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Luiz Guilherme Loureiro

Manual de

Direito NOTARIAL

2ª Edição

2017

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INTRODUÇÃO

O direito notarial. Instituição jurídica do notariado. Breve história do notariado. Tipos de notariado: o sistema latino.

Seção I. Noções de direito notarial

1. SIGNIFICADOS DA EXPRESSÃO “DIREITO NOTARIAL”

A expressão “direito notarial” possui dois significados diferentes. Tra-dicionalmente, nas faculdades de direito e na doutrina civilista em geral, o direito notarial é uma parte do direito privado que interessa particularmente aos profissionais do direito que compõem o notariado, englobando áreas como os direitos das obrigações, da família e das sucessões, entre outros campos. Entretanto, essa terminologia é discutível, já que as questões referentes a tais matérias também interessam aos demais operadores do direito e não só aos notários. Ademais, o notário intervém em outros domínios, como o direito administrativo (urbanismo, meio ambiente etc.), direito tributário, direito de empresas, direito imobiliário etc.

Contudo, o direito notarial também pode ser entendido, ainda, como o conjunto de regras jurídicas que se aplica aos notários no exercício de suas funções, aí compreendidas as atribuições certificadoras e legitimadoras, e também as normas que regulam as relações entre esses profissionais do direito e seus clientes.

Destarte, o advento de novas normas legais no campo do direito privado, os costumes herdados dos antigos notários do final da Idade Média e início da Idade Moderna e o desenvolvimento da doutrina e da jurisprudência tornam possível afirmar a existência de um direito notarial como uma classe específica e distinta da ciência jurídica.

De fato, desde o século XIII, com a escola dos notários glosadores de Bolonha, existem regras costumeiras, introduzidas no direito escrito por leis editadas após a Revolução Francesa e nas primeiras codificações, que tratam da função notarial e dos documentos lavrados pelos notários, especialmente a escritura pública. Já se falava, então, de uma arte ou ciência notarial, por influência da obra básica Summa

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artis notarie, de Rolandino Passaggeri, que, juntamente com Ranieri de Perugia e Salatiel de Bolonha, foi um dos expoentes da supracitada escola de Bolonha.

O desenvolvimento dessa ciência notarial resultou no surgimento de um direito com uma substância própria – e que, dentro da clássica distinção entre o direito público e o privado, pertence à esfera deste último –, ainda que seus preceitos sejam de caráter necessário e que os pressupostos e requisitos da função notarial, delineada pela fé pública que lhe é inerente, sejam de ordem pública.

A nosso ver, esses elementos, categorias e relações jurídicas conferem uma estrutura própria e autônoma ao direito notarial dentro do nosso ordenamento jurídico, mostrando o seu “ser” como uma espécie de direito preventivo, voltado à solução dos problemas cotidianos dos particulares e à tutela de seus direitos subjetivos mais fundamentais, como aqueles decorrentes das normas positivas que regem a família, os contratos, a propriedade e a sucessão.

2. AUTONOMIA DO DIREITO NOTARIAL

Para alguns autores clássicos, o direito notarial goza de certa autonomia. Para COLIN e CAPITANT, por exemplo, “as atribuições dos notários, suas obri-gações, sua responsabilidade são objeto de um conjunto de regras suficientemen-te importantes e especializadas para constituir um campo especial do direito”.1

Segundo outros autores, para que um conjunto de regras jurídicas possa ser considerado como um campo autônomo do direito, é preciso que elas tenham fontes particulares e um domínio próprio. O direito notarial brasileiro encontra sua fonte no art. 236 da Constituição e na Lei 8.935/1994, mas a definição e os efeitos do documento e negócios notariais têm sua sede no Código Civil e em outras leis esparsas (v.g. Lei 7.433/1985 sobre documentos a serem apresentados para a lavratura de escritura pública).

Cabe observar que a questão da autonomia do direito notarial possui um interesse prático limitado e sua importância é maior do ponto de vista acadêmico e didático. Por isso, observa-se em vários países o surgimento do direito notarial no âmbito das atividades acadêmicas e mesmo na doutrina, para fins de facilitação da pesquisa de temas que dizem respeito a essa importante atividade jurídica.

Com efeito, ainda que as regras e normas que formam o direito notarial possam ser de natureza civil, administrativa e processual, concorrem todas para um mesmo objeto, conferindo-lhe um caráter de unicidade e autonomia didática, expositiva e mesmo científica. Tais normas formam um conjunto sistemático de conceitos e preceitos que regulam a forma notarial, vale dizer, o instrumento público e a atividade documental do notário.

1 Citado por PILLEBOUT, Jean-François e AIGRE, Jean. Droit professionnel notarial. 9. ed. Paris: LexisNexis, 2012, p. 9.

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Esse conjunto ordenado e autônomo de regras jurídicas que tratam da forma jurídica, do instrumento público e da atividade do notário não se confunde com as normas relativas aos atos e negócios jurídicos realizados sob a intervenção desse jurista, que pertencem ao direito civil e ao direito empresarial. Uma coisa é o docu-mento notarial – o continente; outra diversa é o seu conteúdo – o negócio jurídico.

Por isso, NÚÑES-LAGOS classifica o “direito notarial puro” do “direito notarial aplicado”. O primeiro pode ser considerado um ramo autônomo, for-mado por preceitos que tratam da atividade notarial, isto é, sua intervenção válida no instrumento público, bem como os relativos à competência e aos requisitos para a atuação notarial. O direito notarial aplicado, por sua vez, é formado pelas regras de direito privado, utilizadas pelos notários na redação de contratos e negócios jurídicos.

Para aquele jurista, o direito notarial puro, para ser autônomo, desvincu-lado do direito civil, deve chegar a ser o conjunto sistemático dos conceitos e preceitos que regulam o instrumento público e a atividade documental do notá-rio. Trata-se de uma ordem interna e autônoma de conceitos que disciplinam a formação dos documentos notariais e, por isso, constitui um direito constituído por normas adjetivas. Tal como o direito processual, que encontrou o seu objeto no processo e se emancipou do Direito substantivo na segunda metade do século XIX, também o direito notarial, para ser considerado autônomo, pode e deve encontrar o seu no instrumento.2

A tese da autonomia científica do direito notarial foi defendida no III Congresso do Notariado Latino (Paris, 1954), no qual foi definido o conjunto de disposições legislativas, regulamentárias, usos, decisões jurisprudenciais e doutrinas que regem a função notarial e o instrumento público notarial. O objeto desse ramo do Direito, portanto, engloba o documento notarial (forma jurídica) e o seu autor, o notário ou tabelião.

Também os mais destacados autores defendem a autonomia desse sistema de normas, costumes, jurisprudência e doutrina. Como vimos acima, NÚÑES--LAGOS defende a existência de um “direito notarial puro”, que sistematiza o aspecto formal dos instrumentos públicos notariais e que é independente da substância do ato ou negócio jurídico instrumentado. Ao distinguir o negócio jurídico do seu instrumento, o autor espanhol deixa para o negócio os aspectos disciplinados pelos direitos civil e empresarial e resgata para o instrumento os postulados do direito notarial puro. Ademais, afirma que, contíguo a este, existe um “direito notarial aplicado”, uma vez que, na realização do instrumento, o notário deve mesclar inexoravelmente direito formal e direito substantivo.3

2 NUÑES-LAGOS, Rafael. “Los esquemas conceptuales del instrumento publico”, Revista de Derecho Notarial Mexicano, n. 101. México, 1990, pp. 93 e ss.

3 Idem, ibidem, p. 12.

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De acordo com essa ótica, o Direito notarial tem um duplo objeto. O direito notarial puro preocupa-se com o estudo dos conceitos típicos formais do instrumento, da atividade notarial em si e do encadeamento funcional de ambos. Já o direito notarial aplicado tem por objeto o ordenamento concreto dos direitos substantivos desde o ponto de vista notarial, com a finalidade de conferir ao documento no qual intervém o notário a certeza, validade e eficácia indispensáveis para a segurança do tráfico jurídico e econômico.

Por isso, autores como MARTINEZ SEGOVIA entendem que o direito notarial, assim considerado como o sistema de normas que regula a atividade do notário, tem um conteúdo próprio no plano docente e tende a formar um ramo autônomo do Direito.4 De acordo com tal opinião, trata-se de uma disciplina jurídica autônoma cujo conteúdo é sistematizado cientificamente por princí-pios e regras que tratam da forma pública na qual intervém o notário para dar existência válida aos atos e negócios jurídicos desejados pelos particulares. Sua natureza é de direito adjetivo, uma vez que é formado por princípios e regras que tratam da aplicação do direito de fundo ou substantivo (notadamente o direito civil e empresarial).

3. NATUREZA DO DIREITO NOTARIAL

O direito notarial está situado dentro do direito das formas e, entre elas, no das formas escritas, documentais, em que se exige a intervenção de um agente dotado de fé pública: o notário ou tabelião. Conforme ensinam ETCHEGA-RAY e CAPURRO: “A forma, que em outros ramos do direito se estuda como ingrediente constitutivo que acompanha o ato, no direito notarial é objeto direto do estudo científico, tomando-se as formas notariais como instrumento que necessariamente deve ser cumprido para obter-se, como resultado final, a forma juridicamente exigida”.5

Destarte, o direito notarial tem caráter instrumental ou formal, já que ele impõe a solenidade da forma para a validade e eficácia de determinados atos e negócios jurídicos, sobretudo aqueles que têm por objeto as relações jurídicas imobiliárias, entre outras exceções ao princípio contratual da liberdade das formas. Determinados atos e contratos, por sua relevância social e econômica, somente são considerados válidos mediante a intervenção do notário, a quem cabe dar forma jurídica à vontade das partes. Tais formas solenes são estabele-cidas pelo legislador e de observância obrigatória, uma vez que correspondem à ordem pública e não são, como em outras esferas, necessárias apenas como instrumento de provas ou meio de garantia a revestir a declaração de vontade:

4 MARTINEZ SEGOVIA, F. Función notarial. Buenos Aires: EJEA, 1961, p. 22.5 ETCHEGARAY, Natalio Pedro e CAPURRO, Vanina Leite (Coord.). Derecho notarial aplicado – función notarial,

vol. 1, p. 2. Buenos Aires: Astrea, 2011.

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o documento notarial é a encarnação ou corpo necessário para a viabilidade legal dos negócios jurídicos solenes.

Vale dizer, mediante o labor do notário, que se dá com a observância das regras legais e demais fontes do direito, a relação jurídica material se converte em uma relação jurídica distinta, de natureza formal, criada em função da ne-cessidade de conferir validade e eficácia a certos negócios jurídicos, bem como aferir autenticidade, legitimidade e conservação a fatos jurídicos, tudo em prol da garantia de maior segurança do tráfico de bens e dos direitos pessoais e patrimoniais das pessoas.

Podemos afirmar, assim, que esse ramo do direito tem por objetivo o de-senvolvimento normal e sadio das relações jurídicas, mediante regras, princípios e instituições que tendem a evitar sua situação anormal, patológica ou duvidosa, que poderia levar as partes a conflitos e diferenças na defesa das pretensões resultantes de ditas relações.

O desenvolvimento do direito notarial, como ramo científico e pedagógico – com autonomia em relação aos demais ramos do Direito –, visa o aperfeiçoa-mento de um sistema de proteção e amparo dos direitos privados dos particu-lares e, ao mesmo tempo, a preservação da paz social, mediante a intervenção de um oficial público na administração de certos negócios privados e o uso de instrumentos como o documento notarial, a forma jurídica e a fé pública, entre outros. Com o desenvolvimento desse conjunto de regras e princípios, a maior dos países filiada à família de direito romano-germânico transformou a segurança no tráfico jurídico em um princípio de segurança do direito.

Ao contrário do direito processual, exemplo clássico de direito adjetivo, o direito notarial não visa a solução de diferenças ou regramento de litígios, mas sim evitar o surgimento de conflitos. Há clara distinção nas finalidades desses dois ramos de direito adjetivo que obviamente se reflete nas regras, nos princí-pios e nas instituições que lhe são próprios e conferem-lhe aspectos peculiares e singulares: o direito processual é um direito restaurador ou reparador que permite a aplicação das normas de direito substantivo a um determinado caso concreto; enquanto o segundo é preventivo e busca o estabelecimento da pre-sunção de certeza e validez dos atos e negócios jurídicos não apenas em relação aos demais particulares, mas também em face do Estado.

4. CONCEITO DE DIREITO NOTARIAL

De acordo com essas características e com base na lição da doutrina, po-demos definir o direito notarial como o conjunto de normas e princípios que regulam a função do notário, a organização do notariado e os documentos ou instrumentos redigidos por esse profissional do direito que, a título privado, exerce uma função pública por delegação do Estado.

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A consideração do direito notarial como um ramo específico e autônomo do Direito é sumamente importante para a exata compreensão de conceitos que são próprios às atividades e atribuições do notário, cujas características são diferenciadas daquelas desempenhadas por outros profissionais jurídicos públi-cos e privados, por mesclarem normas de direito público e de direito privado. E apenas a visão do direito notarial como seara autônoma do sistema jurídico propicia o necessário desenvolvimento científico e pedagógico desse conjunto de normas jurídicas e que permite a melhor compreensão e interpretação dos preceitos nele contidos.

Afinal, os “preceitos” que constituem o direito positivo, isto é, o direito posto pelo legislador, apenas podem ser bem compreendidos e aplicados a partir dos “conceitos” formulados pela dogmática ou pela ciência do direito.

Como afirma com percuciência NÚÑES-LAGOS, “os conceitos são o caminho do saber: por eles nos chega tudo”.6 Muitos conceitos são encontrados nos preceitos, mas outros conceitos notariais importantes não são formulados pelo legislador, embora estejam presentes em sua mente quando da edição da norma escrita ou decorram dos princípios que inspiram esse ramo do direito.

No direito notarial, os conceitos devem ser utilizados para cobrir a falta de preceitos expressos, o que deve ser feito com o uso das ferramentas da dogmática jurídica, como a interpretação sistemática, a aplicação dos princípios, o uso da lógica, a analogia, o recurso à jurisprudência, à doutrina e ao direito comparado, entre outras. Esse procedimento ou metodologia científica deve ser utilizado também na interpretação e aplicação das normas próprias de outros campos do Direito, mas destacamos sua importância no direito notarial brasileiro diante da legislação pátria relativamente recente e cuja compreensão e aplicação ainda suscitam diversas dúvidas que pretendemos analisar no presente trabalho.

Cumpre observar, finalmente, que a autonomia do direito notarial, aqui defendida, não significa alijamento ou mesmo isolamento desse campo ou ramo em relação ao ordenamento jurídico. O Direito é um todo, uno e indivisível e o direito notarial não só deve estar forçosamente relacionado com os demais “direitos”, como efetivamente possui íntima vinculação com estes, notadamente o direito civil, o direito empresarial e, em determinados aspectos da função notarial, com o direito administrativo.

Autonomia, portanto, não se confunde com total independência do direito notarial em relação ao restante do ordenamento jurídico. Ao predicarmos a autono-mia do direito notarial, cuja tese é defendida pela doutrina mais autorizada, preten-demos afirmar que a função, a atividade, as atribuições e os documentos notariais possuem um regime jurídico próprio, de forma que a aplicação pura e simples de

6 Ob. cit., p. 14.

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conceitos e concepções próprias de outros campos do Direito pode desvirtuar o alcance e a finalidade objetivada com a adoção desse sistema normativo especial.

A falta de normas expressas nas leis notariais deve ser suprida com base nos conceitos científicos que decorrem dos princípios, institutos, costumes e demais fontes desse ramo do Direito, justamente em face da sua reconhecida autonomia e ainda por decorrência do previsto nos arts. 4º e 5º da Lei de Intro-dução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei 4.657/1942).

Em suma, o direito notarial é um ramo da ciência do direito que evolui como os demais. A edição frequente de novas leis, o desenvolvimento de uma jurisprudência e doutrina especializada e o surgimento de institutos, academias e instituições de estudo e ensino de direito notarial em nosso país confirma essa realidade.7 Trata-se de um direito adjetivo e que tem por conteúdo imediato a atividade própria do notário e a deste profissional do direito em conjunto com as partes na formação do documento notarial, uma das espécies de documento público. Seus elementos concretos são a legislação notarial ou “direito objetivo notarial”, a função pública notarial e o documento ou instrumento notarial.

Seção II. O notariado como instituição jurídica

Independentemente da visão do direito notarial como um ramo autônomo do Direito, não se pode negar que os notários integram uma instituição jurídica e, como tal, é regulada por uma variedade de normas pertencentes aos direitos público e privado, que formam um microssistema dentro do âmbito maior do sistema jurídico. O Direito constitui um sistema de regras unitário e completo, isto é, suas regras não são normas dispersas independentes umas das outras, mas sim compõem um corpo hierarquizado.

A organização jurídica de um fenômeno social, como é o caso do notariado, traduz-se por um estatuto que lhe fixa as condições de existência, a composição e o funcionamento. As normas que regulamentam o regime jurídico do notário, por exemplo, estão previstas na Lei 8.935/1994. No entanto, outras regras sobre as finalidades e responsabilidades dos notários, sobre o seu modo de atuação e sobre os instrumentos notariais são encontradas em inúmeras leis especiais e também no Código Civil e no Código de Processo Civil.

Essas regras são, pois, articuladas, formam encadeamentos lógicos e materiais e uma hierarquia cuja chave é fornecida pela finalidade da institui-ção notarial e pelo grau de proximidade entre meio e fim, sendo o meio mais

7 Em vários países, existem periódicos específicos sobre o direito notarial e, inclusive, códigos notariais que compilam leis especiais, doutrina e jurisprudência de acordo com temas indispensáveis ao exercício da função notarial e que facilitam a pesquisa e a atuação prática profissional.

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distante subordinado ao meio mais próximo e assim por diante. A relação da vida, assim traduzida em forma jurídica, pode estar, por sua vez, numa relação de dependência com outra relação com a qual é conexa. Essas diversas relações, embora possam ser objeto de um exame separado, formam grandes unidades sistemáticas: as instituições jurídicas que representam “a ossatura do Direito à qual se une a substância inteira composta das regras do direito”.8

Por sua vez, as instituições jurídicas se coordenam para formar o Direito, de modo que apenas o conceito de instituição jurídica permite absorver, em um mesmo complexo jurídico, as múltiplas facetas de um fenômeno social, portanto conhecê-lo bem.9 O recurso à instituição possibilita reunir em torno de uma mesma finalidade regras dispersas nos vários campos dos direitos público e privado, de tal modo que torna mais fácil a compreensão das múltiplas facetas de um fenômeno social apreendido pelo direito.

Destarte, a noção do notariado como instituição é de suma importância para a correta compreensão da função e dos instrumentos notariais, assim como para a interpretação adequada das regras que compõem esse corpo jurídico perfeitamente delimitado, não obstante suas regras possam estar dispersas em leis de direito privado e de direito público.

Daí a relevância prática da análise do notariado como uma instituição jurídica, criada de modo espontâneo para fazer frente a necessidades específicas dos indivíduos e da sociedade. Torna-se possível descobrir o “porquê”, a razão de ser do direito positivo que rege essa realidade social e, consequentemente, interpretar corretamente o espírito dos textos normativos, levando-se em conta a evolução da instituição em tela.

Em outras palavras, a sistematização das regras no seio das instituições jurídicas permite suprir eventuais lacunas e contradições entre as diversas regras que as compõem e fornece ao intérprete elementos para uma interpretação que não desnature a unidade de um corpo social e jurídico.

1. AS INSTITUIÇÕES JURÍDICAS

De acordo com a doutrina, as instituições jurídicas são “conjuntos de re-gras de direito organizadas em torno de uma ideia central, que forma um todo sistematicamente ordenado e permanente”.10 Em outras palavras, trata-se de conjuntos orgânicos e sistemáticos de regras de direito que regem, de acordo com uma finalidade comum, uma manifestação permanente e abstrata da vida social, tais como a família, o Estado, a associação, o casamento e também o notariado.

8 IHERING, O espírito do direito romano, cit. p. ROUBIER. Théorie Générale du Droit, n. 3.9 BERGEL, Jean-Louis. Teoria geral do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 232.10 Brethe de Gressaye, Rep. Civ., Dalloz, v. “institution”; apud Bergel. Teoria geral do direito, p. 229 e ss.

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INTRODUÇÃO 35

A teoria da instituição foi desenvolvida por HARIOU. Para este autor, as instituições são elementos da organização social e podem ser divididas em dois grupos: as “instituições vivas”, que são pessoas jurídicas ou entes assemelhados, e as “instituições inertes”, pertencentes à categoria das coisas. As primeiras têm uma autonomia interna que lhes permite perseguir por si mesmas seus objetivos e suas funções, ao passo que as instituições-coisas não possuem essa autonomia.

De acordo com essa teoria, o notariado constitui uma instituição viva, já que a atividade de seus membros (notários) tem em vista um objetivo restrito e especializado: a garantia da segurança jurídica de modo preventivo. Para a con-secução de tal fim, os notários possuem um regime jurídico próprio e dispõem de meios e instrumentos adequados, previstos não apenas na Lei 8.935/1994 (Lei dos Notários e Registradores – LNR) e em outras leis especiais, como também no Código Civil e no Código de Processo Civil.

As instituições de conteúdo jurídico envolvem elementos subjetivos (ex.: os notários e as pessoas físicas e jurídicas que formam sua clientela ou de qual-quer forma se relacionam à função notarial), objetivos (instrumentos jurídicos/notariais) e categorias jurídicas, isto é, as qualidades próprias que conferem identidade à instituição de acordo com a sua funcionalidade. As categorias são as ideias e atributos que definem a existência das instituições de acordo com o papel funcional que lhes é definido por lei e, desse modo, influenciam a confi-guração e a estrutura dessas instituições.

No tópico seguinte, veremos que o instituto do notariado é configurado por uma estrutura apta a garantir a segurança jurídica dos negócios dos par-ticulares e a prevenção de conflitos, o que é possível mediante os atributos do profissionalismo jurídico, da neutralidade e da imparcialidade dos notários, bem como os da legalidade, da autenticidade, da veracidade, da mobilidade e da executividade dos documentos notariais.

2. A INSTITUIÇÃO DO NOTARIADO

O notariado é uma instituição criada pelo costume, em virtude de uma ne-cessidade social básica de segurança jurídica. Como veremos oportunamente, o notário surgiu na Idade Média para suprir uma necessidade básica dos indivíduos e da sociedade, consistente no acesso a bens indispensáveis para a subsistência pessoal e familiar, tais como a propriedade e outros direitos reais imobiliários.

Destarte, o notário, tal como concebido atualmente, surgiu espontanea-mente para fazer frente a necessidades básicas de segurança nos contratos e de tutela de direitos fundamentais da pessoa humana: trata-se de uma criação social e não de uma ficção legal. As primeiras leis de regulamentação da ativi-dade notarial surgiram mais recentemente e tiveram por base usos e costumes já consolidados há séculos.

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A lei vigente mais antiga sobre o notariado é a Lei Francesa de “25 ventose du An XI da Revolução” (1803), que serviu de modelo às outras leis nacionais sobre o notariado latino. Hoje, o notário do tipo latino está espalhado por 120 países, abarcando cerca de dois terços da população e mais de 60% do PIB mundial.

Tal como ocorre com os demais países filiados à família jurídica do direito continental (civil law), o Brasil adota o modelo do notariado do tipo latino: o notário, além de profissional especializado do direito, é um agente ao qual o Estado delega a fé pública (art. 236 da CF). Cumpre-lhe velar pela segurança, autenticidade, validade e eficácia dos fatos, atos e negócios jurídicos (art. 236 da CF e art. 1º da Lei 8.935/1994). Sua organização, funcionamento e instrumentos são disciplinados pela Lei 8.935/1994 e por uma multiplicidade de regras de direito privado e de direito público.

Uma instituição jurídica é, por definição, perene face à relevância de sua finalidade para o corpo social e adequação de seu regime jurídico para a sua consecução. No caso do notariado, sua existência milenar (ou multissecular, no caso do notário brasileiro) é explicada pela relevância de seus objetivos, que se confundem com os próprios fins do ordenamento jurídico.

Com efeito, para o estabelecimento das regras jurídicas, o direito apreende determinados valores sociais para que possa realizar seus fins últimos, a saber, o estabelecimento de uma ordem social harmoniosa e a prevenção ou solução de diferenças entre os homens. Como se depreende da análise do conteúdo e do fundamento das normas jurídicas, esses valores são a segurança jurídica, a justiça e o progresso social. A segurança jurídica constitui a base fundamental sobre a qual foi construído todo o edifício do direito. A justiça foi introduzida em seguida, para uma melhor acomodação das relações humanas. E, por fim, o progresso social forneceu as bases novas ao desenvolvimento das sociedades mais evoluídas.11

A segurança jurídica constitui, em primeiro plano, o fim perseguido pela instituição do notariado. Esse valor, que se mostrou a razão da existência do notariado, é uma necessidade em qualquer sociedade e em qualquer época. O progresso econômico, o advento de novas tecnologias, a crescente interação en-tre as ordens jurídicas nacionais e internacional, entre outros fatores, implicam novas necessidades e demandas sociais que o direito não pode ignorar. De fato, a insegurança jurídica é uma marca do direito contemporâneo e uma de suas principais causas é a dificuldade de conhecer a lei aplicável.

Assim, ao estabelecer a intervenção do notário nos atos e contratos mais importantes celebrados pelos particulares, a lei institui um mecanismo de

11 ROUBIER, Paul. Théorie Générale du Droit. Paris: Sirey, 1946, p. 268 e ss.


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