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“Livre Pouso”
Aventuras e desventuras de um
controlador de voo
Luís Aquino
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O autor
Luís Honório Rodrigues Aquino é Sub Oficial da reserva da Força AéreaBrasileira. Nasceu em Bagé no Rio Grande do Sul. Ingressou na FAB em
janeiro de 1974, serviu com soldado de 2ª e 1ª classe no antigo QG da VZona Aérea (hoje V Comando Aéreo Regional). Fez o Curso de Formaçãode Cabos em 1975 no então Núcleo de Base Aérea de Belo Horizonte,tendo-se formado na especialidade de Sistemas Hidráulicos. Serviu naEscola de Oficiais Especialistas e de Infantaria de Guarda em Curitiba denovembro de 1975 a junho de 1976 de onde foi fazer o Curso deFormação de Sargentos na Escola de Especialistas de Aeronáutica.Graduou-se 3º sargento em julho de 1978 na especialidade de Controlador de Vôo.
Trabalhou nas torres de controle de Curitiba, Bacacheri, Foz do Iguaçu,Londrina, Porto Velho, Porto Alegre e Rio Branco. É habilitado comocontrolador de Torre de Controle e Controle de AproximaçãoConvencional, operador de sala de informações aeronáuticas, supervisor de órgãos de serviços de tráfego aéreo, instrutor de fraseologia inglesapara controladores de tráfego aéreo, operador de VHF/DF Recalada.Possui o curso de aperfeiçoamento de sargentos e o curso de fraseologiade tráfego aéreo em língua espanhola.
Foi para a reserva remunerada em 1998. Formou-se na UniversidadeFederal de Rondônia no curso de letras/inglês em 2002, tem curso de pósgraduação em lingüística aplicada ao ensino de língua portuguesa, éprofessor concursado da rede estadual de ensino do Estado de Rondôniadesde 2002.
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Dedicatória
Aos meus companheiros controladores
de vôo por este Brasil de meu Deus.
Anjos da Guarda e companheiros invisíveis
dos aeronavegantes, que cada dia, cada hora, cada minuto
de cada vôo estão lá, calculando estimados,
prevendo conflitos e desviando rotas, sobrecarregados,
cansados.
Mas sempre alertas.
Muitas vezes acusados, criticados,
mas sempre fazendo o seu melhor
neste ofício onde o objeto
é um móvel que não pode encostar na
beira da estrada e cada erro é fatal...
Que Deus abençoe cada um de vocês
e lhes dê sabedoria e serenidade...
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Índice
Introdução 6
O começo 8
Primeiro sufoco 12
Outra da Fumaça 15
Era pro outro 18
Curitiba e Bacacheri 20
Perdido 23
Outro perdido 26
A meia milha de Londrina 29
O último salto 32
A controladora de vôo 35
Bulica 37
O “Coroa” explica o VOR 40
Para pousar, subiu... 42
Tô nem aí 44
Rota de colisão 46
Foi por medo de avião... 48
Buenas tardes Porto Velho 50
Pérolas da fraseologia padrão 52
O avião do presidente pousou na pista errada 55
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Um companheiro que desaparece... 57
“Usted es um asesino!” 59
Mais uma de rumos convergentes 62
O senhor vai ficar muito tempo por aqui? 64
Mais umas do Bulica 66
Conclusão 67
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INTRODUÇÃO
Dizem que um homem já pode morrer quando ele já plantou uma árvore, teve
um filho e escreveu um livro. É claro que eu não quero morrer, pelo menos
agora, mas creio que já realizei muita coisa na minha vida. Não posso dizer que
estou satisfeito, seria admitir que já fiz tudo que podia e queria, creio que a
satisfação é uma coisa que jamais se alcança pois do contrário não
progrediríamos. A curiosidade e o desejo de alcançar cada vez mais realizações,
essa eterna insatisfação é a mola, o motor da vida humana. Sou um cara para
quem as coisas andaram sempre num rumo progressivo, não nasci em berço de
ouro mas venho de uma família que buscou seus caminhos com confiança no
sucesso que Deus concede a quem luta para vencer.
Sou um idealista romântico e faço tudo com o carinho de quem quer o melhor
resultado. Ingressei bem cedo no mundo da leitura, o primeiro livro que li
chamava-se “Nas terras do rei Café”, era uma estória de alguns meninos que
passaram as férias em uma fazenda e viveram dias de,fantasia, medo e glória.
Encontrei aquele livro na prateleira da pequena biblioteca do SESC de Bagé,
minha cidade natal, gostei das figuras da capa e pedi a minha mãe que o
pegasse emprestado. Foi o começo de minha vida de aventuras, fantasias e
sonhos. Logo eu já tinha minha própria ficha de cadastro e toda semana era um
livro de Monteiro Lobato (li todos os infantis), depois veio Jules Verne e as
fantasias agora eram as máquinas aquáticas, voadoras e interplanetárias. Minha
paixão pelos aviões começou quando no meu primeiro aniversário ganhei um
aviãozinho vermelho de presente.
As pessoas que me conhecem costumam dizer que este meu modo detalhista,
disciplinado e disciplinador deve-se ao fato de eu ter sido militar, respondo
sempre que na verdade, eu escolhi e me dei bem na vida militar por causa
dessas características de minha personalidade. Costumo dizer que já nasci
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fardado, aos seis anos eu já era coroinha na igreja matriz de Nossa Senhora
Auxiliadora, fui Lobinho e depois Escoteiro, participei da Banda Marcial do
colégio estadual Dr. Carlos Kluwe (o uniforme era impecável), saí dos escoteiros
para servir na Força Aérea em Canoas, fui soldado de segunda, depois de
primeira classe, cabo, sargento e suboficial. Casei duas vezes e tive quatro
filhos, em cada lugar onde morei procurei adquirir uma casa própria, geralmente
com projeto e mão de obra meus. Minha última casa é uma bonita chacrinha que
eu, minha mulher e filhos literalmente fizemos. Desde roçar o terreno,
construção de uma casa de madeira e depois um sobrado de alvenaria,
plantamos todas as árvores que aqui existem. E esse era o ponto onde queria
chegar; já plantei árvores, muitas; tive filhos e agora me dispus a escrever este
livro que é um apanhado de minhas recordações durante estes vinte anos em
que fui controlador de voo.Optei por manter tanto quanto possível os mesmos termos usados nas
comunicações terra-ar para conservar a originalidade dos diálogos. As
explicações, quando necessárias estão no próprio texto e alguns termos técnicos
ou observações dignas de nota estão no rodapé da página.
Fui escrevendo sem me preocupar com a ordem cronológica dos
acontecimentos (exceto, é claro, a primeira aventura) fui escrevendo cada
capítulo com o acontecimento que brotava na minha lembrança quando sentava
para me divertir escrevendo.
Sem mais delongas vamos ao que interessa, embarque comigo, decolagem livre
e boa viagem.
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O começo...
- Mãe to indo lá no Glória,vai ter uma apresentação dos paraquedistas.
Era plena semana da asa e eu tinha sete para oito anos, ouvira falar que no cine
Glória haveria uma apresentação de algo que eu imaginava seriam osparaquedistas. Saí de casa com aquela expectativa infantil e minha fantasia
aeronáutica que eu tinha desde nem sei quando, mas ao chegar no Glória que
era bem perto de casa, nada... ninguém nem para me dar uma explicação. Meio
sem destino rumei para a Praça de Esportes, que era outra referência de minha
infância, e, ao me aproximar de lá vejo uma intensa movimentação de pessoas e
carros. Caminhões do Exército paravam para embarque de pessoas e em
seguida partiam lotados, eu fui me chegando curioso e acabei encontrando um
amiguinho de escola que me disse que os paraquedistas e a Esquadrilha da
Fumaça iam se apresentar no aeroporto. O Exército estava transportando quem
quisesse assistir e sem pensar em mais nada pulamos para dentro de um
daqueles caminhões para a primeira aventura de minha vida. (Em 1963, e em
Bagé no RS, era impensável que um menino de oito anos incompletos pudesse
tomar uma atitude dessas.).
O vento no rosto, a sensação de liberdade, uma viagem de OITO
QUILÔMETROS, só aquele menino podia entender toda a emoção e excitaçãoe, francamente, é muito difícil descrever com palavras, de modo que vou deixar
para sua imaginação...
O aeroporto Cmte. Kraemer naquela época ainda não era pavimentado nem
tinha cercas de proteção, os aviões estavam todos estacionados no pátio e a
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gente podia chegar BEM PERTINHO!!! O dos PQD era uma beleza, um monstro
de dois motores radiais enormes, asa alta, empenagem borboleta, parecia uma
locomotiva alada. Não tinha porta, só a abertura que ficava na lateral da parte
traseira da fuselagem. Era cinzento com estrelas amarelo e verde nas asas. Os
da Esquadrilha da Fumaça eram os célebres NA T6 ( te-meia), a pintura era
branca com um raio estilizado em vermelho que ia do nariz até a cauda, a ponta
das asas e dos profundores eram vermelhas também e a parte inferior das
aeronaves era azul escuro com a sigla FAB bem grande em branco na parte
média inferior das asas. Os motores também eram radiais, do lado esquerdo
ficava o tubo de exaustão por onde também era expelida a fumaça branca.
Menino de casa (não de rua), solto no meio dessa maravilha toda, gente de
macacões de voo, capacetes, paraquedas nas costas, e conversando
COMIGO!!! No meio da multidão, a Dona Enedina; “Menino, a professora sabe
que tu estás aqui???” O susto logo passa e esqueço todas as preocupações
com as consequências na euforia de ver que os motores começam a troar seu
ruído ensurdecedor. Poeira, correria, todos procuram um melhor lugar para
aproveitar o espetáculo inusitado... e o coração a mil é só puro deslumbramento
e emoção.
Desde que vi o primeiro avião decolar, não sei quando, meu coração decola com
ele, voa com ele até onde a vista alcança. E naquele dia eles ficavam todotempo no meu campo de visão, o ronco dos motores era música no meu
coração.
O Vagão Voador dos PQD começou a tomar altitude voando em círculos bem de
vagar em torno do aeródromo e com os motores em potência máxima
(WOOOMMMM, WOOOMMMM), de repente ele quase para, reduz os motores e
uma porção de pontinhos parece que é despejada pela portinha, são os PQD.
Naquele tempo não se ouvia falar em salto livre e os paraquedas eram extraídos
da mochila por uma tira que ficava presa na aeronave de modo que a abertura
era quase imediata ao salto. Era uma beleza ver aqueles pontinhos se
transformarem em pequenos charutos que se inflavam e assumiam a forma de
um imenso guarda-chuva com um homenzinho pendurado nele. Iam descendo
lentamente e a gente podia vê-los aumentando e se aproximando do solo e da
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gente, vinham em grupos mas, por que os paraquedas não eram controláveis,
caiam espalhados e a gente corria para vê-los chegar ao chão bem de pertinho,
mais ou menos como os meninos correm para pegar uma pipa caindo.
Depois dos PQD foi a vez da Fumaça. Os oito te-meia em formação passaram
roncando pouco acima de nossas cabeças, era um estrondo impressionante,soltando toda aquela fumaça e depois subindo para um longo looping, um atrás
do outro... se espalhando e direções divergentes para depois convergir
parecendo que iam se chocar e desviando no último instante. Folha seca,
rasantes, touneaus, parafusos, loopings... uma festa... e eu estava lá, vendo e
ouvindo tudo, gravando para sempre na memória toda aquela maravilha.
Como diz o poeta, tudo que é bom dura pouco. As aeronaves fizeram as
aproximações, pousaram, estacionaram desligaram os motores e pouco a poucotudo tomou seu lugar. Os pilotos desembarcaram, os caminhões do Exército
aproximaram-se para o povo embarcar e iniciamos a viagem de volta.
Saltei na Praça de Esportes por volta das seis da tarde, quase de noite e rumei
para casa cheio de coisas para contar...
- Menino! Por onde andastes??!!! Teu pai saiu há pouco pra ir na polícia dar
parte de teu desaparecimento!
Caiu a ficha, e agora? Mas mãe é mãe.
- Vai já pra cama que eu dou um jeito.
Coração explodindo com tudo aquilo dentro do peito ouço meu pai chegando...
- Tudo bem ele tá em casa.
- Cadê esse guri?!
- Deixa o menino ele já me contou tudo, agora tá dormindo, amanhã tu conversacom ele.
Não me lembro se conversei com meu pai, mas sei que por muito tempo eu
passei cortando caminho pra não passar perto dele.
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Desde aquele dia minha vida se cruzou com a Fumaça e com os PQD muitas
vezes, onze anos depois fui fazer o curso de cabos da Força Aérea em Lagoa
Santa, MG e quem eu encontro? Alguns te-meia que estavam sendo
aposentados e tive a chance de ir a bordo de um deles e tirar umas fotografias
sentado no assento do piloto e com meu uniforme de soldado. No ano seguinte,
já cabo servindo em Curitiba, tive a oportunidade de participar da equipe que
abasteceu os aviões da Fumaça em uma apresentação na Escola de Oficiais
Especialistas.
Em 1985 eu era sargento controlador de vôo em Londrina e estava de serviço na
torre quando por telefone recebi um plano de vôo local. Era o Cel. Braga,
veterano da esquadrilha e proprietário de um dos antigos te-meia da Fumaça
que estava em manutenção em uma oficina e ia sair para um vôo de experiência.
Alertei o operador da Sala de Tráfego que não havia nenhuma autorização para
vôo acrobático naquele dia para aquela aeronave e ele devia avisar o Cel. Braga
para não efetuar acrobacias. Os te-meia não possuíam rádio e toda
comunicação com a torre era por meio de uma pistola de sinais luminosos. A
aeronave parou em frente à torre, voltou o nariz na minha direção e moveu os
aleirões; luz verde, taxiou até a cabeceira; luz verde. Decolou e, para meu
deleite, já fez um delicioso touneau. Curva à esquerda, sobrevôo do Jardim
Pizza; rasantes, vôo de dorso, tudo que (não) tinha direito, e o menino lá estava
outra vez, vivendo tudo de novo e com uma apresentação de ninguém menos
que a Lenda Viva da Fumaça especialmente só para ele. Aproximação para o
circuito, balança as asas ao passar pela torre, recebe luz verde, baixa o trem e
pousa suavemente.
- Aquino, você passou um Rádio de Infração de Tráfego do Cel. Braga!!!
- Ora chefe, ele cometeu a infração...
- Mas esse homem é um ás da aviação!
- Infração é infração, para os manicacas e para os ases, mande o rádio.
- Mas...
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- Sub Rossini, o chefe do DAC é ele mesmo, este rádio vai parar na mesa dele e
ele vai rir muito. Vamos fazer o nosso serviço...
Em 2000, fui passear em Florianópolis e encontrei um modelo de plástico para
montar de um NA T-6. Comprei-o, pintei com o padrão da Fumaça e agora estou
olhando para ele pendurado no teto de meu escritório numa atitude de vôopicado e o menino sorri...
Ontem, 17 de fevereiro de 2006, meus dois filhos foram de carro assistir uma
apresentação da Fumaça, o menor estava na escola e eu telefonei para a
supervisora avisando que o mais velho iria apanhá-lo para um “compromisso”.
Será que o menino...
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Primeiro sufoco
O sgt. Burkot havia concluído o curso de formação na turma posterior àminha, uns seis meses depois. Eu já havia adquirido o Status de controlador
operacional, após um estágio supervisionado por controladores experientes,
como o sgt Carneiro, Dinei, Celso e outros. Quanto ao Burkot, ele teve além
dos já citados, o privilégio (modéstia à parte naturalmente, para citar Vinícius
de Moraes) de ter também a mim também como instrutor e supervisor.
Fizemos uma boa relação de camaradagem e acabamos formando uma boa
dupla. Naquele dia estávamos terminando o nosso turno, lá por volta das 5 e
30 quando recebemos a notificação de vôo do PT-IVO, um Beech Bonanza,que ia para o Bacacheri. O Bacacheri é um aeródromo situado em Curitiba
no bairro do mesmo nome, naquela época a pista pertencia a Escola de
Oficiais Especialistas e de Infantaria de Guarda, a EOEIG, hoje é a sede do
Cindacta II. Na época, era comum as aeronaves fazerem o pequeno trajeto
entre os dois aeródromos, seja para translado de passageiros, seja para
abastecimento de combustível. O vôo dura cerca de cinco minutos e muitas
vezes eu mesmo peguei uma carona em alguns deles pois morava na vila
dos sargentos que é ao lado do aeroporto do Bacacheri, dessa forma eu ia deavião do serviço para casa. Naquele dia eu poderia ter feito com fiz em vezes
anteriores, pedir para algum colega que estivesse na sala de tráfego para me
substituir até o final do turno e ir para casa de táxi aéreo, mas já havia me
mudado para uma casa que adquirira em São José dos Pinhais.
Na hora prevista o pequeno monomotor fez o contato inicial com a torre e foi
autorizado a taxiar para a pista 33, o vento calmo permitiu essa facilidade
pois aquela pista permite que a aeronave após decolar faça apenas umapequena curva à direita e saia direto para a final da pista 18 do Bacacheri.
Após o cheque de rotina o piloto acusou que estava pronto e foi autorizado a
tomar posição e decolar. Observamos o pequeno monomotor branco com
listas verdes e pretas iniciar a decolagem. A cabeceira 33 fica bem distante
do terminal, à direita, de modo que as aeronaves quando passam em frente à
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torre, já estão em vôo e com o trem recolhido. No exato momento em que o
IVO passou na nossa frente sentimos o sangue gelar nas veias, O MOTOR
PAROU. Com um gosto amargo na boca e quase em choque senti passar
toda a eternidade em poucos segundos enquanto a aeronave ia perdendo
altitude, como se fosse um filme em câmara lenta e desaparecia no milharal
vizinho à pista. O Burkot agiu rápido e apertou o botão de alarme com os
bombeiros enquanto descrevia a situação pelo rádio para o motorista da
viatura. Eu imediatamente tentei restabelecer a comunicação com a
aeronave:
- INDIA VITOR OSCAR, torre... INDIA VÍTOR OSCAR, torre...
O caminhão dos bombeiros deslocava-se pela pista numa velocidade que se
nos assemelhava à de uma lesma, a pista tem cerca de 2500m e fica a uns500m da torre, para quem está acostumado a ver aeronaves a jato
decolando, um caminhão tanque é uma coisa minúscula e lenta demais visto
daquele ponto. O IVO continuava em silêncio e a tragédia estava diante de
nossos olhos, apesar de não avistarmos a aeronave. Tudo isso não estava
acontecendo há mais do que dois ou três minutos mas era uma demora
angustiante. Quando o caminhão chegou à cabeceira, mais angústia, o
trajeto até o local da queda era impossível para o caminhão pois a terra era
fofa. A equipe de socorro seguiu a pé até o local lutando com os pés de milhoem pleno viço, espigas grandes e já quase prontas para a colheita.
Foi nesse momento que ouvimos um dos melhores sons de nossa vida de
controladores de tráfego aéreo:
- Torre, INDIA VITOR OSCAR...
Louvado seja Deus eles estão vivos!!!(pelo menos um deles).
- Prossiga VITOR OSCAR, informe a situação...
- OK torre, estamos todos bem e parece que a aeronave não está tão ruim
assim...
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Quem quer saber da aeronave numa hora dessas, rimos como crianças e
chegamos a pular de alegria, o alívio é indescritível, só quem viu a morte
frente a frente sabe o que sentimos naquele dia...
Depois de transportados de volta para o aeroporto e da burocracia de rotina
fiquei sabendo que a bomba de combustível havia quebrado durante adecolagem. Na verdade cheguei a ouvir de um piloto em outra ocasião que o
piloto naquele dia esquecera de ligar a bomba de combustível antes de
decolar. Nunca me lembrei de verificar se isso é realmente possível e no
momento em que estou escrevendo decido procurar me informar melhor,
vamos ver se não esqueço.
Mas a história do INDIA VITOR OSCAR não terminou aqui...
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OUTRA DA FUMAÇA
Novembro, 1987, era uma tarde ensolarada de domingo na bela Londrina do
norte do Paraná. O dia era todo especial; estava acontecendo a exposição-feira
anual da associação rural de Londrina, era Semana da Asa e a “Fumaça” estaria
realizando uma demonstração sobre o parque.
Eu estava de serviço na torre de controle e minha mulher (esperando a Sarinha),
Danielzinho e minha vó estavam no parque para o espetáculo.
A “Fumaça” sempre me traz de volta as emoções do garotinho dentro de mim e,
embora eles nem saibam, temos uma relação de amizade muito particular. O alto
falante é o elo de união entre a fantasia e a realidade:- Torre Londrina, Fumaça Um.
- Fumaça Um, Torre Londrina, prossiga.
- Pronto para o táxi, para vôo de demonstração sobre o parque de exposições.
- Pista em uso 32, operação visual, vento dois-cinco-zero graus, oito nós,
altímetro uno-zero-uno-uno, livre táxi, reporte pronto para decolar.
Decolagem como sempre um espetáculo muito particular, os seis aviões em
formação passando em frente à Torre e efetuando uma suave curva à direita,
dirigindo-se para o parque de exposições. Pena que eu não podia estar láassistindo. Um receptor sintonizado na freqüência de serviço da esquadrilha me
colocava a par de todas as suas manobras e me mantinha informado de sua
localização a cada instante para qualquer eventualidade.
O tráfego fluía normalmente, as aeronaves chegando eram desviadas do
sobrevôo do local que era quase na aproximação da pista 14, quando de repente
um frio na espinha;
- Londrina, Fumaça retornando para pouso, o Fumaça 3 caiu, o piloto ejetou!!! O
Fumaça 2 vai ficar sobrevoando o local da queda.Ao escrever estas linhas, a mesma emoção daquele momento retorna, as
lágrimas tornam a brotar e o nó na garganta aperta outra vez.
Esqueço o garoto volto a ser o profissional que tem de manter a frieza;
- Livre aproximação direta para pista 14 reporte final com o trem checado,
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informe se necessita apoio especial para o acidentado.
- Negativo torre, o Fumaça 2 informa que o piloto aparentemente chegou bem ao
solo e as equipes de emergência no parque já estão se dirigindo para o local.
- Fumaça um final trem baixado e travado... 4 baixado e travado... 5 baixado e
travado... 6 baixado e travado...
- Fumaça livre pouso, vento calmo.
Meu coração apertado começa a pensar na mulher, filho e avó que estavam lá.
Será que estão bem? Onde caiu o Fumaça 3?
- Fumaça no solo aos quatro-oito, informe o local da queda.
- Caiu afastado uns três quilômetros do parque, numa área de terra arada,
parece uma plantação.
Naquele tempo não se ouvira ainda falar em telefone celular, de maneira que foi
um longo tempo de espera até ter notícias do meu pessoal. Eles chegaram lápelas seis da tarde, quase na hora de eu passar o serviço para o próximo
operador. Dali eles voltariam comigo para nossa casa que ficava na extremidade
final da pista 32 (eu tomava conta do VOR que estava instalado lá). Quando os
encontrei quis saber de tudo e minha mulher contou que vira o avião descendo
muito rápido e se afastando do local enquanto era seguido por outro. A multidão
ficou alguns minutos sem entender o que acontecia até que o apresentador
oficial explicou em rápidos detalhes e deu por encerrada a apresentação.
Mas afinal, o que acontecera? Ao efetuar a finalização de uma manobra o pilotosentiu que a aeronave ficou “solta” e percebeu horrorizado que a hélice sumira!...
Numa atitude extremamente profissional examinou a situação e pôs em prática
as muitas horas de treinamento, baixou o nariz da aeronave para adquirir
velocidade e manobrou para se afastar do local ao mesmo tempo em que
escolhia um local onde pudesse abandonar a aeronave com segurança para
quem estivesse no solo, ele sequer pensou na sua segurança. Ao atingir um
local onde julgou seguro abandonar a aeronave, acionou o assento ejetor, já
numa altitude onde os parâmetros de segurança do piloto para tal operaçãoeram quase abaixo dos mínimos. Uma cápsula explosiva arremessou o assento
com o piloto, quebrando o canopi de acrílico, a uma velocidade de uma bala de
canhão e logo o pára-quedas se abriu e ele conseguiu chegar ao solo com vida,
ainda que severamente machucado.
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Uma operação de ejeção é muito delicada, o piloto sofre uma pressão onde o
peso de seu corpo é multiplicado de maneira extrema. A cabeça é comprimida
sobre as vértebras do pescoço e um achatamento é inevitável.
No outro dia de manhã bem cedo fui de motocicleta até o local da queda, o avião
(ou o que restou dele) estava sendo recolhido em um caminhão, no local da
queda uma enorme cratera e bem próximo dali estava o assento vazio com o
pára-quedas espalhado pelo chão vermelho das plantações do norte do Paraná.
O coronel Silva Filho recebeu o reconhecimento da população londrinense em
uma placa colocada no Parque de Exposições que homenageia sua coragem,
desprendimento e sentimento de humanidade.
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ERA PRO OUTRO...
O Boeing 727 da VASP havia sido autorizado a taxiar até a intersecção com
a cabeceira da pista e deveria solicitar autorização para tomar posição e decolar.
Ao se aproximar da cabeceira informou que estava pronto para decolar e pediu
autorização. Antes de autorizar olhei para a final, mais num gesto automático
para certificar-me de que não havia ninguém na aproximação, havia! Um farol
de pouso brilhava e divisei um birreator médio com o trem baixado e flap
estendido a cerca de uma milha, pronto para pousar na pista do Aeroporto
Internacional de Foz do Iguaçu.
“Vasp 485 mantenha posição”, foi minha resposta imediata. No instanteseguinte chamei a aeronave desconhecida: “Aeronave na final1 de Foz do
Iguaçu, identifique-se”, nenhuma resposta... “Foz do Iguaçu in blind2 para
aeronave na final, vento uno-cinco-zero graus, cinco nós, altímetro uno-zero-
zero-meia, seu pouso não está autorizado, identifique-se”, silêncio total... “Foz do
Iguaçu informa pista livre, se estiver recebendo pisque faróis”, nada...
Peguei o microfone de comunicação ponto-a-ponto com o aeroporto de
Cataratas e perguntei:
“Cataratas, hay transito em tramo final?” 3
“ Si, un Falconjet, pero no lo avisto todavia.”
“ Digale que dé la vuelta, está posando en Foz de Iguaçu.”
Em poucos segundos verifiquei o recolhimento do trem e do flap e numa
suave curva à direita o Falconjet passou chiando as turbinas sobre a torre de
controle.
“ Vasp 485, livre posição e decolagem, curva à esquerda, subida em rota
para 290, vento 150 graus meia dúzia de nós.”
“ 485 ciente, quem era o ilustre desconhecido?”
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“ Tráfego de Cataratas, enganou-se na aproximação.”
“ Tem que ficar de olho nesses manicacas4...”
“ É...”
“Cataratas” é o aeroporto de Puerto Iguaçu, na Argentina. Assim como o deFoz, ele fica bem perto da margem do rio Iguaçu, nas proximidades das famosas
quedas d’água. Quando existem dois aeródromos próximos um do outro, é
comum ocorrer enganos do tipo relatado acima. Pilotos que não estão
acostumados com a região e que fazem aproximação visual, podem acabar
pousando na pista errada pelo simples fato de ser a que avistaram. Nos
próximos capítulos vou contar mais algumas dessas histórias de pouso no
“aeroporto errado”.
Segmento de uns quatro quilômetros que a aeronave percorre na fase final do pouso até tocar a pista.2
Expressão em inglês que significa “às cegas”, é quando o controle transmite uma mensagem sem ter
certeza que está sendo ouvido.3
A comunicação com o controle do aeródromo vizinho era em espanhol.4
Termo usado para fazer referência a pilotos iniciantes e sem experiência.
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Curitiba e Bacacheri
Era um início de tarde pachorrenta de um domingo sem movimento na
terminal de Curitiba. Estávamos o Dinei e eu olhando para o horizonte e, às
vezes um para o outro e curtindo um chimarrão. Na mesa as fichas de uns
poucos tráfegos nos lembravam de que logo em seguida começaria um
pouco de movimento. Na hora estimada para contato recebemos a chamada
de um certo “Paraguayo mil e dos”.
- Adentrando su área terminal, visual, nivel de vuelo cero-sete-cinco destino
Curitiba...
- Paraguaio uno-zero-zero-dois, Curitiba ciente, prossiga descida visual para
o tráfego de Curitiba, operação VFR, pista em uso uno-cinco, vento uno-oito-
zero graus zero-oito nós, aproximação direta para a final da pista uno-cinco,
reporte cinco minutos fora.
Esse era o único tráfego na Área Terminal de Curitiba, continuamos nosso
chimarrão e umas poucas palavras de bate papo. O dia era um desses
ensolarados da região sul, sem uma nuvem no céu, ventinho calmo, podia-sever até o centro de Curitiba, com o imponente Centro Comercial Itália bem no
início da aproximação final da pista 15. É curioso o fato de que o aeroporto
Afonso Pena (que na época ainda não era internacional) apesar de ser
denominado para fins de tráfego aéreo “Curitiba”, na verdade fica no
município de São José dos Pinhais, distante uns 15 km do centro da capital.
O Paraguaio 1002 era uma aeronave modelo Douglas DC3, versão militar e o
seu plano de vôo era Asunción/Curitiba (from SGAS to SBCT), uma aeronave
dessas leva aproximadamente vinte minutos para percorrer os 100km (54
milhas) da entrada da Terminal até o aeroporto que normalmente é no ponto
central da Área Terminal. Passados 15 min recebemos nova chamada:
- Paraguayo mil e dos cinco minutos fuera...
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- Ciente uno-zero-zero-dois (o padrão em radiotelefonia aeronáutica é dizer
os números falando dígito por dígito, sendo que para 1 é diz-se “uno” e 6 é
“meia-dúzia” ou simplesmente “meia”) reporte ingressando na aproximação
final com trem em baixo e travado.
Mais papo e chimarrão, uma checada visual na pista para certificar que estálivre de veículos, pessoas ou animais (uma checagem constante na rotina de
um controle de aeródromo) e uns dois ou três minutos depois a chamada:
- Mil e dos tramo final.
Sempre me gabei de ser o primeiro a avistar uma aeronave na final, estava
estranhando o fato de não haver avistado ainda. O Dineizão também não
havia avistado, mas era normal, ele enxergava muito pouco. Procurei o foco
luminoso do farol de pouso e, nada...
- Uno-zero-zero-dois não avistado ainda, pista livre, vento calmo, aguarde
autorização para pouso.
CADÊ O CARA??? Começa um uma certa inquietação, olhos perscrutando a
final de cada uma das quatro cabeceiras, nem sinal!!!!
-Uno-zero-zero-dois, informe posição.
- Estoy tocando el suelo ahora mismo Curitiba...
CAIU A FICHA!!!! CURITIBA!!! Ele tava pousando no Bacacheri, aeródromo
militar e sede do aeroclube que ESTÁ LOCALIZADO EM CURITIBA!!!!
Pego o intercomunicador e chamo o Bacacheri, me responde o sgt Sturm:
- Fala Aquino!!!!
- Sturm, tem um DC3 aí na pista?
- Positivaer, acabou de pousar, quem é o ilustre desconhecido? Por sorte eu
não tinha nenhum tráfego.
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- Esse manicaca veio de Assunção o destino era Curitiba. A gente trouxe ele
até a final DA TUA PISTA , ele pensando que o nome do Bacacheri é Curitiba
e nós pensando que ele vinha pra cá... Tábão Istrumão um abraço.
- Falô Aqüino!!! 1
O infeliz do piloto paraguaio fez um plano de vôo cujo destino era mesmo o
aeroporto militar, mas sabe-se lá por que cargas d’água acabou cometendo
uma enorme confusão, os dois aeródromos são distantes uns 15 km, as
pistas têm quase a mesma orientação, Curitiba era 150 graus e o Bacacheri
180. A confusão ficou por conta dos nomes, o desgraçado queria ir para
Curitiba e não atentou que Curitiba é o nome da cidade mas o aeródromo
chama-se Bacacheri, aliás o nome do bairro onde é localizado.
1Istrumão, uma brincadeira óbvia com o nome Sturm; Aqüino, brincadeira dele com o meu
nome.
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Perdido
Era uma tarde de inverno em Curitiba. O costumeiro céu nublado, garoazinhafina, dez graus de temperatura. O tráfego aéreo fluía normalmente (naqueles
idos de1978, o movimento era pequeno). Eu havia chegado da Escola há pouco
tempo e estava cumprindo estágio sob a supervisão do sgt. Carneiro, um dos
melhores, camarada calmo e eficiente. De repente uma chamada:
- “Curitiba, Papa-Tango-November-Bravo-Charlie”.
- “Prossiga NBC”
- “Curitiba, eu estou vindo visual de Apucarana e acabei de entrar numa
formação. Agora eu estou no topo1, meu ADF2 pifou e eu não sei usar
o VOR3, meu estimado é 15 minutos, estou mantendo o 0754”.
É claro que parte da mensagem não era verdadeira; ele estava no topo há muito
tempo, é bastante comum nesse tipo de vôo pilotos que conhecem a região subir
acima das nuvens, devido estarem muito baixas, e manter um nível VFR até um
ponto conhecido (medido no ADF) e a partir dali descer até encontrar condições
de prosseguir visual para o pouso.
- “Qual é sua proa5 NBC?” Perguntou o experiente Carneiro, jáformulando mentalmente uma estratégia de aproximação.
- “Uno-Oito-Cinco”
- “Ciente, mantenha esse nível e proa e aguarde. Varig cinco-oito-zero,
controle”.
- “Prossiga Controle”.
- “Pode dar uma mãozinha pro NBC operar o VOR e bloquear 9
Curitiba?”
- “Afirmativo. Companheiro, sintoniza o VOR Curitiba e me informa se a
bandeirinha está TO ou FROM”.
- “Tá FROM”
- Qual a radial e a proa?
- Radial uno-nove-zero, proa uno-oito-cinco.
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- Faça curva à direita até que a proa fique igual à radial e mantenha,
quando você bloquear a bandeirinha vai ficar FROM.
Naquele momento o Carneiro falou para eu ficar do lado de fora da torre atento
ao ruído de alguma aeronave e retornou às comunicações.
- NBC desça para quatro mil e quinhentos mantendo essa radial einforme no bloqueio.
- OK, Curitiba, só não sei se vou conseguir checar o bloqueio.
- Não se preocupe, já temos uma equipe de apoio para auxiliar.
A equipe era eu. “Novinho fica de olho e me avisa quando ele passar”. Afinei o
ouvido esperei, de repente ouvi o som característico do monomotor bem acima
da torre: “Bloqueou!” gritei, e o Carneiro imediatamente transmitiu;
- NBC você acaba de passar sobre a torre, continue descendo para três equinhentos e mantenha a proa por mais um minuto, se não encontrar
visual dentro de um minuto faça curva de uno-oito-zero pela esquerda e
desça para três mil.
- OK Curitiba...
Todos nós, apreensivos, olhávamos para cima em busca de ver o tal camarada
furar a camada de nuvens. Subitamente apareceu o tão esperado vulto, nariz em
baixo e numa curva à esquerda...
- To visual torre!
- Ciente, avistado, prossiga para a final da três-três, cheque trem de pouso.
- Baixado e travado.
- Livre pouso.
É uma sensação muito particular a que eu sinto ao ver uma aeronave decolando
ou pousando. São as duas fases mais decisivas num vôo e, embora acabe
virando uma rotina para os tripulantes e para o controle, é sempre com emoção
que eu vejo a conclusão de cada uma delas. Naquele dia não foi diferente e eu
senti uma ponta de orgulho por ter podido participar daquela operação.
Após o estacionamento da aeronave no pátio o piloto veio até a torre bater um
papo e agradecer, é claro que aquilo não carecia de agradecimento, estávamos
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fazendo nosso trabalho, mas é muito gratificante ver o resultado desse trabalho
reconhecido.
O Sgt. Carneiro acabou se tornando um grande amigo e nele sempre me
espelhei ao assumir a posição de controlador em todos os órgãos de controle
por onde trabalhei.
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Outro perdido
O bimotor Navajo saiu do estacionamento do aeroclube de Londrina, e antes de
ingressar no pátio do aeroporto chamou a Torre.
- Londrina, PAPA-TANGO-CHARLIE-MIKE-DELTA.
- CHARLIE-MIKE-DELTA, prossiga.
- MIKE-DELTA com plano VFR para Campo Mourão, solicita instruções de táxi e
decolagem.
- MIKE –DELTA, Londrina opera VFR, pista três dois, vento calmo, altímetro uno-
zero-uno-zero. Livre táxi, reporte posição dois pronto para decolar.
Era uma manhã de outono em Londrina, apesar de operar VFR havia uma
cobertura de alto-stratus e uma formação pesada a umas 15 milhas sudeste.
Essa formação de CB foi informada ao piloto durante as comunicações que se
seguiram.
Naquela época o tráfego na terminal de Londrina era muito pouco (não sei comoestá hoje), a Torre fazia também o serviço de Controle de Aproximação e um
operador sozinho dava conta do recado. Como dizia o Carneiro; “Esse tráfego eu
controlo de olhos fechados e com uma mão nas costas”.
O PT-CMD taxiou para a pista 32 e aguardou na interseção próxima à cabeceira
para o cheque de rotina. Aeronave pronta, autorizo a decolagem, o Navajo toma
posição, os motores roncam ao serem submetidos à rotação máxima e o lindo
bimotor começa a rolar pela pista adquirindo velocidade cada vez maior até que
alça um vôo gracioso como só os aficionados da aviação sabemos apreciar.
Curva à esquerda...
- Decolado aos um meia, saída VFR para Campo do Mourão(na verdade a
cidade se chama Campo Mourão, mas ouvi um controlador falar dessa maneira
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um dia, achei legal e passei a falar assim também, sempre gostei de dar meu
toque pessoal nas comunicações) informe livrando a Terminal.
- CHARLIE MIKE DELTA ciente...
Os vôos VFR(normalmente denominados apenas VISUAL) seguem regras
diferenciadas e, na época, não estavam sujeitos ao controle de tráfego, mas
recebiam apenas o que se chama de informação, isto é, o piloto decidia o que
fazer quando informado da proximidade de outra aeronave ou de condições
meteorológicas adversas.
Aquela curva à esquerda é o padrão, e além do mais era o trajeto mais curto
para o destino do vôo, mas ela o levava diretamente para as formações de
cúmulos nimbus (CB) e os alto stratos que haviam sido informadas e que,
convenhamos, o piloto devia estar vendo.
Não havia mais nenhuma ficha com previsão de vôos para, pelo menos, os
próximos 30 minutos. Voltei para meu jornal. De repente uma chamada:
- Controle, CHARLIE MIKE DELTA...
- Prossiga MIKE DELTA...
- Controle, estamos numa formação pesada, turbulência forte, estamos
Instrumentos, instruções hein?!...
Aquele tom de voz e as palavras usadas eram um pedido de socorro. Pra
começo de conversa, uma aeronave VFR não DEVE estar próxima a formações
que possam obstruir metade do campo de visão do piloto e ele informou que
estava INSTRUMENTOS, isso significa que naquele momento ele não estava
vendo NADA. A aeronave era um bimotor, EQUIPADA para vôos por
instrumentos, mas (e isso é facilmente dedutível) o piloto não era habilitado para
vôo por instrumentos. Para confirmar minha dedução, perguntei qual a radial queestava mantendo e ele, muito nervoso, disse que não sabia... Nervoso é um
eufemismo para o que eu estava ouvindo, ele estava apavorado. Sua voz tremia
e as palavras soavam desconexas. Procurando manter a calma e, ao mesmo
tempo tranqüilizá-lo, comecei a falar devagar, com naturalidade e segurança.
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- MIKE DELTA, qual é a sua proa?(o rumo indicado pela bússola)
- DOIS-NOVE-CINCO.
Sua bússola estava marcando 295º, subtraí 180 graus e pedi que ele fizesse
uma curva pela direita de modo que sua proa ficasse 115. Podia ter dito: “Faça
uma curva de 180 pela sua direita”, coisa que todo piloto compreende e é capaz
de fazer, mas optei por ser claro e explícito devido ao estado de espírito do
companheiro. A curva feita pela direita tinha ainda como objetivo o de que ele se
afastasse do centro da formação. Conhecia a região e sabia qual a altitude
mínima para uma aproximação com segurança, de modo que o instruí a descer
até aquela altitude e mantê-la ao atingir. Isso tudo é completamente fora de
todos os padrões estabelecidos para controle de tráfego aéreo, mas a situação
era de total “descontrole”. Londrina não possuía radar, o piloto havia assumidouma atitude que o levara para perigo de sua vida e de seus passageiros, algo
precisava ser feito, esse algo poderia e deveria ter sido feito pelo próprio piloto,
mas ele não estava conseguindo fazer sabe-se lá por que...
Como era facilmente previsível, dentro de poucos minutos ouvi uma exclamação
que era um misto de alegria e alívio,
- Controle, tô visual! Muito obrigado hein?!...
- Aproxime para a pista 14 e informe na final com trem checado...
Avistei o farol na aproximação final, autorizei o pouso e com complacente alegria
observei-o tocar o solo. Taxiou para o pátio, a porta se abriu e vi os passageiros
descerem, mas o inusitado ainda estava por vir. Quando o piloto desceu, ele se
abaixou e beijou o solo. Aquele gesto mostrou de uma maneira escancarada o
sufoco que aquele camarada havia passado.
Mais tarde ele foi até a torre falar comigo e me agradecer, estava mais calmo e
contou que não entendia como podia ter acontecido aquilo. Eu também não
entendia, só sei que naquele dia eu fui o herói da história.
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A MEIA MILHA DE LONDRINA...
Em Londrina eu morava numa casa que ficava a um quilômetro da cabeceira, noprolongamento da pista sentido contrário ao da cidade, próximo ao VOR. A
finalidade dessa casa era servir de moradia ao técnico mantenedor do
equipamento mas como era em um lugar bem afastado da cidade nenhum
técnico se dispusera a morar lá. Havia um velho jipe no DPV e este servia de
viatura para deslocamento de pessoal do DPV até o VOR. Eu sou um camarada
que gosta de lugares sossegados e ao chegar em Londrina fiquei sabendo da tal
casa e me ofereci para morar lá. O jipe ficaria à minha disposição para
deslocamento até o DPV e vice versa, dessa forma eu estava sempre passandopelo Destacamento mesmo nos dias de folga.
Um dia eu estava vindo do centro da cidade, cheguei ao destacamento lá por
volta do meio-dia para pegar o jipe e ir para casa quando ao passar pela Sala de
Tráfego o colega que saía de serviço na Torre me chamou em um canto para
uma conversa em tom confidencial.
Eu era considerado por esse colega como sendo um camarada experiente e
bom profissional, de modo que angariara seu respeito e admiração. Ele me levouaté a sala do gravador e, muito nervoso, colocou para rodar a fita que continha
seu turno de serviço.
- “Aquino, que é que você me diz disto?” perguntou enquanto começávamos a
escutar a ocorrência.
Como sempre o tráfego era tranqüilo, apenas um jato da Transbrasil vindo de
São Paulo. O dia estava claro, céu azul, vento calmo, tudo para uma
aproximação sem maiores complicações, mas...
- Londrina, Transbrasil Fulano de tal (não me recordo o número do vôo)
procedente de São Paulo, passando nível 200, solicito autorização para
prosseguir na descida.
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Transbrasil fulano, prossiga descendo para nível 080, Londrina opera VFR, pista
12, vento calmo,altímetro uno zero zero cinco, reporte passando nível 100.
Nesse tipo de procedimento de aproximação, geralmente a aeronave solicita a
mudança do plano de vôo IFR (vôo efetuado segundo as regras de vôo por
instrumentos), para VFR (vôo segundo as regras de vôo visual) onde o própriopiloto decide os procedimentos para aproximação e pouso.
A rota de aproximação de São Paulo passa sobre Apucarana, de onde é comum
haver aeronaves de pequeno porte decolando para Londrina, Maringá, Foz do
Iguaçu ou Curitiba. Segundo as regras, essas aeronaves devem entrar em
contato com o controle para informações de vôo assim que estiverem fora do
solo ou a partir do momento que isso for possível. Os vôos com destino a Foz e
suas arredores têm suas rotas com sobrevôo de Londrina ou passagem pelascercanias do aeródromo de Londrina.
Durante a descida do Transbrasil ocorreu uma dessas decolagens. Uma
aeronave cujo indicativo de chamada também não me recordo informou sua
decolagem de Apucarana com destino a Foz, seu nível proposto era inferior a
075, de maneira que estava, naquele momento, suficientemente separado do
Transbrasil. Ao se aproximar do nível 080 o Transbrasil solicitou mudança para
VFR, o que foi autorizado e informado a respeito da aeronave que vinha
praticamente na mesma rota. As regras VFR prevêem que o piloto é o
responsável pela sua própria separação, cabendo ao controle apenas informar a
posição estimada dos outros tráfegos. No momento do cancelamento o Boeig
727 da Transbrasil estava a 12 milhas, algo em torno de 20km, de Londrina. O
controlador perguntou então à outra aeronave qual era sua distância, ao que o
piloto respondeu: “Meia milha controle”. Era uma separação de pelo menos 11
milhas, uma boa distância mesmo levando em conta que o birreator vinha em
uma velocidade de pelo menos o triplo da do outro. Devidamente informados um
do outro, os dois vôos prosseguiram suas manobras quando, de repente, uma
chamada fez gelar o meu sangue: “Londrina, aaaahhhhh!!!!!” e depois o
silêncio... Talvez no máximo quatro segundos, que se me afiguraram uma
eternidade e depois novo contato com voz trêmula, chegando-se a ouvir o bater
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dos dentes: “Controle, um cara acaba de cruzar nossa proa, na mesma altitude,
meu Deus quem era esse cara???!!!!”
Ouvi a voz de meu colega chamando o tal de PAPATECO1 ; “fulano, qual sua
distância e altitude?” e ele respondendo “Estou a três milhas cruzando 3500
pés”, meu colega pergunta ao Transbrasil, “Transbrasil, qual a distância enível?”, e ele responde “Duas milhas da final cruzando 3000 pés”. Depois de
outros longos segundos meu colega informa, “O tráfego que cruzou com o seu
era a aeronave vinda de Apucarana, o qual lhe havia sido informado”, “Ciente” foi
a resposta. Sem maiores comentários o jato aproximou e pousou e o incidente
foi silenciado por ambas as aeronaves.
A pergunta para a qual meu colega não conseguia resposta era, “Por que a
aeronave pequena informou estar a meia milha do bloqueio e o jato passou por ela a quatro milhas?” os dois vinham no mesmo sentido, teria a aeronave
pequena andado para trás? Mais uma vez a falta de preparo de determinados
pilotos ficou patente, o que aconteceu foi que a aeronave pequena estava a
SEIS milhas quando interrogada e de acordo com a fraseologia padrão, deveria
ter dito; “estou a ZERO-MEIA-DÚZIA milhas de Londrina”, ou seja 06 milhas. As
distâncias devem ser expressas em dois dígitos e os números 1 e 6 devem ser
falados “uno” e “meia-dúzia”, exatamente para evitar qualquer tipo de confusão
ao serem ouvidos.
Como ambos os vôos estavam VFR o piloto do Transbrasil deve ter percebido
que seria inútil e até mesmo imprudente tentar qualquer atitude contra a outra
aeronave e como graças a Deus, não houve nenhuma tragédia o assunto morreu
por ali. Mas que o sangue de quem tomou conhecimento gelou, gelou...
1 PAPATECO- os indicativos de chamada de aeronaves particulares são, geralmente, iniciados por PT
(Papa-Tango em alfabeto fonético) e a denominação de qualquer aeronave pequena é tradicionalmente
TECOTECO, dessa maneira o pessoal de controle criou o termo PAPATECO para se referir a qualquer
aeronave de pequeno porte.
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O ÚLTIMO SALTO
Eu morei na vila dos Sub-Oficiais e Sargentos de Curitiba que fica nos fundos
das instalações do atual CindactaII. Na época a organização militar sediada
naquelas instalações era a Escola de Oficiais Especialistas e de Infantaria de
Guarda. Entre a vila e o Cindacta II está o aeroporto civil do Bacacheri, que
também sedia o Aeroclube do Paraná, esse aeroporto é um ponto turístico e
um passeio interessante para os moradores de Curitiba, trata-se de um
aeroporto dentro da cidade. Para se ter uma idéia, a cabeceira de uma das
pistas está separada da Avenida Erasto Gaertner que é a ligação
Bacacheri/centro apenas por um muro. Nesse aeródromo compartilhado pelo
Cidacta (uma organização militar), aeroporto civil e aeroclube, costumam
acontecer eventos aeronáuticos muito interessantes, com campeonato de
vôo à vela (planadores), apresentações de aviões militares (a Fumaça, por
exemplo) e competições de pára-quedismo.
Numa tarde de outono estava acontecendo uma dessas competições de
pára-quedistas. O belo Cessna 180 branco com listas verdes, pertencente ao
aeroclube, estava fazendo o lançamento. Fora retirada a porta e os bancos,
ficando apenas o do piloto e os PQD iam sentados no chão da aeronave.
Tudo seguia a mesma rotina na preparação das equipes no solo, o
taxiamento até a cabeceira, rolagem, subida e finalmente o lançamento. O
aeroclube cheio de expectadores, adultos e crianças se misturavam sem que
se pudesse distinguir que era adulto, quem criança. Eu já estava
acostumado com aquilo e quase não dava muita importância (quase).
Naquele dia eu estava de folga e aproveitei para ir ao Posto Médico que fica
próximo ao portão da vila. Quando cheguei na frente do chamado “hospital”
encontrei alguns companheiros apreciando o espetáculo dos saltos e me
juntei a eles na admiração e comentários.
O que aconteceu naquele momento ficará para sempre marcado no mais
profundo de minha memória. O Cessna lá em cima havia atingido o nível para
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o lançamento e começava a se aproximar do ponto de salto, era uma
apresentação de salto livre individual, observamos a aeronave se alinhar e
nos momentos antecedentes ao salto ouvimos quando o piloto reduzia a
rotação do motor dando a impressão mesmo de que fora totalmente
desligado, observamos o PQD saindo pela porta e ouvimos a retomada da
rotação do motor “WOOOOOMMMM!!!!’. Observamos o pequeno ponto que
veio caindo em aceleração vertiginosa por vários segundos até finalmente
abrir o velame... Abrir não foi bem o que aconteceu, algumas cordas deram
uma volta sobre o velame dividindo-o ao meio dando a aparência de um
enorme sutiã. Esse incidente não é de todo raro, devido a essa aparência de
um sutiã gigante e por ter existido uma atriz americana chamada Mae West
que possuía seios digamos bastante avantajados, os PQD apelidaram essa
ocorrência de Mãe West. Foi o que aconteceu com aquele desafortunadonaquele instante, um Mae West, o pára-quedas fica totalmente instável e
começa a rodopiar descendo em alta velocidade. A solução é desvencilhar-se
do pára-quedas avariado e acionar o reserva e foi exatamente isso que ele
fez mas... CHARUTO!!! Outro incidente não muito raro mas sempre fatal, o
velame não abre, o conjunto todo assume a forma de um enorme charuto,
morte certa... Ficamos olhando estarrecidos aquela seqüência macabra de
acontecimentos na sensação da mais completa impotência diante da
desgraça daquele infeliz que se precipitou para a morte. Em poucossegundos o conjunto macabro homem-pára-quedas sinistrado desapareceu
por trás do prédio do hangar e aquele som terrível parece ressoar até hoje
nos meus ouvidos, um estampido seco como de um saco de papel que se
enche de ar e se golpeia para espocar, “PLÁ!!!!” ... e só ficou o silêncio... um
silêncio realmente mortal...
Aquela que seria uma festa colorida e alegre acabou em tristeza e desolação,
imagens e sons que teimam em se perpetuar por todos estes quase trinta
anos e que certamente só silenciarão quando meus olhos se fecharem no
momento final.
Depois de alguns dias fiquei sabendo que a investigação do acidente revelou
que o infeliz havia deixado de efetuar as revisões e manutenção periódica do
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equipamento o qual precisa ser totalmente aberto e lubrificado com talco
neutro em períodos determinados. Uma grande parte dos acidentes em geral
poderia ser evitada se pensássemos que as coisas que acontecem com os
outros também são passíveis de acontecer conosco.
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A “controladora de vôo”
Betinha, Martinha, sei lá. Não me lembro exatamente do nome mas lembro
direitinho o dia em que ela apareceu por lá...
Era uma tarde de domingo em Curitiba, ou melhor, em São José dos Pinhais
onde fica o aeroporto de Curitiba, o Afonso Pena. Domingo é o dia que as
pessoa tiram para passear no aeroporto e naqueles dias românticos do final da
década de 70 não era muito difícil entrar em determinadas torre de controle, era
só ter cara de pau e pedir com jeitinho pro sargento da sala e tráfego. Pois é,
naquele domingo apareceu na torre uma baixinha muito engraçadinha, toda
sorrisos, e que foi logo se apresentando como, digamos, Martinha...
- Eu sou controladora de vôo no Rio de Janeiro (também não me lembro onde
mas talvez fosse em Jacarepaguá). Todo mundo lá me conhece e os pilotos
quando ouvem a minha voz já vão logo dizendo: Oi Martinha...
Naquela época a grande maioria dos controladores de vôo era de homens e
quase todos militares. Mulher era coisa rara em quartel, uma coisa do outro
mundo e, via de regra, era difícil que fosse achada feia. Por isso sempre que
aparecia um ser feminino numa unidade militar, era tratada com todas as honras
possíveis por aqueles cidadãos que se sentiam como cavaleiros andantes da
idade média e se pavoneavam com seus uniformes e divisas achando que
estavam abafando. Do outro lado, as meninas iam aos quartéis para receber um
afago no ego e chamar a atenção dos milicos. Hoje é difícil entrar em uma
unidade militar no Brasil e não dar de cara com pelo menos uma mulher, elas já
se tornaram parte da paisagem da caserna e não chamam mais tanto a atenção.
Se você entrar em um órgão de controle de tráfego aéreo hoje verá mulheres
controladoras de vôo tanto civis como militares.
Mas eu estava falando da Martinha, o meu colega e eu começamos o
enxovalhado ritual dos sorrisos bobos, papo furado e explicações tendenciosas
sobre nossos procedimentos em Curitiba. A menina mostrava ares de um
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conhecimento razoável do metiê, e apontava com segurança para os
equipamentos e comentava; “Ah, vocês também têm um SSB!!!” (equipamento
de comunicação da idade da pedra ainda antes de ser lascada).
Papo vai papo vem e começou a ficar mais ou menos aparente que ela não era
tudo aquilo que dizia ser, tinha, no máximo, um conhecimento de segunda mãosobre o assunto. Eu e meu colega começamos a trocar uns olhares como quem
diz; “Essa não me engana”, mas continuamos o papo por que, como disse, ela
era uma mulher. Num dado momento recebemos o chamado de uma aeronave,
digamos que fosse o NBC (porque tinha N no indicativo de chamada). As letras
do alfabeto não são chamadas pelo seu nome em radiotelefonia. Para evitar
confusão entre M e N, por exemplo, diz-se MIKE e NOVEMBER. A pronúncia é o
mais próximo possível do inglês, dessa forma, diz-se “nouvãmbar”para o N.
Bom, a tal de Martinha ficou toda excitada e pediu; “Deixa eu falar com ele,
deixa?” Sorriso maroto, estendi a mão com o microfone; “Pega...” e ela saiu com
“Nobamba Maiki Charles (o correto é Charlie), prossiga”. O cara vinha não sei de
onde para o Bacacheri, deu sua posição e estimado de pouso e pediu
instruções.
Ela então com toda aquela simplicidade e ingenuidade meiga de uma garotinha
de cinco anos, com o microfone na mão e olhos grandes brilhando, me olha e
pergunta;
“Qué qui eu digo pra ele?”
E eu com toda minha natural e irônica delicadeza, pego o microfone de volta;
“OK, deixa comigo, tá?”
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BULICA
Pouca gente sabe quem é o Bulica, um velho conhecido de infância que eupropositalmente omitirei o nome de batismo. É..., tchê, vou contar algumas de
nossas histórias, nem sei por onde andas agora, mas espero que tenhas a
oportunidade de ler estas páginas e reviver algumas “bagualadas” que fizeste
por este mundo de meu Deus, um abraço meu amigo...
Uma vez quando eu estava servindo em Curitiba minha mãe veio me visitar, ela
gostava muito de passear, e visitar os filhos que estavam espalhados por este
mundo de meu Deus era apenas mais uma desculpa esfarrapada para dar um
passeio com o Ernani, o marido dela. Um dos programas preferidos nesses
passeios era visitar os aeroportos e torres de controle por onde eu passava. Ela
adorava as compras nos aeroportos e a vista lá do alto da torre.
Num desses passeios, ela veio do saguão do aeroporto e, chegando na torre foi
logo me dizendo com aquele jeitão dela; “Adivinha quem eu encontrei lá em
baixo?” Adivinhação difícil, só poderia ser um conhecido comum, mas que seria
esse conhecido comum encontrado em um lugar tão distante de nossa terra
natal?
“Sei lá, mãe. Quem?” E ela com toda naturalidade; “O Bulica!” Bulica? Dei tratos
à bola (antiga essa né?) e não consegui encontrar tal personagem na minha
memória. “Aquele filho da fulana (esqueci o nome da tua mãe, desculpa cara),
que morava perto da nossa casa, que um dia capotou aquele Gordini na
esquina, um que era levado da breca, teu companheiro de aeromodelismo...”
Bom pra encurtar a história, até hoje eu ainda não consigo me lembrar de nada
disso, mas se a mãe conhecia e estava dizendo é por que era verdade. Pedi ao
colega da Sala de Tráfego pra subir e me substituir por um tempo e dei uma
descida ao saguão pra ver o tal Bulica. A mãe me disse “é aquele ali, no balcão
daquela companhia de táxi aéreo. O cara quando me viu veio logo me
abraçando e falando daquele jeitão inconfundível de um bom gaúcho: “Tchê!
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Honório! Bah! Como o mundo é pequeno tchê!”Como eu disse meu amigo, até
hoje não me lembro de ter te conhecido na infância ou adolescência, mas como
só eu é que não me lembrava, fui logo me enturmando e tratando como um
antigo amigo trata seus camaradas. Ele havia se tornado piloto e, segundo ele,
eu havia tido uma participação em sua paixão pela aviação por ter sido o cara
que ele primeiro viu com um aeromodelo e logo se apaixonou (pelo aeromodelo
bem entendido).
Eu era casado e ele solteiro, não ficamos exatamente amigos de sair juntos, mas
eu cheguei a ir à casa dele com minha mulher algumas vezes. No aeroporto ele
sempre ia para a torre quando eu estava de serviço e falávamos sobre nossa
cidade natal e aviação. Grande Bulica, grosso como dedo destroncado, risada
sonora e amor pela aviação, mas nós éramos dois garotos, tínhamos vinte e dois
anos na época, muitos sonhos e planos para um futuro promissor.
Uma noite ele apareceu na torre e disse: “Tchê, a firma instalou um ILS (sistema
de pouso por instrumentos) novo no avião e eu vou sair para dar uma checada.
Quer vir comigo?”
Pergunta pro Papa se ele é católico!
É claro que eu queria, queria não, IA! Pedi pro estagiário assumir o controle e ele
disse: ”Ó, depois eu quero ir também”. “Ta legal” dissemos, mais para contentar que pra prometer e lá fomos nós... O CONTROLADOR DE VÔO DE SERVIÇO e
seu amigo piloto. Nunca ninguém importante ficou sabendo e eu já estou fora do
serviço há muito tempo, vou abrir o bico...
A aeronave era um bimotor Navajo, linda. Não vou falar a matrícula, é claro.
Noite linda, lua nova, céu estrelado, limpo, sem nuvens, sem vento, um
espetáculo... Entramos no avião e eu sentei no lugar do copila; “Faz a fonia pra
mim tchê” foi falando o comandante Bulica.
“Deixa comigo”
- Torre Curitiba, Papa Tango Fulano de Tal.
- Prossiga.
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- Plano de vôo local, instrumentos na CTR1 para cheque de equipamentos.
-Livre táxi pista 33 reporte pronto para decolar.
O Bulica levou o avião até próximo a cabeceira fez o check e informei à torre:
-Fulano de Tal pronto para decolagem.
Tomamos posição, o Bulica fez os motores roncarem e tirou o Navajo do solo
com toda perícia e delicadeza de quem acaricia uma linda mulher. Subida para
cinco mil pés, procedimento Índia, ILS para pista 15.
Uma ou duas aproximações com arremetida no ar e o Bulica lasca a pergunta;
-“Onde é que tu moras tchê?”
-“Ali naquele escurão, a luzinha é da porta da minha casa, a Miriam deve tá
vendo TV.”
-“Vamos passar lá a quatrocentos!!!”
Ele estava dizendo que ia dar um RAZANTE a quatrocentos quilômetros por
hora... De noite, sem nenhuma referência visual com o solo além da informação
que eu dera de que a área era limpa e sem obstáculos, tendo a bordo ninguém
menos que a pessoa responsável por “manter o tráfego ordenado, seguro e fazer
cumprir as regras de tráfego aéreo” e um piloto comercial... Dois garotos...
Mergulho, frio na barriga (nada a ver com aquelas montanhas russas
insignificantes), o corpo colado no assento com uma pressão incrível...
-wooooooommmmmm!!!!!!
-Iiiiiiiiáaaaa!!!!!! Há Há Há!!!!Tchêêêê!!!!!
Indescritível, como diz o Roberto; Emoções eu vivi...
1CTR- Trocando em miúdos é uma região da área terminal onde se fazem as
aproximações por instrumentos.
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O “Coroa” explica o VOR
Quando cheguei em Curitiba, vindo da escola de sargentos, conheci entre outrasfiguras que marcariam meus direcionamentos, o Fonseca, sub-oficial da reserva
que estava prestando serviços para a TASA (Telecomunicações Aeronáuticas
SA), uma empresa civil que na época terceirizava a manutenção de três
equipamentos de auxílio à navegação na Área de Aproximação Terminal de
Curitiba.
Esse Fonseca era um senhor de estatura mediana, com fartos cabelos lisos e
grisalhos, lá pela casa dos cinqüenta e a quem todos chamavam de Coroa. Até
ele se referia a si mesmo chamando-se de Coroa. O Coroa era um coroa boa-
pinta que vivia às voltas com telefonemas de garotas que choviam em cima dele.
Eu, como todo garoto esperto, queria assimilar o máximo possível das
experiências e lições de vida que aquele cara que a mim se afigurava num
paizão. Gostava muito de ouvir suas histórias dos tempos que ele estava na
ativa as quais ele contava com uma falta de modéstia e tanto orgulho que
fascinava a minha mente. Como todo coroa que se preze, ele gostava de ensinar
os mais novos e como eu estava sempre disposto a ouvir com interesse ele mais
ou menos me “adotou”. Ele me chamava de Novinho, um apelido comum usado
na Força Aérea para denominar os novatos.
“Novinho, ouve os conselhos do Coroa se você quiser se dar bem na Proteção
ao Vôo”, ele falava. Eu admirava e respeitava o Coroa e ele me brindava com
suas pérolas.
O Coroa gostava de dizer que ele era o mantenedor da “Santíssima Trindade”,
um apelido bastante profano que ele dava ao trio de equipamentos fundamentaispara a aproximação do aeroporto de Curitiba. O ILS (instrument landing sistem)
sistema de pouso por instrumentos, que orienta a aeronave num eixo eletrônico
alinhado com o centro da pista e uma rampa também eletrônica que conduz a
aeronave como se ela estivesse num gigantesco tobogã a partir de uma
determinada altitude até tocar a pista, o DME(distance measuring equipment),
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equipamento medidor de distância, que informa ao piloto a distância, em milhas,
até a pista e o VOR (VHF Omni Range) equipamento que transmite faixas
eletrônicas em VHF em todas as direções e possibilita ao piloto saber qual o eixo
da rosa dos ventos que ele está utilizando para se aproximar do aeroporto,
esses eixos são denominados “radiais”.
Explicar o VOR a alguma pessoa leiga em navegação aérea é uma coisa um
tanto complicada. O Coroa costumava contar que quando a tal de “santíssima
trindade” foi instalada no aeroporto, a imprensa local compareceu para registrar
o acontecimento. E o Coroa lá, dando as sua explicações. Num determinado
momento um repórter faz a bendita pergunta; “Mas que é mesmo esse tal de vê-
o-erre?” e o Coroa conta com uma naturalidade de fazer crer a mais cética das
criaturas; “Aí eu disse pra ele, ta vendo aquela casinha metálica lá do outro lado
da pista, com uma antena em cima? Bom, em cima da casinha tem um grande R
pintado de vermelho, quando o avião passa em cima, o piloto vê o R e sabe que
está sobre o aeródromo”.
Ele jurava que era assim que tinha acontecido...
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Para pousar, subiu...
Os estados do sul do Brasil têm com característica na época de inverno, os
densos nevoeiros do amanhecer. Esse fenômeno é a dor de cabeça do pessoal
da aviação e a tortura dos passageiros que ficam esperando sua dissipação nos
saguões dos aeroportos.
Numa dessas manhãs eu estava de serviço e Foz do Iguaçu. Uma aeronave
Avro da FAB, fazendo uma linha do Correio Aéreo Nacional, estava vindo não
me lembro de onde. O piloto sabia que o aeródromo estava fechado, ao entrar
na Área Terminal informei-o das condições, disse que não havia previsão de
tempo estimado para abertura, perguntei sua autonomia, tempo máximo previstopara espera e aeródromo de alternativa. Apesar disso ele solicitou autorização
para iniciar a descida. Ao chegar no que denominamos “bloqueio” do auxílio
(quando está exatamente em cima da estação transmissora do sinal), ele
solicitou autorização para efetuar o procedimento para pouso. Esse tipo de
procedimento prevê um afastamento em determinado rumo por um determinado
rumo, uma curva padronizada e uma aproximação final em um rumo prefixado, a
tudo isso soma-se uma descida até uma altitude estabelecida com sendo
“mínima de descida”. A partir daí ele deverá manter-se nivelado até um ponto
chamado “de decisão” onde o piloto deverá reiniciar a subia caso não tenha
avistado a pista.
O leitor deve sempre ter em mente que eu narro acontecimentos em aeródromos
nos quais, à época dos relatos, não havia auxílio radar, todo controle e
procedimentos era feito com base em informações transmitidas pelo controle e
pelos pilotos, tudo baseado nas informações dos auxílios à navegação. O
controle tinha de confiar nas informações prestadas pela aeronave e esta por sua vez confiar que o controle conhecia a situação e a área sob sua jurisdição.
Some-se a tudo isso os procedimentos de pouso e subida editados em cartas
(mapas) especiais para navegação aérea.
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Bem, o tal Avro foi autorizado a iniciar o procedimento, informado da visibilidade
abaixo dos mínimos estabelecidos e solicitado a informar quando atingisse a
altitude mínima de descida.
Minha companhia na torre era um cabo destacado na seção do Correio Aéreo
(CAN), o cabo Moacir, que estava esperando para receber a tal aeronave. Elecomentou comigo; “sargento esse cara não vai conseguir pousar, tá muito
fechado”. Eu sabia disso e fiquei esperando.
-“Atingindo a MDA (minimum descend altitude)...
-“Ciente, mantenha e informe avistando ou arremetendo.”
O tempo passa em câmera lenta e os olhos e ouvidos se aguçam silêncio... De
repente uma exclamação do Moacir me faz arrepiar...
-Sargento! Olha!
No mesmo instante que vejo o que ele me mostrava ouço no alto falante a voz
tranqüila do piloto;
-“Avistando”
Nem sequer pude dizer “Livre pouso”, ela já estava tocando o solo.
A razão do grito do Moacir e do meu arrepio é que não vimos um avião
descendo, mas... SURGINDO DO CHÃO, subindo para atingir a pista!!!!!
A final dessa pista em Foz é uma longa depressão no terreno, a cabeceira fica
em um ponto mais alto uns dez ou quinze metros, com muito exagero o tal piloto
desceu além da altitude mínima, veio baixando com uma visibilidade muitíssimo
reduzida até avistar o solo, manteve o rumo da pista e quando a avistou estava
um pouco abaixo (talvez um metro), daí foi só um pulinho e ele atingiu a
cabeceira.
Possivelmente eu e o Moacir tenhamos sido os únicos a ter presenciado uma
subida para pouso...
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“Tô nem aí...”
O aeroporto Afonso Pena no município de São José dos Pinhais é denominado
“Curitiba” para efeito de navegação aérea. Possui duas pistas que se cruzam em
um xis, na época em que trabalhei por lá essas pistas eram denominadas 15/33
e 10/28. Essa denominação se deve ao rumo magnético (proa) mostrado pela
bússola quando a aeronave está alinhada para decolagem ou pouso. Trocando
em miúdos, quando uma aeronave está na cabeceira da pista 15, a bússola
mostra um rumo entre 150 a 159 graus magnéticos, na cabeceira oposta, o rumo
será de 180 graus a mais ou a menos. Por esse motivo é que apesar de a pista
ser uma única entidade física, é tratada com sendo duas pistas, a pista 15 e a
pista 33. Quando disse que as pistas eram denominadas por aqueles números
na época que trabalhei por lá, é por que o norte magnético não é um ponto fixo,
ele varia, e de tempos em tempos é feita uma aferição e quando o rumo
magnético da pista 15 chega a 160 graus ela sofre uma redenominação e passa
a chamar-se 16, sendo sua cabeceira oposta agora a pista 34.
Bem a história que vou contar agora aconteceu em um noite sem lua nos idos de
1979. Uma aeronave Learjet preencheu um plano de vôo para São Paulo. Essarota usava a aerovia UG4 e seu rumo era mais facilmente alcançado com uma
decolagem da pista 15, com uma curva à esquerda e um procedimento especial
de subida devido à altura da serra cujo pico mais alto na região, o Marumbi tem
uma altitude por volta de 6000 pés.
O tal Lear solicitou autorização para acionamento de motores, foi efetuada a
solicitação de autorização de nível por ele proposto ao Centro Brasília e quando
ele solicitou táxi indiquei a pista 15. Liguei o balizamento e autorizei odeslocamento. Informei que era tráfego único no momento e autorizei sua
decolagem assim que estivesse pronto, dispensando assim uma série de rotinas.
Como essa é uma aeronave com uma razão de subida muito alta, autorizei a
fazer curva à esquerda e subir direto para o eixo da aerovia, sabia que a
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passagem pelas proximidades do Marumbi se faria a uma altitude mais do que
segura considerando o ponto onde ele iniciaria a curva à esquerda.
O camarada começou o taxi para a cabeceira 15, o balizamento ligado era o
daquela pista. Acompanhei o deslocamento e para minha surpresa, quando ele
passou pela cabeceira da 10, alinhou e ... decolou. Decolou de uma pista queNÃO estava iluminada, À NOITE!
É claro que você piloto experiente sabe que o balizamento é apenas um auxílio,
que muita gente pousa e decola à noite de pistas clandestinas não balizadas,
mas sabe também que os riscos sempre serão creditados ao piloto. Minha
surpresa se deveu ao fato de que isso ocorreu em um aeródromo controlado
com todos os auxílios disponíveis acionados no momento e que a autorização
havia sido dada para decolagem de outra pista.
A decisão de decolar da pista 10 certamente foi tomada por ser a que mais
rapidamente o levaria ao eixo da aerovia e por saber que aquela aeronave
superaria a altitude mínima de segurança bem antes das proximidades do
Marumbi. Tudo isso poderia ser amenizado com uma solicitação do piloto para
utilizar a pista que ele achasse ser mais conveniente, mas ele simplesmente
ignorou e descumpriu as autorizações.
Após a decolagem cumpri a rotina informando a hora de decolagem e solicitandoque reportasse ao atingir a aerovia, para me resguardar informei (para que
ficasse gravado) que ele havia decolado de uma pista para a qual não havia sido
autorizado e cujo balizamento estava desligado. Ele apenas respondeu “ciente” e
foi-se embora piscando sua lindas luzezinhas pela plácida noite paranaense.
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Rota de colisão
Vou contar neste livro algumas coisas que certamente me colocarão em situaçãono mínimo desconfortável, mas que não poso levar comigo para o túmulo. Talvez
algum leitor me julgue um exibicionista e... afinal é isso mesmo que todo escritor
é. Já estou aposentado e não creio que isso poderá me trazer como
conseqüência uma penalidade maior que a auto-incriminação que sofro com a
simples lembranças dos fatos.
Logo que cheguei a Curitiba, oriundo da Escola de Especialistas de Aeronáutica,
o controle da área de aeródromo (Torre) e da área terminal (Aproximação) era
acumulado por um único operador supervisionado e auxiliado por um dirigente
(outro controlador mais experiente). Pouco tempo depois foi estabelecida mais
uma freqüência de rádio e outra console de operação para que fosse separado o
controle de aeródromo do controle de aproximação. Fui um dos primeiros a
trabalhar em Curitiba com essa separação de posições e funções de controle.
O controle de aeródromo ficava na mesa principal, voltada para as pistas e o
controle de aproximação era em uma mesa logo atrás, de costas para as pistas
já que esse tipo de controle não depende de avistar as aeronaves. O segredo detudo é a perfeita comunicação e coordenação entre os controladores. A TWR
(torre) deve informar ao APP (aproximação) as aeronaves com previsão de
partida, nível solicitado e rota. Solicitar as devidas autorizações de decolagem e
transferir o controle da aeronave que parte para o APP logo após a decolagem,
da mesma forma o APP deve informar à TWR as previsões de chegada e
transferir o controle das aeronaves que chegam assim que elas indiquem que
vão prosseguir visual ou no final de um procedimento de descida por
instrumentos.
Naquele fim de tarde estávamos um novato, recém saído do estágio, na TWR e
eu no APP. O APP estava com uma aeronave T-23 da FAB que efetuava um
procedimento para pouso por instrumentos na pista 15, era um procedimento de
treinamento e a aeronave efetuaria arremetida na final com curva à esquerda
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para prosseguir pouso visual no aeródromo do Bacacheri. A coordenação era
entre a TWR Bacacheri e o APP. A TWR Curitiba (meu companheiro) tinha uma
aeronave Boeing 737 para decolar de Curitiba com destino a Foz do Iguaçu. O
APP sabia dessa decolagem e estava aguardando a transferência do tráfego
para fazer a coordenação. Você leitor que conhece o metiê, seja controlador ou
piloto já está prevendo o desfecho do caso e dizendo; “Vai dar M”... deu, ou
melhor quase deu.
Na minha mesinha, olhando para a direita eu conseguia até ver o T-23 com o
farol aceso na final bem distante da 15 e ouvia o taxiar do 737 nas minhas
costas, mas algo não se encaixava... Ouvi o som das turbinas a toda potência na
decolagem e o velho arrepio veio muito tarde... Escutei o som da reversão das
turbinas e me virei para a pista no exato momento em que o 737 saia da pista 33
e entrava na 10, abortando violentamente a decolagem ao mesmo tempo em
que o farol na final iniciava uma curva à esquerda. Começamos uma tentativa de
“olha só o que você fez cara”, mas retomamos rapidamente o controle. Peguei o
microfone da TWR e perguntei ao 737 o motivo da abortagem (como se não
soubesse) ao que ele explicou que havia avistado um farol de pouso na final da
pista oposta. Disse-lhe que era um tráfego em aproximação para o Bacacheri
que estava coordenado e visual com a decolagem dele, autorizei-o a prosseguir
taxiando para a pista 15 e decolar com curva à direita e subir no rumo da
aerovia. Transferi o T23 para o Bacacheri e comecei a arrumar a casa.
Apesar de distantes, as zonas de tráfego de aeródromo do bacacheri e Curitiba
têm uma proximidade que, naquela hora, exigia que a TWR CT tomasse
conhecimento do tráfego, pois aquele estava na aproximação final de uma pista
sob sua responsabilidade. Faltou coordenação entre a TWR e o APP quanto à
pista onde seria efetuada a decolagem do 737. Costuramos os remendos, a
coisa ficou só entre nós, mas pela providente intervenção de Deus não ocorreu
uma desgraça.
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Foi por medo de avião...
Minha mãe tinha medo de andar de avião. Cresci ouvindo minha avó dizer
que se Deus quisesse que ela voasse ela teria nascido com asas, minha mãe
certamente ouviu isso dela muito mais que eu e deve ter assimilado bem a
lição. Vovó morreu sem nunca ter sequer entrado em um avião, minha mãe...
bem com ela a história foi um pouco diferente...
Trabalhei em Foz do Iguaçu por cerca de quatro anos, minha mãe foi me
visitar algumas vezes. Ela adorava passear e o fato de os filhos morarem emlugares diferentes e distantes era uma excelente oportunidade para fazer o
que ela mais gostava e a um custo bem mais em conta. Como já disse em
outros capítulos, ela gostava muito do ambiente dos aeroportos e por minha
causa tinha um certo acesso às torres de controle por onde passei. Ela
aproveitou muito do privilégio que só uns poucos temos de estar quase como
que dentro de muitas aeronaves ao mesmo tempo, falar com os pilotos e
interagir no vôo de cada um deles, além de poder ver ao vivo, em cores e em
tempo real a progressão no solo, decolagens e pousos.
Certa feita ela estava me visitando em Foz, havíamos passeado nas
cataratas pela manhã e à tarde eu estava de serviço na sala de informações
aeronáuticas, onde se recebe os planos de vôo e se presta informações aos
pilotos. Como de costume ela foi com o marido passear no aeroporto e eu
aproveitei para levá-la ao pátio para ver os aviões bem de pertinho.
Acontece que o piloto de uma empresa de turismo era meu particular amigo,
pilotava um monomotor que fazia vôos turísticos sobre as cataratas e a usina
de Itaipu, e nessa tarde lá estava ele fazendo uma inspeção de rotina na
aeronave. Chegamos perto, apresentei mamãe a ele e como todo aficionado
em aviação ele começou a mostrar o avião e contar algumas histórias.
Mamãe sempre foi um bom papo e logo eles já eram como velhos amigos.
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Enquanto ela estava distraída conversando com o marido, chamei o Arlei
(esse é o nome do piloto) de lado e disse; “cara, minha mãe morre de medo
de voar, quero lhe fazer uma surpresa, vamos distraí-la e você dá um jeito de
decolar, faz um passeio bem bonito com eles.” O Arlei, que é um camarada
que gosta de uma brincadeira, topou na hora.
Convidou-os para entrar no avião, ver de perto o painel, tocar nos controles.
Nem preciso dizer que o marido dela ficou como criança num brinquedo, mas
ela sempre com o pé atrás, desconfiada... de repente ele disse que ia ligar o
motor para eles sentirem a sensação, ao que ela replicou; “meu filho, você
não vai sair por aí voando, eu morro de medo e fico de mal com você pro
resto da vida.” Ele sorriu e para tranqüiliza-la disse que não tinha problema, a
porta estava até mesmo aberta... Nessa altura eu já os tinha deixado e já
estava lá na torre para observar a burla.
O Arlei acionou fez o cheque de rotina e disse que ia só taxiar até a
cabeceira pra dar mais emoção. Chamou a torre e fez uma notificação de vôo
local, mamãe como não entendia daquilo ficou na dela. Eu mesmo aceitei a
notificação e dei as autorizações necessárias, quando ele chegou na
cabeceira já era tarde para qualquer reclamação, aumentou a potência e
partiu, mamãe só teve tempo de gritar;”meu filho, o que é isso?” e logo o
aviãozinho estava voando. Dei as instruções pós decolagem e completei;“aproveita o passeio mãe, é por conta da casa”.
Foi um vôo sob medida e à moda do “cheff”, sobrevôo das cataratas,
passagem sobre as três fronteiras, seguindo o curso do rio Paraná, sobrevôo
da Itaipu, passagem sobre o centro da cidade, além é claro, do bom papo
com o Arlei. Grande figura...
Aproximação direta para pouso, toque macio na pista, táxi e lá estava eu no
estacionamento para recepcionar os turistas. Já ao sair do avião ela mebrindou com o xingamento característico de quando ficava fula comigo; ”seu
filho duma ... que sou eu mesma, é claro”. Deu um abraço e um beijo no
Arlei, “brigada filho...foi muito bonito”.
Mas nunca mais até o dia de sua morte ela chegou perto de um avião...
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Buenas tardes Porto Velho
A língua internacional de tráfego aéreo é o inglês, pilotos de rotas
internacionais e controladores de vôo têm, como condição sine qua non, que
dominar esse idioma. Na Escola de Especialistas, no tempo em que passei
por lá, era oferecido um curso de conversação em inglês com duração de um
ano, com uma hora diária de aula. Os alunos adquiriam uma fluência, se não
ideal, pelo menos razoável na conversação e era comum os bate-papos e
brincadeiras em inglês.
Gostei tanto da experiência que passei a estudar o idioma de Shakespeare e
no final da carreira decidi cursar letras e me tornar professor depois da
aposentadoria.
A minha história de vida mostra que minha paixão e facilidade de
aprendizado com línguas estrangeiras remonta da infância. Minha bisavó e a
avó maternas eram uruguaias, falavam perfeitamente o português, mas
termos e expressões em espanhol eram comuns na conversação familiar. O
som do espanhol sempre me fascinou, gosto dos erres e esses sonoros e
sibilantes produzidos ao se falar nessa língua. Outra língua que me fascina é
o francês, fui aluno nota quase dez em francês no ginásio. Italiano é outra de
minhas preferidas, meu melhor amigo no início do ginásio é filho de italianos
e eu ouvia com deleite os pais dele conversarem e me pegava
compreendendo muito dessa conversação. O alemão com sua v iolência
consonantal e cadência militar na expressão também deixa meus ouvidos
deliciados.
Não sou exatamente um poliglota, mas falo um pouco de espanhol e meus
(bons) amigos estrangeiros dizem que meu inglês é bom (sem falsa
modéstia, tenho plena consciência de que ele é apenas razoável).
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Uma tarde eu estava operando na TWR/APP Porto Velho e recebemos um
plano de vôo de uma aeronave da Força Aérea Americana (USAF). Naquele
tempo Porto Velho ainda não era aeródromo internacional, por isso antes de
pousar lá ela havia passado por Rio Branco. Ao entrar na nossa área de
controle o piloto, ao fazer a chamada inicial, teve uma infeliz idéia e, com
toda aquela simpatia e cordialidade ianque soltou: “Buenas tardes Porto
Velho, como está la fiesta?”. Sou um camarada de respostas imediatas e
respondi incontinenti: “Good afternoon, sir. This country is Brazil, we speak
Portuguese here not Spanish. I understand and can speak that language, but
as the aviation international language is English, you can speak your mother
tongue1”. Após alguns segundos de constrangedor silêncio veio um solitário
“sorry”. O sargento Paulo Amaral que era meu companheiro de equipe
admirava essa minha característica e soltou seu costumeiro “Pô gaúcho, tu éf... mesmo!”.
Esses donos do mundo infelizmente são péssimos em geografia e acham
que abaixo de sua fronteira com o México todo o restante da América Latina
fala espanhol.
Um assunto com o qual tenho insistido muito com meus alunos é a questão
da valorização do nosso idioma. Uma grande parte dos brasileiros acha que é
bonito falar com os gringos na língua deles ou se esforçar para entendê-la ese fazer entender aqui na NOSSA terra, aí fica inventando um
“angloportunhol” para tentar fazer a sua média com os estrangeiros. Minha
sugestão é sempre uma frase que tenho usado bastante com aqueles que
acham que tenho a obrigação de entender a falar a língua deles aqui no meu
país: “In your country I’ll speak your language2, mas no meu você vai falar a
minha!!!”
1 Boa tarde senhor. Este país é o Brasil, nós falamos português aqui e não espanhol. Eu compreendo e falo aquela língua, mas como a
língua internacional da aviação é o inglês, você pode falar na sua língua.
2 No seu país eu falarei a sua língua.
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Pérolas da fraseologia padrão.
A comunicação aeronave/controle precisa ser breve, concisa e isenta de duplainterpretação. A aeronave não pode parar no acostamento e esperar por isso as
mensagens precisam ser tão curtas quanto possível. Qualquer engano ou erro
pode ser fatal, assim as palavras devem ser cuidadosamente escolhidas de
modo a não deixar dúvidas. Por esses e outros motivos que não irei enumerar
aqui, existe o que se chama de “fraseologia padrão”, palavras e frases pré-
fixadas que pretendem dar conta da maioria das situações que envolvem o
tráfego aéreo.
Para começar, as letras do alfabeto têm nomes. Para evitar confundir “be” com
“pe”, por exemplo, diz-se “bravo” e “papa”. Não se deve dizer “um” mas “uno”, e
para não confundir “três” (treis) com “seis”, fala-se “meia-dúzia” ou simplesmente
“meia”.
Existe todo um jargão peculiar no meio aeronáutico; circuito de tráfego (espaço
onde a aeronave evolui para pouso em um aeródromo), ou simplesmente
circuito; bloqueio (quando a aeronave passa em cima da estação emissora do
sinal do auxílio à navegação); auxílio à navegação (qualquer luz ou estação
emissora de sinal que sirva de orientação e apoio à navegação aérea) e por aí
vai.
Quando eu estava na Escola de Especialistas de Aeronáutica, cursando Controle
de Tráfego, tínhamos aula de “califasia”, que era treinamento de bem-pronunciar.
Os erres, os esses, os eles e as vogais tinham de ser meticulosamente
treinados. Além disso existiam as aulas de fraseologia onde decorávamos e
praticávamos frases e expressões padronizadas para a maior parte dassituações.
É óbvio que o controlador não é uma máquina e vez por outra a fraseologia dá
lugar à criatividade que é uma característica essencial desse tipo de profissão.
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Quando se está negando algo, a palavra é única: “Negativo”. Tenho por
característica o fato de ser muito enfático, falo com firmeza e com um acento que
a maioria das pessoas confunde com grosseria, mas é só para evitar deixar
qualquer dúvida sobre o que estou negando ou afirmando. Uma vez quando
estava por terminar meu estágio operacional uma aeronave solicitou não-lembro-
o-quê e eu simplesmente falei neste meu tom de grande delicadeza:”Negativo”.
O controlador dirigente que era o meu grande amigo sargento Carneiro olhou pra
mim e falou: “Nossa novinho, esse teu NEGATIVO parece uma paulada, tenta
ser mais delicado”. Delicado eu?... Mas eu sou de Bagé tchê!
De outra feita, também logo no início, autorizei uma aeronave taxiar para a pista
15 em Curitiba e o piloto solicitou autorização para “treque-treque”. Como não
conhecia o procedimento, perguntei pro sargento Celso, que era meu dirigente, o
que seria aquilo. Ele quase caiu de tanto rir, enquanto isso outro controlador
assumiu o controle. Quando o Celso parou de rir e me gozar, explicou que o
piloto havia solicitado “back track”, (algo como “ir para trás pela pista”) ou seja,
como o caminho pela pista de táxi era muito comprido ela havia solicitado taxiar
do pátio para a cabeceira pela pista de pouso mesmo.
O controlador costuma solicitar aos pilotos que informem quando tiverem
efetuado algo solicitado. A palavra é “reporte”. “Reporte iniciando a curva”,
“reporte passando em tal ponto” etc. Um amigo que estava fazendo curso depiloto e costumava freqüentar a torre em Foz do Iguaçu não havia ainda
assimilado o significado da palavra e certa vez me perguntou com toda
ingenuidade: “Aquino, que negócio é esse de “recorte”?”. É claro que não fiz
como o Celso tinha feito comigo, mas que deu uma vontade...
Esse mesmo amigo de outra feita se redimiu com louvor. O nome dado às rodas
do avião e todo o aparelho que as sustenta e/ou recolhe é “trem de pouso”. Ele
contava e morria de rir que um conhecido seu, que pilotava para determinado
fazendeiro, certa vez esqueceu de baixar o trem de pouso numa aterrissagem.
Não foi um acidente de maiores proporções e não sei como o camarada
continuou pilotando para esse tal fazendeiro, mas a cada aproximação para
pouso ele ouvia do patrão: “Óia o rudeeeio fulano”.
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Em tráfego aéreo, todos os procedimentos são feitos mediante “autorizações”.
Os órgãos de controle “autorizam” ou não cada procedimento solicitado pelos
pilotos. As frases iniciais de cada contato avião/controle normalmente começam
assim; “Fulano de tal solicita autorização para tal procedimento”, ao que o
controle normalmente responde: “Fulano de tal,autorizado assim, assim e
assim”. Certa feita um piloto que não devia ser muito acostumado a operar em
aeródromos controlados chamou a torre e disse: “Torre Londrina, papa-tango
fulano de tal solicita “permissão” para decolagem.” Acostumado que sou aos
comandos de ordem-unida não me fiz de rogado e soltei:”Permissão concedida!”
... Eita, nóis!
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O avião do presidente pousou na pista errada...
Esta história não aconteceu comigo, nem sequer me lembro de onde a
recolhi, mas considerando os personagens envolvidos e minha experiência
com eles, não tenho razões para duvidar de sua veracidade.
O transporte do presidente da república quando viaja de avião é da
responsabilidade da FAB, existe uma aeronave especialmente preparada
para esse fim, no momento é um Airbus, mas já foi o Avro, o Boeing 707, o
737 e outros. Essa aeronave, quando efetivamente conduzindo Sua
Excelência, recebe o indicativo de chamada de Força Aérea 01 e sempre é
pilotada por um oficial superior. Acontece que em determinadas viagens,
devido às condições do aeródromo de destino, emprega-se o tipo de
aeronave que melhor se adapte às peculiaridades da pista, nessas ocasiões
a aeronave utilizada também receberá o indicativo de Força Aérea 01.
O último presidente militar que tivemos foi o general João Batista Figueiredo,
um oficial oriundo da arma de Cavalaria e que era conhecido pelas suas
maneiras diretas e intempestivas de se manifestar verbalmente. Exemplos
disso são as célebres frases: “Se eu ganhasse salário mínimo, daria um tiro
na minha cachola”. (resposta dada a um estudante primário que lhe
perguntou o que ele faria com um salário mínimo); “Prefiro a companhia de
meus cavalos à do povo” e “Me esqueçam” (esta quando deixou a
presidência).
Em uma de suas viagens pelo interior do Brasil (não me lembro se no
Amazonas ou no Mato Grosso), ele estava sendo transportado por um C115Búfalo. A região não era suficientemente apoiada por auxílios rádio de sorte
que o vôo seguia navegação visual. Nesses lugares faz-se necessário que o
piloto esteja bem familiarizado com a área após ter feito alguns vôos sob
supervisão de um outro piloto que conheça bem a região.
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Naquele dia parece que a escolha do piloto se deu pelo que se costuma
chamar na caserna de “chave de galão”, ou seja, o militar usa sua
precedência hierárquica para obter vantagens. Em resumo o tal piloto não era
familiarizado com o destino. Resultado... pousou na pista errada, errou o
destino. É claro que decolou e acabou encontrando afinal o aeroporto para
onde deveria conduzir Sua Excelência.
Figueiredo não deixou por menos, brindou o infeliz oficial com uma de suas
pérolas: “Teria sido melhor dar esta missão a um de meus tenentes de
cavalaria, ele certamente não se perderia assim”.
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Um companheiro que desaparece
Lembram do PT IVO, aquele que caiu na decolagem em Curitiba? Como disse a
história dele não acabou naquele dia.
Depois de trabalhar em Curitiba fui transferido para a bela Foz do Iguaçu onde
servi por quatro anos. Fiz bons amigos por lá, entre eles o Celso, que era aluno
do aeroclube e tinha uma loja de peças automotivas e o Hilo, um paranaense de
voz firme e opiniões fortes.
O Hilo foi uma vez presidente do aeroclube e a aeronave que ele pilotava era
nada mais nada menos que o Beech Bonanza PT IVO. Acho que nunca cheguei
a comentar com ele a respeito do acontecido em Curitiba com aquela aeronave,
também não sei se ela era propriedade dele ou se ele era apenas o piloto.
Após quatro anos em Foz fui transferido para Londrina, mais uma linda cidade
paranaense que continua progredindo e crescendo vertiginosamente. Morei em
Londrina outros quatro anos e vez por outra voltava a Foz onde vivem osparentes de minha mulher.
Numa dessas viagens precisei comprar uma peça para reparo de meu carro e, é
claro, fui à loja do Celso. Conversa vai, conversa vem, perguntei pelo Hilo. A
resposta caiu como uma pedra na minha cabeça:
“O Hilo deve estar encravado em algum mato ou no fundo de algum rio no
caminho daqui pra Curitiba”.
“O quê?!” perguntei, “que história é essa?”
Aí o Celso me deu um tipo de notícia que sempre enche de angústia e tristeza o
meu coração:
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“O Hilo caiu... saiu daqui pra Curitiba e até hoje não chegou por lá... nunca
encontraram o avião”.
Na rota entre Foz e Curitiba definitivamente não existem lugares onde uma
aeronave, mesmo pequena, possa desaparecer. O sumiço do Hilo se me afigura
como mais um desses mistérios da aviação. O curioso de tudo é que foi umaaeronave que eu havia visto cair, depois vi voando de novo como uma Fênix
moderna, o nome do piloto com quem essa aeronave sumiu tinha o som
parecido com o conjunto de letras de sua matrícula: aeronave IVO, piloto Hilo.
Os dois xarás uniram-se num destino final, quem sabe um dia destes um
camponês qualquer vai dar com um aviãozinho perdido por aí coberto de mato e
o Hilo vai finalmente ter uma sepultura digna de um ser humano...
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¡Usted es un asesino!
Esta história foi contada por um sargento que foi meu instrutor na Escola. Ele
a contou como parte de uma aula sobre controle de aeródromo e o
controlador da história foi ele mesmo. Omitirei seu nome por não saber por
onde ele anda agora e por não ter sua autorização para isso. Ele falou que o
fato ocorreu no aeroporto de Congonhas, São Paulo.
Congonhas é um dos mais movimentados aeroportos do Brasil e fica na área
urbana da cidade de São Paulo. Sem entrar no mérito da questão e apesar
das facilidades obtidas ao utilizarmos um aeroporto que fica bem mais perto
de qualquer lugar onde se queira ir na maior cidade do país, acho, e sou
acompanhado por muita gente nesta opinião, que operar um aeroporto no
meio de uma cidade é uma temeridade.
Como disse, Congonhas é um aeroporto de intenso movimento de tráfego
aéreo e já era assim na década de 70 quando esta história aconteceu. As
operações de pouso e decolagem sucedem em intervalos que, para
segurança do tráfego estão dentro dos mínimos estabelecidos. Levemos emconta que esses mínimos são estabelecidos por organismos internacionais e
pretendem cobrir uma gama bastante dilatada de situações. Para duas
aeronaves em situação de aproximação para pouso leva-se em consideração
as suas velocidades de aproximação, tamanho, agilidade de movimentação
no solo para livrar a pista e condições meteorológicas. Mas a palavra chave é
“mínimo” e, convenhamos, mínimo é uma coisa muito pequena.
Pousa uma aeronave e já vem outra alinhada na final aguardando
autorização do controle para prosseguir para o pouso. A aeronave
precedente toca a pista e assim que ela sai (livra a pista), a outra é
autorizada a pousar e isso é um contínuo. Avalie leitor a carga estressante de
um controlador (obviamente não existe apenas um operador na torre) nesse
entra e sai contínuo. Um avião toca o solo, ele observa o seu trajeto para sair
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da pista e acompanha ao mesmo tempo o que vem atrás, avaliando todas as
possibilidades e pronto para dar uma instrução alternativa para essa
aeronave que se prepara para pousar.
Meu professor era um novato à época do acontecido. Mesmo sendo
considerado competente para o serviço, ele era um novato e apesar dacompetência faltava experiência. Ele conta que naquele dia tudo estava
acontecendo dentro da normalidade; garoa fina, teto baixo, pista molhada,
aeronaves pousando e decolando naquele vai-e-vem, olhos atentos. Um
avião acabara de tocar o solo e já se avistava as luzes de um outro na final,
esse outro era um bimotor a hélice, não me lembro o tipo mas acho que era
um Avro. Olho na pista, olho na final, olho na pista, olho na final... o que
pousara estava demorando, na opinião dele, um pouco mais que o normal
para livrar a pista e ele tinha de tomar uma atitude. Pegou o microfone e
transmitiu; “Argentina fulano de tal, faça três-meia-zero pela sua direita,
reporte realinhando com a pista”. “O cara saiu lambendo os prédios que tem
na final” - palavras dele mesmo que fez o barulho característico com a boca
(wooooommmm!!!!) e o gesto de uma mão passando sobre a outra
representando o avião e os prédios. O professor disse que sentiu que alguma
coisa não acontecera como ele pensara. A aeronave realinhou com a pista, a
precedente já havia livrado e o Argentina finalmente foi autorizado a pousar.
Alguns minutos depois o telefone da Sala de Tráfego soa, ele atende e ouve
o piloto argentino bufar; “Usted es un asesino, un asesino!!!!”
Sempre digo que experiência é algo que se adquire, que se experimenta, não
pode ser ensinada nem transmitida, tem de ser vivida. Naquela aula o
objetivo do sargento era nos mostrar que mesmo uma operação
regulamentar tem que estar baseada em conhecimentos e experiência. Três-
meia-zero (pela direita ou pela esquerda, conforme a situação) é uma curva
de 360 graus efetuada para aumentar a trajetória da aeronave. Como já disseantes, um avião não pode aguardar no acostamento, e um procedimento que
o controle pode utilizar para ganhar tempo é solicitar que o piloto faça essa
curva. O controlador naquele momento concluiu precisava de um tempo extra
para autorizar o pouso do Argentina com segurança, poderia ter solicitado
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uma arremetida mas seria um tempo por demais longo até a aeronave
retornar para o circuito de tráfego e entrar novamente na final. A curva
solicitada daria o tempo na medida para aquela operação, tudo certo, tudo
dentro das regras, teoria nota dez, competência para decisão nota mil, não
fosse por dois detalhes; altitude e velocidade. O bimotor estava muito baixo e
a velocidade reduzida para pouso. Só Deus e os pilotos sabem a proeza feita
por aquele comandante para cumprir a determinação do controle e efetuar
aquela curva, por isso ele chamou o controlador de assassino depois. Uma
arremetida em frente faria a aeronave readquirir velocidade e ter assim
sustentação para se manter voando, o tempo seria maior, as complicações
advindas dariam um atraso possível de ser contornado e a segurança não
perderia seu brilho. É claro que meu professor não deve arcar com o peso de
toda a culpa. As solicitações e autorizações dos órgãos de controle sãopassiveis da análise do piloto e este pode solicitar um procedimento de
acordo com a performance da aeronave e era isso que ele deveria ter feito.
Levemos em conta, porém, que essas situações requerem ações imediatas,
raciocínios rápidos e tomadas de decisão instantâneas e que os atos reflexos
tanto podem ajudar como piorar uma ação. Uma solicitação do controle tem
de ser seguida dentro de prazos que podem significar vida ou morte e os
pilotos se condicionam a cumpri-las. Coloca-se a culpa em fulano ou beltrano
depois da situação ocorrida e normalmente a pessoa que o faz não estava lá,é o que se costuma chamar de “engenheiro de obra pronta”. É fácil dizer o
que devia ter sido feito, difícil foi a atitude tomada por quem fez.
Um acidente não é fruto de uma única ação, é uma somatória. Naquele dia a
soma foi a favor dos envolvidos pela falta de uma ou duas parcelas. Valeu a
lição.
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Mais uma de rumos convergentes
No momento em que escrevo estes relatos estou na reserva há nove anos,
não mantive contato com o serviço de controle de tráfego aéreo e certamente
muita coisa deve ter mudado. Uma área de controle terminal (TMA) era, na
época em que estava na ativa, um espaço cilíndrico de 54 milhas náuticas de
raio, aproximadamente 100km, estendendo-se até 20.000 pés de altitude,
mais ou menos 6km. O centro desse espaço é o aeródromo digamos,
principal, da região o qual dá o nome para a área.
O órgão responsável pelo controle na TMA é o controle de aproximação
(APP), esse órgão tem como responsabilidade manter o tráfego de chegada
e saída fluindo ordenadamente e separado longitudinal e verticalmente dentrodos mínimos estabelecidos. Numa TMA onde não existe serviço radar o
controle é exercido tendo como base as informações transmitidas pelas
aeronaves. O operador deve indagar a posição em relação ao norte
magnético ou auxílios rádio e a altitude em pés registrada pelo altímetro e
munido dessas informações autoriza descidas e subidas em rumos
diferentes. Quando o rumo é o mesmo existe um tempo mínimo para separar
uma aeronave que vai seguir outra e uma separação em altitude até o ponto
de cruzamento entre uma aeronave que chega e outra que sai. Este capítulo
não pretende ser uma aula de controle de aproximação, estou apenas
contextualizando o assunto para que o leitor possa imaginar a complexidade
desse serviço.
Em terminais de baixo fluxo de tráfego o controle é, por vezes, acumulado
pelo controle de aeródromo, a torre (TWR). É um serviço fascinante, você
precisa utilizar uma acurada visão espacial, fazer cálculos instantâneos e
tomar decisões imediatas. Os controladores de vôo costumam chamar para aclasse um status de super especial e cometer o pecado da falta de modéstia
(mas fala a verdade: nós somos mesmo especiais).
Naquela manhã lá estava a dupla de super-controladores mantendo o tráfego
da TMA Curitiba fluindo ordenadamente quando a seqüência de
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acontecimentos que dão origem a todo acidente começou. Um 727 da
Transbrasil decolou para São Paulo e foi autorizado a subir com proa de
Paranaguá para interceptar a aerovia. O controle tinha duas freqüências
operacionais, uma principal e outra reserva, o Transbrasil estava utilizando a
principal. Durante a subida um Bandeirante da FAB, que vinha de São Paulo
em uma aerovia inferior, entrou na Terminal. Foi autorizado a prosseguir na
proa de Paranaguá (!), de onde deveria retornar à proa de Curitiba para
iniciar a descida. Tudo poderia ser absolutamente normal se as duas
aeronaves estivessem na mesma freqüência (o FAB chamou na freqüência
de reserva e não foi instruído a modificar), não estivessem em rumos
convergentes e o 727 estivesse empregando uma razão de subida digamos,
habitual. A indicação de descer o Bandeirante com rumo de Paranaguá tinha
como motivo facilitar uma aproximação direta para a pista 33 e evitar osobrevôo do ponto mais alto da serra, o Pico do Marumbi. Depois de
Paranaguá a rota até Curitiba é mais ou menos livre de obstáculos e a
descida pode ser feita sem muitas restrições. Espera-se que um Boeing 727
ao passar por Paranaguá já esteja acima do nível 150 pelo menos. Acontece
que o Bandeirante passou Paranaguá antes do tempo esperado e Não iniciou
a descida. O 727 por sua vez, sabe-se lá por que, utilizou uma razão de
subida mais, digamos, light . Num dado momento a voz indignada do
comandante da Transbrasil: “Ô Controle, acabamos de passar bem perto deum Bandeirante da FAB!”... Caramba! A Providência que é o anjo da guarda
dos anjos da guarda havia interferido e uma desgraça evitada. “Qual seu
nível Transbrasil?”, “Passando 095”, “OK o Bandeirante está descendo (?) do
080 e ciente de seu tráfego, estão separados em altitude regulamentar
suficiente”.
Como disse temos de tomar decisões instantâneas e naquele momento a
única decisão era a de dar uma resposta esfarrapada para manter a
tranqüilidade do piloto e sua confiança no controle e agradecer a Deus por
não ter acontecido uma tragédia. Mais uma pra minha lista de cuidados a
tomar; controlar e manter submissa a auto confiança, redobrar a atenção e
aumentar a experiência...
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... O senhor vai ficar muito tempo por aqui?
Curitiba tem um aeródromo no bairro do Bacacheri, é o que se chama deaeródromo misto; serve a uma unidade militar e é utilizado por aeronaves civis.O aeródromo do Bacacheri é controlado pela Torre Bacacheri, que controla otráfego local (que voa só no circuito do aeródromo). Na época em que servinaquela cidade, a unidade militar que compartilhava o aeródromo era a extintaEscola de Oficiais Especialistas e de Infantaria de Guarda, a EOEIG, hoje asinstalações abrigam o CINDACTA II. Servi na EOEIG em 1975 como cabo, fuipara a escola de sargentos (EEAer) em julho de 76 e voltei para servir comosargento controlador de vôo no Controle de Aproximação Curitiba no aeroporto
Afonso Pena que fica na cidade vizinha de São José dos Pinhais.
Bons tempos aqueles, o movimento do tráfego aéreo era bem pequeno, noBacacheri apenas os vôos locais da escola de pilotagem que lá existia e uma ououtra decolagem com destino ao interior do Paraná. Havia uma companhia detaxi aéreo com três lindos bimotores Cessna 310 e mais um ou dois Cessna 180e outro 210. O PT COE era um C-180 do aeroclube e o que mais voava, dois outrês alunos na parte da manhã e outros tantos à tarde. As aeronaves militareseram um garboso Douglas DC3 (C47 na FAB), um Regente (parecido com oCessna 172, monomotor, asa alta e capacidade para 4 pessoas) e a grande
novidade da época, o Bandeirante, novinho em folha (mais ou menos uns trêsanos de uso)
Naquele ano de 1978 eu era um “Novinho” como se diz no jargão da FAB paratodo sargento recém formado, uns dois meses depois de terminado meu estágioum colega do Bacacheri entrou em férias e não sei por que cargas d’águaalguém achou de me destacar pra substituí-lo. A torre Bacacheri naquela épocaera operada por apenas um controlador pela manhã e outro à tarde e eu estavaacostumado a trabalhar sempre com mais dois companheiros. No dia quemarcado para o início do meu trabalho lá tive um choque, cheguei às 6.30,pouco antes do nascer do sol que era o horário do início de funcionamento, subi
as escadas, passei pela estação de rádio dei um oi pro colega operador equando abri o alçapão olhei para todos os lados e não vi mais ninguém“Caramba, tô sozinho!!!”.
Comecei ligando o equipamento, olhei pro céu e lá estava a velha companheiradas manhãs de inverno em Curitiba, a cobertura cinzenta e baixa, mal dava praver o topo do edifício Itália que era o mais alto da cidade. Liguei para o controle e
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perguntei; “Ô Dineizão, como é que tá operando aí?” a resposta veio comesperado; “Ô Novinho, tu tá enrolado é? Aqui tá ILS porra!”
Curitiba operando ILS, significa que o teto está abaixo do mínimo para IFR,conclusão; Bacacheri está fechado... O ILS é um sistema de pouso mais preciso,ele determina um rumo e uma rampa de aproximação e a aeronave pode descer
um pouco mais que em um procedimento comum antes de atingir o contatovisual com a pista. Como o Bacacheri não possuia ILS, todos os pousos edecolagens naquele aeródromo só seriam autorizados a partir do momento emque a camada de nuvens estivesse mais alta, quando então seriam possívesprocedimentos de pouso por instrumentos, vôos locais então nem pensar; sódepois que as condições fossem mínimas para vôo visual.
Lá pelas nove da manhã abriu para IFR, nessas alturas eu já havia recebido unsdois telefonemas do aeroclube; “E aí sargento quando é que vai abrir?”
Nove e meia outro telefonema;
“Sargento, acho que o teto já tá bom, vou sair pra um local...”
“Negativo, só quando abrir visual!”
Abriu! Mas lá pelas dez e pouco. A passarada começou a voar e eu só ouviavozes meio emburradas na fonia.
No outro dia a mesma coisa. Ora Curitiba é uma ótima cidade pra se viver, maso nevoeiro e a cobertura de nuvens baixas pela manhã é a rotina no outono,inverno e início da primavera.
“Sargento que horas vai abrir?” Pergunta cretina pra quem é da aviação, naverdade é uma forma de pressionar para que se “quebre o galho” e permita umvôo com condições meteorlógicas abaixo dos mínimos. Acontece que eu nuncafui de “quebrar galho”, meu procedimento sempre foi pelo padrão e comecei adesconfiar que os colegas dali não jogavam no meu time... Dito e feito depois deuns três ou quatro dias dessa operação “padrão” o cara que telefonavaperguntou;
“Sargento, o senhor vai ficar muito tempo por aqui?!!!”
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Mais umas do Bulica
Já falei do meu amigo Bulica, o bicho era doidão mesmo.Certa feita, o controlador era o Dinei, grande (grande mesmo) Dinei!!! O Dineizãoera enfezado, falava fino, mas com uma rouquidão e um acento quase sempremal-humorado.
O Bulica tava com um plano de vôo para o interiorzão do Paraná. Foi autorizadoa decolar da pista 15 e solicitou curva à direita, o Dineizão aquiesceu. Nãodevia... o Navajo decola com pouca pista e o Bulica puxou a curva à direita comtodo o gás e passou roncando os motores num ângulo de quase 90 graus com osolo bem na altura da torre pelo lado direito do Dineizão (o Bulica sempre quis
ser piloto de caça). O Dineizão ficou uma fera, mas como tinha autorizado oprocedimento teve de ficar calado...
No outro dia quando me encontrou o grandão foi logo falando; “Novinho, falapraquele teu amigo gaúcho pra abrir o olho comigo, não sou de brincadeiraporra!!!”
Numa outra vez foi o co-piloto do gaúcho que me contou;
“Aquino, nem te conto a do teu amigo... Semana passada fizemos um vôo praBagé, precisa ver o que ele aprontou na chegada. Deu um razante na avenidaprincipal!!!”
Aí veio aquela gargalhada gauchesca do meu camarada;
“Bahh!!! Tu precisava ver tchê... Desci a Sete (avenida principal de Bagé)todinha, passei mais baixo que o Dom Diogo (edifício mais alto de Bagé naquelaépoca), cheguei a ver uma guria na janela dando tchauzinho. Háááááhááááá´!!!!Tchêeee!!!”
A gente tinha uns vinte e três anos na época... Graaande Bulica...
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LIVRE POUSO
Em janeiro de 1998 autorizei pela última vez o pouso de uma aeronave, depus omicrofone, fui para casa e despi para sempre meu uniforme de suboficial daForça Aérea Brasileira. A partir daquele momento eu ingressava na reservaremunerada, a aposentadoria dos militares. Não foi uma despedida triste, eutenho orgulho do que fui e do que fiz durante todos aqueles anos. Não vivo desaudade, posso dizer que sou um homem realizado, fiz o que gostava e sempregostei do que fazia. Pouco antes da minha passagem para a reserva ingresseino curso de Letras na Universidade Federal de Rondônia, graduei-me em janeirode 2002 e nesse mesmo mês, após ser aprovado em concurso público, comeceia trabalhar como professor de Língua Inglesa na Secretaria de Educação doEstado de Rondônia.
Setembro de 2006 marcou uma das maiores tragédias nacionais, um desastreaéreo de grandes proporções envolvendo um jato de médio porte e um Boeing737 da Gol. As aeronaves se chocaram no ar e o 737 caiu no meio da selvamatando todos os seus ocupantes. Começou então uma verdadeira via crucis para todos os que fazem parte do serviço de proteção ao vôo, tripulantes,funcionários de companhias aéreas, administração aeroportuária e passageiros.“Procura-se o responsável” uma verdadeira caça às bruxas, na linha de miraestá o controlador de vôo... Lembrei-me da frase que ouvi do Coroa quandocheguei sargento novinho em Curitiba: “Novinho te prepara e toma cuidado de
agora em diante você é o responsável por cada ‘pepino’ que acontecer por aqui.Se acontecer algum problema a primeira coisa que acontece é um oficial pegar otelefone e dizer – “positivo coronel, estamos tomando as providências, OSARGENTO JÁ ESTÁ PRESO.”
No momento em que escrevo estas linhas uma nova tragédia é manchete eocupa a atenção nacional, um Airbus da TAM desgovernou-se ao pousar noaeroporto de Congonhas,saiu da pista, atravessou uma avenida, chocou-se comum prédio, incendiou e todos os quase trezentos ocupantes morreram.
Desde o primeiro acidente tenho sofrido junto com os companheiros que tenho
visto nas manchetes da imprensa sendo acusados de serem os responsáveispelas tragédias. Veja um trecho de uma reportagem da Folha que acabo de ler:
FAB indicia controladores por acidente da Gol
02/10/2007 - 02h35
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da Folha Online
Cinco controladores de tráfego aéreo foram indiciados pela FAB (Força
Aérea Brasileira) no inquérito que investiga a queda do vôo 1907 daGol, ocorrida há um ano, informa reportagem da Folha de S.Paulo
publicada nesta terça-feira (íntegra disponível só para assinantes do
jornal ou do UOL). O acidente matou 154 pessoas.
A Folha revela que o IPM (Inquérito Policial Militar) encontrou 11 "fatorespreponderantes" para o acidente, desencadeados pelos controladores ou pelos pilotosdo jato Legacy --que colidiu com o Boeing da Gol. O documento, de 77 páginas, foi
encaminhado à Justiça Militar pelo comandante da Aeronáutica, Juniti Saito, no dia
19 de julho.
No documento, a atuação dos controladores no dia da queda é classificada com
termos como "displicência", "relaxamento", "falta de diligência" e "demora excessiva"nas tentativas de comunicação.
O Boeing 737/800 que realizava o vôo 1907 (Manaus-Brasília-Rio de Janeiro) caiu em
29 de setembro do ano passado, no norte de Mato Grosso, depois de bater em
um jato Legacy que voava no sentido contrário. As 154 pessoas --148 passageiros eseis tripulantes-- que estavam na aeronave morreram. Os sete ocupantes do Legacysobreviveram depois de um pouso de emergência na serra do Cachimbo.
Fora da esfera militar, as investigações da PF (Polícia Federal) terminaram com a
acusação de quatro controladores e dos dois pilotos do Legacy. Os
controladores denunciados à Justiça Comum são Felipe Santos dos Reis, JomarceloFernandes dos Santos, Lucivando Tibúrcio de Alencar e Leandro José Santos deBarros.
Todos eles são do Cindacta-1 (Centro Integrado de Defesa Aérea e Controle doTráfego Aéreo), de Brasília, e também fazem parte de lista de indiciados pela FAB. AAeronáutica, no entanto, indiciou também o controlador João Batista da Silva, de SãoJosé dos Campos (91 km a nordeste de São Paulo), de onde o Legacy decolou tendoos Estados Unidos como destino final.
A seguir transcrevo o comentário que enviei ao jornal a respeito dareportagem:
Esse tipo de atitude tomada pelo comando da Aeronáutica me faz lembrar uma frase que
costumava ouvir na época em que comecei a trabalhar como controlador de vôo em 1978. Um
controlador mais antigo me advertiu que sempre que ocorresse um problema operacional
qualquer a primeira atitude do oficial designado para investigar a ocorrência seria pegar um
5/11/2018 Livre Pouso - slidepdf.com
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telefone e dizer; "Ok coronel, já estamos tomando as devidas providências, o sargento já está
preso." O então chamado Serviço de Proteção ao Vôo sempre teve duas faces; a do pessoal
operacional, responsável, comprometido, atuante, resolvedor imediato de situações, estressado
pela situação do equipamento sempre operando no limite por falta de suprimento, técnicos
fazendo milagres para mante-los funcionando e lutando contra a burocracia e falta de verbas e o
outro; o dos comandantes quase sem formação na área, levados à condição de comandantes
pela pura imposição da hierarquia, aviadores que dividem o tempo entre manter-se
operacionais como pilotos e a tarefa de chefiar um órgão operacional, muitas vezes passando
dias e até semanas sem sequer aparecer no órgão, chefiando por memorandos e ordens.
Quando tudo vai bem recebem elogios, quando algo dá errado a culpa é do operador, "cadeia
nele". Os anjos da guarda não recebem apoio psicológico, moral nem instrucional. Os cursos que
aparecem sempre são para uma minoria, não há um verdadeiro programa de formação e
atualização contínua e sistemática para todos, investiguem a fundo e verão.
Essa é a verdade, os anjos da guarda não têm quem os guarde nesta esferahumana. Se tudo vai bem, nem sequer são lembrados em uma singela nota dereconhecimento (estão fazendo o seu serviço), mas basta um incidente para
serem colocados na linha de mira, “crucifica-o”.
Este livro é a minha forma de te homenagear companheiro controlador. Anjo daGuarda, invisível, olhar e ouvido atento, fazendo milagres para manter ordenadoe contínuo o caótico fluxo de tráfego aéreo, ouvindo do chefe as acusações queacabamos de ler na reportagem acima. Você que foi mal preparado, que depoisde receber o certificado de conclusão do curso foi abandonado na arena comose aquele certificado fosse um amuleto mágico que te concedesse poderessobrenaturais e nenhum aperfeiçoamento fosse mais necessário. Você queabraçou esta profissão com coragem, desprendimento, idealismo, vontade deservir, amor à aviação e dedicação. Continua teu sacerdócio, segue teuchamado, cumpre teu dever com coragem e desprendimento e um dia, no futuro,poderás olhar para trás e dizer: “Completei a carreira, fiz o que podia e fui além.Cumpri meu dever apesar de tudo”.
A você meu amigo leitor, foi um prazer ter estado com você. Obrigado pelacompanhia durante toda esta viagem, aperte o cinto, o controlador acaba dedizer “Livre pouso”...
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