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    Para uma adequada compreenso do pensamento poltico e jurdico de Kant,

    fundamental uma leitura atenta da sua Metafsica dos Costumes (1797), dividida em

    duas partes, "Doutrina do direito" e "Doutrina da virtude", das quais a primeira

    apresenta maior significao para nosso estudo. Por pensamento poltico-jurdico

    entendemos aqui as principais idias deste filsofo moderno sobre Poder, Estado,Direito, Liberdade e Justia.

    Atentando, pois, para este "pano de fundo" da concepo poltico-jurdica de Kant,

    daremos destaque em nossa exposio a determinadas passagens da Metafsica dos

    Costumes. Convm esclarecer que, para Kant, "costumes" designa toda o conjunto de

    leis (em sentido amplo) ou regras de conduta que normatizam a ao humana. Kant

    prope-se, assim, a elaborao de uma matafsica da conduta do homem enquanto ser

    livre, entendendo-se "metafsica" como um conhecimento racional no emprico. Numalinguagem tipicamente kantiana, pode-se dizer que Metafsica dos Costumes designa

    um saber "a priori" ou puro (no contaminado pela empiria) das leis que regulam a

    conduta humana. Kant refere-se uma "Filosofia moral pura, completamente livre de

    tudo aquilo que emprico e que pertence antropologia".

    Imperativo categrico e imperativo hipottico

    Analisando a faculdade de conhecer, na Crtica da Razo Pura, Kant distingue duas

    formas de conhecimento: o emprico ou a posteriori, e o puro ou a priori. O

    conhecimento emprico refere-se aos dados fornecidos pelas experincias sensveis.

    Exemplo: "A janela est aberta". Tal proposio vincula-se a dados captados pelos

    sentidos. O conhecimento puro ou a priori, pelo contrrio, no depende de qualquer

    experincia sensvel. Exemplo: "A linha reta a distncia mais curta entre dois pontos".

    O primeiro tipo de conhecimento, ao contrrio do segundo, produz juzos necessrios e

    universais.

    Ao lado desta primeira distino, Kant introduz outra. Refere-se aos juzos analticos eaos juzos sintticos. Nos primeiros, o predicado j est contido do sujeito. Exemplo:

    "Os corpos so extensos". Nos sintticos, pelo contrrio, o predicado acresce algo de

    novo ao sujeito. Exemplo: "Os corpos se movimentam". Para Kant, os juzos sintticos

    so os nicos que "enriquecem" o conhecimento.

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    Feitas estas distines iniciais, Kant classifica os juzos em trs tipos: analticos,

    sintticos a priori e sintticos a posteriori. Para kant, os juzos analticos no teriam

    maior interesse para a cincia, pois embora universais e necessrios, no representam

    qualquer enriquecimento do saber. Por outro lado, os juzos sintticos a posteriori,

    tambm carecem de importncia posto que so todos contingentes e particulares,referindo-se a experincias que se esgotam em si mesmas. Portanto, o terreno prprio da

    cincia dever ser preenchido pelos juzos sintticos a priori, os quais so ao mesmo

    tempo universais e necessrios, fazendo avanar o conhecimento.

    A razo, aplicada crtica do conhecimento, tambm volta-se, em Kant, para anlise do

    universo da moralidade.

    Diz Kant: "Permita-nos aduzir que, a menos que se queira negar toda verdade ao

    conceito de moralidade, e toda relao entre ele e um objeto possvel qualquer, no se

    pode negar que sua lei lei de tal abrangncia que ela vigora no apenas para seres

    humanos, mas para todo ser racional em geral; e no apenas sob condies contingentes

    e com excees, mas de maneira absolutamente necessria. claro que nenhuma

    experincia poderia nos dar sequer ocasio de inferir a possibilidade de tais leis

    apodticas. Pois com que direito podemos tornar alguma coisa um objeto de ilimitado

    respeito, com uma prescrio universal para toda natureza racional, se ela talvez

    pudesse ser vlida unicamente sob as condies contingentes da humanidade ? E por

    que leis de determinao de nossa vontade deveriam ser tomadas por leis determinao

    da vontade do ser racional em geral, se tais leis fossem empricas, ao invs de ter sua

    origem inteiramente a priori da razo pura, embora prtica" (Fundamentos da Metafsica

    dos Costumes).

    Para Kant, a moralidade parece ter um valor em si mesma. Ela expressa um dever puro.

    Tem sua origem a priori na razo, e no a posteriori. Indica um dever de forma

    categrica. Ou seja, ordena categoricamente, e no hipoteticamente. Neste sentido, Kant

    afirma que "todos os imperativos ordenam hipottica ou categoricamente... Se a ao for

    boa simplesmente como um meio para alguma outra coisa, ento o imperativo

    hipottico; mas se a ao representada como boa em si mesma e, portanto, como um

    princpio necessrio para uma vontade que, em si mesma, est em conformidade com a

    razo, ento o imperativo categrico" (Fundamentao da Metafsica dos Costumes).

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    Imperativo aqui quer dizer ordem, mais precisamente "ordens da razo". O imperativo

    categrico nos mostra o que racional em si mesmo. Por outro lado, o imperativo

    hipottico revela uma ao que um meio para consecuo de determinado fim.

    Para Kant, o imperativo categrico pode formulado da seguinte forma: "Age

    unicamente segundo uma mxima tal que ao mesmo tempo possas querer que ela se

    torne uma lei universal". E ainda: "Age de tal maneira que trates a humanidade, em tua

    prpria pessoa e na pessoa de cada outro ser humano, jamais como um meio, porm

    sempre ao mesmo tempo com um fim." (Metafsica... )

    "Leis da liberdade"e "leis da necessidade"

    Kant denomina "leis da liberdade" aquelas que regulam a conduta humana, e "leis da

    necessidade" aquelas que regulam a natureza, ou os eventos naturais. As leis da conduta

    humana (objeto da metafsica dos costumes) so ordem, diferentemente das leis

    naturais. Enquanto estas regulam fenmenos naturais de forma necessria (leis da

    necessidade), aquelas se referem ao homem, que, diferentemente dos seres naturais,

    livre (da falar-se em leis da liberdade). As leis da necessidade descrevem, enquanto as

    leis da liberdade prescrevem. As leis da liberdade so, portanto, preceitos.

    Kant distingue dois tipos de preceitos: os categricos e os hipotticos. Os que

    prescrevem uma ao boa por si mesma so categricos: "No deves furtar". Os queprescrevem uma ao boa tendo em vista um certo fim so ditos hipotticos : "Se voc

    no quiser ser preso, no deve furtar".

    No que se refere s "leis da liberdade", importa distinguir a legislao moral da

    legislao jurdica, ambas referenciadas conduta humana.

    mbito da moral e mbito do direito

    Para Kant, "As leis da liberdade chamam-se morais para distinguir-se das leis da

    natureza. Enquanto se referem somente s aes externas e conformidade lei

    chamam-se jurdicas; se, porm exigem ser consideradas em si mesmas, como

    princpios que determinam as aes, ento so ticas; d-se o nome de legalidade

    conformidade das aes com as primeiras, e de moralidade conformidade com as

    demais". A ao moral , pois cumprida, no em virtude de um fim, mas to somente

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    pela mxima que a determina. posta em movimento por uma inclinao interior

    (imperativo categrico). Assim, "a legislao que erige uma ao como dever, e o dever

    ao mesmo tempo como impulso, moral. Aquela, pelo contrrio, que no compreende

    esta ltima esta ltima condio na lei, e que, consequentemente, admite tambm um

    impulso diferente da idia do prprio dever, jurdica". E ainda: "A legislao tica aque no pode ser externa, a legislao jurdica a que pode ser tambm externa. Assim,

    dever externo manter as prprias promessas em conformidade com o contrato, mas o

    imperativo de faz-lo unicamente porque dever, sem levar em conta qualquer outro

    impulso, pertence somente legislao interna". Temos, pois, em conformidade com a

    perspectiva adotada por Kant, que a distino entre moralidade e juridicidade

    puramente formal. Diz respeito forma de obrigar-se, e no ao objeto das aes.

    Direito em Kant

    Em compasso com sua tica "metafsica", Kant intenta proceder uma justificao do

    direito e de seus principais institutos jurdicos a partir de princpios puramente

    racionais. Trata-se de uma ilao "transcendental". Kant, no elabora um doutrina

    emprica do direito, mas uma doutrina metafsica, ou seja, uma doutrina racional do

    direito.

    Segundo kant, "o conceito de direito, enquanto este se refere a uma obrigao

    correspondente (...) diz respeito em primeiro lugar somente relao externa, e

    absolutamente prtica, de uma pessoa com relao outra, enquanto as aes prprias

    podem ter como base influncias recprocas". O direito situa-se, assim, no mundo das

    relaes externas entre os homens.

    E mais. O conceito de direito "no significa uma relao do arbtrio com o desejo dos

    outros, como acontece nos atos de beneficncia ou de crueldade, mas refere-se

    exclusivamente s relaes com o arbtrio dos outros". O direito refere-se, pois, a uma

    relao externa entre dois arbtrios. Isto quer dizer que somente temos o "direito"quando nos defrontamos com um encontro no de dois desejos, ou de um arbtrio com

    um desejo, mas de dois arbtrios, que dizer, de duas capacidades conscientes do poder

    do poder que cada uma tem de alcanar o objeto do desejo.

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    Neste contexto, "o direito o conjunto das condies por meio das quais o arbtrio de

    um pode estar de acordo com o arbtrio de um outro, segundo uma lei universal da

    liberdade". Com base nesta concepo, Kant apresenta algumas determinaes da

    categoria direito, seno vejamos.

    Primeiramente, o direito, como categoria autnoma, refere-se em primeiro lugar

    somente relaes externas e prticas de um sujeito em relao a outro, situando-se

    assim no campo das relaes intersubjetivas. Como o mundo das relaes

    intersubjetivas mais amplo que o campo do direito, faz-se mister determinaes mais

    especficas do direito. Aprofundando sua anlise, Kant afirma que, "em segundo lugar,

    o conceito de direito no significa uma relao do arbtrio com o desejo dos outros",

    como ocorre no terreno na moralidade, "mas refere-se exclusivamente s relaes com o

    arbtrio dos outros". Assim, para que exista uma relao verdadeiramente jurdica, necessrio que o meu arbtrio esteja relacionado com o arbtrio dos outros, e no

    somente com o desejo dos outros. Resta, claro, na tica kantiana, que o arbtrio se

    distingue do mero desejo pela conscincia da sua capacidade de produzir um objeto

    determinado, em conformidade com a relao jurdica em questo. Por fim, arremata

    Kant, "nesta relao recproca de um arbtrio com o outro, no se considera

    absolutamente a matria do arbtrio, ou seja, o fim que uma pessoa se prope por um

    objeto que ela quer (...) mas somente a forma da relao dos dois arbtrios, enquanto

    esses so considerados absolutamente como livres". Tal derradeira e ltimacaracterizao do fenmeno jurdico, coloca Kant no limiar do formalismo jurdico

    ocidental. Nesta perspectiva, o direito fornece apenas a forma universal de coordenao

    e convivncia dos diversos arbtrios.

    Da conceituao kantiana de direito, e de todas as determinaes acima expostas, deriva

    a lei universal do direito, assim formulada por kant: "Atua externamente de maneira que

    o uso livre de teu arbtrio possa estar de acordo com a liberdade de qualquer outro

    segundo uma lei universal". Do exposto resta claro que sua concepo jurdica tipicamente liberal, ou seja, centrada da liberdade individual, e formalista, ou seja,

    desvinculada de fins ou valores.

    Direito pblico e direito privado

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    Em conformidade com sua tica epistemolgica, a distino entre direito privado e

    direito pblico no uma distino emprica, mas fundamentalmente uma distino

    racional. Sendo racional, a nica forma de fundament-las voltando-se para as

    chamadas "fontes", das quais os diversos direitos se originam. Assim, qualquer direito

    que derive do Estado direito pblico, mesmo aquele que os juristas costumamdenominar direito privado. Todo direito estatal necessariamente um direito pblico.

    Um direito privado, para kant, portanto, somente seria possvel fora do mbito do

    Estado. Tal seria possvel ?

    Para Kant, que um jusnaturalista, tal possvel. O direito fora do estado, e, portanto,

    no pblico, seria o direito natural, aquele que regula as relaes entre os homens no

    estado de natureza. O direito privado seria assim o direito prprio do estado de natureza,

    prprio de uma estado pr-estatal. Desta forma, o problema da distino entre direito privado e direito pblico em Kant muda para a distino entre direito natural e direito

    positivo, ou seja, entre o direito a que se visa no estado de natureza e o direito a que se

    visa no estado civil. Direito privado e direito pblico correspondem, portanto, na teoria

    kantiana, a uma distino de status: o primeiro prprio do estado de natureza, no qual

    as relaes jurdicas atuam entre indivduos isolados, independentemente de uma

    autoridade superior; o segundo prprio do estado civil, no qual as relaes jurdicas

    so reguladas por uma autoridade superior aos indivduos, que , neste caso, a

    autoridade superior do Estado.

    Observe-se, contudo, que, em Kant, o direito privado no desaparece no interior do

    direito pblico, devendo, no estado civil, gozar das garantias no presentes no estado de

    natureza. O estado civil no deve importar numa anulao do direito natural, do direito

    privado, para possibilitar seu pleno florescimento e desenvolvimento atravs da

    atividade coercitiva do Estado. Direito pblico e direito no se encontram, pois, numa

    relao de anttese, mas de integrao.

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    Kant, na Metafsica dos Costumes, conceitua o Estado como a reunio de muitas

    pessoas, vivendo sob a gide do direito. Conceito este, pelo seu formalismo, recebeu

    severas crticas de Shopenhauer, para quem a Teoria do Estado teria sido a parte mais

    vulnervel da obra de Kant. No conceito de Bordeau, parece existir maior validade,

    quando ele afirma que o Estado resulta da institucionalizao jurdica do poder, dentroda sociedade. Tal institucionalizao se afirmaria no poder que se transfere de um

    indivduo para uma instituio. A essncia do poder repousaria, assim, na instituio e

    no na pessoa. Essa despersonalizao do poder o que caracterizaria o Estado.

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    A passagem da concepo jusnaturalista positivista, que dominou todo o sculo

    passado e que domina em grande parte at agora, sua origem, est ligada formao do

    Estado moderno que surge com a dissoluo da sociedade medieval.

    A sociedade medieval era uma sociedade pluralista, posto ser constituda por uma

    pluralidade de agrupamentos sociais cada um dos quais dispondo de um ordenamento

    jurdico prprio: o direito a se apresentava como um fenmeno social, produzido no

    pelo Estado, mas pela sociedade civil. Com a formao do Estado moderno, ao

    contrario, a sociedade assume uma estrutura monista, no sentido de que o Estado

    concentra em si todos os poderes, em primeiro lugar aquele de criar o direito: no se

    contenta em concorrer para esta criao, mas quer ser o nico a estabelecer o direito, ou

    diretamente atravs da lei, ou indiretamente atravs do reconhecimento e controle das

    normas de formao consuetudinria. Assiste-se, assim, quilo que em outro cursochamamos deprocesso de monopolizao da produo jurdica por parte do Estado.

    A esta passagem no modo de formao do direito corresponde uma mudana no modo

    de conceber as categorias do prprio direito, tendo em, vista que estamos atualmente to

    habituados a considerar Direito e Estado como a mesma coisa que temos uma certa

    dificuldade em conceber o direito posto no pelo Estado mas pela sociedade civil.

    Os jusnaturalistas admitiam a existncia de um estado de natureza, isto , uma

    sociedade em que existiam apenas relaes intersubjetivas entre os homens, sem um

    poder poltico organizado. Nesse estado, que teria precedido a instaurao da sociedade

    poltica (ou Estado), admitiam a existncia de um direito que era, exatamente, o direito

    natural. Segundo os jusnaturalistas a interveno do Estado limita-se a tornar estveis

    tais relaes jurdicas.


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