LAURA MARIA SILVA THOMÉ
AS HERESIAS E SEUS REFLEXOS SOCIAIS:
PEDRO VALDO E OS VALDENSES (1160-1250).
CURITIBA
2000
Monografia final do Curso de História, Setor
de Ciências Humanas, Letras e Artes da
Universidade Federal do Paraná.
Orientador: Profº. Dr. Renan Friguetto.
LAURA MARIA SILVA THOMÉ
AS HERESIAS E SEUS REFLEXOS SOCIAIS:
PEDRO VALDO E OS VALDENSES (1160-1250).
CURITIBA
2000
Monografia final do Curso de História, Setor
de Ciências Humanas, Letras e Artes da
Universidade Federal do Paraná.
Orientador: Profº. Dr. Renan Friguetto.
SUMÁRIO
RESUMO.........................................................................................................................i
1 INTRODUÇÃO............................................................................................................1
2 A IGREJA E O IMPÉRIO..........................................................................................7
3 PEDRO VALDO E OS VALDENSES......................................................................13
3.1 PEDRO VALDO...................................................................................................13
3.2 OS VALDENSES..................................................................................................15
3.3 A REAÇÃO DA IGREJA.....................................................................................18
3.4 AS ORDENS MENDICANTES...........................................................................23
4 CONCLUSÕES...........................................................................................................25
DOCUMENTOS CONSULTADOS.............................................................................30
i
RESUMO
Nos séculos XII e XIII a Europa passa por inúmeras mudanças como fortalecimento das monarquias, uma reforma religiosa, uma disputa entre Igreja e Império pela supremacia de um sobre o outro, mas também por uma expansão econômica que envolve a incrementação das atividades comerciais e o conseqüente renascimento urbano. A conquista de novas técnicas agrícola e de novas ferramentas produz mais alimentos e ligam-se a uma explosão demográfica que segundo Le Goff aumentou em um terço a população da cristandade. A soma dessas mudanças favorece o aparecimento de uma nova classe, a burguesia, e também das tensões própria de tal efervescência. A acumulação monetária, o enriquecimento de alguns em detrimento de muitos, sendo que entre os ricos se colocava a Igreja, provocam descontentamentos e favorecem o aparecimento de contestações na forma de heresias, que se arvoram em juízes do clero muito mais que da doutrina. É aí que encontramos os valdenses que segundo Emílio Mitre “são a mais acabada aplicação do princípio da pobreza voluntária.” Comparamos atas de Concílios (III e IV Concílios de Latrão, em 1079 e 1215 e o Sínodo de Verona de 1184) com a historiografia sobre tema, buscando mostrar que o grupo liderado por Valdo refletia mais a efervescência da sociedade em que se inseria do que uma heterodoxia, as diferentes formas de ação da Igreja ao combatê-los e a solução que encontra para absorver os princípios por eles defendidos, como a pobreza voluntária e a vita apostolica.
1
1 INTRODUÇÃO
A Europa, no período compreendido pelos séculos XII e XIII, passou por
inúmeras mudanças. Expansão econômica, a restauração política com o fortalecimento
das monarquias, uma reforma religiosa, um “renascimento cultural” que se mesclam uns
aos outros, cujas raízes devemos procurar ao redor do Ano Mil e, que estendem seus
ramos até os séculos XV e XVI.
Em relação à expansão da economia, vemos o recrudescimento da atividade
comercial e o conseqüente renascimento urbano devidos, segundo Marc Bloch, aos
intensos movimentos populacionais que colonizaram as planícies ibéricas e além do
Elba e que, no coração dos países antigos, conquistaram pelo arado toda a terra que
puderam, promovendo o surgimento de novas cidades por toda parte1. O
desenvolvimento da agricultura com a adoção de novas técnicas como o emprego de
ferramentas de ferro e do arado de tração animal, que possibilitaram a expansão das
áreas de plantio bem como a maior produtividade proporciona também uma
diversificação dos produtos e dos tipos de cultivo com o conseqüente enriquecimento do
regime alimentício do homem medieval.
Esses progressos ligam-se também a uma explosão demográfica∗2 uma vez que,
segundo Le Goff, “a cristandade aumentou em aproximadamente um terço o número de
bocas a alimentar, corpos a vestir, famílias a alojar e almas que é preciso salvar. É
necessário, portanto aumentar a produção agrícola, a fabricação de tecidos para roupas,
a construção de casas e igrejas”3.
Para alguns autores, entre os quais M. Bloch, G. Duby e Le Goff∗∗, este
desenvolvimento agrícola é o que gera as grandes mudanças do período, sendo a terra a
1 BLOCH, M. apud LE GOFF, J. La baja Edad Media. Mexico : Siglo Veintiuno, 1985. p. 6 ∗ Bennett avalia essa explosão demográfica situando uma população européia em torno de 46
milhões de almas em 1050 e atingindo 61 milhões em 1200. 2 BENNETT, M. K. apud LE GOFF, J. Ibid., p. 9.
3 LE GOFF, J. Ibid. p. 31.
∗∗ Le Goff nos diz que “o mundo medieval, depois de 1050 é o mesmo que antes, segue sendo um mundo da terra, fonte de toda riqueza e de todo o poder. O progresso agrário tanto em quantidade (aumento de terras cultivadas) quanto em qualidade (aperfeiçoamento das técnicas e maior rendimento) é a fonte e a base do desenvolvimento geral”. E, ainda que: “Georges Duby pensa que a conquista rural e a extensão do cultivo são essenciais a segunda metade do séc. XII: ‘a atividade dos lavradores, que durante
2
base de tudo, na Idade Média4. No entanto, uma outra corrente de estudiosos, entre os
quais Henri Pirenne, pensam que o grande motor do desenvolvimento é a renovação do
comércio.
Essa renovação que se inicia em meados do século XI vai tomar grandes
proporções nas décadas finais do século XII, unindo os pontos extremos da cristandade
e atingindo os centros muçulmanos e bizantinos através do Vale do Ródano e do
Mediterrâneo. Usam-se para esse comércio, além das vias fluviais e marítimas já
consagradas, as rotas terrestres, uma vez que o surgimento das grandes carretas o
estimula, lado a lado com o transporte feito no lombo de mulas.
O fortalecimento do comércio de longo curso faz com que se desenvolvam
centros urbanos próximos a zonas fluviais ou marítimas e que se inicie uma
“especialização agrícola” dessas regiões, visando a exportação desses produtos. Além
disso, proporciona também o surgimento de mercados itinerantes, as feiras, que se
realizam em diversas localidades, uma ou duas vezes ao ano, como as de Flandres e da
Champagne, onde se comercializam têxteis e especiarias e realizam uma série de
operações de câmbio e de crédito.5
A sociedade não pode manter-se estática ante tantas mudanças — aumento da
população, crescimento das cidades, a construção das catedrais, pessoas a exercerem
maior número de ofícios especializados como advogados, artesãos, e, especialmente
mercadores — e ora as aceita, ora reflete ou rejeita, mas movimenta-se ante elas,
agitando-se, fermentando-as.
Outro aspecto das mudanças ocorridas nesse período é o crescimento urbano,
que iniciado na primeira metade do séc. XI, acentua-se após 1050. Crescem as cidades
já existentes e surgem novas, onde segundo Le Goff, manifesta-se um novo espírito
urbanístico, planejamento, um desejo de racionalização que permite adivinhar as
mudanças mentais. Nas antigas, o crescimento é atestado através de novas muralhas que
protegem os bairros recentes como em Viena, Paris e Basiléia.
dois séc. havia sido tímida, descontinua e muito dispersa, se faz mais intensa e mais coordenada nas proximidades de 1150’”. Diz também que Marc Bloch coloca “o intenso movimento populacional entre 1050 e 1250 aliado a conquista de bosques e baldios pelo arado, como as bases desta revolução econômica.”
4 Ibid. p. 06 - 10 e 38. 5 Ibid., p. 39-42
3
Nesses novos espaços urbanos, estendidos, inflados, aparecem os monumentos
que caracterizam essas novas cidades: igrejas, palácios, torres, construções muito
próximas umas das outras, apertadas. A descrição de Le Goff nos diz que possuíam
muitas riquezas naturais e se pareciam umas com as outras quanto ao tamanho e a
disposição e que, suas muralhas são representações da conjunção de dois mundos, o
interior, urbano, e o exterior, camponês6.
É indiscutível que tal conjuntura proporciona o aumento da acumulação e da
circulação monetárias, que irá beneficiar grandemente a Igreja e resultar em grande
fortalecimento de ordens religiosas e de determinados mosteiros “que contrastam
violentamente com o ideal de pobreza que deveria ser a base econômica e espiritual da
vida comunitária”7.
Esse é um ponto de tensão com aqueles que defendem a volta à forma primitiva
da Igreja e a renuncia as riquezas temporais, primeiramente entre os religiosos, mas que
se estende aos leigos. Some-se a essas tensões as que perpassam as mudanças no
pensamento cristão, que se pode exemplificar com S. Bernardo e Pedro Abelardo, e, o
resgate de uma filosofia com bases em Platão, Sêneca, Boécio, que fundam uma cultura
urbana, incrementada pelas concentrações ao redor de mestres independentes, de
“estudantes livres”, desvinculados das escolas episcopais, e que se originam na
fermentação social deste século onde dominam os pobres8.
O período que compreende o último terço do séc. XII e as primeiras décadas do
séc. XIII é também para a igreja de crises e grandes mudanças. O surgimento de
comunidades e grupos cujos membros partilhavam objetivos e valores, diferenciados
uns dos outros pela maneira como se viam a si mesmos, originou uma renovação
religiosa, uma fermentação espiritual que alterou a concepção de vida cristã e de sua
finalidade no mundo de tal modo que para muitos estudiosos é tão importante e
profunda e de tanta duração quanto à reforma do séc. XIV.
São pontos de vista típicos desse período de reforma, a retomada do ideal de vita
apotolica, viver como, no passado, Cristo e seus apóstolos para alcançar, no futuro, a
existência reformada, o reino de Deus.
6Ibid., p.44-45. 7 BOLTON, B. A reforma na idade média. Lisboa : Edições 70, 1986. p. 35. 8 LE GOFF, J. op. cit.,. p. 150.
4
Tais idéias se espalham entre os leigos, homens e mulheres, sendo que estas
começam a desempenhar papeis cada vez mais importantes nessa divulgação e, que até
a bem pouco eram impensáveis. Contudo, ecoam também nas fileiras da Igreja, que já
vem introduzindo desde o séc. XI várias medidas para deter a simonia, a investidura
laica dos bispos e para elevar o papado a um novo patamar, tornando a autoridade papal
real e visível.
Esse movimento iniciara-se fora de Roma, em ordens monásticas da Lorena e da
Borgonha, mas também na França, Alemanha e Inglaterra, visando primeiramente uma
reforma moral, na constituição e nas leis da Igreja, através de exemplos e preceitos.
Porém, ao atingir Roma modificou-se aos poucos, pois para aqueles que se juntaram aos
primeiros reformadores, interessava mais o reforço da autoridade papal que a reforma
moral da Igreja. Isso se torna bastante claro após a eleição de Gregório VII (1073), na
longa disputa que trava com Henrique IV, Imperador germânico, onde ambos buscam
uma posição de domínio em uma sucessão de excomunhões, deposições do trono (de
Pedro e do Império), eleição de antipapas e anti-rei , que acaba com Henrique vitorioso
em toda parte e Gregório morrendo como virtual prisioneiro de seus aliados (1085).
Embora tenha Gregório VII morrido sem atingir um só de seus objetivos, abrira-
se o caminho para a institucionalização da monarquia pontifícia, da teocracia absoluta
que se completaria ao final do século em pontificados como o de Alexandre III (1159-
1181).
Nos pontificados que se seguiram ao de Gregório VII, foi fortalecida a cúria
papal e o direito canônico, possibilitando aos papas o exercício do poder legislativo9,
lado a lado com o serviço judiciário. Foi exercido por papas como Alexandre III (1159-
1181), Gregório VIII (1187) e Inocêncio III (1198-1216), todos juristas especializados
da mesma forma que a maioria dos cardeais.
É também no decorrer do pontificado de Alexandre III que se renova à luta entre
o papado e o Império, agora tendo no trono Frederico Barba Roxa. A luta agora tinha,
segundo o historiador da Igreja Geoffrey Barraclough, um caráter diferente daquela
travada por Henrique IV e Gregório VII: “era no fundo, uma luta pelo poder territorial
na Itália, luta que não envolvia quaisquer princípios fundamentais, a não ser que se
9 BARRACLOUGH, G. Os papas na Idade Média. Lisboa : Editorial Verbo, 1972. p 115-136.
5
considerasse como princípio fundamental o de que o papado, para salvaguardar a
autonomia, devia governar um território independente”10.
Essa disputa com Frederico Barba Roxa se estende por todo o pontificado de
Alexandre III mostrando, na prática, os limites da monarquia pontifícia, teoricamente
universal, impondo ao papado intoleráveis esforços financeiros e alianças estratégicas
com a França e a Inglaterra, bem como a concessão de benefícios que juntamente com
os males e abusos que a contaminam fazem baixar a reputação da cúria, tornando
comuns ao final do século XII as sátiras sobre sua corrupção e avareza.
É nesse caldo de idéias que se formam os movimentos dissidentes, chamados
pela Igreja de heresias. O termo heresia para os cristãos primitivos não tem conotação
negativa, derivando do grego e significando uma filosofia ou opção de doutrina eleita
livremente. Sua primeira utilização é atribuída por alguns a S. Paulo, em sua carta aos
Coríntios, quando diz: “até importa que haja entre vós heresias, para que os que são
sinceros se manifestem entre vós”11.
Por volta do século IV o termo toma conotações negativas e a acusação de
herege adquire a força de uma arma ao ser lançada contra minorias dissidentes, pejado
de paixões e juízos de valor que desempenham importante papel na repressão a essas
minorias, que constituíam obstáculos ao processo de uniformidade que a Igreja
pretendia impor ao Ocidente.
É, portanto nesse período de crises na Igreja, de papas e antipapas, de lutas entre
o Papado e o Império Germânico, quando procura alianças em um reino da França ainda
em busca de consolidação do poder régio na figura “quase” sagrada do rei, enquanto
anseia por maior independência não cortando os laços que o mantém atado a Igreja,
mas, pelo contrário sendo o braço laico e forte a apóia-la, sustentando a si mesmo e ao
papa, que vemos o surgimento de manifestações sociais que fogem ao controle
espiritual. Assim, premida pelas tensões da época, a Igreja não pode permitir que tais
manifestações sociais fujam também ao seu controle temporal e, as heresias, que na
maioria das vezes eram o único canal de protesto contra o autoritarismo, manifesto
também contra os judeus12, passam a sofrer juntamente com estes, tanto de parte da
10 Ibidem. p 125. 11 BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada. Trad. J. F. de Almeida. Rio de Janeiro : Imprensa
Bíblica Brasileira, 1986. 1Cor., Cap. 11, vers. 19. 12 MITRE, E.; GRANDA, C. Las grandes herejias de la Europa cristiana: (380-1520).
Madrid : Ediciones Istmo, 1983. p. 17-18.
6
Igreja quanto da cristandade, uma separação que se expressa nas decisões de sínodos e
concílios eclesiásticos.
Dentre esses movimentos do final do século XII estudaremos o dos valdenses,
partindo de seu fundador, Pedro Valdo, um comerciante de Lyon.
7
2 A IGREJA E O IMPÉRIO
As mudanças ocorridas na Europa da Idade Média iriam fundamentar a cultura e
a técnica que viriam a caracterizar a Idade Moderna, principalmente as ocorridas nos
séculos XII e XIII.
O intenso renascimento da economia de base urbana e capitalista, como
demonstram os estudos de pesquisadores como Marc Block e Henri Pirenne, é a raiz a
partir da qual se desenvolverá o capitalismo moderno. É no século XII que
encontraremos o surgimento da letra de câmbio que ativa as operações de crédito,
operadas por banqueiros como Bardi e Peruzzi e que dinamiza o comércio e a industria,
fazendo surgir uma nova classe, os burgueses, que acabam por tornar-se indispensáveis
aos monarcas e ao papado, concedendo-lhes empréstimos necessários a sua adaptação a
essa nova estrutura econômica que se formava.
A Igreja não é imune a todas essas mudanças, ela mesma cenário de grandes
reformas desde o início do que podemos chamar de período medieval do papado.
Período esse que se inicia no pontificado de Gregório I (590-604), que subtrai o papado
da dependência em relação ao governo imperial, aumentando o patrimônio de São Pedro
e exercendo uma atividade diplomática que lhe granjeiam a autoridade moral e o
respeito da população romana, mas não trazem afinal a independência.
Uma série de crises se sucede até o século VII, quando a política iconoclasta do
Imperador Leão III (726), proibindo o culto de imagens, provoca a ruptura entre o
Império e o papa Gregório II, ocasionando o mais grave cisma entre Ocidente e Oriente
até então. As propriedades papais na Sicília e na Itália do Sul são confiscadas pelo
Imperador, que reorganiza em seguida a Igreja Oriental.
Quando em 754 o sínodo reunido em Constantinopla pronuncia um grande ataque
contra os adoradores de imagens, o papa Estevão II pede o auxílio do Imperador, porém
quando percebe que nada receberá, dirige-se ao rei dos Francos, Pepino, o Breve,
pedindo-lhe proteção e iniciando as relações entre o papado e o Reino Franco que iriam
influenciar os próximos cinco séculos, dando ao Papa autoridade para desempenhar um
papel significativo na historia da Igreja.1
1 BARRACLOUGH. op. cit. p.36-42.
8
Com a morte de Pepino e a ascensão ao trono de seu filho Carlos Magno, as
questões entre o reino e o papado se intensificam, pois o monarca tendo expandido o
reino e estabelecido um Império, pensava que a Igreja devia estar submissa ao poder
temporal e, que ele, Carlos fora designado por Cristo como dirigente da cristandade que
dele dependia para toda salvação. Ao papa estava reservado o papel de sumo-sacerdote,
mas não o de chefe de Estado ou da Igreja.2
Contudo a influência e o poder de Roma aumentam com a cristianização dos
povos saxões e eslavos, e quando a anarquia e a guerra civil fazem desaparecer a
concepção de Igreja submetida ao Estado, após a desintegração do Império Carolíngio,
o poder intrínseco do papado se torna evidente.
No século IX as constantes intervenções do papado e as repetidas sagrações e
coroações dos imperadores, acaba por criar um precedente, o de que apenas o papa
tenha o direito de sagrar os imperadores. Assim os papas se libertam progressivamente
da subordinação ao Estado em que se encontravam ao tempo de Carlos Magno.
No entanto os escândalos e as mortes violentas dos papas que se sucederam,
todos oriundos de famílias nobres, eleitos para promover interesses políticos da
aristocracia romana ameaçam fazer com que perca seu prestígio moral e sua autoridade,
submetendo-o agora as facções locais de Roma.
Com a intervenção de Oto o Grande, da Alemanha, que procura restaurar a
estabilidade do papado, mas não consegue uma melhoria duradoura, é modificada a
eleição papal, sendo submetida ao arbítrio do imperador. Ainda assim a crise na Igreja
não se resolve e novamente o papado parece preste a cair nas mãos da aristocracia
romana.
Uma reação a esse estado de coisas se inicia nos mosteiros, que procuravam
modificar os interesses do clero, cada vez mais seduzido pelo poder e riquezas
temporais. Alguns desses mosteiros renovadores foram fundados por nobres e
abrigavam religiosos que desejavam ser um exemplo e uma censura viva para o clero
corrompido.
A mais famosa dessas casas é Cluny, fundada pelo duque Guilherme da
Aquitânia, no ducado de Borgonha, mas também exerceram grande influência Brogne e
2 Ibid. p. 52.
9
Gorze. Propunham uma reforma que reconduzisse a Igreja ao idealismo dos primeiros
tempos, a ecclesia primitiva dos apóstolos. 3
A pregação reformista cluniacence, contudo não consistia em conflito com a
monarquia, já que o rei era maior aliado dos reformadores que intentavam livrar a Igreja
da aristocracia laica, e estes aceitavam a ascendência do rei sobre a Igreja, consagrada
pelo costume e pela coleção de direitos canônicos reconhecida até então.
Cluny torna-se uma verdadeira potência, seus abades são conselheiros e amigos
de reis e imperadores e influenciam papas e cardeais. Contudo, para o historiador da
Igreja, Geoffrey Barraclough, o espírito reformista concebido em Lorena é que começou
a transformar o papado com a eleição de Leão IX. Diz o autor que esse nobre da
Alsácia, parente do imperador Henrique III, estrangeiro em Roma da mesma forma que
os homens que o cercavam, ardentes reformadores, puderam dar forma às idéias que
traziam sobre as novas funções e dignidade do papa e, seu papel como força moral e
chefe da cristandade. Afastou-se da política romana, esteve na França e na Alemanha,
onde promoveu sínodos que publicaram decisões e decretos que combatiam a simonia, o
casamento dos padres, a violência e a decadência dos costumes.4
O pontificado de Leão IX, embora de apenas cinco anos, reforça a autoridade
papal e coloca a Igreja no caminho da pretensão à autoridade universal que viria a
colocá-la em choque com a ala dos reformadores, cuja pretensão era uma reforma moral
que a levasse de volta aos moldes da Igreja primitiva, cada vez mais distante. Cria
também divergências com o imperador, a medida em que o papado procura sua
autonomia, calcado nas mudanças do direito canônico apoiado agora mais nas cartas e
decretais dos papas do que nos escritos dos Padres da Igreja e nos decretos sinoidais,
como até então.
Essas mudanças não se fazem de forma tranqüila. Multiplicam-se as crises na
Igreja, com uma sucessão de pontificados curtos que recebem diferentes influências e
que acabam por indispor-se com esta ou aquela facção da aristocracia ou do Império. Os
cismas são freqüentes, a eleição de antipapas também e, a eleição de Gregório VII no
dia seguinte ao da morte de Alexandre II, para impedir uma intervenção do imperador
do Sacro Império na escolha, marca um novo período no papado. Desde o início tenta
3 BOLTON, B. op. cit. p. 21. 4 BARRACLOUGH, G. op. cit. p. 86.
10
marcar sua autonomia em relação a Henrique IV, limitando-se a informá-lo da sua
eleição da mesma maneira que aos outros reis, príncipes e bispos.
Dessa maneira Gregório coloca-se francamente contra Henrique com quem tem
uma longa disputa que se estende por todo seu pontificado, marcada por excomunhões,
antipapas e anti-reis, alianças do papado com os normandos e finalmente o exílio de
Gregório em Salermo, onde morre, praticamente como prisioneiro de seus aliados, sem
ter conseguido elevar o papado acima dos reis, mas tendo-o colocado definitivamente
no caminho do domínio universal e da teocracia absoluta.5
A tentativa feita por Gregório VII de subordinar o Estado à Igreja havia suscitado
grandes oposições que se estenderam às gerações seguintes. São Bernardo, abade de
Claraval e o movimento cistirciense são significativos representantes dessa oposição.
Quando Urbano II ascende ao trono de Pedro, percebe claramente a mudança
havida no mundo e, que o papado exercia agora uma influência territorial muito maior.
A Itália do Sul, fora conquistada pelos normandos e devia obediência ao papa; a
Espanha reconquistada também, bem como a Inglaterra de Guilherme o Conquistador,
formando na Europa meridional e ocidental uma unidade religiosa e cultural ligada ao
papado.
Assim fortalecido pensa o Papa poder enfrentar o rei germânico, mas é expulso
da Itália e procura abrigo entre os Capetos, na França. Aí, tendo a dinastia capetíngia
como braço forte, firma a posição do papado.
A morte de Henrique IV (1106), a resolução da questão das investiduras na
França (1107), e principalmente a Concordata de Vosnia (1122) põe fim à luta entre
Igreja e Estado. Os conflitos existentes a partir daí são resultantes de atritos no
estabelecimento das fronteiras entre as duas esferas de poder, com o papado passando a
concentrar-se em sua própria esfera, alterando o lugar que tem na Igreja, de maneira que
no último quartel do século XII, por ocasião do III Concílio de Latrão, as bases da
monarquia pontifícia estão assentadas.
Todas essas marchas e contra marchas no seio dos poderes estabelecidos não se
fazem sem que a sociedade se manifeste. As mudanças tanto temporais como espirituais
refletiam-se nos indivíduos, constituindo um fermento na vida das pessoas, exigindo
novas soluções, novas respostas para as questões surgidas com o aumento da população,
5 Ibid. p. 103.
11
o crescimento das cidades, o aumento do número de ofícios, o desenvolvimento do
comércio e o surgimento de uma nova classe, a burguesia.
As crises na Igreja e as reformas iniciadas pelos monges também atingem os
cristãos como indivíduos, levando-os a procurarem o retorno a vita apostólica em torno
da pobreza e da vida comunitária que se irradiavam dos mosteiros, mas que se estendem
para o mundo, uma vez que nem todos os cristãos podiam viver em mosteiros, mas
todos desejavam a salvação. É necessário, pois pregar ao mundo, levar a todos o
Evangelho de Cristo, cumprindo a ordem do Mestre.∗
A pregação passa, portanto, a ter enorme importância fazendo com que na
segunda metade do século XII, a Igreja tomando consciência disso, assuma oficialmente
uma posição em que reserva o direito de pregar àqueles que, por ela fossem qualificados
para isso, ou seja, o clero, baseando-se na Escritura que diz: “quem pregará senão o que
for enviado?”6
O número de pregadores não oficiais crescera muito. Percorriam os caminhos
pregando na língua vernácula, dando testemunho pessoal de sua fé e de como devia ser
vivida, colocando muitas vezes em cheque a autoridade da Igreja, dos padres e dos
monges que não viviam o que pregavam — embalados no luxo e no poder de suas
instituições embora pobres pessoalmente — pois enquanto falavam ao rebanho da
necessidade de penitência, vendiam indulgências e recolhiam taxas e dízimos.
O conhecimento das Escrituras levava esses grupos de pregadores a contestar a
validade de sacramentos ministrados por padres indignos e o mérito da dignidade
eclesiástica, possibilitando uma redefinição da vida cristã, uma nova consciência do que
é ser cristão, do seu modo de vida e de suas crenças, fazendo com que o homem comum
ganhasse importância e ajudasse a espalhar a palavra de Deus, como no tempo dos
apóstolos.
O papel desses leigos na fermentação do século XII foi de grande significação,
proclamando o valor literal e absoluto do Evangelho, mesmo que isso questionasse as
instituições existentes. Os grupos constituíam-se de homens e mulheres de todas as
classes: ricos e nobres, mercadores e comerciantes, além das camadas mais baixas da
sociedade, sendo que inúmeras vezes os ricos procuravam renunciar a sua fortuna no
* Brenda Bolton ao comentar a necessidade da pregação experimentada então se refere a ordem
dada por Cristo aos setenta discípulos quando os envia adiante de si, contida no Evangelho de Lucas, capítulo 10.
6 BOLTON, B. op. cit. p. 23.
12
desejo da pobreza evangélica. Os estudantes das escolas urbanas, que se encontravam
em plena expansão, também se envolveram nesse processo, juntando-se a alguns desses
grupos, que apesar das regras próprias de cada um, passam a ser designados pelo nome
genérico de Pobres de Cristo.
A pregação segundo o entendimento de cada grupo, a interpretação que davam as
Escrituras, podiam diferir grandemente da ortodoxia e, a Igreja, para afastar o perigo da
disseminação de heresias, procura estabelecer a ligação da autoridade para confessar e
ministrar penitência com a pregação. Isso faz com que vários desses grupos sejam
considerados heréticos, o que na interpretação da Igreja significa mais a não submissão
a sua autoridade do que a profissão de outras doutrinas.
É nessa movimentação que aparece em Lyon, a figura de Pedro Valdo, rico
comerciante que convertido ao ideal da pobreza voluntária passa a pregá-lo, trazendo
após si muitos seguidores incomodando, portanto, a Igreja.
13
3 PEDRO VALDO E OS VALDENSES
3.1 PEDRO VALDO
A cidade de Lyon, situada no vale sudeste da França, entre os rios Ródano e
Saône, era desde os tempos dos romanos, que a conheciam como Lugdunum, importante
passagem entre o norte e o sul, assumindo um papel comercial estratégico.
Na Idade Média era famosa por suas feiras que atraiam mercadores e visitantes
de todos os lugares, que traziam consigo não só as novidades da técnica (ferramentas,
tecidos, alimentos), mas também as notícias, as idéias que perpassavam a cristandade.
É em uma dessas feiras, em um domingo, que segundo o Cronista Anônimo de
Laon∗, o abastado comerciante Pedro Valdo, movido pela curiosidade, se acerca de um
aglomerado de pessoas a ouvir um dos artistas ambulantes que costumavam apresentar-
se nesses lugares. O artista narrava a vida de Santo Aleixo, comovendo a multidão e
também a Valdo, que na manhã seguinte procura uma escola de teologia, interessado em
salvar sua alma. Pergunta então a um mestre qual o melhor caminho para chegar a Deus,
recebendo como resposta às palavras de Cristo: “se queres ser perfeito, vai, vende tudo
o que tens, e dá-o aos pobres, e terás um tesouro no céu, e vem, e segue-me”.∗∗1
Brenda Bolton ao analisar a conversão de Pedro Valdo (1173), nos diz que “os
valores contidos na vida de Aleixo remontavam a tradição da imitatio Christi e, os
descontentes com os valores sociais correntes encontravam uma mensagem vital na
narrativa de sua existência. Ao mudar dramaticamente seu modo de vida, um homem
poderia encontrar uma resposta pessoal aos tormentos da época, através da renovação
espiritual”.2
∗ Encontramos a referência a Chronicon universale anonymi Laudunensis contida na Monumenta
Germaniae Histórica, em que se registra a conversão de Valdo em quase toda a historiografia que trata do assunto. Utilizamos a versão espanhola incluída na antologia de textos publicada por Mitre e Granda na obra Las grandes herejias de la Europa Cristiana, p.356.
∗∗ Palavras ditas por Cristo ao jovem rico que lhe faz a mesma pergunta, na parábola do mancebo
de qualidade, registrada em Mateus. 1 BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada. Trad. J. F. de Almeida. Rio de Janeiro : Imprensa Bíblica
Brasileira, 1986. Mateus., Cap. 19, vers. 21. 2 BOLTON, B. op. cit. p. 64.
14
Impressionado pela vida do santo e pelas palavras do mestre em teologia, a
primeira reação de Valdo teria sido dispor-se dos bens, vendendo o que adquirira com
usura e passar a viver de esmolas.
O cronista anônimo continua a narrativa dizendo que voltando a casa, Valdo
conversa com sua mulher e pede que escolha da sua fortuna, os bens móveis ou as
propriedades. Ela, surpresa, escolhe as propriedades, então ele vende os bens móveis,
devolve aqueles que adquiriu indevidamente, dá uma grande parte para as duas filhas a
título de dote e as coloca em um convento da ordem de Fontevrault. Dá também uma
grande parte aos pobres.3
Valdo procura um escriba e um tradutor para que façam uma versão dos
Evangelhos para a língua vulgar (provençal), bem como de alguns livros dos primeiros
Padres da Igreja. O estudo dessas obras lhe desperta o desejo da pobreza voluntária,
levando-o a adotar um modo de vida oposto ao que tivera até ali. Não lhe bastou viver,
precisava pregar, e essa pregação somada ao exemplo lhe suscita vários seguidores.
Passa então a viver como pregador itinerante. Em poucos anos já reunia uma pequena
comunidade e quando, por volta de 1176, uma grande fome assolou a região serviu de
socorro aos necessitados.
É novamente o cronista de Laon quem nos narra esses acontecimentos: “durante
esse tempo, quando uma grande fome assola a Gália e a Germânia, Valdo repartiu pão,
sopa e comida a todos os que se aproximavam dele, três dias por semana. No dia em que
se comemorava a Ascensão da Virgem Maria passou pelas ruas distribuindo moedas
entre os pobres e dizendo: ‘não posso servir a dois senhores, a Deus e a Mamon’. Aos
que não criam e o tomavam por louco explicava que não estava demente, apenas
vencera um dos inimigos que o escravizavam, uma vez que dava mais importância as
riquezas que a Deus, servindo mais as criaturas que ao Criador”.4
Até aqui podemos perceber que Valdo não se afastava da ortodoxia e a Igreja
não colocava obstáculos àqueles que desejavam viver a vita apostólica. Continuando
sua vida de pregação e pobreza reúne a sua volta uma pequena comunidade, que se
veste humildemente, com simples buréis e sandálias rústicas, conhecidas como sabot,
que deram origem a um dos nomes pelo qual passaram a ser conhecidos: insabattados.
Seguindo o exemplo do mestre, doam o que possuem e passam a viver de esmolas.
3 MITRE, E; GRANDA, C. op cit. p. 356. 4 Ibid. p.357.
15
3.2 OS VALDENSES
A comunidade que vive ao redor de Valdo, dividindo o pouco que possuem, a
maneira dos primeiros cristãos, cumpre o que aprende nas Escrituras traduzidas para o
vernáculo, saindo de dois em dois para pregar o Evangelho segundo sua interpretação,
arvorando-se em juízes dos costumes do clero. Passam a chamar a atenção do bispo de
Lyon, Guichard, que os coloca sob interdição. Não podem aceitar, pois crêem
firmemente estar cumprindo a exortação bíblica para pregar e viver uma vida
apostólica.5
Por ocasião da realização do III Concílio de Latrão, no ano de 1179, Pedro
Valdo inconformado como interdito reúne uma delegação de seguidores e se apresenta a
Assembléia, sendo bem recebido pelo Papa Alexandre III.
O Concílio fora convocado pelo Papa, após a reconciliação com o Imperador
Frederico Barba Roxa, presente a assembléia, por três razões principais: acabar com os
restos do cisma, combater as heresias albigense e valdense e restabelecer a disciplina
eclesiástica que muito sofrera com o longo cisma.6
Esse concílio é considerado profundamente inovador por estabelecer relações
entre as decisões Papais anteriores, conhecidas como decretais e os cânones conciliares
e pela maneira como organiza o trabalho, em comissões dotadas de funções bem
definidas, que redimensionam o papel da assembléia.
É a uma dessas comissões, liderada pelo inglês Walter Map, que se entrega ao
estudo do caso valdense.
Valdo se apresentara ao Concílio esperando conseguir a aprovação para sua
decisão de seguir a pobreza evangélica vivendo vita apostolica, e para obter o direito de
pregar a partir do conhecimento adquirido com a tradução da Escritura para o provençal.
A comissão presidida por Map aprecia o caso e, segundo relatos do próprio Map
referidos por Garcia Villoslada7 e Giuseppe Alberico8, obtém a condenação dos pobres
5 BOLTON, B. op cit. p. 65. 6 GUÉRIN, P. Les conciles généraux & particuliers: 631-1326. Paris : Savaète, 1913. 7 LLORCA, S. I.; VILLOSLADA, R. G. ; LETURA, P.; MONTALBAN, F. I. Historia de la
Iglesia Católica: Edad Media (800-1303). Madrid : Biblioteca de Autores Cristianos, 1953. p. 797.
8 ALBERICO, G. (org) História dos concílios ecumênicos. São Paulo : Paulus, 1995. p. 196.
16
de Lyon, como também eram conhecidos os valdenses. Faz com que caiam em uma
verdadeira armadilha: pede-lhes que confessem sua crença em Maria, Mãe de Cristo, e
quando o grupo o faz é acusado de não reconhecer o título de Mãe de Deus para Maria,
em uma forma de heresia.
O cânone 27 do concílio∗∗∗ condena os erros dos hereges tendo caráter
doutrinário. Trata especialmente dos cátaros, nome sobre o qual engloba todos os
hereges, conclamando os fiéis a pegarem em armas para oporem-se a eles:
Embora, como afirma o beato Leão, a disciplina eclesiástica se contente com o juízo dos seus sacerdotes, não infligindo penas cruentas, todavia recebe ajuda das leis dos príncipes católicos, pois o temor de uma eventual punição corporal em geral leva os homens a procurar um remédio salutar. Ora, na Gasconha, em Albi, na região de Tolosa e em outros lugares a maldita perversidade dos hereges — chamados por alguns de patarinos, publicanos e outros nomes — de tal modo se instalou que já não professam em segredo, como alguns, sua má doutrina, mas proclamam publicamente seu erro e conquistam seguidores entre os simples e os fracos; ordenamos que eles, seus defensores e seus protetores sejam punidos com o anátema e, sempre sob a pena do anátema, proibimos que quem quer que seja os acolha na própria casa ou em terras, que os ajude ou negocie com eles. […] a todos os fiéis determinamos, em remissão dos seus pecados, que se oponham corajosamente a esses massacres e defendam o povo cristão pegando em armas contra eles; os bens destes últimos sejam confiscados e seja permitido aos príncipes reduzir esse tipo de gente à escravidão. Aquele que, em espírito de verdadeira penitência, morrerem nesses combates obterão a remissão dos seus pecados e a eterna recompensa. Quanto a nós, confiando na misericórdia de Deus e na autoridade dos bem-aventurados apóstolos Pedro e Paulo, damos a remissão de dois anos de penitência aos cristãos que pegarem em armas contra eles e, seguindo o conselho dos bispos ou outros prelados, saírem à sua caça: se nessa atividade permanecerem um tempo mais longo, deixamos ao discernimento dos bispos responsáveis a iniciativa de conceder-lhes ou não uma indulgência maior, proporcional aos esforços despendidos.9
Notamos que aparece aqui a ameaça de penas civis a serem aplicadas pelos
príncipes, o braço secular e, também da extensão a estes príncipes de privilégios que
eram dados aos cruzados. É uma primeira menção a uma cruzada interna que se faria
contra os albigenses.
Apesar de tudo, o Papa Alexandre III, aprova o propósito de vida, apresentado
por Valdo, seu voto de pobreza, porém o proíbe de continuar pregando a menos que
obtenha autorização prévia dos bispos ou párocos locais. O grupo segue essa orientação
por algum tempo, sendo registrados nessa época dois importantes documentos a que,
infelizmente não tivemos acesso. Trata-se das profissões de fé, pronunciadas por Valdo
e um de seus discípulos, que demonstram seu apego à ortodoxia. Essas profissões
∗∗∗ A versão que usamos aqui do cânone 27 do III Concílio de Latrão é uma tradução para o
português de parte do cânone que trabalhamos a partir da edição bilíngüe francês/latim , contida na obra de Paul Guérin, Les Conciles: Généraux & Particuliers. p. 368-370. essa versão em portugues encontra-se na obra organizada por Giuseppe Alberico, História dos Concílios Ecumênicos já citada.
9 Ibid. p. 200-201.
17
publicadas pelo padre Dodaine e conservadas na Biblioteca Nacional de Madrid são
comentadas por Garcia Villoslada da seguinte forma:
É um admirável documento, da mais pura ortodoxia, no qual, depois de afirmar todos os artigos do credo e reprovar, um a um, os erros dos albigenses e de outros hereges daquele tempo sobre a Igreja Católica e os sacramentos, os quais tem validade ainda que administrados por sacerdotes pecadores; depois de admitir os prêmios e castigos eternos o valor das boas obras sem os quais a fé e morta, etc, declara que ele e seus discípulos fazem profissão de pobreza conforme o Evangelho.
A declaração atribuída a um discípulo de Valdo, também publicada por
Dodaine, é igualmente ortodoxa, escrita principalmente contra os albigenses, que
acusavam aos valdenses de manter-se na Igreja, meretriz, de Roma. Para Villoslada isso
prova que “a princípio, ainda que perseguidos pelas autoridades eclesiásticas queriam
manter incólume a sua fé.”10
Não temos registros documentais do que se segue, mas diz a tradição que os
Pobres de Lyon não mantiveram por muito tempo o compromisso assumido com
Alexandre III de só pregarem com prévia autorização eclesiástica, mesmo por que é de
se duvidar que a tenham obtido alguma vez de padres e bispos, ciosos de sua
exclusividade quanto ao direito de pregar.
É bem conhecido que o Papa deu-lhes o direito para pregar sob condição de
obter a autorização do bispo local apenas verbalmente, pois considerava que embora
sinceros tinham um entendimento imperfeito. É interessante observar que para obter
esse direito os valdenses bem como suas traduções da Bíblia deveriam ser submetidos a
um exame pela Cúria. Nesse exame não foram analisados quer pelo rigor, quer pela
ortodoxia. Vimos à armadilha que lhes preparou Map, mostrando por eles um grande
desprezo, tratando-os como idiotae et illiterati, criticando-os pelo seu desconhecimento
do latim e pela interpretação errada das Escrituras, sendo que como a maior parte de
leigos, os valdenses só eram iletrados por desconhecerem o latim.11
Observemos que Pedro Valdo, comerciante abastado, procura conhecer melhor
as escrituras, mandando traduzi-las para o provençal, língua falada pelo povo. Devia
saber ler ou não teria sentido a preocupação em traduzir as Escrituras e os textos dos
Padres da Igreja, pois dependeria de alguém que as lesse. Se assim fosse bastaria
procurar um clérigo para que o fizesse a partir do latim. Contudo, Valdo queria estudá-
las ele próprio e difundí-las entre o povo, na sua própria língua, para que melhor as
10 VILLOSLADA, R.G. op. cit. p. 798. 11 BOLTON, B. op. cit. p. 65
18
entendessem. Alguns relatos dão conta que essas traduções multiplicaram-se e eram
levadas pelos pregadores valdenses, conhecidos como barbas, quando dois a dois, saiam
pelos caminhos falando de sua fé e combatendo os excessos cometidos pelo clero, de
que se arrogavam juízes.
O clero não podia suportar tal coisa, pois além dos valdenses se insurgirem
contra sua exclusividade como pregadores, iam adiante, colocando entre o povo as
traduções vulgares da Escritura possibilitando que nelas encontrassem por si mesmos o
caminho para salvar suas almas, negando-lhes por tanto a condição de único guia para
as almas desejosas de salvação.
Ao retomarem a pregação espalhando-se por toda a região do Languedoc e pela
Lombardia, os valdenses se deixaram contaminar por doutrinas consideradas herética do
outros grupos, pregando uma reforma nos costumes, pretendendo que a Igreja retomasse
a simplicidade primitiva, pois ainda pensavam em reforma-la e não em abandoná-la.
Desejavam o culto sem luxo, a Igreja sem bens e o Papa sem poder temporal.
3.3 A REAÇÃO DA IGREJA
Tendo deixado de cumprir o acordado com Alexandre III por ocasião do III
concílio de Latrão, voltando a pregar sem autorização, os valdenses se põe em flagrante
desobediência a Igreja. Além disso, ao absorverem e transmitirem idéias de outros
grupos considerados heréticos, colocam-se sob o mesmo signo, e a Igreja passa a
combatê-los como tal.
No sínodo de Verona em 1184, o Papa Lúcio III os condena bem como a outra
seita laicas pelos erros contra a autoridade e a hierarquia da Igreja. São condenados a
perpétuo anátema.
Nessa condenação os valdenses são nomeados juntamente com outros grupos de
hereges, ao contrario do constante no cânone 27 do III Lateranense, quando se evitou
citá-los: “Em virtude da autoridade apostólica, condenamos através dessa constituição,
toda a heresia, seja qual seja o nome pela qual é designada: em primeiro lugar,
decretamos, pois, que estão submetidos a anátema perpétuo, os cátaros e os patarinos, e
19
os que se chamam mentirosamente os humilhados ou os pobres de Lyon, os passagios,
os josefinos, os arnaldistas.”12
Na continuidade são expostos os erros pelos quais são condenados:
“reivindicam para si a autoridade de pregar em público ou privadamente sem
autorização do bispo do lugar; não temem pensar ou ensinar de modo diverso do que
ensina a Igreja sobre o sacramento do corpo e sangue de Cristo, do batismo e da
confissão de pecados, do casamento e outros sacramentos da Igreja.13
Vemos que anteriormente, a descrição dos valdenses feita por Map, no III
Lateranense, aponta apenas a pobreza e os coloca em ridículo pela sua ignorância
teológica e desconhecimento do latim, agora já se pode apontar erros que caracterizam a
heresia. Primeiramente a desobediência e oposição contra a autoridade eclesiástica,
quando se insurgem contra a proibição de pregar, invocando o texto das Escrituras
“mais vale obedecer a Deus que aos homens”, registrado em Atos dos Apóstolos, cap. 5,
vers. 29, que ocasiona sua condenação em Verona.14
Também, segundo Menéndez Pelayo, “negavam a oração pelos mortos, fugiam
dos templos, preferindo orar em suas casas; negavam a obediência ao clero (seus
legítimos pastores). Proibiam, como os cátaros, o juramento e a pena de morte e criam
que um sacerdote indigno não podia ministrar os sacramentos, pois sua indignidade os
invalidaria. No entanto, qualquer leigo, homem ou mulher poderia ministra-los se
submetidos às penitências e a austeridade da seita, que se caracterizava pelo laicismo e
o comunismo.”15
Dessa maneira, caracterizados como hereges, estão sujeitos à repressão do braço
secular conclamada no III Lateranense. Sobre essa repressão, em Verona soma-se o
dever dos bispos e clérigos em julgar os hereges sob sua jurisdição, que estarão sobre
anátema perpétuo reconhecido por toda a Igreja.
As repetidas publicações desse anátema, em diversos documentos papais criam
condições para que alguns príncipes, movidos não só por zelo cristão, mas também por
ambições temporais, passem a exercer a perseguição cuja permissão eclesiástica estava
12 DENZINGER, H.; HÜNERMANN, P. El magisterio de la Iglesia: Enchiridionn
symbolorum definitionum et declaratinum de rebus fidei et morum. São Paulo : Herder, 1999. p. 333 13 Ibid. p. 334 14 FALBEL, N. Heresias medievais. São Paulo : Perspectiva, 1976. p. 62. 15 MENÉNDEZ PELAYO, M. Historia de los heterodoxos espanoles. Madrid : Biblioteca de
Autores Cristianos, 1956. p. 507.
20
entrevista nos documentos. É o caso do rei Pedro II, de Aragão, que incomodado com a
propagação dos valdenses para a Itália, a Alemanha e outras nações vizinhas reage
violentamente (1197).
Dirigindo-se a todo o clero do reino de Aragão, aos nobres, soldados e
burgueses, a todos em fim, anuncia que obedecendo aos cânones que separam o herege
da comunidade da Igreja e dos fiéis, expulsa do seu reino a todos os valdenses como
inimigos da cruz de Cristo, violadores da fé católica, inimigos públicos do rei e do
reino. Acrescenta ainda um prazo para que saiam, depois do que aquele que for
encontrado será queimado, e seus bens serão divididos em três partes: uma para quem o
denunciou e duas para o tesouro do reino. Não satisfeito acrescenta mais uma cláusula:
se alguém do reino, nobre ou plebeu, descobre um herege e o mata ou mutila,
despojando o dos seus bens ou lhe causando dano, não merecerá castigo algum, antes
terá os agradecimentos do rei.
Essas atitudes, contudo ainda não eram a regra geral, e a Igreja procurava,
sempre que possível, convencer aos desviados a retornarem à sua comunhão, é a via do
colóquio, de que se utiliza até o início da cruzada contra os albigenses, quando prioriza
a repressão violenta, levada a cabo pelos príncipes.
A Cruzada contra os albigenses dividiu a nobreza, pois tendo sido convocada
após o assassinato de Pedro de Castelnau, legado papal, em 1208 do qual teria sido
mandante o conde de Toulouse, RaimundoIV, que apoiava os hereges, não teve aceita a
convocação pelo Rei da França, nem por seus pares, ficando sua execução a cargo dos
pequenos senhores. Esses agem com grande violência, matando velhos, mulheres e
crianças, o que provoca a reação do povo do Languedoc. Essas coisas se estendem até a
intervenção de Luis VIII da França em 1226, cessando completamente somente com o
tratado de Paris em 1229.
Entre as clausulas do tratado que previa indenizações, devoluções à Igreja e
medidas contra os hereges, aparecem aquelas que dão ao Rei da França parte das terras
tomadas ao conde de Toulouse e, ao irmão do rei a possibilidade de apoderar-se do
restante do condado. De todo o modo o grande vencedor da Cruzada é o Rei capeto o
que nos faz perguntar se seus objetivos eram espirituais (acabar com a heresia) ou
políticos, favorecendo os aliados (os Capetos).
As diversas influências a que estava submetido o movimento valdense, a
incorporação de preceitos defendidos por outras seitas e que haviam sido negados a
princípio; o alinhamento em suas fileiras de simpatizantes oriundos de outros
21
movimentos e, portanto, contaminados por princípios que muitas vezes se chocavam
contra os seus fizeram surgir várias cisões entre os pobres de Lyon. Após a morte de
Pedro Valdo, por volta de 1207, o movimento que foi descrito por Emilio Mitre16 como
“a mais acabada aplicação do princípio da pobreza voluntária”, está irremediavelmente
dividido, sendo que dois pequenos grupos, liderados por Durán de Huesca e Bernardo
Prin, reconciliaram-se com a Igreja, enquanto outros espalhados pelo Languedoc,
Lombardia, Suíça e Alemanha, continuavam mantendo-se fiéis aos seus princípios, mas
tendo em cada região diferenças que acabaram por caracterizá-los como grupos
diferentes com nomes diversos, cujas doutrinas se haviam afastado.
Sobre isso Nachman Falbel17 observa que enquanto o valdense francês (no
Languedoc, na Provença e no Delfinado), mantinha certos laços com a Igreja católica,
participando de sua liturgia, os da Lombardia passaram a uma posição agressiva,
negando a validade dos sacramentos ministrados por padres católicos e criando uma
liturgia própria.****
Constantemente anatematizados, divididos, perseguidos pelo braço secular, os
valdenses foram obrigados a viver clandestinamente, sendo que simpatizantes (amice,
credentes) seculares, providenciavam alimentos e hospitalidade, para os que faziam
parte da hierarquia do movimento (haviam ordenado bispos, diáconos e presbíteros),
pois esses Perfeitos dedicavam-se exclusivamente a pregação e a assistência pastoral,
tendo renunciado ao trabalho manual. Cumpriam votos de pobreza, castidade e
obediência aos superiores, e tendo a Escritura por norma doutrinal absoluta, além de
código jurídico.
A disseminação não só da heresia valdense, mas dos vários grupos,
principalmente a do cátaro, preocupava seriamente a Igreja. Em 1215 o Papa Inocêncio
III propõe um novo concílio com o objetivo, entre outros de extinguir as heresias.
A assembléia aprova algumas normas muito duras, destinadas a defender a
cristandade, prevendo no cânone 3 o isolamento das comunidades heréticas, obrigando a
isso os magistrados civis, sob juramento. É uma verdadeira Cruzada interna, da qual o
Papa assume a condução, encarregando-se de liberar do julgamento de fidelidade aos
16 MITRE, E.; GRANDA, C. op. cit. p. 17-18. 17 FALBEL, N. op. cit. p. 62-63. **** É esse grupo que se espalha no Piemonte e pela Sabóia, atingindo a Alemanha, a Boêmia, a
Moravia, a Polônia e a Hungria, além da Itália Meridional, conquistando grande número de adeptos.
22
vassalos do príncipe que se recuse a apoiar o extermínio dos hereges, como vimos em
relação ao conde de Toulouse. 18
Em busca de uma solução mais pacífica da qual apesar de tudo não desistira,
Inocêncio III acolhe na Igreja os grupos de valdenses reconciliados de Durán de Huesca
e Bernardo Prin.
A profissão de fé feita por Durán de Huesca quando da reconciliação é muito
parecida com a feita por Valdo, antes de romper com Roma. De perfeita ortodoxia,
reconhecendo ainda a concepção espiritual de Maria (lembrar da armadilha de Map para
Pedro Valdo), e o papel da Igreja e de sua hierarquia, o valor dos sacramentos e a
ressurreição final no dia do juízo.
Contudo o valor de reconciliação de Durán de Huesca está no ganho de um
grande combatente contra o catarismo. Fundou o movimento dos Pobres Católicos, sob
as bênçãos do Papa, perfeitamente integrado na disciplina da Igreja, constituído de
pregadores itinerantes, ao molde dos valdenses, mas que perfeitamente ortodoxo tinha
permissão para pregar. Também nos moldes dos Perfeitos valdenses cumpriam voto de
pobreza, castidade e oração.
Já o grupo de Bernardo Prin, — os Pobres reconciliados — também integrado a
ortodoxia e a disciplina da Igreja, recebeu permissão para a pregação itinerante, sendo
que deviam viver do trabalho de suas mãos e não de esmolas.
O IV Concílio Lateranense, ao lado da permissão para o extermínio dos hereges,
proibiu a criação de novas ordens, muito solicitadas por grupos que situavam-se na
fronteira entre a ortodoxia e a heresia, vinculando todas as já criadas as regras e
constituições já aprovadas (cânone 13). O cardeal Ugolino, obterá a dispensa dessa
norma para efetivar a criação das ordens franciscanas e dominicanas que se revelaram
como a grande solução da Igreja para absorver os partidários da pobreza voluntária.
3.4 AS ORDENS MENDICANTES.
18 ALBERICO, G. op cit p. 203; GUÉRIN, P. op cit p. 399-402.
23
Francisco de Assis, fundador da ordem Franciscana, parecia-se em muitas coisas
com Pedro Valdo. Leigo e burguês, seu pai era abastado comerciante de tecidos em
Assis, como Valdo em Lyon, teve uma conversão dramática à pobreza voluntária da
mesma forma que Valdo, distribuindo os bens que levava consigo e retornando à casa
na mais absoluta miséria.
Reuniu após si seguidores que formaram uma comunidade, vivendo em
perfeição evangélica e por isso recebeu permissão da Igreja para continuar a existir. Por
não se ter colocado contra a ortodoxia granjeou apoios importantes entre bispos e
cardeais. Para ser aceito pela Igreja, embora relutante, submete-se às exigências da
Cúria, tais como a tonsura que os distinguirá como clérigos. Francisco promete
obedecer a Santa Sé em todas as coisas, e seus companheiros por sua vez prometem
obedece-lo, caracterizando hierarquia, logo uma regra. Seu ideário aproximava-se muito
do professado pelos valdenses — seguirem nus o Cristo nu.
Para o historiador da Igreja Menéndez Pelayo, surgiram no século XIII duas
grandes instituições para combater os hereges albigenses e valdenses: a inquisição e os
frades mendicantes. Para ele os princípios comunistas pregados pelos valdenses
provocavam um mal estar social, próximo do conflito, resolvido pelos franciscanos ao
ensinarem a caridade e pobreza evangélica em lugar do ódio aos ricos e o orgulhoso
preceito de pobreza alardeado pelos Pobres de Lyon.19
Prestemos atenção, que em nenhum lugar encontramos registro que justifique
essa afirmação de Pelayo, pelo contrario seguidamente se diz que os valdenses eram
pacíficos, nunca pegaram em armas e muitas vezes participavam da liturgia católica;
vimos que pregavam e viviam a pobreza voluntária, mas não o ódio aos ricos, ao menos
aos leigos. Constituíam-se, isso sim, em juizes de um clero contaminado pelo desejo de
riqueza e poder.
Quanto aos dominicanos, ordem fundada por Domingos de Gúsman, eclesiástico
oriundo da pequena pobreza, pouco tem a ver com os franciscanos. Domingos de
Gúsman pregara no Languedoc, tendo aí seus primeiros embates com os hereges
cátaros, de onde desenvolve o desejo de converte-los com a pregação e não pela
violência que se desenvolvia nos excessos cometidos na cruzada interna contra as
19 MENÉNDEZ PELAYO, M. op cit p. 509.
24
comunidades heréticas, embora no futuro tenham saído de sua ordem os grandes
inquisidores.
Tem grandes dificuldades para que a ordem que fundou seja reconhecida pelo
Papa, contando com a intervenção do cardeal Ugolino para obter dispensa de certas
normas exigidas pelo IV Lateranense e viabilizar o reconhecimento da ordem. Ao
contrário de Francisco de Assis era profundo conhecedor da organização exigida pela
Igreja, pois vivera sempre nesse meio. Impõe a seus seguidores regra de Santo
Agostinho modificando para alcançar seus objetivos.
Propõe, em princípio uma vida de grande simplicidade, mas não a pobreza
absoluta como Francisco, e preocupa-se em aproximar-se das escolas e universidades
preparando seus seguidores para assumirem as cátedras e desse modo influírem nas
mudanças que se processavam na sociedade desse vetor.
Os franciscanos após a morte de Francisco passam por severa crise até serem
organizados por S. Boaventura, quando abraçam também o caminho do conhecimento
afastando-se das idéias iniciais de Francisco, inviáveis para uma ordem.
As duas ordens prosperam grande e rapidamente afastando-se dos ideais de
pobreza e simplicidade, atingindo altos postos na hierarquia da Igreja, sendo que ao
final do século XIII cardeais oriundos das duas já haviam atingido o pontificado.
25
4 CONCLUSÕES
Vimos que a fermentação ocorrida na sociedade nos séculos XII e XIII,
originou-se nas reformas pelas quais passou a Europa, como a melhoria técnica da
agricultura que possibilitou um grande aumento na quantidade de terras roturadas e na
produção de alimentos. Alimentos esses que além de em maior quantidade, tinham
também mais qualidade e variedade, enriquecendo a dieta do medievo e possibilitando
um aumento na taxa de natalidade com decréscimo nas mortes, que origina a explosão
demográfica citada por Le Goff e por nós referida na introdução deste trabalho.
Esse aumento populacional incentiva o crescimento das cidades antigas bem
como o aparecimento de muitas outras, com todas as suas conseqüências: o aumento do
número de ofícios especializados em soluções para os problemas urbanos, entre os quais
os artesãos e os mercadores e comerciantes, deslocando o eixo da vida social para os
centros urbanos.
Embora o desenvolvimento crescente das cidades tenha provocado o
deslocamento desse eixo, o campo não perdeu em importância, pois aos burgueses eram
necessários os alimentos produzidos pelos camponeses bem como o algodão, o linho e a
lã para as vestimentas. Essa ligação entre os que produziam e os que consumiam passa a
ser feito cada vez mais e com lugares e mais distantes pelos comerciantes urbanos e
mercadores itinerantes, nas feiras que se multiplicam por toda a cristandade.
Nessas feiras o comércio desenvolve-se de tal maneira que são mudados antigos
hábitos. Passa-se a negociar com papeis, as letras de câmbio, garantidas por banqueiros.
São vendidos não só os excedentes, mas já se produz para a venda, negocia-se produtos
de terras distantes, trazidos pelos mercadores, valorizando-se a insipiente produção
“industrial” em detrimento do que era produzido pelos vassalos para suprir a
necessidade imediata de seus senhores. Aumentam a circulação e a acumulação
monetárias. Alguns enriquecem muito e rápido, a maioria usufrui apenas algumas
melhorias.
Essas feiras difundiam também noticias curiosidades e idéias através da
presença de menestréis e pregadores populares e itinerantes, que atraiam grande atenção
popular e influíam na fermentação da sociedade, pois parecem ter sido importantes
vetores na divulgação das mudanças culturais que ocorriam por toda a parte.
Vimos também as mudanças ocorridas nas relações entre os poderes temporal e
espiritual, com o fortalecimento das monarquias e as disputas com o papado pela
26
supremacia. As longas crises do papado com imperadores como Henrique IV e
Frederico Barba Roxa, bem como sua busca de apoio na dinastia capetíngia e a maneira
como essas crises refletiam-se entre o povo, como surgimento de heresias, que muitas
vezes eram o único canal de protesto da população contra o autoritarismo, refletindo
mais suas inquietações quanto ao jugo imposto pelos príncipes e pela Igreja do que uma
heterodoxia.
Ao nos determos em Pedro Valdo e seus seguidores, pudemos observar as feiras
atraindo o público para os menestréis e a influência de suas narrativas, pois nos coloca o
Cronista de Laon, ter sido através de um desses itinerantes que Pedro Valdo, um rico
comerciante da importante cidade de Lyon, tomou conhecimento da vida de santo
Aleixo e sentiu desejo de conhecer melhor as Escrituras, após o que abraça a vida de
pobreza voluntária e atrai seguidores.
É lícito pensar que, da mesma maneira que entrou em contato com a vida de
Aleixo, Valdo se tenha utilizado das feiras para divulgar seus ideais de pobreza e vita
apostólica, indo de cidade em cidade, acompanhando esses mercadores itinerantes,
entre os quais deveria ter conhecimentos antigos de seu tempo de comerciante abastado,
e portanto testemunhas da mudança realizada em sua vida.
Seguindo a rota das feiras ou buscando outros caminhos é certo que as idéias de
Valdo e as traduções que mandou fazer das Escrituras para a língua popular,
espalharam-se por toda a região do Languedoc, a região pirenáica, a Lombardia e o
Piemonte, atingindo mesmo a Alemanha, a Hungria, a Suíça e a Polônia.
A Igreja, que a princípio quase ignorara esses movimentos, de que os valdenses
são apenas uma corrente, muito influente nessa região é verdade, mas não tão agressiva
quanto outros grupos, passa a reagir.
Colocado sob interdito, Valdo que não deseja em princípio, afastar-se da Igreja,
mas apenas ajudar a corrigir o que seriam desvios da organização, apresenta-se à
assembléia reunida no III Concílio de Latrão, onde estão presentes o Papa e o
Imperador. Eram objetivos desse concílio acabar com os resquícios do cisma e combater
as heresias albigense e valdense.
Como Pedro Valdo apresentou-se a assembléia e colocou suas idéias, deixando
claro que pretendia apenas viver em pobreza, o Papa Alexandre III o aceita, proibindo
apenas e a seus seguidores de continuarem pregando, pois por sinceros e bem
intencionados que se apresentassem incorriam em erros, segundo a Igreja, por como
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coloca Map serem iletrados, ou seja, não conhecerem o latim. Suas traduções são
condenadas embora não sofram qualquer exame que verifique seu rigor.
Podemos observar que, no cânone 27 da ata conciliar, quando se enumeram as
heresias, os valdenses não são nomeados∗, portanto caracteriza-se sua posição ainda
ortodoxa. Vimos ainda que apesar da profissão de fé de Valdo e de sua crítica ferrenha
ao catarismo, não demoraram os valdenses a quebrar o compromisso assumido com o
Papa de não pregar e o fazem agora com maior virulência. Laicicismo e a pregação feita
também por mulheres — que tinham entre os valdenses um estatuto mais próximo ao
dos homens tendo liberdade não só para ouvir sobre a salvação, mas de falar sobre ela
aos outros, manejando o que aprendiam das Escrituras traduzidas para o provençal —
são pontos que os faziam divergir da Igreja.
Passando a atacar o clero, influenciados por outras correntes heréticas e
absorvendo discurso que faziam em muitos pontos, os valdenses colocam-se em franca
desobediência a Igreja, ficando explícita sua condição de hereges no anátema lançado
sobre eles no Sínodo de Verona pelo Papa Lúcio III.
Podemos observar nessas mudanças a influência da fermentação social do
tempo, o intercâmbio de idéias entre os grupos, possibilitado pelo maior mobilidade de
seus agentes, com a melhoria das estradas e a ampliação das rotas comerciais. Vimos os
valdenses absorvendo posicionamentos característicos dos cátaros, que são a grande
ameaça para a Igreja e, sendo submetidos como esses à ação do braço secular e as
decisões que seriam a raiz da Inquisição e do Santo Ofício.
Contudo, através do que pudemos coletar das informações contidas nos
documentos, essas posições continuavam sendo mais contra a instituição e suas
posições. Não observamos nenhuma contradição às Escrituras que justificassem o
epíteto de hereges.
As reações da Igreja, apontadas nas atas conciliares, passando ao braço laico a
execução das penas sangrentas, que deveriam possibilitar o controle das heresias
também foram observados, como na cruzada contra os albigenses e nas reações
provocadas na nobreza que se dividem entre apoio à cruzada e aos albigenses,
caracterizando o protesto de alguns nobres contra a ingerência do Papa em assuntos
como os casamentos consangüíneos, que proibidos permitem o esfacelamento de
propriedades da nobreza nos processos de herança e a maior facilidade para a
∗ Como verificamos na transcrição constante no capítulo Pedro Valdo e os valdenses, nesse
trabalho.
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apropriação dessas mesmas propriedades pela Igreja através de doações ou dotações
daqueles que abraçam a vida religiosa.
A outra via usada na reação da Igreja, a do colóquio, quando buscaram o
convencimento de grupos hereges pela pregação, alcançou alguns êxitos, provocando
dissensões entre os grupos e a reconciliação com a Igreja, como nos casos de Durán de
Huesca e Bernardo Prin, dissidentes valdenses reconciliados. Ambos representaram para
a Igreja importantes vozes contra os cátaros e seus antigos companheiros valdenses.
A adoção dos grandes princípios defendidos por vários grupos, entre os quais os
valdenses, desde sua origem: a pobreza e a vita apostolica, foi outra via usada pela
Igreja. Temos aqui as ordens mendicantes: a dos frades menores ou franciscanos e a dos
pregadores ou dominicanos.
Entre os franciscanos as semelhanças com a pregação dos valdenses é muito
grande. A própria vida de Francisco de Assis assemelha-se a de Valdo, sua relutância
em aceitar a imposição de uma regra tão bem. No entanto sua relutância em abandonar a
ortodoxia é ainda maior e para ser aceito juntamente com os que o seguem acata as
recomendações da Cúria e cria as regras da ordem.
Em relação aos dominicanos, temos a permissão para exercer a pregação
itinerante e, podendo exercê-la nos templos e catedrais, livremente, falando dos mesmos
princípios de vida simples e dedicada a Deus, sem sofrer as vicissitudes da represália da
Igreja, atingiam grande parte daquele público que ouvia os hereges, aceitava suas idéias,
mas não desejava afastar-se da Igreja e sofrer as conseqüências dos seus atos.
Podemos dizer então que definir é tarefa complicada, pois como coloca Duby1,
heresia e ortodoxia são dois pólos entre os quais as margens são largas, com zonas
neutras e de indiferença mais sempre com franjas indecisas e móveis. E que o herético o
é, aos olhos dos outros, não aos seus próprios, ou seja, aos olhos da Igreja. Então nos
parece possível afirmar, que a fronteira entre a heresia valdense e posições da Igreja
como a criação das ordem mendicantes é bastante tênue, ficando evidente que se
localiza nas questões da obediência a hierarquia eclesiástica e ao clero de maneira geral
e não na fundamentação escriturística que norteia ambos, Igreja e hereges. Portanto,
também podemos pensar que as movimentações, os reflexos produzidos na sociedade
por essas heresias, entre as quais os pobre de Lyon, induzindo-a a reflexões que não lhe
1 DUBY, G. Idade média, idade dos homens: do amor e outros ensaios. São Paulo : Cia. das
Letras, 1989. p. 78.
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haviam ocorrido antes, obrigaram a Igreja a adotar posições que diminuíram a distância
entre a cristandade e o clero sob pena, ao se negarem a fazê-lo, observar suas ovelhas
seguirem após outros pastores, melhores conhecedores de suas inquietações e
necessidades.
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