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8/7/2019 Kant No Direito Moderno
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Para uma adequada compreenso do pensamento poltico e jurdico de Kant,
fundamental uma leitura atenta da sua Metafsica dos Costumes (1797), dividida em
duas partes, "Doutrina do direito" e "Doutrina da virtude", das quais a primeira
apresenta maior significao para nosso estudo. Por pensamento poltico-jurdico
entendemos aqui as principais idias deste filsofo moderno sobre Poder, Estado,Direito, Liberdade e Justia.
Atentando, pois, para este "pano de fundo" da concepo poltico-jurdica de Kant,
daremos destaque em nossa exposio a determinadas passagens da Metafsica dos
Costumes. Convm esclarecer que, para Kant, "costumes" designa toda o conjunto de
leis (em sentido amplo) ou regras de conduta que normatizam a ao humana. Kant
prope-se, assim, a elaborao de uma matafsica da conduta do homem enquanto ser
livre, entendendo-se "metafsica" como um conhecimento racional no emprico. Numalinguagem tipicamente kantiana, pode-se dizer que Metafsica dos Costumes designa
um saber "a priori" ou puro (no contaminado pela empiria) das leis que regulam a
conduta humana. Kant refere-se uma "Filosofia moral pura, completamente livre de
tudo aquilo que emprico e que pertence antropologia".
Imperativo categrico e imperativo hipottico
Analisando a faculdade de conhecer, na Crtica da Razo Pura, Kant distingue duas
formas de conhecimento: o emprico ou a posteriori, e o puro ou a priori. O
conhecimento emprico refere-se aos dados fornecidos pelas experincias sensveis.
Exemplo: "A janela est aberta". Tal proposio vincula-se a dados captados pelos
sentidos. O conhecimento puro ou a priori, pelo contrrio, no depende de qualquer
experincia sensvel. Exemplo: "A linha reta a distncia mais curta entre dois pontos".
O primeiro tipo de conhecimento, ao contrrio do segundo, produz juzos necessrios e
universais.
Ao lado desta primeira distino, Kant introduz outra. Refere-se aos juzos analticos eaos juzos sintticos. Nos primeiros, o predicado j est contido do sujeito. Exemplo:
"Os corpos so extensos". Nos sintticos, pelo contrrio, o predicado acresce algo de
novo ao sujeito. Exemplo: "Os corpos se movimentam". Para Kant, os juzos sintticos
so os nicos que "enriquecem" o conhecimento.
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Feitas estas distines iniciais, Kant classifica os juzos em trs tipos: analticos,
sintticos a priori e sintticos a posteriori. Para kant, os juzos analticos no teriam
maior interesse para a cincia, pois embora universais e necessrios, no representam
qualquer enriquecimento do saber. Por outro lado, os juzos sintticos a posteriori,
tambm carecem de importncia posto que so todos contingentes e particulares,referindo-se a experincias que se esgotam em si mesmas. Portanto, o terreno prprio da
cincia dever ser preenchido pelos juzos sintticos a priori, os quais so ao mesmo
tempo universais e necessrios, fazendo avanar o conhecimento.
A razo, aplicada crtica do conhecimento, tambm volta-se, em Kant, para anlise do
universo da moralidade.
Diz Kant: "Permita-nos aduzir que, a menos que se queira negar toda verdade ao
conceito de moralidade, e toda relao entre ele e um objeto possvel qualquer, no se
pode negar que sua lei lei de tal abrangncia que ela vigora no apenas para seres
humanos, mas para todo ser racional em geral; e no apenas sob condies contingentes
e com excees, mas de maneira absolutamente necessria. claro que nenhuma
experincia poderia nos dar sequer ocasio de inferir a possibilidade de tais leis
apodticas. Pois com que direito podemos tornar alguma coisa um objeto de ilimitado
respeito, com uma prescrio universal para toda natureza racional, se ela talvez
pudesse ser vlida unicamente sob as condies contingentes da humanidade ? E por
que leis de determinao de nossa vontade deveriam ser tomadas por leis determinao
da vontade do ser racional em geral, se tais leis fossem empricas, ao invs de ter sua
origem inteiramente a priori da razo pura, embora prtica" (Fundamentos da Metafsica
dos Costumes).
Para Kant, a moralidade parece ter um valor em si mesma. Ela expressa um dever puro.
Tem sua origem a priori na razo, e no a posteriori. Indica um dever de forma
categrica. Ou seja, ordena categoricamente, e no hipoteticamente. Neste sentido, Kant
afirma que "todos os imperativos ordenam hipottica ou categoricamente... Se a ao for
boa simplesmente como um meio para alguma outra coisa, ento o imperativo
hipottico; mas se a ao representada como boa em si mesma e, portanto, como um
princpio necessrio para uma vontade que, em si mesma, est em conformidade com a
razo, ento o imperativo categrico" (Fundamentao da Metafsica dos Costumes).
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Imperativo aqui quer dizer ordem, mais precisamente "ordens da razo". O imperativo
categrico nos mostra o que racional em si mesmo. Por outro lado, o imperativo
hipottico revela uma ao que um meio para consecuo de determinado fim.
Para Kant, o imperativo categrico pode formulado da seguinte forma: "Age
unicamente segundo uma mxima tal que ao mesmo tempo possas querer que ela se
torne uma lei universal". E ainda: "Age de tal maneira que trates a humanidade, em tua
prpria pessoa e na pessoa de cada outro ser humano, jamais como um meio, porm
sempre ao mesmo tempo com um fim." (Metafsica... )
"Leis da liberdade"e "leis da necessidade"
Kant denomina "leis da liberdade" aquelas que regulam a conduta humana, e "leis da
necessidade" aquelas que regulam a natureza, ou os eventos naturais. As leis da conduta
humana (objeto da metafsica dos costumes) so ordem, diferentemente das leis
naturais. Enquanto estas regulam fenmenos naturais de forma necessria (leis da
necessidade), aquelas se referem ao homem, que, diferentemente dos seres naturais,
livre (da falar-se em leis da liberdade). As leis da necessidade descrevem, enquanto as
leis da liberdade prescrevem. As leis da liberdade so, portanto, preceitos.
Kant distingue dois tipos de preceitos: os categricos e os hipotticos. Os que
prescrevem uma ao boa por si mesma so categricos: "No deves furtar". Os queprescrevem uma ao boa tendo em vista um certo fim so ditos hipotticos : "Se voc
no quiser ser preso, no deve furtar".
No que se refere s "leis da liberdade", importa distinguir a legislao moral da
legislao jurdica, ambas referenciadas conduta humana.
mbito da moral e mbito do direito
Para Kant, "As leis da liberdade chamam-se morais para distinguir-se das leis da
natureza. Enquanto se referem somente s aes externas e conformidade lei
chamam-se jurdicas; se, porm exigem ser consideradas em si mesmas, como
princpios que determinam as aes, ento so ticas; d-se o nome de legalidade
conformidade das aes com as primeiras, e de moralidade conformidade com as
demais". A ao moral , pois cumprida, no em virtude de um fim, mas to somente
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pela mxima que a determina. posta em movimento por uma inclinao interior
(imperativo categrico). Assim, "a legislao que erige uma ao como dever, e o dever
ao mesmo tempo como impulso, moral. Aquela, pelo contrrio, que no compreende
esta ltima esta ltima condio na lei, e que, consequentemente, admite tambm um
impulso diferente da idia do prprio dever, jurdica". E ainda: "A legislao tica aque no pode ser externa, a legislao jurdica a que pode ser tambm externa. Assim,
dever externo manter as prprias promessas em conformidade com o contrato, mas o
imperativo de faz-lo unicamente porque dever, sem levar em conta qualquer outro
impulso, pertence somente legislao interna". Temos, pois, em conformidade com a
perspectiva adotada por Kant, que a distino entre moralidade e juridicidade
puramente formal. Diz respeito forma de obrigar-se, e no ao objeto das aes.
Direito em Kant
Em compasso com sua tica "metafsica", Kant intenta proceder uma justificao do
direito e de seus principais institutos jurdicos a partir de princpios puramente
racionais. Trata-se de uma ilao "transcendental". Kant, no elabora um doutrina
emprica do direito, mas uma doutrina metafsica, ou seja, uma doutrina racional do
direito.
Segundo kant, "o conceito de direito, enquanto este se refere a uma obrigao
correspondente (...) diz respeito em primeiro lugar somente relao externa, e
absolutamente prtica, de uma pessoa com relao outra, enquanto as aes prprias
podem ter como base influncias recprocas". O direito situa-se, assim, no mundo das
relaes externas entre os homens.
E mais. O conceito de direito "no significa uma relao do arbtrio com o desejo dos
outros, como acontece nos atos de beneficncia ou de crueldade, mas refere-se
exclusivamente s relaes com o arbtrio dos outros". O direito refere-se, pois, a uma
relao externa entre dois arbtrios. Isto quer dizer que somente temos o "direito"quando nos defrontamos com um encontro no de dois desejos, ou de um arbtrio com
um desejo, mas de dois arbtrios, que dizer, de duas capacidades conscientes do poder
do poder que cada uma tem de alcanar o objeto do desejo.
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Neste contexto, "o direito o conjunto das condies por meio das quais o arbtrio de
um pode estar de acordo com o arbtrio de um outro, segundo uma lei universal da
liberdade". Com base nesta concepo, Kant apresenta algumas determinaes da
categoria direito, seno vejamos.
Primeiramente, o direito, como categoria autnoma, refere-se em primeiro lugar
somente relaes externas e prticas de um sujeito em relao a outro, situando-se
assim no campo das relaes intersubjetivas. Como o mundo das relaes
intersubjetivas mais amplo que o campo do direito, faz-se mister determinaes mais
especficas do direito. Aprofundando sua anlise, Kant afirma que, "em segundo lugar,
o conceito de direito no significa uma relao do arbtrio com o desejo dos outros",
como ocorre no terreno na moralidade, "mas refere-se exclusivamente s relaes com o
arbtrio dos outros". Assim, para que exista uma relao verdadeiramente jurdica, necessrio que o meu arbtrio esteja relacionado com o arbtrio dos outros, e no
somente com o desejo dos outros. Resta, claro, na tica kantiana, que o arbtrio se
distingue do mero desejo pela conscincia da sua capacidade de produzir um objeto
determinado, em conformidade com a relao jurdica em questo. Por fim, arremata
Kant, "nesta relao recproca de um arbtrio com o outro, no se considera
absolutamente a matria do arbtrio, ou seja, o fim que uma pessoa se prope por um
objeto que ela quer (...) mas somente a forma da relao dos dois arbtrios, enquanto
esses so considerados absolutamente como livres". Tal derradeira e ltimacaracterizao do fenmeno jurdico, coloca Kant no limiar do formalismo jurdico
ocidental. Nesta perspectiva, o direito fornece apenas a forma universal de coordenao
e convivncia dos diversos arbtrios.
Da conceituao kantiana de direito, e de todas as determinaes acima expostas, deriva
a lei universal do direito, assim formulada por kant: "Atua externamente de maneira que
o uso livre de teu arbtrio possa estar de acordo com a liberdade de qualquer outro
segundo uma lei universal". Do exposto resta claro que sua concepo jurdica tipicamente liberal, ou seja, centrada da liberdade individual, e formalista, ou seja,
desvinculada de fins ou valores.
Direito pblico e direito privado
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Em conformidade com sua tica epistemolgica, a distino entre direito privado e
direito pblico no uma distino emprica, mas fundamentalmente uma distino
racional. Sendo racional, a nica forma de fundament-las voltando-se para as
chamadas "fontes", das quais os diversos direitos se originam. Assim, qualquer direito
que derive do Estado direito pblico, mesmo aquele que os juristas costumamdenominar direito privado. Todo direito estatal necessariamente um direito pblico.
Um direito privado, para kant, portanto, somente seria possvel fora do mbito do
Estado. Tal seria possvel ?
Para Kant, que um jusnaturalista, tal possvel. O direito fora do estado, e, portanto,
no pblico, seria o direito natural, aquele que regula as relaes entre os homens no
estado de natureza. O direito privado seria assim o direito prprio do estado de natureza,
prprio de uma estado pr-estatal. Desta forma, o problema da distino entre direito privado e direito pblico em Kant muda para a distino entre direito natural e direito
positivo, ou seja, entre o direito a que se visa no estado de natureza e o direito a que se
visa no estado civil. Direito privado e direito pblico correspondem, portanto, na teoria
kantiana, a uma distino de status: o primeiro prprio do estado de natureza, no qual
as relaes jurdicas atuam entre indivduos isolados, independentemente de uma
autoridade superior; o segundo prprio do estado civil, no qual as relaes jurdicas
so reguladas por uma autoridade superior aos indivduos, que , neste caso, a
autoridade superior do Estado.
Observe-se, contudo, que, em Kant, o direito privado no desaparece no interior do
direito pblico, devendo, no estado civil, gozar das garantias no presentes no estado de
natureza. O estado civil no deve importar numa anulao do direito natural, do direito
privado, para possibilitar seu pleno florescimento e desenvolvimento atravs da
atividade coercitiva do Estado. Direito pblico e direito no se encontram, pois, numa
relao de anttese, mas de integrao.
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Kant, na Metafsica dos Costumes, conceitua o Estado como a reunio de muitas
pessoas, vivendo sob a gide do direito. Conceito este, pelo seu formalismo, recebeu
severas crticas de Shopenhauer, para quem a Teoria do Estado teria sido a parte mais
vulnervel da obra de Kant. No conceito de Bordeau, parece existir maior validade,
quando ele afirma que o Estado resulta da institucionalizao jurdica do poder, dentroda sociedade. Tal institucionalizao se afirmaria no poder que se transfere de um
indivduo para uma instituio. A essncia do poder repousaria, assim, na instituio e
no na pessoa. Essa despersonalizao do poder o que caracterizaria o Estado.
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A passagem da concepo jusnaturalista positivista, que dominou todo o sculo
passado e que domina em grande parte at agora, sua origem, est ligada formao do
Estado moderno que surge com a dissoluo da sociedade medieval.
A sociedade medieval era uma sociedade pluralista, posto ser constituda por uma
pluralidade de agrupamentos sociais cada um dos quais dispondo de um ordenamento
jurdico prprio: o direito a se apresentava como um fenmeno social, produzido no
pelo Estado, mas pela sociedade civil. Com a formao do Estado moderno, ao
contrario, a sociedade assume uma estrutura monista, no sentido de que o Estado
concentra em si todos os poderes, em primeiro lugar aquele de criar o direito: no se
contenta em concorrer para esta criao, mas quer ser o nico a estabelecer o direito, ou
diretamente atravs da lei, ou indiretamente atravs do reconhecimento e controle das
normas de formao consuetudinria. Assiste-se, assim, quilo que em outro cursochamamos deprocesso de monopolizao da produo jurdica por parte do Estado.
A esta passagem no modo de formao do direito corresponde uma mudana no modo
de conceber as categorias do prprio direito, tendo em, vista que estamos atualmente to
habituados a considerar Direito e Estado como a mesma coisa que temos uma certa
dificuldade em conceber o direito posto no pelo Estado mas pela sociedade civil.
Os jusnaturalistas admitiam a existncia de um estado de natureza, isto , uma
sociedade em que existiam apenas relaes intersubjetivas entre os homens, sem um
poder poltico organizado. Nesse estado, que teria precedido a instaurao da sociedade
poltica (ou Estado), admitiam a existncia de um direito que era, exatamente, o direito
natural. Segundo os jusnaturalistas a interveno do Estado limita-se a tornar estveis
tais relaes jurdicas.