem a ser

ignorados pela maior parte dos teóricos políticos marxistas. Nesse sentido, um bom ponto de partida pode ser a análise crítica das obras de Pierre Clastres (CLASTRES, 2002, 2006) e dos próprios

antropólogos políticos funcionalistas (FORTES & EVANS-PITCHARD, 1950)).

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

161

específicas formadas por um corpo de funcionários autorizados a

tomar decisões e a implementar normas globais em sociedades

onde se aplica um direito de propriedade privada que distribui os

seres humanos em classes dominadas e classes dominantes,

explorados e exploradores.

Por todos estes motivos, não deve ser excluído um

retrabalhamento crítico, dentro do campo inclusive dos estruturais-

marxistas, de conceitos advindos da sociologia política

funcionalista, tais como os de elites dirigentes, grupos de interesses,

sistema político, governo, dentre outros.

Do ponto de vista estritamente “normativo” se, por um lado,

a elaboração de paradigmas menos “estado-centrados” implica

correr o risco de “desviar as classes populares da luta pela

transformação da sociedade capitalista” (BOITO Jr., 2007: p. 30), a

rejeição in limine dos conceitos operacionalizados dentro da

sociologia política funcionalista-pluralista (tais como os de elites

dirigentes, sistema político, governo etc.), pode colocar os

trabalhadores organizados para a construção de uma nova

sociedade socialista diante de um outro risco: o de não forjar

instrumentos teóricos para o estudo sistemático dos processos de

desestatização e de controle quotidianos sobre a burocracia

estatal e sobre as elites dirigentes em sociedades complexas pós-

capitalistas, que restaurem em novas bases as formas primitivas de

democracia comunitária e de exercício descentralizado do poder

político esboçadas em sociedades tribais onde inexistia Estado

(ENGELS, 1986; PUTNAM, 2003, 2008).

Cabe a cada analista político avaliar por si mesmo os prós e

os contras de cada um destas operações analíticas.

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

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Política, ciência e ideologia: sobre o

"teoricismo" de Nicos Poulantzas

Adriano Codato96

MARXISMO E CIÊNCIA SOCIAL

Antes mesmo de apresentar o texto que eu preparei para

este Congresso, penso que seja necessário, a fim de explicitar todos

ou quase todos os meus pressupostos intelectuais, fazer algumas

declarações de princípio.

O que eu pretendo discutir aqui é exclusivamente o

marxismo como ciência social. Evidentemente que o marxismo não

é só isso, mas é também isso; e cada vez mais isso, visto que sua

dimensão revolucionária está, ao menos por hora, aposentada.

Nesse sentido, meu tema nesse colóquio é o processo de

elaboração conceitual – ou, para ser mais preciso, o modo de

produção teórico – de certa teoria marxista da política

exemplificada, no caso, pela obra do cientista político grego Nicos

Poulantzas.

A obra de Poulantzas e, em especial, Poder político e

classes sociais representou, quando o livro foi publicado em Paris

em abril de 1968, o empreendimento intelectual mais ambicioso no

domínio da teoria marxista da política desde pelo menos o

desaparecimento de Lênin. Representou também o desafio mais

incisivo aos pressupostos da ciência política convencional e a

crítica mais explícita aos procedimentos metodológicos e aos

princípios epistemológicos da “sociologia burguesa”. Penso,

portanto, que um trabalho de revisão da crítica poulantziana à

ciência política convencional – o tipo de crítica, o modo pelo qual

96 Adriano Codato é professor de Ciência Política no DECISO/UFPR e coordenador do Núcleo de

Pesquisa em Sociologia Política (Nusp).

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

166

essa crítica foi feita e o conteúdo dessa crítica – permita fazer um

balanço das relações entre o marxismo e a ciência social.

Se o marxismo ambiciona ser muito mais do que apenas

uma ciência positiva da sociedade e se nesse caminho ele

pretende não só dizer a verdade sobre os princípios e pressupostos

teóricos e metodológicos da ciência política e da sociologia

política “burguesas”, mas colocar no seu lugar uma teoria mais

eficiente e mais correta da política, do poder, da dominação

social, então é preciso, antes mesmo de avaliar se isso foi cumprido

como planejado e se efetivamente deu certo, tentar entender se a

maneira de fazer isso foi a mais adequada ou não. Só procedendo

assim, julgo eu, é possível fazer valer, na prática, alguns slogans

publicitários que os marxistas anunciam a respeito de sua própria

tradição, do tipo: ‘só a teoria marxista é uma teoria que pode

criticar-se a si mesma’, etc.

TEORIA E FILOSOFIA

Nesta comunicação, formulo um argumento sobre as razões

explícitas e sobre as razões implícitas da proverbial complicação

dos escritos de Poulantzas, insistindo, e esse é o problema central

que desejo destacar, sobre a influência que os procedimentos e os

pressupostos da filosofia impõem à prática teórica dos marxistas no

âmbito das ciências sociais.

O ponto aqui é antes sugerir que demonstrar que a forma

de redação dos textos de Poulantzas é menos uma questão do

“estilo” do autor (o vocabulário incomum, a fraseologia

arrevesada, a falta de clareza de certos conceitos e a

desorganização dos argumentos); ou mesmo uma questão do

“nível” do discurso (um discurso necessariamente abstrato para

tratar de problemas abstratos); e sim uma questão do “tipo”de

“ciência social”defendida e praticada pelo estrutural-funcionalismo

francês como um todo (Althusser, Balibar, Badiou, etc.).

A hipótese é que a prosa filosofante característica desse

gênero de marxismo encurrala e encerra o discurso e a prática

sociológica em três mundos, que os dirigem e passam a defini-los: i)

a política, ii) a teoria e iii) as lutas políticas no domínio exclusivo da

teoria. Invertendo a formulação de Althusser (“a filosofia é luta de

classes na teoria”), creio que se deveria dizer que essa teoria é,

antes de qualquer coisa, um produto da luta teórica no domínio da

filosofia (marxista).

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

167

Meu argumento central é o seguinte: esse gênero de

“ciência social” que Poulantzas exemplifica tira proveito da fusão

do discurso político com o discurso científico sob a proteção e a

garantia do discurso filosófico. Essa é a razão do alegado

teoricismo de Nicos Poulantzas, cujo efeito (e não a causa) é um

dialeto abstrato. A causa fundamental dessa forma de conceber o

trabalho teórico e a prática científica está, antes de qualquer

coisa, na recusa dos procedimentos convencionais da ciência

convencional. E isso por sua vez deriva do entendimento do que o

marxismo deveria ser: nem uma “ciência da História” nem uma

forma de sociologia empírica, mas uma cosmogonia.

O GÊNERO, O NÍVEL E O TIPO DE DISCURSO

W. G. Runciman, ao comentar a tradução inglesa de Les

classes sociales dans le capitalisme aujourd’hui recordou e

sintetizou a recepção chavão à obra de Poulantzas nos países de

língua inglesa: “Mr. Poulantzas escreve conforme a tradição

continental, onde a generalidade da abstração é muitíssimo mais

estimada que a clareza de expressão”97.

Essa tirada é bastante espirituosa, toca em dois problemas

reais – o gênero do discurso e o nível do discurso – mas comete dois

deslizes. Primeiro, mistura a (má) qualidade da prosa poulantziana

com o plano (teórico) onde o autor situa seu trabalho. O próprio

Poulantzas nunca negou que mesmo suas “análises concretas”

estavam voltadas principalmente para a elaboração de conceitos.

Fascisme et dictature é uma prova disso. Poulantzas sempre

pretendeu que para elaborar o conceito de Estado fascista, a

“generalidade da abstração” deveria suplantar a realidade

empírica– isto é, as formas concretas de Estados capitalistas de

exceção (Estado italiano, Estado alemão, etc.) (POULANTZAS, 1970:

325-338).

O segundo deslize, e esse é meu argumento principal, é que

esse tipo de crítica aos textos de Poulantzas, muito comum e muito

obstinada até hoje, erra o alvo. Há uma questão mais importante e

que deriva não do gênero (literário) ou do nível (abstrato) do

97 W. G. Runciman, resenha de Classes in Contemporary Capitalism e de Social Analysis publicada no Times Litterary Supplement (16 Jan. 1976). Apud Jean-René Tréanton, Réflexions sur Fascisme et

dictature. Revue française de sociologie, (1976 : 533, nota 1).

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

168

discurso, mas do tipo de discurso adotado – e não somente por

Poulantzas, mas por boa parte do marxismo “continental”.

Para além dos problemas estilísticos evidentes (períodos

muito longos, construções elípticas, interpolações constantes,

formulações de duplo sentido, definições pouco claras, distinções

em poucas palavras, explicações idem), a confluência, nesse

discurso teórico, de três modos distintos de conhecimento – i) o

filosófico, amparado na excelência e ampliado graças à

grandiloquência do comentário de texto (dos textos clássicos dos

clássicos do marxismo, bem entendido); ii) o político-teórico,

implicado na sobreposição espontânea e obrigatória de duas

problemáticas: a teoria da teoria marxista e, derivada dela, a

teoria da prática revolucionária; e iii) o científico, exigido para

construir e/ou conquistar os objetos de pesquisa das sociologias

não marxistas ou antimarxistas (e.g., a noção poder, de Estado

capitalista, etc.) –, teve consequências decisivas para esse gênero

de “ciência social”. Não só contribuiu para congestionar o texto

poulantziano de conceitos teóricos (às vezes muito úteis, como

“hegemonia de fração”, “bloco no poder”, “burocracia versus

burocratismo”, etc., às vezes não, como “autonomia relativa”),

como de declarações categóricas com base em uma série de

tomadas de posiçãopolíticas em cada um desses campos, o

filosófico, o político e o científico (“poder é o poder político das

classes sociais”, “O Estado é o fator de coesão de uma formação

social”, “o funcionamento da burocracia corresponde, em última

análise, ao interesse político da classe ou fração hegemônica”

etc.) (POULANTZAS, 1971a: X; 1971b: 167).

É verdade que a justaposição de problemas de naturezas

diversas (o social e o sociológico; o político e o politológico; o

teórico e o ideológico), e a obrigação autoimposta de enfrentá-los

ao mesmo tempo e no mesmo lugar, até produziu, nos poucos

leitores mais empenhados, e depois de passada a perplexidade

inicial, aqueles fins que Poulantzas desejava: “romper”, através da

linguagem empregada, “com o discurso descritivo ordinário” da

sociografia política dominante (POULANTZAS, 1976: 68). Ocorre que,

em boa parte dos casos, a intenção de ruptura se fez à custa da

comprovação integral do sistema integral, gerando o incômodo e

a incompreensão proveniente de duas reprovações padrão,

simétricas e opostas, que sempre acompanharam a obra de

Poulantzas: ou Poulantzas falava demais, ou Poulantzas falava de

menos.

Um exemplo do primeiro defeito vinha das cobranças

diante das interpretações um tanto arbitrárias acrescentadas às

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

169

conhecidas fórmulas de Marx e Engels, deslocadas essas dos seus

contextos originais e embaralhadas, conforme seus críticos, a esmo.

O exemplo do outro defeito – de que Poulantzas falava de menos -

eram as solicitações frequentes de evidências concretas que

comprovassem seus argumentos diante da carência explícita de

análises empíricas.

O MARXISMO ESTRUTURALISTA

Voltando ao ponto central da crítica convencional: o que

está de fato em jogo e vem encoberto por “problemas de estilo”?

Tal qual Louis Althusser (ou em razão da influência deste), os

textos dos marxistas estruturalistas – Poulantzas aí incluído – possuem

uma dicção toda própria, marcada pelo impulso polêmico, pelo

vezo contundente e pelas fórmulas definitivas, como observou

Jacques Rancière, produto dessa “ambição totalizante” autorizada

e imposta pelo culto da “grande teoria”98.

Tanto na filosofia dos filósofos, quanto na (ciência) política

de Poulantzas, os temas, as teses e os conceitos são expostos,

como ele mesmo explicou, numa ordem que oculta

propositalmente o caminho para se chegar a eles (a “ordem da

pesquisa” dos elementos empíricos). Isso produz dois defeitos,

ambos admitidos por Poulantzas, mas desclassificados também por

ele como fruto da ilusão empirista e do engano “neopositivista” dos

seus críticos99: i) o mundo social e os acontecimentos históricos só

comparecem em seus escritos comoexemplos para confirmar

princípios e conclusões já estabelecidas de antemão; ii) daí a

aparência (falsa segundo o próprio autor) de um discurso onde

conceitos geram conceitos, uma sorte de partenogênese teórica.

Não encontro, porém, uma símile mais adequada – partenogênese

teórica – para descrever esse tipo de ciência social. Explico.

O que escapa à autocrítica poulantziana é que a “ordem

de exposição” de um texto em ciência social não pode ser a

mesma de um texto em Filosofia, mesmo para o marxismo, que não

reconhece divisões departamentais nem se submete de boa

vontade aos ritos escolares. A ausência da pesquisa (ao menos no

texto) e da sua “ordem”, isto é, dos seus procedimentos – a

98 Para a constatação a respeito do tom que Althusser imprimia a sua escrita, ver Jacques Rancière (1993). Para as expressões “ambição totalizante” e “grande teoria”, ver Pierre Bourdieu, (2004: 32).

99 Para o “neopositivismo” da crítica endereçada a ele, ver Nicos Poulantzas (1976: 67).

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

170

explicitação dos modelos e dos métodos para selecionar, organizar

e interpretar evidências, por exemplo – produz dois efeitos sobre

esse discurso teórico. Primeiro, torna impossível avaliar a

documentação mobilizada, daí o tom muitas vezes arbitrário das

alegações; e segundo, transfere, para o domínio do comentário

dos textos canônicos, o que deveria ser resultado da explicação

das coisas. Daí a impressionante frequência nessa sociologia do

recurso (retórico ou não, pouco importa) à formula Marx dixit.

Sua teoria do Estado possui precisamente essas

características e é um exemplo muito ilustrativo da propensão para

transitar entre campos distintos (filosofia, economia, sociologia), ora

em nome da autoridade de Marx, Engels, Lênin e Gramsci, ora em

nome da utilidade dos princípios políticos daí derivados; ora em

nome da conformidade pressuposta das análises teóricas com o

mundo social, ora em nome da incapacidade das teorias rivais

(marxistas e não marxistas) darem conta seja da interpretação mais

correta dos textos clássicos, seja da compreensão mais concreta

dos modos de funcionamento da sociedade capitalista100.

A crítica à “ausência de qualquer problemática teórica nos

escritos de Miliband” é uma evidência de como Poulantzas se serve

da autoridade derivada dos procedimentos puros da interpretação

pura dos clássicos do marxismo para explicitar qual seria a forma

correta de ligação entre as análises concretas e os “conceitos

abstratos”. Nenhuma palavra, todavia, sobre a pertinência efetiva

daquelas análises em relação ao mundo social real. O ponto aqui,

então, torna-se o seguinte: é preferível defender a atualidade e o

poder explicativo dos conceitos abstratos, sejam eles corrigidos,

completados, desenvolvidos ou não pelo processo de elaboração

teórica, ao invés de considerar como mais legítimo ou como mais

efetivo o procedimento usual que envolve dados, hipóteses, teste,

proposições e assim sucessivamente.

O MODO DE PRODUÇÃO DE TEORIA

Mas de onde vem isso? Minha hipótese é que esse tipo de

discurso pode ser explicado em razão de dois determinantes: i) a

heteronomia dessa teoria da política em relação às lutas teóricas e

às dissensões políticas no campo político comunista; e ii) a

100 Expus e procurei comprovar este ponto em Adriano Codato: “Poulantzas, o Estado e a Revolução”

(2008: 65-85).

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

171

autonomia pretendida dessa teoria em relação à Sociologia e à

Ciência Política “burguesas” como práticas científicas “puras”.

Esse jogo duplo – condição de existência do marxismo, a

propósito – é tão ou mais necessário quanto menos os marxistas

podem prescindir, nesse momento de (re)fundação da doutrina do

Estado e de contestação da ciência política norte-americana

(sejam as vertentes comportamentalista, culturalista ou sistêmica),

dos dividendos decorrentes de dois princípios de consagração

desiguais, mas potencialmente complementares: a autoridade

universitária, disputada contra a ciência social pela imposição da

teoria marxista da política como a única teoria política legítima; e a

autoridade política, transmitida pelo partido teórico e pelo projeto

social no qual se está implicado101.

O tipo do discurso então adotado – o filosófico –, que abusa

da análise, do comentário e da interpretação de texto (dos textos

clássicos dos clássicos do marxismo), resulta da (con)fusão

inevitável pelo modo de produção dessa teoria entre três coisas: i)

as controvérsias doutrinárias dos partidos comunistas europeus; ii) a

reflexão abstrata dos intelectuais universitários comprometidos com

o socialismo; e iii) a problemática política do materialismo histórico

(a “Revolução”). A consequência de tudo isso é a subordinação

inapelável dessamodalidade de “ciência social” à teoria teórica.

CONCLUSÃO

Vou então recapitular o que disse até aqui e esquematizar

ao máximo meu argumento.

Sustentei que a teoria política poulantziana – construída

como uma crítica direta à ciência política convencional

(“burguesa”) – pode ser definida como uma teoria que é, antes de

qualquer coisa, um produto da luta teórica do marxismo teórico no

domínio da Filosofia. Isso não tem nada a ver com Ciência Social

(descrição, análise e interpretação; testes de hipóteses,

explicitação de mecanismos, estabelecimento de relações,

proposição de explicações) e não teria nenhum problema se não

fosse pensada – essa teoria política – como uma crítica e uma

correção à ciência social convencional.

101 Para a sugestão original dessa idéia, ver Pierre Bourdieu, “O discurso de importância. Algumas reflexões sociológicas sobre o texto ‘Algumas observações críticas a respeito de Ler O Capital’”

(BOURDIEU, 1996: 168).

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

172

Esse “teoricismo” – reconhecido, aliás, pelo próprio

Poulantzas no debate com Miliband no artigo de 1976 – vem

fundido e confundido com um discurso complicado, uma prosa

difícil. Essa, contudo, é a aparência do problema. A crítica que

consiste em apontar um “defeito”, o estilo “confuso”, é a meu ver

essa é uma crítica superficial. O próprio Poulantzas faz a defesa

desse “discurso complicado” nos termos corretos: trata-se de um

discurso abstrato para tratar de problemas abstratos (uma

exigência óbvia do trabalho teórico). Minha tese é que não é um

problema do estilo do discurso, ou do nível do discurso, mas do tipo

do discurso: o discurso filosófico cujo núcleo é o comentário de

texto (Marx dixit).

A confluência no texto poulantziano de três modos distintos

de conhecimento (o filosófico, o político-teórico e o científico), e a

justaposição de três problemas de naturezas diversas (o social e o

sociológico; o político e o politológico; o teórico e o ideológico),

conduziu esse discurso ao culto da grande teoria e a declarações

categóricas com base em tomadas de posição políticas. Como

falta a esse discurso a “ordem da pesquisa”, isso torna impossível

avaliar a verdade das proposições, o comentário do texto

tomando o lugar da explicação das coisas. Daí o recurso frequente

à autoridade dos textos clássicos dos clássicos.

Ficamos então com um discurso que defende a atualidade

e o poder explicativo dos conceitos abstratos produzidos pelo

processo de elaboração teórica; isto é, um discurso que depende

da capacidade de análise do que “Marx realmente disse” e não

do procedimento mais usual: reunião de dados, elaboração de

hipóteses, formulação de proposições científicas provisórias para

serem depois testadas à luz de novas evidências etc. Tudo isso

conduz à subordinação da Ciência Social à teoria teórica e tudo

depende então de ser ou não ser marxista, o que repõe

constantemente a tensão entre a heteronomia dessa teoria social

em relação à política; e a sua pretendida autonomia em relação à

ciência “pura”.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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quer dizer. São Paulo: Edusp, 1996.

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Page 176: Marxismo&Ciências Humanas-2011

MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

175

Notas introdutórias sobre o

desenvolvimento do marxismo no Leste

Europeu

Pedro Leão da Costa Neto102

Uma análise do desenvolvimento do marxismo no leste

europeu deve ter como objeto, não só uma análise das

importantes obras e correntes teóricas surgidas no período do

“Socialismo Real”, mas também investigar outro aspecto, algumas

vezes esquecido, do trabalho associado à organização e edição

das obras de Marx e Engels, que criaram, em grande parte, a base

e o fundamento dos estudos da obra de marxistas ao longo do

século XX. Não seria exagero afirmar que toda história do marxismo

no século XX teria sido distinta sem este trabalho; referimo-nos aqui

a publicação, não só das obras completas, mas igualmente ao

trabalho de organização e edição, dos diferentes manuscritos que

se transformaram em escritos decisivos para as sucessivas

interpretações do marxismo: Crítica da Filosofia do Direito de Hegel,

Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844, A Ideologia Alemã,

Grundrisse e Dialética da Natureza.

Desde o final do século XIX, em diferentes países da Europa

Oriental, em particular na Rússia e na Polônia, desenvolveram-se

importantes interpretações do pensamento marxista e que levaram

a distintos debates. Na Rússia é importante destacar, ao lado das

decisivas contribuições, de Georg Plekhanov e V. I. Lênin, para a

elaboração de uma tradição teórica nacional103, os trabalhos de

Alexander Bogdanov e Anatol Lunatcharski, entre outros. Na

Polônia104 é importante lembrar as contribuições de, entre outros,

Ludwik Krzywicki, Kazimierz Kelles-Kraus e Stanislaw Brzozowski, este

102 Professor do curso de História da Universidade Tuiuti do Paraná. Doutor em filosofia pela

Universidade de Varsóvia – Polônia. A comunicação aqui reproduzida apresenta os resultados

introdutórios de uma pesquisa em andamento, sobre os intelectuais da Europa Oriental no Período do Socialismo Real.

103 Para uma discussão sobre algumas especificidades do marxismo russo, consultar:

(ZANARDO,1974; VRANICKI, 1977a; KOŁAKOWSKI, 1988a).

104 Sobre o marxismo na Polônia, consultar: (WALICKI, 1984; KOŁAKOWSKI, 1988a).

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

176

último considerado por alguns interpretes como o criador do

“marxismo ocidental” avant la lettre.105

Entretanto, será a Revolução de Outubro de 1917, que terá

um efeito decisivo para a história do marxismo, e conduzirá a um

verdadeiro deslocamento geográfico e político na história do

marxismo.106 Entre as tarefas culturais e teóricas, com as quais se

deparou o novo estado revolucionário, devemos destacar a

publicação, a elaboração e a difusão massiva da teoria marxista.

Um dos primeiros passos neste sentido foi a publicação em 1921 do

conhecido manual de divulgação teórica de autoria de Nicolai

Bukharin: Tratado de Materialismo Histórico: Ensaio popular de

Sociologia marxista, que tinha justamente por objetivo suprir a

lacuna de “uma exposição sistemática (...) da teoria marxista” (

BUKHARIN, 1970: 7)

O pensador russo Boris Kagarlitsky (2006:75) observa que o

período que vai de 1922 a 1928, “representou um fortalecimento da

cultura e até mesmo um novo renascimento cultural”. Entre as

grandes obras teóricas aparecidas no período, podemos destacar

os trabalhos de Isaak Illich Rubin (1980): A Teoria Marxista do Valor e

do teórico do direito Evgeny Pasukanis (1989): A Teoria Geral do

Direito e o Marxismo.

A década de 1920 na Russia, foi importante igualmente no

campo da filosofia marxista, nestes anos se desenvolveu um intenso

debate teórico, entre duas distintas correntes, os mecanicistas e os

dialéticos, que travavam uma disputa pela hegemonia filosófica.107

Os mecanicistas defendiam que a filosofia era uma forma de

metafísica mística e escolástica se comparada as ciências

particulares - ciências que permitiriam a resolução dos diferentes

problemas teóricos; e os dialéticos - cujo principal representante

era o destacado marxista Abram Deborin - que defendiam que o

materialismo dialético representava uma concepção de mundo

integral que englobaria a natureza e a sociedade. Este debate, se

encerrou em 1929, com a vitória do grupo dos dialéticos, que

assumirá a direção das principais instituições filosóficas. Entretanto,

em 1930, aparece o artigo assinado por três jovens filósofos “Sobre

105 Sobre o marxismo de Stanislaw Brzozowski, consultar, ao lado dos escritos citados de WALICKI

(1984) e KOŁAKOWSKI, (1988a), o artigo de GÁNGO (2009).

106 Sobre este deslocamento geográfico e político e suas conseqüências teóricas, consulte o livro de P. ANDERSON (1989), Considerações sobre o marxismo ocidenta, em particular o capítulo A tradição

clássica. Cf., igualmente sobre as implicações da revolução de outubro para a publicação das obras de

Marx e Engels: (HOBSBAWM, 1980.)

107 Para uma reconstrução deste debate consultar: entre outros a antologia de textos organizada por

René ZAPATA (1983) e (VRANICKI, 1977b).

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

177

as novas tarefas da filosofia marxista-leninista”, no qual eram

criticados tanto os mecanicistas como os dialéticos (estes últimos

condenados como “idealistas mencheviques”). Os jovens filósofos

defendiam o caráter partidário da filosofia e a necessidade de

procurar a raiz política e de classe de todo fenômeno ideológico;

este artigo vem seguido da resolução do CC do PCUS de janeiro

de 1931, que reafirmará aquelas críticas. Será, portanto, uma

decisão político-administrativa que tornará esta tendência, a

filosofia oficial da URSS. O estudioso dos debates filosóficos dos anos

1920 na URSS René Zapata afirma que este acontecimento terá

pesadas conseqüências, inclusive sobre o ensino do marxismo na

URSS; a partir de 1931, o estudo de O Capital que, entre 1925 e

1930, ocupava um lugar importante no ensino do Instituto dos

Professores Vermelhos, será substituído por textos políticos e a partir

de 1934/1935, o papel central no ensino do marxismo passará a ser

ocupado pelos diferentes manuais de materialismo dialético,

materialismo histórico e economia política (ZAPATA, 1985: 39)

Entretanto, o passo decisivo para a definitiva formalização da

versão canônica do marxismo soviético foi a publicação do escrito

de J. Stalin (s.d.): Materialismo Dialético e Materialismo Histórico.

Seguindo a filósofa francesa Christine Buci-Glucksmann

(1978, 257) poderíamos enumerar algumas característicasdo

marxismo russo:

1. Desenvolvimento do aspecto filosófico do marxismo

com a finalidade de criar um sistema global.

2. Afirmação de que o materialismo filosófico é a

filosofia específica do marxismo e que há um nexo

privilegiado entre o materialismo e as ciências da natureza.

3. Unidade das posições filosóficas e políticas que

desemboca em uma “ingerência” do poder político nas

questões filosóficas.

Poderíamos acrescentar, ainda, como um importante

desdobramento da primeira característica, a posição subalterna

ocupada pelo Materialismo Histórico em relação ao Materialismo

Dialético.

Como já tínhamos destacado anteriormente, o outro

importante elemento constitutivo da história do marxismo no leste

europeu foram o trabalho dedicado as edições e aos estudos

sobre a obra de Marx. A revolução de outubro promoveu uma

profunda mudança geográfica e política na história da publicação

das obras de Marx e Engels, que a partir de então poderá contar

com o apoio de uma estrutura estatal.

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

178

O grande personagem desta curta e rica história será David

Borisovitch Riazanov. Em 1921, é criada, em nível institucional, uma

Comissão especial para a publicação e difusão das obras de Marx,

neste mesmo ano será criado o Instituto Marx-Engels (IME) que terá

Riazanov como seu primeiro diretor. A partir de 1923, ele

fotocopiará grande parte do Arquivo Marx Engels de posse da

Social-Democracia Alemã e no ano seguinte o IME com o apoio do

Partido Social Democrata Alemão e com a participação do

Instituto de Pesquisas Social de Frankfurt concretizam a idéia da

publicação das Obras Completas de Marx e Engels: a Marx Engels

Gesamtausgabe (MEGA).108

O plano de Riazanov previa a publicação de 42 volumes e

estava dividida em 3 partes: a primeira parte em 17 volumes seria

constituída do conjunto dos escritos de Marx e Engels; na segunda

parte em um total de 13 volumes, planejava a publicação do

conjunto dos manuscritos de Marx elaborados a partir de 1857 e

relacionados ao projeto de Critica da Economia Política; e por fim,

a terceira parte reuniria o conjunto da correspondência de Marx e

Engels em um total 10 volumes. Riazanov dirigiria a publicação até

ser vitima dos expurgos stalinistas, em fevereiro de 1931 foi preso, e

substituído por Vladimir Adoratski na direção da MEGA. Da

totalidade dos volumes previstos, foram publicados apenas sete

volumes da primeira parte (o primeiro em dois tomos), que reuniam

as obras escritas entre 1843 e 1848, entre as quais cabe destacar os

importantes manuscritos da juventude de Marx (Introdução a

Critica do Direito de Hegel e os Manuscritos Econômico-Filosóficos

de 1844) e a Ideologia Alemã de Marx e Engels. Riazanov publicou

apenas os volumes I e II e os restantes foram editados por Adoratski.

Da terceira parte foram publicados apenas quatro volumes que

reuniam a correspondência entre Marx e Engels (os três primeiros

por Riazanov e o último por Adoratski). Por fim, em 1935, seria

publicado um volume dedicado às obras filosóficas de Engels,

reunindo o Anti-Dühring e os seus manuscritos científicos, agrupados

sob o titulo Dialética da Natureza. Por fim 1939/1941, coincidindo,

portanto com o início da II Guerra Mundial, foram publicados em

Moscou, pelo Instituto Marx–Engels e Lênin (IMEL, resultante da

fusão do IME e do Instituto Lênin, em 1931, após a expulsão de

Riazanov)e sob a responsabilidade de Pavel Veler, os Grundrisse der

Kritik der politischen Ökonomie. Rohentwurf, 1857-1858.

108 Sobre a publicação da MEGA consultar (LEFEBVRE, 1985; ZAPATA, R. La publication des

oeuvres de Marx après sa mort, op.cit.

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

179

O maior esforço do IMEL nos anos 1935 - 1951 foi a

publicação em língua russa (Sotchinenia) das Obras de Marx e

Engels, sob a organização inicial do mesmo Riazanov (nos anos

1929-1930) e substituído posteriormente por V. Adoratski, tendo sido

publicados 28 volumes.

Após a conclusão da II Guerra Mundial terá lugar uma nova

e importante ofensiva nos campos da literatura e da filosofia

promovida por A. Zhdanov (1948), que acentuará ainda mais o

caráter dogmático da cultura soviética. Será esta filosofia que, a

partir da segunda metade dos anos 1940, será transplantada

através de diferentes métodos burocráticos e coercitivos, nos

diferentes países do leste europeu e em linhas gerais perdurará

como filosofia de partido e estado, até o colapso do Socialismo

Real.109

Partindo das indicações desenvolvidas por Leszek

Kołakowski (1988b, 923)110 em seu livro Główne Nurty Marksizmu

(Tendências Principais do Marxismo), podemos identificar as

características mais gerais do marxismo no leste europeu

eindividualizar quatro diferentes períodos:

i) os anos 1945-1949 se caracterizam pela existência de

elementos de um pluralismo político e cultural, no tocante ao

pensamento filosófico e social, que se expressava na presença de

diferentes professores estranhos a tradição marxista nas diferentes

instituições universitárias. No decorrer do período este pluralismo se

restringirá gradualmente. É nesta conjuntura intelectual que se

desenvolverá a ofensiva teórica e política para implantar o

marxismo, em sua versão sistematizada na União Soviética, na vida

cultural e universitária, ofensiva esta acompanhada de uma série

de medidas de caráter coercitivos e burocráticos.

ii) 1949-1954, unificação do “campo socialista” nos aspectos

políticos e ideológicos e stalinização da cultura. Transformação da

“filosofia marxista-leninista”, ou “tendência extensional”, como a

nomeia G. Markus,em filosofia oficial através de métodos

109 Vranicki observa sobre este processo de transplantação: “Com a finalidade de assegurar a

hegemonia política sobre os países do campo socialista e sobre os partidos comunistas de todos os países, se proclama o estado soviético “modelo” de toda a humanidade progressista e declara que a

cultura e os estados burgueses são apenas decadência e decrepitude” (VRANICKI, 1977b: 150). O

marxista francês Georges Labica observou que esta síntese filosófica perdurou até o colapso do Socialismo Real, sem nunca sido objeto de uma crítica rigorosa (LABICA, 1991).

110 Nós utilizamos, alem do livro de Kołakowski, igualmente da classificação das diferentes tendências

filosóficas existentes nos países da Europa Oriental desenvolvida membro da Escola de Budapeste György Markus, no capítulo Discussões e Tendências na Filosofia Marxista de seu livro Teoria do

Conhecimento no Jovem Marx (MARKUS, 1974: 113-129).

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

180

administrativos, tais como o afastamento e a proibição do ensino

dos antigos professores.

iii) 1955-1968, sobre o efeito do processo de desestalinização

surgem diferentes tendências anti-stalinistas e revisionistas,

surgimento de correntes filosóficas próximas as existentes na Europa

Ocidental, entre as quais o existencialismo e o neo-positivismo.

Markus refere-se a existência das seguintes correntes: “ideologia

crítica”, “cientificista”111 e “ontologia social”. É importante destacar

o esforço critico desenvolvido por György Lukács (1982: 36-176) e

Karel Kosik (1969) em superar as limitações, tanto da síntese

filosófica oficial, como destas duas correntes então hegemônicas

no ocidente.112

iv) A partir de 1969, período caracterizado pela derrota e

expurgo das diferentes correntes criticas, com o afastamento da

vida pública ou o exílio de seus principais representantes.113 Apesar

de uma tendência geral, nos anos 1970-1980, de gradual

afastamento do marxismo, é importante destacar a existência em

diferentes instituições, de um conjunto de pesquisadores marxistas

pertencentes a uma nova geração, que realizaram uns importantes

trabalhos de investigação sobre o pensamento de Marx e a

tradição marxista.

Uma segunda proposta de periodização poderia ser

realizada, partindo de critérios geracionais114, que permitiria

identificar três diferentes gerações que compartem experiências

comuns e permite identificar as filiações existentes entre elas:

i) Lukács e Bloch que se aproximaram do marxismo ainda no

período entre as guerras;

ii) geração formada nos anos sucessivos a II Guerra Mundial

(entre os principais representantes estão Karel Kosik, Leszek

Kolakowski, Zygmunt Bauman, Bronislaw Baczko, Istvan Mészáros,

Agnes Heller e outros membros da Escola de Budapeste) e que

111 O filósofo polonês nomeou estas duas correntes como: scientific philosophers e antropological

philosophers, a primeira próxima a tradição neo-positivista e a segunda ao existencialismo,

fenomenologia e outras correntes tradicionais da filosofia ocidental (KRAJEWSKI, 1966: XIV-XIX).

112 Para uma análise da experiência do marxismo no leste europeu, consultar: (ARNASON, 1989).

113 A posição extremamente critica e parcial assumida por Kołakowski em seu livro anteriormente

citado, o leva a desqualificar toda contribuição filosófica posterior a 1968; entretanto, a posição marcadamente ideológica, que transparece em diferentes passagens da sua obra, choca-se claramente

com a necessidade de uma análise mais equilibrada e aprofundada.

114 A sugestão para a elaboração de uma periodização é resultado do desenvolvimento de algumas sugestões desenvolvidas pelo filósofo italiano Guido Neri na qual estabelece uma distinção geracional

entre as obras de Lukács, Bloch, Kołakowski e Kosik (NERI, 1980).

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

181

desempenharam um importante papel nos debates teóricos a

partir da segunda metade dos anos 1950;

iii) um conjunto marxistas acadêmicos que passam a

desempenhar um papel importante depois dos acontecimentos de

1968.

O final da II Guerra Mundial e a expansão do socialismo

para o conjunto de países do leste europeu, incluindo a República

Democrática Alemã, trará igualmente mudanças no tocante a

publicação das obras de Marx e Engels. Ao IMEL de Moscou, viria

se juntar no referido trabalho, o Instituto Marxismo–Leninismo de

Berlim.

Em 1 956, os Institutos de Moscou e Berliminiciaram a

publicação das obras reunidas de Marx e Engels, nas chamadas

Marx Engels Werk (MEW), e Marx EngelsSotchinenia que, mesmo

não reunindo a integralidade das obras e escritos dos dois autores,

alguns textos foram omitidos por motivos ideológicos, e fortemente

marcados por introduções e notas que espelhavam a concepção

do marxismo–leninismo então em voga nos países do leste europeu.

Entre 1956 e 1968, seriam publicados 39 volumes, mais apêndices e

índices. Apesar dos aspectos deficientes, a MEW constituiu-se num

instrumento de referência e trabalho indispensável para os estudos

especializados, como serviu também de base para as futuras

traduções das obras de Marx e Engels para diferentes línguas da

Europa Oriental, e para as edições chinesa, italiana, inglesa e

japonesa.

Entretanto, talvez o mais importante empreendimento

editorial do período e de toda história da publicação das obras de

Marx e Engels, seria o grande projeto de uma nova publicação,

iniciado na década de 1970, sob a responsabilidade dos Institutos

de Marxismo Leninismo de Moscou e Berlim, da Marx Engels

Gesamtausgabe,que passará a ser conhecida como MEGA 2.115

Esta nova edição previa a publicação inicial de mais de 160

volumes, em que cada volume viria acompanhado de um volume

de aparelho critico.

A Marx Engels Gesamtausgabe, MEGA 2, estava organizada

e dividida da seguinte maneira: I Seção: Obras, incluindo as obras,

artigos e manuscritos; II Seção: Obras econômicas relacionadas ao

projeto de Crítica da Economia Política, a partir de 1857, reunindo

as diferentes versões e manuscritos relacionados a O Capital; III

Seção: Correspondência; IV Seção: Materiais diversos que incluiria,

entre outros materiais, as notas de leitura dos dois autores.

115 Sobre a publicação da MEGA2,alem dos já citados: (LEFEBVRE, 1985).

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

182

Após a publicação, em 1972 de um Probeband, aparece,

em 1975, o primeiro volume da nova MEGA, tendo sido publicados

até 1990, dos 164 volumes previstos, apenas 36. Entretanto,

novamente, acontecimentos políticos interferem na publicação

das obras de Marx e Engels; a “queda do muro”, em 1989, seguida

da anexação da RDA pela RFA e a posterior dissolução da URSS,

levaram ao desaparecimento dos Institutos de Marxismo-Leninismo,

em Moscou e Berlim e ao desaparecimento das grandes estruturas

estatais que financiavam a publicação das obras de Marx e

Engels.116

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116 Sobre a continuação da publicação do projeto da MEGA 2, apos a dissolução do antigo campo

socialista, consultar: texto de apresentação do site da Academia de Ciências de Berlin Brandemburgo:

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

185

A luta pelas leis fabris do século XIX e

a definição das idades do trabalho:

um estudo sobre a constituição das

noções de infância e adolescência

Lígia Regina Klein117

A questão das “idades da vida”118 perpassa a história

humana. Tais “idades” são marcadas por distintas práticas de

iniciação, ritos de passagem, modalidades de formação, as quais

traduzem a inserção progressiva dos indivíduos em atividades

essenciais da sociedade. Por trás de marcos etários, o

determinante é a capacidade119 – física e psíquica - de

desempenhar certas práticas e funções sociais ligadas à

reprodução da espécie e à produção/reprodução das condições

de existência – desde as formas mais primitivas como a coleta e a

caça, até as formas mais complexas que se enquadram nas

condições da indústria contemporânea.

Considerando que tais funções e práticas se transformam

de época para época, de sociedade para sociedade e, inclusive,

no interior de uma mesma sociedade em relação a distintos grupos

sociais, é compreensível que tais fases apresentem diferenças

quanto à precisão de idade e, mesmo, quanto à relevância

atribuída a certa fase em um ou outro contexto concreto. De

modo geral, nas sociedades anteriores à emergência do

capitalismo, essas fases não são tomadas como objeto de

preocupação, em si mesmas. Tendo como referência a condição

adulta, servem como meros indicativos para a atribuição de tarefas

e funções.Nas sociedades primitivas verifica-se quase que uma

indistinção das fases de desenvolvimento, conforme ensina Ponce

(1985, p. 19) “as crianças se educavam tomando parte nas funções

117 Doutora em Educação. Professora da UFPR. Coordenadora do NUPE-MARX/UFPR.

118 Título do primeiro capítulo da obra referencial de Philippe Ariès, História Social da Criança e da Família.

119 Evidentemente, não se trata, aqui, de capacidade jurídica.

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

186

da coletividade. E, porque tomavam parte nas funções sociais, elas

se mantinham, não obstante as diferenças naturais, no mesmo nível

que os adultos”.Na Antiguidade e no Medievo, épocas já

marcadas pela divisão da sociedade em classes distintas e

antagônicas, embora os processos educativos se diferenciem

consoante a classe a que pertencem os educandos, também

pouca importância se dá às etapas de desenvolvimento. Não

obstante, a idade de sete anos é referida como um marco

distintivo entre maior ou menor grau de dependência (PONCE,

1985; MANACORDA, 2006; CAMBI, 1999).

Porém, a emergência da sociedade moderna traz uma

preocupação, até então inexistente, com uma rigorosa definição

de faixas etárias que demarcariam as idades, cujas características

distintivas passam a ser objeto de estudo de diferentes disciplinas.

As transformações sociais fazem com que não só se estabeleça

firmemente uma distinção entre infância e idade adulta, como

também originam outras fases de desenvolvimento120. Aqui a

adolescência toma assento na temática das “idades da vida”,

com uma ênfase nunca antes vista (ARIÈS, 1981; BECKER, 1985;

CÉSAR, 2008; SAVAGE, 2009).121

Os estudos deste fenômeno apresentam variados

enfoques122, que vão do higienismo à história cultural, passando por

abordagens antropológicas, psicológicas, sociológicas e

pedadógicas. As investigações se distinguem pela ênfase que

atribuem a um ou outro aspecto do tema. Porém, comungam sob

certo aspecto: cada fase é explicada por características ou

condições subjetivas próprias de certa faixa etária, e abandona-se,

sem maior análise, o determinante comum em todas as sociedades

anteriores ao capitalismo, qual seja a relação de dependência dos

pais e a inserção concreta dos sujeitos nos processos de

produção/reprodução da vida próprias de cada sociedade. No

trato da adolescência, o traço comum é a idéia de crise, o que

120 “Durante o século XIX, a puberdade não era considerada uma fase distinta da vida. Embora os

homens alcançassem a idade adulta ao entrar no mundo do trabalho, do exército ou do casamento, o tempo passado para alcançar essa meta variava.” (SAVAGE, 2009, p. 82).

121 Segundo Becker (1985, PP. 57-58), “O fenômeno da puberdade provavelmente nos acompanha

desde os primórdios do ser humano. Já não se pode dizer o mesmo do fenômeno da adolescência, nem da importância que a sociedade lhe dá. O conceito de adolescência, como ele é hoje considerado, é

bastante recente. Até o século XVIII, a adolescência foi confundida com a infância... A noção do limite

da infância estava mais ligada à dependência do individuo do que à puberdade.”

122 Ver, a respeito, Sirota (2001); Becchi, E., Julia, D (1998); Mauss (1996); Boto (2001); Kulhmann

JR (1998); Heywood, 2004, Warde (2007); Calligaris (2009) entre outros.

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

187

impõe à sociedade uma preocupação com as práticas rebeldes

dos jovens, bem como os meios e dificuldades de seu controle.

A interpretação da construção moderna dos conceitos de

infância e adolescência sob os postulados da história cultural tem

em Phillipe Ariès uma leitura inaugural e com expressiva influência

sobre o trabalho de outros pesquisadores, inclusive entre os

pesquisadores brasileiros do campo educacional que se ocupam

do tema. A perspectiva culturalista, ao buscar determinações

históricas para a constituição moderna dessas categorias,

representa um avanço em relação às abordagens deterministas,

de caráter biologicista-subjetivista. Entretanto, são limitados os

recursos de interpretação, pois pautados em aspectos

superestruturais123. Em síntese, as teorizações são ricas na descrição

do fenômeno da construção moderna das categorias mas,

tangenciando determinações sócio-econômicas, cedem espaço a

explicações subjetivistas ou superestruturais, de cunho culturalista.

Entretanto, o descrito pede explicação e esta tem raízes materiais.

Savage (2009, p. 57) pondera que “o crime juvenil tornou-se

uma questão nacional quando as crianças da classe operária

urbana forçaram a passagem para a conscientização pública”.

Entretanto, o que o autor não considera é que antes de poderem

ser ouvidas como delinqüentes, as crianças proletárias da Grã-

Bretanha, ecoaram, desde as florescentes e sombrias indústrias,

pela voz dos pais, uma penosa luta pela limitação legal da jornada

de trabalho. Ariès, por sua vez, anuncia o papel da escola na

constituição das categorias em estudo, entretanto, desconsidera

que antes de se constituírem sujeitos escolares, os jovens proletários

teriam de desvencilhar-se da condição de trabalhadores124.As

perspectivas acima apontadas são fecundas na indicação de

mediações presentes na construção dessas categorias. Pretende-se

acrescentar, ao tema, elementos do processo material da

transformação das crianças e jovens medievais em crianças e

123 Ariès (1981, p. 115) funda a “invenção moderna” da infância na emergência de um “sentimento”

amoroso dos pais pelos filhos. Segundo o autor, a diminuição do índice de mortalidade infantil

estimularia os pais a um “investimento afetivo” na prole. A adolescência, por sua vez, como um período intermediário entre infância e idade adulta, teria sido determinada pela progressiva relação

entre classe escolar e idade. Para o pesquisador francês, “sem o colégio e suas células vivas, a

burguesia não dispensaria às diferenças mínimas de idade de suas crianças a atenção que lhes demonstra, e partilharia nesse ponto da relativa indiferença das sociedades populares”.

124 Destaque-se que, diferentemente do que propõe Ariès, é a massiva liberação da força de trabalho

mirim – decorrente em grande parte das leis fabris – que criará o contingente de destinatários do sistema de instrução pública. A esse respeito, ver, entre todos, Alves, G, L. A produção da escola

pública contemporânea.

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

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adolescentes da sociedade capitalista, considerando o peso que

teve, nessa transformação, a luta proletária pela criação das leis

fabris.

Conforme a lição de Marx (1983, p. 25), nas transformações

sociais, é necessário distinguir a base material e as suas

manifestações ideológicas - jurídicas, políticas, religiosas, artísticas

ou filosóficas; considerar, enfim, o conflito que existe entre as forças

produtivas e as relações de produção. Com efeito, a luta entre

capital e trabalho na formulação de uma legislação que atente às

condições de resistência física e mental dos trabalhadores é que

vai pôr em questão com nova ênfase, e, nesse sentido, construir

determinadas fases de desenvolvimento dos indivíduos. Assim,

distinguir infância, adolescência e adultidade é uma necessidade

que se impõe na modernidade, como fruto das contradições do

capitalismo nascente. Uma vez estabelecidas essas fases,

conformes à nova estrutura social, elas passam a ser consideradas

em diferentes perspectivas da experiência humana: na educação,

no direito, bem assim nas novas ciências como a psicologia e a

sociologia.

Parte-se da hipótese de que as lutas pelas leis fabris, ao

longo do século XIX, exercem um papel fundamental na

construção de uma nova distinção entre as fases de

desenvolvimento. A compreensão desse papel abre novas

perspectivas no trato do tema. Os embates pela constituição de

leis fabris reguladoras de jornada e idade mínima para o trabalho

na fábrica não podem ser ignorados nos estudos da construção

das categorias em pauta, posto que inauguram o debate moderno

sobre um período de transição entre a infância e a adultidade.

Nesses embates, avulta pela primeira vez a necessidade do manejo

da idade, como uma forma de proteção das crianças e

adolescentes, dado que o ritmo de exploração punha em risco sua

sobrevivência e a reprodução da própria classe trabalhadora. O

processo de elaboração das leis fabris, ao deparar com a questão

da proibição do trabalho infantil e do trabalho noturno, vai obrigar

as classes interessadas, bem assim os segmentos de classe, à

discussão de limites etários mais complexos que a mera oposição

criança-adulto, até então suficiente e fundada exclusivamente na

condição de dependência.

Inicialmente, cabe lembrar que as leis fabris são criadas, ao

longo do século XIX, em um cenário em que se opõem e se

articulam forças distintas: a luta proletária contra a exploração; as

manifestações de ordem moral dos segmentos “humanitários” das

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

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classes médias; finalmente, os setores capitalistas preocupados

com a dizimação do exército de reserva, que buscam frear a

sanha destrutiva da indústria nascente por meio de legislação

adequada à segurança jurídica para a continuidade do processo

de exploração.

A deflagração das lutas proletárias pela legislação fabril se

dá no curso de mudanças sócio-econômicas em que se torna

evidente o caráter devastador do novo processo produtivo. As

novas relações laborais e as expressões ideológicas desse período

histórico, por seu turno, impõem profundas alterações nas

condições das crianças e jovens, por um lado, ao isolá-los no

quadro de novas exigências laborais impostas ao conjunto da

família; por outro, ao submetê-los a uma lógica marcada pelo

individualismo e inseri-los em uma situação de isolamento e

abandono que atinge cada um dos membros da família.É nessa

configuração histórica, à sombra das chaminés das fábricas e ao

desamparo do mais entranhado individualismo, que vai emergir

nova distinção entre idades.

Como destaca Vigário (2004, p. 8) “até o século XVII

considerava-se que a família, por oposição ao indivíduo, era a

unidade essencial da organização social. Nesta perspectiva, as

crianças não eram diferentes dos membros adultos da família, uma

vez que eram todos concebidos como partes componentes de

uma unidade maior, a família alargada”. Na indústria artesanal,

mulheres e crianças geralmente trabalhavam em casa, sem

perceber remuneração própria, constituindo uma força de

trabalho oculta, subordinada à figura do pai provedor. O trabalho

infantil contribuía para o bem estar da família e a facultava a

aprendizagem das habilidades laborais que lhe seriam requeridas

no mundo adulto. “Deste modo, a criança era instruída,

socializada, reprimida, sujeita a determinadas condições e

protegida do contágio moral na sua própria casa” (VIGÁRIO, 2004,

p. 10). Conforme historia Engels (2008), embora as condições de

trabalho nessas unidades familiares de produção não fossem ideais,

as crianças desfrutavam de ar puro e tinham uma alimentação,

não abundante, mas suficiente. Se ajudavam os pais, faziam-no

ocasionalmente, jamais numa jornada de trabalho de oito ou doze

horas. Trabalhavam duramente, mas o ritmo era menos regular,

pois eram donos de seu tempo e podiam dedicar o domingo a

Deus e a segunda-feira ao descanso.

Quando, entretanto, a expropriação das terras impôs a

transferência para as fábricas, a pobreza a que as famílias foram

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

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reduzidas obrigou que os filhos acompanhassem os pais também

no trabalho fabril. Lá, foram submetidos ao ritmo e à jornada do

trabalho adulto. A nova forma de engajamento da família no

trabalho impõe a dispersão dos seus membros, na vida cotidiana.

Seja porque pai e mãe passam a maior parte do tempo no

trabalho, ficando os filhos ao abandono; seja porque os próprios

filhos, desde tenra idade, são insertos no trabalho fabril e, mesmo

quando laborando no mesmo local dos pais, não desfrutam de um

convívio efetivamente familiar. Essas mudanças impõem uma

notável inflexão nos fins da educação: antes orientada para criar

na criança um sentimento de grupo, agora se orienta pela

concorrência e o individualismo. Trata-se de uma guinada

substancial, sobretudo em relação às sociedades primitivas, nas

quais, segundo esclarecedora lição de Ponce (1985, PP. 20-21) esse

ideal consistia em adquirir, a ponto de torná-lo imperativo como

uma tendência orgânica, o sentimento profundo de que não havia

nada, mas absolutamente nada, superior aos interesses e às

necessidades da tribo.Antes de preparar os filhos para somar seus

esforços aos esforços dos demais, se impõe à família moderna

prepará-los para “enfrentar” a sociedade. Antes de ir ao encontro

da sociedade, impõe-se ir de encontro a ela. Sob um regime de

intensa e generalizada concorrência, inclusive entre os

trabalhadores, o individualismo é, agora, a diretriz pedagógica por

excelência.

Os homens, atomizados, separados e mesmo contrapostos

por interesses individuais, encontram-se no mercado. Ali estão os

bens de que necessitam, as coisas que constituem o objeto de seu

interesse e da sua satisfação. Tudo se vende, tudo se compra: é a

nova ordem. Tudo, inclusive os encontros humanos, a partir daí, não

mais ocorrem de forma gratuita. Dar-se-ão, doravante, em regra,

sob o signo dessa mesma lógica mercantil.

Todo o espectro de acontecimentos que ensejam o

individualismo dissolve a antiga pedagogia fundada na educação

pela convivência. A própria separação física entre crianças e

adultos, a impossibilidade de os pais acompanharem de perto o

dia-a-dia dos filhos retira da família as condições gerais de sua

formação e altera toda a lógica da organização educacional.

Urge criar, fora do lar, instituições que eduquem, seja quanto à

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

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formação moral, seja quanto ao domínio de conhecimentos e

técnicas laborais125.

Outro aspecto de fundamental importância para a

emergência da luta pelas leis fabris, diz respeito às profundas

transformações nas condições tecnológicas do trabalho: o

desenvolvimento já alcançado à época permite igualar a força e

a habilidade laboral de diferentes sujeitos126. Ao potencializarem e

precisarem de forma inaudita os gestos humanos, os novos recursos

tecnológicos – sob os auspícios da ciência - tendem a anular as

diferenças naturais entre indivíduos adultos e entre indivíduos de

distintas idades. Essa igualização cria as condições necessárias

para uma nova forma de absorção da força de trabalho infanto-

juvenil. Entretanto, se esse arsenal tecnológico iguala força e

habilidade, não logra superar os limites que se levantarão à

intensificação do ritmo do trabalho, facultada por esses mesmos

recursos.

Aqui se evidencia a relação entre gênero, idade e a forma

capitalista da divisão técnica do trabalho. A simplificação do

trabalho e o emprego da maquinaria apagam as diferenças entre

os gêneros e as idades, tornando todos – crianças, homens e

mulheres - capazes de executar as mesmas funções laborais.

Entretanto, a intensificação do ritmo do trabalho, demandada pelo

aumento da produtividade no interior de uma jornada fixa,

recoloca, de forma inafastável, essas mesmas diferenças, tanto

demarcando os limites da resistência humana, como impondo a

observância de diferentes etapas, idades, condições físicas e

psíquicas para determinadas formas de inserção na jornada de

trabalho.

Assim, concomitantemente à possibilidade de indistinta

absorção de força de trabalho dos homens, das mulheres, dos

jovens e das crianças, nasce a gritante necessidade de proteger os

indivíduos das condições insalubres e da deletéria intensificação do

ritmo do trabalho. A revolta dos trabalhadores contra as condições

deletérias e aviltantes de trabalho – devastadoras para as crianças

125 Se estas instituições não existirem ou não funcionarem adequadamente, ou forem insuficientes para

acolher os filhos dos trabalhadores, estes serão relegados ao mais completo abandono. E aqui se impõe a exigência da modalidade escolar moderna, em oferta tanto quanto possível universal, visto que à

família trabalhadora foi subtraída a possibilidade de assisti-los adequada e permanentemente.

126 Dados os limites deste texto, não será desenvolvida a vasta e significativa temática da profunda repercussão do desenvolvimento científico-tecnológico no sistema produtivo e nas relações de

produção.

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

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e jovens – é o solo sobre o qual florescem, no curso do século XIX,

as lutas pela legislação protetiva. Na história dessa luta observam-

se, conforme lição de Marx (1982), duas tendências que se

desenvolvem em momentos subsequentes: no primeiro, relativo aos

estatutos de trabalho ingleses, a tendência é de extensão da

jornada; no segundo, pertinente à promulgação das leis fabris, a

tendência foi de sua redução compulsória.

Marx (1982, p. 307) situa, nestes termos, ambas as

tendências:

Sem dúvida, as pretensões do capital no seu estado

embrionário (quando começa a crescer e se assegura o direito de

sugar uma quantidade suficiente de trabalho excedente não

através da força das condições econômicas, mas através da ajuda

do estado) se apresentam bastante modestas, comparadas com a

jornada de trabalho resultante das concessões que, rosnando e

resistindo tem de fazer na idade adulta.

E, em seguida, esclarece:

É por isso natural que a jornada de trabalho prolongada,

que o capital procura impor aos trabalhadores adultos por meio da

coação do Estado, da metade do século XIV ao fim do século XVII,

coincida aproximadamente com o tempo limitado de trabalho,

que, na segunda metade do século XIX, é imposto pelo Estado,

com o fim de evitar a transformação do sangue das crianças em

capital.

No primeiro momento, o capital suga toda a força de

trabalho disponível, não fazendo distinção entre homens, mulheres

e crianças, em um quadro no qual, diz Marx (1982, p. 316) “todas as

fronteiras estabelecidas pela moral e pela natureza, pela idade e

pelo sexo, pelo dia e pela noite foram destruídas...”.

As máquinas simplificaram o trabalho, suprimindo o domínio

de técnicas custosas de difícil e lenta aquisição, e apagaram a

distinção física entre os trabalhadores. Isso permitiu a absorção,

pela fábrica, de mão de obra não especializada e a substituição

da mão de obra masculina adulta pelo trabalho de mulheres e de

jovens e crianças. Advinham daí duas grandes vantagens para o

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

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capitalista: tratava-se de mão-de-obra mais obediente e

disciplinável e de menor valor127:

Tornando supérflua a fôrça muscular, a maquinaria permite

o emprego de trabalhadores sem fôrça muscular ou com

desenvolvimento físico incompleto, mas com membros mais

flexíveis. Por isso, a primeira preocupação do capitalista ao

empregar a maquinaria, foi a de utilizar o trabalho das mulheres e

das crianças. Assim, de poderoso meio de substituir trabalho e

trabalhadores, a maquinaria transformou-se imediatamente em

meio de aumentar o número de assalariados, colocando todos os

membros da família do trabalhador, sem distinção de sexo e de

idade, sob o domínio direto do capital. O trabalho obrigatório para

o capital tomou o lugar dos folguedos infantis e do trabalho livre

realizado, em casa, para a própria família, dentro de limites

estabelecidos pelos costumes (MARX, 1982, PP. 449-450).

Para receber esse exército pueril, entretanto, nenhuma

modificação se observa nas condições da jornada, do ritmo e do

local de trabalho. Ao contrário, o trabalho das mulheres e crianças,

nas fábricas, realiza-se nos mesmos ambientes e sob o mesmo ritmo

e intensidade de exploração a que se submetem os homens,

incluída, aí, a máxima extensão da jornada. Desnecessário lembrar

que o emprego de mão-de-obra de crianças e adolescentes,

naturalmente mais frágeis, ainda não completamente

desenvolvidos nem física, nem psiquicamente, acarreta uma

deterioração muito mais intensa, pondo em risco a própria

reprodução do exército de reserva. Engels (2008, pp. 194-195)

menciona o Relatório de Whilliam Sharp Jr., médico da fábrica de

Wood, em Bradford, a melhor equipada da região, apresentando

elementos que dão uma noção da situação dos pequenos

trabalhadores, à época:

1) Pude observar, nas condições mais favoráveis, os efeitos

do sistema fabril sobre a saúde das crianças; 2) tais efeitos,

decisivamente e em larga escala, mesmo naquelas condições

favoráveis, são os mais danosos; 3) em 1842, fui obrigado a tratar

127 A mão-de-obra infantil – referida como “meia força” – recebia ínfimo salário que, não raro,

consistia em apenas um sexto do valor da força de trabalho adulta, quando não fosse pago apenas em troca de alimentação e moradia. Não é sem razão, portanto, que os proprietários das fábricas se

mostraram, rapidamente, sequiosos por legiões de crianças e adolescentes, conforme patenteiam

inúmeros registros da época. A exploração do trabalho infanto-juvenil, entretanto, não se limita àqueles tempos.

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

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três quintos do total de crianças que trabalhavam na fábrica de

Wood; 4) o efeito mais danoso é tornar os organismos, senão

deformados, débeis e doentios; 5) em tudo isso, verificou-se uma

sensível melhora quando a jornada de trabalho das crianças foi

reduzida, em Wood, para dez horas.

Sobre o grau de desumanidade a que são submetidas as

crianças, Marx (1982, PP. 275-276) faz referência à declaração de

um juiz do condado Broughton, que presidia uma reunião na

prefeitura de Nottingham, em 14 de janeiro de 1860:

(...) naquela parte da população, empregada nas fábricas

de renda da cidade, reinavam sofrimentos e privações em grau

desconhecido no resto do mundo civilizado... As 2, 3 e 4 horas da

manhã, as crianças de 9 e 10 anos são arrancadas de camas

imundas e obrigadas a trabalhar até às 10, 11 ou 12 horas da noite,

para ganhar o indispensável à mera subsistência. Com isso, seus

membros definham, sua estatura se atrofia, suas faces se tornam

lívidas, seu ser mergulha num torpor pétreo, horripilante de se

contemplar...

Igualmente dantesco é o quadro traçado no relatório da

Children’s Employment Commission, relativo ao ano de 1863, sobre

a situação das crianças e jovens trabalhadores das fábricas de

fósforos de atrito:

A metade dos trabalhadores são meninos com menos de 13

anos e adolescentes com menos de 18. Essa indústria é tão

insalubre, repugnante e mal afamada que somente a parte mais

miserável da classe trabalhadora, viúvas famintas etc., cede-lhe

seus filhos, “crianças esfarrapadas, subnutridas, sem nunca terem

freqüentado a escola” (...) Dante acharia que foram ultrapassadas

nessa indústria suas mais cruéis fantasias (MARX, 1982, p. 279).

Nesse cenário eclodem os primeiros movimentos da luta

operária, inicialmente voltados à redução da jornada de trabalho

e à proteção das crianças e das mulheres. A identidade das

condições de vida, sofrimentos e angústias dos trabalhadores, ao

lado da abissal diferença em relação às condições de existência

do patronato, põe em curso um sentimento de pertencimento que,

com muita dificuldade, vai cimentando um interesse coletivo, uma

vontade comum, uma consciência de classe, uma perspectiva

unitária de luta.

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

195

Por outro lado, o próprio Estado vem em socorro do capital,

estabelecendo o equilíbrio da concorrência, prejudicado pelo

excesso de uns e outros capitalistas, dado que a livre competição

“torna as leis imanentes da produção capitalista, leis externas,

compulsórias para cada capitalista individualmente considerado”

(MARX, 1982, p. 307). Esse socorro vem em forma de uma tentativa

de uniformização mínima da jornada, reivindicada em alguns casos

pelos próprios capitalistas, conforme registrado no Children’s

Employment Comission, de 1863, citado por Marx:

No começo de 1863, 26 firmas proprietárias de grandes

cerâmicas em Staffordshire, entre elas Josiah Wedgwood & Sons,

pediram num memorial “uma intervenção coativa do Estado”.

Alegavam que a concorrência com outros capitalistas não lhes

permitia limitar à sua vontade o tempo de trabalho das crianças,

etc. “Por mais que lamentemos os abusos acima mencionados,

seria impossível impedi-los por meio de qualquer acordo entre os

fabricantes... considerando todos esses pontos, ficamos

convencidos ser necessária uma lei coativa”.

Assim, combinando resistência dos operários e apreensão

dos capitalistas quanto a um desequilíbrio nas condições

concorrenciais – seja pela desigualdade no trato da força de

trabalho, seja pelo risco de elevação do seu custo em razão da

destruição de um volume substancial do exército de reserva – e

com o reforço de publicistas e profissionais liberais, representantes

das classes médias, põe-se em curso a segunda tendência do trato

da jornada: a sua redução compulsória, por meio da legislação.

Por outro lado, os fabricantes, em particular os grandes

industriais, evitavam confrontos desnecessários com os

trabalhadores (ENGELS, 2008) e em face de iminente agitação,

cediam naquilo que, sem maiores riscos, garantisse uma suspensão

dos conflitos. Nesse quadro, as novas leis fabris eram gestadas sem

que houvesse garantia de sua concreta efetivação. Com efeito,

sob uma aparência filantrópica, edulcoradas por um discurso que

propugnava por justiça e igualdade, essas medidas eram ineficazes

do ponto de vista de seu cumprimento no interior das fábricas, ao

mesmo tempo em que revelavam eficácia na outra ponta, ou seja,

no apaziguamento dos confrontos.

No embate que gesta o catálogo de leis fabris, avulta pela

primeira vez a necessidade do manejo da idade, como uma forma

de proteção das crianças e adolescentes, cujo ritmo de

exploração punha em risco sua sobrevivência e a reprodução da

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

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própria classe trabalhadora128. Nesse embate, se hão de distinguir

crianças, adolescentes, jovens e adultos, como se pretende

demonstrar no estudo das mais importantes leis do período129.

O primeiro diploma a ser lembrado é a Lei da Saúde e Moral

dos Aprendizes - The Moral and Heralth Act - proposta por Robert

Peel e aprovada em 22 de junho de 1802. À época, crianças de

todos os rincões da Inglaterra – algumas com apenas seis ou sete

anos de idade – eram encaminhadas na condição de aprendizes -

pelos Poor Law Guardians - para as fábricas, onde eram expostas a

todo tipo de sofrimento decorrente do regime de exploração,

então sem os limites de qualquer freio legal. A lei foi proposta para

minimizar esse estado de coisas. Ela proibia o trabalho noturno dos

menores, estabelecendo como limites de início e término da

jornada as 6h e as 20h, respectivamente, bem como limitava a

jornada a 12 horas. Ainda, determinava algumas melhorias nas

condições de trabalho – pintura e melhoria da ventilação do local

de trabalho – e de formação dos menores, queteriam de receber

alguns rudimentos de educação, freqüentar a igreja mensalmente

e não serem constrangidas a dividir a mesma cama com mais de

duas outras crianças. O cumprimento dessa legislação dependia

de um sistema pouco eficaz: os Juízes de Paz nomeariam,

anualmente, dois voluntários para realizarem a inspeção das

fábricas - os visitors. A negligência de alguns voluntários, somada à

prévia comunicação das visitas – o que permitia o preparo de um

cenário adequado para a aprovação do fiscal - bem como à

coerção física e moral para que os próprios trabalhadores não

denunciassem a situação real em que trabalhavam e viviam

explica a ineficiência dessa lei. Uma brecha para o trabalho infantil

residia na lei de aprendizagem, que não fazia restrição à idade.

Essa brecha era comumente utilizada para burlar os fiscais. Ainda

assim, a Lei de 1802, para além de ter sido a primeira legislação

protetiva dos trabalhadores, teve o mérito também de lançar luzes

sobre o problema dos aprendizes.

Em 1815, em um cenário de intensa agitação dos

trabalhadores, Robert Owen, defensor da reforma fabril e

proprietário de tecelagens em New Larnak, divulga as condições

de trabalho de suas fábricas e informa à Comissão de Inquérito que

128 Pela mesma razão - a maior fragilidade - a legislação alcançou a questão do gênero, incluindo à

defesa das crianças e adolescentes, também a defesa das mulheres.

129 Na exposição sobre as leis fabris, tomou-se principalmente como referência: Marx (1982); Engels

(2008); Vigário (2004).

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

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não emprega nenhuma criança com menos de dez anos de

idade, iniciando uma campanha para limitar a 10 horas diárias a

jornada infantil. A campanha encontrou resistência de proprietários

do ramo têxtil. Alegavam que o trabalho infantil era imprescindível

e, por outro lado, aumentar a folga das crianças, diminuindo-lhes a

jornada, propiciaria que elas, desocupadas, adotassem maus

hábitos.

A polêmica levou à formação de Comissões de

investigação, cujos resultados levantados forçaram a

promulgação, em 1819, de uma Lei – novamente de autoria de

Robert Peel – que estipulava horário pré-determinado para as

refeições das crianças, observando-se um intervalo de trinta

minutos para o café da manhã e uma hora para o almoço.

Também tornava ilegal o emprego de crianças com idade inferior

a nove anos e estabelecia a jornada máxima de 12 horas diárias

para aquelas com idade inferior a 16 anos. A jornada noturna, das

nove horas da noite às cinco horas da manhã, foi proibida para

trabalhadores com idade entre nove e dezesseis anos.Com esta lei,

pela primeira vez estabeleceu-se um limite etário para o trabalho

infantil nas fábricas.

Em 1831, votou-se uma lei que proibiu o trabalho noturno

para todos os trabalhadores com menos de vinte e um anos. Mas,

dada a ineficácia da legislação protetiva já promulgada – em

especial, a Lei de 1819 -, os trabalhadores, organizados em

associações operárias, deflagraram inúmeros movimentos de

agitação reivindicando uma lei que limitasse a dez horas a jornada

dos jovens menores de 18 anos. Em setembro de 1830, Richard

Oastler publica uma carta-denúncia no jornal de Leeds. Setores

mais avançados dos tories, sob liderança de Michael Sadler,

assumiram o apoio à Lei das Dez Horas – Ten Hours Bill. Com a

perda do mandato, Sadler é substituído, na defesa da reforma

fabril, por Lord Ashley, cujos esforços no Parlamento contribuem

para a promulgação da Lei de 1833 que conjugava medidas

regulamentadoras do trabalho infantil e medidas de inspeção. É

importante destacar o ineditismo dessa lei no que se refere a uma

diferenciação etária entre crianças e adolescentes. Conforme

lembra Vigário (2004, p. 69), “a distinção entre crianças e jovens foi

estabelecida, pela primeira vez, na Lei de 1833. Entre os nove e os

treze anos de idade eram consideradas crianças e os que tinham

idades compreendidas entre os treze e os dezoito eram conhecidos

por jovens”. Por esta lei, declarou-se ilegal empregar crianças

menores de 9 anos – sendo exigido do médico da fábrica um

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

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atestado comprovando a idade do empregado. Para as crianças

entre 9 e 13 anos, estabeleceu-se 9 horas como teto para a

jornada diária e quarenta e oito horas para a jornada semanal130.

Além disso, a lei determinava que os trabalhadores entre nove e

treze anos deviam freqüentar a escola por duas horas diárias e

apresentar comprovante de freqüência escolar, assinado pelo

professor (voucher). Os adolescentes poderiam submeter-se a

jornadas de doze horas diárias e sessenta e nove horas semanais,

mas era proibido o trabalho noturno (entre as 20h30 e as 5h30) para

todos os menores de 18 anos. Essa lei inovou também ao

estabelecer um intervalo mínimo de uma hora e meia para as

refeições. Apesar da figura do fiscal nomeado – outra inovação da

lei -, a fiscalização do cumprimento dos seus preceitos restou

dificultada, pois os proprietários fabris estabeleceram o mecanismo

do sistema de turnos. Assim, esclarece Vigário (2004, p. 71), “as

crianças e os jovens eram obrigados a trabalhar em vários turnos,

pelo que os inspetores não se poderiam certificar do seu horário

laboral”. Por outro lado, muitos proprietários, insatisfeitos, reagiram

demitindo em massa as crianças ou, simplesmente, recorrendo à

fraude, que generalizou-se de inúmeras maneiras, facilitada pela

ausência de obrigatoriedade de registros de nascimento131, o

sistema de turnos, cooptação de médicos e fiscais e, inclusive, pelo

valor irrelevante das multas que caberiam aos proprietários em

caso de descumprimento da lei. Os parcos resultados concretos

dos dispositivos legais forçavam os trabalhadores ao exercício

permanente da agitação, na luta por melhores condições de

trabalho. Em 1844, nova legislação reduz para oito anos a idade

mínima para o trabalho fabril; limita a seis horas e meia ou sete

horas a jornada diária das crianças com idade entre oito e treze

anos; estabelece a proibição, para menores de treze anos, de

jornadas com mais de sete horas sucessivas ou dez horas em dias

alternados; e proíbe a ocupação de crianças na limpeza das

máquinas em movimento.

Entrementes, as associações operárias continuavam a

agitação para a criação de uma Ten Hours Bill para todos os

operários. Porém, diante da hostilidade dos proprietários fabris, os

reformadores adotaram, no Parlamento, a tática de restringir suas

exigências aos dispositivos que beneficiavam, além das mulheres,

130 A lei previa um período de transição de 2 anos e meio para a implantação deste dispositivo, de

modo que, inicialmente, a restrição limitava-se às crianças de 9 a 11 anos.

131 Somente em 1837 passou a vigorar legislação pertinente ao registro de nascimento. Além do que,

sua obrigatoriedade dar-se-á apenas nos idos de 1870.

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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

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os jovens com menos de 18 anos. Por esta razão, a Lei de 1847 – a

Lei das Dez Horas – limitou para 10 horas diárias a jornada de

trabalho das mulheres e dos jovens operários. Não obstante, o

funcionamento das máquinas por 15 horas seguidas, bem como o

sistema de turnos, tornava difícil a fiscalização e, logo, o

cumprimento desse dispositivo legal.

Em 1850 aprova-se nova lei, cuja relevância reside no fato

de que, ao estipular as horas de início e término da jornada de

trabalho das mulheres, crianças e jovens – das seis às dezoito horas,

ou das sete às 19 horas – repercute, indiretamente, na jornada dos

trabalhadores homens, adultos, uma vez que era oneroso para o

proprietário fabril manter as máquinas em funcionamento nos

demais horários somente com a mão-de-obra masculina. Assim, os

homens acabaram se beneficiando de uma jornada de dez horas,

que não encontrava, ainda, previsão legal para eles.

Uma lei de 1874 elevou para dez anos a idade mínima para

o trabalho. Em 1891, a idade foi ampliada para onze anos; em 1901

para doze anos e, finalmente, em 1920, para catorze anos.

Ampliando as restrições ao emprego de crianças, a Lei de 1878132

estabeleceu três condições para o ingresso no trabalho: idade

adequada, educação suficiente e aptidão física. Essas condições

deveriam ser comprovadas por atestados médico e escolar. A lei

também ampliou a segurança em relação à limpeza das

máquinas, proibindo agora que crianças limpassem também as

partes fixas do maquinário em movimento.

A pressão popular, com o eventual apoio de setores do

capitalismo emergente, preocupados tanto com a reprodução do

exército de reserva - com um contingente de trabalhadores

suficiente para pressionar para baixo salários e garantir a

substituição contínua de mão de obra - como com um possível

adensamento das revoltas proletárias, logrou arrancar alguns

dispositivos protetivos que obrigaram a sociedade a debruçar-se

sobre a questão das diferenças entre crianças e jovens, em relação

aos homens adultos. A exploração da força de trabalho, sob o

ritmo e a intensidade da maquinaria impõe um debate cujo

conteúdo é notadamente original: a relação entre as condições e

132 De 1850 a 1878, outras leis fabris foram promulgadas pelo Parlamento da Inglaterra: Leis de 1856,

de 1864, de 1867, de 1871. Essas leis estipularam, entre outros dispositivos, condições de higiene e

segurança do trabalho, extensão dos direitos para trabalhadores de outras indústrias, além das têxteis, e para as oficinas; regulamentação das funções de fiscalização, etc. Entretanto, para os objetivos deste

trabalho, entendeu-se desnecessário comentá-las.

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limites da intensificação da exploração da força de trabalho e “as

idades da vida”.

Incorporado à legislação, o marco etário com que se

simbolizam aqueles limites passa a ser tomado pela coisa

simbolizada. A partir daí, a legislação passa a definir crianças,

adolescentes e adultos com referência em mero critério etário e

desta forma, ao mesmo tempo em que naturalizam-se “idades da

vida”, oculta-se que a definição dessas idades se impõe pelo

caráter destrutivo que o trabalho assume sob as relações

capitalistas de produção, aviltando mesmo as mínimas condições

de preservação física e psíquica das crianças e jovens. A luta

proletária pela legislação fabril constitui, assim, um componente

fundamental da construção das categorias criança e adolescente

nos marcos da modernidade, ao exigir que a sociedade, nos

embates travados pela redução da jornada de trabalho, se

obrigasse a definir limites para a imposição de condições

excessivamente deletérias aos trabalhadores, de modo a garantir,

ao menos, a recomposição do exército de reserva. Encontrou-se tal

garantia preservando-se minimamente os brotos da vida.

Quando adultos, e em condições de cumprir uma de suas

funções sob o capital - gerar a prole para renovar a força de

trabalho – serão novamente expostos a níveis sempre crescentes

de intensificação do ritmo de exploração do trabalho, a menos

que, para além de uma definição jurídica das fases da vida, se

construa uma nova fase para a vida de toda a humanidade.

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ESTA OBRA FOI IMPRESSA PELA

IMPRENSA DA UFPR

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