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CAPÍTULO 5 FALTA DE AR E RECUPERAÇÃO DO FÔLEGO

Os anos decorridos entre 1873 e 1896 pareceram a muitos contemporâneos um assombroso desvio da experiência histórica. Os preços caíram de maneira desigual e esporádica, mas inexorável, através de crises e explosões de crescimento - uma média de aproximadamente 1/3 em todos os produtos. Foi a mais drástica deflação na memória do homem. A taxa de juros também caiu, a ponto de os teóricos da economia começarem a invocar a possibilidade de que o capital se tornasse tão abundante a ponto de passar a ser uma mercadoria gratuita. E os lucros encolheram, enquanto o que então se reconhecia como depressões periódicas parecia arrastar-se interminavelmente. O sistema econômico parecia estar desmoronando.

Então, a roda girou. Nos últimos anos do século, os preços começaram a subir, levando consigo os juros. Com a melhora dos negócios, a confiança voltou - não a confiança irregular e evanescente dos breves surtos de crescimento que haviam pontuado o desalento das décadas precedentes, mas uma euforia geral de um tipo que não havia prevalecido desde os Gründerjahre do inicio da década de 1870. Tudo parecia correr bem outra vez - apesar do matraquear das armas e das admonitórias referências marxistas ao "último estágio" do capitalismo. Em toda a Europa ocidental, esses anos perduram na memória como os bons tempos - a era edwardiana, Ia belle époque.

Sua lembrança é abrilhantada pelo contraste com os anos de morte e desencanto que se seguiram. Em todos os campos, a guerra parece constituir o grande divisor: entre o otimismo e o pessimismo, a democracia par-

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lamentar e o fascismo, o progresso e o declínio. A maciça mobilização de pessoas e recursos para o conflito, bem como sua destruição nele, pareceram tirar tudo dos eixos, para nunca mais se aprumar. Na vida econômica a guerra assistiu à introdução de controles e restrições "temporários" - do comércio, dos preços, dos investimentos, da movimentação do capital e da pessoas - que, desde então, persistiram sob uma ou outra forma. A economia internacional que se auto-ajustava serenamente cedeu lugar a um mecanismo atabalhoado e ineficiente, só mantido em operação através de ajustes e consertos reiterados.

Todavia, um exame mais criterioso deixa claro que a guerra foi apenas um catalisador, um precipitador de mudanças que já estavam em andamento. Os sinais de um afastamento do otimismo e da liberdade evidenciam-se bem antes de 1900, tanto na literatura e na filosofia quanto na política e na economia. Isso não equivale a negar o imenso impacto da guerra, mas simplesmente a situá-lo em seu contexto. O sistema já estava passando por uma dolorosa transformação, a qual, por sua vez, foi mais causa do que consequência da rivalidade e do conflito internacionais. Neste ponto, en-tretanto, estamos tocando num assunto complicado e polêmico, e mais vale adiar sua discussão por enquanto.

Superficialmente, as tendências cíclicas da economia européia nesse periodo afiguraram-se, para a maioria dos analistas, uma repetição das alternâncias anteriores de contração e expansão a longo prazo. Os teóricos monetários apontaram uma diminuição da oferta de capital em relação a demanda entre 1873 e 1896, seguida por um aumento acentuado do estoque de reservas, em decorrência das descobertas de ouro na África do Sul e no Klondike.* Essa tese talvez tenha recebido sua mais plena elaboração analítica na obra de Simiand, que generalizou a experiência do século XIX e construiu um modelo de tendências inflacionárias e deflacionárias longas e alternadas, as primeiras caracterizadas pelo rápido crescimento quantitativo, apoiado numa base tecnológica relativamente estável (análogo ao que hoje chamamos expansão do capital), e as últimas, pelo aperfeiçoamento qualitativo (aprofundamento do capital) e pela eliminação forçada das empresas ineficientes.1

Opondo-se em geral a essa interpretação, há os economistas e historiadores que encaram o investimento como o determinante primordial e os

* O rio canadense cujo nome passou a designar a região que foi palco de uma das mais célebres corridas do ouro, no fim do século XIX. (N. da T.)

preços como um sintoma. Schumpeter talvez seja o mais famoso desse grupo, com seu modelo de uma máquina econômica movida a surtos de inovação. Também nesse campo encontra-se Rostow, com uma análise mais matizada, baseada nos deslocamentos do investimento entre aplicações com diferentes velocidades de gestação: quanto mais longo o intervalo entre o desembolso e o retorno (infinito, no caso dos gastos com armamentos), maior o efeito inflacionário imediato.

Entre essas duas posições situa-se um homem como Kondratiev, que afirma que o movimento ascendente do ciclo longo está associado a aumentos tanto do investimento (devido a novas invenções, recursos naturais e mercados) quanto da oferta de capital. Kondratiev não encara esses elementos concomitantes da flutuação como causas, mas como produtos da conjuntura, e fala enigmaticamente de "causas que são inerentes à essência da economia capitalista". Não obstante, à parte as questões de ideologia, está claro que elas ocupam em seu esquema o mesmo lugar explicativo que têm, mutatis mutandis, nos dos outros autores que escrevem sobre o assunto.2

Num aspecto, porém - a periodização das tendências longas -, todos estão de acordo. Começando pelo fim do século XVIII, eles pontuariam a história econômica da era industrial mais ou menos assim: 1790-1817, inflação; 1817-50, deflação; 1850- 73 , inflação; 1873-96 , deflação; 1896 - 19 14, inflação. (As datas exatas variam de uma análise para outra, mas o esquema e os pontos de demarcação aproximados continuam os mesmos.) Além disso, a maioria concordaria quanto ao caráter cíclico dessas flutuações. Sem dúvida, é presumível que um marxista como Kondratiev fizesse uma ressalva a isso (embora ele não a faça explicitamente), restringindo esse padrão às economias capitalistas e sujeitando sua repetitividade à influência de mudanças subjacentes, e de alcance ainda mais longo, no sistema total. Similarmente, o recente trabalho de Rostow sobre os estágios da industrialização parece implicar a possibilidade de que o ritmo e o caráter dessas ondas se alterem com o amadurecimento da economia. Não obstante, essas ressalvas não afetam a periodicidade aceita do século XIX.

Esse quadro me parece inexato e, em minha opinião, leva a um entendimento equivocado da relação entre o processo subjacente de industrialização e os outros aspectos da transformação econômica. A principal fonte de dificuldade é a ilusão de ótica produzida pelo contraste entre a explosão de crescimento da década de 1850 e a depressão da de 1870; ambas se destacam do restante e parecem introduzir uma nova era, marcando um período de alta inflacionária de 1850 a 1873. Na verdade, a seqüência dos preços não mostra esse tipo de tendência longa. A longa deflação iniciada

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após as guerras napoleônicas foi momentaneamente revertida pela entrada de metais preciosos em barra e pela explosão de crédito da década de 1850. Mas a inflação não durou mais do que a alta do ciclo curto. Os preços caíram em 1857 e, embora tivessem altos e baixos na década e meia seguinte, a tendência foi ligeiramente descendente (no máximo, estável em alguns casos), com a instalação de um declínio acentuado a partir de 18 73.3

Em suma, o século XIX foi marcado por uma deflação prolongada e aguda, que se estendeu desde 1817 até 1896, tendo apenas uma breve interrupção de uns seis ou sete anos. Na longa história da moeda e dos preços desde a Idade Média até o presente, não há nada que lhe seja semelhante - com a possível exceção de alguns declínios mais brandos nas décadas que se seguiram à Peste Negra e no século XVII. Além disso, diversamente desses períodos anteriores, quando a queda dos preços vinculou-se a catástrofes, despovoamentos e depressão muito disseminada, o século XIX foi um pe-ríodo de paz, de aumento sem precedentes da população e de rápida expansão econômica. No mais, com ou sem a conivência de reis e governos, o longo prazo é sempre feito de depreciação e inflação.

A explicação da aberração do século XIX parece residir, precisamente, nos aumentos de produtividade que estimularam e possibilitaram esse crescimento econômico. Ao longo do século, os custos reais caíram sistematicamente, a princípio sobretudo na indústria e, mais tarde após uma revolução dos transportes que abriu vastos novos territórios ao cultivo comercial , também na produção de alimentos. (É a safra de avanços nesses dois setores que responde pela queda particularmente acentuada dos anos de 1873-96.) Sem dúvida, haviam ocorrido aperfeiçoamentos tecnológicos e economias de custo em épocas anteriores. Por que, então, essa deflação singularmente persistente? A resposta reside, é claro, na singularidade das inovações que constituíram a Revolução Industrial; nunca houve, antes dela, um feixe de novidades de aplicação tão generalizada e de implicações tão radicais.

Portanto, a queda dos preços do século XIX foi uma conseqüência e um barômetro da industrialização européia. Desnecessário dizer que isso não implica que, por ter sido mais ou menos idêntico o rumo das alterações de preços em todos os países da Europa, o curso da industrialização também tenha sido o mesmo. Dadas as comunicações comerciais e monetárias então vigentes, a sincronização das tendências dos preços era inevitável. Isso é da natureza do mercado. Mas os padrões e as taxas de crescimento são outra história. Embora a mesma comunicação internacional que deu origem à deflação geral também conduzisse a movimentos solidários na tecnologia,

nesse aspecto, as diferenças em termos de recursos materiais e instituições e as defasagens quanto ao momento do desenvolvimento foram determinantes. O resultado foi uma variação substancial de um país para outro.

A economia a cuja carreira o curso dos preços mais se adequa é a da Grã-Bretanha. Isso não chega a surpreender. Primeira nação a se industrializar, ela continuou, pelo século XX adentro, a liderar o mercado internacional. Mesmo depois de ter perdido sua supremacia, na década de 1890, para os Estados Unidos e a Alemanha, em setores críticos como o ferro e o carvão, sua posição de mediadora do comércio e das finanças mundiais sustentou sua influência predominante nos preços das mercadorias.

Não é minha intenção empreender, neste ponto, um exame detalhado da experiência britânica. Podemos simplesmente observar que os cálculos de que dispomos sobre suas taxas de crescimento industrial e seu aumento de produtividade - e eles são confirmados pela principal série temporal da indústria - mostram uma nítida queda depois das décadas sumamente prósperas de meados do século. Eles só voltaram a subir depois de 1900. De 1870 em diante, com exceção de um ramo como a siderurgia, que foi transformada por uma série de avanços técnicos fundamentais, a indústria inglesa esgotou o impulso trazido pelo grupo original de inovações que havia constituído a Revolução Industrial. Mas, esgotados esses grandes incrementos, as indústrias estabelecidas não ficaram paradas. A mudança estava embutida no sistema e a inovação foi, no mínimo, mais freqüente do que nunca. Com a alta do custo dos equipamentos e a queda da vantagem física sobre as técnicas existentes, no entanto, diminuiu o produto marginal dos aperfeiçoamentos.

Essa desaceleração só foi revertida por volta da passagem do século, quando uma série de grandes avanços abriu novas áreas de investimento. Esses anos assistiram a vigorosa infância, senão ao nascimento, da energia e dos motores elétricos; da química orgânica e dos sintéticos; do motor de combustão interna e dos dispositivos automotores; da indústria de precisão e da produção em linhas de montagem um feixe de inovações que mereceu o nome de Segunda Revolução Industrial. Como essas inovações traziam em si a possibilidade de diminuir custos, seria concebível que sua vigorosa exploração gerasse um declino adicional dos preços - embora, dadas as condições da tecnologia, seu impacto relativo estivesse fadado a ser menor que o dos avanços pioneiros do século XVIII. No caso, porém, a Inglaterra não tirou pleno proveito das oportunidades oferecidas, e o incentivo inicial fornecido aos preços pelos fluxos de lingotes de ouro vindos da África do Sul (Witwatersrand, 1887), do oeste da Austrália (1887) e do

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Klondike (1896) foi substituído e reforçado por um padrão de investimentos que gerou retornos lentos em bens e serviços de consumo. E então, é claro, veio a Primeira Guerra Mundial, trazendo consigo pressões inflacionárias que tornam impossível uma comparação com o período anterior.

Mesmo assim, esse conjunto de inovações marcou o início de uma nova subida, um segundo ciclo de crescimento industrial que ainda está em andamento e cujas possibilidades tecnológicas ainda estão longe de ter-se esgotado. É nesse contexto que se pode compreender o debate sobre o momento do "época crítica" da Grã-Bretanha. Mudança de vida, houve. A questão é: terá ela ocorrido na década de 1870 ou na de 1890?4 A resposta, obviamente, depende do ponto de vista. O fim da grande prosperidade após 1873 e o persistente mal-estar das décadas seguintes apontam, de fato, para o ocaso da Revolução Industrial, ao passo que a articulação da década de 1890 marca o início de uma nova aceleração.

A Alemanha proporciona um contraste impressionante. Apesar de sua capacidade, a economia desse país estava muito atrás da inglesa, em 1870, em termos da assimilação e disseminação da tecnologia da Revolução Industrial. Amplos setores da indústria ainda estavam por ser mecanizados; a fabricação domiciliar continuava a predominar em muitos ramos; a rede ferroviária estava longe de ter sido concluída; e a escala de produção costumava ser pequena. Assim, uma vez deixado para trás o revés de meados da década de 1870, a Alemanha retomou sua alta taxa de crescimento. E ainda não havia esgotado esse impulso quando as novas oportunidades do fim do século deram outro empurrão em sua economia. Como resultado, tem-se a impressão de uma ascensão ininterrupta. Também para a Alemanha, entretanto, a década de 1890 foi um divisor de águas.

A França apresenta mais um padrão diferente. Ao lado da Bélgica, ela fora a primeira do Continente a seguir o exemplo britânico. Mas sua taxa global de crescimento industrial tinha-se tornado mais lenta, em virtude de suas décadas provisórias de preparação e experimentação e do desenvolvimento, dentro de seu corpo social, de anticorpos psicológicos e institucionais contra o vírus da modernização. "A França", escreveu Clapham, "nunca passou por uma revolução industrial." Passou, sim, mas ela foi amortecida. Os contornos do impulso que acompanhou a mudança para a mecanização, a energia a vapor, o sistema fabril e o transporte ferroviário foram suavizados, antes e depois. Após a expansão relativamente rápida do Segundo Império, a Terceira República foi um período de avanço outonal comedido, finalmente acelerado pela ascensão de 1900-13, que se baseou, em parte, na nova tecnologia, e, em parte, no inicio da exploração de valiosos depósitos

de minério de ferro na Lorena. Antes dessa revitalização e mesmo depois, já que a opinião é sempre variável nessas questões -, a sonolência da economia francesa evocou reiteradas advertências das Cassandras horrorizadas com a crescente defasagem entre as economias francesa e alemã. A "capacidade de crescimento" não é, em absoluto, uma invenção do debate político norte-americano contemporâneo.

Ao lado das economias avançadas, certo número do que hoje chamaríamos de nações "subdesenvolvidas" embarcou, durante esses anos de transição tecnológica, em suas próprias revoluções industriais. Algumas delas, como a Suécia e a Dinamarca, realizaram a mudança suavemente e alcançaram rápidos aumentos da produtividade e da renda real per capita. Outras, como a Itália, a Hungria e a Rússia, assimilaram apenas parte da tecnologia moderna, e esses avanços, conquistados em pontos precisos da economia, demoraram a desarticular o tenaz atraso da maioria dos ramos da atividade econômica. Nesses países, além disso, a indústria respondia por uma fração tão pequena da riqueza e da renda nacional, que até os rápidos aperfeiçoamentos desse setor fizeram relativamente pouco, a princípio, pela produção global ou pelo padrão de vida. Não obstante, seu crescimento industrial foi, em geral, mais rápido nesse período que o dos países mais avançados, ate mesmo a Alemanha. Em parte, isso reflete uma falácia estatística: sua produção era tão reduzida, nesses estágios iniciais, que ate as melhorias modestas afiguravam-se proporcionalmente grandes. Porém, reflete ainda mais a precariedade da base tecnológica desses países e o grande potencial de suas próprias revoluções industriais: o hiato entre o que eles tinham e o que poderiam fazer era muito maior do que tinha sido para os primeiros a se industrializar.5

O esgotamento das possibilidades tecnológicas da Revolução Industrial coincidiu com alterações na estrutura e no tamanho do mercado que agravaram o efeito depressivo da diminuição do investimento autônomo. Nem todas essas alterações funcionaram na mesma direção, mas, no cômputo geral, elas contribuíram para uma impossibilidade de a demanda se manter à altura da capacidade crescente da indústria. Clientes havia, para quem soubesse encontrá-los e conquistá-los, mas era preciso procurar por eles em novos locais e cortejá-los de novas maneiras. E essa tarefa não era tão simples quanto tinha sido para os industriais pioneiros da primeira metade do século.

A relação histórica entre a procura e a oferta no correr do século XIX não é simples. Já assinalamos a pressão da demanda interna e externa, em

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rápido crescimento, sobre o sistema industrial da Inglaterra no século XVIII; essa pressão deu origem a pontos de estrangulamento e tensões, finalmente resolvidos por uma transformação dos meios e do modo de produção. Essa Revolução Industrial, por sua vez, alterou radicalmente os termos do problema. De um lado, deslocou a ênfase do consumo para o investimento: havia necessidade de capital para construir fábricas e realizar as potencialidades das novas técnicas. De outro, tornou os mercados estrangeiros muito mais importantes, pois, mesmo que a taxa de poupança do país não fosse muito alta, o mercado interno seria incapaz de acompanhar o rápido aumento da produção de artigos manufaturados.

De fato, a demanda interna global aumentou substancialmente em todos os países em processo de industrialização, mesmo durante o período de capitalização mais rápida. Quanto aumentou, no entanto, é difícil dizer. Nesse ponto, deparamos com a questão da "miserabilização" das classes trabalhadoras, que tem despertado uma quantidade extraordinária de debates, particulamente com respeito à experiência britânica.6

Terá o padrão de vida das classes mais pobres caído em decorrência da Revolução Industrial, digamos, durante os anos de 1780 a 1850? Seria pretensioso tentar resolver em poucas linhas uma questão tão complexa e emocional. As teses comumente formuladas concernem ao consumo, não apenas de produtos manufaturados, mas de todos os bens e serviços, e se fundamentam tanto ou mais em deduções teóricas, dogmas políticos e simpatias, quanto em dados empíricos - qualquer que seja o valor destes. Boa parte disso fica fora de nosso campo de interesse. O que realmente nos interessa é, em primeiro lugar, que houve um aumento da demanda interna media e global de produtos manufaturados. O consumo de artigos de algodão, por exemplo, elevou-se de cerca de 35.600.000 libras anuais em 1819-21 para 149.600.000 em 1844-6 (os "famintos anos quarenta"!), dando um salto de quatro vezes num período em que a população cresceu pouco menos de 1/3.7 E, se dispuséssemos de estatísticas comparáveis sobre outros produtos- sobre o ferro sob a forma de bens de consumo, por exemplo -, elas sem dúvida contariam a mesma história.

Mesmo assim, a demanda interna não conseguiu manter-se à altura da oferta. Desde o começo, a Inglaterra teve que depender maciçamente de mercados ultramarinos, e as interrupções das relações comerciais normais pela guerra e pelos bloqueios, antes de 1815, e pelas tarifas protecionistas, depois disso, só fizeram com que ela saísse em busca de novos mercados em cantos distantes do globo. A picaresca expedição de Popham a Buenos Aires, em 1806, é uma prova dramática das ansiedades comerciais e da res-

posta dinâmica: ali estava um comandante naval que se encarregou de zarpar com sua esquadra através do Atlântico, em tempos de guerra, a fim de roubar um pedaço do império espanhol para o comércio britânico. E, quando a Marinha de Sua Majestade mostrou-se ofendida e instituiu um processo na corte marcial, Popham salvou-se arregimentando a comunidade mercantil britânica em sua defesa.8

Já no período de 1819-21, 2/3 dos fios de algodão produzidos na Inglaterra eram vendidos no exterior, quer diretamente, quer sob a forma de tecidos; 3/5 dos tecidos comercializados em jardas eram vendidos da mesma forma. Sessenta anos depois, em 1880-2 , as proporções equivalentes foram de 84,9% e 81,6%. Os maiores aumentos ocorreram no Oriente: em 1814, menos de um milhão de jardas de tecidos foram em-barcadas para portos a leste do Suez; em 1830, essa cifra havia aumentado para 57 milhões de jardas; em 1815, para 415 milhões; e, em 1870, para 1,402 bilhão, ou cerca de 43% do total das exportações.9

Sem dúvida, nenhum outro grande produto dependia tão maciçamente de mercados estrangeiros quanto o algodão. Mas quase todos os artigos manufaturados exibiam as mesmas tendências: um aumento substancial do volume absoluto vendido no exterior e da proporção dessas vendas na produção total. Não temos estimativas diretas da proporção global das exportações ao longo do tempo, mas Schlote calculou a proporção entre um índice das exportações de produtos acabados e um índice da produção industrial (nos dois casos, 1913 = 100) que mostra uma subida de cerca de 45%, na década de 1820, para quase 90% no começo da década de 1870.'°

Essa extroversão sistemática da economia foi o principal motor da expansão persistente, embora espasmódica, do imperialismo britânico durante todo o século. Ate recentemente, os estudiosos inclinavam-se a subestimar o alcance dessa expansão. Permitiam-se confundir os princípios e até a política incorporados no lema "Pequena Inglaterra" com o desempenho; e, ainda mais grave, desprezavam aquilo que, do ponto de vista econômico, é a variedade mais importante e lucrativa da dominação imperialista - o controle sem formalidades." A verdade é que, durante esses anos, a Inglaterra não apenas anexou grandes áreas da índia, Oceania e África do Sul, como também sua esfera de influência comercial ampliou-se enormemente, passando a abarcar a maior parte da América Latina, da costa da África e do sul e leste asiáticos.

No último terço do século, entretanto, a expansão comercial havia-se alterado drasticamente. O monopólio cedera lugar à concorrência; a Inglaterra já não se destacava sozinha como a oficina do mundo. Isso sempre

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acontecera em relação a alguns artigos: os tecidos finos de algodão da AIsácia e da Suíça haviam-se equiparado aos de Lancashire desde o início do século XIX, enquanto os "merinos" franceses revelaram-se um rival reconhecidamente inimitável dos estames de Yorkshire. Mas, a partir de 1870, houve um aumento acentuado dessas exportações concorrentes, em particular as que vinham das nações industrializadas mais jovens - Alemanha, Estados Unidos e até a Índia e o Japão.

Os observadores comerciais ingleses do século XIX estavam habituados a se entregar a um joguinho que podemos chamar de "contar os fregueses", numa analogia com a contagem das galinhas e outros passatempos similares. Eles estimavam o número de pessoas de uma dada área, observavam seu consumo de produtos ingleses, em comparação com os mercados mais estabelecidos, e depois calculavam o lucro que resultaria de um possível aumento das vendas ate esse padrão hipotético. A China era um alvo favorito dessas suposições. Uma população de bem mais de 300 milhões de pessoas! Se seu consumo per capita de algodão inglês pudesse elevar-se até o nível indiano, calculou Ellison, as vendas totalizariam £25 milhões por ano, em vez dos £5 milhões de 1883. Nada ilustra melhor as implicações comerciais do surto de industrialização de retardatários, como a Índia e o Japão, do que o que aconteceu com esses devaneios. De 1885 a 1913, as vendas inglesas de fios na China caíram de 20 milhões de libras esterlinas para 2 milhões. Em 1905, a Índia, sozinha, vendeu ali 200 milhões de libras.12 A cifra japonesa foi de 156 milhões em 1913. A exportação total de fios e linhas deste país valia bem mais do dobro da que vinha da Alemanha, e cerca de 40% da do Reino Unido.13

Essa passagem do monopólio para a competição foi, provavelmente, o mais importante fator isolado a dar o tom da iniciativa industrial e comercial européia. O crescimento econômico passou então a ser também a luta econômica - uma luta que serviu para separar os fortes e os fracos, desencorajar alguns e endurecer outros, e favorecer as nações novas e ávidas à custa das antigas. O otimismo em relação a um futuro de progresso infindável cedeu lugar à incerteza e a um sentimento de agonia, no sentido clássico da palavra. Tudo isso fortaleceu e, por sua vez, foi fortalecido por rivalidades políticas que se aguçavam, fundindo-se essas duas formas de competição no surto final de avidez de terras e na caçada de "esferas de influência" que foram chamados de Novo Imperialismo.

De 1876 a 1914, as potências colonialistas do mundo anexaram mais de i I milhões de milhas quadradas de território. Esse foi o ponto culminante da expansão européia iniciada no século XI, nas planícies a leste do Elba, no

planalto de Castela e nas águas do Mediterrâneo. Politicamente, a conquista foi fonte de satisfação para muitos: o sol nunca se punha sobre a bandeira britânica. Economicamente, os resultados foram menos impressionantes. Já em 1870, pouco restava além do refugo: os melhores mercados já tinham sido formalmente anexados ou informalmente integrados na economia européia em expansão. Ainda havia lucros por realizar na África e, especialmente, na Ásia. De fato, a parcela das exportações enviada para essas áreas aumentou nas décadas subseqüentes. Mas, dada a pobreza desses países e suas baixas taxas de crescimento, sua demanda de produtos manufaturados era limitada: às vésperas da Primeira Guerra Mundial, as potências industrializadas do mundo ainda eram as melhores clientes umas das outras.

Mais ainda, eram suas próprias melhores freguesas: à medida que as potencialidades dos mercados externos foram diminuindo, o mercado interno adquiriu importância cada vez maior. E com razão. Ali estavam os consumidores mais ricos do mundo, e tanto seu número quanto sua riqueza estavam aumentando mais depressa que os das áreas mais atrasadas. De 1870 a 1910, a população da Europa elevou-se de 290 milhões para 435 milhões de habitantes, e a das principais nações industrializadas (o Reino Unido e a Ale-manha), de 72 milhões para 110 milhões, enquanto as rendas nacionais dobraram ou triplicaram. (A França, é claro, era uma exceção: sua população ficou praticamente inalterada.) Se os dias de fácil expansão comercial estavam terminados, e se era chegada a hora de cultivar a demanda em profundidade, não havia melhor lugar para trabalhar do que em casa.

Mais importante do que o crescimento do poder global de compra foi a mudança do padrão de consumo. A elevação sistemática da renda per capita, que atingia até as camadas mais baixas da população, liberou somas crescentes para a aquisição de produtos manufaturados em vez de alimentos, de confortos materiais em vez de gêneros de primeira necessidade.14

Diversos fatores reforçaram esse processo. Antes de mais nada, depois de 1875 os preços dos gêneros alimentícios caíram em relação aos demais, como resultado dos fluxos maciços de grãos provenientes das grandes planícies e estepes da América do Norte e do sul da Rússia, e das importações ainda maiores de carne da Argentina e de óleos e frutas de áreas tropicais e semitropicais. Foi preciso uma combinação de aperfeiçoamentos tecnológicos para possibilitar esse aumento e diversificação radicais do abastecimento de gêneros alimentícios na Europa: as ferrovias, que ligaram regiões agrícolas interioranas ao mar; o transporte marítimo mais eficiente, que levou a um aumento acentuado da capacidade e a uma queda correspondente das taxas de frete; as novas técnicas de cultivo, especialmente a lavoura

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irrigada em planícies desérticas; e os novos métodos de conservação de alimentos, entre eles o enlatamento e a refrigeração.

Essa concorrência dos produtores externos, por sua vez, provocou uma vigorosa resposta tecnológica de alguns setores da agricultura européia. Alguns países ou regiões voltaram-se para a especialização, optando pelos gêneros em que a natureza e as habilidades combinavam-se na produção de uma qualidade diferenciada, que desafiava a concorrência. A Dinamarca é o melhor exemplo disso, com seus produtos suínos e seus laticínios (o separador de nata foi a inovação vital neste último caso). Mas a Suíça e a França tinham seus queijos, e toda grande cidade tinha seu anel de hortas para fins comerciais. Ao mesmo tempo, os cultivadores obtiveram índices de produção muito mais altos por acre em todas as lavouras, mediante o uso extensivo de fertilizantes, especialmente os novos tipos minerais e artificiais e as importações orgânicas puras, como o guano peruano (outro dividendo da revolução nos transportes). O resultado foi o mais elevado padrão de alimentação que o mundo já havia conhecido. Pela primeira vez, o homem pôde dar-se o luxo de alimentar os animais com seu próprio sustento vital, os cereais, a fim de engordá-los para sua mesa.

Em segundo lugar, os mesmos aperfeiçoamentos dos transportes que tanto contribuíram para diminuir o custo dos gêneros alimentícios também funcionaram no sentido de reduzir o preço dos produtos manufaturados. Não só o processo de embarque tornou-se menos dispendioso, como também a criação de mercados realmente nacionais conduziu à eliminação das peculiaridades locais de gosto e, com isso, à economia da produção em massa.

Em terceiro lugar, as necessidades dos consumidores aumentaram sig-nificativamente. Houve, para começar, o processo sistemático de urbanização, que apresentou a milhões de camponeses um estilo de vida mais expansivo. E esse apetite de bens materiais tampouco se restringiu apenas aos que se estabeleceram nas cidades. Lenta, mas inexoravelmente, ele seduziu o homem do interior, tradicionalmente abnegado a ponto de chegar à avareza. Alguns, visitando a cidade, principalmente graças às ferrovias, nunca voltaram a ser os mesmos; e alguns sentiram necessidade de imitar os primos citadinos, fosse em nome da auto-estima, fosse para enfrentar a con-corrência de uma vida mais confortável e variada, em nome da lealdade dos filhos, namoradas e esposas. Visto em linhas gerais, o processo foi dolorosamente lento e desigual: o atraso material da maioria das propriedades rurais continua a ser um problema ainda hoje. E foi inevitavelmente errático: o mesmo camponês que vendia seu queijo e comia coalho, que criava

abelhas para não ter que comprar açúcar e que fazia o terno dominical durar a vida inteira, era capaz de comprar para si um relógio de pulso, dar um pingente de ouro à sua filha, deixar seu filho visitar uma cidade de veraneio ou permitir que sua mulher decorasse a casa.15 (Em tudo isso, a influência predominante das mulheres e crianças sobre o consumo, tendência esta que persiste até hoje, foi evidente.) A longo prazo, entretanto, esse "efeito do exibicionismo" interno foi, provavelmente, o fator mais importante - mais importante do que a elevação da renda no desenvolvimento de um mercado de consumo superior (adaptando o termo de W.W. Rostow), ou seja, de um corpo de consumidores aptos e dispostos a comprar acima da linha da necessidade.

Mais uma vez, os processos econômicos e sociais mais amplos muito deveram à inovação tecnológica - nesse caso, à introdução de novos métodos de distribuição varejista. Foram essas as décadas que assistiram ao espetacular desenvolvimento das lojas de departamentos e das cadeias de lojas (magazines com sucursais), com todos os seus recursos associados para tentar o consumidor: preços fixos, direito de devolução gratuita das mercadorias, embalagens padronizadas, encomendas através de catálogos, vitrines eficazes, liquidações periódicas e propaganda.16 E a estes convém acrescentar os esforços dos comerciantes e industriais para aumentar o próprio mercado, cultivando mudanças consonantes com a moda e firmando a reputação de marcas registradas e nomes comerciais.

Tudo isso foi ainda mais importante em virtude da relação entre a nova tecnologia industrial e o caráter do consumo. Como veremos, os grandes avanços dessas décadas - aço barato, indústria de precisão, energia elétrica - possibilitaram toda uma nova gama de bens de consumo, ou o que agora chamamos bens de consumo durável: a máquina de costura, relógios baratos, bicicletas, iluminação elétrica e, eventualmente, eletrodomésticos. A conseqüente expansão da produção após o rápido incremento inicial, primordialmente baseado nos bens de capital e no complexo de demandas associadas às ferrovias, só foi possível nesse novo tipo de mercado-não ligado à subsistência básica.

O rigor da competição pelos mercados externos e a importância concomitantemente crescente da demanda interna levaram a uma intensa reação contra a liberdade econômica, e portanto, contra a insegurança de meados do século. A liberalização do comércio mal fora atingida quando a maré se inverteu. Na França, a agitação contra a nova política de baixa proteção nunca desapareceu; desde o início, os representantes dos interesses indus triais deixaram o protocolo de lado e denunciaram o acordo com a Inglater-

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ra como um ato arbitrário abusivo e até fraudulento. (Em certo sentido, o Império começou a morrer em janeiro de 1860.) Todos os males da indústria francesa foram imputados "ao Tratado"; todos os sucessos eram obtidos apesar dele. A campanha pelo retorno do protecionismo fortaleceu-se com a crise de 1867, obteve alguns pequenos sucessos nos primeiros anos da Terceira República e, finalmente, atingiu seu objetivo com a aprovação da tarifa de Méline em 1892. Na Alemanha, a depressão da década de 1870 e o desejo de Bismarck de obter o apoio da nova aliança formada entre os industriais e os aristocratas levaram à rejeição, em 1879, da política tradicional de tarifas baixas, que havia atingido seu auge com a livre importação de ferro-gusa em 1873. A Itália adotou uma proteção elevada em 1887; a Áustria e a Rússia retornaram a ela em 1874-5 e em 1877, respectivamente; a Espanha estabeleceu novas tarifas em 1877 e 1891; e assim por diante, na Europa inteira. No exterior, as tarifas de importação norte-americanas tenderam a subir a cada nova lei tarifária a partir da Guerra Civil. Até na Inglaterra, a confiança no livre comércio ficou abalada. A interdependência comercial dessas economias cada vez mais especializadas multiplicou o impacto desses aumentos; cada ação trazia suas reações, até que as tarifas alfandegárias passaram a ser estipuladas tanto para fins de barganha quanto de proteção. A espiral continuou subindo, com poucas pausas ou inversões, até que as limitações da guerra fizeram com que essas restrições anteriores se assemelhasem à liberdade.

Paralelamente a essa encapsulação dos mercados nacionais, houve esforços para minizar a concorrência internacional. Os cartéis de controle dos preços e da produção - uma instituição que remontava ao século XVII ou antes (cf. a Venda de Newcastle) - começaram a se multiplicar, especialmente depois de períodos de depressão, prolongada ou aguda. Caracteristicamente, eles eram encontrados em indústrias como as de carvão, ferro ou produtos químicos, onde a homogeneidade do produto facilitava a especificação de quotas e preços, os vultosos requisitos de capital geravam importantes economias de escala, o número de empresas concorrentes era conseqüentemente pequeno e o ingresso era difícil. Os cartéis tiveram seu número e eficiência máximos na Alemanha, onde a psicologia empresarial, a estrutura da indústria, as instituições legais (os cartéis podiam fazer valer seus contratos nos tribunais) e a proteção tarifária contra os intrusos combinaram-se, todos, para promover acordos de restrição do comércio.

Os cartéis foram menos importantes na França, por razões que podem ser deduzidas da análise de seu sucesso na Alemanha. Em primeiro lugar, a indústria leve era muito mais importante ali do que a pesada, e a firma

familiar, com seu apego à independência empresarial, ocupava um lugar de peso, mesmo nos ramos industriais com elevado coeficiente de capital. Em segundo, a ênfase na diversidade e na diferenciação dos produtos dificultava o controle grupal. Por último, e mais importante, a indústria francesa mantinha, desde longa data, limites tácitos à competição, que tinham mais ou menos a mesma eficácia dos contratos formais. Não apenas o empresário, como também o trabalhador e, a rigor, a sociedade em geral encaravam a guerra de preços como essencialmente desleal (déloyale) e subversiva. E, dada a situação de oligopólio abrandado que era característico de muitas indústrias umas poucas empresas grandes e eficientes em meio a um enxame de firmas pequenas e atrasadas -, esses sentimentos moralistas eram reforçados por recomendações de prudência: a competição vigorosa só poderia convidar a retaliações por parte de rivais tão grandes e poderosos quanto a empresa que a praticasse. Em suma, a França não precisava de cartéis. Chegou realmente a desenvolver alguns, em particular na fabricação de ferro e aço. Mas o papel deles foi mais de conveniência do que de influência.

A indústria britânica viu-se numa situação confusa em matéria de integração. Em primeiro lugar, os complôs para restringir o livre comércio eram proibidos pelo direito consuetudinário; no entanto, os cartéis remontavam a séculos antes na Inglaterra, e foi Adam Smith que escreveu: "As pessoas de um mesmo ramo raramente se reúnem, mesmo para o prazer e o divertimento, sem que a conversa acabe numa conspiração contra o público ou em algum estratagema para elevar os preços." Em segundo lugar, a ausência de barreiras tarifárias era um grave obstáculo à fixação dos preços ou da produção num regime de conluio; entretanto, os custos de transporte ou as vantagens locais da produção serviam para proteger alguns setores, regional ou nacionalmente, e para tornar sua integração lucrativa. Por fim, a estrutura da empresa, ao contrário da que havia na Alemanha, era pouco adequada à cooperação formal; a maioria das firmas, mesmo as que eram nominalmente sociedades anônimas, tinha um caráter privado e um comportamento independente; além disso, havia pouca integração vertical ou controle bancário. No entanto, tal como na França, havia também uma forte tendência para o tipo de acordo de cavalheiros que torna os cartéis desnecessários.

Com essas forças contraditórias em ação, a Inglaterra desenvolveu uma tendência branda para uma integração branda. Surgiram cartéis na metalurgia, na moagem, na indústria química e na fabricação de vidro, mas eles foram menos rígidos do que seus análogos alemães, tiveram um caráter

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menos compulsório, foram menos eficazes em épocas de contração e mostraram-se menos duradouros. Os intrusos estrangeiros sempre constituíram um problema. Assim, a Associação Britânica de Fabricantes de Vidro, altamente eficiente, teve seus esforços de manutenção dos preços no mercado interno continuamente prejudicados pela concorrência belga. As propostas de estabelecimento de um acordo internacional foram desconsideradas durante décadas, até que os distúrbios trabalhistas do início da década de 1900 convenceram os produtores belgas de que a segurança trazida pela união mais do que compensava as restrições. Tal como finalmente criado, o Convênio do Vidro para Espelhos de 1904, o mais exitoso dos cartéis internacionais do vidro, incluiu não apenas o Reino Unido e a Bélgica, mas também a Alemanha, França, Itália, Austro-Hungria e Holanda. Acordos similares foram negociados em campos como a fabricação de trilhos e o tabaco, onde, por estar o grosso da demanda no exterior, ou em virtude de o valor em relação ao peso ser tão elevado que os custos de transporte não ofereciam nenhuma proteção, os acordos nacionais eram ineficazes. Grosso modo, esses cartéis internacionais funcionavam bem enquanto havia acordo, mas mostravam pouca resistência à dissenção e à ruptura; sua história tem um ritmo alternado de vigência e não-vigência. 18

À parte os cartéis, ou seja, as associações de empresas independentes, havia também vários "trustes" instituições monopolistas, ou de pretensões monopolistas, que agrupavam uma parcela considerável das empresas produtoras de determinado ramo em vários graus de amalgamação. Em alguns casos, essas coalizões eram simplesmente o que os alemães chamam de Interessengemeinschaft:* cada participante preservava sua autonomia, e a direção central era fornecida por um colegiado as vezes difícil de manejar, cuja influência dependia da boa vontade das empresas-membros. A primeira English Sewing-Cotton Company [Companhia Inglesa de Linhas de Algodão (1897) e a Calico Printers Association [Associação dos Estampadores de Algodão (1899) foram desse tipo. Outras eram verdadeiras fusões, como a União Salina de 1888, que afirmava controlar 91% da produção de sal do Reino Unido, ou a Companhia Unida de Álcalis, formada em 1891 num derradeiro esforço dos produtores que usavam o método de Leblanc para se sustentarem contra a concorrência do processo de Solvay.

Os trustes foram a resposta da Inglaterra a integração e à concentração da indústria alemã. De modo geral, uma resposta precária: surgiram nas *Comunidade de interesses. Em alemão no original. (N. da T.)

indústrias erradas, ou, quando nas certas, pelas razões erradas; muitas vezes, eram fundados por agentes promocionais, e não por produtores, e a supervalorização inicial do capital onerava o desempenho posterior; a própria multiplicidade de seus membros complicava sua tarefa e, também nesse caso, a falta de proteção tarifária expunha os membros prósperos às incursões dos intrusos - o sucesso era quase tão perigoso quanto o fracasso.

Não é fácil isolar as conseqüências dessa nova versão comercial do movimento de enclosure [demarcação de terras] e a multiplicidade de outros fatores que determinaram o caráter e o volume do comércio mundial; tampouco se prestam a generalizações simplistas. A volta do protecionismo desestimulou algumas formas de intercâmbio internacional, mas serviu para estimular a rivalidade nos mercados abertos. Similarmente, os cartéis contribuíram para restringir a competição e estabilizar os preços e a produção até certo ponto, mas seu próprio sucesso alimentou ambições que levaram a rupturas eventuais e a flutuações maiores do que antes. Mesmo quando os acordos eram mantidos, o esforço de cada um dos membros no sentido de garantir quotas maiores amiúde estimulava um desenvolvimento mais rápido da capacidade do que a livre concorrência teria produzido, ou do que uma política racional de investimentos, baseada no retorno esperado, teria justificado. Em última análise, entretanto, esses novos arranjos institucionais nos interessam como esforços para curar - e portanto, como indícios de - um mal-estar interno. O fato de nem sempre terem cumprido sua finalidade não deve causar surpresa.

Qual é, pois, a significação mais ampla dessa profusão de inovações, ora mutuamente reforçadoras, ora contraditórias? A resposta parece residir no vívido termo de Phelps-Brown, "climatério" - só que aplicado não apenas à Inglaterra, mas à economia mundial como um todo, e primordialmente concebido em termos das relações das economias nacionais entre si. O que temos, em suma, é uma passagem da monarquia para a oligarquia, de um sistema industrial uninacional para outro multinacional, ou, se quisermos preservar a metáfora biológica, de um organismo unicelular para um multi-celular. O fato de essa mudança de vida ter coincidido com uma transformação tecnológica igualmente fundamental só fez complicar o que era, intrinsecamente, uma adaptação difícil - tão difícil, na verdade, que os mais decididos esforços dos homens mais sensatos não conseguiram aplacar os ressentimentos e inimizades nascidos do equilíbrio conseqüentemente alterado do poder político. Os estudiosos marxistas da história têm costumado encarar as rivalidades internacionais que precederam a Primeira Guerra Mundial como a derrota de um sistema em processo de declínio e dissolu-

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ção. A verdade é que essasforam as dores de crescimento de um sistema em processo de germinação.

Não foi a primeira vez que a economia mundial, como sistema interatuante, passou por esse climatério. Uma crise comparável fora concomitante ao avanço da Inglaterra em direção a uma ordem industrial moderna. Também nessa ocasião, como vimos, o equilíbrio do poder econômico e político tinha-se alterado drasticamente, impondo um severo desafio a todas as nações que aspiravam a participar do concerto das potências de primeira classe. O fato de as conseqüências internacionais não terem sido tão desafortunadas quanto viriam a ser durante o climatério seguinte reflete, em parte, algumas consideraçõés mercadológicas: de um lado, no período anterior, a existência de uma demanda mundial ainda inexplorada e altamente elástica de produtos manufaturados, e de outro, as oportunidades de interação frutífera entre o grande centro produtor isolado e seus rivais ainda principiantes.

Se o climatério do fim do século XIX não foi o primeiro desse sistema internacional, tampouco foi o último. Tanto quanto o historiador é capaz de compreender sua própria época, parecemos estar agora atravessando mais uma mudança de vida, novamente acarretada pelo ingresso, na disputa, de um novo grupo de nações industrializadas e em processo de industrialização, sendo a mais importante dentre elas a Rússia soviética. Desta vez, porém, o problema da adaptação é agravado por diferenças fundamentais de estrutura e organização sociais entre o velho e o novo. Na verdade, os recém-chegados estão competindo com as nações industrializadas mais antigas menos em termos econômicos do que políticos, e os esforços econômicos não são direcionados para a busca da riqueza, com as conseqüências políticas lamentáveis que isso possa ou não implicar, mas para a busca do poder, com resultados mais provavelmente desastrosos. Aqui, uma certa reserva melancólica e ansiosa, além da prudência costumeira do historiador, desaconselha qualquer tentativa de predição.

Com esta breve alusão ao desafortunado presente, inserida apenas para completar a lógica desta análise, podemos voltar-nos com alívio para os detalhes anódinos da história da tecnologia.

Nas últimas décadas do século XIX, o avanço tecnológico prosseguia numa frente tão ampla, nas indústrias mais antigas, que a tarefa do historiador fica imensamente complicada. E isso, por sua vez, contribui muito para explicar por que esse tema tem sido negligenciado.19 O progresso amplo, como observa Rostow, é a marca da maturidade: as inovações básicas difun-

dem-se do pequeno grupo de indústrias que se acham no cerne da revolução para o restante do setor produtivo. Nessa situação, teremos de abandonar nossa concentração em alguns focos selecionados de transformação. Em vez disso, tentaremos organizar os dados do progresso tecnológico em linhas analíticas, agrupando-os de acordo com o princípio, e não com a área de aplicação: (a) novos materiais e novas maneiras de preparar materiais antigos; (b) novas fontes de energia e força; (c) mecanização e divisão do trabalho.

A ordem escolhida não indica importância relativa, já que não ha maneira de avaliar o impacto de cada um desses elementos na produtividade geral. Minha intenção é, antes, conciliar tanto quanto possível o esquema analítico, que em certo sentido é intemporal, com a seqüência cronológica da transformação tecnológica, de modo a que o leitor não perca o fio da história econômica qua história. Por essa razão, o grosso do espaço será destinado aos tópicos (a) e (b), pois eles se prestam melhor à descrição como um processo, um desenvolvimento através do tempo. Mais do que os outros, além disso, eles permitem ao historiador introduzir as questões gerais do crescimento econômico comparado, que são o leitmotif deste capítulo.

NOVOS MATERIAIS O tema dos novos materiais e das novas maneiras de produzir antigos materiais apresenta muitas faces. Se fôssemos acompanhá-lo até seu limite, ele nos faria penetrar em todos os ramos da indústria. A bem da economia, entretanto, vamos concentrar-nos em dois temas: a invenção e disseminação do aço barato e a transformação da indústria química.

A idade do aço

O homem é um animal denominador. Adora pespegar rótulos às coisas. E ninguém é mais prolífico em matéria de nomenclatura do que o historiador, que não consegue resistir à oportunidade de designar cada setor cronológico de sua matéria por um título vigoroso - o Século das Luzes, a Era dos Bons Sentimentos, a Idade da Reforma -, em parte por conveniência pedagógica ou heurística, em parte por um efeito proclarnatório, e em parte como um substituto da compreensão.

Temos, pois, a Idade do Aço. Trata-se de um dos melhores desses títulos-lemas. Se tivéssemos que destacar o traço primordial da tecnologia do

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último terço do século XIX, ele seria a substituição do ferro pelo aço e o aumento concomitante do consumo de metal per capita.

É lugar-comum observar que a indústria moderna se constituiu (e, a rigor, continua a ser construída, mesmo após o desenvolvimento dos plásticos e do concreto) sobre uma estrutura de metal, particularmente o metal ferroso. Vale a pena fazermos uma pausa, entretanto, para examinar por que isso foi e é assim. A resposta encontra-se menos nas características isoladas do metal, algumas das quais estão presentes em outros materiais, do que na combinação delas, que é única, e da qual, até hoje, nenhum outro produto da engenhosidade humana se aproximou.

As vantagens mais destacadas são três: grande força em relação ao peso e ao volume, plasticidade e dureza. A primeira está implícita na elasticidade do metal, isto é, em sua resistência às várias formas de compressão tênsil (inclusive o tipo conhecido como percussão), estiramento e vergadura ou torsão. Nem mesmo um material tão notável quanto o concreto reforçado ou protendido, leve em relação ao volume e capaz de desempenhos surpreendentes como elemento de contenção ou suporte de estruturas fixas, consegue competir com o metal quando a economia de espaço e o movimento são considerações importantes. Nos primórdios da Revolução Industrial, quando as técnicas de metalurgia eram rudimentares e os artesãos empregavam voluntariamente quaisquer materiais substitutos que se oferecessem - em especial a madeira, mas também o couro e a corda, dependendo do uso -, as partes mais importantes das máquinas, como os fusos, por exemplo, já eram de ferro. E não se passou muito tempo para que tudo, inclusive a armação, fosse feito dessa maneira. Nenhum material melhor para as peças articuladas foi descoberto desde então.

A superioridade do ferro nessas utilizações decorre de sua força excepcional - maior que a dos outros metais - e de sua plasticidade e rigidez. Ele pode ser modelado sem perda significativa da elasticidade - martelado (maleabilidade), trefilado (ductilidade), cortado, cunhado e perfurado; limado e esmerilhado; fundido e moldado. E pode ser processado com precisão: nele se pode fazer um talhe preciso, um furo uniforme, uma impressão nítida. Por fim, ele preserva bem sua forma sob o efeito do atrito e do calor: o gume continua liso e, quando necessário, afiado; os furos continuam uniformes; a impressão permanece nítida.

Como resultado dessa íntima ligação entre os metais ferrosos e as máquinas, o consumo de ferro per capita sempre foi uma das medidas mais exatas da industrialização. Já tivemos oportunidade de assinalar o precoce "temperamento ferruginoso" dos ingleses no século XVIII. A introdução da

pudlagem e da laminação acentuou essa tendência, que era fonte permanente de assombro para os visitantes oriundos de terras mais pobres. Foi o caso do siderurgista francês Achille Dufaud, de Fourchambault, em 1823 : "Dizem que o consumo interno é de 110.000 toneladas; é uma quantidade assombrosa, mas, quando se percorre a Inglaterra, não parece inacreditável.20 Passada apenas uma geração, em 1849, ela consumia talvez quinze vezes mais.

O aço é um tipo superior de ferro. Possui todas as vantagens acima atribuídas ao metal, e especialmente ao metal ferroso, em grau mais elevado. Quimicamente, os dois se distinguem pelo teor de carbono: ferro-gusa, 2,5-4%; aço, 0,1% a cerca de 2%; ferro forjado, menos de 0,1%. Quanto mais alto o teor carbônico, mais duro o metal; quanto menor o carbono presente, mais ele é macio, maleável e dúctil. A tenacidade atinge seu auge a aproximadamente 1, 2% de carbono, na zona do aço, e depois diminui rapidamente até 3%. Como resultado, o ferro-gusa é duro, mas é também quebradiço. Não pode ser processado sem partir, e tem que ser moldado para poder ser usado. Além disso, não suporta a tensão, e por isso se presta apenas à fabricação de coisas como panelas de cozinha, radiadores ou blocos de motores, nas quais a compressão e a torsão são insignificantes. O ferro forjado, por outro lado, pode tornar-se tão macio que é possível trabalhálo manualmente. Na Índia, os ferreiros testam seus pregos vergando-os na testa. Pela mesma razão, entretanto, o ferro forjado é extremamente suscetível ao desgaste causado pelo uso, altera-se facilmente com o impacto e oferece baixa resistência à distensão ou à vergadura. Onde o ferro-gusa racha ou quebra, o ferro forjado cede.

O aço combina as vantagens de ambos. É duro, elástico e deformável. Pode ser esmerilhado até obter um gume afiado, e depois mantê-lo; nenhuma outra coisa presta-se tão bem para cortar e fresar outros metais. Sua resistência ao impacto e à abrasão torna-o ideal para martelos, bigornas, -limas, trilhos e outros objetos sujeitos à percussão ou ao desgaste. Sua força, proporcionalmente ao peso e ao volume, possibilita máquinas e motores mais leves, menores e, ainda assim, mais precisos e rígidos - portanto, mais rápidos. A mesma combinação de compacidade e força faz do aço um excelente material de construção, especialmente na construção naval, onde o peso da embarcação e o espaço deixado para a carga são de importância fundamental. 21 Os metalurgistas da Antiguidade tinham conhecimento das peculiaridades do aço. Os antigos fornos de lingotes, que faziam o ferro maleável di-retamente a partir do minério, produziam uma massa de metal heterogêneo

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cujo grau de descarbonização variava conforme a eficiência da oxidação e o contato com o combustível. A maior parte do lingote era de ferro doce ou forjado (fer doux), mas uma parte, especialmente a matéria que ficava na superfície ou próxima dela ( o f e r fort), tinha a qualidade do aço ou até do ferro-gusa.

A reação dos ferreiros primitivos era rejeitar como imprestável esse material rebelde. Com o tempo, entretanto, as virtudes do aço foram sendo reconhecidas, especialmente na produção de ferramentas de corte e armas. Em algum lugar e em algum momento do mundo antigo, os ferreiros aprenderam a produzir deliberadamente o aço, em vez de aceitar o que era acidentalmente gerado na fabricação das barras. A principal técnica empregada era a carbonização do ferro doce por cementação, isto é, por sua imersão, a uma temperatura elevada, num banho sólido de matéria carbonífera; o resultado era o que passou a ser conhecido como aço de bolha, assim chamado por causa do empolamento característico da superfície quando a carbonização se completava. Uma alternativa, menos satisfatória, era o metodo direto de interromper o processo de separação antes que o carbono fosse inteiramente eliminado pela combustão.

Pela natureza do processo de cementação, em que o metal quente, mas sólido, absorvia seu carbono de fora, o aço de bolha era de qualidade irregular, indo desde o aço doce (na parte mais interna) até o ferro (na superfície). Era possível obter maior homogeneidade quebrando o aço de bolha em pequenos fragmentos, envolvendo-os num revestimento e martelandoos juntos sob o calor da solda, assim distribuindo mais igualmente o carbono pela massa e gerando o que veio a ser conhecido como aço cisalhado. As barras resultantes podiam então ser vergadas em duas, repetindo-se o pro-cesso de martelamento tantas vezes quantas necessárias para obter a qualidade desejada. Na Inglaterra, um martelamento era considerado suficiente para a maioria das finalidades, e o aço cisalhado malhado duas vezes era tido como o melhor que se produzia. Na Alemanha, a habilidade artesanal foi levada mais longe, e o chamado viermal raf nierter Stahl * consistia em barras duras e fortes que consolidavam, em seu perfil de 30 centímetros, cerca de 320 camadas separadas de aço a carvão vegetal.

Esse tipo de trabalho levava tempo: uma a duas semanas para concluir a cementação e vários dias de trabalho de forja depois disso. Ademais, o aquecimento e o martelamento alternados exigiam um dispêndio fabuloso * Aço quatro vezes refinado. Em alemão no original. (N. da T.)

de combustível. Não surpreende que o aço de qualidade superior fosse um produto caro, que chegava a custar várias centenas de libras esterlinas por tonelada. Na verdade, esse era um metal vendido e usado, em quantidades mínimas, na fabricação de pequenos objetos de alto valor em relação ao peso, especialmente navalhas de barbear, instrumentos cirúrgicos, lâminas, tesouras, lixas e limas grossas. Mesmo o aço de bolha comum era caro demais para ser usado em quantidade: a lâmina da foice do camponês - quando ele podia arcar com o preço de uma foice - geralmente consistia numa superfície de aço soldada sobre o núcleo de ferro. A única área em que havia pouca ou nenhuma parcimônia era a fabricação de armas: o homem raramente usa subterfúgios no que tange ao custo dos instrumentos da morte.

Era essa a situação da tecnologia do aço às vésperas da Revolução Industrial. A primeira grande inovação nessa área, desde a invenção anônima e imemorial da cementação, foi a técnica do cadinho de Huntsman (1740-2), que gerou melhoras decisivas na qualidade do produto. Huntsman tomou o aço de bolha, conseguiu uma temperatura suficientemente alta para fundi-lo em pequenos recipientes, junto com um fluxo de carbono e outros metais, retirou a película de escória e verteu-o. O resultado foi (1) um aço mais puro, pois a separação natural entre a matéria imprópria e o ferro derretido era muito mais eficaz do que jamais conseguiria ser a eliminação das impurezas por martelamento ou compressão, e (2) um aço mais homogêneo do que seria possível obter pelo martelamento do metal sólido na bigorna (compare-se a diferença entre bater massas moles e preparar massa de pão).

O aço de cadinho era mais duro e resistente até do que o melhor aço cisalhado; seu único ponto fraco era que ele não podia ser tratado com mais do que o aquecimento ao rubro, e portanto, era difícil de usinar, especialmente com as ferramentas do século XVIII. (Evidentemente, podia ser moldado.) Além disso, nos primórdios do monopólio ou quase-monopólio de Huntsman, seu preço era mais alto que o do aço cisalhado, apesar da economia de mão-de-obra resultante da eliminação do trabalho repetitivo de forja. Em decorrência disso, os ferreiros mostraram-se hostis, e o uso do novo metal ficou limitado aos objetos em que o preço da matéria-prima era uma fração desprezível do custo total - peças de relojoaria, por exemplo, e as ferramentas de corte mais finas. Ele só se impôs realmente depois de 1770.

Com o tempo, entretanto, a entrada de concorrentes fez o preço baixar. O efeito do monopólio pode ser avaliado, em parte, com base na experiência francesa: em 1815, o aço moldado tinha que ser importado da

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Inglaterra a £700 ou £ 800 por tonelada; em 1819, após a instalação de fábricas em Badevel (Doubs), por Japy, e nas imediações de Saint-Etienne, por James Jackson (inglês, como indica o nome), o preço foi de £140.22 Os aperfeiçoamentos da técnica conduziram ao mesmo resultado. Os produtores aprenderam a trabalhar com ingredientes mais baratos, a começar pelo ferro forjado, por exemplo, e ir chegando ao aço através da adição de carbono em pó. Em meados do século XIX, os siderurgistas suecos misturavam ferro-gusa e minério de ferro com carvão vegetal e vendiam o produto a £50-£60 por tonelada.

A técnica do cadinho tinha uma vantagem adicional, que abriu as portas para a moderna tecnologia do aço: ela possibilitava - de forma implícita, no início, e de forma efetiva em meados do século XIX - a fabricação de peças grandes. Não é que fosse possível fazer cadinhos muito grandes: eles tinham, inicialmente, talvez 9 a 11 polegadas de altura - o tamanho de um vaso - e, decorrido mais de um século (em 1860), ainda atingiam uma altura de apenas cerca de 16 polegadas; é possível que contivessem 45 a 6o libras-peso, embora, ocasionalmente, se usassem tamanhos maiores. Mas eles podiam ser aquecidos e vertidos en masse, ou melhor, em estreita sucessão; e, com o tempo, os fabricantes aprenderam a coordenar o trabalho de um pequeno exército de homens, que despejavam centenas de cadinhos, para produzir lingotes de muitas toneladas. Krupp foi o pioneiro nessa área, e seu cilindro de 2,25 toneladas foi a sensação da Exposição do Palácio de Cristal; mal decorrida uma geração, em 1869, Vickers usava 672 cadinhos de uma vez para fabricar peças dez vezes mais pesadas.23

Os produtos desses tours de force destinavam-se a ser broqueados como canhões; ao preço de £100 ou mais por tonelada, os grandes lingotes de aço de cadinho eram excessivamente caros para os fins industriais comuns. Todavia, as vantagens do aço sobre o ferro forjado eram patentes, e considerável dinheiro e esforço foram empenhados na tentativa de descobrir um método de produção de aço barato em grande quantidade.

O primeiro passo foi o desenvolvimento do aço pudlado; a principal contribuição foi feita no início da década de 1840 por dois técnicos alemães, Lohage e Bremme. O princípio era simples: se o processo de pudlagem era capaz de separar o ferro-gusa, transformando-o em ferro forjado livre de carbono, por que não interrompê-lo antes de sua conclusão, enquanto ainda havia carbono suficiente no metal para fabricar aço? A execução foi outra história. Era particularmente difícil saber quando o aço estava pronto, mas não cozido demais, e a temperatura tinha que se manter suficientemente alta para derreter o ferro-gusa, mas baixa o bastante para permitir que o aço

se separasse como uma massa pastosa, em virtude de seu ponto de fusão mais elevado. O resultado era que o aço pudlado raramente era tão homogêneo e resistente quanto o aço de cadinho, ou tão duro quanto o aço cisalhado. Muitas vezes, era simplesmente um substituto do aço cisalhado ou do ferro no processo do cadinho. Por outro lado, ele era barato - na década de 1850, era vendido na Alemanha por cerca de £22 por tonelada - e podia ser produzido em grandes volumes para utilizações pacíficas, como pneus, rodas, engrenagens e eixos de transmissão. O processo foi adotado com mais rapidez no Continente do que na Inglaterra, onde o mi-nério, aparentemente, produzia um gusa impuro demais para servir de base para a fabricação de aço por pudlagem.24 Na França, o novo metal superou todas as outras formas de aço em termos de importância em 1857; as cifras alemãs não permitem uma comparação similar (o aço pudlado e o cisalhado aparecem juntos), mas é provável que o ano decisivo tenha ocorrido pelo menos com a mesma precocidade. 25

Na falta de coisa melhor, o aço pudlado teria sido o mais próximo do aço produzido em massa - os custos acabaram sendo comprimidos para cerca de £ 1 o por tonelada -, não fosse pela invenção dos processos de Bessemer e Siemens-Martin, em suas variações ácida e básica. (i) Bessemer. Mais uma vez, a inspiração veio das armas. Henry Bessemer (1813-1898), que não era metalurgista, mas uma espécie de experimentador de alta classe, já abastado por sua engenhosidade e versatilidade, concebeu, no início da década de 1850, um projétil de artilharia que requeria um canhão excepcionalmente longo e forte. O problema era produzir aço suficientemente barato para viabilizar, em termos orçamentários, a produção em massa de peças tão grandes. (Até os militares torceram o nariz diante do custo, consideradas as técnicas de aceração existentes.) Bessemer encontrou uma daquelas soluções que, depois de imaginadas, surpreendem por sua simplicidade. Em vez de refinar o ferro-gusa pela aplicação tradicional de calor na sua periferia, ele soprou ar dentro e através do metal fundido, usando o calor emitido pela própria oxidação para manter o ferro liquefeito.26 Como resultado, a descarbonização era extremamente rápida: três a cinco toneladas, nos primeiros tempos, em dez ou vinte minutos, em contraste com talvez 24 horas para se obter um volume equivalente de aço pudlado. 27 Um conversor Bessemer em pleno funcionamento praticamente entra em erupção com a súbita descarga de energia. É um pequeno inferno. Com suas chamas e suas fagulhas velozes, de tonalidade cambiante, ele é também uma das mais excitantes visões que a indústria tem a oferecer.

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A conseqüente economia de mão-de-obra e de matéria-prima (Bessemer deu ao artigo em que anunciou sua descoberta, em 1856, o título de "A fabricação de ferro sem combustível") possibilitou o primeiro aço capaz de competir em termos de preço com o ferro forjado - £7 (incluindo royalties de aproximadamente £1) por tonelada, contra cerca de £4 por tonelada para o ferro. Mas a adoção foi lenta. Por um lado, os siderurgistas e os usuários relutavam em admitir que a maior força e durabilidade do aço mais do que compensavam a diferença de preço remanescente; na verdade, o próprio advento do aço barato foi o bastante para mexer com os brios dos produtores de ferro forjado, estimulando-os a envidar esforços mais enérgicos. Por outro lado, o processo de Bessemer era cercado de dificuldades técnicas, sendo algumas o concomitante inevitável da inovação, e outras inerentes ao próprio processo.

A mais grave delas era a incapacidade de o conversor eliminar o fósforo, por combustão, juntamente com as outras impurezas do gusa; qualquer coisa acima de uma proporção diminuta desse elemento tornava o aço imprestável. Foi por mero acaso que Bessemer usou o tipo certo de gusa puro ao inventar sua técnica. (Compare-se isso com a sorte de Darby, 150 anos antes.) Seus produtores licenciados tiveram menos sorte: mal haviam iniciado a produção, tiveram que parar. O contratempo surgiu, nas palavras de Bessemer, "como um raio surgido do nada".

Recomeçou-se o trabalho com minérios de hematita, não fosfóricos. A dificuldade consistia em que eles eram mais raros e mais dispendiosos do que o minério de ferro comum. Em todo o mundo industrial, somente os Estados Unidos tinham um suprimento suficiente: aproximadamente metade da bacia do Lago Superior era não fosfórica. A Inglaterra tinha um grande depósito de hematita na área de Cumberland-Furness, que floresceu em virtude disso, mas, quase que desde o começo, ela teve de importar suprimentos adicionais da Espanha; os leitos de minério duro de ferro não fosfórico da região de Bilbao eram, provavelmente, os mais ricos da Europa. A Alemanha dispunha de pequenas quantidades no Siegerland, mas teve que suprir o grosso de suas necessidades a partir da Espanha e da Áustria. A França, que possuía apenas afloramentos dispersos de hematita na região central, teve que trazer minério do Elba e da Argélia para suplementar as importações vindas da Espanha. A Bélgica não tinha nada. Não surpreende que o uso da técnica de Bessemer tenha-se desenvolvido devagar no Continente e que, quase uma década após sua invenção, o aço pudlado continuasse a predominar.

(2) Siemens-Martin. O segundo grande avanço na fabricação de aço sim-

plesmente enfatizou de novo o problema do minério: o processo de Siemens-Martin também requeria ferro não fosfórico. Como o nome indica, a inovação foi dupla. O forno em si foi obra de Frederick e Wilhelm Siemens, irmãos e membros de uma família alemã que ficará registrada como a mais criativa da história. (O ramo principal da família, como veremos, foi de pioneiros nas comunicações e engenharia elétrica.) A originalidade do forno residia em sua utilização do princípio da regeneração, pelo qual os gases de oxidação desperdiçados eram usados para aquecer uma estrutura faviforme de tijolos refratários, a qual, por sua vez, superaquecia o ar e o combustível gasoso em combustão; ao mesmo tempo, a geração do gás necessário numa câmara separada possibilitava o emprego de carvão de qualidade inferior. O resultado foi a obtenção de temperaturas muito mais altas - o único limite imediato era a resistência do próprio forno - e uma economia substancial de combustível.

A contribuição potencial do princípio da regeneração não se restringiu à metalurgia; ele foi um método eficiente de produção de calor aplicável a qualquer processo industrial que consumisse energia. Sua estréia na fabricação do ferro ocorreu no forno a jato de ar quente de E.A. Cowper, um sócio de Siemens, em 1857; desde o início, ele produziu um jato de ar de 620°C, com isso aumentando a produção de gusa em 20%.28 O forno de revérbero concebido por Carl Wilhelm Siemens teve sua primeira utilização em 1861 , numa fábrica de cristal em Birmingham. Foram um fiasco os primeiros esforços para usá-lo na fabricação do aço, onde, ao lado do conversor de Bessemer, ele tinha a vantagem de conseguir derreter o gusa completamente (o forno de pudlagem produzia, no máximo, uma massa viscosa). O sucesso comercial só foi alcançado em 1864, quando Pierre Martin introduziu sucata no banho de imersão para facilitar o processo de descarbonização. Mesmo assim, a difusão teve que esperar até que os diferentes centros de produção de aço, cada qual usando suas próprias qualidades de minério, ferro e hulha, aprendessem por ensaio e erro a combinação de ingredientes adequada. Alguns usavam uma mistura que continha mais de 50% de sucata; outros acrescentavam apenas uma pitada de limalha de ferro; outros, ainda, usavam aço velho juntamente com o ferro, ou em vez dele; o próprio Siemens usava minério de ferro. O uso efetivo da técnica do forno Siemens-Martin data, realmente, da década de 1870.

(3) Aço básico. Em decorrência de sua situação favorável em termos de recursos naturais, a Inglaterra dominou a idade inicial do aço apesar de nenhum outro país ter mais interesses em jogo na antiga maneira de fazer as coisas. Até o fim da década de 1870, ela respondeu por mais de metade

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da produção dos quatro grandes países industrializados da Europa ocidental pelos processos Bessemer e Siemens-Martin. Essa deficiência dos países continentais numa nova situação tecnológica tinha, potencialmente, importância crucial em termos econômicos e políticos. Para a Alemanha, em particular, os grandes avanços das décadas de 1850 e 1860 foram substancialmente contrabalançados, e o novo equilíbrio do poder foi questionado. Obviamente, é difícil dizer o que teria acontecido se o problema do minério não tivesse sido solucionado (compare-se a questão do combustível na Inglaterra do século XVIII). A conjuntura não fornece nenhuma pista. Fica-se tentado a atribuir a gravidade da depressão da indústria siderúrgica alemã na década de 1870 - cinco anos no vermelho e uma queda de 19% da .produção, entre o auge e o ponto mais baixo - a razões estruturais: uma quase-inanição por falta de alimento. Admite-se que o declínio foi compartilhado, embora em menor grau, pela Inglaterra e também pela França e a Bélgica. Ainda assim, parece sumamente improvável que a espetacular ascensão do Reich a .uma posição de preeminência econômica na Europa, no final do século, tivesse sido possível sem uma indústria siderúrgica vigorosa, e é duvidoso que os siderurgistas do Ruhr pudessem florescer como o fizeram, se tivessem sido forçados a ir buscar sua matéria-prima na região do Mediterrâneo e no norte da Espanha, concorrendo com os produtores britânicos, já beneficiados pelos depósitos domésticos de hematita.29 A Lorena, é claro, longe do bom carvão de coque e dependente da minette barata, mas com alto teor de fósforo, teria saído da competição com o ferro forjado e o forno de pudlagem.

A resposta foi encontrada em 1878-9 por dois ingleses: Sidney Gilchrist Thomas, escriturário de ofício num tribunal de policia, e seu primo Sidney Gilchrist, químico numa usina de ferro galesa. Eles puseram calcário básico no ferro fundido, para que se combinasse com o fósforo ácido numa escória passível de ser retirada, e revestiram o conversor com matéria bá-

TABELA 9. PRODUÇÃO DE AÇO PELOS PROCESSOS BESSEMER E SIEMENS-MARTIN (FLUSSEISEN) - (em milhares

de toneladas)

1865 1869 1873 1879 Grã-Bretanha 225 275 588 1030 Alemanha , 99,5 161 310 478 França 40,6 110 151 333 Bélgica 0,65 2,9 22 111

a. Inclui Luxemburgo. Novas fronteiras a partir de 1893. Fonte: Beck, Geschichte des Eisens, V, p. 233 e 308.

sica, em lugar dos habituais tijolos siliciosos ácidos, para impedir que essa escória básica corroesse as paredes e tornasse a liberar fósforo dentro do metal. Era uma solução simples, baseada num princípio amplamente conhecido. O sucesso residiu na engenhosidade das disposições práticas – a combinação de fluxo e revestimento básicos - e, provavelmente, não foi por coincidência que a idéia ocorreu a um amador que abordou o problema com a mente aberta.30 Nesse aspecto, Thomas é comparável a Bessemer, que, apesar de toda a sua experiência como inventor profissional, não era um homem do aço. Mas, enquanto Bessemer havia feito seu trabalho uma geração antes, quando a química metalúrgica estava ainda em sua primeira infância, Thomas solucionou um problema que durante anos havia atraído a atenção de alguns dos engenheiros mais altamente preparados da Europa. Ele foi um dos últimos, e talvez o mais importante, da linhagem de experimentadores que fizeram a Revolução Industrial. Depois dele, os profissionais praticamente tomaram conta do terreno.

A invenção do aço básico foi um evento de alcance mundial. Thomas viu-se cercado de ofertas; os pleiteantes nem sequer o deixavam tomar seu desjejum em paz. Conta-se a história de que duas das principais empresas siderúrgicas alemãs enviaram representantes a Middlesbrough numa espécie de corrida da lebre e da tartaruga: quem não parasse para dormir venceria. A história talvez seja apócrifa, mas transmite um pouco da excitação da época. No fim, um punhado de gigantes industriais do Continente (Schneider, na França; Wendel, na Lorena alemã; e as siderúrgicas Hõrder-Verein e Rheinische, na Alemanha) alugaram os direitos de patente por somas que, embora não tenham sido tão inconseqüentes quanto pretende a tradição, foram uma esplêndida barganha; a maioria deles, por sua vez, sublocou-os a outros produtores. A fabricação comercial do aço Thomas começou no fim de 1879; em quatro anos, havia 84 conversores básicos em funcionamento na Europa ocidental e central (inclusive a Austro-Hungria), com uma capacidade de 755 toneladas. A produção de 1883 totalizou mais de 6oo.ooo toneladas; compare-se isso com a produção ácida de Bessemer, que levou bem mais de uma década para atingir esse nível. 31 A adaptação do processo ao forno Siemens-Martin teve quase a mesma rapidez.

(4) Aço versus ferro forjado. Juntos, os processos de Bessemer, SiemensMartin e básico empurraram o custo real do aço bruto uns 80% ou 90% para baixo, entre o início da década de 1860 e meados da de 1890 , e abriram os depósitos de minério de ferro da terra a uma exploração frutífera. As conseqüências podem ser acompanhadas na curva da produção, que se comporta, em sua íngreme tendência ascendente, como a de uma

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nova substância confrontada com uma demanda extremamente elástica. A produção conjunta da Inglaterra, França, Alemanha e Bélgica em 1861 - antes que o processo Bessemer se impusesse - foi de aproximadamente 125.000 toneladas; em 1870, a produção total talvez tenha atingido 385.000 toneladas; em 1913 , importou em 32.020.000 toneladas, ou um aumento de 83 vezes (10,8% por ano) ao longo do período de 43 anos.

Convém contrastar com isso o declínio do ferro forjado, que fora por muito tempo o sustentáculo da estrutura industrial. A princípio, a antiga forma maleável resistiu: era mais barata e, em países como a Inglaterra, havia uma fortuna investida em usinas de pudlagem. Além disso, a homogeneidade dos primeiros aços bessemerizados deixava a desejar, e mesmo a variedade produzida nos fornos de revérbero, antes de tudo mais dispendiosa, não era suficientemente boa para os usos mais exigentes - as grandes chapas laminadas, por exemplo. Tampouco se deve subestimar a força da inércia e do conservadorismo nessas questões o ceticismo do Almirantado britânico, a relutância dos ferroviários franceses em admitir que os trilhos de aço podiam durar mais que os de ferro, numa proporção de seis para um. Em pouco tempo, entretanto, os fabricantes de aço aprenderam a corrigir as falhas de seu produto, e os aumentos de eficiência eliminaram uma fração suficiente da diferença de preços para tornar impossível a concorrência na maioria das aplicações. As ferrovias foram os primeiros grandes consumidores (depois dos militares, é claro) a adotar o novo metal. A mudança estava substancialmente consumada na década de 1870; foi es-timulada pela razão decrescente entre os preços dos trilhos de aço e de ferro- 2,65:1 em 1867, 1,50:1 em 1871 e 1,16:1 em 1875.32 Em contraste, a construção naval, que estabelecia padrões mais altos, sob o olhar vigilante de seguradoras como o Lloyd's, só começou a aceitar aço em lugar do ferro no fim da década de 1870. Em 1880, 38.000 toneladas de embarcações feitas de aço foram acrescentadas ao cadastro do Reino Unido, contra 487.000 toneladas feitas de ferro. Cinco anos depois, o ferro ainda predominava 308.500 toneladas contra 185.000 -, especialmente na construção de barcos a vela, nos quais o custo inicial era uma consideração decisiva. Mais cinco anos de economia na fabricação de chapas nos fornos de revérbero, entretanto, bastaram para virar a mesa: 913.000 toneladas de aço contra 46.000 de ferro em 1890 .33

A rigor, o ponto alto da fabricação de ferro forjado só foi atingido na Inglaterra e na França em 1882 (2.841.000 e1.073.000 toneladas, respectivamente), e em 1889 na Alemanha (1.65o.ooo toneladas). Ainda em 1885, a Grã-Bretanha produzia mais ferro pudlado do que aço; na Alema-

nha, as curvas de produção só se cruzaram em 1887; na França, somente em 1894. Essas fases amenas de retomada do crescimento e das realizações na obsolescência

são um fenômeno econômico comum: basta testemunhar os anos dourados das carruagens depois do surgimento da ferrovia, ou o desenvolvimento dos veleiros e das grandes escunas intercontinentais após a introdução dos navios a vapor. Elas derivam de um ou mais dentre vários fatores: (1) uma resposta tecnológica criativa ao desafio do novo concorrente; (2 ) uma compressão dos custos e uma eliminação do desperdício na luta pela sobrevivência; (3 ) oportunidades decorrentes da demanda criada pela técnica mais eficiente (cf. o papel dos coches como alimentadores dos troncos ferroviários nas décadas de 1830 e 1840).

Como vimos, o ferro forjado experimentou o primeiro desses fatores sem sucesso. A meta revelou-se uma quimera. Dadas as vantagens qualitativas do aço, é altamente improvável que a mecanização pudesse ter feito mais do que retardar o inevitável. Mais eficazes foram a racionalização geral dos métodos e a redução dos salários (compare-se com a compressão dos salários dos tecelões manuais em décadas anteriores), que possibilitaram uma redução dos preços a cerca da metade, desde o início da década de 1870 até meados da seguinte.

Quanto ao terceiro fator, o ferro forjado e o aço eram essencialmente substitutos, e não complementares, sobretudo após a invenção do aço básico. Sem dúvida, a demanda geral de metal - de todos os metais - estava aumentando, e o efeito do aço barato sobre a renda pode ter redundado num certo beneficio para a antiga substância. No fim, entretanto, o ferro passou a ficar restrito a aplicações em que a maleabilidade não era uma desvantagem e a resistência à corrosão era especialmente desejável: âncoras e correntes de âncora, grades e portões ornamentais, móveis para jardim e coisas similares.

(5) Divisão internacional do trabalho e competição. Seria demasiadamente demorado discutir em detalhe as diferentes características técnicas do aço bessemerizado e do fabricado pelo processo de Siemens-Martin, ácido e básico, e analisar as implicações de ambos para o desenvolvimento industrial. Elas estão resumidas na tabela aqui apresentada. Em termos muito sucintos, o aço Bessemer era mais barato, de qualidade mais aproximativa, e produzido em fábricas maiores e que exigiam maior inversão de capital; o Siemens-Martin era mais homogêneo, mais próximo das especificações e mais adequado à montagem feita por encomenda. O primeiro tinha seu emprego mais importante nos trilhos; o segundo, nas chapas. À medida que

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os padrões de produção se elevaram e a construção de ferrovias foi reduzida, a tendência a longo prazo passou a ser para o aço Siemens-Martin; porém foi muito mais rápida na Inglaterra, a maior construtora mundial de navios, do que na Europor continental (Tabela 11).

Parte dessa diversidade deveu-se a diferenças nos recursos naturais. A Inglaterra, com seus minérios de hematita, permaneceu fiel ao processo ácido durante muito tempo. Já os países continentais - obrigados a se concentrar na técnica básica por causa da ausência de minério de hematita e incentivados pela abundância de minério rico em fósforo, na Lorena e na Suécia - constataram que o aço de Thomas (isto é, o Bessemer básico) era especialmente recompensador. Todavia, não se deve subestimar o fator humano. Estimulados pela necessidade, os siderurgistas continentais trabalharam no processo básico com uma determinação científica: obtiveram e conservaram uma mistura adequada e produziram um metal de qualidade boa e uniforme. Os ingleses experimentaram e improvisaram, e a irregularidade de seu produto meramente confirmou as dúvidas dos consumidores, o que, por sua vez, desestimulou a experimentação e os investimentos. A situação inteira era auto-reforçadora. Por volta de 1890, os países continentais produziam mais aço básico do que ácido, enquanto este último respondeu por 92% da produção inglesa nos fornos de revérbero e por 73% de sua produção em conversores ainda em 1897.34 As proporções respectivas foram de 63% e 65% em 1913, e foi preciso haver a Primeira Guerra Mundial para afastar a Grã-Bretanha de sua fidelidade ao processo mais antigo e mais dispendioso.35

Essa especialização por tipo de processo moldou e foi moldada pelos padrões de crescimento das respectivas indústrias siderúrgicas nacionais. A Inglaterra tinha usinas relativamente pequenas; a Alemanha, grandes. Por volta da passagem do século, as maiores usinas inglesas produziam apenas o equivalente à produção das usinas vestfalianas médias. (Contraste-se isso

TABELA 11. PERCENTAGEM DO AÇO PRODUZIDO PELO PROCESSO SIEMENS-MARTIN

1890 1913 1930

Grã-Bretanha 43,6 79,2 94,3Alemanha 17,4 40,2 52,3a

França 36,8 33,8 27,5Bélgica desprezível desprezível desprezível

a. Chegara a atingir 6o,6% em 1920. Fonte: T.H. Burnham e G.O. Hoskins, Iron and Steel in Britain 1870-1930, Londres 1943, p. 183

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com a situação de uma geração antes, que já descrevemos.) Isso tampouco foi simplesmente uma questão de uma resposta demorada à oportunidade: as novas fábricas inglesas, na década de 1890, tinham 1/4 a 1/3 do tamanho de suas concorrentes alemãs.

Essa disparidade estendia-se, retrospectivamente, ao estágio da fundição: o membro médio do cartel alemão do aço (1903) era quatro vezes maior do que seu análogo inglês (1900) e mais de duas vezes maior do que a empresa siderúrgica média na área de Cleveland. E a desvantagem da Inglaterra era cumulativa, pois a Alemanha juntava os grandes com os grandes, enquanto a Grã-Bretanha deixava separados os pequenos. Em 1902, apenas 21 das firmas com fornos de revérbero, das 72 existentes na Inglaterra, respondendo por 1/4 da produção, dispunham de altos-fornos adjacentes, ao passo que a integração com a fundição era quase universal no Reich. O mesmo se aplicava aos vínculos com as etapas posteriores da manufatura: enquanto a tendência da Vestfália era construir usinas de laminação nas siderúrgicas, os laminadores ingleses dependiam cada vez mais de fontes externas para a obtenção de metal bruto.

O tamanho e a integração das fábricas, além disso, estavam estreitamente relacionados com a técnica e a produtividade. A maquinaria alemã, originalmente menor e menos eficiente do que a inglesa, aumentou rapidamente de tamanho e desempenho, até que, na virada do século, superou a de sua precursora por ampla margem.36 Em 1870, o alto-forno médio inglês produzia mais 74% de ferro-gusa do que seu equivalente alemão - 8.700 contra 5.000 toneladas. Em 1910, as posições haviam-se invertido: Alemanha, 49.000 toneladas; Inglaterra, 30.000. O mesmo se deu no aço: em 1890, o forno de revérbero médio na Alemanha era também 50% maior do que o inglês - 15 toneladas contra 10 - e a produção era correspondentemente superior; e os conversores alemães vertiam uma média de 34.000 toneladas em 1901, enquanto o equipamento inglês produzia 21.750.37

E mais, o próprio tamanho do equipamento alemão impunha uma extensa mecanização. Um forno que produzia 3.000 toneladas de ferro-gusa por semana consumia 6.000-9.000 toneladas de minério, talvez 1.000 toneladas de calcário e umas 4.000 toneladas de coque. Eram necessários cerca de 6oo caminhões de frete, com capacidade média de 20 toneladas, apenas para levar as matérias-primas até a usina. (Teriam sido necessários 1.200 ou mais dos caminhões ingleses menores.)38 E, uma vez entregues, essas matérias-primas tinham que ser levadas até o fogo de algum modo. Os sistemas tradicionais de guincho e contrapeso, para puxar pequenos vagões

inclináveis ate a boca do forno - ocasionalmente suplementados pela força muscular humana e pelas pás manuais -, eram desalentadoramente inadequados. Em seu lugar, surgiram as esteiras contínuas, os guindastes móveis e os trilhos suspensos, movidos a energia elétrica.

E havia também as 3.000 toneladas de ferro a ser escoadas, despejadas nas formas, suspensas e fragmentadas para a refundição; ou, melhor ainda, diretamente entregues à usina para serem convertidas em ferro forjado ou aço. Como se assinalou antes, o rápido processo bessemerizado exigiu a mecanização desde o início. A título de comparação, o período mais longo requerido pela descarbonização no processo Siemens-Martin incentivava uma certa tolerância para com as interrupções para transporte e manipula-ção: havendo instalações adequadas, levava umas três horas e meia para se encher manualmente um forno de quarenta toneladas.39 Também aí, porém, a tendência para a mecanização foi inexorável. No final do século, os siderurgistas alemães, em especial, estavam imitando a praxe norte-americana e construindo fornos inclináveis com capacidade de 100 a 300 toneladas, aparelhados com equipamentos de carga movidos a energia hidráulica ou elétrica. O efeito do simples carregamento mecânico foi reduzir uma força de trabalho de 46 operários especializados e não especializados por forno para 16, cortando os custos de mão-de-obra (já se levando em conta a amortização do capital adicional) em 58%.40

Finalmente, e talvez mais importante, houve uma forte tendência à maior automatização da forja. O desenvolvimento deu-se em duas direções. Uma delas, retomando o avanço implícito na combinação de pudlagem e laminação de Cort, consistiu em eliminar o martelo tanto quanto possível e fazer com que todo o trabalho de compressão e moldagem fosse feito pelo laminador. Por mais potente e rápido que fosse o martelo a vapor, ele tinha por natureza uma operação intermitente e originava um problema custoso e difícil na manipulação manual. Basta olhar para qualquer das centenas de desenhos de forjas de meados do século XIX que chegaram ate nós, para aquilatar as desvantagens da antiga técnica: a oficina, em geral, é uma caverna abobadada, iluminada pelo brilho dos fornos e dos lingotes e barras ardentes; o piso é uma selva vulcânica de máquinas resfolegantes, movidas a vapor, pilhas de ferro em incineração, ferramentas momentaneamente deixadas de lado e o emaranhado suspenso das gruas aéreas; e no meio, pendendo silencioso mas mortífero de seu cabo de sustentação, tem se o enorme cilindro ou bloco de metal incandescente, cutucado e empurrado até a bigorna, depois torcido e largado noutra posição, e depois mais outra, pelas torquezes e varas de até dezenas de pigmeus enegrecidos e

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suados. Ao que devemos acrescentar o que os desenhos não conseguem transmitir: o barulho, o calor enervante e o mortífero ar enfumaçado e poeirento.41

Por volta de 1870, a laminação direta de grandes massas estava essencialmente restrita aos trilhos; afora isso, considerava-se necessário "consolidar a estrutura" dos lingotes por batedura antes da compressão. Alguns dos ingleses começaram a escapar dessa etapa intermediária na década de 186o, e a contração dos anos 187o ajudou a disseminar essa prática em função da concorrência que se acentuava. Na fundição de John Brown, em Sheffield, um laminador e 18 homens executavam o trabalho de 3 martelos e 54 homens.42

Observe-se, no entanto, o coeficiente 3: mesmo com o laminador, eram necessários 18 homens para direcionar o curso do metal, recebê-lo ao completar o percurso e mandá-lo de volta para outra passagem. A tarefa era tão difícil quanto a de guiar os lingotes para baixo do martelo; se havia menos necessidade de força e precisão, exigia-se mais agilidade para manejar a barra ou a chapa ao ser cuspida do meio dos cilindros. O cansaço podia ser fatal e, na verdade, a maioria dos acidentes ocorria nas primeiras horas da manhã.43

A resposta - e essa é a segunda das duas linhas de desenvolvimento a que nos referimos acima - estava em minimizar a manipulação, automatizando o laminador. Um dos aperfeiçoamentos, introduzido pela primeira vez na Inglaterra em 1866, consistiu em adaptar um motor de reversão aos cilindros, para que o metal pudesse ser levado para frente e para trás sem sair da máquina. A economia de tempo e mão-de-obra foi tamanha que a capacidade mais do que duplicou; mas o esforço imposto ao motor, que a cada intervalo de poucos segundos tinha que inverter seu momento e o dos cilindros para recomeçar no sentido inverso, era tremendo. A solução norte-americana, amplamente adotada na Alemanha, foi o laminador com cadeira em trio, no qual um terceiro cilindro, posicionado sobre os dois habituais, permitia que o metal passasse de volta num "nível superior", sendo moldado enquanto isso.

O trabalho mais rápido exigiu aperfeiçoamentos nas técnicas de alimentação, pois a tarefa de apanhar o metal num laminador em trio e erguê-lo ou abaixá-lo para enviá-lo de volta pela trilha inversa era, no mínimo, mais árdua e perigosa do que nos laminadores com cadeira em duo. Na virada do século, a praxe mais avançada consistia em mover o metal sobre mesas rolantes, virá-lo através de barras inversoras automáticas, levantá-lo e abaixá-lo por meio de içadores, e introduzi-lo e retirá-lo dos fornos de

reaquecimento através de guindastes hidráulicos (posteriormente, elétricos), equipados com tenazes gigantescas. O próprio reaquecimento foi progressivamente eliminado com o aumento da rapidez do processo de moldagem. Havia até laminadores contínuos para a moldagem de peças estreitas, com dez ou mais conjuntos de cilindros que estiravam e moldavam a barra num único passe. Exigia-se grande precisão para chegar a esse resultado: numa extremidade, o metal muito reduzido e quase acabado passava célere pelos últimos cilindros, de quarenta a sessenta milhas por hora, enquanto, no outro extremo, a mesma peça de metal, grossa e não moldada, ainda era lentamente alimentada nos cilindros desbastadores. Também se requeria engenhosidade e pesados desembolsos de capital para beneficiar o produto final: "tesouras volantes" para o corte e instalações para resfriamento, empilhamento e movimentação. Esses foram os ancestrais do moderno trem de tiras a quente. O sistema contínuo foi originalmente inventado na Inglaterra, onde um ou dois exemplos foram construídos na década de 18 6o para fazer vergalhões e trilhos. Mas não teve aceitação geral. Só na década de i 89o a idéia foi retomada nos Estados Unidos, dali se difundindo para a Europa. De modo geral, os engenheiros continentais, especialmente os alemães, os adotaram com maior rapidez.44

A eficiência gera eficiência: na verdade, torna-a necessária. Assim como o tamanho e a integração facilitaram, na Alemanha, uma maior intensidade de capital, também a intensidade de capital incentivou uma organização mais racional do trabalho e uma simplificação da integração dos fatores de produção. O leitor deve estar lembrado de que um dos mais graves obstáculos à disseminação do tear automático que modificava os padrões de produção - foi o alto custo imobilizado numa maquinaria valiosa; pela mesma razão, a necessidade de modificar os cilindros foi um empecilho à adoção de laminadores mais longos e mais rápidos. Para extrair o máximo de seu equipamento, os alemães foram obrigados a padronizar e, dessa maneira, esten-der seus fluxos de produção. Já em 1883, a União das Sociedades de Arquitetos e Engenheiros Alemães elaborou um conjunto completo de cortes padronizados para o ferro laminado na construção naval, na engenharia e na construção civil.45 Em 1900, os siderurgistas ingleses produziam rotineiramente 122 cortes estriados e angulares, enquanto os alemães produziam 34. Finalmente, havia a questão do desperdício. No século XVIII e início do XIX, as melhores empresas britânicas eram internacionalmente famosas por sua limpeza, sua atenção para com os detalhes e seus controles meticulosos do estoque. Wedgwood era inflexível nesse aspecto; os visitantes continentais da usina de ferro de Crawshay, no País de Gales, oriundos de

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regiões mais pobres, consideraram isso um dos traços mais impressionantes e apropriados da organização produtiva da siderúrgica. No fim do século, entretanto, as posições tinham-se invertido. Os ingleses que visitaram as aciarias alemãs maravilhavam-se com os depósitos de coleta do óleo que pingava das caixas de lubrificação e com o vapor que era coletado, condensado e reutilizado.46 Acima de tudo, eles admiravam a eficiente utilização alemã do combustível, tantas vezes considerado o melhor critério do desempenho metalúrgico. A discrepância, nesse aspecto, evidenciava-se em todas as etapas - desde a coqueificação, onde os fornos continentais forneciam energia para as máquinas a vapor e geravam como subprodutos alcatrão e amoníaco para a indústria química;47 até a fundição, onde a mise au mille alemã era 15% a 25% mais baixa do que a praxe britânica, e os gases quentes dos altos-fornos acionavam motores de combustão interna cuja produção superava os requisitos da empresa e fornecia energia elétrica a consumidores externos; e ainda à produção do aço, na qual a integração vertical alemã possibilitava a montagem do metal a quente do começo ao fim, enquanto os ingleses, cuja alta proporção gusa-sucata tornava esses métodos ainda mais lucrativos, tinham que movimentar e reaquecer os lingotes e barras em várias etapas. As estatísticas sobre o consumo de combustível nos processos pós-fundição são eloqüentes: 22,5 quintais por tonelada produzida na Inglaterra em 1929 (31 quintais em 1920), 4,9 nas usinas belgas médias, 3,2 nas usinas integradas belgas e menos ainda na Alemanha.48

Os efeitos do maior coeficiente de capital e da organização mais racional evidenciaram-se na produtividade. A produção por homem-ano (uma aproximação necessariamente grosseira da produtividade real) na fundição e laminação do aço atingiu 77 toneladas na Alemanha, em 1913, comparadas a 48 toneladas na Inglaterra em 1920, quandq, presumivelmente, a produtividade foi superior à de antes da guerra.49 Também se evidenciaram nos preços. Os trilhos e chapas ingleses, originalmente os mais baratos do mundo, tornaram-se mais caros do que os produtos equiparáveis alemães por volta da passagem do século, tanto nos respectivos mercados internos quanto na exportação. Às vésperas da guerra, a diferença das cotações das chapas em Essen e Clyde era de 20% a 25%.

Como resultado, a tecnologia superior caminhou de mãos dadas (utilizo essa expressão deliberadamente, pois era óbvia a existência de uma relação recíproca) com a expansão industrial. Um gráfico semi-logarítmico da produção de ferro e aço oferece a mais vívida ilustração possível do curso da rivalidade econômica internacional no período de 1870-1914: as linhas in-

glesas vergam-se como flores emurchecentes, enquanto as alemãs continuam em sua íngreme ascensão até bem às vésperas do conflito. No início da década de 1870, a Inglaterra produzia quatro vezes mais ferro e o dobro do aço da Zollverein. No qüinqüênio 1910-14, em contraste, a Alemanha produziu em média quase o dobro do ferro e mais do dobro do aço. O ponto de passagem foi 1893, no tocante ao aço, e 1903 quanto ao ferro-gusa.

Vale a pena assinalar mais um aspecto sobre a perda da hegemonia metalúrgica pela Grã-Bretanha, que efetivamente datou de 1890, quando os Estados Unidos assumiram de forma estável o primeiro lugar na produção de ferro e aço. Durante muito tempo, os efeitos dolorosos da expansão no exterior foram parcialmente mitigados pela absorção da grande maioria da produção adicional pelos mercados dos países produtores; tanto os Estados Unidos quanto a Alemanha precisavam de vastas quantidades de aço em suas próprias economias. Em 1910, no entanto, a Alemanha estava exportando mais ferro e aço do que a Inglaterra, que fora o principal fornecedor mundial por mais de um século; pior ainda, os siderurgistas do Ruhr estavam vendendo parte de sua produção no próprio Reino Unido. A coroa real estava caindo, e as doutrinas dos teóricos econômicos sobre a vantagem comparativa e a divisão internacional do trabalho eram um consolo precário.

Uma nova indústria química

A indústria química, que é, por definição, a transformação da matéria para fins produtivos, é a mais multiforme das indústrias. Assim, a metalurgia é, tecnicamente, um ramo da química aplicada, e entre nossos novos materiais da passagem do século, como vimos, teriam que figurar as ligas de aço e os metais não ferrosos, como o alumínio. A fabricação de vidro e a de papel também são ramos do setor químico, o mesmo acontecendo com a fabricação de cimento e borracha e com a cerâmica.

Em todas essas áreas, o fim do século XIX assistiu a importantes inovações tecnológicas. Dentre os aperfeiçoamentos químicos propriamente ditos, podemos assinalar a invenção e aprimoramento do papel de polpa de madeira, aproximadamente a partir de 1855 (há bibliófilos e estudiosos que se recusariam a aceitar isso como um avanço); o processo eletrolítico de Hall-Héroult para extrair alumínio da bauxita (1886), que transformou um metal precioso, usado nas colheres da mesa de Napoleão III, num substituto industrial leve e não corrosivo para o ferro e o aço em algumas de suas aplicações; e a criação de materiais mais refratários, na fabricação de tijolos para os fornos (magnesita e dolomita, a partir de 1860), indispensáveis para

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as temperaturas mais elevadas, tornou-se costumeira nos processos que usavam calor. Pelo menos igualmente importantes na elevação da produtividade nos ramos químicos foram, provavelmente, as inovações mecânicas e instrumentais: a introdução do forno de regeneração (fim da década de 1850) e da máquina de garrafas semi-automática (a partir de 1859) na indústria de vidro; o uso de prensas automáticas e máquinas de extrusão e de fabricação de mangueiras na indústria de borracha; do forno contínuo de câmara longa, de prensas especiais e de máquinas de extrusão na fabricação de tijolos e cerâmicas; do forno de cuba (desenvolvido na década de 1870 e introduzido na Inglaterra, proveniente da Alemanha, na de 1880) e do forno rotativo (aperfeiçoado no começo da década de 1890) na indústria de cimento.

Mas todos esses aperfeiçoamentos ocorreram no que ainda eram pequenas áreas de atividade industrial - os grandes dias da borracha e do cimento, por exemplo, ainda estavam por vir -, ou então, tendo ocorrido na fabricação de produtos acabados, tiveram um impacto limitado na economia como um todo, através da economia indireta e da demanda derivada. Os grandes avanços da indústria química no período que estamos examinando tiveram duas características: oportunidade imediata e conseqüências ramificadas. Os dois mais importantes foram o método de fabricação de álcalis de Solvay e a síntese de compostos orgânicos.

i. L.F. Haber chamou o período de 1860 a 1880 de "anos dourados da indústria da soda de Leblanc". A demanda de álcalis aumentou junto com a de produtos têxteis e sabão, cujo consumo subiu paralelamente à elevação da renda, à melhoria do saneamento e aos padrões de vida mais elevados; e a introdução do esparto na fabricação de papel, a fim de suplementar a oferta obviamente insuficiente de farrapos, exigiu grandes quantidades de pó branqueador. Na geração de 1852 a 1878, a produção inglesa de soda calcinada triplicou, passando de 72.000 para 208.000 toneladas; a produção de cristais de soda subiu quase com a mesma rapidez, de 61.000 para 171.000 toneladas; e a de pó alvejante aumentou quase oito vezes, de 13.000 para 100.000 toneladas. A maioria desses álcalis era consumida internamente, mas uma parcela expressiva e crescente ia para o exterior, primeiro para os Estados Unidos e, em seguida, para a França, após o tratado comercial de 1860, e para a Zollverein. As exportações passaram de 16.500 toneladas em 1847 para 273.000 em 1876, num salto de mais de 1.500 %. A produção dos países continentais, embora crescente, era uma pequena fração da britânica.50

Esse crescimento evocou vários aperfeiçoamentos da técnica, a maioria

de caráter instrumental e mais economizador de mão-de-obra do que de capital: tanques de decomposição maiores; torrefadores mecânicos; o forno rotativo (fim da década de 1860); e a cuba de Shanks (1861), que possibilitou a extração da cinza negra por meio da pressão hidrostática, em vez do trabalhoso padejamento de um tanque para outro.51 Mas, no cômputo geral, essa indústria nunca havia usado muita mão-de-obra, e o impacto dessas inovações foi correspondentemente limitado. Em 1862, cerca de 10.000 homens estavam empregados na fabricação pelo processo de Leblanc na Inglaterra e no País de Gales, em contraste com 400.000 na indústria têxtil. Dentre eles, uma pequena parcela (provavelmente menos de 1/5) era necessária para executar o processo químico propriamente dito; os demais ocupavam-se do empacotamento, manuseio e manutenção. 52

Mesmo assim, a oferta mal se mantinha à frente da procura. O nível dos preços dos álcalis a longo prazo ficou inalterado durante esses anos; somente os materiais de alvejamento mostraram um declínio significativo e, mesmo assim, apenas depois da crise de 1873, quando a deflação geral já se havia instalado. Foi nesse ponto que a soda de amoníaco entrou em cena.

A técnica de Leblanc era uma ofensa tanto para os químicos quanto para os fabricantes. Mesmo depois de Gossage ter desenvolvido, em 1836, suas torres de condensação do ácido clorídrico obtido como subproduto, cujos vapores envenenavam o campo nas imediações de todas as fábricas de álcalis, o cloro existente nele era perdido pela indústria. Além disso, o processo ainda desperdiçava um enxofre valioso, para não falar do cálcio e de grandes volumes de carvão inalterado, sob a forma de um lodo malcheiroso que os habitantes de Lancashire batizaram expressivamente de "galligu", o que acrescentava ao prejuízo da perda o insulto da remoção dispendiosa.

Comparativamente, a técnica da soda de amoníaco era mais apurada (no sentido matemático da concisão e da simplicidade) e trazia todas as promessas de ser mais lucrativa. A reação química fora descoberta por Fresnel já em 1811: podia-se obter bicarbonato de sódio e cloreto de amônio a partir de soluções concentradas de sal (cloreto de sódio) e amoníaco (NH3), tratando-as com ácido carbônico (HCO3). O bicarbonato de sódio, ao ser aquecido, liberava o carbonato de sódio (soda) desejado, além de água e dióxido de carbono. A única dificuldade prática - e que se revelou séria - era a impossibilidade de recuperar o amoníaco, naquela época um composto dispendioso, a partir do cloreto de amônio obtido como subproduto.

O problema era essencialmente de instalações - construir equipa-

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mentos para fazer o que todos sabiam que devia e podia ser feito. Dezenas de cientistas e empiristas gastaram dezenas de milhares de libras esterlinas para encontrar uma solução. "Nunca a realização industrial de qualquer processo foi tentada com tanta freqüência e por um período de tempo tão extenso..."

Ernest Solvay (1838-1922), nascido no pequeno vilarejo belga de Rebecq, herdou sua participação na indústria química. Seu pai era refinador de sal, entre outras coisas; seu tio, diretor de uma fábrica de gás, o único lugar em que o amoníaco era quase um produto gratuito. Foi na fábrica do tio que ele observou pela primeira vez o desperdício do amoníaco na destilação do carvão mineral; e foi ali que realizou seus primeiros experimentos na fabricação de soda, concebeu sua torre para misturar dióxido de carbono com salmoura amoniacal e construiu seu destilador para recuperar o amoníaco. Em dezembro de 1863 ele tinha apenas 25 anos de idade , Solvay fundou, com ajuda externa, a firma que leva seu nome e que continua a ser, ate hoje, um dos gigantes da indústria química mundial.

Os anos imediatamente subseqüentes assistiram a numerosas decepções e a experimentos contínuos. Foi preciso mais uma década para aperfeiçoar o processo; mas, em meados da década de 1870, o álcali de Solvay, mesmo com o ônus dos pagamentos de royalties, podia ser vendido a um preço cerca de 20% mais barato que o dos produtos do processo Leblanc. A maior economia se dava na matéria-prima.

Seguiu-se então uma luta tecnologicamente análoga à ocorrida entre o aço barato e o ferro forjado, e economicamente análoga à competição entre as indústrias de aço inglesas e alemãs. A nova técnica espalhou-se rapidamente pelo Continente, predominantemente na versão de Solvay, mas, em pequena medida, sob a forma de variações. Na França, menos de 1/4 do álcali produzido em 1874 foi feito pelo processo do amoníaco; passada uma geração, em 1905, a cifra foi de 99,65%. A Alemanha foi mais lenta a princípio; da quantidade relativamente pequena de soda produzida em 1878, cerca de 42.500 toneladas, apenas 19% foram do tipo feito com amoníaco. Em 1887, porém, a proporção foi de 75%; em 1900, superou 90% das cerca de 300.000 toneladas.53

Somente a Inglaterra ficou para trás. Havia nela um grande investimento nas fábricas do tipo Leblanc, que os empresários não estavam dispostos a abandonar. E esses produtores, duramente pressionados, espremeram novas economias e uma renda adicional de suas fábricas Leblanc, através de uma atenção mais rigorosa para com os custos, da introdução de equipamentos mais eficientes e da recuperação de cloro do ácido clorídrico gerado

como subproduto (processo de Weldon, 1869-70). Os preços dos álcalis de Leblanc caíram, em 1890, para cerca de 1 / 3 do auge que havia atingido às vésperas do processo Solvay (1872-3).

Nesse nível, os álcalis ingleses eram competitivos, e a estabilidade do preço do pó branqueador gerado como subproduto foi um dividendo inesperado. As exportações inglesas tiveram sua tonelagem mais do que duplicada de 1870 a 1883 e permaneceram em torno desse nível elevado até 1895. Então começou a agonia. Em parte, ela teve uma origem química. A introdução dos métodos eletrolíticos de preparação do cloro e de substâncias cáusticas na década de 1890 atingiu diretamente a operação mais lucrativa da indústria que usava o processo Leblanc. Mais uma vez, a Inglaterra viu outros países assumirem a liderança: em 1904, toda a produção norte-americana de cloro e 65% da alemã foi eletrolítica; os números correspondentes na França e no Reino Unido foram 19% e 18%.54 E, em parte, a agonia foi resultante do protecionismo no exterior; a tarifa Dingley, de 1897, nos Estados Unidos, foi particularmente danosa. O total das exportações caiu de 312.400 para 188.5oo toneladas; a produção decresceu muito menos, cerca de 10%, mas o fato é que decresceu - pela primeira vez desde o começo da Revolução Industrial. A produção alemã aumentou, nesse meio-tempo, e começou a competir até mesmo nas áreas tropicais que sempre tinham sido uma reserva britânica.

Assim desapareceu a última reserva da indústria pautada no processo Leblanc (os lucros proporcionados pelo processo de recuperação de enxofre de Chance-Claus - finalmente, uma maneira de salvar o enxofre! - não foram suficientes como forma de compensação). A fundação, em 1890, da United Alkali Co. Ltd., que reuniu num amplo truste o grosso da capa cidade Leblanc do país, e a subseqüente negociação de preços e os acordos sobre produtos básicos feitos com o principal produtor de soda de amoníaco, a Brunner, Mond & Co., serviram apenas para retardar o fim. Apesar de toda a determinação e engenhosidade que a companhia conseguiu concentrar, houve uma decepção após outra, os dividendos pararam e as ações reduziram-se a uma fração de seu valor original, a ponto de não haver capital suficiente para jogar fora a sucata e recomeçar. Em 1920, nem bem decorrido um século desde a sua introdução, a antes grandiosa indústria Leblanc da Inglaterra fechou as portas.

Tal como no aço, as diferenças de técnica refletiram-se nas taxas de crescimento. Não dispomos de cifras inglesas sobre a fabricação de álcalis nos anos imediatamente precedentes à Primeira Guerra Mundial, e as estatísticas alemãs que possuímos não são comparáveis, porque os produtos são

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medidos em diferentes graus de pureza. Mas temos, sim, estimativas das respectivas produções de ácido sulfúrico, "a mais importante substância ,química inorgânica para fins técnicos". Ele é usado na produção de outros compostos inorgânicos, como o sulfato de sódio; na fabricação de fertilizantes, especialmente os superfosfatos; na refinação de petróleo, na siderurgia e metalurgia e na indústria têxtil; na produção de explosivos; e ainda na fabricação de corantes e em outros ramos da química orgânica. Em função disso, seu consumo é um parâmetro aproximado do desenvolvimento industrial em geral. Ainda em 19oo, a produção inglesa de ácido sulfúrico era quase o dobro da alemã: cerca de um milhão de toneladas contra 55o.ooo. Passados apenas treze anos, as posições quase se haviam invertido: Alemanha, 1.7oo.ooo toneladas; Inglaterra, 1.1oo.ooo. 55

2. O trabalho teórico e experimental situado na base da indústria química orgânica foi predominantemente alemão e inglês. Alguns de seus marcos são o isolamento do benzeno por Faraday em 1825, a descoberta de Wõhler do isomerismo dos compostos orgânicos (1828), a análise e fracionamento do alcatrão de hulha por Hofmann e seus discípulos (o histórico artigo de Mansfield, "Researches on Coal Tar, Part I", foi publicado em 1849), e a reconstituição teórica da molécula de benzeno por Kekulé (1865). As descobertas práticas que constituíram a essência da nova indústria foram obra de ingleses, alemães que trabalhavam na Inglaterra e franceses. Em 1856, Perkin sintetizou fortuitamente a primeira tintura de anilina, um tom purpúreo que recebeu o nome francês de mauve; Natanson e Verguin, na França, aperfeiçoaram o corante vermelho de anilina, ou magenta, em 1859; em 1863, Martius, apoiando-se nas pesquisas de Gries, fez o primeiro azocorante de sucesso comercial, o marrom de Bismarck; 56 e finalmente, em 1869, Perkin, na Inglaterra, e Graebe e Liebermann, na Alemanha, produziram a alizarina, a primeira tintura artificial a substituir um corante natural, no caso, a garancina. Esse foi o último dos grandes avanços britânicos e a primeira de uma longa série de grandes descobertas dos laboratórios alemães; marcou uma mudança no locus da inovação. Simbolizou também a chegada de uma era de pesquisas deliberadas: Perkin esbarrou no malva por acidente, mas procurou e encontrou a alizarina, enquanto Graebe empreendeu sua pesquisa sob as ordens diretas de seu patrão, Baeyer. Os dois momentos decisivos na localização e no caráter da pesquisa estiveram inter-relacionados.

Um último comentário sobre os antecedentes científicos: como nos outros exemplos de inovação industrial, também na química orgânica é tentador recordar as realizações famosas e presumir as restantes. A verdade é

que as sínteses experimentais estavam muito longe dos processos comerciais. A transposição dessas reações dos laboratórios para as fábricas exigiu o desenvolvimento de novas fontes e padrões de suprimento, de técnicas auxiliares para a fabricação barata de materiais escassos, e a invenção de equipamentos confiáveis para realizar o que poderiam ser reações perigosas. Numa instalação inglesa primitiva, o galpão de nitração era conhecido como "galeria de tiro". Ao mesmo tempo, a utilização dessas tinturas na indústria têxtil requereu outras inovações: mordentes para os tecidos re-beldes e padronagens que tirassem proveito das oportunidades oferecidas por essas cores novas e firmes. Nesse campo, a contribuição francesa foi decisiva.

Como implica este relato, os primeiros anos do novo ramo da indústria química pertenceram à Inglaterra, com a França em segundo lugar. Não só a maioria das pesquisas iniciais foi conduzida em laboratórios ingleses, como em nenhum outro país a destilação de alcatrão de hulha para fins comerciais avançou tanto. As mesmas empresas que produziam óleos pesados para a preservação da madeira (patente de Bethell de 1838) e "nafta" para utilização no fabrico de borracha e verniz podiam facilmente produzir também "óleos leves". As condições da oferta, portanto, eram especialmente favoráveis, e de fato, vários dos pioneiros da indústria química orgânica inglesa passaram do alcatrão de hulha para as matérias corantes.

Na França, a ênfase em tecidos altamente coloridos e de padronagens criativas proporcionou um mercado pronto para as novas tinturas. Lyon, pátria da fabricação da seda (a seda aceitava as tinturas de anilina melhor do que as outras fibras), foi um dos centros. A Alsácia, com sua indústria de estampas de algodão em alta e seu antigo pioneirismo na química têxtil, foi outro. A área de Paris foi um terceiro. Em 1864, um dos mais fortes produtores uniu-se ao jovem Credit Lyonnais para fundar o que foi, provavelmente, a maior empresa de corantes do mundo, La Fuchsine, com capital de quatro milhões de francos.

Nos dois países, entretanto, esse desenvolvimento precoce logo foi frustrado. Na Inglaterra, os amadores que usavam alcatrão de hulha foram deslocados, e os especialistas perderam seus melhores cientistas alemães para empresas de sua terra natal. Todas as firmas, com poucas exceções, estagnaram ou faliram. A cada momento, elas se descobriam diante de preços menores dos concorrentes estrangeiros e, quando prosperavam, faziam-no por consentimento tácito, mediante acordos de preços ou de mercado. O capital de risco afastou-se, assustado, acentuando a espiral do declínio. Na França, muitos dos produtores arruinaram uns aos outros numa dispendiosa

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guerra de patentes na década de 1860. La Fuchsine pediu falência em 1868, contribuindo mais do que qualquer outra coisa para convencer Henri Germain, o ríspido diretor do Credit Lyonnais, de que não havia na França nenhum industrial digno de apoio.57

A produção alemã de matérias corantes disparou. No fim da década de 1860, a indústria ainda era pequena, dispersa e essencialmente imitativa. Mal decorrida uma década, a Badische Anilin, a Hõchst, a AGFA e as demais detinham cerca de metade do mercado mundial; na virada do século, sua parcela era de aproximadamente 90%. Ademais, isso não leva em conta a produção das subsidiárias e filiais em outros países. Assim, na França, às vésperas da Primeira Guerra Mundial, apenas uma das principais fábricas de tinturas pertencia e era dirigida por franceses; seis eram alemãs, e duas, suíças; e as quatro ou cinco pequenas empresas nacionais dependiam de firmas estrangeiras, principalmente alemãs, para obter produtos intermediários.

Em termos de virtuosismo técnico e agressividade de iniciativa, esse salto para a hegemonia, ou para o quase-monopólio, não teve paralelo. Foi a maior realização industrial da Alemanha imperial. Dentre as outras nações do mundo, apenas a Suíça logrou desenvolver uma vigorosa indústria de corantes frente a essa competição. Importando substâncias químicas brutas e produtos intermediários do norte da fronteira, concentrando-se em tinturas especiais que exigiam as mais avançadas técnicas de produção, e oferecendo a seus clientes assessoria técnica de ponta, a Ciba, a Geigy e as outras indústrias da Basiléia conquistaram e preservaram uma importante parcela do mercado internacional. A produção suíça, em 1895, equivaleu a quase 1/5 (em valor) da alemã e a aproximadamente o mesmo volume da de todos os outros países reunidos.

Na Alemanha, a química orgânica respondia por bem mais da metade da força de trabalho e dos investimentos de capital da indústria desse setor quando da Primeira Guerra Mundial; outros países, embora com muito mais lentidão, seguiam o mesmo caminho. E que os corantes eram apenas a ponta de um novo mundo: os princípios científicos que estavam por trás dos corantes artificiais eram passíveis da mais vasta aplicação. Havia toda a gama de produtos derivados da celulose, essa notável família de carboidratos que constitui o principal elemento sólido das fábricas. Os explosivos de nitrocelulose (o algodão-pólvora de Schõnbein, 1846) vieram em primeiro lugar, seguidos pelas lacas, pelas chapas e filmes fotográficos, pelo celulóide (o primeiro plástico moderno, criado por Hyatt em 1868 e, apesar de toda a sua inflamabilidade, ainda útil, entre outras coisas, para a fabricação de bolas de pingue-pongue) e pelas fibras artificiais (a sole artifi'cielle de

Chardonnet, 1889; a viscose de C.F. Cross, em 1892). A viscose, por sua vez, deu origem a uma família própria, que incluiu o celofane (Brandenberger, 1912), os compostos para engomagem e uma miscelânea de outros artigos de maior ou menor utilidade. E, em 1909, Baekeland patenteou a primeira das resinas sintéticas, o chamado "plástico de mil utilidades", a baquelita. O ponto a ser assinalado é a engenhosidade quase inacreditável dessas técnicas, e sua ramificação incessante para novas direções e produtos. Como diz o titulo da história de uma indústria química, One Thing Leads to Another [Uma coisa leva a outra]. Ali estava, sob forma inesperada, um substituto do segredo longamente buscado da transmutação e criação da matéria.

NOVAS FONTES DE ENERGIA E FORÇA Este tema divide-se logicamente em três partes:

(i) As fontes de energia propriamente ditas: quedas d'água, carbono combustível (sob a forma de hulha, madeira, gás, petróleo ou similares); o sol; e as substâncias químicas que liberam calor ou corrente elétrica nas reações.

(2 ) Os motores e a transformação da energia em movimento. (3) A distribuição da energia. É sob esta última rubrica que o historiador

econômico pode situar mais convenientemente a eletricidade como uma inovação tecnológica. A eletricidade não é uma fonte, mas uma forma de energia. Os dínamos elétricos e os geradores similares são, essencialmente, conversores que transformam água, vapor ou outra força primária em corrente, que então pode ser armazenada em baterias, usada diretamente na iluminação, aquecimento ou comunicação, ou transformada em movimento através de motores.

Por causa da inextricável relação entre esses três elementos, entretanto, não é conveniente dissecar o desenvolvimento histórico por esse caminho. Em vez disso, construiremos a história em torno das áreas de inovação que tiveram a mais ampla significação econômica, conservando em mente o esquema acima como um guia da lógica tecnológica.

O vapor e as máquinas a vapor

As décadas finais do século XIX assistiram ao esgotamento gradativo das possibilidades tecnológicas das máquinas a vapor de movimento alternado.

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Os avanços anteriores haviam apontado o caminho para uma potência e uma eficiência maiores - primeiro, as pressões mais elevadas, e depois, a expansão composta - e, no final do período em exame, as pressões de quarenta libras da década de 185o haviam aumentado quatro a cinco vezes, enquanto se haviam desenvolvido motores de expansão tripla e quádrupla para canalizar essas concentrações de energia. A composição, conhecida, como vimos, por décadas, porém negligenciada, ganhou posição em meados do século. Teve sua adoção mais rápida nas embarcações, onde a usina de força tendia a ser maior do que em terra e a economia de combustível era de importância crucial - cada pequeno espaço ocupado pelo carvão era perdido pela carga. Uma espécie de máquina composta improvisada foi obtida por M'Naught em 1845, quando ele juntou um cilindro de alta pressão ao antigo cilindro de baixa pressão e usou os dois para impulsionar o balancim. Foi uma solução relativamente barata para o problema da força insuficiente, e dezenas de máquinas foram "M'naughtizadas" nos anos seguintes. Somente em 1854, porém, é que a primeira máquina composta construída dessa forma foi instalada num navio; no espaço de uma década, elas se tornaram a regra nos grandes vapores oceânicos. A variedade de tripla expansão foi introduzida em 1874, mas só se difundiu da década seguinte, tornando-se o padrão nas grandes usinas de força, tanto em terra quanto no mar, no final do século.58

A principal contribuição desses aprimoramentos técnicos foi a potência: compare-se, por exemplo, o primeiro vapor da Peninsular & Oriental, lançado em 1829 com rodas propulsoras e uma máquina de baixa pressão de 60 HP, com o Campania ou o Lucania, de 1893, ambos equipados com duas hélices e máquinas de expansão tripla totalizando 30.000HP; ou então, os motores industriais de 10 e 20 HP das primeiras décadas do século com os gigantes superaquecidos de 3.000HP das últimas. Mesmo descontando os extraordinários desempenhos relatados das máquinas de balancim da Cornuália nas décadas de 1830 e 1840, é claro que a grande redução do consumo de energia por unidade de produção já havia ocorrido na década de 185o, quando as máquinas em bom funcionamento usavam menos de 4 libras de hulha por HP/hora. No fim do século, o desempenho máximo havia baixado para cerca de 1,5 e a curva seguia uma linha assintótica.

Contudo, a demanda de energia continuou a crescer, especialmente de alta potência em relação ao espaço. A maneira de obter mais potência era aumentar a velocidade de funcionamento da máquina, mas, nesse caso, a necessidade de converter o movimento alternado em movimento giratório criava uma séria dificuldade. O conjunto do êmbolo, haste do êmbolo, cru-

zeta e biela tinha que ser acionado e parado a cada meia-volta da manivela, e a força requerida para a reversão desse momento aumentava conforme a velocidade do curso do pistão. A tensão acabava sendo tão grande que a máquina quebrava. Assim, embora as velocidades do pistão t ivessem sido levadas a atingir 1.ooo pés por minuto na passagem do século, elas estavam começando a esbarrar no limite da viabilidade comercial: era possível construir máquinas maiores e mais resistentes, porém a um custo desproporcionalmente mais alto de matéria-prima e espaço.

Nesse ponto, a turbina a vapor possibilitou um novo avanço tecnológico, tanto em termos de potência quanto de economia. O princípio era simples: em vez de transformar a força em movimento alternado e converter este último em movimento giratório, ia-se diretamente para o movimento rotativo, impulsionando pás ou palhetas de formato apropriado, que saíam de um eixo giratório. Qualquer criança que já tenha brincado com um cata-vento está familiarizada com essa técnica.

Como foi anteriormente assinalado, a turbina hidráulica remontava já a 1827 e fora muito aperfeiçoada nas décadas subseqüentes, particularmente em conexão com a utilização da energia das grandes quedas d'água. Entretanto, apesar de experiências que remontavam ao século XVIII, só se conseguiu uma turbina a vapor prática em 1884, quando Charles H. Parsons aprendeu a dominar a energia cinética do jato de vapor, juntando uma série de turbinas e deixando a pressão diminuir em estágios. Ali estava, mais uma vez, o principio da máquina composta, sob forma idealizada: co-locava-se quase todo o calor útil para trabalhar, deixando que o vapor es-friasse apenas por expansão e transmitisse força ao avançar. Assim usadas em série, cada uma das coroas tinha uma eficiência de 70% a 8o%, tão alta quanto a das turbinas hidráulicas e muito mais alta até mesmo que a das melhores máquinas a vapor de movimento alternado.

A máquina de Parsons era mais potente do que qualquer motor construído até então. Fora concebida para acionar geradores elétricos, mas nenhum gerador era capaz de empregá-la a velocidade máxima dos dínamos existentes era de 1.2oo r.p.m. Assim, Parsons desenvolveu seu próprio gerador, que funcionava a 18.ooo r.p.m., e o patenteou ao mesmo tempo que a turbina. Juntos, os dois representaram a maior inovação no uso da energia a vapor desde que Watt construíra uma máquina para produzir movimento rotativo; e também possibilitaram uma eficiente indústria de energia elétrica em larga escala. Nos anos seguintes , surgi ram diversos t ipos modif icados de turbinas, dentre os quais as máquinas de ação pura, como as de C.G. Curtis, nos

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Estados Unidos, e C.G.P. de Laval, na Suécia, que se revelaram as mais úteis. Esta última, uma turbina de um só estágio, mostrou-se particularmente eficaz para as instalações de baixa e média potência. A turbina Parsons, entretanto, dominou o campo da alta potência. Às vésperas da Primeira Guerra Mundial, alguns turboalternadores em série geravam mais de 1o. 000 kW (13.400HP), enquanto navios como o Lusitânia e o Mauritânia (1907) eram equipados com turbinas duplas que somavam 68.000HP cada uma.59

Combustão interna e novos combustíveis

O princípio de um motor de combustão interna é o de uma explosão direcionada: a rápida expansão dos gases num espaço restrito, como um cilindro, por exemplo, impulsiona um objeto, geralmente um pistão, na direção desejada. A forma mais primitiva e elementar de um motor de combustão interna é uma arma de fogo. Essa observação talvez pareça jocosa para alguns, ou no máximo uma curiosidade, e de fato, até hoje, tais mecanismos de curso único têm tido pouca ou nenhuma utilização produtiva. Nos últimos anos, entretanto, mostrou-se viável moldar por explosão peças de metal grandes demais para as prensas, com isso eliminando a necessidade de soldas dispendiosas e intrinsecamente indignas de confiança. Se a transformação tecnológica seguir seu padrão costumeiro, esse princípio encontrará uma variedade crescente de aplicações nos anos vindouros.

O emprego mais importante dos dispositivos de combustão interna, evidentemente, foi nos motores. A possibilidade desse tipo de dispositivo, acionado por explosões repetidas regularmente, já fora concebida no século XVII, quando o Abade Hautefeuille propôs (1678) e Huygens efetivamente construiu uma máquina experimental movida a pólvora. Só em 1859 porém, quando Etienne Lenoir produziu um motor acionado por uma mistura de gás e ar, é que se conseguiu uma versão potencialmente prática.

O protótipo de Lenoir consumia gás em demasia para ser comercialmente competitivo. Mas forneceu o padrão e, a partir dali, grande número de engenheiros e curiosos dedicou-se ao problema. A contribuição conceitual crucial foi feita em 1862 por Beau de Rochas, cujo ciclo de quatro tempos tornou-se um padrão desde então. Mas ninguém utilizou esse princípio eficazmente até que N.A. Otto o combinou, em 1876, com a pré-compressão da carga, produzindo o primeiro motor viável a gás. O motor "silencioso" de Otto, como era chamado, açambarcou o mercado: em poucos anos, havia mais de 35.000 deles em funcionamento em todo o mundo.60

Essa forma de combustão interna ofereceu aos industriais importantes vantagens sobre o vapor. Era mais eficiente, especialmente ao trabalhar em ritmo intermitente ou abaixo da carga total,61 condições estas que eram freqüentemente encontradas nas pequenas indústrias. Era mais limpo, e a natureza do combustível era tal que era fácil automatizar o abastecimento; a economia de custos de mão-de-obra, muitas vezes, era substancial. Por fim, o gás era comumente obtenível como subproduto de outras operações industriais - coqueifcação e fundição, por exemplo - e, obtido dessa maneira, era muito mais barato do que quando deliberadamente destilado da hulha, ou mais barato do que a própria hulha.62

A principal deficiência do motor a gás era sua imobilidade. Ele ficava preso a sua fonte de abastecimento, fosse ela um cabo de alimentação ou um forno. Isso não era uma grave desvantagem para a maioria dos objetivos industriais, mas realmente tornava o gás menos adequado como fonte de energia nos transportes .63 A resposta foi encontrada nos combustíveis líquidos - basicamente, o petróleo e seus derivados destilados. Eles tinham uma combustão praticamente tão eficiente quanto a do gás e produziam cerca do dobro do trabalho da hulha por peso, enquanto ocupavam metade do espaço;64 como o gás, além disso, seu abastecimento podia ser feito de forma limpa e mecanizada, mediante controles automáticos. Tudo isso era especialmente importante no mar, pois ali a economia contava duplamente, e tudo o que era economizado em combustível ou em tripulação significava uma renda adicional correspondente, oriunda da carga e dos passageiros. Não menos importante era a eliminação dos foguistas, que geralmente respondiam por mais de metade da tripulação. Estava ficando cada vez mais difcil encontrar homens para esse trabalho extenuante e, o que não chega a surpreender, os que eram contratados notabilizavam-se por sua intratabilidade e seu apetite.

A principal objeção ao petróleo era seu custo - situado entre quatro e doze vezes o do carvão mineral na Inglaterra, por volta de 19oo. Mas o preço dos produtos de petróleo caiu rapidamente, à medida que se abriram novas fontes de abastecimento e a indústria aperfeiçoou seus métodos de refino e suas técnicas de distribuição. Os primeiros motores a óleo comercialmente viáveis foram, provavelmente, os utilizados na Rússia, a partir da década de 1870, para queimar os restos de ostatki provenientes da destilação do óleo cru de Baku na fabricação de querosene e óleo para lampiões. Segundo Lunge, "praticamente toda a energia a vapor do sul da Rússia, tanto nas fábricas quanto na navegação dos mares e rios nacionais", era extraída, c. 1910, do combustível de ostatki .6S No Ocidente, contudo, apesar das

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experiências difundidas e exitosas com motores a óleo, o petróleo só se impôs realmente depois que a abertura dos campos de Bornéu (1898) e do Texas (poço de Spindletop, 1901) tornou disponível um óleo especialmente adequado, por sua composição química, para servir de combustível. Pouco depois (1902), a Hamburg-Amerika Line adotou o petróleo em lugar do carvão em seus novos navios e. foi seguida por uma após outra das grandes companhias de navegação a vapor. Ao mesmo tempo, as esquadras das grandes potências européias começaram o processo de transformação: a Itália instalou um combustor de petróleo já em 1890; a Inglaterra começou, em 1903, pelos navios que operavam em águas próximas das fontes de petróleo sobretudo no Extremo Oriente , mas, decorrida uma década, construiu uma rede mundial de armazenagem que permitiu o uso de combustível líquido em toda a frota.

A aceitação no uso terrestre foi mais demorada, embora algumas ferrovias britânicas e firmas industriais do Tâmisa experimentassem o petróleo e só o abandonassem quando os preços em alta o tornaram caro demais em relação ao carvão. A única aplicação em que ele ganhou terreno sistematicamente foi sob a forma do que os contemporâneos chamavam éter de petróleo, nossa atual gasolina. Apesar disso, o automóvel ainda era um luxo na Europa anterior à Primeira Guerra Mundial: as estradas eram terríveis e as quebras, freqüentes. Ninguém tinha qualquer possibilidade de prever a imensa expansão da procura de combustível líquido para veículos rodoviários que ocorreu desde então. As próprias companhias de petróleo transportavam seus produtos em carroças puxadas por cavalos.

Eletricidade

Do ponto de vista do historiador econômico, a importância da eletricidade residiu em sua combinação singular de duas caracteristicas: a transmissibilidade e a flexibilidade. Com a primeira referimo-nos a sua capacidade de deslocar a energia no espaço sem grandes perdas. E com a segunda referimo-nos a sua conversão simples e eficiente em outras formas de energia - calor, luz ou movimento. Uma corrente elétrica pode ser usada para produzir um ou todos eles, separadamente ou em conjunto, e o usuário pode passar de um para outro a seu critério. Ele também pode usar exatamente a quantidade de energia necessária, grande ou pequena, e modificála quando preciso, sem adaptações demoradas ou sacrifício da eficiência. E paga pelo que utiliza.

Dessas caracteristicas emergiram duas grandes conseqüências. Por um

lado, a eletricidade libertou as máquinas e ferramentas da escravidão da localização; por outro, tornou a energia onipresente e a colocou ao alcance de todos. Essas duas coisas - e elas estão inextricavelmente ligadas - merecem uma consideração pormenorizada.

Até a segunda metade do século XIX, as máquinas sempre tinham estado estreitamente vinculadas a sua fonte de energia. Não podiam ser colocadas longe demais, em virtude da ineficiência das correias e eixos de transmissão como método de distribuição da energia: cada engrenagem, junta ou volante era uma fonte de perda de energia, e a torsão nos eixos longos era tamanha que a rigidez e a rotação regular só podiam ser mantidas através do uso de materiais desproporcionalmente pesados. Também por isso, as máquinas ficavam enraizadas em sua posição ou restritas a um posicionamento ao longo do trajeto dos eixos, pois só ali eram capazes de retirar energia da fonte.

Essas não eram desvantagens graves em indústrias como a têxtil, onde bancadas de equipamento criteriosamente alinhadas trabalhavam lado a lado em ritmo idêntico, embora, mesmo nesse caso, o uso de eixos com mais de 200 pés de comprimento criasse problemas dispendiosos.66 Mas elas geravam toda sorte de dificuldades em ramos como a siderurgia ou a engenharia mecânica, onde o trabalho era disperso, o ritmo era desigual e boa parte do equipamento estava sempre sendo movimentada. A resposta, nesses casos, era uma multiplicidade de máquinas a vapor, grandes e pequenas. Tratava-se de uma solução dispendiosa, não apenas em termos de desembolso de capital mas também de custos operacionais. Como já vimos, essas máquinas menores, que muitas vezes funcionavam abaixo da potência total, eram extremamente ineficientes; pela mesma razão, tinham um apetite voraz de mão-de-obra. E, o que é não menos importante, eram um incômodo, com suas pilhas de carvão espalhadas por toda parte, seu barulho e sujeira, seus gases de descarga e sua necessidade de manutenção se parada.

A energia só pode ser economicamente transmitida ao longo de distâncias superiores a algumas centenas de pés através de fluidos ou gases, que podem ser fornecidos sob pressão em tubulações rígidas ou mangueiras flexíveis, ou através da corrente elétrica. Cada técnica tem seus próprios méritos e sua área de aplicação; todas são muito eficazes. Na segunda metade do século XIX, todos esses três métodos começaram a ser usados, na ordem indicada.

Os sistemas de fluidos geralmente usam água - nenhum líquido é mais barato – ou óleo, que faz a lubrificação enquanto trabalha; os sistemas a

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gás quase sempre usam o ar. São especialmente adequados para a transmissão de pequeno e médio alcance, a distâncias de até algumas milhas entre a fonte de energia e a máquina. Seu forte é o trabalho em que a incompressibilidade é uma vantagem e a ação mecânica é direta elevadores, bombas, prensas, furadores e freios. Seu efeito nessas operações tem uma certa qualidade inexorável, e seu trabalho mais se caracteriza pela força do que pelo movimento - como pode testemunhar qualquer um que tenha andado num elevador hidráulico. Em princípio, a água e a pressão atmosférica também podem ser usadas com turbinas para produzir movimento giratório (cf. os moinhos). Nesse caso, porém, não são tão flexíveis quanto a eletricidade nem tão adequadas ao trabalho pesado. Mas o ar comprimido, em especial, é excelente nos motores leves encontra hoje uma nova aplicação na odontologia, onde provou ser o acionador mais conveniente das brocas de alta velocidade - e é quase indispensável em campos como a mineração, onde a presença de partículas inflamáveis' impede o uso de motores de explosão.

Historicamente, os sistemas de pressão pneumática quase sempre foram obra de. empresas isoladas, enquanto a pressão hidráulica costuma ser distribuída a partir de usinas centrais. A criação dessas instalações data da invenção, em 18 5 o, do acumulador, que possibilitou armazenar pressão e economizar na capacidade máxima. A princípio, a água era obtida por simples retirada.das tubulações públicas. Mas, nas duas últimas décadas do século, a técnica havia chegado a um ponto em que o capital privado estava disposto a investir em usinas de bombeamento e sistemas de distribuição independentes. A iniciativa inglesa foi particularmente ativa nesse aspecto. Ainda em meados dos anos noventa, havia engenheiros convencidos de que a pressão hidráulica era superior a qualquer outro meio de transmissão de energia. Em 1894, a Antuérpia chegou realmente a tentar usá-la para distribuir energia para centrais elétricas espalhadas pela cidade, em vez de enviar a corrente diretamente da usina central. A operação não deu lucro.

A verdade é que a, energia hidráulica e a ar comprimido deveram muito de.seu sucesso a sua prioridade. Elas chegaram primeiro. Mas, depois que a eletricidade entrou em cena, estavam fadadas a perder terreno. Eram mais fortes onde prevaleciam uma ou ambas as condições abaixo:

(a) Quando a fonte primária de energia tinha sido construída para outras finalidades e existia independentemente, como no caso das usinas hidráulicas públicas ou das bombas de ar comprimido usadas na escavação subaquática. Nessas condições, a água ou o ar usados para fins motrizes eram subprodutos cujo custo marginal era muito baixo. Os sistemas hidráu-

licos municipais de Genebra e Lyon, duas cidades abundamentemente dotadas de água corrente, incluíam-se nessa categoria.

(b) Quando as operações industriais da região prestavam-se a essas técnicas - por exemplo, em portos como Liverpool e Londres, onde havia muito trabalho de levantamento de carga a ser feito, ou em cidades algodoeiras como Manchester, com suas centenas de prensas de enfardamento.

No mais, a partir dos últimos anos do século XIX, a eletricidade tomou conta do campo da transmissão de energia. A história desse desenvolvimento merece ser acompanhada como um exemplo de cooperação científica e técnica, de invenção múltipla, de progresso através de uma infinidade de pequenos aperfeiçoamentos, de espírito empresarial criativo, de demanda derivada e de conseqüências imprevistas. O crescimento simbiótico da energia elétrica e dos motores elétricos é como o das máquinas têxteis e da máquina a vapor no século XVIII: uma nova técnica e sistema de produção tornaram-se acessíveis, com possibilidades ilimitadas. Era o Gênese mais uma vez.

No início do século XIX, a eletricidade era uma curiosidade científica, um brinquedo de -laboratório. Em decorrência da investigação e experimentação largamente difundidas, no entanto, tornou-se uma-forma de energia comercialmente útil, primeiro nas comunicações,67 logo depois nos processos da indústria química leve e da metalurgia68 e, finalmente, na iluminação. Dentre estes, a última teve o maior impacto econômico, em. virtude de suas implicações para a tecnologia da energia em geral.

A invenção da lâmpada de filamento incandescente, sobretudo o tipo de alta resistência de Edison, foi crucial nesse aspecto. Pela primeira vez, a eletricidade oferecia algo que era útil não apenas na indústria, ou no comércio, ou nos palcos teatrais, mas em todos os lares. Nenhuma das aplicações anteriores tinha tido uma voracidade especial de energia, e cada empresa, conforme a escala de seus requisitos, podia gerar sua própria energia de maneira lucrativa. Agora, entretanto, havia uma demanda - incalculavelmente grande no total, mas pulverizada numa multiplicidade de necessida-des individuais - que só podia ser atendida por um sistema centralizado de geração e distribuição de força. Também este foi concebido por Edison, e fez toda a diferença a disponibilidade de iluminação elétrica para todas as pessoas, em vez de para uns poucos abastados.

O desenvolvimento das centrais elétricas foi obra das duas últimas décadas do século XIX. Foi uma conquista tecnológica extraordinária, somente possibilitada por quase um século de grandes e pequenos avanços teóricos e inovações práticas. Os marcos merecem destaque: a pilha química de

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Volta, em 18oo; a descoberta do eletromagnetismo por Oersted, em 1820; a formulação da lei do circuito elétrico por Ohm, em 1827; as experiências de Arago, Faraday e outros, que culminaram na descoberta da indução eletromagnética por Faraday, em 1831; a invenção do gerador eletromagnético auto-estimulado (Wilde, Varley, E.W. von Siemens, Wheatstone et al.), em 1866-7; o dínamo de Z.T. Gramme, primeiro gerador de corrente direta comercialmente viável, em 1870; e o desenvolvimento de alternadores e transformadores para a produção e conversão de corrente alternada de alta voltagem, na década de 188 o. Menos famosos, mas igualmente vitais, no entanto, foram os avanços na fabricação de cabos e materiais isolantes, nos detalhes da construção de geradores, na operação das máquinas motrizes, na interligação das unidades componentes do sistema, na escolha de características da corrente e nos registros do fluxo e do consumo.69

A primeira central elétrica pública da Europa foi fundada pelos irmãos Siemens em Godalming, na Inglaterra, em 1881.70 Nos dez anos e meio seguintes, outras brotaram por toda a Europa ocidental: uma colcha de retalhos múltipla, composta de unidades locais situadas segundo o mercado, cada qual com seu próprio equipamento e método de transmissão. Na Inglaterra, em particular, onde a Lei de Iluminação Elétrica baseou-se na proposição de que todo condado deveria ter sua própria estação de força, a multiplicidade de técnicas daí resultante viria a ser um legado dispendioso.

Muito cedo, entretanto, os empresários se aperceberam de que era possível conseguir economias importantes, caso a fábrica geradora fosse localizada na (ou próxima da) fonte de energia, com a corrente sendo enviada dali. Sem dúvida, quanto mais longas as linhas, maior a perda de energia, mas esta podia ser minimizada pelo uso da corrente alternada de alta voltagem.71 A primeira grande estação desse tipo foi a que Ferranti construiu em 1887-9, em Deptford-no-Tâmisa, para abastecer Londres, com 1o.ooo volts. Enquanto isso, as experiências feitas no Continente, onde havia um grande incentivo ao uso de energia hidroelétrica, iam demonstrando a possibilidade de transmitir a energia a distâncias ainda mais longas. Em 1885, enviou-se energia de um gerador de 15okW localizado em Creil para Paris, cobrindo uma distância de 56km, em caráter experimental; e em 1891 veio o avanço decisivo, quando Oscar Müller e a firma suíça Brown, Boveri & Co. forneceram 225kW a uma distância de 179km, a 30.000 volts, partindo de Lauffen, no alto Neckar, até Frankfurt-no-Maine.72 Vinte anos depois, a corrente era transmitida por linhas que funcionavam a até 1oo.ooo volts, e foi criado o princípio das redes regionais de distribuição. Tornouse então possível desenvolver grandes municípios de energia integrada, on-

de toda sorte de empresas agrícolas e industriais, para não mencionar as casas e lojas, podia recorrer a uma eficiente fonte de energia comum. Assim, às substanciais economias de escala na geração de energia acrescentaram-se as vantagens da diversificação: quanto mais heterogênea a demanda, mais favoráveis os fatores da carga e da capacidade.

Os alemães assumiram a liderança nessa área. O desenvolvimento mais rápido ocorreu na Vestfália, onde o calor eliminado pelos altos-fornos e os gases da coqueificação constituíam uma fonte excepcionalmente barata de energia; mesmo assim, a procura superou a oferta, e imensas fábricas geradoras de vapor movidas a carvão foram construídas para atender às necessidades dos consumidores, industriais e domésticos. O maior produtor de corrente era a Rheinisch-Westfálische Elektrizitãts-A. G., fundada em 1900, cuja rede de linhas cobria toda a extensão do vale do Reno, de Koblenz até a fronteira holandesa; de 2,7 milhões de kWh em 19oo-1, sua produção saltou para 121,7 milhões em 191o-1 e 388 milhões em 1915-6. Outras companhias só eram menores em termos comparativos; e a estas conviria acrescentar as várias empresas de carvão e ferro, que também funcionavam como fornecedores independentes de energià.73 No resto da Europa, entretanto, a efetivação dessas possibilidades só ocorreu uma década depois, ou mais.

Todavia, a corrente elétrica era mais do que um meio conveniente de distribuir os combustíveis já aceitos. Graças à transmissão a longa distância,as quedas d'água impuseram-se mais uma vez como fontes de energia, que agora podia ser fornecida às fábricas, assim como o carvão às máquinas a vapor. O acréscimo aos recursos naturais do mundo foi imenso: em 1913, a produção mundial de energia hidráulica, usada em sua maioria para gerar eletricidade, foi de 51o milhões de kWh, ou o equivalente a 8oo.ooo toneladas longas de hulha (a um consumo de 3,5 libras de hulha por kWh); dezesseis anos depois, apesar da guerra mundial, a produção hidroelétrica superou os 120 bilhões de kWh, equivalentes a pouco mais de 1oo milhões de toneladas de carvão (a uma taxa mais eficiente de uma libra por kWh), representando 40% da produção mundial total de eletricidade.74 Àquela altura, as usinas geradoras de eletricidade estavam-se encarregando de aproximadamente 2/3 da capacidade motriz dos principais países industrializados.

A causa precipitante da geração de energia em larga escala foi a iluminação elétrica, mas esta logo foi ultrapassada, como fator de demanda, por aplicações diferentes e mais pesadas da nova forma de energia. A primeira delas foi a tração. Em 1879, mais ou menos na mesma época em que a

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lâmpada de filamento incandescente entrou no mercado, Siemens apresentara a primeira ferrovia elétrica na Exposição Industrial de Berlim. Durante a geração seguinte, a direção elétrica havia-se padronizado nas linhas de bonde e de metrô e fora introduzida com êxito nos sistemas ferroviários de bitola larga. A segunda aplicação foi na eletroquímica pesada: tanto o método de fabricação de alumínio de Hall-Héroult (1886) quanto os processos de fabricação de sódio, cianeto de sódio e soda cáustica de Castner (18 86 e 1894) requeriam enormes quantidades de energia.75 A terceira foi na eletrometalurgia: a principal inovação foi o forno elétrico de Sir William Siemens (1878). Essa técnica, cujas grandes virtudes são a limpeza e as tem-peraturas elevadas, recebeu um impulso considerável do desenvolvimento de ligas de aço especiais por volta da virada do século.

A quarta e mais importante aplicação foi a energia motriz fixa. Ironicamente, os produtores e engenheiros demoraram a aquilatar seu potencial. Ainda em 1894, uns seis anos depois que a invenção do motor de indução de corrente alternada e dos sistemas polifásicos por Tesla havia "tornado a corrente alternada tão adequada para fins mecânicos quanto ela fora para a iluminação",76 o presidente do Instituto Britânico de Engenheiros Mecânicos afirmou que a principal finalidade das usinas elétricas públicas "era, e provavelmente sempre será, o fornecimento de energia para fins de iluminação".77

Ele não poderia ter estado mais equivocado. Por sua flexibilidade e conveniência, a eletricidade transformou as fábricas. Agora, o motor podia ser ajustado à ferramenta, e a ferramenta, deslocada para a tarefa - uma vantagem especial na engenharia e em outras indústrias voltadas para a fabricação de objetos pesados. E agora era possível limpar o emaranhado de eixos e correias de transmissão que tinha sido a característica mais destacada das salas de máquinas desde os moinhos hidráulicos da década de 1770 - uma ameaça à segurança, uma interferência nos movimentos, uma fonte de quebras e um devorador de energia.

Mas a eletricidade fez mais do que modificar as técnicas e a aparência das fábricas: ao tornar disponível uma energia barata fora e dentro da fábrica, ela inverteu as forças históricas de um século, deu vida e âmbito novos a dispersa indústria domiciliar e artesanal e modificou o modo de produção. Em particular, ela possibilitou uma nova divisão do trabalho entre grandes e pequenos estabelecimentos. Enquanto, anteriormente, os dois tinham sido quase inevitavelmente opostos num dado ramo industrial - um usando novas técnicas e florescendo, outro agarrando-se aos antigos hábitos e declinando -, tornou-se então possível uma complementaridade. Os dois tipos passaram a poder usar equipamentos modernos, com a fábrica se concen-

trando em objetos maiores ou em artigos padronizados que se prestassem a técnicas com alto coeficiente de capital, enquanto a oficina se especializava em processos de mão-de-obra intensiva que usassem ferramentas mecânicas leves. E a complementaridade, muitas vezes, transformou-se em simbiose: a moderna estrutura de terceirização na indústria de bens de consumo duráveis apóia-se na eficiência tecnológica da pequena oficina mecânica.

Os novos usos e a energia mais barata promoveram a capitalização. A maior eficiência das fontes motoras foi mais do que compensada pela maior demanda de energia e pela multiplicação dos motores e máquinas, não apenas na indústria, mas também na agricultura e, eventualmente, nas casas. Sem dúvida, a grande expansão prometida pela eletrificação doméstica ainda estava muito longe: na Europa, o refrigerador, o aquecedor elétrico, a lavadora de roupa e os grandes usuários de energia similares (em contraste com a iluminação elétrica, o rádio e o gramofone, que consumiam pouca força) só apareceram em larga escala depois da Segunda Guerra Mundial. Ainda na década de 1950, a maciça maioria das casas e apartamentos se arranjava com circuitos de entrada de dez amperes ou menos; o aparelho mais voraz era o ferro elétrico. Mas a proliferação e a disseminação leigas de equipamentos elétricos, que estão longe de ter-se esgotado, remontam a essas décadas anteriores à Primeira Guerra Mundial. Àquela altura, não havia atividade que não pudesse ser mecanizada e movida a energia. Era a consumação da Revolução Industrial.

Parte desse investimento representou simplesmente uma mudança do capital de giro para o capital fixo, pois os recursos antes reservados para os suprimentos de combustível e a mão-de-obra dos fornos foram liberados para outras utilizações. Mas sua maior parte era, de longe, constituída por capital novo, criado em resposta às oportunidades oferecidas pelas novas funções da produção. Nesse aspecto, não se deve esquecer a própria indústria elétrica - dezenas de milhares de empresas gerando e distribuindo corrente, além de construir e fazer a manutenção de equipamentos. Nela, como na indústria química, as realizações mais notáveis ocorre ram na Alemanha. Os paralelos são numerosos: o começo tardio, o crescimento rápido, baseado na excelência tecnológica e na organização racional, a concentração da produção e a sólida posição no mercado mundial. Ate a própria véspera da Primeira Guerra Mundial, é possível que a Inglaterra ainda estivesse à frente no consumo de energia elétrica, embora as estatísticas dos dois países se pautassem em bases tão diferentes que a comparação é arriscada.78 Em menos de dez anos, entretanto, a Alemanha havia ultra-passado sua rival e a deixara muito para trás - a despeito das pesadas per-

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das territoriais devidas à guerra. Assim, em 1925, a produção regular das fontes motoras alemães totalizou 21.186.825HP, contra 16.808.700 na Inglaterra em 1924; os números correspondentes no tocante aos geradores elétricos foram 13.288.8oo e 8.51o.000HP, respectivamente. E mais, como implica o fator alemão mais alto de capacidade, suas centrais e redes de distribuição eram, em média, maiores, suas características de corrente, mais uniformes, e seu desempenho, mais eficiente.

Ainda mais impressionante foi o progresso da indústria elétrica alemã. Ela era a maior da Europa - mais de duas vezes maior que a da Inglaterra - e só perdia por uma pequena margem para a dos Estados Unidos.79 As firmas, como na indústria química, eram grandes e bem financiadas, solidamente apoiadas pelo mercado de capitais e pelos grandes bancos de investimentos. A maior delas, a Allgemeine Electricitãts-Gesellschaft (ou AEG) de Emil Rathenau, bem como o conglomerado Siemens-Schuckert, eram companhias detentoras do controle acionário, dotadas de extraordinária versatilidade e complexidade. Seus produtos eram engenhosos, solidamente fabricados e de preços competitivos; o apoio financeiro possibilitava um crédito generoso aos clientes. Como resultado, as exportações alemãs às vésperas da guerra eram as maiores do mundo, equivalendo a mais de duas vezes e meia o total do Reino Unido e a quase o triplo das exportações norte-americanas.80

Mas não se deve superenfatizar a importância do capital. Assim como na indústria química, o conhecimento científico, a habilidade técnica e os altos padrões de desempenho tiveram maior peso na colocação no mercado. Também nesse campo, um pequeno país como a Suíça obteve um êxito extraordinário, e nomes como a Brown-Boveri, a Oerlikon, a Eggi-Wyss e a Cie. de 1'Industrie Electrique et Mécanique (CIEM) adquiriram fama internacional. Pelas mesmas razões, até uma economia agrária como a da Hungria conseguiu produzir uma empresa como a Ganz, de Budapeste.

Algumas considerações gerais

Há dois pontos que merecem ser enfatizados: a estabilidade subjacente da base de recursos naturais necessários à energia industrial e o aumento contínuo do consumo de energia. A espetacular contribuição dos novos métodos de produção e distribuição da energia tende a obscurecer as continuidades desse aspecto da história industrial. Trata-se de uma ilusão de ótica: o olhar é sempre captado pelo movimento. Apesar de todo o desenvolvimento das novas fontes de energia - hidroeletricidade, petróleo, gasolina,

gás -, o carvão conservou sua primazia. Perdeu terreno, sem úvida: em 1913, respondeu por cerca de 88,5% da produção mundial de energia; em 1925, por 75,5%; e em 1931, por apenas 66,5%. Mas esses números tendem a exagerar o declínio, pois uma proporção elevada da energia derivada de outras fontes sempre foi direcionada para os transportes e o consumo doméstico; o carvão, ao contrário, detinha um lugar muito mais sólido na indústria, quer diretamente, por meio das máquinas a vapor, quer indiretamente, por intermédio dos geradores elétricos.

A proporção da energia derivada do carvão variou em cada país conforme os recursos naturais. A Inglaterra e a Alemanha, ricas em minério, confiaram maciçamente nas máquinas a vapor como fonte primária; a Bélgica, uma terra plana e sem quedas d'água, mais ainda. Em comparação, a França, com um déficit perene de carvão, mas uma dotação hidroelétrica abundante (Alpes, Pireneus, Vosges, Maciço Central), utilizou menos as máquinas térmicas, enquanto a Itália e a Suíça, quase sem nenhum carvão mas com uma profusão de montanhas, passaram a depender quase inteiramente da energia hidráulica.

Até hoje, o carvão continua a ser a fonte primária de energia industrial e, portanto, o recurso natural básico das economias industrializadas. Até quando isso continuará, é impossível prever, dada a rapidez da transformação tecnológica, o esgotamento progressivo dos depósitos mais acessíveis, a concorrência do petróleo barato e a competição potencial da energia nuclear.81 Até na metalurgia ferrosa, onde o carvão parece estar mais firmemente instalado, em virtude de seu papel como fonte de energia e agente redutor, as recentes inovações na prática da fundição tornaram possível trabalhar com o gás natural, e seria temerário prever o curso da técnica. Mesmo assim, o carvão tem a vantagem do preço baixo e da elasticidade da oferta, pois ainda há importantes depósitos por explorar, e a proporção

TABELA 12. PROPORÇÃO DA ENERGIA PRIMÁRIA DERIVADA DAS MÁQUINAS A VAPOR

1911 (%) 1925 (%)

Grã-Bretanha 92 90 Alemanha 82 82 França 73 71

Itália 29 22 Suíça 20 6

Fonte: G.F. Hiltpold, Erzeugung and Verwendung motorischer Kraft, Zurique, 1934, p. 12.

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entre a produção e as reservas continua relativamente baixa. O carvão ficaríamos tentados a dizer o Rei Carvão - não tende a ser destronado durante nossa vida.

Qualquer que fosse sua fonte, entretanto, o uso da energia dentro e fora da indústria aumentou rapidamente. Mesmo admitindo as notórias deficiências de nossos dados estatísticos, particularmente resistentes a comparações internacionais, a tendência ao longo do tempo foi marcante demais para ser perdida de vista. Estima-se que a produção mundial de fontes comerciais de energia tenha aumentado do equivalente a 1,674 bilhões de megawatts-hora em 1870 para 10,840 bilhões em 1913.82 Quanto aos avanços nacionais, temos melhores informações sobre os países do Continente, como se vê na Tabela 13.

Não podemos oferecer estatísticas comparáveis em relação a Inglaterra, mas as cifras referentes ao consumo de carvão já dizem tudo (Tabela 14).

Convem.notar, além disso, que esses números relativos ao carvão no mínimo subestimam a rapidez do avanço industrial alemão. Na Inglaterra, os transportes, em especial a navegação, responderam por uma parcela grande e crescente do consumo de energia nas últimas décadas do século XIX. As estimativas de Mulhall indicam a potência das máquinas fixas como sendo de 20% ou menos da capacidade total da energia a vapor; outras conjecturas chegam a atingir 33%, mas isso ainda constitui uma pequena fração.83 Na Prússia, em contraste, os motores navais forneciam

TABELA 13. ENERGIA A VAPOR NA INDÚSTRIA (capacidade em milhares de cavalos-vapor)

Alemanha França Bélgica

c. 1860a 100 169 102 1875 949 401 212 1895 3.357 1.163 - 1907b 6.500c 2.474d 1.038

a. 1861 na Zollverein; 18S9 na França; ,86, na Bélgica. b. 1909 na Bélgica. c. 8.008.000w' de todas as fontes energéticas. d . 3.191.500HP de todas as fontes energéticas. Fontes: Alemanha: G. Viebahn, Statistik deszollvereinten und nõrdlichen Deutschlands, p. 1.036-7 (seu número não parece concordar com o de Engel, "Das Zeitalter des Dampfes", Z. Kõniglichen Preussischen Statistischen Landesamtes, XX, 1880, p. 122, que indica 142.658HP na agricultura e indústria prussianas em 186,); F. Zweig, Economics and Technology, Londres, 1936,p. 119-20; G. F. Hiltpold, Erzeugung und Verwendung, p. 68. França: Annu. statistique, LVII, 1956, res. retrosp., p. 116-117.

Bélgica: Expose dela situation du royaumme, 1861-1875, II, p. 834-5; Annu. statistique, 191 1-2, p. 349.

Volume Razão Volume Razão Volume Razão Volume Razão 1861 77.657 100 13.9576 100 15.403 100 6.140 100 1913 189.074 244 187.000` 1.340 64.834d 421 26.032 424 a. Toneladas longas no Reino Unido; toneladas métricas nos demais. b. Inclui 4.522 toneladas de linhita, deflacionadas à razão de 9: 2. Inclui 94.16o toneladas de linhita, deflacionadas à razão de 9:2. d. Ao que poderíamos acrescentar aproximadamente io.ooo toneladas consumidas na Alsácia Lorena. Fontes: Reino Unido: Finlay A. Gibson, The Coal Mining Industry of the United Kingdom, Cardiff, 1922, p. 77, e William Page, Commerce and Industry, Londres, 1919, II, p. 154 e 18o. França: Annu. statistique, LVII, 1946, p. 230-1. Alemanha: Bienengrãber, Statistik des Verkehrs and Verbrauchs im Zollverein, p. 2S9 e 263, quanto ao ano de 1861; StatistischesJahrbuchfur das Deutsche Reich, XLI, 1920, p. 149, quanto ao ano de 1913. menos de 1/10 do total da energia a vapor, enquanto as instalações fixas respondiam por cerca de 85%.

Podemos concluir essa discussão com algumas considerações sobre a significação mais ampla dessas estatísticas meio entediantes da produção de energia e do consumo de combustível. Elas têm interesse por si, porém mais ainda como indicadores do crescimento industrial e da formação de capital. A correlação entre as estimativas de consumo de energia e de estoque de capital industrial é espantosamente elevada - nos Estados Unidos, de 1880 a 1948, apresenta um coeficiente de 0,9995; no Reino Unido, de 1865 a 1914, 0,96 ou 0,99, dependendo da série empregada.84* Na verdade, fica-se quase tentado a indagar se a mensuração direta da formação de capital, de forma combinada, justifica o esforço.

À primeira vista, esse paralelismo pode ser surpreendente: os aperfei-çoamentos tecnológicos tenderam a melhorar a relação entre a quantidade de energia recebida e a efetivamente utilizada, diminuindo assim os requisitos de capital correspondentes a um dado nível de consumo de energia. Mas, como vimos na discussão sobre a eletricidade, isso foi contrabalançado pela difusão dos motores e da maquinaria em atividades anteriormente entregues ao trabalho manual ou animal; na verdade, cada aperfeiçoamento da

* O coeficiente de correlação estatística pode variar entre zero e um. Quando atinge o valor da unidade, a correlação é perfeita. Nos exemplos citados por Landes, a formação de capital responde por praticamente todo o incremento no consumo de energia. (N. da T.)

TABELA 14. CONSUMO DE CARVÃO EM PAÍSES SELECIONADOS (em milhares de toneladas), Reino Unido Alemanha França Bélgica

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eficiência na produção ou utilização de energia incentivava incrementos no capital fixo, em detrimento do capital variável. Em certo sentido, a história da energia é a história da industrialização.

MECANIZAÇÃO E DIVISÃO DO TRABALHO Qualquer esforço de acompanhar a difusão da mecanização em todas as suas ramificações está fadado a chafurdar numa confusão de detalhes. Entretanto, os princípios básicos estabelecidos em 1850 foram poucos. Como assinalamos antes, a máquina que perfurava metal podia ser usada para perfurar couro; a prensa que cunhava moedas podia ser adaptada para moldar tubos ou prensar peças de carroceria para automóveis; a lâmina que cortava tecidos podia ser ajustada para talhar metal. O período iniciado em 18 50 foi fecundo em adaptações desse tipo. Um exemplo, escolhido por sua importância social e econômica, é suficiente: a máquina de costura.

Não é fácil atribuir o mérito pela invenção da máquina de costura. Como freqüentemente acontece, há uma distinção a ser feita entre a descoberta nominal e a efetiva, e entre o inventor e o inovador; e, nesse caso, a questão se complica por invenções paralelas e nem tão paralelas. A primeira máquina viável foi a de Barthélemy Thimmonier, de St. Etienne, patenteada em 1830. Era de madeira, lenta e desajeitada, mas realmente se impôs na fabricação de uniformes do exército, atividade em que a qualidade era uma consideração secundária e a padronização era viável. Em 1841, havia, talvez, 81 dessas máquinas em funcionamento numa grande oficina em Paris; elas foram destruídas por uma turba, numa explosão quase esquecida de ludismo.* Thimmonier aperfeiçoou seu modelo nos anos posteriores, mas as perturbações decorrentes da revolução de 1848 e o desenvolvimento de técnicas superiores por outras pessoas frustraram seus esforços. Ele morreu pobre e desconhecido em 1857.

A linha principal do desenvolvimento das máquinas de costura passa por Elias Howe (a agulha com furo na ponta, a lançadeira para colher o fio inferior e o pesponto duplo característico, em 1846), Isaac Singer (o pedal e a agulha reta, em 1851 e anos posteriores) e Allen B. Wilson (o gancho

* Os luditas eram um grupo de trabalhadores ingleses do início do século XIX que tentavam impedir a mecanização, poupadora de mão-de-obra, mediante a destruição das máquinas. Seu nome proveio de Ned Ludd, um operário de Leicestershire que, em 1779, tomou-se conhecido por destruir vários teares. (N. da T.)

e carretel giratórios, que possibilitaram o movimento contínuo em vez do alternado., e o mecanismo alimentador em quatro movimentos, em 1850 e 1854). Singer foi o Arkwright dessa indústria. Visualizou o papel que a nova máquina poderia ter, não apenas na indústria, mas também nas casas: ela foi o primeiro aparelho doméstico. Singer divulgou-a amplamente, ofereceu cursos sobre sua utilização, tornou-a acessível através do crediário e foi pioneiro nos contratos de venda e manutenção. Enfrentando a feroz oposição dos alfaiates e das costureiras profissionais, a máquina impôs-se rapidamente. Estava fadada a fazê-lo - não apenas pelo fato de a indústria julgá-la muito econômica, mas também porque as mulheres descobriram nela a libertação de antigos grilhões. A máquina de costura não marcou o fim da exploração e do suor na indústria de roupas, ao contrário. Mas realmente tornou agulha e linha obsoletas e, ao fazê-lo, pôs fim à "mão fatigada" e ao "ponto-ponto-ponto" da dolorosa "canção da camisa".

A máquina de costura deu origem a uma família de equipamentos correlatos: as máquinas de chulear, casear, coser com ponto invisível, bordar e tecer renda. Mais importantes ainda foram suas aplicações em outras indústrias: na fabricação de luvas, de arreios e selas, na encadernação de livros e, acima de tudo, na produção de botas e sapatos (a máquina de BlakeMcKay, para costurar as gáspeas nas solas, 186 o; a máquina de pregar viras de Goodyear, 1871 e 1875). Sua versatilidade fez dela a inovação mais radical na produção de bens de consumo desde o tear mecânico.

O resultado foi uma nova extensão do sistema fabril e uma substituição da mesa da costureira e da bancada do artesão pelas grandes oficinas (muitas vezes, explorando o trabalho em troca de salários de fome) ou por arranjos de produção domiciliar. A fabricação mecanizada de roupas, em especial, exigia um capital inicial relativamente pequeno (uma máquina de costura nova, em 1870, custava entre £4. 1os1 e, talvez, £14);85 a oferta de mão de-obra, alimentada pelos imigrantes vindos da Europa central e oriental, era abundante; e a produção podia ser dispersada, subcontratada ou entregue a trabalhadores domiciliares. E virtude disso, o ingresso no ramo era fácil, embora também o fosse a saída.

A longo prazo, a demanda mostrou-se elástica e em crescimento constante. Os primeiros produtores de roupas prontas tinham-se restringido a uniformes de marinheiros, encomendas do exército e ao mercado colonial de além-mar. As pessoas de posses mandavam fazer suas roupas segundo sua preferência; os pobres confeccionavam as deles. No fim do século, entretanto, a aceitação das confecções prontas havia-se disseminado, a começar pelos artigos - casacos, camisas e roupas de baixo - em que o corte

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era uma consideração menos importante. O "terno de domingo" foi um fator fundamental nessa mudança de atitude: o trabalhador, que antes se contentava em passar a vida usando calças de tecido canelado ou brim e suéteres de algodão ou malha, passou então a ter algumas roupas formais. E, para a clientela mais exigente, havia os departamentos de encomendas especiais, que produziam artigos de fábrica de acordo com as medidas pessoais. Infelizmente, não temos estatísticas da produção da indústria de vestuário ao longo do tempo, mas os indícios parciais e qualitativos de que dispomos atestam a rapidez de sua expansão e a importância dessa nova categoria de produtos para o campo do comércio varejista.

A fabricação de calçados foi uma outra história: o equipamento era caro e volumoso demais para utilização doméstica e, por sua especialização funcional, não se adequava à produção dispersa. Na verdade, todos os esforços da indústria direcionaram-se para a fragmenação do trabalho em etapas suficientemente simples para serem executadas por máquinas de uma só finalidade. Em 1858, um sapateiro levava 1.025 horas para produzir 100 pares de sapatos femininos, a um custo de mão-de-obra de US$ 2 56,33; em 1895 85 homens levavam 80 homens-hora para realizar a mesma tarefa, a um custo trabalhista total de US$18.59.86

Isso foi nos Estados Unidos, onde o preço da mão-de-obra era relativamente alto e os consumidores eram mais receptivos aos artigos padronizados e produzidos em massa. Na Europa, o avanço da indústria mecanizada de calçados foi mais lento, e o da produção fabril, mais vagaroso ainda. Não obstante, o exemplo do desenvolvimento norte-americano e, na Inglaterra, a pressão das importações baratas vindas do outro lado do Atlântico incentivaram a adoção das novas técnicas. Entre 1890 e 1903, o valor das importações de calçados de couro pelo Reino Unido elevou-se em £607.000, enquanto as exportações tiveram uma queda de £53.ooo. Ate mesmo o Sindicato dos Operários Produtores de Botas e Sapatos, intransigente opositor da mecanização e defensor das imaculadas virtudes do artesão, ficou abalado, resignando-se relutantemente à necessidade da mudança.87

A reação empresarial foi apropriadamente vigorosa: "Não ha dúvida de que a indústria de calçados acha-se agora em processo de uma revolução mais súbita e completa, na transição de uma indústria manual para uma indústria mecânica, do que qualquer outra grande indústria inglesa", assinalou um observador em 1904.88 A afirmação só se aplicava às maiores fábricas, que haviam recuperado a maior parte do atraso tecnológico em 1907. O recenseamento industrial desse ano mostrou 75% dos trabalhadores do ramo de calçados inglês (105.200 dos 140.000) empregados em "fábricas"

que usavam alguma quantidade de energia; os demais eram trabalhadores externos (13.700) ou artesãos que trabalhavam em oficinas (21.600). Essas fábricas eram, em sua maioria, pequenas empresas que usavam equipamento leve; a capacidade energética total era de apenas 20.171 HP, ou cerca de 1/5HP por homem.89 Mas elas respondiam por 88% da produção industrial.

Os números alemães não são estritamente comparáveis. Mas, admitindo-se as diferenças de classificação, eles mostram uma indústria um pouco menor do que a inglesa e, provavelmente, mais mecanizada. Uma coisa fica clara: a indústria alemã de calçados apoiava-se muito mais na energia elétrica.

Apesar de toda a impressionante proliferação da máquina de costura em suas formas variáveis, sua importância tecnológica talvez resida ainda mais nas condições de sua própria produção. A introdução desse aparelho complexo nas residências proporcionou uma grande oportunidade para os fabricantes de máquinas, mas suscitou novos problemas de técnica. Por um lado, a máquina tinha de funcionar suavemente e em silêncio: nenhuma dona-de-casa se disporia a levar a barulheira da fábrica para seu quarto ou sua sala, se pudesse evitá-lo. Por outro lado, os consertos tinham que ser simples e baratos: uma fábrica podia arcar com o custo de uma equipe de manutenção permanentemente acessível; uma casa, ou mesmo uma pequena loja, não. Essas duas condições exigiam uma indústria de precisão com peças intercambiáveis -tema a que chegaremos num instante.

Com a mecanização veio a busca da velocidade, tanto no sentido literal do movimento mais rápido das máquinas quanto no sentido correlato da maior produção por unidade de tempo.

Nenhum campo assistiu a maiores avanços nesse aspecto do que a metalurgia e a engenharia. Não só as máquinas operatrizes tornaram-se mais potentes e convenientes, como também o desenvolvimento de ligas de aço duras colocou nas mãos dos trabalhadores instrumentos de corte dignos da força mecânica a sua disposição. O primeiro desses materiais especiais foi o simples aço com alto teor de carbono; ele podia usinar economicamente em velocidades de corte de aproximadamente 40 pés por minuto. Nas décadas de 1850 e 1860, Kõller, na Áustria, e Mushet, na Inglaterra, desen-volveram ligas de tungstênio, vanádio e manganês que se auto-resfriavam, superavam em cinco ou seis vezes a duração das ferramentas de aço comum e conseguiam cortar 6o pés por minuto. E isso em circunstâncias desfavoráveis: as máquinas da época não eram fortes o bastante para suportar a velocidade que o aço possibilitava. Essa discrepância, no entanto, foi pron-

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tamente corrigida. Na década de 1890, tinham-se desenvolvido ferramentas capazes de cortar 150 pés de aço doce por minuto, sem lubrificação. Finalmente, em 1900, F.W. Taylor e Maunsel White demonstraram sua liga de aço e cromo-tungstênio, de alta velocidade de corte, na Exposição de Paris. O metal operava aquecido ao rubro, mas não amolecia nem se embaciava. Mais uma vez, as máquinas é que ficaram para trás, tendo sido necessário construir modelos mais pesados, quatro a seis vezes mais potentes do que os que usavam aço-carbono, para que o novo metal pudesse ser explorado. Quando da Primeira Guerra Mundial, tinham-se alcançado velocidades de 300 e 400 pés por minuto nos cortes leves, e era comum uma única ferramenta remover vinte libras-peso de resíduos por minuto. Pouco lembrada atualmente, essa inovação foi uma das maravilhas da época. Podese sentir, ao ler os relatos contemporâneos, a quase-incredulidade dos observadores ao verem o metal ser perfurado e cortado como manteiga.

No entanto, a metalurgia fornece apenas um exemplo, reconhecidamente impressionante e importante, de um fenômeno geral. O aperfeiçoamento da maquinaria têxtil nesse período consistiu, basicamente, em mais revoluções ou batidas por minuto. Assim, da década de 1830 até a de 1890, o tempo necessário para que o suporte do guia-fios dos filatórios corresse de um lado para outro foi reduzido em 1/3 a 2/3, dependendo da finura do fio; a velocidade de rotação dos fusos mais do que duplicou desde o falatório de estame até a fiandeira de anéis, o mesmo acontecendo com o ritmo do simples tear mecânico. Na indústria pesada, a invenção do martelo a vapor significou batidas mais rápidas e mais pesadas; a substituição progressiva do martelamento pela laminação acelerou consideravelmente a produção de ferro forjado e de aço; e o maior automatismo do equipamento de laminação levou, como vimos, aos laminadores contínuos que moviam o metal quente à velocidade de um trem.

E assim por diante. Tomaria tempo demais rever em detalhe esses aperfeiçoamentos numerosos e variados; o importante é examinar as melhorias subjacentes que viabilizaram a propulsão mais rápida. Três mudanças foram cruciais.

A primeira foi a melhor lubrificação. Esse é um tema que tem sido muito negligenciado pelos observadores e estudiosos da tecnologia e sua história. As grandes exposições internacionais do século XIX reuniram e exibiram atividades e produtos industriais do homem com uma abrangência e um entusiasmo taxonômico que nunca deixam de causar espanto. Juntaram toda sorte de ferramentas e máquinas, as matérias-primas que elas transformavam e os produtos acabados que faziam. Não desprezaram os

produtos do solo ou do mar, ou mesmo produtos da caça. Mas não deram valor à lubrificação.

E, no entanto, desde o começo da Revolução Industrial, a lubrificação foi uma questão de importância decisiva. Em 1823, o jovem siderurgista francês Achille Dufaut escreveu para Fourchambault, sua terra natal, dizendo que Cyfarthfa só usava sebo russo da melhor qualidade. O custo era alto - 6 d. por libra -, mas, no verão, quando a água baixava, o uso desse sebo conseguia um aumento de dez revoluções por minuto na roda de azenha; a economia anual total era de £3.000.90 E, passada uma geração, Fairbairn escreveu em seu clássico Treatise on Mills and Millwork: "Nos grandes cotonificios, tomei conhecimento da absorção de uma potência de até dez a quinze cavalos por uma mudança da qualidade do óleo usado na lubrificação; e no frio, ou quando a temperatura da fiação é muito reduzida (como geralmente acontece depois de ficar parada no domingo), a potência necessária nas manhãs de segunda-feira é invariavelmente maior do que em qualquer outra ocasião durante a semana." 91

Poucos fabricantes davam à lubrificação a atenção que ela merecia - E não surpreende que os historiadores a tenham ignorado. Mais uma vez, Fairbairn observa que, na maioria das fábricas, a tarefa de lubrificar os eixos de transmissão era entregue ao operário mais desleixado da empresa: "O resultado é que todas as aberturas para que o óleo chegue aos mancais ficam entupidas, os suportes de latão são cortados pela abrasão e os pinos ou moentes dos eixos são destruídos." Com o tempo, entretanto, a construção de equipamentos mais pesados e mais rápidos tornou impossível que se fi-casse indiferente ao custo do movimento perdido e do desgaste. A experiência fez surgir uma consciência das numerosas facetas do que, a princípio, havia-se afigurado um problema simples. Os industriais e engenheiros aprenderam a diferenciar os lubrificantes sólidos, semi-sólidos e líquidos, e a distingui-los pela viscosidade, oleosidade, pontos de congelamento e fusão, inflamabilidade, tendência ao espessamento ou engrossamento, e tendência a mancharem os tecidos ou a se decomporém e depositarem ácido ou carbono. Aprenderam a adaptar o material ao uso, muitas vezes misturando dois ou mais tipos de lubrificantes para obter as vantagens de cada um; a introdução dos óleos e graxas minerais, a partir da década de 1850, inaugurou toda uma nova gama de possibilidades. Eles também inventaram maneiras engenhosas de manter a lubrificação de peças de movimentação rápida sem interromper o movimento: colocar as superfícies de atrito num banho de imersão permanente; impregnar almofadas em contato com as quais as peças se moviam; fazer ranhuras pelas quais o óleo podia correr,

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sob o efeito da gravidade, ou ser escoado com um sifão; e instalar bombas automáticas ou pistolas de pulverização. Um grande avanço foi o uso, a partir de 1890, primeiro nas máquinas a vapor e depois nas outras, da lubrificação sob pressão, que possibilitou o funcionamento silencioso a altas velocidades, com pouco desgaste e sem risco de grimpagem.92

O segundo de nossos avanços fundamentais foi a substituição do ferro forjado pelo aço na construção mecânica com uso de um material duro, homogêneo e resistente ao desgaste em lugar de um metal comparativamente mole, de estrutura heterogênea e abrasão irregular. O resultado foi a redução do atrito. E o terceiro foi a maior precisão na fabricação das partes móveis (voltaremos a elas mais adiante), com ganhos similares. Juntos, estes dois últimos avanços possibilitaram uma grande inovação, destinada a eliminar ou diminuir a necessidade de lubrificação. O princípio do rolamento esférico é muito conhecido, e tão antigo quanto a história; é idêntico ao que subjaz ao uso da roda em vez do trenó no transporte de superfície - a substituição do atrito deslizante pelo contato rolante. Benvenuto Cellini colocou, para esse fim, "quatro pequenos globos de madeira" na base de uma estátua, já no século XVI, e é quase certo que não tenha sido o primeiro a faze-lo. Todavia, só em torno de 1880 os equipamentos de precisão e o desenvolvimento de aços duros transformaram o rolamento esférico num instrumento industrial prático, possibilitando ate mesmo a distribuição da carga e reduzindo a proporções toleráveis a distorção produzida pelo desgaste. A patente decisiva foi obtida em 1877 por William Bown, de Birmingham, um fabricante de peças para máquinas de costura e de patins de rodas. A primeira aplicação importante, no entanto, foi sob a forma de rolamentos de esferas na fabricação de bicicletas - Rudge anunciava suas vantagens em 1886 - e, durante algum tempo, a técnica pareceu adequar-se apenas às cargas leves. O desenvolvimento dos mancais de rolamento, porém, ao distribuir a pressão por linhas e não pontos de contato, corrigiu essa deficiência e possibilitou economias de até 90% das perdas de potência na transmissão axia1.93

As máquinas eram não apenas mais rápidas, mas também maiores, como o era toda a extensão das indústrias manufatureiras. Não é necessário insistir nesse ponto. Já observamos essa tendência na indústria do ferro e do aço e na construção de máquinas motrizes. Ao mesmo tempo, e em grande medida graças a esse crescimento dos equipamentos, a escala de operação eficiente aumentou. A tendência para as grandes dimensões, já acentuada no período de 1850 a 1873, prosseguiu. Teve sua maior rapidez na Alemanha, onde a indústria era mais jovem, o crescimento, mais rápido, e onde

os laços estreitos entre a indústria e as finanças facilitavam a formação, a expansão e as fusões de companhias. Além disso, a própria prevalência dos acordos de cartéis, em muitos campos, amiúde tornava imperativa a integração vertical, para que se ficasse livre das exigências de fornecedores ou clientes coniventes; e a integração abriu caminho para novas economias de escala. No período de 1882 a 1907, a proporção dos trabalhadores em empresas que empregavam mais de cinqüenta pessoas subiu de 26,3% para 45 ,5%; o número de pessoas em indústrias com mais de mil empregados mais do que quadruplicou, passando de 205.000 para 879 . 000 .

Como se poderia esperar, o baluarte dos negócios em grande escala foi a indústria pesada de capital intensivo: o ferro e o aço, onde quase 3/4 dos homens em 1907 trabalhavam em empresas com mais de mil empregados; a construção e engenharia mecânicas, onde 84% estavam empregados no que se designava por Grossbetriebe (51 empregados ou mais); a fabricação de equipamentos elétricos pesados (dínamos, geradores, motores, transformadores), com 96,4% na categoria dos 51 empregados ou mais; e a indústria química, onde os ramos de álcalis, explosivos e tinturas orgânicas exibiam proporções que iam de 8 2,6% a 98,2% nessa faixa. Mas essa tendência era claramente geral, e até uma indústria como a manufatura têxtil viu aumentar a proporção da força de trabalho nas Grossbetriebe, na fiação, de 71,1 % em 1882 para 89% em 1907, e na tecelagem, de 34,3% para 73 ,5% . 94

Esse acréscimo de pessoal, além disso, foi acompanhado por outro ainda maior na produção física por unidade, pois a produtividade estava subindo. Nem sempre podemos medir esse crescimento diretamente, por causa da variação nos produtos ao longo do tempo, mas, ao lidarmos com um produto homogêneo, a evidência é clara. Assim, na siderurgia, a produção anual das fundições aumentou 7 ,5 vezes de 1880 a 1910 - de 19.500 para 149.000 toneladas95 - , enquanto a das indústrias de bessemerização passou de 109.000 toneladas em 1890 para 205.000 em 1905.96

O que acontecia na Alemanha também estava acontecendo na Inglaterra, França, Bélgica e demais países da Europa - embora em menor grau.97 Parte desse aumento da escala explicou-se pelas novas fábricas, que se erguiam prontas do solo como Vênus surgia da espuma. Mas boa parte dele, e especialmente o gigantismo, consistiu no crescimento de empresas já estabelecidas, algumas novas, outras antigas, que acrescentavam máquinas, oficinas, prédios e fábricas inteiras às suas instalações existentes. Basta olharmos para os mapas que amiúde adornam os orgulhosos livros comemorativos da história das firmas comerciais - quer mostrando-as "antes e depois", quer distinguindo por cores e datas as etapas de seu crescimento. 98

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Salvo por sua linearidade, nada se assemelha mais a eles do que os mapas históricos da expansão e consolidação de reinos e impérios - uma fronteira corrigida aqui, um avanço estabelecido ali, um encrave absorvido acolá.

Esse caráter aditivo do crescimento industrial teve importantes conseqüências tecnológicas. Havia uma certa racionalidade subjacente a tudo, mas o oportunismo e a improvisação foram igualmente determinantes. Como resultado, a matriz dos arranjos anteriores tornou-se cada vez mais restritiva. A cada mudança de equipamento ou acréscimo à fábrica, aumentava o hiato entre o "melhor possível" e o "melhor exeqüível". Em parte alguma essa herança constituiu uma desvantagem mais grave do que na organização do fluxo do trabalho - no que podemos chamar a logística da produção.

A maior intensidade do capital e a escala de produção tornaram o velho demônio do estrangulamento logístico mais temível do que nunca. Isso era inevitável estava implícito na discrepância geral entre a previsão e o evento. Uma cidade é construída para lidar com a população e o trânsito de hoje, ou, no máximo, de uma década a contar de hoje; com o tempo, as ruas tornam-se estreitas demais, os becos, inacessíveis, e os prédios, inconvenientes e espremidos em espaços exíguos. Pela mesma razão, até uma fábrica bem planejada inicia sua obsolescência no momento em que suas portas se abrem. As transformações da técnica alteram, de um modo que lhe é desvantajoso, a relação entre o trabalho e o meio ambiente; o aumento da velocidade e do volume de trabalho fazem pressão contra o confinamento das paredes e equipamentos fixos, como as moléculas agitadas de um gás aquecido num recipiente rígido. Sem dúvida, a criatividade e os dispositivos potentes de manuseio e movimentação podem reduzir essa dificul-dade como veremos. Mas até estes têm seus limites, e os problemas logísticos dessa natureza com os custos correlatos que eles vinculam a qualquer inovação - talvez tenham constituído o maior obstáculo material isolado a transformação técnica nas economias amadurecidas. Considere-se o comentário feito em 1960 por um siderurgista norte-americano, confrontado com um novo processo que, supostamente, mais do que duplicava a produção de um forno de revérbero: "Podemos fazer a mesma coisa em qualquer forno de revérbero, em qualquer dia que quisermos, para realizar uma demonstração. Mas eu gostaria de vê-los fazerem isso dia após dia, com todos os fornos de uma usina de fornos Siemens-Martins. Isso cria uma congestão tremenda e enormes problemas para aquecer os fornos e mantêlos adequadamente aquecidos, retirar o metal e conseguir carretas de alimentação em número suficiente."99

Pela mesma razão, o gigantismo aumentou a influência das operações logísticas e do desempenho dos trabalhadores em geral nos resultados financeiros da empresa. É freqüente ficarmos tão impressionados com o aumento da produtividade resultante das inovações que economizam mão-deobra, que esquecemos o outro lado da moeda o efeito multiplicador que a ineficiência tem sobre os custos. Quanto maior o desembolso com instalações e equipamentos, menos se pode arcar com pontos de estrangulamento, desmazelo ou negligência. Pior ainda: a ineficiência é contagiosa e tende a contaminar tudo ao seu redor.

Os empresários do fim do século XIX, portanto, incitados pela necessidade e atiçados pela perspectiva de retornos mais altos, foram levados a descobrir maneiras, primeiro, de facilitar a movimentação do trabalho nas fábricas e, segundo, de extrair uma produção maior de cada homem com um dado conjunto de equipamentos. As duas coisas estavam inter-relacionadas, não apenas porque o fluxo regular de trabalho levava a uma produtividade mais alta, mas porque a mudança da organização e do caráter da mão-de-obra era, na verdade, um pré-requisito para se rever o padrão de trânsido dentro da fábrica.

Além disso, esse impulso em direção à eficiência foi reforçado pelas tendências comerciais e tecnológicas subjacentes no período iniciado em 1870. Na medida em que a capacidade começava a superar a demanda, a competição, como vimos, estava-se acirrando nos mercados nacionais e internacionais, e a pressão em favor da economia aumentava junto com ela. Ao mesmo tempo, no entanto, a inovação nas indústrias mais antigas ia-se tornando mais lenta: os novos equipamentos custavam mais e produziam menos. Assim, a única área que oferecia grandes oportunidades de redução de custos era a da organização e administração; o único fator passível de ser comprimido era o trabalho.

É difícil acompanhar o progresso efetivo desses esforços para racionalizar a produção e aumentar a eficiência. Outros aspectos da transformação tecnológica e do desenvolvimento industrial prestam-se à quantificação, e temos nesses casos uma rica herança estatística com que trabalhar. Mas as mudanças na disposição e organização das fábricas não são fáceis de aquilatar. Mesmo quando isso é possível em alguns casos isolados, a variação da abordagem torna a padronização, e a comparação difíceis, senão impossíveis. Talvez por essas razões, esses temas têm sido relativamente negligenciados pelos estudiosos. Não existe nenhuma história geral, e a maioria dos relatos contemporâneos diz mais respeito a arranjos ideais do que à prática efetiva. Nosso conhecimento desta última pode ser construído a

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partir de estudos de casos ocasionais, referências passageiras e inferências cultas. A maior parte da pesquisa ainda está por fazer.

Para esclarecer essa questão, é útil dividir as indústrias em duas classes: as que transformam e as que montam. A primeira incluiria a maior parte das indústrias têxteis e químicas, a metalurgia, a fabricação de vidro, o refino de petróleo, o processamento industrial de alimentos e os outros ramos cuja finalidade primária é a conversão de determinado conjunto de matérias-primas nalguma outra forma. A segunda abrange campos como a construção mecânica e a engenharia, a fabricação de roupas e calçados e as indústrias de construção; todas estas podem empreender alguma transformação, mas a característica mais destacada de seu trabalho é a montagem.

Essa distinção tem implicações diretas na técnica. O princípio básico da organização industrial é o fluxo de produção regular e direto, do começo ao fim do processo manufatureiro; os desvios, retornos e interrupções devem ser tão evitados quanto possível. Para as indústrias de transformação, o problema conceitual é simples: há um fluxo de atividade, e tudo o que se faz necessário é um arranjo espacial seqüencial das operações. A movimentação efetiva da matéria-prima, no entanto, pode dar origem a sérias dificuldades. Ela pode ser quente demais para manusear, como na metalurgia ou em certos processos químicos; pode ser corrosiva ou tóxica, como na fabricação de ácidos e álcalis; e pode ser volumosa ou pesada. Esses problemas estimularam uma ampla variedade de providências engenhosas para deslocar materiais sólidos, líquidos e gasosos em todas as temperaturas: transportadores e esteiras, elevadores e guinchos, sistemas de tubulações e válvulas, bombas, depósitos e tanques de armazenagem, medidores, calibradores, manômetros e comandos.

Os sólidos foram os que mais causaram dificuldades. Sem dúvida, o homem é capaz de feitos surpreendentes de força e destreza: existem hoje fábricas de porcelana em Limoges onde os trabalhadores carregam quase cem pratos caríssimos de uma vez, atravessando corredores, fazendo curvas, cruzando portas e descendo escadas - com 2/3 de seu precioso fardo nas mãos e o restante empilhado na cabeça! Além disso, a mecânica da manipulação é conhecida há muito tempo; os dispositivos básicos - tarraxas, polias, alavancas, manivelas e planos inclinados - remontam à Antigüidade. Contudo, a transmissão de força a essas máquinas foi cercada de dificuldades. O equipamento móvel, por sua própria natureza, só podia ser ligado a sistemas de hastes e correias dentro de limites estreitamente circunscritos. A força humana era suficiente, até certo ponto, quando a mão-de-obra era barata. Matschoss observa que, ainda na década de 1870, as pontes

rolantes acionadas manualmente ainda eram a norma na indústria alemã;100e, entre as novas instalações de uma fábrica francesa de construção de maáquinas em processo de modernização, na década de 1920, havia "quatro pequenas pontes rolantes de duas toneladas operadas à mão".'°' Mas as limitações da força humana são óbvias: quatro operários levavam 50 minutos para içar cinco toneladas a uma altura de quatro metros, mediante o uso de guinchos; dois trabalhadores levavam 12,5 minutos usando polias. Fez-se um esforço de usar pequenas máquinas a vapor par fins especiais; provavelmente, a aplicação mais freqüente das máquinas autopropulsoras - afora seu emprego na agricultura foi no içamento e nas manobras. Mas tratava-se de uma técnica que causava desperdício e era problemática: as máquinas costumavam ser operadas bem abaixo de sua capacidade e, além disso, apenas intermitentemente; e, por seu movimento, a tarefa de mantê-las lubrificadas era complicada. O vapor tinha sua melhor utilização quando os grandes volumes não eram uma desvantagem e a velocidade de ação não era particularmente importante - na escavação de superfície, por exemplo -, ou quando o peso era uma vantagem positiva, como no nivelamento de pavimentos de asfalto.

A solução eventual, como vimos, foi tríplice: (1) Pressão hidráulica ou atmosférica, quando o raio de ação da máquina era

relativamente limitado e sua ação era direta e simples. As duas foram introduzidas em larga escala na década de 1860 e dominaram o cenário até cerca de 1900.

(2) Eletricidade, quando o raio de ação era limitado mas a liberdade, a rapidez e a versatilidade de ação eram desejáveis. Foi introduzida na década de 1890 nos Estados Unidos, e dez anos depois na Europa.

(3) Petróleo ou gasolina, quando o raio de ação era muito amplo, como nos projetos de construção dispersos, por exemplo.

Dentre eles, a eletricidade foi a mais importante. Sua área de aplicação mais útil foi o acionamento de "pontes rolantes", aspecto em que sua rapidez e responsividade ao controle geraram aumentos de produtividade da ordem de várias centenas por cento. O guindaste elétrico revolucionou o trabalho nas docas e em indústrias como a metalurgia, onde era freqüentemente usado em combinação com ímãs gigantescos no içamento de objetos de ferro e aço. Esta última técnica foi particularmente eficaz no manuseio de coisas como sucata, cujos fragmentos eram grandes demais para ser ma-nuseados com pás e demasiadamente irregulares e pequenos para as pinças. Também nesse caso, como em toda parte, houve uma tendência para as grandes dimensões, com máquinas com capacidade de 100 toneladas ou

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mais em uso comum nos estaleiros, e de até 75 ou 100 toneladas na engenharia pesada, às vésperas da Primeira Guerra Mundial.

Quão importante foi essa mecanização do transporte e da manipulação dentro das fábricas? A resposta varia conforme a natureza das empresas; em alguns processos, o manuseio representa mais de 85% do custo do produto final; em indústrias leves como a de produtos têxteis, representa muito pouco. Além disso, os grandes guindastes de cavalete ou elevadores móveis não são, em si, uma garantia de economia. Em muitos casos, as empresas eram exageradamente providas de equipamentos grandes ou complexos demais para o trabalho exigido. E, algumas vezes, a mão-de-obra era tão ba-rata que as máquinas eram um luxo. É muito fácil confundir a parafernália da modernidade com eficiência.

Não obstante, é licito dizer que o manuseio foi um foco de avanços rápidos na produtividade - não tanto pelas espetaculares realizações em indústrias pesadas como a metalurgia, mas em virtude dos incontáveis pequenos aperfeiçoamentos em todos os ramos da indústria. O atraso de algumas empresas desse período é espantoso: lemos sobre dezenas de homens carregando toneladas de terra ou carvão nas costas; sobre cadeias de operários postados em escadas, passando o material de mão em mão. Muitas vezes, um simples guincho, algumas carretas pequenas ou a instalação de quadros de içamento ou sistemas de esteiras transportadoras fariam toda a diferença. Numa era de equipamentos cada vez mais dispendiosos e de retornos decrescentes, essa era a única área em que, repetidamente, os investimentos se pagavam em meses ou até semanas.

Muitos desses avanços também foram importantes nas indústrias montadoras, como mostram vários exemplos. Aqui, a natureza do trabalho dera origem a um padrão de operações complexo e gerador de desperdício. Primeiro - e isso era realmente decisivo -, o processo de montagem, na maioria dos setores, era impreciso, consistindo numa questão de ensaio e erro, com ajustamentos reiterados; esse caráter do trabalho ainda se reflete em nossos vocabulários, em palavras inglesas como fitter [adaptador, ajustador] e steam f tter [ajustador de vapor], ou no termo francês ajusteur [ajustador]. Segundo, poucas dessas indústrias beneficiavam-se das longas seqüências de produção de artigos homogêneos que caracterizavam a metalurgia e a indústria química. A engenharia e a construção mecânica, em particular, executavam boa parte de seu trabalho por encomenda, e ate os componentes básicos variavam conforme a tarefa. Como resultado, havia muitos movimentos repetitivos de tipo errado (com determinado objeto correndo várias vezes de um lado para outro pelo mesmo caminho, até se

mostrar satisfatório) e poucos movimentos repetitivos do tipo certo (nos quais um objeto após outro segue a mesma trilha, passa pelos mesmos processos e emerge da linha de produção com a presteza que nasce da prática e da mecanização). Nessas indústrias, dois tipos de arranjo da produção eram comumente empregados:

(i) As máquinas eram agrupadas por tipo - perfuradoras, plainas, tornos etc, na engenharia e na construção mecânica, por exemplo e as peças eram deslocadas de um ponto para outro até serem finalmente reunidas para encaixe na oficina de montagem. Esse era o Platzarbeit alemão.

(2) Quando o trabalho era extremamente volumoso, como na construção naval, na construção civil ou na engenharia pesada, homens e ferramentas eram levados até ele e os componentes eram preparados no local, ou feitos em outro lugar, geralmente no primeiro sistema, e também levados até ele.

Assim, em vez do fluxo linear das indústrias de transformação, prevalecia uma disposição nodal do tráfego, com um ziguezaguear da matéria-prima de um lado para outro entre esses postos de trabalho e com as diferentes pecas seguindo caminhos diferentes. O primeiro padrão pode ser comparado com o fluxo regular dos veículos numa via expressa, e o segundo, com o movimento espasmódico e irregular das ruas de uma cidade.102 É possível levar essa analogia mais adiante. Numa via expressa, o aumento na extensão do trajeto provoca apenas um aumento linear do tempo neces-sário para percorrê-lo, mas nos complexos urbanos a proporção tende a ser geométrica, ou até exponencial. Da mesma forma, no Platzarbeit o crescimento da fábrica significa maiores distâncias entre os postos e multiplica o tempo perdido na movimentação repetitiva do material. As empresas mais bem-sucedidas dedicavam andares inteiros, ou até oficinas separadas, a um único tipo de máquina. Assim, dificuldades logísticas estabeleceram um teto para as economias de escala.

Por último, os mesmos problemas tecnológicos que deram origem ao padrão nodal - a imprecisão e a variação, de um lado, e o trabalho por encomenda, de outro - provocaram e mantiveram instituições sociais que eram fonte de outras ineficiências. As indústrias montadoras eram a fortaleza dos artesãos especializados, pois, no período anterior aos gabaritos e às máquinas-ferramentas automáticas, somente uma mão habilidosa era capaz de fazer componentes razoavelmente precisos ou de ajustá-los uns aos outros. Esses homens eram a aristocracia da força de trabalho. Mestres de suas técnicas, aptos a manter e utilizar suas ferramentas, encaravam os equipa-

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mentos como algo seu, mesmo quando pertenciam a empresa. No trabalho, eram eficazmente autônomos. A maioria deles pagava a seus assistentes e muitos desempenhavam o papel de subempreiteiros dentro das fábricas, negociando o preço de cada tarefa com a diretoria, contratando os homens necessários e organizando o trabalho de acordo com sua própria preferência e conveniência. Os melhores dentre eles "faziam" as firmas para as quais trabalhavam.

No entanto, sua independência era cara. Avaliado pelos modernos métodos de tempo e movimento, o trabalho especializado tendia a ser menos eficiente do que o trabalho semi-especializado ou não especializado, feito sob supervisão direta; e isso era perfeitamente esperável, pois o operário especializado estabelecia seu próprio ritmo, em vez de se ajustar ao da máquina. Além disso, esses mestres artesãos eram orgulhosos, melindrosos e, em geral, bem organizados. Seus interesses adquiridos no status quo eram um obstáculo à inovação, ainda mais que sua habilidade e virtuosismo eram incompatíveis com o princípio fundamental da tecnologia industrial - a substituição do toque e do esforço humanos pela exatidão e a infatigabilidade inanimadas.

Os impulsos em direção a uma mecanização e aumento da escala, por um lado, e a uma organização mais racional da produção, por outro, convergiram nesse ponto. Para eliminar a especialização e fazer recuar a barreira logística, dois passos eram necessários: (i) a fragmentação da tarefa em operações simples, susceptíveis de ser executadas por maquinas destinadas a uma única função, operadas por mãos não especializadas ou semi-especializadas; e (2) o desenvolvimento de métodos de fabricação tão precisos que a montagem se tornasse rotineira, ou, em outras palavras, a produção de peças intercambiáveis. Somente dessa maneira seria possível mudar de um fluxo nodal para um fluxo linear; só dessa maneira seria possível levar o trabalho aos trabalhadores num ritmo predeterminado, para que fosse processado e combinado através de uma série de atos simples e repetitivos. A linha de montagem, portanto, muito mais do que apenas uma nova técnica, foi um meio de obter maior produção com menor custo. Nos ramos em que se impôs, ela marcou a passagem da oficina, por maior e mais bem equipada que fosse, para a fábrica.

As seqüências coerentes de máquinas e peças intercambiáveis são mais fáceis de estabelecer em algumas indústrias do que em outras. A consideração decisiva é o grau de precisão requerido, que varia não apenas de acordo com a finalidade do produto (comparemos um cronômetro, um rifle, um alicate e a estrutura de uma casa), mas também com o material empregado

(comparem-se os artigos têxteis ou o couro, que cedem, com os metais, que não cedem). Foi basicamente por causa de suas cômodas margens de tolerância que a indústria de calçados figurou entre as primeiras indústrias montadoras a desenvolver uma montagem progressiva, como é às vezes chamada.

Os artigos de metal - do tipo que tinha que ser forjado peça a peça e montado, em contraste com os objetos simples que podiam ser cunhados ou prensados - eram uma outra história. Ali, as margens eram amiúde muito estreitas, medidas em centésimos e milésimos de polegada. Em decorrência disso, a permutabilidade era dispendiosa e só o atingimento da produção em grandes volumes fazia com que o esforço valesse a pena. (Os empresários acabaram aprendendo que o inverso também era verdadeiro: o esforço, quando bem-sucedido, gerava preços baixos e um mercado em massa.) Não por coincidência, as primeiras aplicações importantes dos princípios das peças intercambiáveis e da linha de montagem ocorreram na indústria de armas de pequeno porte, que eram necessárias em grande quantidade para uso militar.

Tradicionalmente, a história tem atribuído essa inovação crucial a Eli Whitney, famoso pelo descaroçador de algodão, mas sua reivindicação não resiste a um exame rigoroso. Robert S. Woodbury assinalou que um mecânico sueco, Christopher Polhem, já fazia engrenagens uniformes para relógios na década de 1720, e que um francês chamado Blanc produzia rifles nos arsenais do governo, em bases intercambiáveis, antes da Revolução. Mas nenhuma dessas conquistas precoces firmou raízes, e somente quando vários fabricantes de armas norte-americanos dentre eles Whitney, embora de modo algum ele tenha sido o primeiro - elaboraram os princípios e desenvolveram as ferramentas necessárias, nas duas primeiras décadas do século XIX, é que passamos a ter um registro ininterrupto de disseminação.103 A princípio, a técnica teve sua aplicação mais ampla no nordeste dos Estados Unidos, na fabricação não apenas de armas de pequeno porte, mas também de fechaduras, relógios e máquinas agrícolas.- Somente na década de 1850 é que ela foi introduzida na Grã-Bretanha, na fábrica de armamentos do governo em Enfield, após uma visita de inspeção do outro lado do Atlântico. Dali, as técnicas se espalharam para duas das principais firmas particulares, a London Small Arms Company e a Birmingham Small Arms Company (fundada em 1861). Mesmo assim, o tamanho do mercado não era tão conducente à fabricação pelo sistema de peças intercambiáveis quanto nos Estados Unidos: a Inglaterra não tinha fronteiras turbulentas. Tampouco a política oficial ajudava: o governo racionava as encomendas

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decrescentes de armas de pequeno porte entre três ou quatro companhias, em proporções fixas, na verdade invalidando os estímulos competitivos ao aperfeiçoamento tecnológico.105

No entanto, o rifle e a pistola são, no que concerne à articulação, mecanismos grosseiros. A contribuição da segunda metade do século XIX situou-se, primeiro, na invenção de diversos aparelhos não militares - a máquina de costura, depois a máquina de escrever e a bicicleta, e por fim o automóvel - que exigiam um grau de precisão muito mais elevado e, ao mesmo tempo, desfrutavam do tipo de procura que tornava digna do esforço, senão indispensável, a conquista da permutabilidade; e, em segundo lugar, no desenvolvimento dos equipamentos e técnicas necessários. Três áreas de inovação foram cruciais: as máquinas-ferramentas, o tratamento* e a mensuração.

Já tivemos oportunidade de discutir os primeiros aperfeiçoamentos das máquinas produtoras de máquinas. Em meados do século XIX, todos os requisitos essenciais estavam presentes: a plaina retificadora, que fornecia o padrão de referência uniforme; o carrinho deslizante, que retirou a ferramenta de corte das mãos falíveis do artesão; e os ajustes rosqueados, que possibilitavam o trabalho delicado. O que as duas gerações seguintes fizeram foi, essencialmente, adaptar e elaborar essas técnicas, na criação de formas mais eficientes para as ferramentas básicas: máquinas perfuratrizes, tornos, plainas e os demais. Houve, entretanto, duas grandes novidades, ambas ligadas à crescente demanda do que hoje são os bens de consumo duráveis:

(i) O torno-revólver (eventualmente, automático). A máquina era equipada com um castelo rotativo que chegava a carregar até oito ferramentas de corte, cada uma das quais podia ser utilizada alternadamente no trabalho. O passo seguinte foi a rotação automática, obtida em 18 6 i1, ou talvez antes; a invenção concomitante de um dispositivo para segurar e alimentar a peça a ser usinada reduziu o papel do trabalhador a inserção, supervisão e retirada. Embora a idéia talvez tenha vindo da Inglaterra, a primeira utilização ampla dessas máquinas ocorreu nos Estados Unidos, na década de 1840; a Guerra Civil, com sua demanda de artigos de metal produzidos em massa, incentivou sua difusão. Na década de 1870, elas eram largamente usadas na Europa.

* No original, grinding. O verbo correpondente pode ter o sentido de moer, afiar, triturar, desgastar, polir. Preferimos a tradução "tratamento" para permanecermos mais próximos à terminologia moderna dos metais e ligas "tratados". (N. da T.)

Ao se aproximar o final do século, a produtividade dessas máquinas fora quatro ou cinco vezes aumentada pelo uso de fusos múltiplos, que possibilitaram o trabalho simultâneo em várias peças. Eventualmente, instalaram-se fileiras dessas máquinas, usando carrinhos transversais e castelos, para que trabalhassem lado a lado, tal como a fileira de fusos de um filatt rio. A única mão-de-obra requerida era para o ajuste ocasional das ferramentas e para recarregar a alimentação de matéria-prima.

(2) A fresadora. Sua característica distintiva é o uso de um cortador múltiplo giratório, que se assemelha a um pequeno cilindro ou a um cone seccionado com lados denteados. Ela ofereceu várias grandes vantagens em relação às ferramentas usuais de ponta única, com seus movimentos alternados intermitentes:106 arestas de corte relativamente largas; movimento contínuo; e a possibilidade de perfilar os dentes para permitir a produção de qualquer forma geométrica desejada. Além disso, quando a fresa era combinada com um cabeçote giratório para permitir que a peça em monta-gem fosse atacada por todos os ângulos ou por ângulos mutáveis, para cortar espirais, por exemplo, o resultado foi a chamada fresadora universal (1861), uma maravilha de versatilidade. Ela acabou sendo ainda mais aperfeiçoada, através de uma espécie de processo de composição comparável ao que havia produzido o torno múltiplo. 107

Dizem que a primeira fresa remonta a Vaucanson, no século XVIII; a primeira fresadora foi construída por Eli Whitney em 1818. Mais uma vez, porém, foi a demanda decorrente da Guerra Civil que firmou o equipamento nos Estados Unidos; no início da década de 1870, ela era um padrão na fabricação de máquinas de costura. Também na Inglaterra, a máquina de costura parece ter sido um fator decisivo na adoção da nova técnica. A maior fábrica mundial para produção dessa combinação de bem de capital com bem de consumo durável era a Singer, em Clydebank, na Escócia, que iniciou suas operações em 1870 e produzia 8.000 máquinas por semana em 1885. A Singer instalou cerca de 216 fresadoras na década de 1870 e um total de 2.233 durante o período de 1870-1914. A vasta maioria destas foi construída em Clydebank ou pela matriz da empresa nos Estados Unidos, de modo que houve pouca propagação da nova tecnologia entre os fabricantes ingleses independentes de máquinas-ferramentas. Sem dúvida, o fresamento estava-se impondo em outros ramos da indústria; assim, algumas das fábricas de locomotivas estavam-no utilizando com eficiência na montagem pesada no fim da década de 1870 e início da seguinte, mas sua verdadeira difusão esperou que a explosão das bicicletas, na década de 1890, inaugurasse um novo campo de aplicação.108

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Parte da dificuldade era técnica: durante muito tempo, o projeto e os materiais das máquinas não estiveram à altura da concepção. As largas arestas de corte da fresadora, mais de uma das quais podiam ficar em contato com a peça usinada ao mesmo tempo, submetiam o fuso e a árvore a uma tensão extrema, e só a mais rígida construção impedia a ferramenta de vibrar e trepidar; mesmo nesse caso, o aplainador e o limador alternados faziam uma montagem mais precisa, especialmente em grandes superfícies. Além disso, a continuidade e a rapidez do fresamento requeriam um metal resistente, principalmente porque o desgaste desigual de qualquer das arestas cortantes exigia um novo tratamento para todas elas; como vimos, os aços especiais para ferramentas, necessários para isso, só foram inventados na virada do século.109

A introdução de aços ligados novos e mais duros, não apenas para ferramentas mas também para peças mecânicas, intensificou o desafio já lançado pelo impulso em direção à velocidade e à precisão. A montagem rápida e exata requeria gumes afiados e um bom acabamento; as duas coisas só podiam ser obtidas através do tratamento.

É importante distinguir entre estas duas funções básicas do tratamento - a manutenção e a moldagem de ferramentas. Até a passagem do século, a primeira era de longe a mais importante: o tratamento costumava restringir-se a afiação irregular e assistemática das ferramentas por cada trabalhador. Gradualmente, porém, os próprios abrasivos começaram a ser usados como ferramentas. Como na maioria das outras áreas da metalurgia, os Estados Unidos abriram o caminho: já na década de 1870 , um observador pôde escrever que "a grandiosidade [Grossartigkeit] da indústria de tratamento na América assombra qualquer estrangeiro". Nesses primeiros anos, entretanto, a técnica limitava-se ao acabamento esmerado. Foi preciso haver uma série de avanços correlatos no preparo e manipulação dos abrasivos, somados a uma reinterpretação criativa da natureza e das possibilidades da técnica, para tornar possível o que desde então veio a ser conhecido como tratamento na produção. 110

O principal problema material era a obtenção de uma superficie abrasiva verdadeiramente eficiente, de características conhecidas e uniformes. Até o fim do século XIX, todo o tratamento industrial era feito com abrasivos naturais, como o arenito, o esmeril (óxido de alumínio impuro) ou, a começar na década de 1820, o corindon (óxido de alumínio quase puro). O último destes era o mais duro, mas era também o mais caro, pois, até a década de 1870, tinha que ser importado de regiões às margens do oceano fndico. A descoberta de grandes depósitos na América do Norte fez o preço

baixar e, nas duas décadas seguintes, o corndon praticamente eliminou o esmeril na moldagem e acabamento. Ao mesmo tempo, o caráter desejável de uma superfície abrasiva retificada e duradoura levou ao desenvolvimento de rodas de amolar sólidas, onde os grãos cortantes eram misturados com aglutinantes como cola, borracha vulcanizada, argila ou silicatos. A primeira delas remonta pelo menos a 1837 na Inglaterra, 1843 na França e 1850 na Alemanha. Conjugados a elas havia dispositivos engenhosos para desbastar, ou seja, refazer o gume da roda (a partir de 1860) e para retificar sua forma (aproximadamente no mesmo período).

Ao mesmo tempo, os fabricantes de máquinas estavam instalando essas rodas em dispositivos mecânicos capazes de operá-las do mesmo modo que a furadeira opera sua broca, ou a fresadora sua cabeça de corte. A primeira dessas pedras de amolar remonta ao Renascimento, senão a épocas anteriores, e teve considerável utilização na indústria óptica, na fabricação de relógios e em ramos leves similares nos séculos seguintes, mas seu aperfeiçoamento e especialização para a indústria de larga escala foi obra da Revolução Industrial. Mecânicos ingleses (Whitelaw, Bodmer, Nasmyth, Barker e Holt), alemães (Krupp) e, acima de tudo, norte-americanos (David Wilkinson, Bridges, Wheaton, Darling e Poole) empenharam-se nessa elaboração, que atingiu seu auge no trabalho de Joseph Brown, da Brown & Sharpe, o idealizador, senão o projetista, da retificadora universal (1875).

Não foi por coincidência que esses aperfeiçoamentos concomitantes na superfície abrasiva e no mecanismo de montagem aceleraram-se com a aproximação do final do século e vieram a inspirar um conceito radicalmente novo da técnica de tratamento. Mais uma vez, a revolução nesse terreno esteve intimamente ligada a crescente procura de máquinas complexas, de operação suficientemente fácil e robusta para suportar os maus-tratos do consumidor doméstico, incompetente em matéria de mecânica. A máquina de costura deu um gostinho antecipado dessas conseqüências tecnológicas derivadas, como fez a bicicleta com seus rolamentos; mas nenhuma teve algo parecido com o impacto do automóvel. É difícil superestimar esse impacto, que é comparável ao da máquina a vapor no século XVIII. O automóvel não foi o primeiro objeto da indústria a requerer uma montagem complexa, ou delicada, ou precisa. Mas nada antes dele jamais havia exigido todas elas, muitas vezes em materiais demasiadamente duros para serem moldados pelos meios tradicionais, e em quantidades tais que pressionavam a oferta de mão-de-obra especializada. Desde o início, a indústria automobilística pagou os salários mais altos a seus artesãos: precisava e podia fazêlo. E, desde o começo, ela foi forçada a fazer coisas novas e a descobrir

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novas maneiras de fazer as antigas. Além disso, tanto havia a promessa da recompensa econômica quanto a compulsão tecnológica: a elasticidade da demanda de transporte privado trazia um enorme incentivo a aperfeiçoamentos que economizassem custos, os quais, dada a natureza do trabalho, consistiam quase invariavelmente na substituição da mão-de-obra pelo capital.

A resposta a muitos dos problemas de produção da nova indústria residiu em substituir o fresamento e o desbaste pelo tratamento. Não apenas a nova técnica assegurava a maior precisão exigida por peças intercambiáveis que funcionavam a altas velocidades e temperaturas, como também se revelava inestimável na montagem preliminar - na retirada de material dos virabrequins e dos eixos de carnes, por exemplo. E permitia o uso de ligas leves e duras, como o aço-vanádio, sem as quais não teria sido possível um automóvel econômico de uso geral.

Os avanços que possibilitaram essa espécie de tratamento na produção foram três: primeiro, a invenção de abrasivos artificiais, particularmente o carborundum (primeira utilização comercial em 1896), mais duro que os materiais naturais tradicionais (sempre com exceção do diamante) e passível de ser preparado em granulações variáveis, de modo a se adequar aos requisitos da montagem; segundo, o desenvolvimento de equipamentos de tratamento de precisão, de construção pesada e potente, que usavam rodas maiores e mais largas; e por fim, a introdução do tratamento por imersão, em que a roda recebia o formato da peça desejada e era introduzida no material em montagem, em vez de passar por cima dele.

O tratamento na produção oferece um excelente exemplo da contribuição dos engenheiros como inovadores-empresários. O pioneiro, aqui, foi Charles H. Norton, um gigante na tradição de Maudslay, Nasmyth e Whitworth. Norton concebeu a nova técnica, chamou atenção para suas implicações econômicas positivas, projetou numerosas máquinas para efetuá-la e elaborou os princípios da operação ótima, sobretudo a escolha do abrasivo e da velocidade de tratamento adequada à tarefa. Mas seu sucesso e o dos outros pioneiros norte-americanos nessa área muito deveu a orientação empresarial e tecnológica da indústria automobilística norte-americana - a ênfase precoce na quantidade, na leveza e no baixo custo.

A prática européia não estava muito atrás da norte-americana. Certamente, a ampla adoção do tratamento na produção na fabricação de veículos automotivos só chegou à Inglaterra e à Alemanha durante ou depois da Guerra. Por outro lado, ambos os países se anteciparam aos Estados Unidos na aplicação do tratamento na construção e manutenção de locomotivas.

E, nas outras indústrias, os europeus se apressaram em comprar equipamentos norte-americanos ou a produzir máquinas segundo as patentes norte-americanas; a partir de 1904, por exemplo, Ludwig Loewe & Co. começaram a produzir retificadoras do tipo Norton em Berlim. Não demorou muito, além disso, para que eles e outros projetassem seus próprios modelos, de acordo com suas concepções e os requisitos da indústria européia.

Enquanto isso, os novos padrões de fabricação provocaram uma revolução no outro campo do tratamento, o da manutenção das ferramentas de corte. Aqui, os avanços fundamentais foram, mais uma vez, a introdução de abrasivos aperfeiçoados e o desenvolvimento de máquinas precisas para fins especiais. A utilização efetiva desse equipamento, entretanto, implicava uma reorganização das fábricas, que muitas vezes provocava uma oposição acirrada dos metalúrgicos, altamente especializados e correspondentemente melindrosos. Em particular, tornou-se então necessário designar retificadores especializados e criar uma sala de ferramentas separada para armazenar as peças em montagem e mantê-las em condições adequadas. Isso significou, por parte do trabalhador, a renúncia ao controle sobre suas ferramentas; privou-o também do agradável relaxamento da fila da pedra de amolar - o equivalente oitocentista do intervalo para o café.112

Com as ferramentas aperfeiçoadas vieram os controles padronizados - não por meio de instrumentos de medida como a régua e o compasso, mas por instrumentos independentes dos caprichos do olho humano, estáveis em sua exatidão e que exigiam pouca ou nenhuma habilidade. Os medidores de pino e coroa de Whiiworth foram os protótipos de toda uma família de aparelhos - os calibres de limite (passa - não passa), calibres de tolerância, medidores reguláveis, discos de referência e cubos de medida - cuja margem de tolerância era às vezes tão ínfima quanto 1/50.000 de polegada, e cuja operação era quase à prova de idiotices. Apesar disso, o ganho não foi na qualidade do produto final, mas em seu custo. A natureza dessa mudança foi bem descrita por H. F. Donaldson, um fabricante de equipamentos de Woolwich e membro do Conselho da Instituição de Engenheiros Mecânicos, numa palestra de 19 09:

Quando comecei a fazer meu aprendizado nas oficinas, lembro-me que "um bom i /64 de polegada" era mais ou menos a medida mais rigorosa a que se referia qualquer trabalhador, ou, aliás, seus superiores. Ainda assim, mesmo com uma dimensão nominal tão grosseira, e com o uso de um compasso comum, produzia-se um trabalho magnífico, graças à habilidad de cada trabalhador e à precisão de seu sentido do tato. Nem o operário nem, em muitos casos, seus superiores, tinha qualquer conhe-

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cimento real do grau de exatidão com que a montagem era feita, mas persiste o fato de que se faziam e montavam trabalhos da melhor qualidade, com encaixes pelo menos tão exatos quanto os atualmente assegurados por métodos mais sistemáticos e, segundo cremos, melhores e certamente mais baratos. A grande diferença existente entre aquela época e agora é que, embora a montagem de então fosse da mais alta qualidade, no que tange a cada máquina montada, o grau de exatidão que prevalecia em cada peça era inteiramente desconhecido, e as peças de uma dessas máquinas não eram intercambiáveis nem passíveis de substituição mútua numa outra máquina que tivesse, nominalmente, as mesmas dimensões em todos os pormenores. Em outras palavras, as máquinas eram feitas e "ajustadas", na época, com grande cuidado e com grande quantidade de trabalho manual dispendioso, enquanto hoje, pelo menos nas usinas mais progressistas, as máquinas são "montadas" a partir de peças feitas segundo um grau conhecido de exatidão, e com um mínimo de ajustamento manual dispendioso, e com a vantagem adicional de que as peças das máquinas assim produzidas são intercambiáveis entre si, quando a montagem é feita com base num sistema apropriado de limites ou calibres de limite.113

A citação é tão interessante pelo que deixa implícito quanto pelo que diz. Antes da Primeira Guerra Mundial, afora as poucas indústrias que fabricavam produtos para o mercado de massa, como a máquina de costura, apenas as empresas mais progressistas da Inglaterra trabalhavam com peças intercambiáveis. Uma equipe norte-americana de mecânicos de automóveis, enviada pela Cadillac a Inglaterra em 1906, causou sensação ao expor os componentes misturados de três carros, no piso de um barracão na pista de Brooklands, e montar os veículos com chaves inglesas, chaves de fenda, martelos e alicates.114 A maioria das firmas britânicas desse período estava presa num circulo vicioso: a produção não era suficientemente grande ou uniforme para justificar desembolsos pesados em equipamentos de precisão e numa reorganização do traçado das fábricas; no entanto, esse era o único meio de obter os custos e preços baixos que gerariam uma demanda maior e justificariam seqüências de produção mais longas. Muitos fabricantes argumentariam, plausivelmente, que qualquer esforço de fixar a forma e a estrutura de seus produtos lhes roubaria a flexibilidade, que é a arma mais poderosa da pequena e da média empresas. Era preciso espírito de iniciativa para romper essa cadeia conservadora de lógica, e ele raramente estava à mão. Na maioria dos casos, foi preciso haver uma pressão externa, como as incursões crescentes de Henry Ford no mercado inglês, ou incentivos ex-traordinariamente favoráveis, como as imensas encomendas governamentais do período da guerra, para induzir a uma transformação.115

Se a padronização dentro da empresa era difícil, quão mais difícil era persuadir os fabricantes em toda uma indústria a aceitar uma norma nacional? O problema era agravado pela instituição singularmente britânica do engenheiro consultor, que tendia a conceber cada projeto como se o fabricante fosse um alfaiate de roupas sob medida que trabalhasse com metal. Também aí, entretanto, a concorrência externa se fez sentir. Os norteamericanos tinham sido os primeiros a adotar formatos e dimensões uniformes, impondo-os arbitrariamente aos clientes e consumidores industriais a partir da década de 1880.116 Os alemães haviam seguido seus passos, em grande parte por uma questão de princípios - a simplificação era racional; além disso, a organização industrial facilitava a introdução e a imposição de padrões inter-empresariais. As vendas inglesas defasadas, tanto nesses países quanto em outros mercados, junto com a maior inquietação dos técnicos, finalmente levaram, em 1901, à criação de uma Comissão de Padrões de Engenharia na Inglaterra, sob os auspícios das principais associações nacionais de engenharia.

Os primeiros esforços da comissão foram no campo da indústria side-rúrgica, onde os fabricantes ingleses produziam 122 cortes angulares e estriados, contra 33 nos Estados Unidos e 34 na Alemanha.117 Nessa área, eles obtiveram um sucesso considerável, pois os fabricantes queriam eliminar o desperdício da diversificação, e a própria existência de padrões lhes fornecia uma resposta pronta para as preferências idiossincráticas dos clientes.118 Em 1914, 95% da produção de cinco das maiores usinas de laminação do Reino Unido estavam padronizados.119 A padronização também progrediu bem numa indústria nova como a da eletricidade, operada por técnicos cientificamente formados e dirigentes relativamente progressistas, embora a diversidade da oferta de correntes elétricas complicasse consideravelmente a questão.

Em contraste, as indústrias montadoras mais antigas, como a de construção mecânica, demoraram a se modificar. Cada firma tinha um orgulho de proprietário por seu trabalho, a ponto de muitas simplesmente não se interessarem por normas e pelas técnicas de produção que as acompanha-vam.120 Além disso, a mão-de-obra nos setores de engenharia mecânica, fortemente organizada, orientada para seu ofício e temerosa do desemprego tecnológico, combatia todas as mudanças nas condições de trabalho.121 Mais uma vez, foi a Primeira Guerra Mundial, com sua grande demanda de toda sorte de maquinas e sua escassez de operários especializados, que deu impulso à luta contra a idiossincrasia; na verdade, as descrições dos avanços feitos depois de 1914 são nossa melhor fonte de consulta - implícita, mas

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válida - sobre a ineficiência que prevalecia anteriormente.122 Mesmo assim, o progresso foi lento em muitos ramos, que foram descritos em 1927 como "ainda atados pela tradição e se arrastando com um imenso número de peças avulsas, sem fazer nenhuma tentativa de simplificação".123 Comparada à Inglaterra, portanto, a Alemanha era nitidamente mais adiantada, embora haja uma tendência a nos concentrarmos nos exemplos mais impressionantes da realização alemã nesse campo, assim exagerando a discrepância. Até mesmo uma empresa tão moderna quanto a fábrica de equipamentos mecânicos Loewe, em Berlim, reconstruída em 1898-9 de acordo com a melhor prática norte-americana, só estabeleceu "Arbeitskreise",* ou seja, só passou de um padrão nodal para um padrão de fluxo linear, em 1926 . 124 Similarmente, a fábrica de máquinas Wolf, em Magdeburg, produzia peças intercambiáveis junto com equipamentos para fins especiais antes da guerra, mas esses componentes eram usados, na época, para montar fileiras de máquinas fixas no galpão de montagem.125 Para ambos os países, o novo sistema de produção em massa era, essencialmente, obra da famosa "racionalização" da década de 1920.

Como já ficou implícito, a reorganização do trabalho acarretou a reor-ganização da mão-de-obra: a relação dos homens entre si e com seus em-pregadores estava implícita no modo de produzir; a tecnologia e o padrão social reforçavam-se mutuamente.

Mas a mão-de-obra não é um fator como os outros. Ela é ativa, enquanto o equipamento e a matéria-prima são passivos. Tem mente própria; resiste, tanto quanto é receptiva. Seu desempenho, independentemente de outras considerações - aquilo a que podemos chamar sua eficiência, em contraste com sua produtividade -, não é fácil de calcular, a não ser através dos modernos sistemas de contabilidade de custos. Os dados históricos são subjetivos e escassos. É especialmente difícil separar o esforço puro, a diligência e a habilidade da organização e da supervisão, que obviamente fazem diferença. Felizmente, essa discriminação apurada não é necessária para nossa análise. Podemos juntar esses elementos num aglomerado, sem sacrifício indevido da precisão.

Nosso desconhecimento sobre as variações da eficiência da mão-deobra no espaço e no tempo é ainda mais lamentável. Temos todas as razões para crer que ela foi um determinante importante do ritmo e do caráter do * Circuitos de trabalho, ou linhas de montagem. Em alemão no original. (N. da T.)

desenvolvimento econômico de qualquer país, visto isoladamente, bem como dos países, vistos em conjunto; nesse aspecto, sua importância cresceu ao longo da Revolução Industrial, até que, na virada do século, essa era umaa das áreas de maior negligência e, pela mesma razão, de maior aumento potencial da produtividade. Nos dias que antecederam a maquinaria mecanizada, a habilidade e a rapidez eram diferenciais decisivos. Defoe tinha perfeita ciência disso; comparando os salários e o trabalho na Inglaterra e na França, escreveu:

Eu poderia examinar esse Elemento dos Salários e levar esse exame a cabo em quase todos os Ramos de Negócios da Inglaterra; e ficaria evidente que os Pobres Ingleses ganham mais Dinheiro do que a mesma Categoria de Homens ou Mulheres é capaz de fazer, no mesmo tipo de Trabalho, em qualquer outra Nação.

Tampouco se há de negar que eles também executam mais Trabalho: Assim, pois, se executavam mais Trabalho e têm também melhores Salários, devem necessariamente viver melhor e ter a mesa mais farta; e é também verdade que não poderiam suportar sua Labuta sem isso.

E aqui posso admitir que um Francês realizará mais Trabalho do que um Inglês, sendo ambos obrigados a sobreviver com a mesma Dieta; ou seja, se apostar passar fome com o Inglês, o Estrangeiro com certeza vencerá: Irá viver e trabalhar, enquanto o Inglês soçobrará e morrerá; mas, a deixálos viver da mesma Maneira, o Inglês superará o Francês, pois, ainda que o Francês gaste todo o seu Salário, o Inglês o suplantará no Trabalho.

Verdadeiro é também que é maior a Diligência do Francês, que ele trabalha mais horas do que o Inglês; mas o Inglês realiza tantas Tarefas nessas Horas reduzidas quanto o Estrangeiro que nelas despende mais tempo.126

Nas primeiras décadas da Revolução Industrial, entretanto, quando as técnicas em rápida transformação ofereciam grandes retornos, e quando a mecanização, em particular, gerava aumentos espetaculares de produtividade em comparação com o trabalho manual, a eficiência da mão-de-obra perdeu importância relativa e - sensatamente ou não - foi negligenciada. Eric Hobsbawm, num importante artigo sobre os "Costumes, Salários e Carga de Trabalho na Indústria do Século XIXI',127 cita o Carding and Spinning Master's Assistant* de 1832, que advertia contra a reformulação das instalações mecânicas, ainda que elas fossem deficientes, sob a alegação de que o custo provavelmente ultrapassaria a economia obtenível.

* Publicação cujo titulo se traduziria por "Ajudante do mestre de cardagem e fiação". (N. da T.)

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A maioria dos empresários e gerentes desse período preferia os salários fixos e confiava na "pressão" dos capatazes e mestres-de-obras para lhes obter o valor de seu dinheiro a curto prazo, bem como no efeito silencioso da transformação tecnológica para reduzir os custos trabalhistas a longo prazo. Quando era possível fracionar a produção, usavam-se às vezes pagamentos por unidade produzida, como um incentivo à diligência, mas diversas considerações conjugavam-se no sentido de anular seu efeito estimulador. Assim é que as taxas costumavam ser calculadas com base nas normas costumeiras e ajustadas conforme as mudanças na técnica, de modo a reservar para o capital a maior parte de quaisquer aumentos de produtividade. Essa divisão do produto adicional pode ter sido justa ou não, mas seu efeito sobre o trabalhador foi convencê-lo de que a assiduidade era inútil. Além disso, a mão-de-obra, mesmo nas fábricas, tinha freqüentemente o tipo de curva de oferta flexionada para trás que sempre havia caracterizado o trabalho domiciliar.128 Assim como os salários tendiam a ser definidos pelo costume, também o nível de desempenho era fixado pela tradição e as expectativas de renda compare-se o ideal, ainda persistente, de "um bom dia de trabalho por um bom dia de pagamento" -, sendo imposto por uma intensa pressão grupal que contrariava as tentações da ambição. Esse racionamento do esforço produzia uma lentidão que contribui muito para explicar a capacidade da mão-de-obra de manter a produção a curto prazo sempre que havia uma redução no horário, como aconteceu repetidamente no correr do século. Inversamente, contribui também para explicar a incapacidade quase universal que as inovações tecnológicas tiveram de gerar os aumentos de produtividade que, teoricamente, elas mesmas podiam possi-bilitar.129

A tendência da direção a deixar que o costume estabelecesse o nível de desempenho no trabalho foi abalada pela adversidade. As contrações do fim da década de 1860 (especialmente na indústria têxtil) e de meados da década de 1870 (em toda a indústria), quando os salários se sustentaram melhor do que os lucros, foram cruciais nesse aspecto. Os empregadores tentaram reduzir os custos trabalhistas aumentando o desempenho, e a questão da natureza e do tamanho da carga de trabalho suplantou a dos salários como tema principal das disputas trabalhistas. Na indústria têxtil, o casus belli foi a tentativa da administração de aumentar o número de teares mecânicos por tecelão; a luta foi particularmente acirrada no Continente. Na construção mecânica e na engenharia, um sério pomo da discórdia foi o direito de a direção deslocar os homens de um lado para outro conforme a necessidade, isto é, de tratar o trabalhador como uma peça intercambiável no pro-

cesso de produção. Em todas as indústrias, houve uma insatisfação generalizada com a substituição de operários qualificados por trabalhadores não especializados ou semi-especializados, que eram mais fáceis de gerenciar e mais receptivos ao ritmo estabelecido de cima para baixo.

A estrutura salarial refletiu a nova política. À medida que o trabalho diversificado do artesão, não fracionável em unidades de produção homogêneas, cedeu lugar à operação rotineira das máquinas com funções específicas, os salários pagos por horas trabalhadas deram lugar aos salários pagos por unidade produzida. Essa mudança foi sentida da maneira mais aguda nos ramos da engenharia, onde a remuneração por hora sempre fora a norma geral. Houve numerosos protestos, que testemunham as tensões e ressentimentos produzidos por essas mudanças na técnica e na organização. E bem verdade que a mão-de-obra, e particularmente a mão-de-obra organizada, geralmente preferia a remuneração por unidades produzidas. Admite-se que esta levasse alguns homens a se sobrecarregar de tarefas (embora as restrições coletivas habitualmente o impedissem), que estimulasse um trabalho apressado e até malfeito (embora não fosse difícil estar alerta contra isso) e que levasse alguns a adotar o ritmo de pressa-lentidão que sabemos ter caracterizado o sistema de produção domiciliar do século XVIII. Contudo, mais importante do que todos esses inconvenientes era a convicção da maioria dos homens de que os salários por unidade produzida lhes davam sua única segurança de terem uma parcela do aumento de produção decorrente dos avanços da técnica. Mesmo quando os empregadores tentavam ajustar os salários para baixo, ao menos havia alguma coisa a negociar. Com os salários por horas trabalhadas, em contraste, o trabalho podia aumentar, e de fato o fazia, imperceptivelmente, à medida que aumentava a produtividade; mesmo quando esse processo era visível, o sistema de remuneração dava poucas oportunidades de correção.

Para o trabalhador inglês do fim do século XIX, entretanto, o salário por unidade produzida mais parecia um instrumento de exploração do que uma defesa. Sem dúvida, ele acenava com a promessa de uma remuneração mais elevada. Mas os trabalhadores alegavam que os valores pagos eram estipulados de acordo com o desempenho dos homens mais rápidos; os lentos tinham que acompanhá-los, ou então "ficavam arruinados".130 A remuneração mais alta, achavam eles, não passava de tentativa de adoçar a pílula para fazêlos engolir normas de trabalho mais rígidas; e, de fato, os novos valores raramente se mantinham além do que era considerado um aumento razoável - de 1/3, ou talvez a metade - sobre os salários costumeiros.

Nisso, tanto quanto no apetite de lucro do empregador, estava o cerne

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da dificuldade. O empregador, como a maioria dos ingleses das "classes proprietárias", presumia como certo que seus homens e os filhos deles estavam destinados a continuar sendo trabalhadores, e "que todo o tecido social, político e industrial desmoronaria" se, de repente, os trabalhadores enriquecessem, ficassem insatisfeitos com sua sorte e ambicionassem uma posição mais elevada.131 Ora, talvez tenha havido uma época, como dizem alguns, em que o trabalhador - ou, pelo menos, muitos trabalhadores- não acreditasse nisso, em que sinceramente achasse que poderia ascender, e em que fosse suscetível aos apelos à diligência e à "auto-ajuda". Nas últimas décadas do século, todavia, o desencanto se havia claramente instalado, em parte graças a uma experiência mais longa com as dificuldades de progredir, e em parte graças a consciência de classe mais aguçada de um movimento trabalhista organizado, ideologicamente fortalecido pela doutrina militante. A essa altura, o trabalhador estava pronto a encarar qualquer iniciativa do patrão como uma armadilha. E a isso convém acrescentar seu medo do desemprego tecnológico. A despeito da política econômica, ele se agarrava instintivamente à doutrina da "quota de trabalho": havia apenas uma certa quantidade de trabalho em circulação, e o pão que um homem ganhava através do trabalho mais rápido tirava da boca de seu semelhante. Em decorrência disso, o trabalhador tendia a resistir, como membro de um grupo, até mesmo as inovações que lhe eram vantajosas como indivíduo; e enquanto, no início do século XIX, o esforço da mão-de-obra para arrancar melhorias do empregador tinha sido um estímulo à inovação, no final do período que estamos considerando, esse mesmo esforço - mais eficaz, porém visando mais às condições de trabalho do que aos salários bem pode ter sido, no cômputo geral, um obstáculo à transformação tecnológica. Decerto isso se aplicava com freqüência ao curto prazo, e na história, senão na teoria, o longo prazo, muitas vezes, não passa do curto prazo cultuado como uma praxe, uma tradição ou um interesse adquirido.

Nesse meio-tempo, o esforço para maximizar o produto do trabalho levou a um criterioso estudo do trabalhador como uma máquina inanimada, pelos olhos de um novo tipo de engenheiro. A iniciativa veio dos Estados Unidos, como sempre preocupados com essa questão. Foi na Siderúrgica Midvale, na Pensilvânia, no início da década de 1880, que Frederick W. Taylor (1856-1915) conheceu e aprendeu, como operário e capataz da oficina de máquinas, a prática e os truques da "cera", e foi ali que desenvolveu o sistema que passou a ser conhecido como administração cientifica, ou taylorismo. Tal como acabou sendo elaborado, seu método compreendia, primeiro, a observação cuidadosa, a análise e o cálculo do tempo dos gestos

dos trabalhadores; segundo, a mensuração exata do custo trabalhista de cada operação; e terceiro, o estabelecimento de normas baseadas nesses cálculos. A introdução desses novos padrões, quase invariavelmente superiores aos que eram costumeiros no setor, viria a ser abrandada por taxas favoráveis de remuneração por tarefa, pagamentos de bonificações ou outros incentivos.

Nesse ponto, o círculo descreveu a volta completa: o esforço de aprimorar a eficiência do trabalhador, um esforço nascido da maior eficiência do capital, abriu caminho para avanços na utilização dos equipamentos. A administração cientifica estava logicamente vinculada, como causa e como efeito, às inovações na operação das máquinas-ferramentas, no manuseio dos materiais, na divisão do trabalho na fábrica e na organização dos fluxos de trabalho discutidos anteriormente, pois o estabelecimento de normas apoiava-se numa análise do processo de produção e, inevitavelmente, revelava os pontos fracos e as possibilidades de aprimoramento. O que Taylor pregou foi uma substituição do hábito pela razão, uma nova maneira de encarar as coisas conhecidas. Não por coincidência, ele descobriu o aço de alta velocidade e elaborou as tensões e velocidades corretas da correagem mecanizada, bem como um método eficiente para a manutenção daquilo que sempre fora responsabilidade de qualquer um, sem designação específica (como a lubrificação ou a afiação). A questão a ser frisada é que sua busca de um ritmo de trabalho ótimo levou-o a estudar e a estabelecer padrões de eficiência para todos os aspectos da produção.132

Quase com a mesma precocidade, no entanto, os europeus estavam elaborando seu próprio pensamento e escrevendo sobre a administração das fábricas, e algumas idéias paralelas vinham encontrando uma aplicação ocasional e descontínua. Em 1896, J. Slater Lewis, chefe do departamento de engenharia elétrica de uma siderúrgica de Manchester, publicou "o que é, aparentemente, o primeiro livro moderno sobre a organização fabril".133 Na passagem do século, as principais publicações de engenharia na Inglaterra e na Alemanha, bem como nos Estados Unidos, estavam repletas do novo evangelho e fundamentavam sua pregação em exemplos de inovações bem-sucedidas. Não por coincidência, entretanto, a área de avanço mais rápido foi a contabilidade: era mais fácil aperfeiçoar o fluxo e a qualidade da informação do que agir com base nela. Mesmo assim, alguns controles de custos mais rigorosos possibilitaram uma organização mais centralizada da produção; é isso, por exemplo, que explica em grande parte o declínio do chamado "sistema de parceria", no qual a administração entregava tarefas, num sistema de subempreitada, a mestres-de-obras que contratavam seus pró-

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prios ajudantes. O sistema, em geral, era dispendioso, mas suas mais sérias desvantagens eram suas implicações nocivas para a disciplina e o moral: a interposição de um empreiteiro entre o empregador e o empregado dificultava o comando efetivo, e a competição por esses contratos dava margem ao tipo de arrocho salarial que tantas vezes acompanhara o sistema de produção domiciliar. Apesar disso tudo, o sistema de parceria era quase indispensável em indústrias como a construção naval, nas quais permitia que a administração calculasse antecipadamente os custos de tarefas complicadas. Sem uma previsão, não poderia haver cotações de preços competitivas. A partir da década de 1890, a contabilidade de custos foi a resposta. O escritório estava começando, mas apenas começando, a dominar a fábrica.

Vista do prisma retrospectivo de meados do século XX, a administração científica foi a seqüência natural do processo de mecanização que constituíra o cerne da Revolução Industrial: primeiro, a substituição da habilidade e força humanas pela energia mecânica e inanimada; depois, a conversão do operador num autômato, para equipará-lo a seu equipamento e fazê-lo acompanhar o ritmo deste. A terceira etapa acha-se agora entre nós: a automação a substituição do homem por máquinas que, além de fazer, "pen-sam". Até onde e com que rapidez essa nova técnica avançará, e se, em combinação com a energia atômica, irá representar uma segunda (ou terceira) Revolução Industrial, ainda é cedo demais para dizer. Mas há um certo consolo em pensar que, aparentemente, é mais fácil fazer máquinas semelhantes ao homem do que transformar o homem numa máquina.

Por trás desse caleidoscópio de mudanças - ora marcado por brilhantes explosões de crescimento, ora entediante em sua complexa fragmentação, e sempre estonteante em sua variedade -, uma tendência geral é patente: o casamento cada vez mais estreito entre a ciência e a tecnologia. Já tivemos oportunidade de observar a independência essencial dessas duas atividades durante a Revolução Industrial e de assinalar que o estímulo e a inspiração que efetivamente cruzaram esse abismo partiram da tecnologia para a ciência, e não o inverso. A partir de meados do século XIX, entretanto, desenvolveu-se uma estreita aliança; a tecnologia continuou a suscitar problemas frutíferos para a pesquisa científica, mas o fluxo autônomo de descobertas científicas alimentou uma torrente cada vez mais ampla de novas técnicas.

Como se deu esse casamento? A resposta costumeira é que ele foi a consequência inevitável da ampliação do conhecimento: à medida que cresciam o conteúdo e o alcance das duas atividades, elas estavam fadadas a

entrar em contato e a juntar forças em algumas áreas de interesse comum. Na verdade, porém, elas não se tocam, e esse é um casamento que, para funcionar, requer uma intermediação permanente; o abismo entre a ciência e a tecnologia é largo demais para que haja uma comunicação direta. A ligação é fornecida por dois intermediários: a ciência aplicada, que tem por meta o controle, mais do que o saber, e que transforma as descobertas da ciência pura em formas adequadas para uso prático; e a engenharia, que toma as generalizações da ciência aplicada, juntamente com uma multiplicidade de outras considerações, econômicas, legais e sociais, e extrai os elementos necessários para solucionar um problema técnico específico - seja ele a construção de uma ponte, o projeto de uma fábrica ou a regulagem de uma máquina.

Quando se fala, portanto, do casamento da ciência com a tecnologia, realmente se está fazendo referência a uma união complexa, que não foi consagrada num dado momento do tempo, mas desenvolveu-se lentamente e de maneira desigual, e que até hoje varia de país para país e de indústria para indústria. Ainda existem áreas da produção que têm que confiar maciçamente num empirismo talentoso. Não obstante, foi a segunda metade do século XIX que viu, pela primeira vez, alguns estreitos vínculos sistemáticos entre as duas, em importantes ramos da atividade industrial; e foi seu sucesso nessas áreas que estabeleceu o padrão e trouxe o incentivo para uma cooperação adicional.134

As razões desse fenômeno podem ser buscadas tanto na oferta quanto na procura do conhecimento. Do lado da oferta, a fundação, já na década de 1790, de instituições de formação em engenharia, parcialmente dirigidas por homens de instrução e inclinação teóricas, possibilitou não apenas transmitir aos alunos certos elementos (às vezes equivocados) da ciência contemporânea, mas também, e mais importante, equipá-los com os instrumentos da análise e as atitudes mentais que possibilitam a passagem do abstrato para o concreto, do geral para o específico. Do lado da procura, a natureza dos campos de atividade industrial mais novos a química orgânica e a engenharia elétrica, em particular - tendeu a reduzir a confiança na combinação tradicional de empirismo e bom senso e a impor uma abordagem mais científica. É que esses métodos mais antigos só são capazes de lidar adequadamente com o que é suscetível à percepção sensorial comum e formulável em termos daquilo que é familiar: pode-se ver uma alavanca levantar um peso e deduzir daí um principio exato da vantagem mecânica; outra coisa é inferir a natureza e as possibilidades de uma corrente elétrica a partir da observação de seus efeitos. Admitimos que a engenhosidade do

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homem como experimentador e executante é quase inacreditável: observe-se a precedência da engenharia a vapor em relação à teoria da termodinâmica. Mas persiste o fato de que a tarefa da invenção estava-se tornando sistematicamente mais complexa, e a questão da invenção, mais obscura. Como resultado, a ciência aplicada era uma chave mais eficiente para o desconhecido, e portanto, mais prolífera em inovações.

Tampouco essas realizações se limitaram aos ramos mais novos da indústria. Por toda parte, o aumento da escala foi transformando o que antes tinham sido elementos desprezíveis do custo em fontes potencialmente graves de perda: a mais ínfima economia, numa fábrica a vapor que consumisse uma tonelada de carvão por minuto, podia economizar milhares de libras esterlinas por ano. O resultado disso foi uma pressão constante em prol de um planejamento mais exato e racional, tendência esta que foi reforçada pela maior complexidade e precisão dos equipamentos manufatureiros e pelo controle de qualidade mais rigoroso, num período de competição crescente. Mais do que nunca, a ênfase recaiu sobre a mensuração, e os próprios instrumentos de medida figuraram entre as aplicações mais engenhosas dos princípios científicos puros às necessidades industriais: foi o caso do moderno refratômetro-goniômetro, usado na indústria química, e do pirômetro, usado em toda sorte de trabalhos com altas temperaturas. Outros produtos dessa colaboração entre a teoria e a prática foram a turbina a vapor de Parsons, que requeria uma combinação de "todos os recursos disponíveis da matemática, da ciência e da criação de projetos de máquinas", e inovações fundamentais da metalurgia não ferrosa, como os processos de alumínio de Hall-Héroult e de níquel de Mond. Até na siderurgia, onde o empirismo e o dom das descobertas fortuitas continuaram a desempenhar um papel frutífero pelo século XX adentro, a necessidade de novos materiais (em contraste com os problemas tradicionais da fundição e do refino) tornou indispensável o recurso à mensuração precisa, à análise química e à metalografia microscópica.136 É claro que, muitas vezes, estas foram apenas instrumentos mais aguçados a serviço do empirismo. Mas a ênfase no exame rigoroso e no experimento sistemático abriu as portas para os princípios científicos, pois o homem treinado para executar o primeiro era, muitas vezes, capaz de aplicar o segundo. E, conquanto pudesse arranjar-se sem eles e geralmente o fizesse -, ele podia fazer muito mais com eles. A concorrência encarregou-se do resto.

Em geral, houve uma institucionalização gradual do avanço tecnológico. As empresas comerciais mais progressistas já não se contentavam em aceitar as inovações e explorá-las, mas buscavam-nas através da experimentação

deliberada e planejada. Para citar apenas um exemplo: até este século, os engenheiros contentavam-se em utilizar em seu trabalho os materiais prontamente colocados à sua disposição pelos metalurgistas; mas, a começar por um ramo como a indústria elétrica, que introduziu toda uma gama de novos requisitos, a demanda de ligas especiais aumentou a ponto de os usuários não se disporém a esperar pelo prazer e pela imaginação dos fornecedores. As técnicas e equipamentos de laboratório aperfeiçoaram-se sistematicamente, enquanto somas cada vez maiores eram destinadas à pesquisa. Para os que não tinham possibilidade ou disposição de empatar capital em instalações e equipes permanentes, começaram a surgir consultores científicos e técnicos uma divisão do trabalho que evidenciava, por si só, o crescimento do mercado de conhecimentos. O sucesso acabou por alimentar, na indústria, uma verdadeira mística da lucratividade da ciência - a ponto de as empresas começarem a financiar tanto a pesquisa aplicada quanto a básica.

Esse elo cognitivo entre a ciência e a prática acelerou enormemente o ritmo da invenção. Não apenas a expansão autônoma das fronteiras do saber gerou toda sorte de frutos práticos imprevistos, como também a indústria passou a poder encomendar suas aspirações ao laboratório, tal como um cliente fazia encomendas a uma fábrica. Assim, estranhamente, a importância da tecnologia como fator da transformação econômica foi simultaneamente elevada e diminuída. De um lado, ela se tornou, mais do que nunca, a chave do sucesso e do crescimento competitivos. Quanto mais rápida a marcha da transformação, mais importante era conseguir acompanhar o passo dos que determinavam o ritmo. De outro lado, a tecnologia deixou de ser um determinante relativamente autônomo. Em vez disso, tornou-se apenas mais um insumo, aliás com uma curva de oferta relativamente elástica.

ALGUNS PORQUÊS Agora é chegada a hora de juntar os fios de nossa história e de nos indagar por que as diferentes nações da Europa ocidental cresceram e se modificaram como o fizeram. Em particular - pois a falta de espaço nos compele a selecionar nossos problemas -, por que a liderança industrial passou, nas décadas finais do século XIX, da Inglaterra para a Alemanha?

O interesse maior dessa questão não há de escapar ao leitor. Ela é de interesse não apenas para o estudioso do crescimento econômico, mas também para o historiador geral que procura entender o curso da política mundial a partir de 1870. A rápida expansão industrial de uma Alemanha uni-

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ficada foi o mais importante fenômeno do meio século que antecedeu a Primeira Guerra Mundial - mais importante até do que o crescimento comparável dos Estados Unidos, simplesmente porque a Alemanha estava inserida na rede européia de poder e, nesse período, o destino do mundo estava nas mãos da Europa.

Em 1788, um perspicaz demógrafo francês chamado Messance escreveu: "O povo que conseguir manter por último suas forjas em funcionamento será forçosamente o senhor, pois somente ele disporá de armas.137 Messance estava um pouco adiantado em relação a sua época. Nos anos subseqüentes, os exércitos revolucionários, e depois Napoleão, iriam mostrar o que o material humano bem dirigido - uma nação em armas -, usando armamentos tradicionais, era capaz de fazer com os exércitos tradicionais. Na década de 1860, porém, a análise de Messance foi confirmada, primeiro pela Guerra Civil norte-americana, e depois pela Guerra FrancoPrussiana. A essa altura, eram o Blut und Eisen * que contavam, e nem todo o sangue do mundo seria capaz de compensar o poder de fogo acionado oportunamente e bem dirigido.

Levou muito tempo para que as pessoas se adaptassem a essa nova base do poder. Quando a coalizão prussiana derrotou a França em 1870, inúmeros bretões, inclusive a Rainha, regozijaram-se ao ver o tradicional inimigo e perturbador da paz gaulês ser humilhado pelo honrado e sóbrio teutão. Num prazo de quinze anos, entretanto, os britânicos despertaram para o fato de que a Revolução Industrial e os índices diferenciados de crescimento populacional haviam elevado a Alemanha à hegemonia continental e deixado a França muito para trás. Essa foi uma das mais demoradas "reações retardadas" da história: os ingleses permaneceram combatendo o ogre corso, morto já havia uns cinqüenta anos ou mais, enquanto Bismarck seguia seu caminho.

Nas décadas subseqüentes, essa modificação na balança do poder foi a influência dominante nas relações internacionais européias. Esteve subjacente à gradativa recomposição de forças que culminou na Tríplice Entente e na Tríplice Aliança; alimentou a rivalidade política e naval anglo-germânica, bem como os temores franceses do inimigo a leste do Reno; tornou a guerra provável e muito contribuiu para ditar a escolha dos membros dos campos opostos. Sei que tem estado em voga, há mais de uma geração, negar essa interpretação. Na reação contra os lemas marxistas da "guerra * Sangue e ferro. Em alemão no original. (N. da T.)

imperialista" e do "último estágio do capitalismo", os estudiosos têm-se in-clinado, retrospectivamente, a riscar de suas elucubrações o mais leve ves-tígio de determinismo econômico. Todavia, a doutrina nunca foi um guia válido do saber, em qualquer das extremidades do espectro ideológico, e esse esforço de eliminar as considerações materiais como causas da Guerra Mundial trai uma naïveté, ou uma ignorância sobre a natureza do poder e a importância das relações de poder para a definição dos interesses nacionais.

Esses interesses políticos vão longe na explicação da agitada reação da Grã-Bretanha a expansão econômica alemã. A Alemanha não era, afinal, o único país a competir com a Inglaterra nos mercados internos e externos. Os produtos norte-americanos, particularmente as máquinas-ferramentas e outros dispositivos que valorizavam a engenhosidade, invadiram o Reino Unido já em meados do século e continuaram a perturbar os produtores ingleses até o fim do período que estamos considerando. E já assinalamos o sucesso dos tecidos de algodão indianos e japoneses na concorrência pelo mercado oriental, potencialmente inesgotável.

Mas foi a Alemanha que ficou atravessada na garganta de John Bull.* Nas décadas precedentes a 1870, ela passara gradativamente de um dos melhores mercados de artigos manufaturados britânicos para uma nação industrializada auto-suficiente; esse processo, como vimos, pode ser acompanhado em sua dependência cada vez menor das importações de produtos reveladores como o fio de algodão e o ferro-gusa (57,5% do consumo em 1843, no auge da explosão ferroviária, 34% em 1857 e 11% uma década depois).138 Após 1870, conquistado o mercado interno, a indústria alemã começou a criar para si um lugar importante no exterior. Na verdade, o processo havia começado antes, mas foi mais ou menos a partir desse ponto que o aumento do volume de exportações de produtos manufaturados se acelerou e os ingleses começaram a despertar para seu novo rival. De 1875 a 1895, enquanto o valor das exportações britânicas mantinha-se estagnado (embora o volume aumentasse cerca de 63%), o valor das exportações alemãs cresceu 30%, e o volume, correspondentemente mais. Ao mesmo tempo, enquanto apenas 44% das exportações alemãs eram de produtos acabados em 1872, 62% enquadraram-se nessa categoria em 1900 (em contraste com 7S% do Reino Unido).

Além disso, os pormenores dessa tendência eram mais perturbadores do que a maré geral. Havia, por exemplo, a exportação de ferro e aço * Personificação da Inglaterra ou dos ingleses. (N. da T.)

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alemães para áreas que a Inglaterra tinha passado a encarar como territórios privados - Austrália, América do Sul, China e a própria Inglaterra. Havia a acentuada superioridade da Alemanha nos ramos mais novos da indústria: produtos da química orgânica, a partir da década de 1880, e equipamento elétrico, a partir da de 1890. Acima de tudo, havia os métodos "desleais" supostamente empregados pelos teutões: eles vendiam mercadorias vulgares e de má qualidade, muitas vezes disfarçadas de artigos ingleses; aceitavam contratos de treinamento com firmas britânicas a fim de espionar determinado ramo; satisfaziam as preferências dos habitantes nativos e os seduziam através de concessões a sua ignorância - a ponto de traduzirem catálogos de vendas para sua língua. As queixas chegaram ao auge durante o que Ross Hoffman chamou de "loucura de verão de 1896".140 Os oradores parlamentares exerceram sua eloqüência acerca das compras governamentais de lápis bávaros, ou da importação de escovas produzidas pela mão-deobra presidiária alemã; os jornais denunciaram a aquisição de roupas alemãs baratas, muitas delas produzidas com lãs inglesas reaproveitadas. Nenhum artigo era insignificante demais para ser empilhado na fogueira da indignação: baralhos, instrumentos musicais, chicotes para charretes.141

Certamente, é fácil demonstrar o exagero desse alarmismo. O progresso da Alemanha ainda a deixava muito atrás da Inglaterra como potência comercial: o volume de seu comércio em 1895 talvez correspondesse a 3 /5 do da Inglaterra, e a tonelagem de sua marinha mercante teria apenas 1/6 das dimensões da inglesa. O comércio britânico ainda continuava a crescer, as perdas num dado mercado eram geralmente compensadas por lucros em outro e sua indústria não havia desaprendido a enfrentar a concorrência. Além disso, a diferença nos índices globais de crescimento entre os dois países era consideravelmente menor do que levaria a esperar a discrepância nas taxas de crescimento industrial. A produção inglesa de artigos manufaturados (inclusive minerais e alimentos industrializados) pouco mais do que duplicou de 1870 a 1913, em contraste com um aumento alemão de quase seis vezes, mas a proporção entre o crescimento da renda dos dois países, tanto calculada globalmente quanto per capita, era da ordem de 0,7 ou 0,8 por 1.142

Em parte, esse paradoxo simplesmente refletia uma mudança nos recursos. Mais madura do que a Alemanha, a Inglaterra estava começando a desenvolver seu setor de serviços (distribuição, transporte, atividade bancária e seguros) à custa de sua indústria manufatureira, de modo que a participação desta última na produção nacional vinha diminuindo sistematicamente.

O aumento da participação no estrangeiro teve conseqüências estatísticas similares.143 Em parte, no entanto, o desempenho global relativamente bom da Inglaterra era resultado de uma alocação mais eficiente dos recursos. A rapidez da expansão industrial alemã havia deixado para trás importantes setores da economia do país, protegidos mesmo assim do choque da obsolescência e da lógica da racionalidade marginal pelas fraquezas humanas e por dispositivos institucionais, como as tarifas protecionistas. Uma área surpreendentemente grande da fabricação, por exemplo, agarrava-se obstina-damente a processos manuais e à produção domiciliar;144 enquanto a Inglaterra havia eliminado os aspectos menos rentáveis de sua agricultura, uma expressiva parcela da população alemã continuava a viver dos produtos da terra.145 A economia alemã, em outras palavras, apresentava alguns dos contrastes entre setores avançados e atrasados que passamos a chamar de dualismo e a associar com o crescimento rápido e desequilibrado.146

Mesmo assim, os juros compostos são um árbitro implacável. A diferença nas taxas de crescimento não pode ser ignorada, e qualquer projeção das tendências constitui um julgamento desfavorável à Inglaterra. E isso é ainda mais verdadeiro na medida em que a discrepância entre os dois países aplicava-se não apenas a renda nacional, ou seja, ao rendimento do presente, mas também à formação de capital, ou seja, ao rendimento do futuro. Nesse aspecto, o contraste era particularmente marcante: enquanto a Inglaterra diminuía o ritmo, a Alemanha o acelerava (ver Tabela 15).

Nesse ponto, ademais, nossa estatística global alia-se a nossos dados qualitativos e microquantitativos. Todos os indícios concordam quanto ao atraso tecnológico de grande parte da indústria manufatureira inglesa quanto às vantagens perdidas, às oportunidades desperdiçadas e aos mercados abandonados, que não precisariam tê-lo sido. Esses são temas que se repetiram em todos os inquéritos oficiais e relatórios de delegações em viagem durante as duas últimas gerações. E os próprios tensionamentos da atividade, que alguns ramos fizeram de tempos em tempos, são prova de um esforço de atualização e de um potencial previamente inexplorado. Não há dúvida, em suma, de que a indústria inglesa não foi tão vigorosa e adaptável, a partir da década de 1870 , quanto poderia ter sido. Por quê?

Antes de tentar responder a essa pergunta, talvez seja útil preparar o terreno, eliminando as habituais explicações convenientes. Os recursos industriais da Grã-Bretanha eram tão bons quanto os de qualquer outro pais europeu no fim do século XIX. No mundo inteiro, somente os Estados Unidos a superavam na produção de carvão mineral; e nenhum país possuía um carvão melhor para a energia, a metalurgia ou a indústria química. Uma

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das ironias da história econômica é que a Alemanha, que quase monopolizou a produção de derivados de alcatrão de hulha, obtinha no Reino Unido boa parte de sua bulha.147 Muito se falou sobre os grandes depósitos de ferro da Lorena e sua adequabilidade para a produção do aço Thomas, mas a Inglaterra tinha seus próprios grandes depósitos de minério fosfórico nos condados do centro-leste, muito mais próximos de um bom carvão de coque do que os leitos da Lorena e igualmente fáceis de minerar. Quanto às matérias-primas industriais que tinham que vir de fora - o algodão, por exemplo, e quase toda a lã -, a Inglaterra estava mais bem-situada do que seus concorrentes europeus. Nenhuma nação tinha sob seu comando uma rede comercial tão vasta, e não era por acidente que quase todos os principais produtos primários tinham seus mercados centrais em Liverpool e Londres. Sem dúvida, a importância relativa da Inglaterra como reexporta-

TABELA 15. FORMAÇÃO DE CAPITAL COMO PARCELA DO PRODUTO NACIONAL

(em percentagens)

Reino Unido Alemanha

FLC(I) FLC(I)/PIL FLC(N)/PNL

/PNL

FLC(N)/PNL

Alemanha Preços Preços Preços Preços Preços Preços Preços

1851-60 correntes constantes correntes constantes correntes correntes constantes

R. Unido

8,4 8,6 7,9

1860-9 7,2 8,6 10 11,5

1861-70 8,S 9,7 I o,6

1870-9 8,2 7,3 11,8 10,9

1871-80 11,6 13,5 13

1880-9 6,4 3,4 10,9 8,1

1881-90 11,2 14 14,5

1890-9 7,3 3 10,1 6

1891-1900 13,9 I5.4 15,9

1895-1904 8,8 4,8 10,5 6,7

1900-9 8,2 4,1 11,7 7,8

1901-13 15,6 16,5 1519

1905-14 6,7 1,2 13 8,o

a. Fronteiras de 1913. Abreviaturas: FLC(I) - Formação Líquida de Capital (Interna) PIL - Produto Interno Líquido FLC(N) - Formação Líquida de Capital (Nacional) PNL - Produto Nacional Líquido Fonte: S. Kuznets, "Quantitative Aspects of the Economic Growth of Nations: VI. Long-Term Trends in Capital Formation Proportions", Economic Development and Cultural Change, IX, 4, parte II, julho de 1961, p. S8, S9 e 64

a dora das mercadoriais mundiais declinou um pouco à medida que países como a Alemanha, França e Estados Unidos aprenderam a comprar diretamente das áreas produtoras; mas eles - e menos ainda outros países - nunca aprenderam a contornar inteiramente o entreposto britânico, e o valor absoluto desse comércio de reexportação continuou a crescer até pouco antes da guerra. Na verdade, produtos como o algodão e a lã tendiam a ser alguns centavos mais baratos em Liverpool e outros portos ingleses do que em Le Havre e Hamburgo; e, embora a diferença não fosse grande, os industriais estrangeiros julgavam-na suficientemente vultosa para fazer suas compras ali.

Tampouco o tamanho menor ou a taxa de crescimento ligeiramente mais baixa da população inglesa eram uma desvantagem. Do ponto de vista da oferta de mão-de-obra, era a Alemanha, e não a Grã-Bretanha, que tinha dificuldade de atender às necessidades das indústrias em crescimento no fim do século; entre outras coisas, ela teve de deslocar dezenas de milhares de pessoas das aldeias da Pomerânia e da Prússia Oriental, cruzando todo o interior, até as fábricas da Vestfália e da Renânia. Quanto à demanda, embora o mercado interno alemão sem dúvida estivesse crescendo mais depressa e fosse potencialmente maior, o mercado dos fabricantes ingleses, na verdade, alcançava a maior parte do mundo conhecido. Também nesse as-pecto, suas relações comerciais experientes e de largo alcance davam-lhes uma importante vantagem inicial em relação aos concorrentes potenciais. Os negociantes e colonos ingleses detiveram por muito tempo uma posição de destaque até em algumas colônias alemãs, em virtude de seu estabelecimento anterior nessas áreas, de sua familiaridade com os problemas e possibilidades das regiões atrasadas, e da maior disposição dos investidores ingleses de colocar seu dinheiro em empreendimentos distantes.148

Por fim, a Inglaterra tinha mais capital com que trabalhar do que a Alemanha. Seu papel como precursora da industrialização havia possibilitado uma acumulação de riqueza sem precedentes, que transbordou de suas fronteiras com uma abundância crescente a partir do fim do século XVIII. A primeira de uma série de explosões de crescimento nos investimentos externos ocorreu na década de 1820; em meados do século, a Bolsa de Valores de Londres já havia assumido o toque cosmopolita que a distinguia de todas as demais. Ao se aproximar o fim do século ela era, e continuou a ser, a despeito da rivalidade com a Bolsa de Paris, o mais importante mercado de títulos internacionais do mundo, de diversos tipos (financiamento de ferrovias, ações de mineração ou novos empreendimentos industriais e agrícolas).149

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A Alemanha, em contraste, foi uma importadora de capital durante os

primeiros 2/3 do século XIX. E, mesmo depois disso, tal era o apetite de sua indústria florescente que os investimentos no exterior nunca tiraram mais do que uma pequena fração da poupança disponível. Durante realmente muito tempo, o governo desestimulou a exportação de capital, sob a alegação explícita de que as necessidades internas eram urgentes e deviam receber prioridade. Essa atitude, mais tarde, cedeu lugar a outras considerações - o desejo de desenvolver um império e de ampliar a influência política alemã no exterior.150 Ainda assim, e apesar da rápida ramificação dos interesses bancários alemães no mundo inteiro, a saída de recursos era esporádica e, a partir da década de 1890, representou uma parcela decrescente da formação líquida de capital (Tabela 16).

Essa avidez de dinheiro refletiu-se numa defasagem contínua, de um a dois pontos, entre a taxa de juros em Berlim e as taxas que prevaleciam nos outros mercados da Europa ocidental. Os recursos de curto prazo moviam-se de um lado para outro conforme o ciclo comercial, mas o saldo líquido favorecia a Alemanha, mesmo frente a um país como a França, que desestimulava os empréstimos a ex-inimigos. Os bancos franceses talvez relutassem em confiar seus recursos à indústria doméstica, por julgá-la indigna de confiança, mas consideravam os bancos alemães um bom risco e estes repas-savam o dinheiro para seus próprios empresários. Financeiramente, esse procedimento era irrepreensível; politicamente, tinha os ingredientes de um escândalo.

TABELA 16. ALEMANHA E REINO UNIDO: INVESTIMENTO EXTERNO COMO PERCENTAGEM DA FORMAÇÃO LÍQUIDA DE CAPITAL

(preços correntes) Alemanha Reino Unido

1851/5-1861/5 2,2 1855-64 29,1

1861/5-1871/5 12,9 1865 -74 40,1 1871/5-1881/5 14,1 1875-84 28,9 1881/5-1891/5 19,9 1885 -94 51,2

1891/5-1901/5 9,7 1895-1904 20,7 1901/5-1911/3 5,7 1905-14 52,9

Fontes: A série alemã provém de um manuscrito gentilmente cedido pelo professor Simon Kuznets e baseado em informações do professor Walter Hoffman. A série relativa ao Reino Unido baseia-se no cálculo de lmlah sobre o saldo no exterior em conta corrente, Economic Elements in the Pax Britannica, p. 70-5, e em estimativas da capitalização interna líquida fornecidas pela srta. Phyllis Deane.

Não, as razões do sucesso alemão na concorrência com a Grã-Bretanha não foram materiais, mas sociais e institucionais, implícitas, mais uma vez, no que se tem denominado de economia do atraso.

Houve, primeiramente, algumas desvantagens inerentes à prioridade cronológica: menos, entretanto, os tão citados ônus do pioneirismo do que os chamados "custos correlatos" da adaptação às mudanças subseqüentes . Os primeiros têm sido superenfatizados. Reconhecidamente, um pioneiro em qualquer área incorre em despesas adicionais em virtude da ignorância e da inexperiência, e, em tese, os que o seguem podem tirar proveito de seus erros. Mas isso pressupõe, por parte dos imitadores, uma sabedoria que a experiência histórica desmente. Se o pioneiro, muitas vezes, peca pela modéstia excessiva, o seguidor freqüentemente sofre de um excesso de ambição; se um não sabe muito bem para onde está indo, o outro sabe bem demais e se desarticula em função de sua avidez. Há, como os técnicos do fim do século XIX tiveram o cuidado de assinalar, coisas como máquinas grandes demais, motores potentes demais, fábricas com um coeficiente de capital demasiadamente elevado.

Muito mais sérios são os ônus impostos pela inter-relação, isto é, pela vinculação técnica entre as partes integrantes das instalações industriais de uma empresa ou de uma economia. Em princípio, o empresário está livre para escolher, a qualquer tempo, a técnica mais remuneradora que esteja disponível. Na verdade, seu cálculo é complicado por sua incapacidade de restringi-lo à técnica em exame. Por um lado -- e aqui enfatizaremos o ponto de vista da empresa , nenhum equipamento trabalha no vazio: o motor, a máquina que ele aciona e os meios pelos quais transmite sua po-tência são construídos, todos, de modo a se encaixar; similarmente, o número e os tipos de máquinas empregadas, bem como a capacidade e o tipo de canais de fornecimento, transferência e retirada de matéria-prima e produto acabado, são racionalmente calculados em relação uns aos outros. Como resultado, a substituição de um equipamento por outro, ou a introdução de um novo dispositivo, raramente ou nunca podem ser consideradas isoladamente. E mais, a decisão a respeito de determinada mudança nem sempre está inteiramente nas mãos da empresa, mas depende, antes, em maior ou menor grau, da cooperação de unidades externas. Novas técnicas de montagem, por exemplo, podem exigir novos padrões de exatidão, e portanto, novos equipamentos nas instalações dos subempreiteiros; facilidades de carregamento mais rápido podem gerar muito menos do que suas possibilidades, se os carregadores não adaptarem seus métodos ao novo ritmo. Nesses casos, a alocação de custos e riscos impõe um sério obstáculo,

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não apenas porque os cálculos são objetivamente difíceis, porém, mais ainda, porque os seres humanos são tipicamente desconfiados e teimosos nesse tipo de situação de barganha.151

Por outro lado - e aqui estamos examinando o problema do ponto de vista da economia -, a indústria mecanizada em larga escala requer não apenas máquinas e instalações, como também um investimento pesado no que tem sido chamado capital social: em particular, estradas, pontes, portos e sistemas de transporte, além de escolas para o ensino geral e o técnico. Pelo fato de estes serem dispendiosos, por ser vultoso o investimento exigido, que ultrapassa em muito os recursos das empresas isoladas, e porque, finalmente, o retorno desses desembolsos é amiúde adiado por muito tempo, eles constituem um ônus pesado para qualquer economia pré-industrial, condenada por seu atraso tecnológico a uma baixa produtividade. Além disso, esse ônus tem tendido a aumentar com as dimensões crescentes das instalações industriais, de modo que, atualmente, muitos dos chamados países subdesenvolvidos estão presos num círculo vicioso de pobreza e incapacidade. A tão decantada liberdade dos que vêm depois, no sentido de escolherem os últimos e melhores equipamentos com base nas mais avança das técnicas, tornou-se um mito.

Existem, pois, dois tipos de custos correlatos: um, microeconômico, recai com maior peso sobre os que se industrializam mais cedo; o outro, essencialmente macroeconômico, recai com mais peso sobre os países seguidores. O peso relativo desses dois custos nunca foi historicamente medido, nem é provável que as informações de que dispomos jamais permitam esse cálculo. Parece, no entanto, que a proporção tem variado ao longo do tempo. Se hoje a balança favorece os países adiantados, cuja liderança na produção e no padrão de vida continua a aumentar, a vantagem pendia no sentido inverso em meados e no fim do século XIX. Nessa ocasião, a Alemanha havia acumulado um estoque mais produtivo de capital social do que a Inglaterra (ela nunca foi tão atrasada quanto os países "atrasados" de hoje), enquanto os custos correlatos do crescimento recaíam sobre as empresas do infeliz pioneiro. Toda a indústria britânica sofreu com o legado da urbanização precoce; as cidades do início do século XIX não foram construídas para acomodar as fábricas do século XX (mais uma vez, a logística!). As siderúrgicas, em especial, com suas instalações apertadas e mal projetadas, tiveram dificuldade de se integrar à fundição, em sentido retrospectivo, ou ao acabamento, no sentido da finalização do processo; e a falta de integração, por sua vez, inibiu a adoção de diversas inovações importantes, entre elas a coqueificação derivada. De modo similar, as ferrovias e os proprietá-

rios de minas de carvão não conseguiram, durante muito tempo, chegar a um acordo sobre a adoção de caminhões de frete de maior porte, e a indústria elétrica foi prejudicada, durante décadas, pela diversidade inicial dos métodos de fornecimento. A simples visão da disposição espaçosa da usina de Homestead, nos Estados Unidos, levou Windsor Richards a desejar que ele "pudesse derrubar toda a usina de Bolckow e começar de novo".'152 Se os desejos fossem cavalos, os mendigos cavalgariam.

Assim, quando a defasagem entre o líder e o seguidor não é grande demais no começo - ou seja, quando não origina uma pobreza auto-reforçadora - a vantagem é de quem vem depois. E isso, principalmente, porque o esforço de cobrir a distância exige respostas empresariais e institucionais que, uma vez estabelecidas, constituem poderosos estímulos ao crescimento contínuo.

Os franceses, entre outros, têm um provérbio: "É mais fácil enriquecer do que permanecer rico" (compare-se isso com o ditado correlato "de mangas de camisa a mangas de camisa em três gerações"). No tocante à validade geral desse aforismo, por mais céticos que sejam aqueles dentre nós que não tiveram a oportunidade de testá-lo, está claro que ele se assenta na observação empírica da ascensão e queda das fortunas. Por um lado, a prosperidade e o sucesso são seus próprios piores inimigos; por outro, não há aguilhão que se compare à inveja.

Os ingleses do fim do século XIX lagarteavam complacentemente ao sol do ocaso da hegemonia econômica. Em muitas firmas, o avô que iniciara o negócio e o construíra através de uma dedicação incansável, além de uma parcimônia que beirava a avareza, há muito havia falecido; o pai, que recebera uma empresa sólida e que, partindo de ambições maiores, a tinha elevado a alturas nunca sonhadas, passara as rédeas adiante; agora era a vez da terceira geração: os herdeiros da abundância, entediados dos negócios e afogueados com as aspirações bucólicas da fidalguia rural. (Talvez fosse mais exato falar em "de mangas de camisa a jaquetas de caça - ou casacas, ou mantos de arminho - em três gerações".) Muitos deles se afastaram e forçaram a transformação de suas empresas em sociedades anônimas. Outros continuaram, simulando um espírito empresarial entre prolongados fins de semana - trabalhavam brincando e brincavam no trabalho. Alguns tiveram sensatez suficiente para entregar a direção de suas empresas a profissionais, comparáveis, em termos de privilégios e função, aos intendentes das propriedades medievais. Mas esse tipo de arranjo é, na melhor das hipóteses, um substituto precário da posse interessada e, na pior, um convite aos conflitos de interesses e ao abuso da autoridade. Os anais da história

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estão repletos de intendentes, almoxarifes, meirinhos, criados de quarto e similares que enriqueceram e se nobilitaram.

Tampouco as sociedades anônimas eram significativamente melhores. Por um lado, as considerações familiares amiúde determinavam a escolha do pessoal administrativo. Por outro, os indícios escassos e subjetivos de que dispomos indicam que tanto as empresas particulares quanto as sociedades anônimas recrutavam um número excessivamente grande de seus executivos nos escritórios de contabilidade, e não nas fábricas.153 E os homens de produção elevados a cargos de alta responsabilidade eram, não raro, pessoas "práticas", que haviam aprendido seu ofício in loco e tinham um interesse adquirido na maneira já instituída de fazer as coisas.

As deficiências da empresa britânica refletiam essa combinação de amadorismo e complacência. Seus negociantes, que um dia haviam capturado para si os mercados do mundo, passaram a presumi-los como coisa certa; os relatórios consulares estão repletos da incompetência dos exportadores ingleses, de sua recusa a adequar suas mercadorias ao gosto e ao bolso dos clientes, de sua má-vontade em experimentar novos produtos em novas áreas, e de sua insistência em que todas as pessoas do mundo tinham que saber ler em inglês e contar em libras, xelins e pence. Similarmente, o fabricante inglês era célebre por sua indiferença para com o estilo, seu conservadorismo diante das novas técnicas e sua relutância cm abandonar o individualismo da tradição em troca da conformidade implícita na produção em massa.

Em contraste, o empresário alemão do fim do século XIX era, em geral, um novus homo; estava quase fadado a sê-lo, dadas a recenticidade e a rapidez da industrialização de seu país. Muitas vezes, era um técnico formalmente treinado para sua tarefa; treinado ou não, entretanto, era sumamente sério. Trabalhava horas a fio e esperava que seus subordinados fizessem o mesmo; vigiava cada pfennig e conhecia cada detalhe do funcionamento de sua empresa. Os observadores da época unem-se na descrição dele como obsequioso, engenhoso, agressivo a ponto de chegar à intromis-são e, vez por outra, inescrupuloso. Ele não votava nenhuma veneração antiquada à qualidade pela qualidade, era hábil na apresentação espalhafatosa, conciliador em termos de vendas, enérgico na busca de novos clientes e obstinado em servi-los.

Mas essas comparações pouco lisonjeiras, que soam verdadeiras e combinam com a experiência histórica de rivalidades similares (compare-se a inflexibilidade da declinante indústria italiana de tecidos dos séculos XVII e XVIII),154 também contêm uma boa dose de caricatura. Por um lado, há

algum exagero embutido em qualquer contraste dessa natureza. Por outro, as provas são tendenciosas, num grau difícil de avaliar. Os observadores contemporâneos enfatizavam os fracassos da iniciativa empresarial inglesa e os perigos iminentes da concorrência alemã, exatamente do mesmo modo que os jornais alardeiam os aspectos mórbidos das notícias. Era assim que se vendiam artigos ou que se atraía a atenção das autoridades de Londres. Além disso, há um certo modismo nas opiniões, e essa era, claramente, uma das cantilenas populares da época.

A questão é complexa. Berrick Saul mostrou que várias empresas inglesas, em campos como a engenharia, reagiram de maneira vigorosa e imaginativa à concorrência estrangeira nos anos que antecederam à Primeira Guerra Mundial. Ele cita um relatório consular norte-americano de 1906:

Ninguém que não tenha vivido na Inglaterra nos últimos sete ou oito anos é capaz de se dar conta de como foi grande a conscientização aqui, ou de quão mudada está a atitude mental inglesa com respeito às novas maneiras de fazer as coisas. Tem havido muitas adaptações sensatas e inteligentes das idéias norte-americanas sobre maquinaria à mão-de-obra inglesa mais barata.155

Em alguns campos, portanto, é provável que a defasagem estivesse diminuindo. Mas ainda havia muita coisa por fazer, como iriam mostrar as investigações de guerra sobre essas mesmas indústrias. Ademais, essa própria irregularidade do ritmo e essa distribuição desigual do avanço tecnológico levantam importantes questões para o historiador econômico. Se muitas empresas mais antigas eram complacentes, por que as mais novas não aproveitaram essa oportunidade para tirá-las do caminho? Em outras palavras, por que a mudança não se disseminou com mais rapidez? E que dizer das novas indústrias, como a da engenharia elétrica e a da química orgânica, onde o endurecimento das artérias ainda não se havia instalado?

Várias considerações são sugeridas. Havia os habituais atritos no mercado. A transformação macroeconômica raramente é abrupta, simplesmente porque o sistema funciona de maneira imperfeita. A natureza das imperfeições competitivas da economia inglesa antes de 1914 é um tema que bem merece ser investigado. Aquele era, em princípio, o mercado mais livre do mundo - nenhuma barreira contra os produtos externos e, como vimos, um movimento limitado rumo à cartelização formal. Todavia, somente um estudo detalhado das práticas efetivas de compra e venda poderá mostrar até que ponto o hábito, os laços pessoais e a simples inércia distorceram a atuação da concorrência.

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Um segundo esteio do conservadorismo foi a dificuldade crescente de ingresso.

Ela se mostrou mais grave na indústria pesada, especialmente em ramos como a metalurgia, onde a localização e o acesso rápido a recursos minerais escassos eram de importância crucial; mas o aumento na escala das empresas - e, conseqüentemente, nos requisitos iniciais de capital - era generalizado, e já não era fácil para um indivíduo, ou mesmo para um grupo de sócios, encarregar-se da fabricação de um produto para o mercado de consumo em massa.

Havia exceções. Para os que ingressavam na indústria, continuavam atrativos ramos como o do vestuário, onde o gosto desempenhava um certo papel, os caprichos da moda limitavam a padronização, o equipamento era barato e a produção em oficinas era viável. E houve uma proliferação sistemática de pequenas firmas de consertos e manutenção, não apenas nos setores mecânicos mais antigos, mas também em novos campos como os con-sertos elétricos e de bicicletas. Algumas dessas empresas transformaram-se em gigantes - basta pensarmos nos primórdios da indústria de automóveis inglesa ou, aliás, de qualquer outra nacionalidade. A maioria, porém, teve um desempenho modesto; as economias de escala eram limitadas e, com elas, também o era a capacidade empresarial; embora a taxa de penetração no mercado fosse elevada, o mesmo acontecia com a taxa de mortalidade das empresas.

Tudo isso estava ligado ao fato de que, em geral, o talento estava se afastando dos ramos mais antigos da indústria, cujos retornos insuficientes ao mesmo tempo justificavam e eram agravados por esse abandono. A área de maior oportunidade para os recém-chegados estava no atendimento das necessidades de uma classe empresarial há muito enriquecida, livre do hábito e da necessidade de abstinência, de uma força de trabalho que desfrutava pela primeira vez de uma renda acima do mínimo de decência, e de uma crescente classe especuladora que se baseava nos lucros dos investimentos internos e externos. O lazer para consumo em massa tinha-se tornado uma poderosa força de mercado, e o setor de serviços crescia em ritmo acelerado - não apenas as atividades bancárias, os seguros e as profissões liberais, mas toda a gama de atividades voltadas para a recreação e as viagens. Começava a parecer que os britânicos logo estariam vivendo da transferência, de um lado para outro, da renda obtida do trabalho de terceiros. Essa imagem era caricatural, mas atestava a direção da transformação econômica. A situação oferece algumas analogias interessantes com a da Holanda do século XVIII.156

Havia duas dificuldades que afligiam todo o setor industrial, porém, acima de tudo, seus ramos mais novos: a escassez de qualificações e a escassez de capital de risco.

Qualificação se aprende. E a oferta de qualificações à indústria depende essencialmente da educação. Observar isso, contudo, é formular um truísmo. Para fazer mais do que isso, deve-se começar por decompor essa palavra multifacetada, "educação", e relacionar seu conteúdo com os requisitos da produção.

Com educação queremos dizer, realmente, a transmissão de quatro tipos de conhecimento, cada qual com sua contribuição própria a dar ao desempenho econômico: (1) a capacidade de ler, escrever e calcular; (2) as qualificações profissionais do artesão e do mecânico; (3) a combinação de princípios científicos e treinamento aplicado do engenheiro; e (4) o conhecimento científico de alto nível, teórico e aplicado. Em todas as quatro áreas, a Alemanha representava o melhor que a Europa tinha a oferecer; em todas quatro, com a possível exceção da segunda, a Inglaterra ficava muito atrás.

A primeira delas suscita problemas especiais de avaliação. Não é fácil definir e aquilatar a relação entre o ensino primário e a eficiência industrial. As conexões mais óbvias são, provavelmente, as menos importantes. Assim, embora alguns trabalhadores em particular, o pessoal de supervisão e de escritório precisem saber ler e efetuar as operações aritméticas elementares para executar suas tarefas, grande parcela do trabalho industrial pode ser executada por analfabetos, como a rigor o foi, especialmente nos primórdios da Revolução Industrial. Assim, é provável que as principais vantagens econômicas de um sistema amplo e bem dirigido de ensino primário obrigatório sejam, primeiro, a base que ele fornece para o trabalho mais avançado, e segundo, sua tendência a facilitar e estimular a mobilidade, com isso promovendo uma seleção do talento que se ajuste as necessidades da sociedade. Ele ajuda a otimizar, em suma, a distribuição dos recursos humanos.

Todavia, uma coisa é apontar a importância desse mecanismo; outra é avaliar sua eficácia. Não existem estudos empíricos das relações entre a educação e a seleção, de um lado, e entre a seleção e o desempenho industrial, de outro, no período que estamos examinando. Tudo de que dispomos são observações qualitativas, além de dados sobre a duração e a generalidade da escolarização e sobre algumas das conseqüências cognitivas mais elementares da instrução - sobretudo as percentagens de analfabetismo. O resto, somos obrigados a inferir.

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Esses dados - e eles estão sujeitos a sérias reservas quando usados para fins de

comparações internacionais -, eles mostram uma imensa defasagem entre as realizações inglesas e alemãs nessa área. De um lado, temos uma nação que, até as últimas décadas do século, preferiu deixar a escolarização entregue ao zelo, à indiferença ou à exploração da iniciativa privada. Não se tratava apenas de uma questão de laissez faire. Para cada idealista ou visionário que via na educação o caminho para uma cidadania esclareci-da, havia vários homens "práticos" que achavam que a instrução era uma bagagem supérflua para os lavradores e os operários industriais. Essas pessoas, afinal, tinham estado arando os campos ou tecendo desde tempos imemoriais, sem saber ler ou escrever; não apenas não havia razão para mudar agora, como também, em última análise, tudo o que elas aprenderiam na escola seria a insatisfação. Como resultado dessa indiferença e dessa resistência, somente em 1870 os conselhos locais foram autorizados a redigir regulamentos sobre a freqüência compulsória, e somente em 1880 a instrução primária tornou-se obrigatória em todo o reino.

Nessas circunstâncias, a Inglaterra saiu-se bem por ter cerca de metade de suas crianças em idade escolar recebendo algum tipo de instrução elementar por volta de 1860. Essa, pelo menos, foi a constatação da Comissão Newcastle, excepcionalmente tolerante com os testemunhos auriculares e sempre tendente a encarar a situação com imbatível otimismo.157 Havia boas razões para crer que muitos desses estudantes, senão a maioria, mais honravam sua salas de aula com sua ausência do que com sua presença, e que, em alguns dos grandes centros industriais, a freqüência foi mais baixa na década de 1860 do que tinha sido uma geração antes.168 Mesmo admi-tindo a exatidão das estimativas de Newcastle, observa-se que apenas 2/5 dessas crianças freqüentavam escolas inspecionadas pelo Estado, e destas, apenas 1/4 permanecia por tempo suficiente para ingressar nas classes superiores, as únicas "razoavelmente eficientes".

A situação melhorou consideravelmente nos anos posteriores. Pelo menos, houve um aumento acentuado da freqüência a partir de 1870 , e O conteúdo da educação elementar foi enriquecido pelo simples ato de se incorporar a instrução das escolas em geral aos modestos padrões das instituições submetidas a inspeção. Mesmo assim, o sistema continuou esterilizado pelo preconceito exacerbado e pelas restrições das condições sociais patológicas. Assim é que se presumiu largamente que a aptidão para a instrução - ou, em termos mais sutis, a capacidade de usar a instrução - era uma função da classe social, e que o conteúdo e o nível da formação deveriam adequar-se à situação de vida dos estudantes. "A Lei de Educação de

1870", escreveu H.G. Wells, "não foi uma lei de educação universal comum, mas uma lei para educar as classes inferiores para empregos nos moldes das classes inferiores, e com professores inferiores especialmente treinados, que não tinham nenhuma qualidade universitária."159 Em resumo, ela não era destinada a descobrir e promover o talento. Mas, poderíamos ir mais longe: quaisquer que fossem as metas ostensivas da educação elementar compulsória, sua função essencial (o que Robert Merton poderia chamar sua função latente) não era nem mesmo instruir. Era, antes, disciplinar uma massa cada vez maior de proletários descontentes e integrá-los na sociedade britânica. Seu objetivo era civilizar os bárbaros; como disse o Inspetor de Sua Majestade em Londres, "não fosse por suas quinhentas escolas elementares, Londres seria invadida por uma horda de jovens selvagens".160

A educação primária obrigatória remonta, em algumas partes da Alemanha, ao século XVI; na Prússia, Frederico, o Grande, emitiu seu General Landschulreglement em 1763. A qualidade do ensino, muitas vezes, era precária - fazia tempo que os cargos de professor eram encarados como excelentes colocações para velhos soldados, mas se aprimorou com o tempo. No início do século XIX, os sistemas escolares da Alemanha eram famosos em toda a Europa, e viajantes como Madame de Staël e observadores como Victor Cousin faziam questão de visitar e examinar essa suprema realização de um povo ávido de conhecimentos.

A obrigatoriedade de as crianças freqüentarem a escola primária era cumprida - como geralmente o são as leis na Alemanha: na Prússia, na década de 1860, a proporção de crianças em idade escolar que freqüentavam as aulas era de aproximadamente 97,5 %;161 na Saxônia, alcançava, na verdade, mais de 100%. 162 Mais importantes do que os resultados quantitativos, entretanto, eram o caráter e o conteúdo do sistema. Para começar, ele expressava a convicção, profundamente arraigada, de que a escolarização era uma pedra angular do edifício social; de que o Estado não apenas tinha a obrigação de instruir seus cidadãos, como também se beneficiava disso, já que um povo educado é um povo forte e de bons princípios morais. Em segundo lugar, a própria antigüidade do sistema excluía a ênfase na "desbarbarização" que marcou a primeira geração do ensino obrigatório na Inglaterra. Os observadores estrangeiros ficavam impressionados com o asseio e o decoro dos estudantes alemães, qualquer que fosse sua classe social originária; as escolas, por conseguinte, ficavam livres para concentrar seus esforços no ensino. Em terceiro lugar, a escolarização tendia a durar mais do que na Inglaterra; havia certa seleção de talentos, tal a maneira como as

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turmas elementares eram vinculadas as chamadas séries "intermediárias" e secundárias. O processo era apenas moderadamente eficaz; nas grandes áreas, sobretudo nos distritos rurais, era inoperante. Todavia, já nas décadas intermediárias do século XIX, os visitantes impressionavam-se com a universalidade do recrutamento das escolas secundárias (bem como das primárias): "Em geral, elas têm muito boa freqüência dos filhos de pequenos comerciantes", escreveu Joseph Kay em 1850, "e abrigam também muitas crianças oriundas das camadas mais pobres da sociedade." 163

É quase desnecessário dizer que a discussão acima é uma certa violação da complexidade do contraste entre os dois países. Podem-se encontrar alguns notáveis pontos luminosos na realização britânica - certas escolas primárias e secundárias, por exemplo, que ofereciam um ensino excelente tanto a estudantes pobres quanto a filhos de pais abastados -, assim como é possível encontrar entre os junkers a leste do Elba exemplos de uma tenebrosa hostilidade à educação, equiparável a qualquer coisa que houvesse na Inglaterra.164 Do mesmo modo, seria possível discutir interminavelmente os méritos das filosofias educacionais dos dois países, não só porque o tema é intrinsecamente passível de controvérsia, mas porque é quase impossível conciliar a massa contraditória de indícios subjetivos. Seria um sistema de ensino primário mais dado às "viradas finais" do que o outro? Um mais prático, o outro mais liberal? Um mais dedicado aos fatos, o outro, à capacidade de pensar? Não há resposta categórica possível.

A ligação entre a educação formal profissional, técnica e cientifica, de um lado, e o progresso industrial, de outro, é mais direta e evidente. Além disso, tornou-se mais estreita no decorrer do século XIX, por razões que podem ser deduzidas de nossa discussão anterior sobre a tecnologia. Em primeiro lugar, a maior complexidade e precisão dos equipamentos industriais e o controle de qualidade mais rigoroso, em conjunto com o custo crescente da ineficiência e a pressão da concorrência, conduziram a padrões mais elevados de conhecimento e proficiência técnicos, especialmente nos níveis superiores da hierarquia produtiva e entre os projetistas das instalações industriais. Em segundo, o alto custo do equipamento tornou o treinamento no exercício da função cada vez mais caro e ajudou a derrubar um sistema de mestres e aprendizes que estava moribundo fazia muito tempo. E, por fim, a mudança do conteúdo científico da tecnologia obrigou os empregados supervisores e até os operários a se familiarizarem com novos conceitos, realçando enormemente o valor do pessoal treinado para se manter a par das novidades científicas, reconhecer sua importância econômica e adaptá-las às necessidades da produção.

De nada serviria retratar em detalhe o conhecido claro-escuro do crescimento tardio e atrofiado da instrução técnica e cientifica na Inglaterra, em contraste com o vigoroso sistema alemão precocemente desenvolvido. Em resumo, enquanto a Inglaterra deixou a formação técnica e o ensino primário a cargo da iniciativa privada - o que levou, nesse caso, a uma provisão sumamente desigual e inadequada de oportunidades -, os Estados alemães financiaram generosamente toda uma gama de instituições, construindo prédios, instalando laboratórios e, acima de tudo, mantendo corpos docentes competentes e, no nível mais alto, destacados. Até meados do século, a Inglaterra não tinha nada além da jovem Universidade de Londres, de institutos de mecânica bons, ruins e indiferentes, de ocasionais palestras ou aulas noturnas e de cursos sobre os rudimentos da ciência em algumas escolas secundárias e primárias esclarecidas. Depois disso, o aperfeiçoamento chegou devagar, embora o ritmo se acelerasse mensuravelmente após cerca de 18 8 o. As primeiras melhorias vieram, mais ou menos em meados do século, na educação científica (o Real Colégio de Química, em 1845; a Escola Governamental de Minas, em 1851; o Colégio Owen, em Manchester, em 1851; e diplomas universitários em ciências na década de 1850); elas surgiram no nível mais alto e, durante muitos anos, foram parcialmente prejudicadas pela já mencionada incapacidade de as escolas primárias e secundárias encontrarem e prepararem os iniciantes. A formação técnica e profissionalizante teve de esperar mais uma geração e, até o período do entre-guerras, sofreu da mesma deficiência. Às vésperas da Primeira Guerra Mundial, o sistema britânico ainda tinha muito que caminhar para se equiparar ao alemão pelo menos do ponto de vista da produtividade econômica. (No sistema teutônico, havia aspectos sociais e psicológicos que provocavam hesitação nas pessoas de fora.) O longo coro de lamúrias de alguns doutos que afora isso eram sóbrios, escrevendo na imprensa, dirigindo-se ao público ou depondo perante uma notável sucessão de comissões parlamentares, a partir de 1867 , testemunha o alto custo desse atraso educacional.

Mais importantes que o atraso em si foram suas razões. Essencialmente, elas se resumiram na demanda, pois uma sociedade livre geralmente consegue o sistema educacional que deseja, e a demanda, mais uma vez, foi uma função, em parte, da prioridade industrial inglesa e da concorrência alemã.

Como vimos, até o ensino fundamental esbarrou em desconfiança e resistência na Inglaterra; a, fortiori, o ensino técnico. Havia os industriais que temiam que ele levasse à revelação de segredos do ramo ou lhes diminuísse o valor. Muitos achavam que a "aprendizagem livresca" era não ape-

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nas enganosa, como tinha a desvantagem de instilar em seus beneficiários ou vítimas - dependendo do ponto de vista - um sentimento exagerado de seu próprio mérito e inteligência. Nesse aspecto, a direção recebia a adesão dos capatazes e mestres-de-obras que, sendo produto do aprendizado no exercício da função, desprezavam ou temiam as aptidões e conhecimentos dos técnicos de formação escolar - ou pelo menos lhes tinham ressentimento. Outros empregadores, por sua vez, não podiam imaginar-se gastando dinheiro em nada que não gerasse um retorno imediato, principal-mente porque as noções transmitidas por essas aulas e institutos requeriam, quase invariavelmente, novos desembolsos de capital.

Alguns tinham medo de aumentar a concorrência.165 Mas a maioria sorria desdenhosamente da própria idéia: eles estavam convencidos de que a coisa toda era um engodo, de que a educação técnica eficaz era impossível, e a instrução científica, desnecessária. Sua própria carreira era a melhor prova disso: a maioria dos fabricantes havia começado com um mínimo de instrução formal e subido por seus próprios méritos, ou cursado o currículo liberal tradicional nas escolas secundárias e, vez por outra, em escolas superiores. Além disso, essa lição da experiência pessoal era confirmada pela história da indústria inglesa. Ali estava uma nação que havia erigido seu poderio econômico sobre experimentadores práticos - um barbeiro como Arkwright, um clérigo como Cartwright, um produtor de instrumentos como Watt, um "inventor amador" profissional como Bessemer, e milhares de mecânicos anônimos que haviam sugerido e executado o tipo de pequenos aperfeiçoamentos das máquinas, fornalhas e ferramentas que acabaram por levar a uma revolução industrial. A nação se orgulhava desses homens - basta escutarmos Lowthian Bell ao citar, em resposta às críticas às deficiências técnicas britânicas, os nomes de Darby e Cort.166

Em muitos ramos, desenvolveu-se uma mística da experiência prática. Consideremos as implicações da seguinte pergunta, formulada no Inquérito Parlamentar de 1885:

Os senhores sabem perfeitamente bem que há, em toda fiação, um homem capaz de fiar muito melhor do que qualquer outro, e quando se quer um fio mais fino, esse é o homem colocado no trabalho. Sem escolas técnicas, sempre se tem um homem desse tipo; os senhores acham que alguma escola técnica produziria uma quantidade desses homens nas fiações?167

E um fabricante do ramo de folhas-de-flandres, negando a importância dos engenheiros formados, observou que o que se fazia necessário eram

"homens práticos, que estivessem sintonizados com seus cilindros e tudo o mais. Eles poderiam fazer um bocado de coisas com sua maquinaria, se estivessem sintonizados com ela".168

Além disso, mesmo quando os empregadores chegavam realmente a reconhecer a necessidade de pessoal técnico formado, cediam de má vontade. Os "cientistas" sub-remunerados eram colocados em galpões, oficinas reaproveitadas e outros locais improvisados que mal permitiam condições controladas e testes precisos. Seu trabalho ficava um grau acima das técnicas empíricas do trabalhador habilidoso, grau muito abaixo do dos pesquisadores de laboratório alemães.169

Em suma, as oportunidades de emprego e promoção para os diplomados em ciência e tecnologia eram escassas e pouco atraentes. O campo mais compensador, apesar do que foi dito, era a química, e mesmo nela, os melhores cargos eram freqüentemente reservados aos homens formados no exterior; sem dúvida, a qualidade medíocre de muitos diplomados ingleses servia para reforçar o ceticismo da administração. Não havia praticamente nada para os físicos até a última década do século XIX. A pior situação era a das camadas inferiores, no nível do ensino profissionalizante, no qual os alunos, de vez em quando, sofriam por sua ambição: uma testemunha que depôs perante a Comissão de Ensino Científico de 1868 declarou que apenas um em cada quatro dos que freqüentavam as aulas profissionalizantes do Departamento de Ciências e Artes, na década de 1850, reingressava em seu ramo.170 Em 1884, a Real Comissão sobre o Ensino Técnico rela-tou:171 'Cremos que muitos trabalhadores inclinam-se a conferir pouco valor à importância de adquirir conhecimento sobre os princípios da ciência, pois não vêem sua aplicação." Não surpreende. Também não surpreende que os mais talentosos, dentre os poucos jovens que dispunham de meios para continuar sua formação além do nível intermediário, seguissem o currículo liberal tradicional que levava a carreiras no serviço público, à busca da vida rural aristocrática, ou ao tipo de posto na indústria ou no comércio - e havia muitos - que requeria um cavalheiro, e não um técnico.

É difícil exagerar o contraste com as atitudes alemãs. Para uma nação ambiciosa, impaciente por alçar sua economia ao nível da inglesa, e contrariada, senão humilhada, por sua dependência de especialistas estrangeiros, um sistema eficaz de formação científica e técnica era a base e a promessa de riqueza e de engrandecimento. Desenvolveu-se um verdadeiro culto da Wissenschaft e da Technik. Os reis e príncipes da Europa central rivalizavam entre si na fundação de escolas e institutos de pesquisa, e colecionavam sábios (até estudiosos humanistas, como os historiadores!) tal como seus

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predecessores do século XVIII haviam colecionado músicos e compositores, ou como as cortes da Itália do cinquecento haviam colecionado artistas e escultores. As pessoas passaram a ficar boquiabertas diante das Hochschulen e das universidades, com o assombro geralmente reservado aos monumentos históricos. E, o que é mais importante, os empresários valorizavam os formandos dessas instituições, oferecendo-lhes muitas vezes cargos respeitados, amiúde poderosos - não apenas as gigantescas sociedades anônimas, com suas equipes laboratoriais de até duzentas pessoas ou mais, como também as pequenas empresas, que viam nas qualificações especiais dos técnicos formados a melhor defesa contra a concorrência por parte da produção em larga escala.

Há uma aguda ironia em tudo isso. Assinalamos como um observador inglês de meados do século XIX ficou impressionado com a "democracia social" da sala de aula alemã; no entanto, era justamente isso que havia impressionado os viajantes continentais do século XVIII como uma das virtudes peculiares da sociedade britânica daquela época. Sem dúvida, a instrução superior, nesse período, restringia-se a uma pequeníssima parcela da população; mesmo os filhos das famílias abastadas recebiam, muitas vezes, pouca instrução formal, de modo que a igualdade que prevalecia era tanto ou mais de ignorância quanto de conhecimento. Mas esta é a questão: não fazia tanta diferença, no século XVIII, quanta instrução um homem havia recebido. O recrutamento do talento era feito em bases diferentes; amplas vias de mobilidade estavam ao alcance dos escolarizados e dos não escolarizados, e muitos foram os autodidatas ou os homens que aprenderam com a experiência os conhecimentos e habilidades necessários a seu trabalho.

Entretanto, com a industrialização e a proliferação da burocracia nos negócios e no governo, a educação formal assumiu uma importância sistematicamente crescente como a chave da promoção ocupacional, e portanto, social. Isso não quer dizer que o sistema ou o teor da instrução se adequassem perfeitamente aos requisitos da economia e da política, mas apenas que a escolarização passou a reger mais e mais o recrutamento das aptidões.

Essa é uma tarefa que o sistema escolar, em tese, está idealmente preparado para desempenhar. Ele é objetivo por sua própria essência, graduando e promovendo os estudantes com base na capacidade e no trabalho - salvo quando a competição é deliberadamente excluída da sala de aulas. Mas, na verdade, a eficiência seletiva do sistema depende diretamente de suas próprias circunstâncias e princípios de recrutamento, e estes, por sua vez, refletem os valores e as atitudes de seus criadores e sua clientela.

Mais uma vez, o momento e a intenção têm uma importância crucial.

Na Inglaterra, onde a transformação tecnológica chegou precocemente, uma nova sociedade industrial já se havia configurado na época em que as escolas foram construídas, de modo que estas incorporaram não só os preconceitos e divisões da ordem estabelecida, como também as desigualdades materiais. Para os membros das classes mais pobres, não apenas era pretensioso cobiçar uma educação mais do que mínima, como também era pecuniariamente impossível - não tanto por causa dos desembolsos diretos necessários (embora, muitas vezes, eles fossem um grave obstáculo), mas por causa da renda de que era preciso abrir mão. Foi o custo de oportunidade da instrução que fez dela uma prerrogativa quase exclusiva dos abas-tados. Em outras palavras, o sistema escolar, que poderia ter sido a grande força de mobilidade e avanço social através do talento, tornou-se um poderoso cristalizador, defendendo as posições de um establishment novamente entrincheirado, ao lhe dar um quase-monopólio do saber e das maneiras (incluindo o padrão lingüístico) que a sociedade valorizava.

Parte disso também se aplicava ao ensino alemão, mas em grau muito menor - e as diferenças, na história, são quase sempre questão de grau. Os alemães desenvolveram suas escolas antecipando-se à industrialização e como preparação para ela. O sistema visava a fortalecer a política e a economia, não só através da instrução, mas também descobrindo e treinando talentos. Embora ficasse nessariamente aquém de seus objetivos, os elementos da intenção e do direcionamento foram cruciais. Daí um dos mais estranhos paradoxos da história moderna: o de que, de um lado, uma sociedade liberal, que se havia destacado de todas as demais no século XVIII pela igualdade e pela mobilidade do status, tivesse perdido parte destas durante o próprio período de sua progressiva democratização política, enquanto, de outro lado, uma sociedade muito mais autoritária, caracterizada em seu período pré-industrial por uma hierarquia de classes claramente definida e bastante rígida, tivesse desenvolvido uma estrutura mais aberta, sem uma mudança política correspondente.172

Desnecessário dizer que esse contraste entre duas formas de organização social não pretende implicar um juízo moral hostil. A educação e a mobilidade não são fins virtuosos em si, mas meios para atingir fins. Suas consequencias, almejadas ou não, tanto podem ser más quanto boas. Seria fácil argumentar que a elite produzida pelo sistema britânico às vezes detestavelmente segura de seu lugar e suas prerrogativas, mas dotada de um agudo senso da moral tradicional e do noblesse oblige - deveria ser preferida, em todos os aspectos, aos espécimens duros, oportunistas e adeptos da filosofia de que os meios justificam os fins, promovidos pelo cursus

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honorum alemão. Mas tal comparação nos levaria muito além dos limites de nosso tema.

A relativa falta de qualificações e conhecimentos da Inglaterra (quem teria imaginado essa eventualidade na primeira metade do século XIX?) foi acompanhada e contribuiu para uma insuficiência igualmente surpreendente de capital de risco. É bem possível que essa afirmação se afigure ao leitor como sendo incoerente com nossa discussão anterior da pletora de riquezas da Inglaterra. Mas poupança não é necessariamente investimento, e além disso existe toda sorte de investimentos - estrangeiros e internos, especulativos e seguros, racionais e irracionais. Os ingleses tinham o capital. Mas aqueles que o canalizavam e distribuíam não estavam atentos às oportunidades oferecidas pela tecnologia moderna, e os que poderiam tê-lo usado não queriam ou não sabiam o bastante para ir em busca dele.

Primeiro, o lado da oferta: o sistema bancário britânico havia crescido mais ou menos como a indústria - passo a passo, de baixo para cima, junto com sua clientela. Sua maior virtude era sua extraordinária capacidade de transferir recursos dos que ofereciam para os que procuravam capital, através de instrumentos tradicionais como a letra de câmbio, o crédito ilimitado e o saque a descoberto. Sua maior fraqueza, que só se evidenciou depois de meados do século XIX, era sua incapacidade de introduzir ou incentivar o tipo de iniciativa industrial que exigisse grandes volumes de capital externo. Ele era mais passivo do que ativo, mais receptivo do que criativo.

Ademais, na medida em que o mercado de capitais realmente direcionou o fluxo dos recursos, o hábito e a predileção combinaram-se no sentido de dar preferência aos governos estrangeiros e às empresas de utilidade pública, estrangeiras e nacionais. Esse era o material de trabalho de Londres, e Londres controlava o grosso do capital líquido do país.173 A indústria ficava entregue aos mercados locais: Manchester tinha suas empresas de algodão; Birmingham, armas e equipamentos; Newcastle, carvão mineral e metalurgia. Nesses campos, a própria Londres não passava de um centro regional, negociando as ações dos estaleiros do Tâmisa, de uma empresa de construção mecânica em Ipswich, de cervejarias locais e das grandes lojas de departamentos e hotéis da capital. Como resultado, as sociedades anônimas inglesas eram, muitas vezes, apenas sociedades limitadas em escala maior - provincianas em termos de recursos, direção, controle e âmbito. Eram maiores do que suas predecessoras da primeira metade do século, mas não eram páreo para os Konzerne e as Interessengemeinschaften que proliferavam por todo o Mar do Norte.174

A estrutura nitidamente contrastante do crédito e finanças alemães, mais uma vez, só é compreensível em termos da economia da precedência e do atraso. Já observamos que, enquanto a indústria inglesa pôde construir seus recursos a partir da base, os alemães tiveram necessidade, desde o início, de criar instituições para mobilizar um capital escasso e canalizá-lo para um sistema produtivo que partisse de um nível avançado de técnica e organização. Tratou-se dos bancos de investimento por ações, e sua colaboração cada vez mais estreita com as indústrias manufatureiras viria a ter conseqüências fundamentais para o ritmo e o caráter do desenvolvimento alemão.

Por um lado, isso significou uma promoção e desenvolvimento planejados de cada firma. Os bancos tiveram que aprender a avaliar as possibilidades de lucro numa dada situação empresarial antes de se encarregarem da emissão de títulos. Para essa finalidade, não apenas consultavam técnicos externos, como também desenvolveram seus próprios especialistas, para examinar e dar orientação nos assuntos industriais. Havia alguns bancos, é claro, menos cuidadosos do que outros, ou menos escrupulosos. A Alemanha teve seu Gründerzeit, e sempre houve financistas que acham que a única questão importante em qualquer promoção são suas potencialidades especulativas. Mesmo assim, a maioria dos bancos não emitia e descarregava títulos; eles ficavam com suas criações, conservavam parte de suas ações, ficavam de olho em seu desempenho e estimulavam seu crescimento como clientes lucrativos.

Por outro lado, o financiamento bancário implicava uma expansão contínua do setor industrial como um todo. Se a lucratividade de qualquer transação promocional dependia de uma avaliação criteriosa dos elementos implicados e da influência sobre os acontecimentos posteriores, o retorno total desse ramo importantíssimo das operações bancárias dependia de encontrar ou inventar promoções. Assim, os especialistas em finanças industriais interessavam-se tanto pela descoberta de possibilidades de crescimento ou reorganização quanto por ajudar a efetivá-las. Isso ocorreu especialmente a partir de 1880, depois que o declínio na construção e nacionalização de ferrovias privou o mercado de seu produto mais popular. Nos anos seguintes, os bancos desempenharam um papel importante na estimulação e apoio ao crescimento da indústria pesada alemã e em sua integração em moldes verticais e horizontais. Ao longo de todo o processo, sua influência foi no sentido de uma utilização mais plena dos recursos e de uma combinação mais eficaz dos fatores de produção.175

Mas é fácil exagerar a importância dessas diferenças na estrutura e no comportamento dos mercados de capital dos dois países. Os estudiosos da

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história econômica inglesa, em particular, têm oferecido, ocasionalmente, uma resposta mais simples: eles presumem uma clara relação inversa entre o investimento interno e externo quando um aumentava, o outro minguava.176 Um exame mais criterioso dos dados forçou ao abandono desse modelo simplista, em favor de uma análise mais exata, porém menos confortável.177 Mesmo assim, muitos estudiosos continuaram a presumir que, grosso modo, a escala dos investimentos ingleses no exterior era tamanha que privava de recursos a indústria doméstica.

Não estou convencido dessa tese. Ela repousa, primeiramente, num erro de apreensão. Sem chegar a ir tão longe quanto o professor Rostow, que encarou o período de 1873-98 como sendo de um deslocamento geral dos investimentos externos para "um investimento interno intensivo", pode-se notar que houve épocas, durante esses anos, em que a Inglaterra empatou grandes somas na indústria doméstica. Em 18 8 5, Goschen foi bastante arrebatado pelo tema:

Nunca houve um desejo tão intenso, por parte de toda a comunidade, de investir de modo remunerativo cada xelim de reserva que ela possa ter. Há uma competição entre os homens que dispõem de algumas dezenas de libras e de algumas centenas de libras para colocá-las nas empresas, e nas empresas elas são colocadas. As sociedades anônimas arrebanharam todos esses recursos disponíveis. Como gigantescos sistemas de irrigação, primeiro elas os coletam e depois os despejam, através de inúmeros condutos, diretamente sobre a face da nação, tornando o capital acessível sob todas as formas e em todos os locais.178

No entanto, do ponto de vista macroeconômico, os resultados foram uma decepção. Obviamente, não é o dinheiro que importa, mas o que se faz com ele.179

Em segundo lugar, há bons motivos para crer que o capital flui em direção à oportunidade; havendo tornadores que saibam o que fazer com ele e que o procurem, haverá fornecedores de empréstimos para atender a suas necessidades. Reconhecidamente, essa generalização é uma ofensa à verdade de muitos casos individuais e até, talvez, à experiência de algumas nações. E, como vimos, ela menospreza a contribuição que um sistema bancário imaginativo e ativo pode dar ao desenvolvimento industrial. Contudo, no cômputo geral, ela parece válida em relação aos principais setores, qua setores, das economias industrializadas avançadas.180

Essa consideração, além disso, é aqui reforçada pelo fato de que, excetuados os empecilhos não econômicos - falta de segurança, controles

cambiais confiscatórios e similares -, a empresa doméstica tem prioridade na captação dos recursos de uma economia. Ela tem todas as vantagens daquilo que é conhecido, enquanto os empreendimentos estrangeiros são difíceis de avaliar, relativamente imunes à verificação e ao controle, além de intrinsecamente mais especulativos. Na verdade, as diferenças entre os dois são suficientes para gerar uma defasagem substancial nas expectativas de retorno necessárias para atrair investimentos em cada um desses dois setores - uma defasagem análoga ao custo de deslocar a mão-de-obra de uma tarefa para outra. Em suma, se a Inglaterra mandou tanto dinheiro para o exterior, isso se deveu, em parte, à falta de iniciativa dos fornecedores de empréstimos, porém mais ainda ao fato de que os tomadores internos não os quiseram.

Isso nos traz para o lado da demanda, também presente nessa equação. Considerando-se a igualdade aproximada das duas economias em termos de recursos materiais, esta foi essencialmente uma função do espírito empresarial, ou seja, dos elementos humanos -imaginação, energia, aspiração - que moldaram as decisões de investimento nos dois sistemas. Aqui, mais uma vez, o contraste é tão nítido que transcende as limitações intrínsecas dos indícios qualitativos. O produtor inglês, vigoroso em sua admiração pela experiência e em sua preferência pela experimentação empírica, em contraste com os experimentos livrescos, inclinava-se a desconfiar das novidades. Riley, ao descrever seus esforços enfim exitosos de expor ao Instituto do Ferro e do Aço a aplicação do gusa a quente nas usinas escocesas de fornos Siemens-Martin, em 1900, declarou que

a falta de confiança no sucesso e a resistência passiva comumente encontrada nesses casos eram, talvez, mais desanimadoras do que quaisquer possíveis dificuldades que viessem a surgir no trabalho efetivo, ou na elaboração de métodos práticos.

O conservadorismo do ramo de folhas-de-flandres era famoso: "Falando em termos gerais", disse um produtor nos anos que antecederam a guerra, "quando uma coisa nova é introduzida em qualquer trabalho, não sendo um sucesso imediato, ela é eliminada." A resposta para uma coisa nova era indagar "se algum outro idiota já a experimentou".181 Seria possível citar exemplos semelhantes, vindos de outros ramos da indústria.

Enquanto isso, o sistema alemão havia institucionalizado a inovação: a mudança estava incorporada nele. Não havia garantia de grandes descobertas - vale notar, por exemplo, que os grandes avanços na metalurgia na

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segunda metade do século foram ingleses (Bessemer, Siemens, ThomasGilchrist), franceses (Martin, Carves) ou belgas (Coppée). Mas havia uma certa garantia de que as invenções de qualquer origem seriam testadas e exploradas; e existia, dentro da própria indústria, um fluxo contínuo de pequenos aprimoramentos que constituíram, cumulativamente, uma revolução tecnológica.182 As seis maiores firmas alemãs de produtos de alcatrão de hulha tiraram 948 patentes entre 1886 e 1900, comparadas a 86 das firmas inglesas correspondentes.183 E, como disse Schumpeter em sua descrição da indústria elétrica alemã, a variedade e a freqüência da inovação, sob o impulso dos departamentos técnicos dos grandes conglomerados, deu origem a uma corrida que, "embora nunca exiba as propriedades formais da competição perfeita, produz todos os resultados usualmente atribuídos à competição perfeita".184

Além disso - e.mais uma vez esbarramos na complexidade e inextricabilidade dos fatores múltiplos na explicação histórica , esses contrastes na receptividade à inovação eram fortalecidos por diferenças na racionalidade empresarial. O industrial inglês continuava fiel ao cálculo clássico: tentava maximizar o retorno, fazendo os investimentos que, considerados os custos previstos, os riscos e as vendas, gerassem a-maior margem sobre o que o equipamento existente podia fornecer. Ele era prejudicado, como vimos, pelo ônus dos custos correlatos, que amiúde tornavam não lucrativos alguns desembolsos que de outro modo seriam interessantes. Muitas vezes, cometia o erro de atar o investimento às operações e retornos correntes, e não às expectativas do que seria razoável que o futuro trouxesse. Ou sua presunção tácita era que o amanhã seria idêntico ao hoje, ou, como sugere Kindleberger,185 ele tentava inconscientemente minimizar a necessidade de tomar decisões - como sempre, o dever mais exigente e desagradável do empresário. Por fim, às vezes ele era tão insensato que negligenciava um dos preceitos cardinais da economia - o de que os custos empatados já estão empatados - e se agarrava a equipamentos antiquados porque eles funcionavam. Os teóricos relutam em admitir que as pessoas freqüentemente se portam dessa maneira, porque a irracionalidade não se presta à análise lógica; mas elas o fazem. O peso do avanço e do crescimento anteriores oprimia muitos produtores ingleses. Como disse Lowthian Bell, numa comparação entre as práticas britânica e norte-americana, "o siderurgista inglês achava-se numa situação um pouco diferente, na medida em que, se gastasse £25.000 para fazer [uma] economia, teria que sacrificar as £25.000 que já havia desembolsado".186 E um outro comentou: "Tem-se que estar inteiramente convencido da superioridade de um novo método

para condenar como inútil uma grande fábrica que até então prestou bons serviços."187 Esta declaração, é claro, talvez não fosse nada além de uma afirmação da necessidade de exatidão ao se comparar a lucratividade da maquinaria antiga e nova - embora seja perturbadora a referência aos lucros passados, em vez dos futuros. Mesmo quando o empresário inglês era racional, entretanto, seus cálculos eram distorcidos pela brevidade de seu horizonte temporal, e suas estimativas pendiam para o lado conservador.

Pode-se apreciar melhor a importância dessa abordagem pecuniária ao contrastá-la com a racionalidade tecnológica dos alemães. Esse era um tipo diferente de aritmética, que maximizava, não os lucros, mas a eficiência técnica. Para o engenheiro alemão e para o industrial e o banqueiro que estavam por trás dele, o novo era desejável, não tanto por ser compensador, mas por funcionar melhor. Havia maneiras certas e erradas de fazer as coisas, e a maneira certa era a científica, mecanizada e com alto coeficiente de capital. O meio tinha-se transformado num fim. O economista, certamente, examinando a situação ex post, simplesmente faz uma distinção entre dois cálculos pecuniários: o empresário alemão tinha meramente um horizonte temporal mais longo e incluía em suas estimativas algumas variáveis exógenas da transformação tecnológica que seu concorrente inglês mantinha constantes. Mas isso perde de vista a diferença crucial da motivação ex ante que levava o alemão a se portar como se portava.

Dada essa motivação não racional, não havia, é claro, nenhuma razão a priori pela qual o padrão alemão devesse ser mais compensador. É óbvio que pode existir algo como uma supermodernização - uma substituição excessiva do trabalho pelo capital -, assim como pode haver uma ênfase exagerada em um ou dois ramos da atividade econômica, em detrimento dos demais. Nesse aspecto, entretanto, a Alemanha teve sorte, no sentido de que a longa onda de transformação tecnológica favoreceu os métodos e indústrias com alto coeficiente de ciência e capital, enquanto a natureza de seus recursos humanos e materiais foi de tal ordem que lhe facultou tirar proveito das oportunidades oferecidas. Em suma, ela escolheu o caminho certo, embora, em parte, pelas razões erradas ou, mais exatamente, irrelevantes.

Cabem aqui algumas palavras de advertência. Fundamentei boa parte desta discussão da concorrência econômica anglo-germânica no que os sociólogos denominam de análise de tipos ideais - no caso, dois tipos contrastantes de empresários. Essa, inevitavelmente, é uma técnica perigosa de comparação histórica, pois se baseia, numa determinação da média do incomensurável, e, portanto, do que não é passível de um cálculo da média, desrespeitando a complexidade e a variabilidade do comportamento huma-

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no. Os economistas seriam os primeiros a assinalar que não importa, a longo prazo, quão atrasadas são as técnicas ou quão ineficiente é o desempenho da grande maioria dos empresários, desde que alguns sejam suficientemente dinâmicos para introduzir a mudança e forçar os outros a segui-los. E isso é realmente verdade - a longo prazo. A observação de Keynes tem sido repetida com tanta freqüência que perdeu grande parte de sua agudeza; mas sua correção persiste: a longo prazo, todos estaremos mortos. A longo prazo, sob a pressão da concorrência norte-americana e alemã, a indústria britânica realmente modificou muitos de seus hábitos. Mas, nesse meio-tempo, perdeu terreno; houve a intervenção de uma guerra, e depois, outra; novos rivais econômicos apareceram; e muito talento e capital fluíram por outros canais. O mundo não espera sentado por ninguém, e a fraqueza a curto prazo contribui, sob formas que ainda não somos capazes de definir e mensurar, para a defasagem a longo prazo.

Uma última observação. Mesmo admitindo a importância desse fator humano - o sucesso da criatividade empresarial e tecnológica, de um lado, e o fracasso, de outro -, talvez ele não tenha sido, em si, mais do que um reflexo de determinantes econômicos. Há, por exemplo, o que podemos chamar "abordagem da retroalimentação", que encara o crescimento de uma economia ou até de uma indústria, em qualquer período, como uma função de seu crescimento no período anterior: a própria taxa de expansão provoca as respostas materiais e humanas necessárias para sustentáIa. Uma afirmação sucinta dessa postura é encontrada em Svennilson:'88

Pode-se presumir que a nova capacidade acrescentada a uma indústria em expansão será construída de acordo com os mais avançados conhecimentos técnicos, enquanto o restante da indústria, representando a capacidade anterior, ficará para trás em termos de modernização. Assim, a proporção de equipamentos modernos numa indústria aumenta proporcionalmente à rapidez do seu crescimento. Isso leva à conclusão de que, ceteris paribus, a eficiência de uma indústria aumenta de acordo com a rapidez de sua expansão.

Essa linha de explicação foi aplicada à rivalidade anglo-germânica pelo professor Habakkuk, em seu estudo sobre a Tecnologia norte-americana e inglesa.189 Para começar, ele tende a depreciar a defasagem entre o desempenho britânico e o alemão: enfatiza, por exemplo, os sucessos do aço Siemens-Martin e da construção naval, um relacionado com o outro. E, embora admita o atraso dos outros ramos, antigos e novos, deposita grande ênfase nos custos correlatos da transformação, no ônus das fábricas instala-

das e do capital investido (por exemplo, o obstáculo criado para a eletrificação por uma rede de gás largamente difundida) e, acima de tudo, na taxa de expansão lenta. Esta última, em sua opinião, explica não apenas a falta de oportunidade para construir fábricas atualizadas, mas também as deficiências empresariais que de fato possam ter existido (também nesse aspecto, Habakkuk considera exagerada a acusação habitual): "Não se fazem grandes generais em tempo de paz; não se fazem grandes empresários em indústrias que não se estejam expandindo." Até a fraqueza da formação científica e do desempenho técnico britânicos (mais uma vez, Habakkuk alega que ela foi exagerada) pode ser explicada, em grande parte, em termos análogos:

A indústria inglesa não conseguiu atrair ou conservar a capacidade cientifica existente, e faltou-lhe o desejo de formar seus próprios cientistas, pois suas perspectivas se deterioraram, por motivos independentes da oferta de qualificações científicas (...). As defasagens havidas na adoção de novos métodos na indústria da Grã-Bretanha podem ser satisfatoriamente explicadas pela situação econômica, pela complexidade de sua estrutura industrial e pelo lento crescimento de sua produção, bem como, em última instância, por seu começo precoce e longamente sustentado na condição de potência industrial.190

Discordo. Não é que o argumento esteja errado; ele é simplesmente incompleto e não faz justiça ao comportamento de nenhum dos dois ad-versários.191 Com respeito à Inglaterra, há indícios de que até os novos investimentos das indústrias mais antigas caracterizaram-se por uma cautela excessiva e por horizontes estreitos; e também é necessário explicar o de-sempenho geralmente fraco dos novos ramos da indústria baseados na ciência. Além disso, seria errôneo descartar, como incorreta ou irrelevante, uma grande massa de indícios contemporâneos que não apenas confirmam as deficiências empresariais e tecnológicas, mas também as atribuem a valores e forças sociais independentes do sistema econômico.

A explicação é igualmente incompleta no que tange ao lado alemão da rivalidade. Também nesse caso, há muito de verdade na análise: as realizações econômicas da Zollverein e, depois, do Reich, juntamente com os triunfos militares da Prússia, promoveram um clima de confiança eufórica, reforçando os estímulos materiais ao investimento e ao crescimento. Mas isso não é tudo que se tem que explicar. Existe, em particular, a questão de por que o padrão de investimento alemão desviou-se daquilo que os custos fatoriais relativos levariam a esperar. Até o último quartel do século XIX, isso não acontecia: as novas fábricas alemãs eram menos intensivas em ca-

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pital do que as britânicas; o equipamento era menor e, muitas vezes, menos avançado - e isso, a despeito de uma taxa de crescimento muito mais alta do que na Inglaterra, certamente a partir de 1850 e talvez desde 1834. Há também a prova objetiva da fecundidade tecnológica decorrente de uma formação científica boa e difundida; em parte alguma isso se evidencia mais do que na indústria de produtos químicos orgânicos, onde as oportunidades de pesquisa independem, em grande parte, do caráter ou do volume da produção corrente. Por fim, há ainda uma profusão de testemunhos con-temporâneos coincidentes sobre a influência das atitudes empresariais e dos padrões técnicos no desempenho empresarial, os quais seria desaconselhável descartar, a não ser com base em argumentos muito sólidos.

Em outras palavras, a abordagem da retroalimentação fornece uma explicação para uma vertente do comportamento econômico, a do estímulo à atividade econômica que provém pelo lado da demanda. Mas ela desconsidera o lado da oferta e, com isso, trunca a realidade histórica. Nada tem tanto êxito quanto o sucesso... mas, por que alguns têm sucesso e outros fracassam? Por que alguns corredores da linha de frente arrefecem, enquanto os retardatários recuperam a velocidade?

Tais perguntas nos levam ao problema mais difícil da história econômica: o de explicar por que ocorre a mudança - e não apenas como e qual. Este não é o lugar para empreender uma discussão sobre a causação do desenvolvimento e do crescimento, tema que já provocou uma biblioteca de debates, muitos deles explicitamente interessados na questão levantada pela rivalidade anglo-germânica, ou seja, a importância relativa dos determinantes humanos e não humanos. Mas há uma breve observação wissenchaftsoziologische [científico-sociológica] que vale a pena fazer: no frigir dos ovos, nem a evidência empírica nem o raciocínio teórico têm probabilidade de resolver a questão. Sempre restarão agudas diferenças de opinião. Por um lado, a matéria da história é tão complexa e tão avessa à análise laboratorial replicadora, que a imputação exata de pesos a cada um dos muitos determinantes do desenvolvimento econômico - mesmo nas situações limitadas, a fortiori nas gerais - é impossível, e tende e permanecer assim. Por outro, essa própria complexidade e imprecisão impedem a comprovação de que qualquer explicação dos acontecimentos, por mais plausível que seja, constitui a única explicação possível. E, uma vez que os estudiosos são humanos, com muitas, senão todas as predileções e tendenciosidades dos outros seres humanos, eles tendem a escolher, e sem dúvida continuarão escolhendo, as interpretações que consideram não apenas plausíveis, mas convenientes.

Esse elemento da conveniência não deve ser subestimado. O desenvol-vimento econômico é um grande drama. É a puberdade das nações, a transição que separa adultos e crianças. Por conseguinte, ele traz em si, num mundo que admira o poder e cobiça a prosperidade material, conotações de sucesso e virilidade. Ora, algumas sociedades efetuaram essa passagem mais cedo que outras e, conseqüentemente, adquiriram maior riqueza; algumas, apesar de um começo tardio, crescem mais depressa do que parte de seus predecessores e prometem (ou ameaçam, dependendo do ponto de vista) ultrapassá-los; outras ainda não puderam enveredar pelo caminho do desenvolvimento. Em virtude das profundas implicações desse drama para o status dos participantes, as explicações dadas pelo sucesso ou fracasso são, elas mesmas, cruciais para a auto-estima dessas sociedades e seus membros. Nessas circunstâncias, a identificação do estudioso com o problema por ele estudado é, muitas vezes, um determinante tão importante de sua abordagem quanto os dados objetivos.

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NOTAS

CAPÍTULO 5

1. F. Simiand, Le Salaire, l'évolution sociale et Ia monnaie, 3 v., Paris, 1932. 2. Seu artigo clássico, "Die langen Wellen der Konjunktur", saiu no Archiv,fúr

Sozialwissenschaft and Sozialpolitik, LVI, 1926, p. 573-609. Foi traduzido, sob forma abreviada, como "The Long Waves in Economic Life", Rev. Economics and Statistics, XVII, 1935, p . 105-15; a versão inglesa foi reproduzida em Readings in Business Cycle Theory, Filadélfia, 1944, p. 2o-42.

3. A trajetória dos preços variou um pouco de um país para outro, pois cada qual sentiu o impacto da explosão de crescimento e da derrocada de maneira diferente, conforme as circunstâncias políticas e econômicas. Em todas as principais economias da Europa ocidental, entretanto - Grã-Bretanha, Alemanha, França e Bélgica - , a depressão de 1873-96 foi uma extensão do caminho traçado em 1820 -so. Ver o Gráfico nº 1 in Gaston Imbert, Des mouvements de longue durée Kondratieff, Aix-en-Provence, 1959, ed. bolso.

4. Cf. o debate entre E.H. Phelps-Brown e S.J. Handfield-Jones, "The Climacteric of the 189o's: a Study in the Expanding Economy", Oxford Econ. Papers, IV, 1952, p. 266- 307; e D.J. Coppock, "The Climacteric of the 189o's: a Critical Note", The Manchester School, XXIV, 1956, p . 1-31 .

Quanto ao problema geral da chamada Grande Depressão, ver o valioso artigo de A.E. Musson, "The Great Depression in Britain, 1873-1896: a Reappraisal", J. Econ. Hist., XIX, 1959 p. 199-228. Ver também Coppock, "The Causes of the Great Depression, 1873 -96", The Manchester School, XXIX, 1961, com uma crítica de J. Saville e uma resposta, ib id. , XXXI, 1963; e H. Rosenberg, "Political and Social Consequences of the Depression of 1873-1896 in Central Europe", Econ. Hist. Rev., XIII, 1943, p. 58-73.

5. Essa afirmação desconsidera algumas questões referentes ás vantagens e des-vantagens do começo precoce, que mais vale deixar em suspenso por enquanto. Para uma apreciação estatística do crescimento industrial, ver S.J. Patel, "Rates of Industrial Growth in the Last Century, 186o-1958" , Economic De-

velopment and Cultural Change, IX, 1961, p. 316-30; e R.W. Goldsmith, "The Economic Growth of Tsarist Russia, 1860-1913", ibid., p. 441-75.

6. Uma bibliografia abrangente tomaria demasiado espaço. 0 leitor interessado poderá consultar R.M. Hartwell, "Interpretations of the Industrial Revolution in England: a Methodological Inquiry", J. Econ. Hist., XIX, 1959 p. 2 2 9-49.

7.Ellison, Cotton Trade, p. 59. Quanto desse aumento da demanda deveu-se ao efeito de substituição (isto é, à compra preferencial de algodão em relação a outros produtos, em virtude de sua queda relativamente maior de preço), e quanto se deveu ao aumento da renda real decorrente dessa queda nos preços, já é uma outra história, diretamente relacionada com a controvérsia que cerca o padrão de vida nesses anos. Mas isso não tem uma relevância imediata para nosso interesse pela evolução do mercado de produtos manufaturados, exceto na medida em que o aumento do consumo de algodão foi compensado por uma queda no de outros produtos têxteis. Isso não parece ter acontecido na Inglaterra, nem mesmo no caso do linho, que era o concorrente mais direto do algodão. Cf. Deane e Cole, British Economic Growth, p. 204.

8. H.S. Ferns, Britain and Argentina in the Nineteenth Century, Oxford, 1960, capítulo I.

9. Ellison, Cotton Trade, p. 59 e 63; S.B. Saul, Studies in British Overseas Trade, 1870-1914, Liverpool, 1960, p. 14.

10. W. Schlote, British Overseas Tradefrom 1700 to the 1930's, Oxford, Blackwell, 1952, p . 75-7 e 154-5. 0 índice de exportações inclui produtos acabados, metais, hulha e alimentos industrializados. A fonte do índice de produção não é indicada, mas Schlote aparentemente usou o índice posteriormente publicado por W. Hoffmann em seu Wachstum und Wachstumsformen der englischen Industriewirtschaft von 1700 bis zur Gegenwart, Kiel, Institut für Weltwirtschaft, "Probleme der Weltwirtschaft", v. 63, Kiel, 1939 - ver a referência de Schlote na p. 5o. As proporções de Schlote são úteis apenas como indicadores de tendências.

11. Ver J. Gallagher c R. Robinson, "The Imperialism of Free Trade", Econ. Hist. Rev., 2' série, VI, 1953, p. 1-15; John S. Galbraith, "Myths of the 'Little England' Era", Amer. Hist. Rev., LXVII, 1961, p. 34-48.

12. A partir do fim da década de 188o, as exportações britânicas de tecidos de algodão para a Índia se equilibraram, enquanto as vendas de fio caíram. Nesse meio-tempo, a proporção da produção indiana de fios que era exportada elevou-se de 15% na década de 1870 para mais de 75% em 1913. Saul, Studies in British Overseas Trade, p. 189. 0 primeiro cotonifício mecanizado da índia foi fundado na região de Bombaim em 1851. Uma década depois, ela contava com 338.ooo fusos, que se transformaram em quase 5 milhões na virada do século; em 1913, esse número havia subido para 6.917.000. Nesse ano, seu consumo de 2.177.000 fardos de algodão cru colocou-a em quarto lugar no mundo, depois do Reino Unido, Estados Unidos e Rússia. A. Rai, Die indische Baumwoll-Industrie, Deli, s/d, p. 46-7; Comissão de Indústria e Comércio, Survey of Textile Industries, p. 154- (G.E. Hubard, Eastern Industrialization and and

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Its Effect on the West, Oxford, 1938, p. 246, indica os fusos em funcionamento em 1913-4 como sendo 5.848.000.)

13. Comissão de Indústria e Comércio, Survey of Textile Industries, p. 156; J.E. Or~ chard,Japan's Economic Position, Nova York, 1930, p. 93-4. 0 crescimento da indústria japonesa de algodão pode ser aquilatado pelos seguintes dados:

Número de fusos (milhares)

Produção de fios

(milhares de libras,)

Exportação de fios

(milhões de libras)

Exportação de tecidos (milhares

de jardas quadradas) 1880 13 - - -

1890 358 42 - -

1900 1.361 268 83 572

1913 2.287 672 187 4.302 Fontes: Dados sobre os fusos extraídos de Manji lijima, Nihon Bosekishi [História da indústria

japonesa de fiação], Tóquio, 1949, p. 489-91; dados sobre a produção de fios extraídos de Japão, Naikaku Tokeikyoku [Gabinete de Estatística], Nihon Teikoku tokei nenkan [Anuário Estatístico Imperial Japonês], v. XII, XXIV-XXV e XL; dados sobre as exportações de fios e tecidos extraídos de Nihon sen'i Kyogikai [Conselho da indústria têxtil do Japão], Nihon sen'i sangyoshi [História da indústria têxtil japonesa], 2 v., Tóquio, 190, p. 944-5.

14. Os salários reais elevaram-se substancialmente, mesmo descontando o de-semprego cíclico. Até um autor tão anticapitalista quanto]. Kuczynski mostra aumentos da ordem de 2/3, na Inglaterra, entre 185o e 1900, e de 1/3, na Alemanha, entre 1870 e 1900. Die Geschichte der Lage der Arbeiter in England von 1640 bis m die Gegenwart, v. IV, 3, parte: Seit 1832, Berlim, 1955, p. 13 23; Die Geschichte der Lage der Arbeiter in Deutschland, v. 1, 2, parte: 1871 bis 1932, Berlim, 1954 p . 96-7.

Se houve alguma elevação da participação relativa dos trabalhadores na renda nacional é outra questão. As estatísticas de que dispomos apontam para um aumento significativo da fração da renda destinada ao conjunto dos empregados assalariados e a soldo na França e na Alemanha; na Inglaterra, no período considerado, a mudança foi desprezível. Mas não há como separar as camadas de salários superiores e inferiores. Ver S. Kuznets, "Quantitative Aspects of the Economic Growth of Nations, IV. Distribution of National Income by Factor Shares", Economic Development and Cultural Change, VII, n 3, parte 11, abril de 1959, e as fontes ali citadas.

Quanto à distribuição da renda, nossos dados são incompletos, sumamente aproximativos e difíceis de comparar; o quadro é obscuro. Cf. Colin Clark, The Conditions f Economic Progress, 2a ed., Londres, 1951, p. 530-41; ver também a discussão em W. Ashworth, An Economic History of England, 1870-1939, Londres, i 960, p. 247s.

15. Cf. A.G. Manry, "En Limagne, entre 1865 et 1905", Annales: Economies, Sociétés, Civilisations, V, 1950, p.114--9 .

16. Um dos melhores indicadores indiretos dessa transformação comercial foi o aumento espetacular da produção de vidro laminado, largamente utilizado nas vitrines de lojas e nos espelhos. De 1870 a 1901, as importações inglesas de laminados saltaram de cerca de 36.000 para 464.000 quintais métricos, enquanto a produção do maior fabricante da Inglaterra, que ingressou nesse ramo em 1876, subiu de 1.078.000 pés quadrados em 1877 para mais de 5 milhões em 1903-4 e mais de 14 milhões em 1912-13. Barker, Pilkington Brothers, p. 161 e 189. Os números da empresa Pilkington referem-se apenas à fábrica de Cowley Hill.

Quanto à importância das novas técnicas de comércio varejista, ver J.B. Jefferys, Retail Trading in Britain, 1850-1950, Cambridge,1954; P. Bonnet, La

commercialisation de Ia viefrançaise du Premier Empire á nos jours, Paris, 1929; G. d'Avenel, Le mécanisme de Ia vie moderne, 1 a série, 7a ed., Paris, 1922, p. 1-79.

17. Sobre os cartéis do vidro, ver Barker, Pilkington Brothers, capítulos VIII, IX e XIII.

18 Wealth of Nations, livro I, capítulo X. 19. Cf. R.J. Forbes, "The History of Science and Technology", in XIe Congrès

International des Sciences Historiques, Rapports, I, p. 72. 20. Guy Thuillier, Georges Dufaud et les débuts du grand capitalisme dans

Ia métallurgie, en Nivernais, au XIX` siecle, Paris, 1959, p. 230 21 . Na categoria do aço, existem aços doces e duros, também distinguidos entre

si pelo teor de carbono. Os primeiros (com menos de o,25 % de carbono) assemelham-se muito ao ferro forjado: não aceitam têmpera, mas são muito resistentes e dúcteis, sendo especialmente adequados para usos estruturais, trilhos e trabalhos de forja como a rebitagem. Os últimos são os aços com alto teor de carbono, usados em ferramentas de corte e outras, peças móveis de máquinas e peças estruturais de força incomum.

22. [W.F. Jackson], JamesJackson et sesfi ls, Paris, edição particular, 1893, p. 17, fornece uma cifra menor: £120 por tonelada em 1818.

23. Sidney Pollard, History of Labour in Shfeld, p. 160. 24. Ver o relatório de M. Goldenberg in Michel Chevalier (org.), Exposition

Universelle de 1867 à Paris, Rapports du jury international, 14 v., Paris, 1868, V,p. 393s.

25. França, Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, Diretoria de Minas, Statistique de 1'industrie minérale; Résumé des travaux statistiques de 1'Administration des Mines en 1853, 1854, 1855, 1856. 1857, 1858 et 1859, Paris, 1861, p. 484-99; G. Viebahn, Statistik des zollvereinten Deutschlands, p. 43ss.

26. Convém dar o devido crédito à invenção anterior (c. 1851) dessa técnica (com pequenas diferenças) por William Kelly, nos Estados Unidos. Kelly manteve suas operações em segredo até 1856, quando sua solicitação de registro da patente esbarrou numa concessão anterior feita a Bessemer. Ele finalmente conseguiu fazer com que sua prioridade fosse reconhecida em 1857 - tarde demais, porém, para se salvar da falência. De qualquer modo, é duvidoso que seu processo se adequasse à produção em massa. Ver W. Paul Strassmann, Risk and Technological Innovation: American Manufacturing Methods during the Nineteenth Century, Ithaca, NY, 1959, p. 30. Tampouco se deve desconsiderar a contribuição vital de Robert F. Mushet, que corrigiu a tendência do conversor a produzir um ferro "queimado" (superoxidado), acrescentando Spiegeleisen, ou seja, um ferro que continha manganês, ao metal fundido. Esse processo revelou-se especialmente valioso no refino do gusa

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inglês. Por um lamentável conjunto de circunstâncias, a patente de Mushet expirou antes que ele pudesse colher os frutos de sua criatividade. Cf. R.F. Mushet, The Bessemer-Mushet Process, or Manufacture of Cheap Steel, Cheltenham, 1883.

27. Além disso, não havia nenhum limite intrínseco para o tamanho do conversor. Na pudlagem, a capacidade do forno não podia ultrapassar a quantidade de ferro fundido que um homem forte fosse capaz de agitar manualmente. A carga usual era de cerca de 2ookg. No processo de Bessemer, em contraste, o único limite era a capacidade das máquinas de inclinar o recipiente e verter seu conteúdo. Os primeiros conversores tinham 2 a 5 toneladas; no fim do século, eram comuns os recipientes de 2o-25 toneladas.

28. H.R. Schubert, "The Steel Industry", in Singer et al. (orgs.), History of Tech-nology, V, p. 58.

29. A partir da década de 1890, o Ruhr passou a depender cada vez mais do mi-nério sueco, que tinha um teor médio de ferro de aproximadamente 6o%. Excessivamente fosfórico para o aço ácido, teria desempenhado um papel muito menor, caso a tecnologia houvesse permanecido idêntica à da década de 1870.

30. Esse caráter duplo da inovação freqüentemente passa despercebido. Ver a discussão em Schubert, "The Steel Industry", p. 6o; similarmente, J. Jewkes, 1). Sawers e R. Sillerman, The Sources of Invention, Londres, 1960, p. 5 1 .

31. Na falta de estatísticas que separem a produção em conversores da produção pelo processo Siemens-Martin na França, 1872 parece ter sido o ano em que a produção bessemerizada na Europa ocidental e central superou a marca das 6oo.ooo toneladas. Cf. Beck, Geschichte des Eisens, V, p. 967, 1.057, 1 .110, 1.134 e 1.177.

32. Essa é a proporção francesa, mas a tendência foi basicamente paralela nos outros países produtores. Jean Fourastié (org.), Documents pour l'histoire et Ia théorie des prix, Centre d'Études Economiques, "Etudes et Mémoires: Recherchcs sur 1'évolution des prix en période de progrés technique", Paris, s/d (1959), p. 122-3.

33. Encyclopaedia Britannica, i 1' ed., "Ship". Esses números diferem um pouco dos da Associação Britânica de Comércio de Ferro. Ver W.A. Sinclair, "The Growth of the British Steel Industry in the Late Nineteenth Century", Scottish J. Political Economy, VI, 1959, p. 35 e 41s.

34. Ver a discussão ibid.; ver também I.F. Gibson, "The Establishment of the Scottish Steel Industry", Scottish J. Political Economy, V, 1958, p. 22-39.

35. Iron and Coal Trades Rev., edição do Jubileu de Diamante, 1867-1927, 1927, p. 134, Burnham e Hoskins, Iron and Steel in Britain, p. 179-8o.

36. Os dados acima baseiam-se fundamentalmente na discussão encontrada em Burn, Economic History, capítulo X. 0 recente artigo de Sinclair afirma que Burn desprezou o setor dos fornos de revérbero, com uma conseqüente depreciação das realizações da metalurgia inglesa em comparação com a alemã. Essa censura, ao que me parece, é um exagero. Por um lado, Burn destaca vários aspectos das deficiências do aço Siemens-Martin, embora tenda a pas-

sar por cima de seus pontos fortes. Por outro, e mais importante, a compa-ração é menos entre setores da indústria siderúrgica britânica do que entre a fabricação inglesa e a estrangeira. Seria igualmente insensato medir o cresci-mento do aço alemão apenas pelo setor de Thomas.

Além disso, Sinclair leva sua história apenas até a década de 1890, mas a discrepância entre as taxas de crescimento alemã e inglesa é ainda mais mar-cante depois dessa data do que antes. Mesmo se compararmos a produção inglesa pelo processo Siemens-Martin com a produção total de aço alemã, veremos, tomando 1890 como 1oo, um aumento da primeira para 387 em 191 3, e da segunda para 825 no mesmo ano. Iron and Coa] Trades Rev., edição do jubileu de Diamante, 1867-1927, 1927, p. 130 e 134.

37. Burnham e Hoskins, Iron and Steel, p. 14S e 181; S.J. Chapman, Work and Wages, parte I: Foreign Competition, Londres, 1904, p. 89.

38. Os caminhões ingleses eram muito menores e os vagões de carvão tinham, tipicamente, uma capacidade de 10 toneladas. Cf. K.G. Fenelon, Railway Economics, Londres, 1932, p. 168-73; S. E. Parkhouse, "Railway Freight Rolling Stock", J. Institute of Transport, XXIV, 1951, p. 213-5

39. "On Charging Open-hearth Furnaces by Machinery", J. Iron and Steel Institute, LI, 1897, p. 90-1. Na verdade, 48 toneladas de matéria-prima eram carregadas por fornada num forno dessas dimensões, "e isso diante de um forno que emitia uma quantidade considerável de calor". Usavam-se quatro homens, cada qual carregando cerca de 3 a 4 toneladas por hora. É fácil imaginar a "grande força física" exigida.

40. Von Kammerer, "Entwicklungslinien der Technik", Technik und Wirtschaft, III, 1910, p. 16.

41. Ver Pollard, A History of Labour in Shfeld, p. 168-9. Ao morrer, a média etária dos laminadores e forjadores de Sheffield falecidos no período de 1864-71 (85 casos) era de 37 anos; o único grupo que perecia ainda mais depressa era o dos pudladores, cuja breve média etária era de 31 anos.

42. Burn, Economic History, p. 56, citando a Iron and Coal Trades Review, 1874, p. 760.

43. Ver a análise de uma pintura realista da fundição de Kõnigshütte (Silésia) na década de 1870: K. Kaiser, Adolph Menzels Eisenwalzwerk, Berlim, Heuschelverlag, 1953. Compare-se a ilustração da capa de Labour in Shfeld, de Pollard, que mostra a laminação de chapas na Atlas Steel Works [Aciaria Atlas] em 1861.

44. Quanto às "providências [alemãs] para aliviar o trabalho de suas características mais exaustivas", ver British Iron Trade Association, The Iron and Steel Industries of Belgium and Germany, Londres, 1896, p. 13 e passim.

45. Burn, Economic History, p. 199. É impossível dizer qual foi o efeito dessa lista na prática industrial. Mas o próprio fato de ela ter sido preparada é significativo (Burn observa a preocupação dos engenheiros alemães com as vantagens dos cortes diferentes na década de 1870), e as características das curvas de custos, para não falarmos do compromisso ideológico com a racionalidade, sem dúvida influenciaram a iniciativa alemã nessa direção. Cf. W.H. Hen-

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man, numa discussão de W.H.A. Robertson, "Notes on the Mechanical Design of Rolling Mills", J. Birmingham Metallurgical Soc., VII, 1919, p. 40.

46. Ver British Iron Trade Association, The Iron and Steel Industries of Belgium and Germany, p. 36, 42, 45 e 47. A superioridade alemã nesse campo continuou até a guerra e depois dela. Cf. Robertson, "Notes".

47. A melhor história da tecnologia do coque é F.M. Ress, Geschichte der Ko-kereitechnik, Essen, 1957.

48. Burn, Economic History, p. 439 e n. 4. 49. Ibid., p. 417. Os números são ambíguos e a comparação é correspondente-

mente arriscada. Assim é que temos anomalias estatísticas, como uma produção por homem-ano, na Alemanha de 1913, de 345 toneladas na fundição de aço e 104 toneladas na laminação, mas apenas 77 na fundição e laminação em conjunto.

A produtividade na fundição cria problemas ainda mais sérios. Chapman, Work and Wages, p. 76, simplesmente afirma que "nenhuma cifra fidedigna é obtenível". As estatísticas fornecidas por Burnham e Hoskins, Iron and Steel, p. 315-17, e por Burn, Economic History, p. 417, mostram algumas variações brutais na produtividade de ano para ano, mas coincidem em mostrar a Inglaterra na dianteira_________________uma dianteira de até 40% - antes da guerra. Tudo que sabemos

sobre o tamanho, a capacidade e a mecanização comparativos dos altos-fornos, entretanto, e sobre a relação entre eles e a produtividade, lança dúvidas sobre esses dados. 0 problema parece estar na contagem dos trabalhadores ligados à fundição. (Há também a questão do número efetivo de horas trabalhadas, mas isso é provavelmente muito menos importante como fonte de tendenciosidade.)

50. Haber, Chemical Industry, p. 59 e S5.

51. Ver T.I. Williams, "Heavy Chemicals", in Singer et al. (orgs.), A History of Technology, V, p. 235--56.

52. Cf. D.W.F. Hardie, A History of the Chemical Industry in Widnes, s/e, Imp. Chemical Industries, 19So, p. 118-9.

53. Sobre a concorrência entre os dois processos, ver, além de Haber, G. Lunge, The Manufacture of Sulphuric Acid and Alkali, 3' ed., 4 v., Londres, 1911, III, p. 737-44; R. Hasenclever, "Uber die gegenwãrtige Lage der Leblanc'schen Soda-fabriken in Concurrenzkampf mit der Ammoniak-Soda", Die Chemische Industrie, X, 1887, p. 290-1; idem, "Die Lage der deutschen Sodafabrikation im ]abre 1901", ibid., XXV, 1902, p. 73-5•

54. Clapham, Economic History, III, p. 173. 55.Esse números derivam de W. Woytinsky, Die Welt in Zahlen, IV, p. 316; do

Statistisches]ahrbuch des deutschen Reichs; de Haber, Chemical Industry, p. 104 e 1 2 2; e da Liga das Nações, Seção de Economia e Finanças, Conferência Econômica Internacional, Genebra, maio de 1927, Documentação: The Chemical Industry, Genebra, 1927, p. 23 e 127. Fez-se um esforço de converter- todas as cifras para um ácido com concentração de 1oo% (monoidratado); a indiferença em relação a esse detalhe elementar, até mesmo por parte dos autores mais especializados, não facilita a tarefa.

56. Os azocorantes são assim chamados por causa da presença do nitrogênio

(o azote francês) na molécula. Haber observa que eles foram os primeiros a ser produzidos diretamente em tecidos e se tornaram a fonte mais fecunda de corantes artificiais - 385 das 681 tinturas comerciais em 1902, 461 das 1.001 em 1922. Chemical Industry, p. 83.

57. Ver o relato em Bouvier, Le Crédit Lyonnais, p. 374-SI, e as fontes ali citadas. 58. Como tantas vezes acontece com os aperfeiçoamentos mecânicos, esse sucesso

deveu muito ao emprego de materiais superiores - nesse caso, chapas de aço de alta qualidade, feitas em fornos de revérbero, capazes de suportar maiores pressões nas caldeiras.

59. Ver, entre outros, R. H. Parsons, The Development of the Parsons Steam Turbine, Londres, 1936, e J.W. French, Modern Power Generators, Londres, 1908.

6o. D.C. Field, "Internal Combustion Engines", in Singer et al., A History o f Technology, V, p. 159. 61. Ver os números em William Robinson, Gas and Petro leum Engines, 2'

ed., 2 V., Nova York, 1902, I, p. 4, 136, 198 e passim. 62. Por volta de 1900, um alto-forno expelia i58.ooo pés cúbicos de gás por

tonelada de ferro fundida. Tratava-se de um gás sujo, que muitas vezes tinha que ser purificado para uso adicional, e também de um gás pobre, que gerava 70 a 12O BTU por pé cúbico (em contraste com talvez 480 BTU do gás de iluminação).

63. Ainda que a engenhosidade humana tenha superado essa dificuldade em épocas de crise, quando não há outro combustível disponível. Os franceses dos primeiros anos do após-guerra não hão de se esquecer dos automóveis circulando com tanques de gás sobre o teto. Mas convém assinalar que, mesmo nessa época, tais veículos eram mais comuns no sul, perto do centro de produção de gás natural da região de Toulouse, e que desapareceram rapidamente quando a gasolina reapareceu no mercado. Tenho notícia de que os ingleses recorreram ao mesmo expediente.

64. Na maioria dos casos, era possível liberar inteiramente o espaço ocupado pelos depósitos de gás e armazenar o óleo nos espaços do fundo duplo antes usados apenas para o lastro de água.

65. J. Fortescue-Flannery, no verbete "Fuel" [combustível] da Encyclopaedia Bri-tannica, i 11 a ed. Trata-se de um levantamento magistral.

66. Ainda assim, em Coventry, os empresários montaram, na década de 185 0, várias das chamadas "fábricas domiciliares" fileiras ou conjuntos de casas de tecelões que retiravam energia de uma máquina central, a uma distância de várias centenas de pés. John Prest, The Industrial Revolution in Coventry, Oxford, 196o, capítulo VI.

67. Uma breve lista das principais invenções e marcos pode ser útil: o telégrafo eletromagnético de Cooke e Wheatstone, na Inglaterra, c. 1837; nos Estados Unidos, o de Morse e Vai], c. 1838; o cabo submarino que cruzou a Mancha, em 1851; atravessando o Atlântico, o de C.W. Field, em 1866. 0 telefone, criado por A. G. Bell em 1876. E o radiotelégrafo de Marconi, em 1895.

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68. A eletroquímica industrial leve remonta à década de 1830. Encontrou suas principais aplicações na galvanoplastia, ou seja, na fabricação de moldes exatos para esculturas, gravuras e similares, para fins de reprodução (invenção em 1838 por Spencer, na Inglaterra, e Jacobi, na Rússia), e na eletrogalvanização (John Wright, de Birmingham, em 1840, seguido por uma multidão de outros). Esses processos, originalmente executados com baterias, foram imensamente estimulados pela disponibilidade de corrente barata e abundante proveniente das estações centrais. Abriu-se uma nova gama de aplicações industriais, especialmente no revestimento com metais inferiores (ferro galvanizado).

69. Esses dados baseiam-se amplamente em C.M. Jarvis, "The Generation of Electricity" e "The Distribution and Utilization of Electricity", in Singer et al. (orgs.), History of Technology, V, p. 177-234. Outras abordagens às vezes fornecem outras datas e até outros nomes. A história da tecnologia ainda está por ser dotada de uma cronologia aceita por todos.

70. G.F. Westcott e H.P. Spratt, Synopsis of Historical Events: Mechanical and Electrical Engineering, Londres, HMSO, 1960, p. 18, indica o ano de 1882 como a data da primeira estação central na Inglaterra (Holborn) e observa que ela foi projetada por Edison.

71. Tanto a corrente alternada quanto a direta têm suas vantagens. A segunda é de geração mais barata, entre outras coisas, porque é possível armazenar em baterias a corrente excedente dos períodos de baixa demanda e liberá-la conforme a necessidade; obtêm-se assim fatores mais favoráveis de carga e capacidade. Por outro lado, a corrente alternada é mais fácil de transmitir a longas distâncias. A razão é que essa transmissão requer voltagens elevadas e baixa amperagem (as perdas de energia aumentam em proporção à amperagem), e a corrente alternada presta-se muito mais prontamente do que a direta a substituições da amperagem pela voltagem e vice-versa, o que ela realiza por meio de transformadores. Os dois sistemas competiram ferozmente na Inglaterra por muitos anos. A longo prazo, entretanto, a vitória ficou com os geradores centralizados e a transmissão a longa distância.

72. G. Olphe-Galliard, La Force motrice au point de vue ecnomique et sociale, Paris, 1915, p. 104; A. Menge, "Distribution of Electrical Energy in Germany", in Trans. First World Power Conference, London 1924, Londres, s/d, III, p. 528. Menge fornece a cifra de 135 kW.

73. Hans Spethmann, Die Grosswirtschaf an der Ruhr, Breslau, 1925, p. 86-91. 74. G. Olphe-Galliard, La Force motrice au point de vue economique et

sociale, Paris, 191 S, p. 104; A. Menge, "Distribution of Electrical Energy in Germany", in Trans. First World Power Conference, London 1924, Londres, s/d, III, p. 528. Menge indica a cifra de 135kW.

75. Por volta de 1910, o consumo era de 9kWh por libra de metal produzida. 76. C.H. Merz, "The Transmission and Distribution of Electrical Energy", in

Trans. First World Power Conference, III, p. 809. 77. Clapham, Economic History of Modern Britain, III, p. 193, citando A. W.

Kennedy, Trans. Institute of Mechanical Engineers, 1894, p. 181 .

78. Os únicos números globais de que dispomos são os que foram coletados pelos dois países nos censos industriais de 1907. Os formulários ingleses fornecem a capacidade das máquinas e motores; os alemães, a energia produzida na operação regular (a instrução afirma explicitamente que isso não equivale à capacidade [Hõchstleistungsfdhigkeit]). A estatística britânica aponta a capacidade total das máquinas motrizes (inclusive as que produziam energia para geradores elétricos) como sendo de 10.749.000HP, e uma capacidade dos geradores de 2.341.900HP. As cifras alemãs da produção de energia são, respectivamente, 8.008.405HP e 1.830.oooHP. Estas não incluem as empresas industriais do setor público, muito mais importantes na Alemanha do que na Inglaterra; a produção de energia, nesse caso, totalizava 733.520HP, sendo 151.800HP por geradores elétricos.

Sobre a Grã-Bretanha, Par]. Papers, 1912-3, CIX (Cd. 6230): Relatório Final, Primeiro Recenseamento da Produção; sobre a Alemanha, Statistik des deutschen Reichs, NF, v. CCXIV, tabelas 8, 1 1 e 1 5.

Além disso, temos razão para crer que a diferença na base do levantamento desviou os resultados em favor da produção energética britânica ainda mais do que parece a um primeiro exame. Não temos as cifras pertinentes a 1907, mas os dados do pós-guerra (1929 quanto à Alemanha e 1928 quanto à Inglaterra) mostram que as usinas geradoras de eletricidade alemãs tinham um fator de capacidade 67% superior às inglesas, ou seja, cada unidade da capacidade geradora alemã produzia 2 / 3 de corrente a mais ao longo do ano. Wilhem Leisse, "Die Energiewirtschaft der Welt in Zahlen", in Vierteljahrshftzur Konjunkturforschung, Sonderheft 19, Berlim, 1930, p. 34. Esse é o tipo de proporção que reflete o padrão de distribuição de energia e a estrutura da indústria elétrica, e e presumivel que ela não se houvesse modificado muito no decorrer dessas duas décadas.

79. Segundo as estimativas da British Electrical and Allied Manufacturers' Asso-ciation [Associação Britânica dos Fabricantes Elétricos e Correlatos], a fabricação alemã de produtos e equipamentos elétricos em 1913 equivaleu a cerca de £65 milhões, a da Inglaterra, a £30 milhões, e a da França, a £7.700.000. O Recenseamento dos Produtos Manufaturados dos Estados Unidos situou a produção norte-americana em 1914 em US$359 milhões. Grã-Bretanha, Comissão sobre a Indústria e o Comércio, Survey of Metal Industries... Being Part IV of a Survey of Industries, Londres, 1928, p. 282 e 331. Note-se que a indústria inglesa havia obtido melhoras substanciais na década anterior a guerra: o Recenseamento da Produção de 1907 apontou apenas £ 14,4 milhões de produtos manufaturados elétricos.

8o. Ibid., p. 338-9. Por haver dificuldades estatísticas na feitura dessa compara-ção, as proporções aproximadas são preferíveis a uma precisão enganosa.

81. Cf. A. P. Usher, "The Resource Requirements of an Industrial Economy", J. Econ. Hist., VII, suplemento, 1947, p. 4o e 46.

82. Organização das Nações Unidas, Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais, Acts of the International Conference on the Utilization of Atomic Energy for Peaceful Ends, v. I, tabela XXIII-B, p. 28.

83. Woytinsky, Welt in Zahlen, IV, p. 66-7.

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84. A.G. Frank, "Industrial Capital Stocks and Energy Consumption", Econ. J., LXIX, 1959, p. 170-4.

85. Joan Thomas, A History of the Leeds Clothing Industry, Yorkshire Bulletin of Economic and Social Research, Occasional Paper á i, Leeds, 1955 p. 37.

86. Ministério do Trabalho dos EUA, Thirteenth Annual Report of the Commissioner of Labor, 1898: Hand and Machine Labor, 5S° Congresso, 3a

sessão, Documento Interno nº 301, 2 v., Washington, DC: GPO, 1899, 1, p. 28-9. 87. Ver a discussão em Alan Fox, A History of the National Union of Boot and

Shoe Operat ives 1874-1957 Oxford, 19 S8, capítulo XXIV. 88. Ministério do Trabalho dos EUA, Eleventh Special Report of the

Commissioner of Labor: Regulation and Restriction of Output, Washington, DC, 1904, p. 841, citado por S.B. Saul, "The American Impact on British Industry, i89S1914", Business History, III, 1960, p. 20. Trata-se de um artigo importante.

89. Parliamentary Papers, 191 2-3, CIX, p. 420-1 (Final Report, First Census of Production).

9o. Thuillier, Georges Dufaud et les débuts du grand capitalisme dans la mètallurgie, p. 227 C 230

91. Segunda edição, 2 v., Londres, 1865, II, p. 77 92. 0 inventor foi A. C. Pain, um projetista da equipe da Beliss & Morcon, em

Birmingham, que foi pioneira na inovação. A. Stowers, "The Stationary Steam-engine, 1830-1900", in C. Singer et al. (orgs.), A History of Technology, V, p. 136.

93- Pelas informações sobre a introdução dos rolamentos de esferas na indústria moderna, agradeço à sra. Smith, da Universidade de Birmingham. A partir dos dados colhidos por ela, fica claro que as discussões nas fontes publicadas existentes são incompletas e inexatas. Ainda assim, o leitor poderá consultar com proveito Hugh P. e Margaret Vowles, The Quest for Power from Prehistoric Times to the Present Day, Londres, 193 1, p. 206-10; J.G. Crowther, Discoveries and Inventions of the 20th Century, 4 ' ed., Nova York, I95S, p. 1 18-9; e C.F. Caunter, The History and Development of Cycles, parte I: Historical Survey, Londres, HMSO, para o Museu da Ciência, 1955, p. 15.

94. Statistik des deutschen Reichs, NF., CCXIV, tabela I I. 95. Sombart, Der moderne Kapitalismus, III, p. 889. 96. 96. Burn, Economic History, p. 220. 97. Não podemos acompanhar tão hem esse processo na Inglaterra, por falta de

recenseamentos comparáveis aos da Alemanha em 1861 , 1875, 1882, 1895 e 19 o7. A tendência é obvia, entretanto (cf., entre outros, Pollard, History of Labour, p. 159-63 e 224- 6), embora se deva distinguir, para nossos fins, o verdadeiro crescimento e a consolidação. Quanto à comparação da escala das empresas entre a França e a Inglaterra, ver D.S. Landes, "Social Attitudes, Entrepreneurship, and Economic Development: A Comment", Explorations in Entrepreneurial History, VI, 1954 p. 245-72.

98. É o caso do mapa histórico da fábrica da Siemens em Woolwich, in J.D.

Scott, Siemens Brothers 1858-1958: an Essay in the History of Industry, Londres, 1958, verso da p. 268.

99. Wall Street Journal, edição da Costa do Pacífico, 2o de maio de 196 o, p. 22.

100. Matschoss, Ein Jahrhundert deutscher Maschinenbau, p. 137. 101. Tratava-se da Sociedade Anônima de Construções Metálicas de Baccarat.

Organização Internacional do Trabalho, The Social Aspects of Rationalisation, Studies and Reports, série B (Economic Conditions), no 18, Genebra, 1931, p. 1 14, citando um relatório publicado no Bulletin du Ministère du Travail de 1924 a 1927.

102. Para ilustrações das disposições das fábricas e equipamentos características dos dois sistemas, ver Viena, Kammer für Arbeiten and Angestellte in Wien, Rationalisierung, Arbeitswissenschaft and Arbeitersehutz, 2' ed., Viena, 1928, p. 189-

95. 103. R.S. Woodbury, "The Legend of Eli Whitney and Interchangeable Parts",

Technology and Culture, I, 1960, p. 235-53. John E. Sawyer, presidente do Williams College, vem atualmente preparando um estudo sobre o "sistema norte-americano de fabricação" e seus antecedentes franceses.

104. J. E. Sawyer, "The Social Basis of the American System of Manufacturing", J. Econ. Hist., XIX, 1954, p. 361-79; D.L. Burn, "The Genesis of American Engineering Competition", Econ. Hist. (suplemento do Econ. J.), II, 1931, p. 292-311; Merle Curti, "America at the World Fairs, 1851-1893", Amer. Hist. Rev., LV, 1950, p. 833-56.

105. S. B. Saul, "The Market and the Development of the Mechanical Engineering Industries in Britain, 186o--1914", Econ. Hist. Rev., 2' série, XX, 1967, p. 123.

106. Esse foi um exemplo de um princípio geral que encontrou numerosas aplica-ções na história da tecnologia. Algumas delas já nos são familiares: a substituição do martelo pelo laminador nas forjas; a dos cilindros reversíveis pelo trem de laminação contínua nos laminadores; a substituição da máquina a vapor de movimento alternado pelas turbinas. Outros usos também nos vêm á mente: a serra circular, a impressora rotativa, a estampagem a rolo nos produtos têxteis. Na própria indústria de máquinas, podemos observar o uso crescente, no fim do século XIX, de furadeiras de alta velocidade, que usavam brocas com arestas de corte em espiral, em vez dos lados lisos tradicionais, em lugar de ferramentas como a máquina de abrir ranhuras. Cf. a discussão desse "Rotationsprinzip" em Sombart, Der moderne Kapitalismus, III', p. 109-1 o. Quanto à inovação da broca helicoidal, ver G.A. Fairfield, "Report on Sewing Machines", in R.H. Thurston (org.), Reports of the Commissioners of the United States to the International Exhibition held at Vienna, 1873, v. III: Engineering, Washington, DC, 1876, p. 30

107. A melhor fonte de consulta é R.S. Woodbury, History of the Milling Machine (Technology Monographs, Historical Series, n° 3), Cambridge, Mass., 1960. Woodbury fornece uma bibliografia sucinta mas útil.

108. Saul, "The Market and the Development of the Mechanical Engineering In-dustries", p. 124-5.

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109. A extensão do desgaste das ferramentas de corte, mesmo com os aços de alta velocidade, muitas vezes era de tal ordem que obrigava os fabricantes de má-quinas a sacrificar a velocidade de operação à velocidade e facilidade de manutenção, bem como a usar cabeçotes de fresa com um só dente. A invenção citada foi do século XX. Cf. Ludwig Loewe and Co., Actiengesellschaft Berlin, 1869-1929, Berlim, 1930, p. 87 -8.

110. Mais uma vez, a melhor fonte é R.S. Woodbury, History of the Grinding Machine: A Historical Study in Tools and Precision Production, Cambridge, Mass., 1959. Ver também Mildred M. Tymeson, The Norton Story, Worcester, Mass., 1953.

111. Cf. P.W. Kingsford, "The Lanchester Engine Company Ltd., 1899-1904", Business History, III, 1961, p. 1 10; John B. Rae, American Automobile Ma-

nufacturers: the First Forty Years, Filadélfia e Nova York, 1959, p. 1 20, n. 7. 1 1 2. Ver a deliciosa fotografia de uma dessas filas em O.M. Becker, High-

speed Steel, Nova York e Londres, 1910, p. 153. 113. Proc. Inst. Mech. Engineers, 1909, p.254-5 114. Arthur Pound, The Turning Wheel: the Story of General Motors through

Twentyfive Years, Garden City, NY, 1934 p. 107. 1 1 5. Cf. P.W.S. Andrews e E. Brunner, The Life of Lord Nuffield: a Study in

Enterprise and Benevolence, Oxford, 1955, p. 59_ 71 e 87-94. 1 16. Quanto à importância das atitudes empresariais - a recusa dos produtores a

fornecerem formatos especiais a seus clientes, exceto mediante o pagamento de um preço punitivamente elevado -, ver J. Stephen Jeans, American Industrial

Conditions and Competition: Reports of the Commissioners Appointed by the British Iron Trade Association to Enquire into the Iron, Steel, and Allied Industries of the United States, Londres, 19o2, p. 256.

1 1 7. Burn, Economic History, p. 199, citado. 1 18. Cf. Report of the Tariff Commission [instituição privada], v. I: The Iron and

Steel Trades, Londres, 1904, ri 631. 119. Comissão de Indústria e Comércio, Factors in Industrial and Commercial Effi-

ciency (Being Part 1 of a Survey of Industries(, Londres, 1927, p. 294. 1 20. Donaldson, "Interchangeability", Proc. Inst. Mech. Engineers, 1909, p.

255s. 1 21. Essa questão esteve no cerne de pequenas c grandes greves na indústria, a partir de 1897-8. Cf. A. Shadwell, The Engineering Industry and the Crisis of

1922, Londres, 1922; Pollard, History of Labour in Sheffield, p. 23Sss.; J. B. Jefferys, The Story of the Engineers, parte III. A própria existência desse con

flito, é claro, é prova de que estava ocorrendo uma certa dose de racionalização. 122. Cf. o Relatório da Comissão dos Setores de Engenharia da junta Comercial

de 1916-7: "Velhas fábricas receberam acréscimos e novas máquinas foram introduzidas, de tempos em tempos, para contrabalançar a maquinaria antiga. Houve, de modo geral, uma ausência de fábricas totalmente novas, com um traçado econômico. Conquanto o país possa apontar muitas indústrias da mais alta categoria, com os mais modernos equipamentos operados em sua

eficiência máxima, não há dúvida de que muitas de nossas fábricas mais antigas estão produzindo a um custo que poderia ser grandemente reduzido, se sua montagem como um todo fosse feita em maior escala, bem planejada e bem provida de instalações e, por conseguinte, passível de ser processada da maneira mais eficiente e econômica." Commission on Industry and Trade, Survey of Metal Industries (Being Part lV of a Survey of Industries], Londres, 1928, P. 149

123. Comissão de Indústria e Comércio, Factors in Industrial and Commercial Efficiency, p. 295.

124. Ludwig Loewe and Co., p. 94-9. 125. C. Matschloss, Die Maschinenfabrik R. Wolf, Magdeburg-Buckau,

1862-1912, Magdeburg, s/d, p. 103s. 1 26. Defoe, A Plan of the English Commerce, Oxford, 1928, p. 28. 127. "Customs, Wages, and Work-load in Nineteenth-Century Industry", in Asa

Briggs e John Saville (orgs.), Essays in Labour History, Londres, 1960, p. 11339. Esse foi um esforço pioneiro de sintetizar historicamente parte desse material.

1 28. Cf. Pollard, History of Labour in Sheffield, p. 13o, no tocante a esse fenômeno nos ramos da metalurgia leve, ao se aproximar o fim do século XIX.

129. É impossível obter uma medida histórica direta do custo da ineficiência e da má organização da mão-de-obra, mas não parece despropositado nos basearmos, como faz Hobsbawm, na analogia com a indústria têxtil do algodão na América Latina em meados do século XX. Esta foi pormenorizadamente estudada, numa tentativa pioneira de aquilatar a importância relativa dos determinantes da produtividade numa indústria inteira. A conclusão, contrariando as expectativas, foi que a maior parte do excesso de mão-de-obra empregado devia-se mais a deficiências administrativas e organizacionais do que tecnológicas- e isso numa indústria em que, muito mais do que na maioria, as máquinas dão o ritmo do trabalho, e não o inverso. Organização das Nações Unidas, Labour Productivity of the Cotton Textile Industry in Five Latin-American Countries, Nova York, ONU, Dep. de Assuntos Econômicos, 1951, p. Io.

130. Comentários de W.G. Bunn na Conferência sobre Remuneração Industrial de 1885. Ver Industrial Remuneration Conference, The Report of the Proceedings and Papers, Londres, 1885, p. 169. Há uma grande quantidade de informações dispersas sobre essa tendência.

131. Ministério do Trabalho dos EUA, Twelfth Special Report of the Commissio-ner of Labor: Regulation and Restriction of Output, Washington, DC, 1904, p. 752-7.

132. Ver Hugh G.J. Aitken, Taylorism at Watertown Arsenal: Scientific Management in Action, 1908-1915, Cambridge, Mass., 1960, capítulo I; também M.J. Nadworny, Scientific Management and the Unions, 1900-1932: a Historical Analysis, Cambridge, Mass., 1955 e Frank B. Copley, Frederick W. Taylor, Father of Scientific Management, 2 v. , Nova York, 1923.

133. L.H. Jenks, "Early Phases of the Management Movement", Administrative

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Science Quart., V, 1960, p. 428. Esse é o melhor levantamento sucinto do assunto e oferece urna bibliografia extremamente útil sobre os avanços nos Estados Unidos e na Inglaterra. Quanto a esta última, ver também L. Urwick e E.F.L. Brech, The Making of Scient f c Management, 3 v., Londres, 1949, v. 1 e II. Há algum material histórico sobre esse movimento, na França, em G. Bricard, L'Organisation Scient fique du travail, Paris, 1927. Esses textos, no en-tanto, são um substituto precário de um estudo aprofundado, e a melhor fonte de consulta continuam a ser os periódicos contemporâneos de engenharia.

134. A datação exata desse casamento progressivo da ciência com a tecnologia é tema de uma certa controvérsia entre os estudiosos do assunto. Há os que preferem restringi-lo ao século XX e até mesmo à última geração, enquanto outros o fazem recuar ao século XIX e, em algumas áreas, a épocas ainda anteriores. Para o observador externo, parece que grande parte dessa discordância é inerente à imprecisão das generalizações comumente oferecidas. Se é que convém tentar estabelecer uma cronologia, fica claro que os indícios de colaboração de épocas anteriores a meados do século XIX são excepcionais e, muitas vezes, fortuitos essencialmente prodrômicos. Ver a discussão em John Jewkes et al., The Sources of Invention, Londres, 1960, capítulos 11 e III.

135. Inversamente, é comum haver uma enorme defasagem entre a ciência e a engenharia aplicadas, de um lado, e a prática, de outro. A máquina a vapor de Thomas Savery de 1698 era um conceito perfeitamente viável, mas os metalurgistas da época foram simplesmente incapazes de construí-la. R. Jenkins, "Savery, Newcomen, and the Early History of the Steam Engine", Trans. Newcomen Soc., III, 1922-3, p. 96-118; IV, 1923-4, p. 113-30. Já assinalamos as dificuldades de Watt a esse respeito.

136. Cf. J.K. Finch, "Engineering and Science: a Historical Review and Appraisal", Technology and Culture, II, 1961, p. 329-30; J.K. Feibleman, "Pure Science, Applied Science, Technology, Engineering: an Attempt at Definitions", ibid., p. 313s.; M. Kerker, "Science and the Steam Engine", ibid., p. 388; e Cyril S. Smith, "The Interaction of Science and Practice in the History of Metallurgy", ibid., p. 363-4.

137. M. Messance, Nouvelles recherches sur la population de la France, Lyon, 1788, p. 128.

138. Beck, Geschichte des Eisens, IV, p. 696; Benaerts, Origines, p. 460-1. 139. Alemanha, StatistischesJahrbuch, 19o8, p. 1 25; Schlote, British

Overseas Trade, p. 1 2 S. A cifra relativa a 187 2 é da França, Annu. statistique, XLVIII, 193 2, res. retrosp., p. 408, que indica a percentagem alemã em 1900 como sendo 65%.

140. Great Britain and the German Trade Rivalry, 1875-1914, Filadélfia, 1933.

141. Com respeito a tudo isso, ver D.S. Landes, "Entrepreneurship in Advanced Industrial Countries: the Anglo-German Rivalry", in Entrepreneurship and Economic Growth (trabalhos apresentados numa conferência conjuntamente patrocinada pelo Comitê de Crescimento Econômico do Conselho de Pesquisas em Ciências Sociais e pelo Centro de Pesquisas em História Empresarial da Universidade de Harvard, Cambridge, Mass., 12 e 13 de novembro de 1954)

142. Quanto à produção de Sachgüter, ver R. Wagenführ, "Die Industriewirtschaft: Entwicklungstendenzen der deutschen und internationalen Industrieproduktion 186o bis 1932", Vierteljahrsh fte zur Konjunkturforschung, org. Institut für Konjunkturforschung, Sonderheft 31, Berlim, 1933,P. 58 e 69.

143. As vésperas da Primeira Guerra Mundial, a Inglaterra ganhava quase £200 milhões anuais por serviços comerciais prestados ao resto do mundo – mais ou menos a mesma coisa que extraía de seus imensos investimentos externos. Juntos, os dois representavam mais de 1/ 6 da renda nacional. A. H. Imlah, Economic Elements in the Pax Britannica: Studies in British Foreign Trade in the Nineteenth Century, Cambridge, Mass., 1958, tabela 4, p. 70-5

144. Das 10.873.701 pessoas engajadas na mineração e na produção manufatureira em 1907, quase 30% (3.166.734) eram autônomas ou trabalhavam em empresas de cinco pessoas ou menos. A produção domiciliar dispersa era comum nos setores do vestuário e de produtos têxteis, couro e artigos de madeira, fabricação de brinquedos, beneficiamento de alimentos e uma multiplicidade de pequenos trabalhos de metalurgia. Nessas áreas, a Alemanha guilherminiana estava apenas começando a passar pelo processo de modernização que a Inglaterra havia basicamente atravessado até 1870, como testemunha a profusão de estudos contemporâneos sobre o problema do Hausarbeiter [trabalhador domiciliar].

A melhor introdução sucinta ao assunto é W. Sombart, "Verlags-systern (Hausindustrie)", in J. Conrad et al. (orgs.), Handwõrterbuch der Staatswissenschaften, 3' ed., Jena, 191 1, v. VIII. Há um guia conveniente da bibliografia in Bélgica, Ministério do Trabalho, Bibliographie générale des industries á domicile [Supplement à la publication: Les industries á domicile en Belgique], Bruxelas, 1908. Sombart fornece uma lista das matérias publicadas nos anos imediatamente subseqüentes.

145. Pode-se inferir quão grande era a discrepância insumo-produto na agricultura, não somente na Alemanha, mas em toda a Europa, pela seguinte tabela:

LUGAR DA AGRICULTURA EM ECONOMIAS SELECIONADAS, C. 1881-g6 (em percentagens)

Parcela da

população dependent

e

Parcela da

riqueza naciona

l

Parcela da renda nacional

Rússia 70 43 32

Austria 62 39 27

Itália S 2 45 28

França 42 32 21

Alemanha 39 31 20

EUA 35 25 16

Bélgica 25 36 14

Holanda 2 2 33 18

Grã-Bretanha 10 15 8 146. Nesse sentido, a economia alemã anterior à Primeira Guerra Mundial

era comparável à japonesa. Ver Henry Rosovsky, Capital Formation in Japan,

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1868-1940, Glencoe, I l l . , í96o, capítulo IV, que afirma, no entanto, que a persistência de um setor tradicional de mão-de-obra intensiva liberou re-cursos para as instalações dispendiosas do setor moderno e, com isso, promo-veu o crescimento japonês. A tese é instigante. Não parece aplicável ao caso alemão.

Deve-se, aliás, estabelecer uma distinção cuidadosa entre esse dualismo do crescimento, inerente à desigualdade inevitável do desenvolvimento, e o dualismo da economia colonial, onde as modernas instalações da administra-ção e da iniciativa estrangeiras contrastam nitidamente com o caráter primi-tivo da vida nativa; ou o dualismo de uma economia semi-estagnada, como a da Espanha ou da Itália meridional (pelo menos até muito recentemente), onde algumas cidades resplandescentes, ou meramente distritos urbanos e outras expressões isoladas da tecnologia moderna, espalham-se por um inte-rior que pouco difere do que era dois milênios atrás.

147. Marshall, Industry and Trade, p. 195. Quanto à posição vantajosa da indústria química britânica em termos de recursos, tanto para os processos orgânicos quanto inorgânicos, e à dependência alemã de importações de uma parcela significativa do consumo germânico de coisas como breu, alcatrão e antraceno, cf. Parliamentary Papers, 19o1, LXXX, n 2, "Report on Chemical Instruction in Germany and the Growth and Present Condition of the German Chemical Industries", p. 42 e 68.

148. Cf. W.O. Henderson, "Brit ish Economic Activity in the German Colonies, 1884-1914", Econ. Hist. Rev., XV, 1945, P. 55-66.

149. A melhor fonte de consulta ainda é L. H. Jenks, The Migration of British Capital to 1875, Nova York, 1928. Ver também Landes, Bankers and Pashas, capítulos I e II; A.K. Cairncross, Home and Foreign Investment 1870-1913, Cambridge, 1953; e Imlah, Economic Elements in the Pax Britannica.

15o. Mesmo assim, a hostilidade tradicional aos empréstimos externos continuou intensa, e os ministérios das Finanças e Assuntos Exteriores muitas vezes divergiram quanto a essa questão. Ver Herbert Feis, Europe the World's Banker, 1870-1914, New Haven, 1930, capítulo VI.

151. Quanto às vantagens e desvantagens comparativas da prioridade, ver F.R.J. Jervis, "The Handicap of Britain's Early Start", The Manchester School, XVI, 1947; M. Frankel, "Obsolescence and Technological Change", Amer. Econ. Rev., XLV, 1955, p. 296-319; e urn debate entre D.F. Gordon e Marvin Frankel sobre o mesmo tema, ibid., XLVI, 1956, p. 646-56. Ver ainda W.E.G. Salter, Productivity and Technical Change, Cambridge, 1960; e C.P. Kindleherger, "Obsolescence and Technical Change", Bull. Oxford University Institute of Statistics, XXIII, 1961 , p. 281 97.

152. No J. Iron and Steel Institute, LI, 1 897, p. 1 o6. 153. Cf. Charlotte Erickson, British Industrialists: Steel and Hosiery,

1850-1950, Cambridge, 1959, capitulo VIII, especialmente p. 194. 154. Ver o interessante artigo de Carlo Cipolla, "The Decline of the

Italian Cloth Manufacture: the Case of a Fully Matured Economy", Econ. Hist. Rev., 2a série, V, 1952, p. 178--87.

155 S. B. Saul, "The American Impact on British Industry 1895-I914", Business History, III, 1960, p. 28.

156. Cf. os estudos de Charles Wilson, "The Economic Decline of the Netherlands", Econ. Hist. Rev., IX, 1939, p. 111-27, e Anglo-Dutch Commerce and Finance in the Eighteenth Century, Cambridge, '1941.

157. Ver Parliamentary Papers, 1861, XXI, Cd. 2794. 158. Frank Smith, A History of English Elementary Education, 1760-1902,

Londres, 1931, p. 28o-I. 159. Em seu Experiment in Autobiography, citado por G.A.N. Lowndes, The

Silent Social Revolution: an Account of the Expansion of Public Education in England and

Wales, 1895-1935, Londres, 1937, P. 5.

i6o.Ibid., p. 19. 161. Tinha sido de 43% em 1816 e de 68% em 1846. Prussia, Mittheilungen

des Statistischen Bureaus in Berlin (org. de Dieterici), 1847, p. 47. 162. 0 excesso se explica pelas crianças abaixo de seis anos ou acima

de quatorze, e por estudantes estrangeiros. França, Min. da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, Enquête sur 1'enseignement professionnel, 2 v., Paris, 1865, II, p. 7S.

163. J. Kay, The Social Condition and Education of the People in England and Europe, 2 v., Londres, 185 o, II, p. 2 27. Kay volta repetidamente a esse tema: "... Eu encontrava constantemente crianças das classes mais altas e mais baixas sentadas à mesma carteira...." Ibid., p. 209; também p. 74-5 e 8o.

Compare-se isso com a introdução do ensino universal no Japão, na década de 1870, que foi acelerado e facilitado por valores sociais similarmente arraigados. Segundo Ronald Dore, a aceitação do princípio confuciano de que a virtude consiste no conhecimento da própria posição e no respeito aos superiores implicava a necessidade da educação para todos, mas especialmente para as classes inferiores, que tinham muito mais virtudes a adquirir. (Ver seu Education in TokugawaJapan, Berkeley e Los Angeles, 1963, capítulo X: "The Legacy".) 0 sistema visava ostensivamente, portanto, ao menos antes do período Meiji, a reduzir a ambição e a mobilidade. Todavia, muitas vezes as funções latentes são mais importantes do que as manifestas, e a história está repleta de conseqüências imprevistas.

164. Cf. R. H. Samuel e R. H. Thomas, Education and Society in Modern Germany, Londres, 1949, p. 6-7.

165. Em 1884, Huxley estigmatizou esse "tipo miserável de sentimento de ciúme a respeito da elevação de seus trabalhadores". Citado in S.F. Cotgrove, Technical Education and Social Change, Londres, 1958, p. 24.

166. J. Iron and Steel Institute, 18 78, p. 3 15. 167. Parliamentary Papers, 1 886, XXI: "Commission... on Depression of

Trade and Industry", Q. 5.173. 168. W. E. Minchinton, "The Tinplate Maker and Technical Change",

Explorations in Entrepreneurial History, VII, 1954--5, P. 7. 169. Cf. J. E. Stead, J. Iron and Steel Institute, XLIX, 1896, p. 119; Burn,

Economic

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History, p. 178; Final Report of the Committee on Industry and Trade, Cd. 3282, Londres, HMSO, 1929, p. 214s.

170. Parliamentary Papers, 1867-8, Comm. on Scientific Instruction, parágrafos 301-28, citado por Cotgrove, Technical Education, p. 51, n. 1.

171. Parliamentary Papers, 1884, XXIX: Royal Commission on Technical Instruction, Second Report, I, p. 523; citado ibid., p. 4o.

172. Cf. Kay, Social Condition, II, p. 74-5; também G.M. Trevelyan, British History in the Nineteenth Century, i' ed., Londres, 1922, p. 353

1 73. Cf. John Saville, "A Comment on Professor Rowtow's British Economy of the 19th Century", Past and Present, ri 6, novembro de 1954, p. 77-8.

174. Cf. C.W. von Wieser, Der finanzielle Aufbau der englischen Industrie, Jena, 1919, p. 134-5; Lord Aberconway, The Basic Industries of Great Britain, Londres, 1927, p. 346.

175. Um dos melhores estudos sobre essa relação é O. Jeidels, Das Verhãltnis der deutschen Grossbanken zur Industrie, Leipzig, 19o5.

176. Esse ponto de vista está implícito na British Economy of the Nineteenth Century de W.W. Rostow (Oxford, 1948), embora em parte alguma ele o formule tão claramente quanto A.K. Cairncross, que afirma "que, a longo prazo, o investimento estrangeiro se dava essencialmente à custa do investimento interno, ou vice-versa". Home and Foreign Investment, Cambridge, 1953, p. 187.

177. Cf. S.B. Saul, Studies in British Overseas Trade, p. 9os. 178. Addresses on Economic Questions, Londres, 19o5, citado in Rostow,

British Economy, p. 70. 1 79. Nesse contexto, é interessante notar que uma recente comparação

das funções de produção em diferentes países mostrou diferenças tanto na eficiência do capital quanto na eficiência mais conhecida da mão-de-obra. Na verdade, as duas parecem estar relacionadas.

18o. Cf. Alec K. Cairncross, "The Place of Capital in Economic Progress", in Leon H. Dupriez (org.), Economic Progress, Louvain, 1955, p. 235-48

18 1. Minchinton, "The Tinplate Maker", Explorations, VII, 1954-5, p. 6. 182. Cf. a discussão de W. N. Parker, "Entrepreneurial Opportunities

and Response in the German Economy", Explorations, VII, 1954--5, p . 27: "A oportunidade econômica na Alemanha foi uma oportunidade para os tecnólogos de alcance criativo ou limitado e para os engenheiros de produção. Não almejou conceber tipos novos e impressionantes de máquinas..." Na p. 29, ele fala das "possibilidades alemãs e sua introdução, em doses pequenas e incessantes, na tecnologia existente..."

183. Cotgrove, Technical Education, p. 2os. 184. J.A. Schumpeter, Business Cycles: a Theoretical, Historical and Statistical

Analysis of the Capitalist Process, 2 v., Nova York, 1939 1, p. 440. 185. Kindleberger, "Obsolescence and Technical Change", Bull. Oxford Univ. Inst.

of Statistics, XXIII, 1961, p. 296 C 298.

186. Iron and Steel Institute, LIX, 1901 , n° 1, p. 12 3. 187. Alfred Baldwin, em seu discurso presidencial perante a British Iron

Trade Association, relatado em Engineering, 6 de maio de 1898, p. 569; citado in Burn, Economic History, p. 186. Cf. Kindleberger, "Obsolescence", p. 295.

188. Svennilson, Growth and Stagnation, p. 10. 189. H.J. Habakkuk, American and British Technology in the Nineteenth

Century: The Search for Labour-saving Inventions, Cambridge, 1962. 190. As citações encontram-se em ibid., p. 212, 216 e 220. 191. Nosso interesse, aqui, refere-se especificamente à parte de

retroalimentação da análise, isto é, à afirmação de que a taxa de crescimento mais lenta da Inglaterra responde "satisfatoriamente" (talvez "substancialmente" fosse mais exato) pelos aspectos de seu desempenho econômico que não são explicáveis por limitações diretas às decisões empresariais, como os custos correlatos. Estes, já examinados anteriormente (ver p. 343), são do consenso geral.


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