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Juventude e periferia em cena: dramas e dramatizações da vida urbana nos saraus
literários da zona sul de São Paulo1.
José Carlos Gomes da Silva (UNIFESP – Campus Guarulhos)
Apresento nesse momento reflexões sobre dados iniciais do projeto de pesquisa O
Capão Redondo nas vozes dos adultos e jovens: lutas políticas, produções culturais e
segregação urbana na cidade de São Paulo (1978-2012), desenvolvido com apoio da
FAPESP. Analiso especialmente situações dramáticas como violência e racismo
enfrentadas pelos jovens do bairro Capão Redondo em décadas recentes. A partir da
etnografia desenvolvida nos saraus literários, Cooperifa, Binho e Vila Fundão, busco
compreender os dramas da vida urbana na perspectiva dos jovens. Nesses espaços do
lazer elaboram-se reflexões e reações nativas sobre diferentes modalidades de
segregação experimentadas na vida diária. A nossa hipótese é que os saraus mantêm
filiações com o movimento hip hop, mas se diferenciam na diversidade de propostas
artísticas. A reunião de diferentes práticas culturais, teatro, música, poesia, cinema,
vídeo, nos saraus, mantêm, contudo, a continuidade de um elemento caro ao hip hop,
isto é, a produção de uma arte engajada, que se manifesta nas esferas do discurso
(valorização da poesia) da expressão corporal e denúncia.
Palavras-Chave: segregação, ficção urbana, poesia, juventude.
Os saraus literários apresentam-se como uma prática cultural juvenil em franca
expansão nos bairros periféricos2 paulistanos. A Cooperifa – Cooperativa Cultural da
Periferia, principal sarau da Zona Sul, iniciou suas atividades em 2002. As referências
recentes de Sérgio Vaz, poeta, fundador e coordenador do sarau, aos 11 anos de
existência do evento confirmam que os organizadores se orgulham da “longevidade” e
legitimidade conquistadas por um experimento que tem atraído aficionados, artistas,
estudantes, professores, mídia, acadêmicos. Atividades literárias esporádicas,
produzidas por jovens na região, remontam à década anterior. Os depoimentos que
1 Trabalho apresentado na 28ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 02 e 05 de julho
de 2012, em São Paulo, Brasil.
2 Durante o período de pesquisa identificamos diferentes novas iniciativas de formação de novos saraus,
na Zona Sul, o Sarau da Ademar, O Sarau Paraisópolis, Nosso Sarau.
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obtivemos junto ao Binho, organizador de outro importante sarau, conhecido como
Sarau do Binho, indicam que por volta de 1995 grupos de jovens já se reuniam na
região limítrofe entre os bairros do Campo Limpo e Taboão da Serra para a realização
de encontros que tinham como objetivos ouvir música e declamar poesias. O primeiro
resultado concreto dessas reuniões foi o Postesia, poesia no poste3, movimento literário
que consistia em divulgar os poemas por meio da afixação em postes de luz. O Sarau da
Vila Fundão surgiu mais recentemente, mais precisamente em 2009. A iniciativa coube
a Fernandinho um jovem do próprio bairro que se inspirou nos poetas Binho, Sérgio
Vaz e Serginho Poeta, referências importantes quando se tratam de precursores.
A pesquisa que desenvolvemos visa compreender, por meio do método
etnográfico o significado dos saraus, apreender a organização interna, analisar o corpus
textual/oral e as performances, concentrando-se mais precisamente no estudo dos
poemas no contexto em que são recitados. Dirigimos a nossa atenção na pesquisa de
campo para a enunciação do discurso literário, para o desempenho não propriamente
para a estrutura do texto ou a decodificação das mensagens. A abordagem antropológica
que nos orienta tem como pressuposto uma concepção de cultura como essencialmente
pública. Acreditamos que somente compartilhando com os atores sociais de situações
públicas podemos apreender o sentido de uma prática cultural (GEERTZ, 1978).
Os poemas recitados, não necessariamente publicados, constituem a matéria
prima. O recorte se faz necessário, pois vigora nos saraus uma diversidade de práticas
culturais que incluem apresentações de músicos, danças, peças teatrais, vídeos, debates.
O segundo aspecto que nos parece central para a compreensão desses eventos é o
contexto urbano em que estes emergem. Admitimos como hipótese que as práticas
culturais que têm lugar nesses locais, não podem ser interpretadas de maneira isolada do
espaço mais imediato em que se inscrevem, ou mesmo da cidade. As transformações
urbanas verificadas recentemente em São Paulo não apenas estruturam práticas de
exclusão e segregação nos bairros da periferia, mas também são também motivo de
interpretação, reflexão e questionamentos.
3 Tive acesso ao exemplar de um livro que reunia parte desses poemas, pude, porém, apenas fotografa-lo
com o próprio Binho, pois se trata de raridade.
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As produções culturais acolhidas nos saraus interpretam por meio da linguagem
simbólica, peculiar às artes, uma realidade social que se tornou dramática nas últimas
décadas nas localidades desassistidas pelos poderes públicos. A reconstrução, ainda que
sintética, desse novo contexto urbano nos parece fundamental para a compreensão do
fenômeno sarau e da nova modalidade de literatura juvenil. Sem a explicitação da nova
condição da vida urbana o evento-sarau4, o corpus literário e as performances poéticas
poderiam ser reduzidos a uma simples resposta de natureza sociológica relacionada com
a falta de lazer, uma das muitas carências identificadas desde longa data pelos
pesquisadores na periferia.
Segundo a nossa perspectiva, os saraus não se reduzem apenas a um ato de lazer.
Trata-se de um experimento literário em uma situação de lazer, mas que busca
promover a reflexão sobre as consequências da segregação urbana, e em determinados
momentos, transcender essa instância reflexiva, inspirando intervenções no sentido de
transformar a realidade. Como nos situamos em uma tradição de Antropologia Urbana
que nas décadas de 1970/80 se debruçou sobre os movimentos sociais reivindicativos,
promovidos por adultos nos bairros periféricos, fomos tentados inicialmente a
interpretar os novos fenômenos como expressão de realidade semelhante. A análise do
contexto urbano permitiu-nos, porém, repensar o tema, pois não estamos mais diante de
um fenômeno que exprime apenas uma carência cultural, mas que se estrutura enquanto
instância de questionamento mais amplo sobre o modo de construção da vida urbana.
Mais que isto, procura auto-representar-se, valorizando as construções nativas e
rejeitando as formas de representação dominantes que estigmatizam.
Os locais onde os saraus se encontram são de fato herdeiros de uma tradição de
movimentos sociais que, em um momento específico, procurou responder a um
conjunto de carências sociais produzidas por um modelo histórico de ordenação do
urbano que separou o centro e a periferia. Que foi capaz de dotar os bairros centrais de
importantes equipamentos de lazer, segurança, infraestrutura e recursos sociais,
enquanto reduziu os bairros populares ao estado de abandono. Carências importantes
ainda são identificadas em larga escala na periferia, mas, especialmente após a
4 Utilizo o termo sarau para me referir à instituição, no caso, o Sarau da Cooperifa, Sarau Vila Fundão e
Sarau do Binho. Emprego o termo evento-sarau de maneira mais restrita, para me referir apenas às
práticas culturais internas, ao conjunto de ações, discursos, práticas e performances em um tempo e
espaço limitados que têm lugar nessas instituições.
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redemocratização do país uma realidade ainda mais traumática se impôs. A nova
modalidade de segregação socioespacial que passou a vigorar na cidade produziu uma
nova forma de exclusão. A violência do Estado que parecia atingir de forma seletiva, à
época do regime ditatorial, os militantes dos partidos de esquerda, passou a incluir de
forma indiscriminada as classes populares em décadas recentes. O imaginário difundido
sobre a escalada do crime violento foi tomado como justificativa para o
desenvolvimento de uma série de intervenções arbitrárias de controle sobre os cidadãos,
entre elas a conivência com as ações dos grupos de extermínio, prática de tortura em
presídios, execuções sumárias (CALDEIRA, 1991, 2000). É a esse caráter contraditório
entre democratização da sociedade e o desrespeito aos direitos fundamentais do cidadão
que a autora classificou como disjuntivo.
Essas investigações mostram o caráter disjuntivo da democratização brasileira (...) e
mostram como os direitos civis são não apenas o aspecto mais deslegitimado da cidadania
brasileira, mas também a arena na qual a democracia é publicamente confrontada e
desacreditada (CALDEIRA, 2000, p. 157).
O resultado imediato desse amplo processo de deslegitimação da democracia foi a
transformação dos bairros populares em autênticas zonas de guerra. O ápice desse
fenômeno na Zona Sul de São Paulo se deu em meados dos anos 1990, quando então,
regiões como o Jardim Ângela e Capão Redondo, Jardim São Luis foram consideradas
pela ONU as mais violentas do mundo. De fato os indicadores eram alarmantes,
atingindo-se no Jardim Ângela. Mas a situação se tornava ainda mais preocupante
quando o fenômeno era desagregado por faixa etária, percebia-se nesse caso que os
jovens eram os alvos principais da morte violenta. Quando o recorte etnicorracial era
requerido, constatava-se que os negros eram as vítimas preferenciais (WEISENFIELD,
2004). Contribuíram nesse sentido não apenas a ação da polícia, mas especialmente dos
grupos paramilitares, conhecidos como “pés-de-pato” e os traficantes de drogas.
Os bairros do Jardim Ângela, Capão Redondo e Parque Santo Antonio receberam
à época a triste alcunha de “Triângulo da Morte”. Em 1999 a região apresentava uma
taxa de homicídio de 116,23 por 100 mil habitantes. A Fundação Seade considerou ser
esta cifra a mais alta do ano e uma das mais elevadas do mundo (SEADE, 2000). Após
uma série de denúncias e iniciativas da comunidade os índices da violência regrediram,
porém, ainda se situam em patamares elevados. O estudo de Fátima Lico (2009, p. 200)
realizado recentemente em duas regiões extremas da Zona Sul, respectivamente, Grajaú
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e Jardim Ângela focalizando o grupo etário entre 10 e 19 anos constatou que o número
de mortes decorrentes de agressões e homicídios teve redução significativa, mas ainda é
elevado especialmente na região do Jardim Ângela, isto é, 44,6 por 100 mil habitantes
(LICO, 2009, p. 200).
Os jovens que fundaram os saraus literários viveram pessoalmente algumas dessas
experiências traumáticas, seja por tê-las sofrido diretamente no âmbito da família, seja
por testemunharem a morte de muitos amigos. Fernandinho, coordenador do Sarau Vila
Fundão, nos legou um registro impressionante desses momentos difíceis e os menciona
como motivação especial para a criação do sarau.
A minha vontade maior no sarau, foi que, como eu morei aqui uns 23 anos,
de 1977 a 1996, e a realidade aqui era muito dura, eu perdi mais ou menos uns
23 amigos, todos assassinados brutalmente. Perdi irmãos, perdi primos, e isso
meio que me intrigava. Aí me entregaram alguns livros para ler. E minha mente
começou a se abrir. Eu lia um livro e de repente eu estava em Cuba, eu lia um
livro e já estava na Venezuela, lia um livro e estava no Paquistão. Comecei então
a me interessar pela leitura, pela literatura e eu creio que a literatura de alguma
forma me salvou, me diferenciei dos amigos que entraram em outra vida... Acho
que é um pouco disso. (Fernandino – Sarau Vila Fundão)
Jovens que viveram essas experiências tornaram-se como eles mesmos dizem
“sobreviventes”. A maioria partiu para a elaboração experimentos que reforçaram a
pertença ao grupo de idade e que os afastava da violência. O movimento hip hop,
sustentado nas posses, gangues de break, grupos de rap, surgiu como a primeira forma
de ação juvenil contra o estado de violência que preferencialmente os atingia. Durante a
pesquisa desenvolvida no doutorado tivemos a oportunidade de aprofundar esse aspecto
(SILVA, 1998, 2011).
A principal liderança juvenil local, a traduzir o protesto dos jovens em forma de
arte, foi o rapper Mano Brown. Constatamos que o músico se mantém vinculado ao
Sarau Vila Fundão, embora não mais resida na COHAB Adventista. A identificação
com a periferia da Zona Sul e as diferentes situações em que jovens conhecidos e
amigos faleceram foram por ele expressas em forma de música. As palavras e os sons
do rap ainda ferem e cortam a realidade violenta, mas não matam. Isto faz muita
diferença para os jovens. Reencontramos Mano Brown durante uma Festa de Rua, em
18 de Março de 2012, organizada pela ONG Capão Cidadão. Nessa oportunidade
exprimiu o seu ponto de vista. A própria ONG Capão Cidadão que organizou a festa é
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produto da iniciativa de Paulo Magrão, outro jovem, que assumiu o combate à violência
em uma das regiões mais críticas da periferia da Zona Sul investindo em práticas
culturais.
Os saraus surgiram, portanto, enquanto expressão dos jovens que se encontravam
imersos em um contexto urbano violento. As ligações com o movimento hip hop não
podem, porém, ser mecanicamente estabelecidas, pois entre os poetas que atuam nos
saraus localizamos indivíduos que se situam em diferentes faixas etárias, crianças,
jovens, adultos e idosos, que desconhecem o hip hop, mas que compartilham das
apresentações de poemas nos eventos-sarau ao lado de muitos rappers.
A presença de grupos de rap, especialmente na Vila Fundão e na Cooperifa, é
constante. Os mais frequentes são o Versão Popular, NSN, Negredo, Cientistas MC’s, U
Clã. A principal característica do hip hop encontra-se também firmemente estabelecida
nos saraus, isto é, a valorização da localidade. Embora os poetas que frequentam o
evento-sarau apresentem grande mobilidade espacial, a maioria reside na Zona Sul.
Nesse universo localizamos um grupo diferenciado formado por pessoas da
“Comunidade da Fundão” e “Família Cooperifa”. Sempre que os poetas da localidade
são chamados para uma apresentação essa pertença à “comunidade” é destacada.
O bar: espaço físico-simbólico dos saraus
Os saraus do Binho, Cooperifa e Vila Fundão desenvolvem-se em dias específicos
da semana, respectivamente, na segunda, quarta e quinta-feira, nos espaços de bares. O
evento-sarau opera nesses locais uma importante reversão simbólica. Historicamente os
populares botecos encontravam-se associados a práticas de lazer, mas também
incorporavam sentidos negativos relacionados com a violência, brigas, repressão
policial. Estigmas que os definem como lugares frequentados por marginais,
desocupados e alcoólatras ainda são reproduzidos. Nos anos 1970 os trabalhadores que
frequentavam esses espaços faziam questão de portar a carteira de trabalho enquanto
estratégia para escapar das “batidas policiais” e prisões arbitrárias (MACHADO
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SILVA, 1969). A pesquisa que realizamos durante o doutorado apontou para a
percepção aguda dos rappers sobre essa realidade. A música Mano na porta do bar
(Racionais MC’s) narra um conjunto de situações dramáticas experimentadas nos bares,
confirmando que estas ainda são relevantes na contemporaneidade. Os dados sobre
violência no Jardim Ângela no final dos anos 1990 indicaram, por exemplo, que 11%
dos homicídios na Zona Sul se verificavam nos bares (SILVA, 1998).
Os bares onde acontecem os saraus se transformam no dia do evento em um
território no operam-se importantes reversões simbólicas. De espaço estigmatizado, o
local se metamorfoseia em instância de lazer e cultura. Os bares onde os saraus da Vila
Fundão e Cooperifa acorrem acolhem outras atividades culturais ao longo da semana.
Apresentações de grupos de samba, acompanhadas de cerveja, caipirinha e feijoada,
reunião de jogadores de times de futebol locais. O conceito de território conforme o
sentido atribuído por Rolnik (1988), e Perlongher (1991) nos pareceu pertinente no
sentido de interpretar essa realidade. A forma como Magnani (1999) utiliza as
categorias mancha e pedaço também se inscreve nessa tradição do pensar o urbano a
partir de um lócus bem delimitado. Nesses casos, estamos sempre nos referindo às
fronteiras simbólicas instituídas pela cultura e não à dimensão física. As reflexões de
Guattari (1987) sobre território e reterritorialização se somam a esse debate, pois
permitem pensar a cultura enquanto instância de resignificação simbólica, porém, não
situada exclusivamente na mente das pessoas, mas em sua inscrição em um espaço que
é público, como também entendeu Geertz (1978) a partir de outro referencial teórico. A
noção de território assim concebida nos permite falar dimensão pública da cultura, de
sua territorialização e reterritorialização enquanto práxis, enquanto desempenho ou
performance.
Os estudiosos chamam, portanto, a atenção justamente para a dimensão simbólica
na redefinição dos espaços empíricos, para a transitividade e perenidade dos usos desses
pequenos territórios, manchas e pedaços do urbano, cuja vitalidade cultural é
circunstancial, embora se verifique em tempos e lugares precisos5. A presença dos
5 A nossa perspectiva é tributária dessa concepção de análise forjada nos estudos sobre a cidade e dos
recursos possibilitados pela etnografia. O estudo detalhado de grupos sociais em espaços bem delimitados
confere identidade à disciplina Antropologia Urbana. As estratégias metodológicas inaugurais foram
estabelecidas pelos pesquisadores reunidos em torno da Escola de Chicago (HANNERZ, 1980) e a Escola
de Manchester (FELDMAN-BIANCO, 2009).
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saraus inscreve no imaginário urbano usos e sentidos próprios, confere uma nova
significação ao espaço dos bares, legitima o seu uso de forma especial, momentânea e
fluida. O espaço urbano pode assim recortado enquanto lugar importante do fazer
antropológico. Porém estamos cientes que essa agregação de significados não é
produzida endogenamente, mas que se constitui de forma contrastiva e conflitiva,
referida aos processos macroestruturais à percepção da segregação urbana e ao
sentimento de pertença. A resignificação do bar, conforme identificamos na fala de
Fernandinho, sintetiza as nossas argumentações.
Eu sempre tive muita vontade de desenvolver um trabalho cultural na
quebra, do lado de cá da ponte, mesmo que fosse em outro lugar. Mas esse
lugar é muito peculiar porque eu construí grandes amizades aqui, como pessoal
que morreu ou tá preso, ou que continua aqui ainda morando e que também
interfere na realidade do sarau. Mas uma ideia que me despertou foi quando eu
li um livro do Binho e do Serginho e a sede não estava pronta ainda e nem tinha
o projeto da sede que agente tem aqui hoje. Funcionava num bar aqui embaixo,
que era uma portinha, um bar bem simples pequeno e uma vez eu deixei o livro
do Serginho e do Binho lá, junto com as 51 e as Velho Barreiro e aí, às vezes
quando eu chegava aqui tinha alguém lendo os livros deles aí eu falei (....), da
pra fazer alguma coisa aqui na comunidade. Se e existe interesse pela leitura dá
pra fazer alguma coisa. (Fernandinho, Coordenador do Sarau Vila Fundão).
A resignificação dos bares pelos saraus é um aspecto dos mais significativos,
porém, a pesquisa revela que a escolha destes locais não se efetiva de maneira aleatória,
pois coincide com a ocupação de espaços que dispõem de sentidos positivos
previamente atribuídos pela própria “comunidade” ou que fazem sentido para os jovens.
Especialmente nos territórios em que ocorrem os saraus da Cooperifa e Vila Fundão
identificamos uma forte associação com os times de futebol de várzea6, uma importante
tradição local que instaura sentimentos de pertencimento distintos daqueles que vigoram
nos outros “botecos”. Bandeiras, flâmulas e troféus estão permanentemente alocados
em posição de destaque, embora não sejam referências importantes para no evento-
6 A tríade futebol, samba e feijoada são relevantes, embora nem sempre esteja completa. Situação
semelhante foi por nós constatada durante o trabalho de campo no momento em que realizávamos o
registro do 6º Encontro Rap, em 25/03/2012. O evento aconteceu em um domingo, na Sedinha do Gato
Real, também espaço de reunião de um time de futebol. A Sedinha como é conhecida popularmente
abriga às sextas-feiras encontros de samba, classificados pelos jovens como “samba de raiz”, contando,
inclusive, com apresentações de músicos importantes como Almir Guineto. A presença do samba
tradicional nesses locais é um aspecto relevante, embora, não seja objeto da atual pesquisa.
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sarau. O bar do Zé Batidão onde se realiza o Sarau da Cooperifa abriga, por exemplo, o
time dos Leões da Piraporinha. Constatamos que o próprio Sérgio Vaz, organizador do
Sarau, atuou quando jovem, como jogador de futebol de várzea, tendo convivido,
inclusive com “boleiros” famosos. A experiência com as práticas culturais juvenis na
localidade, o conhecimento pessoal do estado de violência que vitimou inclusive alguns
desses colegas de futebol, confirmam que o experimento concreto nessas instâncias da
periferia integra o conjunto de saberes do poeta e orientam os seus posicionamentos
estéticos e políticos.
A identificação do espaço do bar com a localidade se coloca de forma
praticamente idêntica na “comunidade” Vila Fundão. O cenário do sarau é também
adornado por flâmulas e troféus, cores e bandeiras do time de futebol. O próprio Kanu,
parceiro do Fernandinho na organização do sarau é jogador do Vila Fundão. As cores
amarelo e preto estão presentes como símbolos importantes no recinto. Registramos
recentemente um encontro marcado por forte emoção entre Fernandinho e Rogério em
que ambos rememoraram criticamente as experiências de membros da torcida jovem do
time Santos F. C. O próprio Mano Brown que mantém vínculos importantes com a Vila
Fundão apresentou-se recentemente em 18 de março de 2012 na festa da ONG Capão
Cidadão vestido com a camisa do time de futebol da Vila Fundão. Acreditamos que os
referidos saraus se situam em territórios significativos para a “comunidade”.
Entendemos que tais iniciativas se nutrem, agregam e ampliam sentidos culturais
construíduos em espaços do urbano valorizados pela “comunidade”. Certamente
simbolizam esse novo momento em que viver na periferia deixou de ser identificado
com negatividade e se transformou em símbolo de pertencimento.
Os saraus da Cooperifa e Vila Fundão situam-se, portanto, em espaços que os
frequentadores classificam como “comunidade”. A Cooperifa realiza o sarau no bar do
Zé Batidão, localizado no Morro da Piraporinha, no Jardim Guarujá, bairro construído
nos anos 1970/80 por uma parcela significativa de migrantes. A construção das
moradias seguiu o padrão histórico analisado por Caldeira (2000), isto é, por meio de
financiamentos obtidos em casas de materiais de construção os proprietários edificaram
lentamente as residências, inicialmente construíram unidades pequenas que
posteriormente foram ampliadas, introduzindo-se melhorias. Constatamos situação
semelhante na Vila Funda, uma área de ocupação, classificada sociologicamente como
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favela. As ruas seguem o traçado sinuoso e, subitamente nos deparamos com locais sem
saída, becos e escadarias que acessam abruptamente regiões inacessíveis aos
automóveis.
O termo favela é utilizado de maneira polissemântica. Os frequentadores do sarau
rejeitam o termo quando se referem afetivamente à Vila Fundão. Nesse caso, a categoria
apropriada é “comunidade”. Apenas emprega-se o termo favela, ou assume-se a
identidade de favelado, quando se deseja politizar a exclusão social e a segregação
urbana, ou seja, a categoria é resgatada quando se pretende demarcar a identidade
política e explicitar a segregação urbana. A condição liminar em que se situa os dois
saraus fortalece os vínculos com a “comunidade”. Representantes dos movimentos
sociais locais por vezes participam dos eventos e a presença de poetas, grupos de break,
artistas locais, é sempre saudada afetivamente com o adágio “pessoas da comunidade”,
recebendo dos organizadores uma deferência especial, que os distingue dos demais.
As análises que desenvolvemos a partir da categoria território nos parecem
válidas para a Cooperifa e Vila Fundão. No caso do Sarau do Binho a interpretação não
se aplica totalmente. Provavelmente as mudanças verificadas ao longo da história, a
localização atual desse sarau, tenham quebrado o vínculo mais imediato com a
“comunidade”. O Sarau do Binho situa-se em um espaço limítrofe entre o Campo
Limpo e o município de Taboão da Serra e, embora, encontre-se nas proximidades de
um bairro autoconstruído, também se aproxima de uma universidade, a UNIBAN. Parte
do público que o frequenta é composta de estudantes dessa instituição. Os poetas mais
fiéis ao movimento cultural se fazem presentes nas sessões semanais, o que mantém o
Binho como uma referência importante, reconhecido como pai fundador, ocupando
status idêntico ao de Sérgio Vaz, Marcos Pezão e Serginho Poeta.
Abordaremos a partir desse momento o espaço interno dos saraus. Entendemos
que este é o lócus definidor de sua identidade. Nessa instância podemos compreender o
evento como uma produção cultural singular na periferia. A resignificação do lugar é
marcada por um ato simbólico de ruptura com um conjunto de práticas comuns a
qualquer bar, que se caracteriza pela reunião de pessoas em busca de lazer e
sociabilidade. Os momentos que antecedem o evento-sarau não apresentam situações
muito distintas, esta é a impressão geral quando se chega. Há, porém, um momento em
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que a passagem da condição de bar a evento-sarau se efetiva. A descrição desse instante
na Cooperifa nos parece esclarecedora, porque, mais que em qualquer outro sarau a
ruptura é enfatizada. Um conjunto de atos simbólicos, performáticos, frases, discursos
breves e a inevitável expressão o “silêncio é uma prece”, seguido do tradicional grito de
guerra “Uh! Cooperifa, Uh! Coopeifa, Uh! Cooperifa” e “povo lindo, povo inteligente”
indicam que adentramos à esfera do evento-sarau.
A partir desse momento instaura-se um estado de limiaridade em que a plateia,
organizador, poetas e músicos passam a compartilhar experiências incomuns. O
microespaço do bar experimenta então mudanças significativas. Há uma clara distinção
entre o “palco” em que os poetas se apresentam e a plateia que o ouve atentamente e
aplaude. A exigência do silêncio estabelece um contraste importante, mas
complementar, com os aplausos que se seguem. A paisagem sonora7 que se estabelece
será, a partir desse momento, garantida ao longo da sessão. Os esforços de Sérgio Vaz
têm sido enorme no sentido de ordenar esse ambiente sonoro. Quando a Cooperifa
outrora abrigava um número pequeno de pessoas na plateia e havia uma reduzida
presença de poetas, esse equilíbrio parecia mais tranquilo. Atualmente a quantidade de
apresentações se ampliou significativamente e o público interno e externo cresceu na
mesma proporção, introduzindo burburinhos e ruídos que precisam ser controlados.
A ação de Sérgio Vaz é também nas outras dinâmicas do sarau, na administração
do fluxo interno de pessoas e mensagens, acomodação dos frequentadores, apresentação
de poetas, concessão de entrevistas e até mesmo no controle do burburinho externo. O
espaço externo, situado na rua e praça é normalmente ocupado por jovens poetas,
músicos e frequentadores que estabelecem outros níveis de interação. Conversam
animadamente, paqueram, consomem substancias lícitas e ilícitas. O local, embora,
complementar ao sarau, distingue-se dos espaços mais específico em que o estado de
7 Empregamos o conceito de paisagem sonora conforme as definições de Schafer (2001). O autor nos
permite situar o estudo da música em um universo mais amplo que o definido pela tradição ocidental.
Com o conceito de paisagem sonora o autor introduz um instrumento conceitual que possibilita recortar
descontinuidades sonoras em ambientes (soundscape) específicos, não estritamente musicais. As
metrópoles contemporâneas nos colocam, por exemplo, em face de províncias sonoras como o rush
cotidiano, fábricas, escolas, universidades, hospitais, shoppings centers. Todos esses ambientes nos
introduzem a cada todo momento em experimentos auditivos específicos.
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liminaridade8 e as performances se instalam. Eventualmente Sérgio Vaz indica a rua e
a praça para aqueles que desejam manter uma conversa animada com os pares, pois no
espaço interno “o silêncio é uma prece”, é sagrado.
A situação interna se coloca de forma especial na Vila Fundão. Fernandinho lida
com uma situação menos heterogênea e uma menor presença de público. Enquanto a
Cooperifa recebe um número expressivo de adultos, os jovens formam o grupo quase
exclusivo na Vila Fundão. As atividades de Mestre de Cerimônia, contudo, não diferem.
A recepção aos frequentes por Fernandinho é sempre calorosa. A preocupação em
aproximar-se com os movimentos sociais e a comunidade externa é sensível nos seus
discursos e atitudes. A intervenção política é a marca distintiva do sarau. A acolhida ao
movimento Mães de Maio e ao MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), a
realização de eventos-sarau nos locais em que à luta pela moradia está em pauta,
confirmam a opção. O “Sarau da Fundão” difere nesse quesito das ações empreendidas
pela Cooperifa e Binho, cujas incursões envolvem prioritariamente escolas públicas da
região.
A relação com a arte no evento-sarau é de natureza envolvente, corpórea, gestual,
afetiva. Trata-se da mesma característica que Shusterman (1998) obsevou em relação ao
hip hop. De fato não se fica indiferente. As pessoas são provocadas a refletir, a sonhar,
aplaudir, interagir, emocionar, indignar-se. O momento em que um poema é recitado é
de atenção na plateia, que logo explode em palmas quando finda a apresentação. As
temáticas invariavelmente referem-se a temas conhecidos, familiares à vida cotidiana. A
questão posta inicialmente pela pesquisa dizia respeito exatamente ao sentido em se
ouvir narrativas sobre temas tão próximos, elaborados por pessoas igualmente
próximas.
Os argumentos apresentados por Terry Eagleton (2006) foram esclarecedores.
Segundo o autor a literatura opera por meio de uma linguagem radicalmente distinta do
falar cotidiano. A narrativa literária caracteriza-se pela ruptura que estabelece com
8 A categoria liminaridade é empregada no sentido proposto por Victor Turner (1974, 2008) na
compreensão do processo ritual. O termo integra a concepção tripartite de ritual, agregação -
liminaridade – reagregação. A liminaridade corresponde ao estado ritualístico em que se vivencia uma
experiência radical, normalmente de caráter religioso, mas sempre de natureza extraordinária em que as
regras da vida cotidiana são momentaneamente suspensas. A nossa intenção ao recorrer a essa categoria é
destacar o momento extraordinário e transitório propiciado pelo sarau.
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linguagem ordinária e, mediante tal recurso, promove-se igualmente a ruptura com o
mundo ordinário e uma ordem distanciada de sentido se instaura. A poesia, interpretada
nessa mesma perspectiva, contribui decisivamente para a instauração do estado de
liminaridade que caracteriza o evento-sarau. O distanciamento propiciado pelo ato
literário assegura a reflexão, provoca o estranhamento, rompe com a rotinização e
estabelece um espaço de alteridade que permite a crítica e compreensão da realidade
social. Esse experimento é propiciado pelo recitar dos poemas. Em média, na Cooperifa,
registramos em média 30 poemas por sessão.
O poema tem nessa instância o poder de produzir estranhamentos e sentidos
instantâneos. O fato de a poesia operar, de acordo com Louis Dumont no campo da
multidimensionalidade proporciona o estado de sinergia. O sentido que o poema
imprime ao real, que é de natureza afetiva, difere daquele produzido pelo saber
científico, marcado pelo concatenar racional do discurso, mas, assim como o mito a
poesia não pode ser menosprezada9. O sentido do poema é estabelecido no instante em
que é dito. Por isso o contexto em que é recitado é fundamental. A poesia aproxima-se
nesse quesito da execução musical, cuja análise no ato do desempenho, exprime
sentidos que não podem ser apreendidos pelo exame da partitura, do texto (SEEGER,
1977; OLIVEIRA PINTO, 2001). De qualquer forma uma ordenação do corpus poético
se mostrou necessária ao entendimento de temas fundamentais.
O corpus poético
A poesia desenvolvida nas instâncias dos saraus talvez possa ser mais bem
definida pelas expressões acadêmicas ghetto fiction, contraliteratura, literatura
marginalizada. Os aficionados, poetas, escritores, músicos, empregam a categoria
“literatura marginal” (NASCIMENTO, 2009). O termo difundido pelo escritor Férrez
pretende incorporar o sentido político desejado, isto é, a ambiguidade do ato
9 É reconhecida a hostilidade de Goethe, em nome do sentido humano da vida e das totalidades vivas,
contra a ciência mecanicista e atomizante de seu tempo. Lévi-Strauss secundou-o, em suma, na defesa
das qualidades sensíveis e esse fato sublinha a continuidade com as culturas não-modernas dessa corrente
protestatória, submersa, sem dúvida, mas muito longe de menosprezável (Dumont, 1985, p.223).
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contradiscursivo, a postura beligerante, o enfrentamento do poder destrutivo das armas
por meio do poder das palavras, o ato infracional em relação à norma culta como a
contestação à ordem, a elaboração de um discurso que não se submete à normatização, a
valorização de um léxico peculiar às ruas em oposição aos saberes escolares.
O estudo etnográfico permitiu-nos identificar e classificar um conjunto
heterogêneo de poemas apresentados semanalmente nos saraus. A categorização desse
corpus foi produto de um período de um ano de gravação e observação realizado no
sarau da Cooperifa e Vila Fundão, e em menor proporção no Sarau do Binho. As
categorias éticas e êmicas que durante certo período desfrutaram de prestígio na
Antropologia foram por nós acionadas (GEERTZ, 1978). Ao categorizar o corpus
poético nos situamos no campo das categorias éticas, ou seja, aquelas construídas
estrategicamente pelo pesquisador. Embora o antropólogo normalmente relute em
utilizá-las, do ponto de vista da pesquisa, essa alternativa se revelou importante para a
elaboração de um recorte de fato arbitrário, mas necessário à análise. As categorias
êmicas, nativas, permitiram a análise “desde dentro” desenvolvida ao longo do texto.
A categorização do corpus poético se impôs porque o estudo etnográfico se
revelou de grande complexidade, especialmente, quanto à definição precisa dos objetos
de investigação. Há nesses espaços dos saraus uma profusão de manifestações artísticas
enriqueceras do evento, mas, esse caráter multifolheado dificulta a análise. Em um
mesmo evento podemos nos deparar com atos dramatúrgicos, danças, apresentação de
grupos de rap, breakers e naturalmente muitos poetas, escritores, militantes dos
movimentos sociais. O presente estudo se fixa nos poemas, estratégia fundamental para
identificação de um nível seguro para a pesquisa. Após um ano de registros e
observações semanais optamos pela classificação dos poemas o que permitiu-nos uma
organização interna dos textos orais, em sua maioria, e escritos. A gravação do evento
na íntegra permitiu-nos a construção de um arquivo expressivo de poemas
textualizados. Porém nesse momento apresentamos apenas a taxonomia preliminar dos
textos, pois, o objetivo principal nesse momento não é a análise do conteúdo, mas
compreender o significado da poesia no contexto. A análise do conjunto dos poemas
conduziria o estudo para muito além dos limites do artigo.
Taxonomia dos poemas.
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1- Afetivos
2- Pertencimento e Localidade
3- Existenciais
4- Humorístico/Satíricos
5- Antissegregacionistas
6- Antirracistas
7- Absurdo
Os poemas classificados como afetivos focalizam experimentos de natureza
pessoal, subjetiva. Os prazeres e as dores, alegrias e tristezas, presentes nos
relacionamentos amorosos geralmente dominam a narrativa, mas podem ser também
dedicados a um jovem importante para a “comunidade” que morreu precocemente.
Nesses casos, os poetas prestam-lhe um tributo, uma homenagem, como, por exemplo,
ao rapper Sabotage.
Pertencimento e Localidade. Inserimos nessa categoria poemas que exaltam o
sentimento de pertença à periferia, à “comunidade”, à localidade, à turma de amigos.
Podemos também classificá-los como socioafetivos. As composições em geral
valorizam os espaços e pessoas situados “do lado de cá” das pontes do Socorro, João
Dias, Transamérica. Incluímos nesse campo a maioria dos poetas “cooperiféricos”
liderados, obviamente, por Sérgio Vaz.
Existenciais. Classificamos nesse universo poesias que versam sobre um conjunto
amplo de indagações menos palpáveis, mas que põem em questão o sentido da vida e
que não raro aludem ao sagrado. A Dona Edith da Cooperifa é certamente a principal
expoente dessa temática.
Os poemas humorístico/satíricos recuperam uma dimensão da vida cotidiana que
se situa entre os atos de transgressão, crítica e riso. Situações embora sérias que podem
sugerir embaraços. A música É Gato do Chapinha, sambista, poeta e compositor da
região é um exemplo dessa postura. Os poetas de cordel, que por vezes se apresentam
nos saraus, também exploram esse aspecto por meio do duplo sentido das palavras. A
música Brasil com P (GOG) que na voz do autor possui caráter dramático é
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reinterpretada por Luan de maneira satírica e irreverente. A performance alternativa
alcança, porém, o mesmo objetivo que é a crítica social.
Antissegregacionistas. Caracterizam-se por uma intenção de fixar o protesto.
Incluímos nessa categoria um conjunto bastante amplo de poemas que apontam para as
carências sociais enfrentadas na periferia. A denúncia sobre a violência policial, os
efeitos devastadores das drogas, as perdas de amigos, exprimem a indignação contra a
nova modalidade de segregação socioespacial que transformou a periferia em um
“campo minado” ou “zona de guerra”.
Antirracistas. Os poemas antirracistas têm presença constante nos saraus.
Também têm como característica o protesto. Constatamos que especialmente os jovens
filiados ao movimento hip hop ou que nele tiveram origem desenvolvem essa temática.
A forma do poema e as performances são inspiradas no rap, muitos dos expoentes são
rappers que no evento-sarau declamam músicas sem o suporte das bases sonoras. O
grupo de poetas que incluímos nesse campo é significativo, por exemplo, Akins-Kinté,
Elisandra, Luan, Kênia. São poetas negros que possuem afinidades políticas que
inclusive transcendem os saraus. O recurso à telescopia histórica conforme observou
Béthune (2003) é frequentemente utilizada. As referências às lutas e resistências dos
negros no passado são recuperadas e atualizadas no sentido de questionar o racismo na
contemporaneidade.
Absurdo. Os poemas que inserimos nessa categoria abordam temas que são, em
geral, considerados tabus. Focalizam situações muito diversas, que contrariam a conduta
normativa, a etiqueta, o bom comportamento, os atos cerimoniais. Localizamos um
conjunto reduzido de poetas filiados a essa tendência.
Performance poética e significados políticos
O evento-sarau é dominado pelo ato de recitar poemas. Especialmente na
Cooperifa essa atividade é preponderante. O sarau da Vila Fundão diferencia-se da
Cooperifa nesse quesito, pois embora os poetas tenham participação efetiva, abrem-se
possibilidades para outras modalidades de práticas artísticas. As atividades peculiares ao
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movimento hip hop, envolvendo o rap, grafite e break, além de atuações dos DJs,
apresentação de grupos teatrais, participação de militantes ligados aos diferentes
movimentos sociais, como Mães de Maio, MTST, ações pontuais em situações de
conflito, paralisação da Estrada M’Boi Mirim, por melhoria dos transportes coletivos,
integram a agenda da Fundão. Porém, mesmo com esse conjunto de atividades, em
nenhuma sessão os poetas se ausentaram, ao menos cinco apresentações aconteceram,
confirmando, assim a centralidade da poesia.
A prática poética, embora diretamente associada ao texto oral ou escrito requer
análise especial, pois trata-se de um experimento marcado não apenas pela verbalização,
há um conjunto de elementos outros que acompanham o recitar de um poema, nos
referimos aos gestos, entonações, expressões faciais, interações com o público. A
Antropologia fez o registro desses aspectos não verbais em diferentes momentos, em
especial ao ocupar-se dos estudos do mito, ritual, cerimoniais e música (GEERTZ,
1991; GLUCKMAN, 2009; MITCHELL, 2009; TURNER,1974, 2008; MAUSS, 1974).
Contemporaneamente esse conjunto de fenômenos dramatúrgicos, verbais, não verbais,
performáticos, vem sendo estudado por diferentes subáreas do conhecimento,
Etnomusicologia, Etnocenologia, Antropologia da Performance. Emprestamos desse
campo de discussões a definição de performance pois o conceito se revelou importante
para a compreensão do evento-sarau, embora, o estudo em tela não se filie estritamente
às áreas do saber mencionadas.
A performance é um modo de comunicação e de ação, distinto da ação “normal” ou
“cotidiana”, caracterizando-se por certos tipos de comportamentos e diversos registros de
engenhosidade. Ela ocorre com mais frequência, mas não exclusivamente nos acontecimentos
programados e limitados em tempo ou espaço. Esses acontecimentos podem ser estruturados,
ordenados, programados e são reconhecidos por um ajuntamento organizado de espectadores e
atores em uma ocasião extraordinária que distingue a vida cotidiana e induz às modificações de
comportamento em cada participante (PEARSON, 1998, p. 157).
As noções do espetacular, do ato corpóreo e gestual como uma dimensão central
da performance e a concepção de que esse conjunto instaura uma ruptura com a vida
ordinária, são importantes para a compreensão da eficácia poética no contexto dos
saraus. Porém existe mais um elemento fundamental a ser destacado, que nos parece
decisivo, trata-se da compreensão da performance enquanto um “conjunto de contratos
entre dois gêneros de participantes – aqueles que vêm (os espectadores) e aqueles que
são vistos (os atores)”. Três ordens de relações decorrem dessa situação básica, “a
interação ator e ator, ator e espectador, espectador e espectador” (PEARSON, 1998, p.
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158). No caso específico dos saraus a relação principal verifica-se entre o poeta e os
espectadores. Certamente alguns poemas somente são recitados mediante a participação
do público.
A complementaridade é exigida muitas vezes pelo próprio poeta, seja mediante o
acompanhamento através de palmas, seja por meio da repetição de um trecho ou refrão.
A expressão poética encontra-se nesse nível muito próxima da oralidade. Somos
inevitavelmente conduzidos a refletir sobre os nexos entre essa modalidade do fazer
artístico e a matriz cultural africana, pois a oralidade se apresenta neste âmbito como
um aspecto central, tanto no processo da construção literária quanto musical. O acesso
limitado das classes populares à escola também reforçam a continuidade de práticas
literárias peculiares à oralidade.
O etnomusicólogo Kazadi wa Mukuna (1985) chamou-nos a atenção para o
aspecto da complementaridade como base do canto na música africana, referindo-se à
estrutura solista/coro. Verificamos que especialmente os jovens que se filiam ao hip hop
recorrem frequentemente aos recursos da complementaridade. Nesse caso, as palmas e
repetições de partes do poema pelos espectadores são requisitadas. A oralidade no
evento-sarau tem precedência sobre o texto escrito, pois o poema é apresentado muito
raramente por meio da leitura, a regra básica é a expressão verbal.
A relação contratual entre os poetas e os espectadores é ainda chave para a
compreensão do evento-sarau como um todo. O poema somente pode ser recitado em
um ambiente especial. Necessário se faz construir uma paisagem sonora, isto é, um
momento em que silêncio e som possam se alternar. Os organizadores dos saraus têm
investido, inclusive, na amplificação do som mediante o uso de microfones e caixas
amplificadas, mas mesmo assim, as dificuldades se colocam. A conhecida frase de
Sérgio Vaz, “o silêncio é uma prece”, tem por finalidade fazer valer o contrato
fundamental que estrutura o evento.
A produção do ambiente sonoro é fundamental para que a performance poética se
efetive e ao fazê-lo instaure o estado de liminaridade que permite a passagem do mundo
ordinário, cotidiano, para o extraordinário, o mundo das palavras, gestos, sons,
entonações, reflexões propiciados pelos poetas. A quebra da rotina envolve a construção
de uma ordem simbólica diferenciada, mas referida à periferia. As imagens conhecidas
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pela maioria são apresentadas em linguagem artística. Os rappers falam muito
apropriadamente do “poder da rima”. De fato, esse aspecto sensível, que é o emprego
eficaz do falar cotidiano e do léxico conhecido em uma situação estruturada e especial,
instaura o estranhamento e a reflexão crítica sobre a realidade em que se encontram
imersos.
A prática poética inscreve, portanto, uma experiência de natureza dramatúrgica.
Nesse caso, textos orais e performances se somam no sentido de traduzir a realidade. As
situações dramáticas da vida cotidiana, violência, racismo, segregação socioespacial,
são representadas por meio de uma linguagem simbólica que combina recursos próprios
da narrativa oral, expressão corporal, gestualidade, silêncios e sons. A experiência
dramatúrgica proposta pelos saraus reedita o efeito catarse associado frequentemente
com o teatro. Conforme obsevou Thomas Gregor (1982) no estudo sobre os Mehinaku,
o risco que corremos, porém, ao empregarmos a metáfora dramatúrgica como recurso
para a compreensão do social é perder de vista o fato de que a realidade que ordenamos
metaforicamente como drama é de fato “prá valer”.
O evento-sarau possui de fato muitos nexos com os atos dramatúrgicos, mas a
realidade que os poetas desejam exprimir não se reduz à dimensão estética, artística,
porque se realiza enquanto experimento de natureza política. Os parâmetros do fazer
literário não estão em consonância com a norma cultura, nem precisam, trata-se de
“literatura marginal”, gênero semelhante ao que os críticos norte-americanos estão
classificando como ghetto fiction, urban fiction, hip hop fiction, gangsta fiction, isto é,
autopublicações de escritores jovens que versam sobre temas peculiares aos espaços
segregados, drogas, violência, prostituição, racismo, experiências de encarceramento.
Apesar da heterogeneidade vigente nos saraus, dos diferentes estilos e grupos de
idade, o corpus literário juvenil dedicado à ficção urbana é destacado. Nesse grupo um
segundo recorte ainda é possível, trata-se dos escritores negros. A “literatura marginal”
se constitui como uma modalidade de literatura urbana juvenil produzida em áreas
segregadas, mas também guarda semelhanças com os gêneros que Zilá Bernd (1987)
classificou como contraliteratura e literatura negra, porque contraria pactos e
protocolos oficiais, conforme intuiu (LAJOLO, 1996) sobre Carolina Maria de Jesus,
pois o sentido genérico dessas produções é inscrever as falas dos excluídos.
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Os saraus se apresentam como locais em que se encontra em franco
desenvolvimento uma nova modalidade de ficção urbana. Os conteúdos versam sobre os
efeitos devastadores da segregação socioespacial, violência policial, racismo, exclusão
social. A presença marcante do segmento juvenil nesses espaços, a aproximação com o
movimento do hip hop na perspectiva literária (SILVA, 2011.) têm possibilitado o
surgimento de um conjunto de poetas que desfruta de legitimidade no segmento
autoclassificado como “literatura marginal”. A maneira como essa produção vem se
constituindo, isto é, de maneira autônoma em face ao poder público, ao mercado de
livros dominante, permite, de fato, inscrevê-la no conjunto mais amplo das vozes
marginalizadas (LIENHARDT, 1989), porém, existe algo que a tipifica, em que se
revela a singularidade, isto é, o fato de ser expressão da juventude da periferia. Não sem
motivo, o grupo mais diretamente atingido pelos efeitos devastadores da nova
segregação urbana vigente na cidade de São Paulo.
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