Download - Literatura como Missão - Nicolau Sevcenko
I. A inserção compulsória do Brasil na Belle Époque
1. Rio de Janeiro, capital do arrivismo
A República instaura na cidade do Rio de Janeiro o processo de
“Regeneração” .
Marcos iniciais da transfiguração urbana da cidade do Rio de Janeiro:
- lei da vacina obrigatória
- inauguração da Avenida Central
- Exposição Nacional do Rio de Janeiro
“Quatros princípios fundamentais regeram o transcurso dessa metamorfose
[...]: a condenação dos hábitos e costumes ligados pela memória à sociedade
tradicional: a negação de todo e qualquer elemento de cultura popular que
pudesse macular a imagem civilizada da sociedade dominante; uma política
rigorosa de expulsão dos grupos populares da área central da cidade, que será
praticamente isolada para o desfrute exclusivo das camadas aburguesadas; e
um cosmopolitismo agressivo, profundamente identificado com a vida
parisiense.” (2003, p. 43)
“A expressão ‘regeneração’ é por si só esclarecedora do espírito que presidiu
esse movimento de destruição da velha cidade, para complementar a
dissolução da velha sociedade imperial, e de montagem da nova estrutura
urbana.” (2003, p. 43)
“Modelando-se essa sociedade, como seria de esperar, por um critério utilitário
de relacionamento social, não é de admirar a condenação veemente a que ela
submete também certos comportamentos tradicionais, que aparecem como
desviados diante do novo parâmetro, como a serenata e a boêmia.” (2003, p.
45- 46)
“Com a expulsão da população humilde da área central da cidade e a
intensificação da taxa de crescimento urbano, desenvolveram-se as favelas,
que em breve seriam o alvo predileto dos ‘regeneradores’” (2003, p. 46)
“Campanha mais reveladora dos excessos inimagináveis a que levava esse
estado de espírito foi a criação de uma lei de obrigatoriedade do uso do paletó
e sapatos para todas as pessoas, sem distinção, no Município Neutro. O
objetivo do regulamento era por ‘termo’ à vergonha a à imundície injustificáveis
dos em mangas-de-camisas e descalços nas ruas da cidade” (2003, p.46)
“O carnaval que se deseja é o da versão europeia, com arlequins, pierrôs e
colombinas de emoções comedidas, daí o vitupério contra s cordões, os
batuques, as pastorinhas e as fantasias populares preferidas: de índio e de
cobra viva” (2003, p. 47)
“A demolição dos velhos casarões, a essa altura já quase todos transformados
em pensões baratas, provocou uma verdadeira ‘crise da habitação’ [...] que
elevou brutalmente os alugueis, pressionando as classes populares todas para
os subúrbios e para cima das dos morros que circundam a cidade.
Desencadeia-se simultaneamente pela imprensa uma campanha, que se
prolonga por todo esse período, de ‘caça aos mendigos’, visando a eliminação
de esmoleres, pedintes, indigentes, ébrios, prostitutas e quaisquer outros
grupos marginais das áreas centrais da cidade” (2003, p. 47-48)
Havia um conflito entre a figura tradicional do índio, ligado a relação de tipo
senhorial e a figura do cidadão burguês da Belle Époque:
“[...] ao contrário do período da Independência, em que as elites buscavam
uma identificação com os grupos nativos, particularmente índios e mamelucos
– era esse o tema do indianismo – , e manifestavam ‘um desejo de ser
brasileiros’, no período estudado, essa relação se torna de oposição, e o que é
manifestado podemos dizer que é ‘um desejo de ser estrangeiros’” (2003, p.
51)
“A aparência elegante, smart, torna-se um requisito imprescindível – se
acompanhada do título de doutor ou honoríficos correlatos, tanto melhor [...]”
(2003, p. 57)
“Os ‘cavadores’, os ‘elegantes’, os ‘smarts’, os ‘sofisticados’, os ‘europeus’ –
os ‘encasacados e encartolados’ de Lima Barreto, enfim – tornam-se o símbolo
imediato do arrivismo e da ambição irrefreada e bem-sucedida” (2003, p.57-58)
No Rio, assistia-se a sobrevivência dos excluídos que se refugiavam em
habitações precárias, sem nenhuma condição higiênica de abrigar humanos.
Assumiam empregos instáveis, “desqualificáveis” , vistos como “profissões de
miséria”, senão criminosos ou ligados a prostituição. Percebe-se um alto índice
de crianças e jovens delinquentes envolvidos em ações criminosas. Crescia
nesse contexto o número de internações em Hospícios, e a ação suicida,
pratica endêmica na época.
Eclode a revolta Jacobina. Toda casta de insatisfeitos com o regime de
Floriano se mobilizam em motins contra os patrimônios públicos e instituições
representativas do regime. São as “vítimas da regeneração”. Na tentativa de
contê-los, os militares mediante uso indiscriminado na violência e brutalidade,
transportavam-nos para o Acre em condições semelhantes ao do tráfico
negreiros. O veículo era um navio-prisão, conhecido por “presigangas” , esses
veículos transportavam, sem distinção de sexo e idade, os suspeitos adeptos
do jacobinismo.
II. O exercício intelectual como atitude política: os escritores cidadãos
1. Os “mosqueteiros intelectuais”
“Arrojados num processo de transformação social de grandes proporções, do
qual eles próprios eram fruto na maior parte das vezes, os intelectuais
brasileiros voltaram-se para o fluxo cultural europeu como a verdadeira, única e
definitiva tábua de salvação, capaz de selar de uma vez a sorte de um passado
obscuro e vazio de possibilidades, e de abrir um mundo novo, liberal,
democrático, progressista, abundante e de perspectivas ilimitadas, como ele se
prometia. [...] O engajamento se torna a condição ética do homem de letras.
Não por acaso, o principal núcleo de escritores cariocas se vangloriava
fazendo-se conhecer por ‘mosqueteiros intelectuais’” (2003, p. 96-97)
“Os tópicos que esses intelectuais enfatizavam como as principais exigências
da realidade brasileira eram: a atualização da sociedade com o modo de vida
profamado da Europa; a modernização das estruturas da nação, com a sua
devida integração na grande unidade internacional; e a elevação do nível
cultural e material da população.” (2003, p. 97)
“[...] o caráter mais marcantes dessas gerações de pensadores e artistas
suscitou o florescimento de um ilimitado utilitarismo intelectual tendente ao
paroxismo de só atribuir validade ás formas de criação e reprodução cultural
que instrumentalizassem como fatores de mudança social” (2003, p. 99-100)
“O estabelecimento de uma vanguarda cientifica na área do conhecimento,
centrada ao redor das ciências naturais, esteve por trás de toda uma série de
fenômenos que revolucionaram a sociedade do Velho Mundo” (2003, p. 100)
“Em primeiro lugar, ela proporcionou uma nova explicação de conjunto para o
surgimento, a existência e a condição da espécie humana segundo a teoria
darwinista. [...] tornando-se o credo por excelência da Belle Époque. Em
segundo lugar, os avanços da área da microbiologia permitiram a Revolução
Sanitária, promovendo a explosão demográfica e a escalada maciça da
urbanização. E em terceiro, suas pesquisas no campo da física e da química
forneceram as bases da Segunda Revolução Industrial” (2003, p.100-101)
“[...]um dos efeitos mais notáveis desse processo de mudança foi o
aparecimento dos Estados-nação modernos. [...] O fato de os Estados-nação
se desenvolverem e se definirem por oposição uns aos outros e, por isso, como
em função da estabilidade interna, necessitarem gerar formas eficientes de
arregimentação social empenhadas na sua sustentação, promoveu um enorme
estímulo à germinação das ciências humanas.” (2003, p. 101 )
“Sem possuir propriamente uma nação e com um Estado reduzido ao
servilismo político, o Brasil carecia, portanto, de uma ação reformadora nesses
dois sentidos: construir a nação e remodelar o Estado, ou seja, modernizar a
estrutura social e política do país.” (2003, p.103)
“Mas o esforço prometeico dessa geração tinha também razões bem mais
palpáveis e urgentes para se desencadear do que o mero anseio reformista.
Tratava-se do temor obsessivo extremamente difundido e sensível em todo tipo
de escritor, de que o Brasil viesse a sofrer uma invasão das potências
expansionistas, perdendo a sua autonomia ou parte do seu território.” (2003, p.
104)
“Decorrência direta dessa dupla atitude reformista e salvacionista seria ainda a
avidez arrebatada com que os escritores iriam se entregar ao estudo dos mais
variados aspectos da realidade brasileira” (2003, p. 105)