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26 Física na Escola, v. 10, n. 1, 2009Será o Cruzeiro do Sul uma cruz?

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Olhar para o céu, nos dias atuais,parece não ser uma prática tãocomum como foi em outras épo-

cas de nossa civilização. Foi a partir dasobservações do céu que o ser humanoencontrou as primeiras formas de regis-trar a passagem do tempo, e soube deter-minar, por exemplo,quando certa épocado ano se aproxi-mava ou estava ter-minando. Isso lhefacilitava prever pe-ríodos de cheia dosrios, do plantio e dacolheita.

Na época dasgrandes navegações, o céu era tambémuma das ferramentas que auxiliava osnavegantes a se guiarem pelos mares. Apartir dele se obtinham informações combase em desenhos imaginários que o ho-mem inventara, como é o caso daquelesque representam as constelações. Tal prá-tica ganhou força à medida que a obser-vação atenta levou o ser humano a con-cluir que as estrelas não mudam suasposições relativas, formando configura-ções inalteráveis no decorrer do tempo.Desde os Persas e Babilônios (3.000 a.C.)que se tem registro de mapas celestes deconstelações ainda visíveis nos dias atuais,o que revela que muito pouco ou quasenada se alterou na configuração das estre-las de lá para cá.

Isso não quer dizer que a posição dasestrelas seja infinitamente imutável notempo e a aparência da constelação nuncamude. Estes astros possuem um ciclo devida próprio, com um tempo limitado deexistência, e durante sua ‘vida’ possuemum movimento muito lento no céu,muitas vezes imperceptível no curso deuma vida humana. No entanto, quandoconsideramos um período de centenas oumilhares de anos, a morte ou nascimentode novas estrelas e o movimento delas po-

Marcos Daniel LonghiniFaculdade de Educação, UniversidadeFederal de Uberlândia, Uberlândia,MG, BrasilE-mail: [email protected]

dem acarretar uma modificação no dese-nho das constelações. A título de exemplo,a Estrela de Barnard, da constelação deOfiúco, possui um movimento da ordemde 10,3” por ano, algo relativamenteconsiderável para tais astros, chamadosde estrelas fixas.

Mas, uma vezolhando para o céu es-trelado, que elementosdeterminam a figuraque dará nome a umaconstelação? Primeiro,é preciso que entenda-mos que as conste-lações são agrupamen-tos aparentes de estre-

las, os quais as diferentes culturas, nodecorrer de distintas épocas, imaginaramformar as mais diversas figuras, tais co-mo, pessoas, animais ou objetos.

Assim sendo, não é correto afirmar-mos que o nome de uma constelação reve-la de forma absoluta o objeto, pessoa ouanimal que lhe atribuíram. São denomi-

Figura 1 - Representação da constelaçãoda Bandeira de estrelas, dos povos Aima-ras, a partir de estrelas de duas constela-ções por nós conhecidas: Pégasus e Andrô-meda [1, p. 55].

Desde os Persas e Babilônios(3.000 a.C.) que se tem registro

de mapas celestes deconstelações ainda visíveis nosdias atuais, o que revela que

muito pouco ou quase nada sealterou na configuração das

estrelas de lá para cá

Este texto traz algumas discussões sobre o queé uma constelação, procurando romper com aideia de que se trata de um “conjunto de estre-las”. Para isso, apresenta uma proposta deatividade de ensino na qual as cinco principaisestrelas da constelação do Cruzeiro do Sul sãorepresentadas por LEDs e inseridas em umacaixa. A montagem propicia um “novo olhar”sobre essa constelação, compreendendo o fatode não se tratar de um agrupamento de estrelaslocalizadas próximas entre si.

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nações arbitrárias que expressam elemen-tos da cultura e do momento vivido poraqueles povos que enxergaram nas estre-las determinadas figuras e lhes deram sig-nificado. Panzera (2003) nos traz o exem-plo dos Aimaras, povos da civilização pré-colombiana, que há 500 anos possuíamsua Astronomia própria. Para eles, haviauma constelação que era chamada de Ban-deira de estrelas, um símbolo muito usa-do em suas festividades, e que na verda-de, é uma figura formada a partir de es-trelas que para nós fazem parte de outrasconstelações: Pégasus e Andrômeda.

Tal informação nos revela que o de-senho que observamos no céu depende dacultura local ou do período em questão.Na Antiguidade, por exemplo, são muitasas constelações associadas a seres mitoló-gicos, ao passo que no período das nave-gações, as novas constelações ‘inventadas’receberam nomes de instrumentosimportantes naquela época, como a bús-sola, o telescópio ou o sextante.

Uma vez ‘criada’ a constelação, sãoexpressivas as histórias associadas a elas,principalmente as da Antiguidade: o Co-cheiro, por exemplo, representa um pas-tor de ovelhas, sendo que a estrela Capelaé uma de suas cabras; Órion é o caçadorque vem acompanha-do de seus cães, o CãoMaior e o Cão Menor,ambas constelações;Sagitário é represen-tada pela figura mito-lógica do centauroalado com um arcoesticado e uma flechadirigida ao Escorpião,uma outra constelação.

Apesar de nos dias atuais dispormosde diversos recursos para registrar a pas-sagem do tempo ou caracterizarmos umadeterminada época, as constelações aindacontinuam a marcar determinados even-tos. Escorpião, por exemplo, que para nósdo Hemisfério Sul é visível durante todasas noites de junho, marca a ocorrência doinverno neste hemisfério. Por outro lado,neste mesmo período, outras constelaçõesnão são visíveis durante toda a noite nocéu. Órion, por exemplo, é a nossa cons-telação típica de verão, já que é visível,em dezembro, no decorrer de toda a noite.

As constelações na atualidade

As constelações começaram a sercatalogadas em tempos remotos, comCláudio Ptlomeu, no seu livro Almagesto(150 d.C.), mas de grande importância foio trabalho de Johann Bayer, astrônomoalemão, que escreveu o Uranometria, em1603, praticamente o primeiro atlas celes-

te que se tem notícia. Muitas constelaçõesforam sendo anexadas aos poucos e o nú-mero delas aumentou, principalmente, noperíodo das navegações, devido ao maiorconhecimento do Hemisfério Sul, que, atéentão, era limitado.

Segundo Oliveira Filho e Saraiva [2],em 1929, a União Astronômica Interna-cional adotou 88 constelações oficiais, demodo que cada uma das cerca de 1000 a1500 estrelas que podemos ver no céu emuma noite escura pertence a determinadaconstelação. Vale ressaltar que metade de-las está no Hemisfério Sul e, a outra parte,no Norte. Essa divisão foi feita por meiode demarcações imaginárias na esferaceleste, como os estados que dividem umanação.

As estrelas se encontram a enormesdistâncias de nós, exceto o Sol, que com-parado às demais, está relativamente pró-ximo. A título de comparação, o Sol estáa aproximadamente 8 minutos-luz denós, ou seja, a luz leva em torno de oitominutos para partir do nosso astro-rei echegar até nós, e isso a uma velocidade de300.000 km/s. Exceto o Sol, nossa estrelavizinha é a Próxima do Centauro, que estáa 4,3 anos-luz; mas a estrela Rigel, porexemplo, a mais brilhante da constelação

de Órion, está a 900anos-luz de nós, umamedida inalcançávelpara o ser humano.

No entanto,quando olhamos paraa constelação deÓrion, por exemplo,podemos afirmar queas estrelas que a cons-

tituem, inclusive, Rigel, encontram-sepróximas entre si? Ou ainda, tudo maisque pudermos observar em uma constela-ção, como aglomerados, nebulosas ougaláxias, encontra-se formando um con-junto, constituindo, portanto, a conste-lação?

É isso que iremos abordar neste texto,utilizando para tal, uma montagem querepresenta, em escala, as diferentes dis-tâncias que as estrelas de uma constelaçãose encontram de nós e, por consequência,entre elas próprias. Tomaremos comoexemplo para essa atividade uma cons-telação muito conhecida, presente atémesmo em nossa bandeira nacional: oCruzeiro do Sul.

O Cruzeiro do Sul

O Cruzeiro do Sul ou Crux é a menordas constelações, e é relativamente fácilde ser encontrada no céu devido ao seuformato se aproximar bastante ao de umacruz. Segundo Faria [3], as informaçõesdisponíveis indicam que ela foi criada em1673 pelo navegador francês AugustinRoyer e ainda em nossos dias ela é muitoempregada para localização dos pontoscardeais. No entanto, Mourão [4] afirmaque data de 1500 o documento mais anti-go no qual se menciona o nome Crux:uma carta que Mestre João, pertencenteà Comitiva de D. Pedro Álvares Cabral,escreveu ao rei de Portugal.

O Cruzeiro do Sul é, aparentemente,constituído por cinco estrelas, mas outrosastros estão localizados na região

Figura 2 - Representação da constelaçãodo Cruzeiro do Sul, localizada próxima ado Centauro (adaptada da Ref. [5, p. 39]).

Figura 3 - Representação das diferentes distâncias das principais estrelas que compõema constelação do Cruzeiro do Sul (adaptada da Ref. [5, p. 17]).

Em 1929 a União AstronômicaInternacional adotou 88

constelações oficiais, de modoque cada uma das cerca de1000 a 1500 estrelas que

podemos ver no céu em umanoite escura pertence a

determinada constelação

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delimitada por esta constelação. De-pendendo das condições de luminosidadedo local onde se fizer a observação ou atémesmo do instrumento utilizado, muitasoutras estrelas podem ser vistas, ou atémesmo demais objetos celestes, como aCaixa de Jóias, um aglomerado de estrelasa 7700 anos-luz de distância, aproxi-madamente, ou o Saco de Carvão, umanebulosa escura.

Tomaremos para fins desta atividadesuas cinco estrelas mais significativas: amais reluzente é a que se encontra ao péda cruz, conhecida como Estrela de Maga-lhães (Alfa do Cruzeiro), em homenagemao navegador português Fernão de Ma-galhães. É, na verdade, uma estrela dupla.No topo da cruz está Rubídea (Gama doCruzeiro); na extremidade esquerda en-contra-se Mimosa (Beta do Cruzeiro); e àdireita, Pálida (Delta do Cruzeiro). Existeainda uma quinta estrela que não pertenceaos braços da cruz, conhecida por Intro-metida ou Intrusa (Épsilon do Cruzeiro).

Em relação a distância destas cincoestrelas da Terra, temos: Estrela de Maga-lhães ou Acrux (359 anos-luz); Mimosa(424 anos-luz); Rubídea ou Gacrux (88anos-luz); Pálida (257 anos-luz), eIntrometida (58 anos-luz) [4].

Isso revela que, apesar de elas perten-cerem à mesma constelação, estão a dis-tâncias significativas entre si. No entanto,por que aparentemente a observamos jun-tas, formando uma cruz? Este textomostrará, a partir de uma prática experi-mental, ser este apenas um efeito de pers-pectiva, e auxiliará a desmistificar a idéiade que as constelações são conjuntos deestrelas.

A montagem experimental

Para observamos o efeito em perspec-tiva causado pela nossa posição em relaçãoàs estrelas do Cruzeiro do Sul, confeccio-namos uma caixa de madeira, com umatampa deslizante, com as seguintes di-mensões: 70 cm de comprimento, 23 cmde largura e 22 cm de altura, a qual pas-sou a funcionar como uma câmara escu-ra. Em uma de suas faces fizemos um ori-fício de, aproximadamente, 0,5 cm de diâ-metro.

Em um primeiro momento, marca-mos, no fundo da caixa, as posições apro-ximadas das cinco estrelas citadas, consi-derando suas distâncias até nós, que nasituação, representamos pela posição daface com o orifício.

Em seguida, em cada uma destasmarcas, fixamos, com fita adesiva, hastesde arame de tamanhos distintos. Elas pos-sibilitaram marcar, na vertical, a posiçãode cada estrela. Assim sendo, temos: nahaste com 19 cm de altura, fixamos Rubí-dea; na de 16 cm, Mimosa; na de 11 cm,Pálida; na de 10 cm, Intrometida; e, porfim, na de 3 cm, a Estrela de Magalhães.Utilizando tais medidas, a cruz terá umainclinação para a direita, representando aconstelação em um determinado momen-to da noite.

De modo a verificar se cada hasteestava colocada na posição correta, ouseja, localizadas em pontos que, virtual-mente, a partir do orifício, pudéssemosobservar a figura de uma cruz, empre-gamos a seguinte estratégia: na extremi-dade superior de cada uma das cincohastes, prendemos pedaços de barbante,os quais passaram a funcionar como retas

imaginárias no espaço. Estes cinco bar-bantes foram amarrados em uma cruzfeita, também, de arame, pendurada emuma das extremidades da caixa. Cadaestrela foi ligada a uma ponta da cruz,obedecendo às suas respectivas posiçõesna constelação.

Na etapa seguinte, na extremidade decada haste fixamos um pequeno LEDamarelo, usando fita adesiva. Conectamosos cinco LEDs a uma bateria de 3 V, numcircuito, em paralelo, conforme esquemada Fig. 8. No mesmo circuito inserimosum pequeno interruptor para ligar e des-ligar as lâmpadas. As hastes, assim comoo interior da caixa, foram encapadas compapel camurça preto, de modo a tornar oambiente interno o mais escuro e o menosreflexivo possível.

Ao término da montagem, fechamosa caixa e observamos pelo orifício fron-tal. O que se vê é o desenho da constelaçãodo Cruzeiro do Sul num determinado mo-mento da noite. Alguns ajustes podem sernecessários nesta etapa, de modo que afigura se torne visível no campo visualpropiciado pelo orifício. Caso não seja pos-sível ver parte da cruz, deve-se ajustar a

Figura 4 - Dimensões da caixa utilizadana atividade experimental.

Figura 5 - Representação do fundo da caixa com as respectivas posições aproximadasdas principais estrelas da constelação, em relação à face direita com o orifício (distânciasproporcionais e em escala).

Figura 6 - Hastes de arame fixadas nas posições das estrelas conforme a Fig. 5 e combarbantes representando as linhas imaginárias que “as liga” a uma cruz.

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Bibliografia

[1] A.C. Panzera, Planetas e Estrelas: Um GuiaPrático de Carta Celeste (Editora UFMG,Belo Horizonte, 2003).

[2] K. Oliveira Filho e M.F.O. Saraiva, As-tronomia e Astrofísica (Editora Livrariada Física, São Paulo, 2004), 2ª ed.

[3] R.P. Faria, Fundamentos de Astronomia(Papirus, Campinas, 1987), 7ª ed.

[4] R.R.F. Mourão, Uranografia: Descrição doCéu (Francisca Alves, Rio de Janeiro,1989).

[4] A. Delerue, Rumo às Estrelas: Guia Práticopara Observação do Céu (Jorge ZaharEd., Rio de Janeiro, 2007), 4ª ed.

posição das hastes ou aumentar a diâ-metro do orifício.

Estando ajustadas as posições, aoolharmos pelo orifício, o que se percebe éque as estrelas, aqui representadas pelosLEDs, estão localizadas uma ao lado daoutra. No entanto, ao abrir a caixa, pode-se verificar as diferentes distâncias entreelas e o orifício.

É importante destacar que o propósitoda atividade não é discutir a relação entreo brilho aparente das cinco estrelas e a

Figura 7 - Vista frontal da caixa, onde semostra os barbantes partindo de cadaextremidade das hastes e chegando até acruz (destacada em branco, para melhoridentificação).

distância que elas se encontram de nós,apesar de resultar em uma análise interes-sante. Para tal, o uso de LEDs de tamanhosdistintos pode ser uma possibilidade e ficacomo sugestão para teste, talvez em umacaixa com dimensões maiores.

Comentários finais

A montagem, relativamente fácil deser construída, pode ser um recurso útilpara que os alunos compreendam que o

Figura 8 - Esquema representando a liga-ção dos LEDs (bolinhas) com a bateria einterruptor.

Figura 9 - Imagem da caixa e sua tampa com as faces internas revestidas com papelcamurça preto.

Figura 10 - Hastes revestidas com papelpreto e com LEDs nas extremidades supe-riores. Todos foram ligados a uma bateriade 3,0 V.

conceito de constelação é mais amplo doque o de um simples “agrupamento deestrelas”.

O professor, também, pode apro-veitar a ocasião para instigar os alunos apensarem, por exemplo, que demaisobjetos celestes poderiam ser colocadosna caixa, caso ela fosse mais comprida.Isso leva a compreender que em umaconstelação encontramos, até mesmo,galáxias que se localizam a milhões deanos-luz da Terra, logo, muito mais longedo que as estrelas.

Enfim, trata-se de uma prática quefavorece a visualização da constelação apartir de outros ângulos, o que nos fazperceber, inclusive, que as figuras que asdiversas culturas visualizaram são resul-tado de um mero efeito de perspectiva.Assim sendo, vale retomarmos o questio-namento inicial: será a constelação doCruzeiro do Sul uma cruz?

Será o Cruzeiro do Sul uma cruz?


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