Transcript
  • 8/2/2019 Levi-Strauss-Cru_e_Cozido

    1/37

    TRADUyAO DE BEATRIZ PERRONE-MOISES

    C osac & N aify

  • 8/2/2019 Levi-Strauss-Cru_e_Cozido

    2/37

    Claude Levi-Strauss

    o CRU E 0 COZIDOMITOLOGICAS 1

  • 8/2/2019 Levi-Strauss-Cru_e_Cozido

    3/37

    A MUSICA

    M e ----re du SDu-ve- nir~e t n ourri---ce -du

    re--ve, C'esttoi---qu'ilnous plait au- jour-pppI J . _ _ _ _ _ ! _ _ g l ) 'I ., I

    - d'hui, d 'in - v a - q ue r sous ce toit!-

    A M usic a. C or o p ar a vo ze s f em inina s c om so lo (p ara in aug ur ar a c as a d eu m a mig o). L etra de E dm on d R osta nd . M usic a d e E mm anu el C hab rie r.

  • 8/2/2019 Levi-Strauss-Cru_e_Cozido

    4/37

    1

    o objetivo deste livro e mostrar de que modo categorias empfricas, como asde cru e de cozido, de fresco e de podre, de molhado e de queimado etc., defi-niveis com precisao pela mera observacao etnografica, e sempre a partir doponto de vista de uma cultura particular, podem servir como ferramentasconceituais para isolar nocoes abstratas e encadea-las em proposicoes,

    A hipotese inicial requer, pois, que nos situemos de imediato no nfvelmais concreto, isto e, no seio de uma populacao, ou de urn grupo de popula-coes suficientemente proximas pelo habitat, pela hist6ria e pela cultura. Con-tudo, essa e uma precaucao metodologica, certamente imperativa, mas quede modo algum dissimula ou restringe 0 nosso projeto. Utilizando algunspoucos mitos tornados de sociedades indfgenas que irao servir-nos de labo-rat6rio, faremos uma experiencia que, se bem-sucedida, tera urn alcancegeral, ja que esperamos que demonstre a existencia de uma logica das quali-dades sensfveis, que elucide seus procedimentos e que manifeste suas leis.

    Partiremos de urn mito, proveniente de uma sociedade, e 0 analisaremosrecorrendo inicialmente ao contexto etnografico e em seguida a outros mitosda mesma sociedade. Ampliando progressivamente 0 ambito da investiga-< ; 0 1 0 , passaremos a mitos provenientes de sociedades vizinhas, situando-os

    Abertura I 19

  • 8/2/2019 Levi-Strauss-Cru_e_Cozido

    5/37

    igualmente em seu contexto etnografico particular. Pouco a pouco, chegare-mos a sociedades mais afastadas, mas sempre com a condicao de que ligacoesreais de ordem hist6rica ou geografica possam ser verificadas ou justificada-mente postuladas entre elas. Serao descritas, nesta obra, apenas as etapas ini-ciais dessa longa excursao atraves das mitologias indigenas do Novo Mundo,que comeca no coracao da America tropical e - podemos preve-lo desde ja- nos conduzira ate as regioes setentrionais da America do Norte. Mas se,do infcio ao fim, 0 fio condutor sera fornecido por urn mito dos indios Bo-roro do Brasil Central, a razao desse procedimento nao deve ser procuradanem na hip6tese de que esse mito seja mais arcaico do que outros, que estu-daremos depois dele, nem na suposicao de que 0 consideremos mais simplesou mais completo. As causas que 0 impuseram de inicio a nossa atencao saolargamente contingentes. E, se desejamos que a exposicao sintetica reprodu-zisse tanto quanta possfvel 0 procedimento analftico, isso se deveu ao fato deque, desse modo, a estreita ligacao que cremos existir nessas questoes entre osaspectos empfrico e sistematico have ria de ser ainda mais evidenciada se 0metodo empregado comecasse por atesta-la.

    De fato, 0 mito bororo, doravante designado pela expressao m ito d e re fe re n-cia, nao e - como tentaremos demonstrar - senao uma transformacao maisou menos elaborada de outros mitos, provenientes da mesma sociedade ou desociedades pr6ximas ou afastadas, Teria sido legftimo, portanto, escolher comoponto de partida qualquer representante do grupo. 0interesse do mito de refe-rencia nao reside, nesse sentido, em seu carater tipico, mas, antes, em sua posi-cao irregular no seio de urn grupo. Pelos problemas de interpretacao quecoloca, ela e, com efeito, especialmente apropriada ao exercicio da reflexao.

    E de esperar que nossa empresa, mesmo tendo sido assim definida, esbarreem objecoes prejudiciais por parte de mit6grafos e especialistas da Americatropical. De fato, ela nao se deixa restringir a limites territoriais ou a classifi-cacoes, Nao importa 0 modo como a encaremos, ela se desenvolve como umanebulosa, sem jamais reunir de modo duravel ou sistematico a soma total doselementos de onde tira cegamente a sua substancia, certa de que 0 reallheservira de guia e the mostrara urn caminho mais seguro do que aqueles quepoderia ter inventado. A partir de urn mito escolhido, senao arbitrariamente,mas em virtude do sentimento intuitivo de sua riqueza e fecundidade, e emseguida analisado de acordo com as regras estabelecidas em trabalhos ante-riores (Levi-Strauss 1958a, 1958b, 1960, 1962a), configuramos 0 grupo de

    20 I Abertura

  • 8/2/2019 Levi-Strauss-Cru_e_Cozido

    6/37

    transforrnacoes de cada sequencia, seja no interior do proprio mito, seja elu-cidando as relacoes de isomorfismo entre sequencias extraidas de variesmitos provenientes da mesma populacao. Assim, ja nos elevamos da conside-racao de mitos particulares a de certos esquemas condutores que se ordenamsobre urn mesmo eixo. Em cada ponto desse eixo assinalado por urn es-quema, tracamos na vertical, digamos assim, outros eixos resultantes damesma operacao, mas agora nao mais efetuada por meio dos mitos de umaunica populacao, aparentemente diferentes, e sim de mitos que, embora per-tencentes a populacoes vizinhas, apresentam certas analogias com os primei-ros. Desse modo, os esquemas condutores se simplificam, se enriquecem ouse transformam. Cada urn deles se torna origem de novos eixos, perpendicu-lares aos precedentes em outros pIanos, aos quais logo irao agarrar-se, porurn duplo movimento prospectivo e retrospectivo, sequencias extraidas demitos provenientes de populacoes mais remotas ou de mitos inicialmentedescartados por parecerem imiteis ou impossiveis de interpretar, emborapertencentes a povos ja considerados. A medida que a nebulosa se expande,portanto, seu nucleo se condensa e se organiza. Filamentos esparsos se sol-dam, lacunas se preenchem, conexoes se estabelecem, algo que se assemelhaa uma ordem transparece sob 0 caos. Como numa molecula germinal, se -quencias ordenadas em grupos de transforrnacoes vern agregar-se ao grupoinicial, reproduzindo-Ihe a estrutura e as determinacoes, Nasce urn corpomultidimensional, cuja organizacao e revelada nas partes centrais, enquantoem sua periferia reinam ainda a incerteza e a confusao,

    Mas nao esperamos observar 0 estagio em que a materia mftica, inicial-mente dissolvida pela analise, ficara cristalizada na massa, tendo em todaparte 0aspecto de uma estrutura estavel e bern determinada. Alem do fato dea ciencia dos mitos ainda estar engatinhando e de dever dar-se por satisfeitapor obter apenas urn esboco de resultado, temos desde ja a certeza de queessa etapa final jamais sera atingida, pois, ainda que a suponhamos teorica-mente possfvel, nao ha, e jamais havera, uma populacao ou grupo de popula-coes cujos mitos e a etnografia (sem a qual 0 estudo dos mitos torna-se im-potente) sejam objeto de urn conhecimento exaustivo. Tal ambicao chega aser desprovida de sentido.ja que se trata de uma realidade instavel.perma-nentemente amerce dos golpes de urn passado que a arruina e de urn futuroque a modifica. Em relacao a cada urn dos casos ilustrados pela literatura,estamos sem diivida longe disso, contentes pelo simples fato de dispormos deamostras e fragmentos. Vimos que 0ponto de partida da analise deve, inevi-tavelmente, ser escolhido ao acaso, ja que os principios de organizacao damateria mitica estao contidos nela e so se revelarao progressivamente. Tam-

    Abertura I 21

  • 8/2/2019 Levi-Strauss-Cru_e_Cozido

    7/37

    bern e inevitavel que 0 ponto de chegada se imponha por si so e de impro-viso: quando urn certo estado da empresa mostrar que seu objeto idealadquiriu forma e consistencia suficientes para que algumas de suas proprie-dades latentes, e sobretudo sua existencia enquanto objeto, sejam absoluta-mente inquestionaveis, Assim como 0microscopic optico, que e incapaz derevelar ao observador a estrutura ultima da materia, so podemos escolherentre varies graus de aumento: cada urn deles torna visivel urn nivel de orga-nizacao, cuja verdade e apenas relativa, e exclui, enquanto adotado, a percep-cao dos outros niveis.

    Essas consideracoes explicam, ate urn certo ponto, as caracteristicas deurn livro que poderia, de outro modo, ser julgado paradoxal. Embora consti-tua urn volume completo, que desemboca em conclusoes que proporcionamao leitor as respostas para as perguntas feitas no infcio, refere-se frequente-mente a urn segundo volume, por tras do qual talvez ja se delineie urn ter-ceiro. Mas esses volumes, se urn dia vierem a luz, nao formarao uma sequen-cia, e sim uma retomada dos mesmos materiais, urn enfoque diferente dosmesmos problemas, na esperan

  • 8/2/2019 Levi-Strauss-Cru_e_Cozido

    8/37

    e capturar e assimilar corpos estranhos. E, finalmente, evitamos qualquerreferencia as classificacoes preconcebidas dos mitos em cosmologicos, sazo-nais, divinos, heroicos, tecnologicos etc. Aqui, mais uma vez, cabe ao mito,submetido a prova da analise, revelar sua propria natureza e se enquadrardentro de urn tipo; meta inatingivel para 0mitografo enquanto ele se basearem caracterfsticas externas e arbitrariamente isoladas.

    Em sum a, a especificidade deste livro e nao ter urn tema; restringindo-seinicialmente ao estudo de urn mito, ele deve, para faze-lo de modo incom-pleto, assimilar a materia de duzentos. A preocupacao que 0 inspira, de selimitar a uma regiao geografica e cultural bern demarcada, nao evita que detempos em tempos ele tome os ares de urn tratado de mitologia geral. Ele naotern comeco, ja que teria se desenvolvido de modo analogo se seu ponto departida houvesse sido determinado em outro local; tampouco tern fim, poistrata de varies problemas de forma apenas sumaria, enquanto outros saosimplesmente apresentados, a espera de melhor sorte. Para preparar 0nossomapa, fomos obrigados a fazer elevacoes "em rosacea": montando inicial-mente em torno de urn mito 0 seu campo semantico, gracas a etnografia epor meio de outros mitos, e repetindo a mesma operacao para cada urn deles,de modo que a zona central, escolhida aleatoriamente, possa ser recortadapor varies percursos, mas a frequencia das superposicoes diminua a medidaque nos distanciamos do centro. Para obter uma varredura constante damesma densidade, seria, portanto, preciso que 0 procedimento fosse refeitovarias vezes, tracando novos circulos a partir de pontos situados na periferia.Mas, ao mesmo tempo, 0 territorio primitivo seria ampliado. A analise miticase afigura, assim, semelhante a uma tarefa de Penelope. Cada progresso trazuma nova esperanca, atrelada a solucao de uma nova dificuldade. 0 dossienunca esta concluido.

    Devemos, porem, confessar que, longe de nos assustar, a estranha concep-

  • 8/2/2019 Levi-Strauss-Cru_e_Cozido

    9/37

    o estudo dos mitos efetivamente coloca urn problema metodologico, namedida em que nao pode adequar-se ao principio cartesiano de dividir adificuldade em tantas partes quantas forem necessarias para resolve-lo, Naoexiste urn verdadeiro termino na analise mitica, nenhuma unidade secretaque se possa atingir ao final do trabalho de decomposicao, Os temas se des-dobram ao infinito. Quando acreditamos te-los desernbaracado e isoladouns dos outros, verificamos que, na verdade, eles se reagrupam, atraidos porafinidades imprevistas. Consequenternente, a unidade do mito e apenas ten-dencial e projetiva, ela nunca reflete urn estado ou urn momenta do mito.Fenomeno imaginario implicito no esforco de interpretacao, seu papel e darao mito uma forma sintetica e impedir que se dissolva na confusao dos con-trarios, Poder-se-ia, portanto, dizer que a ciencia dos mitos e uma anaclds-tica, tomando esse termo antigo no sentido lato, autorizado pela etimologia,e que admite em sua definicao 0 estudo dos raios refletidos e refratados.Mas, a diferenca da reflexao filosofica, que pretende remontar a sua origem,as reflexoes de que se trata aqui dizem respeito a raios que nao existem senaocomo virtualidade. A divergencia das sequencias e dos temas e urn atributofundamental do pensamento mitico. Ela se manifesta sob 0 aspecto de umairradiacao que e a iinica em relacao a qual a medida das direcoes e de seusangulos incita a postular uma origem comum: ponto ideal onde os raios des-viados pela estrutura do mito haveriam de se reencontrar se,justamente, naoproviessem de algures e nao tivessem permanecido paralelos ao longo detodo 0 trajeto. Como mostraremos na conclusao deste livro, essa multiplici-dade oferece algo de essencial, pois esta ligada ao duplo carater do pensa-mento mftico, que coincide com seu objeto, constituindo dele uma imagemhomologa, mas sem jamais conseguir fundir-se com ele, pois evolui numoutro plano. A recorrencia dos temas traduz essa mistura de impotencia etenacidade. 0 pensamento mitico, totalmente alheio a preocupacao compontos de partida ou de chegada bern definidos, nao efetua percursos com-pletos: sempre the resta algo a perfazer. Como os ritos, os mitos sao in-termi-navels. E,querendo imitar 0movimento espontaneo do pensamento mftico,nosso empreendimento, igualmente curto demais e longo demais, teve de securvar as suas exigencias e respeitar seu ritmo. Assim, este livro sobre osmitos e, a seu modo, urn mito. Supondo-se que possua uma unidade, esta soaparecera aquem e alem do texto. Na melhor das hipoteses, sera estabelecidano espirito do leitor.

    24 I Abertura

  • 8/2/2019 Levi-Strauss-Cru_e_Cozido

    10/37

    Mas e certamente no plano da crftica etnografica que atrafmos a maior partedas censuras. Apesar da nossa extrema preocupacao com a informacao, cer-tas fontes foram deixadas de lado, mesmo quando eram acessfveis.! Nemtodas as fontes utilizadas foram mantidas na redacao definitiva. Para naotornar a exposicao demasiadamente pes ada, foi preciso fazer a triagem dosmitos, escolher determinadas versoes, suprimir motivos de suas variantes.Poderemos ser acusados de ter moldado a materia da investigacao de acordocom nosso projeto. Pois se, de uma massa consideravel de mitos, tivesse-mos mantido apenas aqueles mais favoraveis a demonstracao, esta perderiamuito de sua forca. Conclui-se que, para ousar abordar sua comparacao, te-ria sido preciso vasculhar efetivamente a totalidade dos mitos conhecidos daAmerica tropical?

    Tal objecao assume urn relevo particular diante das circunstancias queatrasaram a publicacao deste livro. Ele estava quase pronto quando se anun-ciou a publicacao da En c ic lo p ed ia Bo ro ro [EB 1 , e esperamos que a obra che-gasse a Franca para explora-la antes de dar ao texto sua forma final. Mas, uti-lizando 0mesmo raciodnio, nao deveriamos ter esperado pela publicacao,em dois ou tres anos, do segundo volume, que sera consagrado aos mitos, eda parte que tratara dos nomes propriosi Em verdade, 0 estudo do volumepublicado trazia urn outro ensinamento, apesar das riquezas que contem, Ossalesian os, que registrar am suas proprias mudancas de opiniao com muitatranquilidade, quando nao deixam simplesmente de menciona-las, sao bas-tante ngidos quanto a coincidencia entre uma informacao publicada por urnautor e outra mais recente, colhida por eles mesmos. Em ambos os casos,cometem 0mesmo erro metodologico. 0 fato de uma inforrnacao contradi-zer uma outra coloca urn problema, mas nao 0 resolve. Nos temos mais res-peito pelos informantes, tanto os nossos quanto os antigamente utilizadospelos missionaries, cujo testemunho tern, por isso, urn valor particular. Osmeritos dos salesianos sao tao notorios, que se pode, sem trair 0 reconheci-mento que lhes e devido, fazer-Ihes uma leve crftica: eles tern a lamentaveltendencia a crer que a informacao mais recente anula todas as outras.

    1Assim, por terem sido publicadas recentemente, algumas obras como D i e T a ca n a, deKarin Hissink e Albert Hahn (1961), s6 foram exploradas superficialmente, e outras, quechegaram 11Pranca ap6s a conclusao deste livro, nem sequer tocadas. E 0caso de Jo-hannes Wilbert, I nd io s d e la r eg io n O ri no c o- V e ntu ar i (1963) e Warao O r al L it e ra tu re(1964) e de Niels Fock, Waw ai, R elig io n a nd S oc ie ty o f a n A ma zo nia n T rib e (1963), noqual ja encontramos, no entanto, urn mito de sarigue que comprova nossas analises dasterceira e quarta partes. Esses novos materiais serao aproveitados num outro volume.

    Abertura I 25

  • 8/2/2019 Levi-Strauss-Cru_e_Cozido

    11/37

    Nao duvidamos nem por urn instante que a consideracao de outros docu-mentos, publicados ou a publicar, afetara nossas interpretacoes, Algumas delas,aventadas prudentemente, talvez recebam uma confirrnacao: outras serao aban-donadas ou modificadas. Mas nao seja por isso: em disciplinas como a nossa,o saber cientifico avan

  • 8/2/2019 Levi-Strauss-Cru_e_Cozido

    12/37

    Porem, por maior que seja seu respeito pela historia e seu empenho em apro-veitar todas as suas licoes, a analise estrutural nao quer se ver confinada aosperimetros ja circunscritos pela investigacao hist6rica. Ao contrario, demons-trando que mitos de proveniencias muito diferentes formam objetivamenteurn grupo, ela coloca urn problema para a historia, incentivando-a a partirem busca de uma solucao. Constituimos urn grupo, e esperamos ter dadoprovas de que se trata de urn grupo. Cabe aos etnografos, aos historiadores eaos arqueologos dizer como e por que.

    Mas todos podem ficar tranquilos, Para explicar 0 carater de grupo queapresentam os mitos reunidos pela nossa investigacao (e que 0foram apenaspor essa razao), nao esperamos que a critica historica possa, urn dia, reduzirurn sistema de afinidades logicas a enumeracao de uma infinidade de empres-timos, sucessivos ou simultaneos, que populacoes contemporaneas ou antigasteriam feito umas as outras, atraves de distancias e lapsos de tempo as vezestao consideraveis que qualquer interpretacao desse tipo seria pouco plausivelou, em todo caso, impossivel de se verificar. Por isso comecaremos convi-dando 0historiador aver na America indigena uma Idade Media a qual teriafaltado sua Roma: massa confusa, origin aria de urn velho sincretismo cujatextura foi certamente muito frouxa, no seio da qual subsistiram aqui e acola,durante varies seculos, focos de alta civilizacao e povos barbaros, tendenciascentralizadoras e forcas de fragmentacao, Embora estas ultimas tenham pre-valecido, por forca de causas internas e devido a chegada dos conquistadoreseuropeus, e certo que urn grupo, como 0que constitui 0objeto de nossa inves-tigacao, deve seu carater ao fato de se ter, de certo modo, cristalizado nummeio semantico ja organizado, cujos elementos tinham servido a todos ostipos de cornbinacoes: nao tanto, sem duvida, por vontade de imitar, senaopara permitir que sociedades pequenas, porern numerosas, afirmassem suarespectiva originalidade explorando os recursos de uma dialetica de oposi-coes e correlacoes, no ambito de uma concepcao de mundo comum.

    Talinterpretacao, que deixaremos apenas como esboco, baseia-se eviden-temente em conjecturas hist6ricas: alta antiguidade do povoamento da Ame-rica tropical, deslocamentos repetidos em todos os sentidos de varias tribos,fluidez demografica e fen6menos de fusao criando condicoes para urn sin-cretismo muito antigo, a partir do qual se produziram as diferencas observa-veis entre os grupos, que nao refletem nada ou quase nada das condicoesarcaicas, mas sao, em geral, secundarias e derivadas. Apesar da perspectivaformal que adota, a analise estrutural valida, portanto, interpretacoes etno-graficas e hist6ricas que propusemos ha mais de vinte anos e que, considera-das temerarias na epoca (cf. Levi-Strauss 19s8a:n8-ss; cap. VI), so fizeram

    Abertura I 27

  • 8/2/2019 Levi-Strauss-Cru_e_Cozido

    13/37

    ganhar terreno. Se alguma conclusao etnografica se depreende deste livro, e ade que na verdade os Ie , longe de serem os "marginais" que se imaginava em1942, durante a redacao do volume Ido Han db oo k o f S ou th Am er ic an In dia ns(hipotese contra a qual protestavamos ja na epoca), representam, na Americado SuI, urn elemento central, cujo papel e comparavel ao desempenhado, naAmerica do Norte, pelas culturas muito antigas e seus sobreviventes estabe-lecidos nas bacias dos rios Fraser e Columbia. Quando nossa investigacao sedeslocar para as regioes setentrionais da America do Norte, os fundamentosdessa aproximacao aparecerao com mais clareza.

    Era necessario evocar pelo menos esses resultados concretos da analise estru-tural (outros resultados, limitados as culturas da America tropical, serao ex-postos neste livro) , para alertar os leitores contra a acusacao de formalismo,ou mesmo de idealismo, que as vezes nos e dirigida. Mais ainda do que nossasobras anteriores, este livro nao estaria desviando a investigacao etnologicapara os caminhos - que deveriam continuar sendo proibidos para ele - dapsicologia, da logica e da filosofia? Nao estarfamos assim contribuindo paradesviar a atencao da etnografia de suas verdadeiras tarefas, que consistiriamno estudo de sociedades concretas e dos problemas nelas colocados pelas rela-coes entre os individuos e os grupos, do triplo ponto de vista, social, politicoe econ6mico? Essas preocupacoes, frequentemente expressas, resultam a nos sover de urn total desconhecimento da tarefa a que nos propusemos. E colo camem duvida - 0 que nos parece mais grave - a continuidade do programaque seguimos metodicamente desde A s e s tr utu ra s e lem e n ta re s d o p ar e nte s co ,quando, pelo menos contra esta obra, nao parece que a mesma objecao possaser razoavelmente formulada.

    Se 0 p e ns am e n to s e lv ag em marca uma especie de pausa em nossa tentativa,e somente porque era preciso recuperar 0 f6lego entre os dois esforcos. Certa-mente, aproveitamos para dar uma olhada no panorama que se estendia diantede nos, valendo- nos da ocasiao que se oferecia para medir 0 trajeto percorrido,estabelecer a sequencia do itinerario e ter uma vaga ideia dos territoriesestrangeiros que terfamos de atravessar, embora nao tivessemos a intencao denos afastar muito de nosso caminho e - a nao ser para uma pequena cacadafurtiva - de nos aventurar pelos extremamente bern guardados territories deca

  • 8/2/2019 Levi-Strauss-Cru_e_Cozido

    14/37

    Mais importante, 0 destino nao mudou. Trata-se como sempre de, par-tindo da experiencia etnografica, fazer urn inventario dos imperativos men-tais, reduzir dados aparentemente arbitrarios a uma ordem, atingir urn nivelonde uma necessidade, imanente as ilusoes de liberdade, se revela. Por tras dacontingencia superficial e da diversidade aparentemente incoerente das regrasde casamento, destacamos, n'As estruturas, urn pequeno mimero de princi-pios simples, cuja intervencao fazia com que urn conjunto muito complexode usos e costumes, a primeira vista absurdos (e assim geralmente considera-dos), fosse redutivel a urn sistema significativo. Nada garantia, entretanto, quetais imperativos fossem de origem interna. Pode ate ser que apenas ecoassem,no espirito dos hom ens, certas exigencies da vida social objetivadas nas ins-tituicoes. Sua ressonancia no plano psiquico seria, entao, 0efeito de mecanis-mos de que so faltava descobrir 0modo de operacao,

    Portanto, a experiencia que iniciamos agora com a mitologia sera maisdecisiva. A mitologia nao tern funcao pratica evidente; ao contrario dos feno-menos anteriormente examinados, ela nao esta diretamente vinculada a umarealidade diferente, dotada de uma objetividade maior do que a sua, cujasordens transmitiria a urn espfrito que parece ter totalliberdade para se entre-gar a propria criatividade espontanea, Conseqiientemente, se se pudesse de-monstrar que, tambem neste caso, a aparente arbitrariedade, a pretensa liber-dade de expansao, a invencao supostamente desenfreada supoem regras queoperam num nivel mais profundo, a conclusao inelutavel seria de que 0espi-rito, deixado a sos consigo mesmo e liberado da obrigacao de compor-se comos objetos, fica de certo modo reduzido a imitar-se a si mesmo como objeto;e que, nao sendo as leis de suas operacoes nesse caso fundamentalmente dife-rentes daquelas que ele revela na outra funcao, 0espirito evidencia assim suanatureza de coisa entre as coisas. Sem levar tao longe 0 raciocfnio, basta-nosassimilar a conviccao de que, se 0 espirito humano se mostra determinadoate mesmo em seus mitos, entao afortiori deve se-lo em toda parte.'

    Ao deixar-se guiar pela busca dos imperativos mentais, nossa problema-tica se aproxima da do kantismo, embora caminhemos por outras vias, quenao conduzem as mesmas conclusoes. 0 etnologo nao se sente obrigado,como 0 filosofo, a tomar como principio de reflexao as condicoes de exerci-cio de seu proprio pensamento, ou de uma ciencia que e a de sua sociedade ede seu tempo, a fim de estender essas constatacoes locais a urn entendimento

    2 "...Se ha le is e m algum lugar, de ve have -las po r to cla parte :' A tal co nclusao ja che garaTylo r, na passage m que , ha cle ze sse te ano s, co lo cam os co mo e pigrafe a As e s tr u tu ras e l e-me n ta r e sdo pa re n te s c o.

    Abertura I 29

  • 8/2/2019 Levi-Strauss-Cru_e_Cozido

    15/37

    cuja universalidade so pode ser hipotetica e virtual. Preocupado com os mes-mos problemas, ele adota um procedimento duplamente inverso. Prefere, ahipotese de um entendimento universal, a observacao empirica de entendi-mentos coletivos, cujas propriedades, de certo modo solidificadas, the saoreveladas por inumeraveis sistemas concretos de representacoes, E visto serele homem de certo meio social, de certa cultura, de certa regiao e de certoperiodo da historia, para quem esses sistemas representam toda a gama devariacoes possfveis no seio de um genero, escolhe aqueles cuja divergencia lheparece mais acentuada, na esperanca de que as regras metodologicas que lheserao impostas para traduzir esses sistemas nos termos de seu proprio, e vice-versa, exponham uma rede de imperativos fundamentais e comuns: ginasticasuprema em que 0exerdcio da reflexao, levado aos seus limites objetivos (jaque estes terao sido antes de tudo localizados e inventariados pela investiga-

  • 8/2/2019 Levi-Strauss-Cru_e_Cozido

    16/37

    conhecimento e 0 talento necessaries, perderia quase que imediatamente 0 fiode suas ideias, Do mesmo modo, 0 exercicio e 0 uso do pensamento miticoexigem que suas propriedades se mantenham ocultas; senao, colocar-nos-Iamos na posicao do mitologo, que nao pode acreditar nos mitos, pois sededica a desmonta-los, A analise mitica nao tern, nem pode ter por objetomostrar como os homens pensam. No caso particular que nos interessaaqui, e no minimo duvidoso que os indigenas do Brasil Central realmenteconcebam, alem dos relatos miticos que os fascinam, os sistemas de relacoesaos quais os reduzimos. E quando, por meio desses mitos, validamos certasexpressoes arcaicas ou figuradas de nossa propria lingua popular, a mesmaconstatacao se impoe, ja que e de fora, e segundo as regras de uma mitologiaestrangeira, que uma tomada de consciencia retroativa se opera de nossaparte. Nao pretendemos, portanto, mostrar como os homens pensam nosmitos, mas como os mitos se pensam nos homens, e a sua revelia.

    E, como sugerimos, talvez convenha ir ainda mais longe, abstraindo todosujeito para considerar que, de urn certo modo, os mitos se pensam entre Si.4Pois trata-se, aqui, menos de extrair 0 que ha nos mitos (sem estar, alias, naconsciencia dos homens), do que 0sistema dos axiomas e postulados que defi-nem 0melhor codigo possfvel, capaz de oferecer uma significacao comum aelaboracoes inconscientes, que sao proprias de espfritos, sociedades e culturasescolhidas entre os que apresentam 0maior distanciamento, uns em relacaoaos outros. Como os mitos se fundam, eles proprios, em codigos de segundaordem (sendo os de primeira ordem aqueles em que consiste a linguagem),este livro forneceria 0 esboco de urn codigo de terceira ordem, destinado agarantir a tradutibilidade redproca de varies mitos. Por essa razao, nao e equi-vocado considera-lo como urn mito: de certo modo, 0mito da mitologia.

    Mas, tanto quanta os outros codigos, este nao e inventado ou recebido defora. E imanente a propria mitologia, onde apenas 0descobrimos. Urn etno-grafo, trabalhando na America do SuI, espantou-se com 0 modo como osmitos chegavam a de: "Cada narrador ou quase conta as historias a seu mo-do. Mesmo para os detalhes importantes, a margem de variacao e enorme .." ,E, no entanto, os indigenas nao pareciam sensibilizar-se com essa situacao:"Urn karaja que me acompanhava de aldeia em aldeia ouviu muitas variantesdesse tipo e recebeu-as com uma confianca quase identica, Nao que de naopercebesse as contradicoes, Mas nao tinha 0 minimo interesse por elas. .:'(Lipkind 1940: 251). Urn comentador ingenue, procedente de urn outro pla-

    4 Os Ojibwa consideram os mitos como "seres dotados de consciencia, capazes de pen-sar e de agir". (William Jones 1919: 574,n.r),

    Abertura I 31

  • 8/2/2019 Levi-Strauss-Cru_e_Cozido

    17/37

    neta, poderia se espantar, com mais razao (ja que se trata entao de historia enao de mito), que, na massa de obras consagradas a Revolucao Francesa, osmesmos incidentes nao sejam sempre mencionados ou ignorados, e que osrelatados por varies autores aparec;:am sob opticas diferentes. E, no entanto,essas variantes se referem ao mesmo pais, ao mesmo periodo, aos mesmosacontecimentos, cuja realidade se espalha por todos os planos de uma estru-tura em camadas. 0 criterio de validade nao se prende, portanto, aos elemen-tos da historia. Perseguidos isoladamente, cada urn deles seria intangivel. Masao menos alguns deles adquirem consistencia, pelo fato de poderem integrar-se numa serie cujos termos recebem mais ou menos credibilidade, depen-dendo de sua coerencia global.

    Apesar dos esforcos, tao meritorios quanto indispensaveis, para atingiruma outra condicao, uma historia clarividente devera confessar que jamaisescapa completamente da natureza do mito. 0 que se aplica a ela se aplicara,portanto, a for tior i ainda mais a ele. Os esquemas miticos apresentam nomais alto grau 0 carater de objetos absolutos, que, se nao sofressem influen-cias externas, nao perderiam nem ganhariam partes. Segue-se que quando 0esquema sofre uma transformacao, est a afeta solidariamente todos os seusaspectos. Conseqiientemente, quando urn aspecto de urn determinado mitoparece ininteligfvel, urn metodo legitimo consiste em trata-lo, de modo hipo-tetico e preliminar, como uma transformacao do aspecto homologo de urnoutro mito, ligado para reforco do argumento ao mesmo grupo, e que sepresta melhor a interpretacao. Foi 0que fizemos diversas vezes: quando resol-vemos 0episodic da boca coberta do jaguar em M7 pelo episodic inverso daboca escancarada em Mss: ou 0 dos urubus realmente prestativos em Mi apartir dos falsamente prestativos de M6S.Contrariamente ao que se pode crer,o metodo nao cai num drculo vicioso. Implica somente que cada mito to-rnado em particular existe como aplicacao rest rita de urn esquema que asrelacoes de inteligibilidade redproca, percebidas entre varies mitos, ajudamprogressivamente a extrair.

    Certamente, devido a nossa aplicacao do metodo, seremos acusados deinterpretar demais e simplificar. Alem de nao pretendermos que todas assolucoes aventadas tenham 0mesmo valor, ja que insistimos em apontar aprecariedade de algumas delas, seria hipocrisia nao levar 0nosso pensamen-to ate 0 fim. Responderemos entao a nossos eventuais criticos: que importa?Pois, se0objetivo Ultimo da antropologia e contribuir para urn melhor conhe-cimento do pensamento objetivado e de seus mecanismos, finalmente da nomesmo que, neste livro, 0 pensamento dos indigenas sul-americanos tomeforma sob a operacao do meu pensamento, ou 0 contrario. 0 que importa e

    32 I Abertura

  • 8/2/2019 Levi-Strauss-Cru_e_Cozido

    18/37

    que 0espirito humano, indiferente a identidade de seus mensageiros ocasio-nais, manifesta ai uma estrutura cada vez mais inteligivel, a medida queavan

  • 8/2/2019 Levi-Strauss-Cru_e_Cozido

    19/37

    depois de te-lo tornado lento, ora acumulando os exemplos, ora mantendo-os separados. Assim, constatamos que nossas analises se situavam em diver-sos eixos. 0 das sucessoes, evidentemente, mas tambem 0das compacidadesrelativas, que exigiam 0 recurso a formas evocadoras do que sao, em musica,o solo e 0 tutti; os das tensoes expressivas e dos c6digos de substituicao, emfuncao dos quais apareciam, ao correr da redacao, oposicoes comparaveis asentre canto e recitativo, conjunto instrumental e aria.

    Dessa liberdade que tomavamos de recorrer a varias dimensoes para nelasdispor nossos temas, resultava que urn corte em capftulos isometricos deviadar lugar a uma divisao em partes menos numerosas, mas tambem mais vo-lumosas e complexas, de comprimento desigual, e cada uma delas formandourn todo em virtude de sua organizacao interna, a qual presidiria uma certaunidade de inspiracao, Pela me sma razao, essas partes nao podiam ter umaforma unica; cada uma delas obedeceria, antes, as regras de tom, de genero ede estilo exigidas pela natureza dos materiais utilizados e pela natureza dosmeios tecnicos empregados em cada caso. Aqui tambem, conseqiientemente,as formas musicais nos ofereciam 0 recurso de uma diversidade ja estabele-cida pela experiencia, ja que a comparacao com a sonata, a sinfonia, a cantata,o preludio, a fuga etc., permitia verificar facilmente que em music a tinhamsido colocados problemas de construcao analogos aos que a analise dos mitoslevantara, e para os quais a music a ja tinha inventado solucoes.

    Mas, ao mesmo tempo, nao podiamos esquivar-nos de urn outro pro-blema: 0 das causas profundas da afinidade, a primeira vista surpreendente,entre a musica e os mitos (cujas propriedades a analise estrutural se limita aevidenciar, retomando-as simplesmente em seu proveito e transpondo-as paraurn outro plano). E, sem duvida.ja era urn grande passo no caminho de umaresposta 0 fato de poder invocar essa invariante de nossa historia pessoal quenenhuma peripecia abalou, nem mesmo as fulgurantes revelacoes que foram,para urn adolescente, a audicao de Pelleas [e Me l isande 1 e depois d' As b od as :ou seja, a homenagem, prestada desde a infancia, no altar do "deus RichardWagner". Pois, se devemos reconhecer em Wagner 0pai irrecusavel da ana-lise estrutural dos mitos (e ate dos contos, veja-se Os me s tr e s) , e altamenterevelador que essa analise tenha sido inicialmente feita em musica> Conse-

    5 . Proclamando essa paternidade, estariamos agindo de modo ingrato se nao confesses-semos outras dfvidas. Primeiramente, para com a obra de Marcel Granet, semeada deintuicoes geniais; e, em seguida -last but not least -, para com a de Georges Dumezil:e 0Asklepios, Apollon Smintheus et Rudra, de Henri Gregoire, in Memoires de l'Acade-mie Royale de Belgique, Classe des Lettres ...,t. XLV, fasc. 1,1949.

    34 I Abertura

  • 8/2/2019 Levi-Strauss-Cru_e_Cozido

    20/37

    quenternente, quando sugeriamos que a analise dos mitos era comparavel ade uma grande partitura (Levi-Strauss 19s8a: 234), apenas tiravamos a con-sequencia logica da descoberta wagneriana de que a estrutura dos mitos serevela por meio de uma partitura.

    Contudo, essa homenagem liminar confirma a existencia do problema emvez de resolve-lo. Acreditamos que a verdadeira resposta se encontra no cara-ter comum do mito e da obra musical, no fato de serem linguagens que trans-cendem, cada uma a seu modo, 0 plano da linguagem articulada, emborarequeiram, como esta, ao contrario da pintura, uma dimensao temporal parase manifestarem. Mas essa relacao com 0 tempo e de natureza muito particu-lar: tudo se passa como se a musica e a mitologia so precisassem do tempopara infligir-Ihe urn desmentido. Ambas sao, na verdade, maquinas de supri-mir 0 tempo. Abaixo dos sons e dos ritmos, a rmisica opera sobre urn terrenobruto, que e 0 tempo fisiologico do ouvinte; tempo irremediavelmente diacro-nico porque irreversivel, do qual ela transmuta, no entanto, 0segmento que foiconsagrado a escuta-la numa totalidade sincronica e fechada sobre si mesma.A audicao da obra musical, em razao de sua organizacao interna, imobiliza,portanto,o tempo que passa; como uma toalha fustigada pelo vento, atinge-oe dobra-o. De modo que ao ouvirmos rmisica, e enquanto a escutamos, atin-gimos uma especie de imortalidade.

    Ve-se assim como a musica se asseme1ha ao mito, que tambem supera aantinomia de urn tempo historico e findo, e de uma estrutura permanente.Mas, para justificar plenamente a comparacao, e preciso avanca-la mais do quefizemos numa outra obra (Levi-Strauss 19s8a:230-33). Como a obra musical, 0mito opera a partir de urn duplo continuo. Urn externo, cuja materia e consti-tuida, num caso, por acontecimentos historicos ou tidos por tais, formandouma serie teoricamente ilimitada de onde cada sociedade extrai, para elaborarseus mitos, urn numero limitado de eventos pertinentes; e, no outro caso, pelaserie igualmente ilimitada dos sons fisicamente realizaveis, onde cada sistemamusical seleciona a sua escala. 0 segundo continuo e de ordem interna. Ternseu lugar no tempo psicofisiologico do ouvinte, cujos fatores sao muito com-plexos: periodicidade das ondas cerebrais e dos ritmos organicos, capacidadeda memoria e capacidade de atencao, Sao principalmente os aspectos neuro-psiquicos que a mitologia poe em jogo, pela duracao da narracao, a recorrenciados temas, as outras formas de retorno e paralelismo que, para serem correta-mente localizadas, exigem que 0 espirito do ouvinte yarra, por assim dizer, 0campo do relato em todos os sentidos a medida que este se desdobra diantedele. Tudo isso se aplica igualmente a rmisica. Mas, alem do tempo psicologico,a rmisica se dirige ao tempo fisiologico e ate visceral, que a mitologia certa-

    Abertura I 35

  • 8/2/2019 Levi-Strauss-Cru_e_Cozido

    21/37

    mente nao ignora, ja que uma historia contada pode ser "palpitante", sem queseu papel seja tao essencial quanto na musica: todo contraponto age silencio-samente sobre os ritmos cardiaco e respiratorio.

    Limitemo-nos a esse tempo visceral para simplificar 0raciodnio. Dire-mos entao que a musica opera por meio de duas grades. Uma e fisiologica e,portanto, natural; sua existencia se deve ao fato de que a music a explora osritmos organicos, e torna assim pertinentes certas descontinuidades que deoutro modo permaneceriam no estado latente, como que afogadas na dura-cao. A outra e cultural; consiste numa escala de sons musicais, cujos mimeroe intervalos variam segundo as culturas. Esse sistema de intervalos fornece armisica urn primeiro nivel de articulacao, nao em funcao das alturas relativas(que resultam das propriedades sensiveis de cada som), mas das relacoes quesurgem entre as notas da escala: da f sua distincao em fundamental, tonica,sensivel e dominante, exprimindo relacoes que os sistemas politonal e atonalencavalam, mas nao destroem.

    A rnissao do compositor e alterar essa descontinuidade sem revogar-lhe 0prindpio; quer a invencao melodica cave lacunas temporarias na grade, quer,tambern temporariamente, tape ou reduza os buracos. Ora ela perfura, oraobtura. E 0que vale para a melodia vale tambern para 0 ritmo, ja que, atravesdeste segundo meio, os tempos da grade fisiologica, teoricamente constantes,sao saltados ou redobrados, antecipados ou retomados com atraso.

    A emocao musical provern precisamente do fato de que a cada instante 0compositor retira ou acrescenta mais ou menos do que preve 0ouvinte, nacren

  • 8/2/2019 Levi-Strauss-Cru_e_Cozido

    22/37

    . .. irradiando uma sagracaoMal calada pela propria tinta em solucos sibilinos,

    o designio do compositor se atualiza, como 0 do mito, atraves do ouvinte epor ele. Em ambos os casos, observa-se com efeito a mesma inversao da rela-cao entre 0emissor e 0receptor, pois e, afinal, 0 segundo que se ve significadope1a mensagem do primeiro: a rmisica se vive em mim, eu me ouco atravesde1a. 0 mito e a obra musical aparecem, assim, como regentes de orquestracujos ouvintes sao os silenciosos executores.

    Se perguntarmos entao onde se encontra 0verdadeiro micleo da obra, aresposta necessaria sera que sua determinacao e impossivel. A musica e amitologia confrontam 0homem com objetos virtuais de que apenas a som-bra e atual, com aproximacoes conscientes (uma partitura musical e urn mitonao podendo ser outra coisa) de verdades ine1utavelmente inconscientes eque lhes sao consecutivas. No caso do mito, intuimos 0porque dessa situacaoparadoxal: deve-se a relacao irracional que prevalece entre as circunstanciasda criacao, que sao coletivas, e 0 regime individual do consumo. Os mitosnao tern autor; a partir do momenta em que sao vistos como mitos, e qual-quer que tenha sido a sua origem real, so existem encarnados numa tradicao,Quando urn mito e contado, ouvintes individuais recebem uma mensagemque nao provem, na verdade, de lugar algum; por essa razao se the atribuiuma origem sobrenatural. E, pois, compreensivel que a unidade do mito sejaprojetada num foco virtual: para alem da percepcao consciente do ouvinte,que ele apenas atravessa, ate urn ponto onde a energia que irradia sera consu-mida pelo trabalho de reorganizacao inconsciente, previamente desenca-deado por ele. A rmisica coloca urn problema muito mais diffcil, ja que igno-ramos completamente as condicoes mentais da criacao musical. Em outraspalavras, nao sabemos qual e a diferenca entre esses espfritos raros que secre-tam musica e aqueles, incontaveis, em que 0fenomeno nao ocorre, embora semostrem geralmente sensiveis a ele. A diferenca e, no entanto, tao marcada,manifesta-se tao precocemente, que supomos apenas que implica proprieda-des de uma natureza particular, situadas certamente num nfvel muito pro-fundo. Mas 0 fato de a music a ser uma linguagem - por meio da qual saoelaboradas mensagens das quais pelo menos algumas sao compreendidaspe1a imensa maioria, ao passo que apenas uma infima minoria e capaz deemiti-las, e de, entre todas as linguagens, ser esta a unica que reune as carac-terfsticas contraditorias de ser ao mesmo tempo inteligivel e intraduzivel -* Versos do poema Hommage, de Mallarme, dedicado a Wagner. [ N . T . J

    Abertura I 37

  • 8/2/2019 Levi-Strauss-Cru_e_Cozido

    23/37

    faz do criador de rmisica urn ser igual aos deuses, e da propria musica, 0supremo misterio das ciencias do hom em, contra 0qual elas esbarram, e queguarda a chave de seu progresso.

    Com efeito, seria erroneo invocar a poesia pretendendo que ela levantaurn problema da mesma ordem. Nem todo mundo e poeta, mas a poesia uti-liza como veiculo urn bern comum, que e a linguagem articulada. Ela se con-tenta em estabelecer para 0seu emprego regras especificas.A musica, ao con-trario, se vale de urn veiculo que the e proprio e que, fora dela, nao e suscetivelde nenhum uso geral. De direito, senao de fato, qualquer pessoa razoavel-mente educada poderia escrever poemas, bons ou maus; ao passo que ainvencao musical supoe aptidoes especiais, que nao se pode fazer florescer anao ser que sejam dadas.

    Os fanaticos por pintura certamente protestarao contra 0 lugar privilegiadoque damos a musica, ou pelo menos reivindicarao 0mesmo tratamentoparaas artes graficas e plasticas. Parece-nos contudo que, de urn ponto de vistaformal, os materiais utilizados, respectivamente sons e cores, nao se situamno mesmo plano. Para justificar a diferenca, diz-se as vezes que a music a naoe normalmente imitativa, ou melhor, que nao imita nada a nao ser ela mesma,ao passo que, diante de urn quadro, a primeira pergunta que vern a mente doespectador e 0que ele representa. Mas, se colocarmos 0problema desse mo-do em nossos dias, esbarraremos no caso da pintura nao-figurativa, Paraapoiar sua empresa, 0 pintor abstrato nao pode invocar 0 precedente darmisica, e reivindicar seu direito de organizar as formas e as cores, senao demodo totalmente livre, ao menos seguindo as regras de urn codigo indepen-dente da experiencia sensfvel, como faz a musica com os sons e os ritmos?

    Propondo essa analogia, seriamos vitimas de uma grave ilusao, Pois, seexistem "naturalmente" cores na natureza, nao ha, a nao ser de modo fortuitoe passageiro, sons musicais, mas apenas rufdos.s Os sons e as cores nao sao,

    6 . Se excetuarmos, porque inverossfrnil, 0 sibilar do vento nos juncos do Nilo, invo-cado por Deodoro, restara na natureza apenas 0canto dos passaros, caro a Lucrecio -l iquidas avium voces -, para servir de modelo a musica, Embora os ornitologos e osperitos em acustica concordem em reconhecer as ernissoes vocais dos passaros 0cara-ter de sons musicais, a hip6tese, gratuita e inverificavel, de uma relacao genetica entreo gorjeio e a rmisica nem merece ser discutida. 0 homem nao e 0unico produtor desons musicais, ele compartilha esse privilegio com os passaros, mas essa constatacao

    38 IAbertura

  • 8/2/2019 Levi-Strauss-Cru_e_Cozido

    24/37

    portanto, entidades do mesmo nfvel, e a comparacao so pode ser legitima-mente feita entre as cores e os ruidos, isto e, entre os modos visuais e acusti-cos, ambos da ordem da natureza. Ora, ocorre que justamente em relacao aambos 0homem mantem a mesma atitude, nao lhes permitindo livrar-se deurn suporte. Conhecemos certamente ruidos confusos, assim como coresdifusas, mas, logo que seja possfve l discerni-los e dar-lhes uma forma, surgiraimediatamente a preocupacao de identifica-los, ligando-os a uma causa. Taismanchas, diremos, sao urn monte de flores praticamente escondidas pelavegetacao, ao passo que aqueles estalos devem provir de urn passo furtivo oude galhos fustigados pelo vento ...

    Nao existe, portanto, verdadeira paridade entre pintura e rmisica. Umaencontra na natureza a sua materia: as cores sao dadas antes de serem utiliza-das e 0vocabulario atesta seu carater derivado ate na designacao das nuan-cas mais sutis: azul-marinho, azul-pavao ou azul-petroleo: verde-ague, verde-esmeralda; amarelo-palha, amarelo-ovo; vermelho-cereja etc. au seja, so hacores na pintura porque ja existem seres e objetos coloridos, e e apenas porabstracao que as cores podem ser descoladas desses substratos naturais e tra-tadas como termos de urn sistema separado.

    Objetar-se-a que, se isso vale para as cores, nao se aplica as formas. Asgeometricas, e todas as outras que delas derivam, se apresentam ao artista jacriadas pela cultura; como os sons musicais, elas nao provem da experiencia,Mas, se uma arte se limitasse a explorar essas formas, adquiriria, inevitavel-mente, urn carater decorativo. Sem jamais conquistar uma existencia propria,ficaria exaurida, a menos que, ao enfeita-los, nao se agarrasse aos objetospara tirar deles a sua substancia. Tudo se passa, portanto, como se a pinturanao tivesse outra escolha senao significar os seres e as coisas incorporando-os a seus intentos, ou participar da significacao dos seres e das coisas incor-porando-se a eles.

    Parece-nos que essa servidao congenita das artes plasticas em relacao aosobjetos se deve ao fato de a organizacao das formas e das cores no seio daexperiencia sensfvel (que, nem e preciso dize-lo, ja e uma funcao da atividade

    nao afeta a nossa tese, ja que, it diferenca da cor,que e urn modo da materia, a tonalidademusical- tanto entre os passaros quanta entre os homens - e urn modo da sociedade.o pretenso "canto" dos passaros situa-se no limiar da linguagem; serve it expressao e itcomunicacao, Os sons musicais continuam, portanto, do lado da cultura. E a linha dedemarcacao entre a natureza e a cultura que ja nao segue tao exatamente quanta se acre-ditou no passado 0tracado de nenhuma das linhas que servem para distinguir a huma-nidade da animalidade.

    Abertura I 39

  • 8/2/2019 Levi-Strauss-Cru_e_Cozido

    25/37

    inconsciente do espfrito) desempenhar, para essas artes, 0papel de primeironivel de articulacao do real. Gracas unicamente a ele, elas tern a possibilidadede introduzir uma segunda articulacao, que consiste na escolha e disposicaodas unidades e em sua interpretacao em conformidade com os imperativos deuma tecnica, de urn estilo e de uma maneira: isto e, transpondo-as segundo asregras de urn c6digo, caracteristicas de urn artista ou de uma sociedade. Se apintura merece ser chamada de linguagem, isso acontece na medida em que,como toda linguagem, ela consiste num c6digo especial cujos termos sao ge-rados por combinacao de unidades menos numerosas e elas mesmas perten-centes a urn c6digo mais geral. Existe, no entanto, uma diferenca em relacao alinguagem articulada, de onde decorre que as mensagens da pintura sao rece-bidas em primeiro lugar pela percepcao estetica e depois pela percepcao inte-lectual, quando ocorre 0oposto no outro caso. Quando se trata da linguagemarticulada, a entrada em operacao do segundo c6digo oblitera a originalidadedo primeiro. Daf 0"carater arbitrario" reconhecido aos signos lingufsticos, Oslinguistas sublinham esse aspecto das coisas quando dizem que" (os) morfe-mas, elementos de significacao, se resolvem por sua vez em fonemas, elementosde articulacao desprovidos de significacao" (Benveniste 1952: 7). Consequen-temente, na linguagem articulada, 0 primeiro c6digo nao significante e , parao segundo c6digo, meio e condicao de significacao: de modo que a pr6priasignificacao fica confinada num plano. A dualidade se restabelece na poesia,que retoma 0valor significante virtual do primeiro c6digo, para integra-lo nosegundo. Com efeito, a poesia opera ao mesmo tempo sobre a significacaointelectual das palavras e das construcoes sintaticas e sobre propriedades este-ticas, termos em potencial de urn outro sistema que reforca, modifica ou con-tradiz essa significacao. Isso ocorre tambem na pintura, onde as oposicoes deformas e de cores sao recebidas como traces distintivos pertencentes simulta-neamente a dois sistemas: 0 das significacoes intelectuais, herdado da expe-riencia comum, resultante do recorte e da organizacao da experiencia sensivelem objetos; e 0 dos valores plasticos, que s6 se torna significativo se modularo outro, integrando-se nele. Dois mecanismos articulados seengrenam, e car-regam urn terceiro, no qual se organizam suas propriedades.

    Compreende-se entao por que a pintura abstrata, e, em termos mais gerais,todas as escolas que se proclamam "nao figurativas" perdem 0poder de sig-nificar: elas renunciam ao primeiro nivel da articulacao e pretendem conten-tar-se com 0segundo para subsistir. Particularmente instrutivo nesse sentidoe 0 paralelo que se quis estabelecer entre uma tentativa contemporanea e aarte caligrafica chinesa. Mas, no primeiro caso, as formas a que 0 artista re-corre nao existem anterior mente num outro plano, onde gozariam de uma

    40 I Abertura

  • 8/2/2019 Levi-Strauss-Cru_e_Cozido

    26/37

    organizacao sistematica. Nada permite, portanto, identifica-las como formaselementares: trata-se, antes, de criaturas do capricho, gra

  • 8/2/2019 Levi-Strauss-Cru_e_Cozido

    27/37

    ao homem todos os modelos das cores, e as vezes ate mesmo sua materia emestado puro. Basta-Ihe, para comecar a pintar, reemprega-la. Mas, como su-blinhamos, a natureza produz rufdos, e nao sons musicais, que sao monopo-lio da cultura enquanto criadora dos instrumentos e do canto. Essa diferencase reflete na linguagem: nao descrevemos do mesmo modo as nuancas dascores e as dos sons. Para as primeiras, quase sempre recorremos a metoni-mias implfcitas, como se urn determinado amarelo fosse inseparavel da per-cepcao visual da palha ou da gema de ovo, urn determinado negro, do carvaoque the deu origem, urn marrom, da terra amassada. 0 mundo das sonorida-des, por sua vez, abre-se para as metaforas. Prova disso sao "0 longo prantodos violinos - do outono", "a darineta e a mulher amada' etc. Sem duvida, acultura descobre, as vezes, cores que nao the parecem emprestadas a natu-reza. Seria mais correto dizer que ela as redescobre, sendo a natureza, nesseparticular, de uma riqueza verdadeiramente inesgotavel, Mas, afora 0caso jadiscutido do canto dos passaros, os sons musicais nao existiriam para 0homem se ele nao os tivesse inventado.

    Portanto, e apenas a posteriori e, digamos, de modo retroativo, que a rmi-sica reconhece aos sons propriedades fisicas e seleciona algumas delas parafundar suas estruturas hierarquicas. Dirao que esse procedimento nao a dis-tingue da pintura, que igualmente a posteriori reparou que existe uma ffsicadas cores, a que ela recorre mais ou menos abertamente? Mas, ao faze-lo, apintura organiza intelectualmente, por meio da cultura, uma natureza que jaestava diante dela como organizacao sensfvel, A rmisica percorre urn trajetoexatamente inverso, po is e a cultura que ja estava diante dela, mas sob formasensrvel, antes que, por meio da natureza, ela 0 organizasse intelectualmente.o conjunto sobre 0qual ela opera e de ordem cultural, 0que explica 0 fato dea rmisica nascer inteiramente livre dos laces representativos, que mantem apintura na dependencia do mundo senstvel e de sua organizacao em objetos.

    Ora, nessa estrutura hierarquizada da escala, a rmisica encontra 0seu pri-meiro nfvel de articulacao. Ha, portanto, urn paralelismo impressionanteentre as ambicoes da rmisica dita, por antffrase, concreta, e as da pintura maiscorretamente chamada abstrata. Repudiando os sons musicais e recorrendoexdusivamente aos rufdos, a musica concreta se coloca numa situacao com-paravel, do ponto de vista formal, a de qualquer pintura: limita-se ao tete-a-tete com os dados naturais. E, como a pintura abstrata, trata antes de maisnada de desintegrar 0sistema de significacoes atuais ou virtuais em que essesdados figuram na condicao de elementos. Antes de utilizar os rufdos quecoleciona, a musica concreta se esforca por toma-les irreconhedveis, paraque 0ouvinte nao possa ceder a tendencia natural de liga-los a leones: pratos

    42 IAbertura

  • 8/2/2019 Levi-Strauss-Cru_e_Cozido

    28/37

    quebrados, apito de locomotiva, acesso de tosse, galhos rompidos. Aboleassim urn primeiro nivel de articulacao que, nesse caso, teria urn rendimentobastante pobre, ja que 0 homem percebe e diferencia mal os ruidos, talvezdevido a solicitacao imperiosa que uma categoria privilegiada de ruidos -os da linguagem articulada - exerce sobre ele.o caso da rmisica concreta encerra, portanto, urn curioso paradoxo. Seelaconservasse 0valor representativo dos ruidos, disporia de uma primeira arti-culacao que the permitiria instaurar urn sistema de signos atraves da inter-vencao de uma segunda. Mas, com esse sistema, nao se diria quase nada. Parase certificar disso, basta imaginar 0 tipo de historias que se poderiam contarcom rufdos, mantendo-se suficientemente convicto de que seriam ao mesmotempo compreendidas e emocionantes. Daf a solucao adotada de desnaturaros ruidos para fazer deles pseudo-sons, mas entre os quais e impossfvel defi-nir relacoes simples, formando urn sistema significativo ja num outro plano,e capazes de formar a base de uma segunda articulacao, Por mais que amusica concreta se embriague com a ilusao de falar, ela apenas chafurda emtorno do sentido.

    Por isso nem pensamos em cometer 0erro imperdoavel que seria confun-dir 0 caso da musica serial com 0 que acabamos de invocar. Adotando deci-didamente 0partido dos sons, a music a serial, senhora de uma gramatica ede uma sintaxe refinadas, situa-se - nem e preciso dizer - no campo darmisica, que ela talvez ate tenha ajudado a salvar. Mas, embora seus proble-mas sejam de outra natureza e se situem num outro plano, apresentam certasanalogias com os que discutimos nos paragrafos precedentes.

    Levando ate 0 fim a erosao das particularidades individuais dos tons, quecome

  • 8/2/2019 Levi-Strauss-Cru_e_Cozido

    29/37

    ticular". Notemos que aqui 0 termo "preconcebido" encobre urn equivoco. Seas estruturas e as formas imaginadas pelos teoricos se mostraram, na maiorparte das vezes, artificiais e ate erroneas, isso nao significa que nao existanenhuma estrutura geral que uma melhor analise da musica, levando emconsideracao todas as suas manifestacoes no tempo e no espa

  • 8/2/2019 Levi-Strauss-Cru_e_Cozido

    30/37

    atributos 0 fato de poderem funcionar sem serem conhecidos ou correta-mente interpretados.

    Ora, no caso da rmisica serial, esse ancoramento natural e precario, senaoausente. Apenas ideologicamente pode 0 sistema ser comparado a uma lin-guagem. Pois, ao contrario da linguagem articulada, que e inseparavel de seufundamento fisiologico e ate fisico, ela navega a deriva depois de ter rompidosuas proprias amarras. Navio sem velame cujo capitao, cansado de ve-lo ser-vir de pontao, teria lancado ao alto-mar intimamente convicto de que, sub-metendo a vida a bordo as regras de urn minucioso protocolo, conseguiriadistrair a tripulacao da nostalgia de urn porto de arrimo e da preocupacaocom urn destino ...

    Nao contestaremos, alias, que essa escolha possa ter sido ditada pela mise-ria dos tempos. Talvez ate a aventura a que se lancaram a pintura e a rmisicatermine em novas margens, preferiveis aquelas que as acolheram durante tan-tos seculos e que se estavam exaurindo. Mas, se isso acontecer, sera a reve1iadosnavegadores e contra a sua vontade, pois, ao menos no caso da musica serial,vimos que esse tipo de eventualidade e violentamente repelido. Nao se trata denavegar para outras terras, ainda que sua localizacao fosse desconhecida e suaexistencia, hipotetica, A mudanca proposta e muito mais radical: apenas a via-gem e real, a terra, nao, e as rotas sao substituidas pelas regras de navegacao,

    Seja como for, e sobre urn outro ponto que queremos insistir. Mesmoquando parecem navegar em conjunto, a disparidade entre a rmisica e a pin-tura continua evidente. Sem se dar conta disso, a pintura abstrata desempenhacada dia mais, na vida social, 0papel que cabia antigamente a pintura decora-tiva. Ela se divorcia, portanto, da linguagem concebida como sistema de signi-ficacoes, enquanto a rmisica serial cola no discurso: perpetuando e exage-rando a tradicao do Lied, isto e, de urn genero em que a rmisica, esquecendode que fala uma lingua irredutfvel e soberana, se faz serva das palavras. Essadependencia em relacao a uma palavra outra nao revelaria a incerteza reinantede que, na ausencia de urn codigo equitativamente repartido, mensagens com-plexas serao bern recebidas pelos destinatarios aos quais, de qualquer modo,elas devem se dirigir? Uma linguagem cujas articulacoes foram quebradastende inevitavelmente a se dissociar, e suas pecas, antes meios de articulacaoreciproca da natureza e da cultura, a cair para urn dos dois lados. 0 ouvinteconstata -0a seu modo, ja que 0uso que 0compositor faz de uma sintaxe ex-traordinariamente sutil (que permite combinacoes tanto mais numerosas namedida em que os tipos de engendramento aplicados aos doze semitons dis-poem de urn espa

  • 8/2/2019 Levi-Strauss-Cru_e_Cozido

    31/37

    ---------~---------

    natureza, ora no da cultura, mas raramente nos dois conjuntamente. Ou por-que das partes instrumentais so the vern 0 sabor dos timbres, que age comoestimulante natural da sensualidade, ou porque, cortando as asas de qualquerveleidade da melodia, 0 recurso aos grandes intervalos da a parte vocal os ares,certamente falsos, de urn reforco expressivo da linguagem articulada.

    A luz das consideracoes acima, a referencia a urn universo em expansao,que encontramos mencionado por urn dos pensadores mais eminentes daescola serial, adquire uma importancia especial. Pois mostra que essa escoladecidiu jogar seu destino, e 0 da music a, numa aposta. Ou ela conseguirasuperar a tradicional distancia que separa 0 ouvinte do compositor, e -tirando do primeiro a possibilidade de se remeter inconscientemente a urnsistema geral- obriga-lo-a, assim, a reproduzir por conta propria, para com-preender a rmisica, 0 ato individual da criacao. Pela forca de uma logica internae sempre nova, cada obra arrancara, portanto, 0 ouvinte de sua passividade,torna-lo-a solidario de seu impulso, de modo que a diferenca nao sera mais denatureza, mas de grau, entre inventar a music a e escuta-Ia, Ou aconteceraoutra coisa. Pois nada, infelizmente, garante que os corp os de urn universo emexpansao sejam todos animados da mesma velocidade, nem que se deslo-quem na mesma direcao. A analogia astronomica que se invoca sugere alias 0inverso. A musica serial poderia pertencer a urn universo no qual a rmisica,em vez de trazer 0ouvinte para a sua trajetoria, se afastasse dele. Por mais queele se esforcasse em alcanca-la, ela pareceria cada dia mais longinqua e inatin-givel. Ate ficar longe demais para comove-lo, e apenas a ideia dela ainda seriaacessfvel, antes de finalmente perder-se na abobada noturna do silencio,sendo reconhecida pelos homens apenas por breves e fugidias cintilacoes,

    o leitor pode ficar desconcertado com essa discussao acerca da rmisica serial,que parece deslocada no inicio de uma obra consagrada aos mitos dos indiossul-americanos. Suajustificativa vern do projeto que concebemos, de tratar assequencias de cada mito, e os proprios mitos em suas relacoes reciprocas,como as partes instrumentais de uma obra musical, e de assemelhar seuestudo ao de uma sinfonia. 0 procedimento so e legitime com a condicao deque surja urn isomorfismo entre 0 sistema dos mitos, que e de ordem lingufs-tica, e 0 da musica, que vemos como uma linguagem, ja que 0 compreende-mos, mas cuja originalidade absoluta, que 0distingue da linguagem articu-lada, deve-se ao fato de ser intraduzfvel. Baudelaire notou com razao que,apesar de cada ouvinte sentir uma obra de urn modo que the e proprio, "a

    46 IAbertura

  • 8/2/2019 Levi-Strauss-Cru_e_Cozido

    32/37

    rmisica sugere ideias analogas em cerebros diferentes" (1861:1.213).Em outraspalavras,o que a rmisica e a mitologia acionam naqueles que as escutam saoestruturas mentais comuns. 0 ponto de vista que adotamos implica, conse-quenternente, 0 recurso a essas estruturas gerais repudiadas pela doutrinaserial, cuja propria realidade ela contesta. Por outro lado, essas estruturas sopodem ser chamadas de gerais se lhes for reconhecido urn fundamento obje-tivo para aquern da consciencia e do pensamento, ao passo que a rmisicaserial se quer obra consciente do espfrito e afirmacao de sua liberdade. Pro-blemas de ordem filosofica se insinuam no debate. 0 vigor de suas ambicoesteoricas, sua metodologia rigida e suas brilhantes realizacoes tecnicas quali-ficam a escola serial, muito mais do que as das pinturas nao figurativas, parailustrar uma corrente do pensamento contemporaneo que cumpre distinguirdo estruturalismo, principalmente na medida em que apresenta certas seme-lhancas em relacao a ele: abordagem decididamente intelectual, preponde-rancia concedida aos arranjos sistematicos, desconfianca para com as solu-coes mecanicistas e empiricistas. Contudo, por seus pressupostos teoricos, aescola serial se situa nos antfpodas do estruturalismo, ocupando diante deleurn lugar comparavel ao mantido antigamente pela libertinagem filosoficaem relacao a religiao, Com uma diferenca, no entanto: hoje e 0pensamentoestrutural que defende a bandeira do materialismo.

    Consequentemente, longe de ser uma digressao, nosso dialogo com 0pensamento serial retoma e desenvolve temas ja abordados na primeira par-te desta introducao. Acabamos assim de mostrar que, se 0 publico em geraltende a confundir estruturalismo, idealismo e formalismo, basta que 0estru-turalismo encontre em seu caminho urn idealismo e urn formalismo verda-deiros para que sua propria inspiracao, determinista e realista, fique total-mente evidente.

    Com efeito, 0 que afirmamos em relacao a qualquer linguagem pareceainda mais certo quando se trata da rmisica. Se, dentre todas as obras huma-nas, foi ela que nos pareceu mais adequada para instruir-nos sobre a essenciada mitologia, a razao disso e a perfeicao de que ela goza. Entre dois tipos desistemas de signos diametralmente opostos - de urn lado, 0sistema musical,do outro, a linguagem articulada -, a mitologia ocupa uma posicao media-na; convem encara-la sob as duas perspectivas para compreende-la, Contudo,quando se escolhe, como fizemos neste livro, olhar do mito em direcao arrnisica, e nao em direcao a linguagem, como tentamos fazer em obras ante-riores (Levi-Strauss 19S8a,19S8b,1962a, 1962b), 0 lugar privilegiado que cabea rmisica aparece com mais evidencia. Ao abordar a comparacao, invocamosa propriedade, comum ao mito e a obra musical, de operar pelo ajustamento

    Abertura I 47

  • 8/2/2019 Levi-Strauss-Cru_e_Cozido

    33/37

    de duas grades, uma externa e outra interna, No caso da musica, porem, essasgrades, que nunca sao simples, se complicam a ponto de se desdobrarem. Agrade externa, ou cultural, formada pelas escalas de intervalos e pelas rela-coes hierarquicas entre as notas, remete a uma descontinuidade virtual, adossons musicais, que ja sao em si objetos integralmente culturais, pelo fato de seoporem aos ruidos, os unicos dados sub specie naturae. Simetricamente, agrade interna.ou natural, de ordem cerebral, e reforcada por uma segunda gra-de interna, que e por assim dizer, ainda mais completamente natural, adosritmos viscerais. Na rrnisica, conseqiientemente, a mediacao da natureza e dacultura, que se realiza no seio de toda linguagem, torna-se uma hipermedia-cao: de ambos os lados, os ancoramentos sao reforcados. Instalada no pontode encontro entre dois dominios, a musica faz com que sua lei seja respeitadamuito alern dos limites que as outras artes evitariam ultrapassar. Tanto dolado da natureza quanto do da cultura, ela ousa ir mais longe do que as outras.Assim se explica 0 principio (quando nao a genese e a operacao, que conti-nuam sendo, como dissemos, 0 grande misterio das ciencias do homem) dopoder extraordinario que possui a musica de agir simultaneamente sobre 0espirito e sobre os senti dos, de mover ao mesmo tempo as ideias e as emo-coes, de fundi-las numa corrente em que elas deixam de existir lado a lado, anao ser como testemunhas e como respondentes.

    A mitologia, certamente, apresenta apenas uma fraca imitacao dessa vee-rnencia. Contudo, sua linguagem e a que apresenta 0maior mimero de tracesem comum com ada rmisica, nao somente porque, do ponto de vista formal,seu alto grau de organizacao interna cria entre ambas urn parentesco, mastambem por razoes mais profundas.A musica expoe ao individuo seu enrai-zamento fisiologico, a mitologia faz 0mesmo com 0 seu enraizamento social.Uma nos pega pelas entranhas, a outra, digamos assim, "pelo grupo". E, parafazer isso, utilizam maquinas culturais extremamente sutis, os instrumentosmusicais e os esquemas miticos, No caso da musica, 0 desdobramento dosmeios na forma dos instrumentos e do canto reproduz, pela sua uniao, a danatureza e da cultura, pois sabe-se que 0canto se diferencia da lingua faladapelo fato de exigir a participacao de todo 0 corpo, mas rigorosamente disci-plinado pelas regras de urn estilo vocal. De modo que, aqui tambem, a rmi-sica afirma suas pretensoes do modo mais completo, sistematico e coerente.Mas, alem do fato de os mitos serem freqiientemente cantados, sua recitacaoe geralmente acompanhada de uma disciplina corporal: proibicao de bocejarou de ficar sentado etc.

    Ao longo deste livro (primeira parte, I,d) demonstraremos que existe urnisomorfismo entre a oposicao da natureza e da cultura e a da quantidade con-

    48 I Abertura

  • 8/2/2019 Levi-Strauss-Cru_e_Cozido

    34/37

    tfnua e da quantidade discreta. Para apoiar nossa tese, podemos, pois, utilizarcomo argumento 0 fato de que numerosas sociedades, passadas e presentes,concebem a relacao entre a lingua falada e 0 canto de acordo com 0modeloda relacao existente entre continuo e descontinuo. 0 que equivale a dizer que,no seio da cultura, 0 canto se distingue da lingua falada como a cultura sedistingue da natureza; cantado ou nao, 0discurso sagrado do mito se opoedo mesmo modo ao discurso profano. AMm disso, 0canto e os instrumentosmusicais sao frequentemente comparados a mascaras: equivalentes, no planoacustico, do que as mascaras sao no plano plastico (que, por essa razao, lhes saomoral e fisicamente associados, especialmente na America do SuI). Tambempor esse vies, a musica e a mitologia, ilustrada pelas mascaras, sao simboli-camente aproximadas.

    Todas essas comparacoes resultam da vizinhanca da rmisica e da mitolo-gia sobre urn mesmo eixo. Mas, como nesse eixo a musica se situa no opostoda linguagem articulada, segue-se que a rmisica, linguagem completa e irre-dutivel a outra, deve ser capaz, por conta propria, de cumprir as mesmas fun-coes, Vista de modo global, e em sua relacao com os outros sistemas de sig-nos, a rmisica se aproxima da mitologia. Mas, na medida em que a funcaomftica e, ela mesma, urn aspecto do discurso, deve ser possfvel descobrir nodiscurso musical uma funcao especial que apresente uma afinidade especialcom 0mito, e que vira, digamos, inscrever-se como expoente da afinidadegeral, ja constatada entre 0genero mftico e 0genero musical quando consi-derados como urn todo.

    Ve-se imediatamente que existe uma correspondencia entre a music a e alinguagem do ponto de vista da variedade de funcoes. Em ambos os casos,impoe-se uma primeira distincao, dependendo de se a funcao concerne prin-cipalmente ao emissor ou ao destinatario. 0 termo "funcao fatica",introduzidopor Malinowski, nao e rigorosamente aplicavel a musica, Contudo, e evidenteque quase toda a musica popular - canto coral, canto que acompanha a dancaetc. - e uma parte consideravel da musica de camara servem primeiramenteao prazer dos executantes (dito de outro modo, dos destinadores). Trata-se,de certo modo, de uma funcao fatica subjetivada. Quando amadores "formamurn quarteto", nao estao preocupados em saber se terao urn auditorio: e prova-vel que prefiram nao te-lo, Portanto, mesmo nesse caso, a funcao fatica vernacompanhada de uma funcao conativa, ja que a execucao em grupo suscitaurna harmonia gestual e expressiva, que e urn dos objetivos almejados. Essafuncao conativa torna-se mais importante do que a outra quando se consideraa rmisica militar e a rmisica para dancar, cujo principal objetivo e comandar agesticulacao de outrem. Em musica, ainda mais do que em lingufstica, funcao

    Abertura I 49

  • 8/2/2019 Levi-Strauss-Cru_e_Cozido

    35/37

    fatica e funcao conativa sao inseparaveis. Situam-se do mesmo lado numa opo-sicao cujo outro polo reservaremos para a funcao cognitiva. Esta predominana musica de teatro ou de concerto, que visa antes de mais nada - mas, aindaassim, nao exclusivamente - transmitir mensagens carregadas de informacaoa urn auditorio que cumpre a funcao de destinatario,

    A funcao cognitiva, por sua vez, se analisa em diversas formas, cada umacorrespondente a urn genero particular de mensagem. Essas formas sao aproxi-madamente as mesmas que 0 linguista distingue pelo nome de funcao meta-lingufstica, funcao referencial e funcao poetica (Jakob son 1963: cap. XI, 220).So podemos superar a aparente contradicao de nossas preferencias por com-positores muito diferentes se reconhecermos que ha varias especies de rmisica.Tudo se esclarece a partir do momento em que compreendemos que seriainutil tentar classified-los por ordem de preferencia (por exemplo, procu-rando saber se sao relativamente "maiores" ou "menores"); na verdade, elespertencem a categorias diferentes de acordo com a natureza da informacaode que sao portadores. Nesse sentido, poderfamos dividir os compositores,g ro sso modo, em tres grupos, entre os quais hitodo tipo de passagens e todasas combinacoes, Bach e Stravinski apareceriam como musicos "do codigo",Beethoven, e tambem Ravel, como musicos "da mensagem", Wagner e Debussycomo rmisicos "do mito" , Os primeiros explicitam e comentam em suas men-sagens as regras de urn discurso musical; os segundos contam; e os ultimoscodificam suas mensagens a partir de elementos que ja pertencem a ordemdo relato. E claro que nenhuma das pe~as desses compositores cabe total-mente em qualquer uma dessas formulas, que nao pretendem definir a obracomo urn todo, mas sublinhar a importancia relativa dada a cada funcao, Foiigualmente com a intencao de simplificar que nos limitamos a citar trespares, cada urn deles com urn antigo e urn moderno.? Porem, mesmo na rmi-sica dodecafonica, a distincao e esclarecedora, ja que permite situar, em suasrelacoes respectivas, Webern do lado do codigo, Schonberg do lado da men-sagem e Berg do lado do mito.

    7 . Usando - convem reconhecer - os seis primeiros nomes que nos vieram it mente.Mas certamente nao por puro acaso, ja que, se os organizarmos cronologicamente, asfuncoes respectivas que evocam se organizam como urn circulo fechado, como se emdois seculos a rmisica de inspiracao tonal tivesse exaurido sua capacidade interna derenovacao, Terfamos, assim, para os "antigos" uma sequencia c6digo ~ mensagem ~mito, para os "modernos" a sequencia inversa, mito ~ mensagem ~ c6digo; mas con-tanto que seaceite atribuir urn valor significativo aos breves espayos de tempo que sepa-ram as datas de nascimento de Debussy (1862), Ravel (1875) e Stravinski (1882).

    50 IAbertura

  • 8/2/2019 Levi-Strauss-Cru_e_Cozido

    36/37

    A funcao emotiva tambem existe na musica, pois, para isola -la como fatorconstituinte, 0jargao profissional dispoe de uma palavra emprestada do ale-mao: "Schmalz".Fica claro, entretanto, que, pelas raz6es ja indicadas, torna-se ainda mais dificil isolar seu papel do que no caso da linguagem articulada,ja que vimos que de direito, senao sempre de fato, funcao emotiva e lingua-gem musical sao coextensivas.

    Passaremos mais rapidamente pelos comentarios exigidos, neste livro, pelorecurso intermitente a simbolos de ar logico-matematico, que nao se develevar muito a serio, Entre as nossas formulas e as equacoes dos matematicosha uma semelhanca apenas superficial, pois as primeiras nao sao aplicacoesde algoritmos que, empregados com rigor, permitem encadear ou condensardemonstracoes, Trata-se aqui de algo diverso. Certas analises de mitos sao taolongas e minuciosas que seria dificil conduzi-las a termo sem dispor de umaescrita abreviada, uma especie de estenografia que ajude a definir sumaria-mente urn itinerario cujas linhas gerais sao reveladas pela intuicao. Para evitaro risco de se perder nesse itinerario, e preciso, antes de percorre-lo, reco-nhece-lo por partes. As formulas que escrevemos com simbolos emprestadosaos matematicos, em primeiro lugar porque ja existem em tipografia, nao pre-tendem, portanto, provar nada. Aspiram, antes, antecipar uma exposicao dis-cursiva cujos contornos delineiam, ou ainda resumir essa exposicao, permi-tindo apreender com uma olhadela os conjuntos complexos de relacoes e detransforrnacoes cuja descricao detalhada possivelmente tera submetido apaciencia do leitor a uma dura prova. Longe de substituir essa descricao, seupapel e apenas ilustrar de uma forma simplificada, que nos pareceu capaz deajudar, mas que alguns poderao considerar superflua e ate acusar de confun-dir a exposicao principal, apenas acrescentando uma imprecisao a outra.

    Me1hor do que ninguem, temos consciencia das acepcoes bastante vagasque damos a termos como simetria, inversao, equivalencia, homologia, iso-morfismo ... Utilizamos esses termos para designar grandes feixes de relacoesque tern - percebemos isso de modo confuso - algo em comum. Mas, se aanalise estrutural dos mitos tern algum futuro, 0modo como ela escolheu eutilizou seus conceitos em seus primordios devera ser objeto de uma severacritica. Sera preciso que cada termo seja novamente definido e restrito a urndeterminado uso. E, sobretudo, as categorias grosseiras que utilizamos comoinstrumentos improvisados deverao ser analisadas em categorias mais finas emetodicamente aplicadas. Somente entao os mitos serao passfveis de uma

    Abertura I 51

  • 8/2/2019 Levi-Strauss-Cru_e_Cozido

    37/37

    verdadeira analise Iogico-matematica, e esperamos ser perdoados, tendo emvista essa profissao de humildade, por nos termos ingenuamente divertidoem esbocar-lhes os contornos. Afinal, 0 estudo cientffico dos mitos tern deapresentar dificuldades formidaveis, ou nao seteria hesitado por tanto tempoem inicia - 1 0 . Por mais pesado que seja este livro, nao tera levantado senao urnpequeno cantinho do veu,

    Nossa abertura se concluira com alguns acordes melanc6licos, ap6s osagradecimentos ja rituais que devemos fazer a colaboradores de longa data:Jacques Bertin, em cujo laborat6rio foram desenhados os mapas e diagra-mas, Jean Pouillon, por suas anotacoes, pois uma parte deste livro foi objetode urn curso; Nicole Belmont, que me ajudou com a documentacao e os indi-ces; Edna H. Lemay, que se encarregou da datilografia; minha mulher e IsacChiva, que releram as provas. Agora e tempo de conduir como ja anunciei.Quando considero este texto indigesto e confuso, come


Top Related