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MENINO DE ENGENHO

José Lins do Rego

Verbo

Digitalização e Arranjo

Agostinho Costa

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JOSÉ LINS DO REGO Cavalcanti nasceu em Pilar, na Paraíba, em 1901, e morreu no Rio de Janeiro, em 1957. Dos dois tipos dominantes no moderno ronance brasileiro - o romance regional e provinciano, e o romance urbano, de ambiente burguês ou operário -, é no primeiro que Lins do Rego se integra juntamente com Jorge Amado, Graciliano Ramos, Raquel de Queirós e o Erico Veríssimo de O Tempo e o Vento, entre os principais), como um notável representante do romance do Nordeste. Com a sua primeira obra, Menino de Engenho (1932), inicia o Ciclo da Cana-de-Açúcar, depois completado por Doidinho (1933), Banguê (1934), Moleque Ricardo (1935) e Usina (1936).Nesta extensa série é retratada a evolução de um Nordeste sujeito a profundas transformações económicas e sociais, um Nordeste semifeudal, cuja sociedade se vai desmoronando com o advento da máquina e de uma nova concepção do trabalho.Através do clima de determinismos que preside aos acontecimentos, o espírito revolucionário e político do escritor emana espontaneamente do drama que relata, sem se valer de qualquer proselitismo político, sem se deixar arrastar por qualquer demagogia intransigente: Lins do Rego traça com igual firmeza e imparcialidade o menino de engenho, os moleques do pastoreio ou o próspero usineiro. Concluído o ciclo, seguem-se vários romances rurais, mas sem a mesma intenção:Pureza (1931), onde passa dos campos de monocultura, dos sertões batidos pelas secas, para o interior das florestas; Pedra Bonita (1938), que é das suas obras tecnicamente mais perfeitas;Riacho Doce (1939); Água-Mãe (1941) e Fogo Morto (1943), considerado o seu melhor romance.Eurídice (1947) tem por cenário o Rio de janeiro; com Cangaceiros (1953), o romancista volta ao interior e à literatura regional. Para além da sua obra romanesca, José Lins do Rego trabalhou no Rio como cronista em diversos jornais, tendo igualmente publicado vários livros de crónica e ensaio: Gordos e Magros (1942), Poesia e Vida (1945), Homens, Seres e coisas (1952), A Casa e o Horaem (1954), Presença do Nordeste na Literatura Brasileira (1957) e O Vulcão e a Fonte (obra póstuma, 1958). Membro da Academia Brasileira de Letras, Lins do Rego tem muitas das suas obras traduzidas e é um dos grandes nomes da literatura de língua portuguesa.

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Menino de Engenho

(C) Livros do Brasil e Editorial Verbo.

Composto e impresso por

Gris, Impressores 1971

Lisboa

Jorge de Lima

Gilberto Freyre

Olívio Montenegro

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Eu tinha uns quatro anos no dia em que minha mãe morreu.Dormia no meu quarto, quando pela manhã acordei com um enormebarulho na casa toda. Eram gritos e gente correndo para todosos cantos. O quarto de dornir de meu pai estava cheio depessoas que eu não conhecia. Corri para lá e vi minha mãeestendida no chão e meu pai caído em cima dela como um louco.A gente toda que estava ali olhava para o quadro como seestivesse a assistir a um espectáculo. Vi então que minha mãeestava toda banhada em sangue, e corri para beijá-la, quandome pegaram pelo braço com força. Chorei, fiz o possível paralivrar-me. Mas não me deixaram fazer nada. Um homem que chegoucom uns soldados mandou então que todos saíssem, que só podiaficar ali a Polícia e mais ninguém. Levaram-me para o fundoda casa, onde os comentários sobre o facto eram os maisvariados. O criado, pálido, contava que ainda dormia quandoouvira uns tiros no primeiro andar. E, correndo para cima,vira o meu pai ainda com o revólver na mão e a minha mãeensanguentada. "O doutor matou a Dona Clarisse! Porquê?"Ninguém sabia compreender. O que eu sentia era uma vontadedesesperada de ir para junto de meus pais, de abraçar e beijarminha mãe. Mas a porta do quarto estava fechada, e o homemsisudo que entrara não permitia que ninguém se aproximassedali. O criado e a ama, diziam, estavam lá dentro eminterrogatório. O que se passou depois não me ficou bem namemória. À tarde o criado leu para a gente da cozinha os jornais comos retratos grandes de minha mãe e de meu pai. Ouvi como seaquilo fosse uma história de Trancoso. Pareciam-me tão longe,já, os factos da manhã, que aquela narrativa me interessavacomo se não fossem os meus pais os protagonistas. Mas logo que vi na página de um dos jornais a minha mãe,estendida, com os cabelos soltos e a boca aberta, caí numchoro convulso. Levaram-me então para a praça que ficava pertode minha casa. Lá estavam outros meninos do meu tamanho e eubrinquei com eles a tarde toda. As criadas é que conversavammuito sobre o meu pai e a minha mãe, contando umas às outrascoisas a que eu não prestava atenção, pois no que eu cuidavaera nos meus brinquedos com os amigos. Na hora de dormir foi que senti de verdade a ausência damãe. A casa vazia e o quarto dela fechado. Um soldado tomandoconta de tudo. As criadas da vizinhança queriam vir conversarpor ali. O soldado não consentia. Deitaram-me a dormir,sozinho. E o sono demorou a chegar. Fechava os olhos, masfaltava-me qualquer coisa. Pela minha cabeça passavam, àspressas e truncados, os sucessos do dia. Então começava achorar baixinho para o travesseiro, um choro abafado, de quemtivesse medo de chorar. Ainda me lembro de meu pai. Era um homem alto e bonito, comuns olhos grandes e um bigode preto. Sempre que estava comigo,era a beijar-me, a contar-me histórias, a fazer-me asvontades. Tudo dele era para mim. Eu mexia nos seus livros,sujava as suas roupas, e meu pai não se importava. Às vezes,porém, ele entrava em casa calado. Sentava-se numa cadeira oupasseava pelo corredor com as mãos atrás das costas, ediscutia muito com minha mãe. Gritava, dizia tanta coisa,ficava com uma cara de raiva que me fazia medo. E minha mãe iapara o quarto aos soluços. Eu não sabia compreender o porquê

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de toda aquela discussão. Sei que, daí a pouco, lá estava elecom a minha mãe aos beijos. E o resto da noite, até me irdeitar, era só com ela que ele estava, com os olhos vermelhosde ter chorado também. Eu amava-o, porque o que eu queriafazer ele o consentia, e brincava comigo no chão como ummenino da minha idade. Depois é que vim a saber muita coisa aseu respeito: que era um temperamento de excitado, um nervoso,para quem a vida só tivera o seu lado amargo. A sua história,que mais tarde conheci, era a de um arrebatado pelas paixões,a de um coração sensível de mais às suas mágoas. Coitado demeu pai! Parece que o vejo quando saiu de casa com ossoldados, no dia do seu crime. Que ar de desespero ele levavano rosto de moço! E o abraço doloroso que me deu nessaocasião! Vim a compreender, por aquele tempo, por que razão se deixara levar ao desespero. O amor que tinhapela esposa era o amor de um louco. O seu lugar não era nopresídio para onde o levaram. O meu pobre pai, dez anosdepois, morria na casa de saúde, liquidado por paralisiageral. Todos os retratos que tenho de minha mãe não me dão nunca averdadeira fisionomia que eu guardo dela - a doce fisionomiadaquele rosto, daquela melancólica beleza do seu olhar. Elapassava o dia inteiro comigo. Era pequena e tinha os cabelospretos. Junto dela eu não sentia necessidade dos meusbrinquedos. Dona Clarisse, como lhe chamavam os criados,parecia mesmo uma figura de estampa. Falava para todos com umtom de voz de quem pedisse um favor, mansa e terna como umamenina de internato. Criara-se num colégio de freiras, semmãe, pois o pai ficara viúvo quando ela ainda não falava.Filha de senhor de engenho, parecia mais, pelo que me contavamdos seus modos, uma dama nascida para a reclusão. À noite ela fazia-me dormir. Adormecer nos seus braços,ouvindo a surdina daquela voz, era o meu requinte de sibaritapequeno. Ela enchia-me de carícias. E quando o meu paichegava, nas suas crises, exasperado como um pé-de-vento, euvia-a chorar e pronta a esquecer todas as intemperançasverbais do seu marido. Os criados amavam-na. Ela também os tratava com uma bondadeque não conhecia mau humor. Horas inteiras eu fico a pintaro retrato dessa mãe angélica, com as cores que tiro daimaginação, e vejo-a assim, ainda tomando conta de mim,dando-me banhos e vestindo-me. A minha memória ainda guardadetalhes bem vivos que o tempo não conseguiu destruir. O seu destino fora cruel: morrer como morreu, vítima deexcesso de cólera do homem que tanto amara; e depois, cheia depudor e de recato, a encher as folhas de sensação, com o seuretrato, com histórias mentirosas da sua vida íntima. A morte de minha mãe encheu-me a vida inteira de umamelancolia desesperada. Porque teria sido com ela tão injustoo destino, injusto com uma criatura em que tudo era tão puro?Esta força arbitrária do destino ia fazer de mim um meninomeio céptico, meio atormentado de visões ruins. Três dias depois da tragédia levaram-me para o engenho demeu avô materno. Eu ia ficar ali a morar com ele. Um mundonovo se abria para mim. Lembro-me da viagem de comboio e deuns homens que iam connosco no mesmo carro. O tio Juca, quefora buscar-me, contava a história, afirmando que o meu pai

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estava doido. Todos olhavam para mim com um grande pesar. - Eu avalio como deve estar o coronel Cazuza - dizia umdeles. - Naquela idade, a sofrer destas coisas! Compreendi que falavam do meu avô, - Um homem de bem comoele e tão infeliz com a família! O meu tio Juca ficava calado. E a conversa mudava para oInverno que corria bem, para os partidos de cana. E, depois,para a política. O comboio era para mim uma novidade. Eu ficava à janelinhado vagão a olhar os matos correndo, os postes do telégrafo, eos fios baixando e subindo. Quando chegava a uma estação,ainda mais se aguçava a minha curiosidade. Passavam meninoscom roletes de cana e bolos de goma, e gente apressada a dar ea receber recados. E uma porção de pobres a receber esmolas.Uma mulher chegou-se para mim, e toda cheia de brandura: - Que menino bonitinho! Onde está a sua mãe, meu filho? Tive medo da velha. E a saudade de minha mãe fez-me chorar.A pobre afastou-se, espantada, dizendo para os outros que játinha estranhado. O meu tio levou-me a beber qualquer coisa. E a viagemcontinuou a divertir-me como dantes. - Agora vamos apear-nos - disse-me ele. E na primeira paragem deixámos o comboio, com grande penapara mim. Na estação estava um pretinho com um cavalo,trazendo umas esporas, um chicote e um pano branco.Meu tio estendeu o pano branco na anca do animal, montou, e opretinho atirou-me para a garupa. Era o meu primeiro treino deequitação. - O engenho fica ali perto. Eu ia reparando em tudo, achando tudo novo e bonito. A estação ficava perto de um açude coberto de uma camada deverdura. Os matos estavam todos verdes e o caminho cheio delama, e havie poças de água. Pela estrada estreita, por ondenós íamos, de vez em quando atravessava um boi. Meu tiodizia-me que tudo aquilo era do meu avô. E um pouco adiante,avistava-se uma casa branca e um bueiro grande. - É ali o engenho, mas nós temos que andar um bocado. A minha mãe falava-me sempre do engenho como de um bem docéu. E uma negra que ela trouxera para criada sabia tantashistórias de lá, das moagens, dos banhos de rio, das frutas edos brinquedos, que me acostumei a imaginar o engenho comoqualquer coisa de um conto de fadas, de um reino fabuloso. Quando cheguei, com o meu tio Juca, ao pátio da casa, oalpendre estava cheio de gente. Apeámo-nos e uma mulher muitoparecida com a minha mãe logo me abraçou e beijou. Sentadonuma cadeira, perto de um banco, estava um velho a quem melevaram para receber a bênção. Era o meu avô. Uma porção demoleques olhavam-me admirados. E andei de mão em mão, olhado eexaminado da cabeça aos pés. Levaram-me para a cozinha. Asnegras queriam ver o filho de Clarisse. Foi uma festa na casa. - Vai mostrar o menino à tia Galdina! E conduziram-me para um quarto na dependência dacasa-grande. Era um quartinho escuro, com cheiro a coisaabafada. Lá dentro estava uma negra velha deitada. - Tia Galdina, olhe aqui o menino de Dona Clarisse. Chegoucom o doutor Juca, de Recife. A velha chamou-me para junto da cama, olhou-me de pertinho

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como um míope que quisesse ler com atenção, e caiu num choroangustiado. - É a cara da mãe, meu Deus! Saí chorando do quarto da velha. A moça que se parecia com aminha mãe, e que era a sua irmã mais nova, levou-me para mudarde roupa. - Agora vou ser a tua mãe. Você vai gostar de mim. Vamos,não chore. Seja homem. E abraçou-me e beijou-me, com uma ternura que me fez lembraros beijos e os abraços de minha mãe. Da minha maleta tirou umpijama e vestiu-mo, penteou-me os cabelos desgrenhados. - Vá brincar com os moleques no copiá. Os moleques estavam à minha espera, mas não se aproximavamde mim. Desconfiados, eles olhavam para o meu pijama, para osmeus alamares, encantados, talvez, com a minha pompa. Porém,aos poucos, foram-se chegando, e pela tarde já estavam naintimidade. E fomos à horta para apanhar goiabas e jambos. Oque chamavam de horta era um grande pomar. Muito da minhainfância eu iria viver por ali, por debaixo daquelaslaranjeiras e jaqueiras gordonas. O meu sono dessa noite foi curto. De manhã levaram-me paratomar leite ao pé da vaca. Era um leite de espuma, ainda mornoda quentura materna. O meu avô andava vestido com um grande egrosso sobretudo de lã, falando com uns, dando ordens aoutros. Uma névoa como fumaça cobria os matos que ficavam nosaltos. Os moleques das minhas brincadeiras da tarde estavamtodos ocupados, uns levando latas de leite, outros metidos com os pastores no curral. Tudo aquilo para mimera uma delícia - o gado, o leite de espuma morna, o frio dascinco horas da manhã, a figura alta e solene de meu avô. Tio Juca levou-me a tomar banho no rio. Com uma toalha nobraço e um copo grande na mão, chamou-me para o banho. - Você precisa de se tornar matuto. Descèmos uma ladeira para o Paraíba, que corria num fino fiode água pelo areal branco e extenso. - Vamos para o Poço das Pedras. Pouco mais adiante, debaixo de um marizeiro, de copaarrastando no chão, lá estava uma destas piscinas que o cursoe a correnteza do rio cavava nas suas margens. E foi aí, comtio Juca, que bebeu, antes do seu banho, um copo cheio deremédio para o sangue, que tinha ficado ao relento, que entreiem relação íntima com o engenho de meu avô. A água fria dorio, àquela hora, deixou-me o corpo a tremer. Meu tio entãocomeçou a atirar-me para o fundo, ensinando-me a nadar.Daquele banho ainda hoje guardo uma lembrança à flor da pele.De facto, para mim, que me criara nos banhos de chuveiro,aquela piscina cercada de mata verde, sombreada por umavedação ramalhuda, só poderia ser uma coisa do outro mundo. Noregresso, o tio Juca dizia, rindo-se: - Agora você já está baptizado. Quando chegámos a casa o café estava pronto. Na grande salade jantar estendia-se uma mesa comprida com muita gentepreparada para a refeição. O meu avô ficava do lado direito ea minha tia Maria na cabeceira. Tudo o que era para se comerestava à vista: cuscuz, milho cozido, angu, macacheira,requeijão. Não era, porém, somente a gente da família que alise via. os homens, de aspecto humilde, ficavam na outra

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extremidade, comendo, calados. Depois seriam eles os meus bonsamigos. Eram os oficiais carpinas e pedreiros, que também seserviam como o senhor de engenho, nessa boa e humanacamaradagem do repasto. Eu tinha sido criado num primeiro andar. Todo o meuconhecimento do campo fizera-o nuns passeios de eléctrico aDois-Irmãos. E era com olhos de deslumbrado que olhava entãoaqueles sítios, aquelas mangueiras e os meninos que viabrincando por ali. As divergências de meu pai com meu avônunca permitiram à minha mãe fazer uma temporada no engenho.Minha imaginação vivia assim a criar esse mundo maravilhosoque eu não conhecia. Sempre que perguntava a minha mãe porquenão me levava para o engenho, ela desculpava-se com o empregode meu pai. Daí a impressão extraordinária que me iam causandoos mais insignificantes aspectos de tudo o que via. Depois do café mandaram-me para o engenho, que ficava nosfins da moagem. Eram uns restos de cana que aproveitavam. - Quase que você não encontra o engenho trabalhando -disse-me o tio Juca. Ficava a fábrica bem perto da casa-grande. Um enormeedifício de telhado baixo, com quatro biqueiras e um bueirobranco, a boca cortada em diagonal. Não sei porque os meninosgostam tanto das máquinas. Minha atenção inteira foi para omecanismo do engenho. Não reparei em mais nada. Voltei-meinteiro para a máquina, para as duas bolas giratórias doregulador. Depois comecei a ver os piradeiros atulhados defeices de cana, o pessoal da casa das caldeiras. Tio Jucacomeçou a mostrar-me como se fazia o açúcar. Mestre Cândidocom uma cuia de água de cal que ia deitando nas tachas e as achas a ferver, o cocho com o caldo frio e uma fumaçacheirosa a entrar pela boca da gente. - É aqui onde se cozinha o açúcar. Vamos agora para a casade purgar. Dois homens levavam caçambas com mel batido para as formasestendidas em andaimes com furos. Ali mandava o purgador, umpreto, com as mãos metidas na lama suja que cobria a boca dasformas. Meu tio explicava como aquele barro preto fazia oaçúcar branco. E os tanques de mel de furo, com saposressequidos por cima de uma borra amarela, deixaram-me umaimpressão de nojo. Andámos depois pela boca da fornalha, pela bagaceira cobertade um bagaço ainda húmido. Mas o que mais me interessava aliera o maquinismo, o movimemto ronceiro da roda grande e aagitação febril das duas bolas do regulador. Quando vieram chamar-me para o almoço, ainda me encontraramencantado diante da roda preguiçosa, que mal se arrastava, edas duas bolas alvoroçadas, que não queriam parar. Com uns dias mais, eu já estava senhor da minha vida nova.Tinham chegado para passar um tempo no engenho uns meusprimos, mais velhos do que eu: dois meninos e uma menina.Agora não era só com os moleques que me acharia. Meus doisprimos, bem afoitos, sabiam nadar, montar a cavalo em osso,comiam tudo e nada Lhes fazia mal. Com eles eu fui aos banhosproibidos, os do meio-dia, com a água do poço a escaldar. Eentão nós ficávamos com a cabeça ao sol, enxugando os cabelos,para que ninguém percebesse as nossas violações. - Você está um negro - disse-me a tia Maria. - Chegou tão

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alvo, e nem parece gente branca. Isto faz mal. Os meninos daEmília já estão acostumados, você não. De manhã à noite de pésdescalços, à solta como um bicho. Seu avô ontem falou-menisto. Você é um menino bonzinho, não vá atrás destes molequespara toda a parte. As febres andam por aí. O filho do seuFausto, no Pilar, há mais de um mês que está na cama. Para asemana vou começar a ensinar-lhe as letras. Mas os primos não paravam. De manhã íamos com os molequeslavar os cavalos, e aí passávamos horas inteiras dentro deágua.

Galinha gorda, gorda é ela; vamos comê-la, vamos a ela.

E atiravam pedras para dentro do poço, mergulhando para iremapanhá-las no fundo. Espadanavam a água com os cangapésruidosos, e saía sempre gente chorando, com queixas para casa.O dia todo passávamo-lo assim, nessa agitação medonha. A minha tia Sinhazinha era uma velha de uns sessenta anos.Irmã de minha avó, ela morava há longo tempo com o seucunhado. Casada com um dos homens mais ricos daquelesarredores, o Dr. Quincas, do Salgadinho, vivia separada domarido desde os começos do matrimónio. Era um temperamentoesquisito e turbulento. Contava-se que um dia amanhecera numengenho de seu pai, amarrada a um carro de bois, com uma cartado marido fazendo voltar ao sogro a sua filha. Era ela quem tomava conta da casa do meu avô, mas com umdespotismo sem entranhas. Com ela estavam as chaves dadespensa, e era ela quem mandava as negras no serviçodoméstico. Em tudo isso, como um tirano, meu avô, que não secasara em segundas núpcias, tinha, no entanto, esta madrastadentro de casa. Logo que a vi pela primeira vez, com aquele rosto enrugado eaquela voz áspera, senti que qualquer coisa de ruim seaproximava de mim. Esta velha seria o tormento da minhameninice. Minha tia Maria, um anjo junto daquele demónio, nãotinha poderes para resistir às suas forças e aos seuscaprichos. As pobres negras e os moleques sofriam dessacriatura uma servidão dura e cruel. Ela criava sempre umanegrinha, que dormia aos pés da sua cama, para judiar, parasatisfazer os seus prazeres brutais. Vivia a resmungar, aencontrar defeitos, poeira nos móveis, furtos em coisas dadespensa, para pretexto das suas pancadas nas criadas da casa. As negras odiavam-na. Os meus primos fugiam dela como de umcastigo. E quando ia para a casa de uma filha, na cidade, eracomo se um povo tivese perdido o seu verdugo. Minha tia Mariaassumia a dírecção da casa - e todos passavam a conhecer amansidão e a paz de uma regência de fada. Depois que vim asaber a história de rainhas cruéis, as intrigas perversas dasAna Bolenas, acreditava em tudo, porque me lembrava da tiaSinhazinha. Magrinha e branca, a prima Lili parecia mais de cera, de tãopálida. Tinha a minha idade e uns olhos azuis e uns cabeloslouros até ao pescoço. Sempre recolhida e calada, nunca estavaconnosco nas brincadeiras.

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- Esta menina não se cria - diziam as negras. Na verdade, a prima Lili parecia mais um anjo do que gente.Qualquer coisa era motivo para um choro que não acabava mais.Comigo ela sempre se abria. Eu era-Lhe menos agressivo que osirmãos. E juntos nós estávamos com a tia Maria, e nos cuidadose nos carinhos da nossa amiga nos encontrávamos de quando emvez. Lili não ia ao sol, vivia o dia todo calçada. Tudo lhefazia mal: o chuveiro, o mormaço, o relento. E só vivia deremédios. Não sei porquê, fui criando a esta criaturinha uma amizadeconstante. Gostava de ficar com ela, na companhia das suasbonecas. E um preá-da-índia que me deram, eu ofereci-lho depresente. Também, era tão terna comigo! Um dia amanheceu com vómitos negros e com febre. Entrei noquarto onde ela estava, mais branca ainda, e encontrei-a muitotriste, ainda mais magrinha. As suas bonecas andavam por cimada cama como se fossem as suas amigas em despedida. Os olhinhos azuis demoraram-se em mim, parecendo pedir-mealguma coisa. Era talvez para que eu ficasse com ela maistempo. Mas levaram-me do quarto. No outro dia, quando acordei, a minha priminha tinhamorrido. Lembro-me do seu caixão branquinho, cheio de rosas,tia Maria chorando o dia inteiro. Ainda hoje, quando encontro enterros de crianças, é pelaprima Lili que me chegam lágrimas aos olhos. Com a morte da Lili, a tia Maria ficou toda em cuidadoscomigo. Proibiu-me a liberdade que eu andava gozando como umlibertino. Passava o dia a ensinar-me as letras. Os meusprimos, esses, ninguém podia com eles. Eu ficava horas a fio sentado na sala de costura, com acartilha do abc na mão, enquanto por fora de casa ouvia orumor da vida que não me deixavam levar. Era para mim, estaprisão, um martírio bem difícil de vencer. Os meus ouvidos eos meus olhos só sabiam ouvir e ver o que andava peloterreiro. E as letras não me entravam na cabeça. - Nunca vi um menino tão rude - dizia asperamente a velhaSinhazinha. A tia Maria, porém, não desanimava, continuando com afinco amartelar a minha desatenção. As conversas das costureiras começavam então a prender-me.Elas trabalhavam mantendo uma palestra que não parava. Falavamsempre de outros engenhos, onde estiveram no mesmo serviço,contando das intimidades das famílias. - No Santarém ninguém come - dizia uma -, Bacalhau ao almoçoe ao jantar. A outra contava que o senhor do engenho de Poço-fundo tinhamais de vinte mulheres. Esta conversa prendia-me inteiramentee as letras, que a solicitude de minha tia procurava enfiarpela minha cabeça, não tinham jeito de vencer tal aversão. Oque eu queria era a liberdade de meus primos, agora que as arribaçãs, com a seca do sertão, estavam a descer em revoadapara os bebedouros. Chamavam de arribaçãs a rolas sertanejas que desciam,batidas pela seca, para o litoral. Vinham em bando como umanuvem. muito no alto, a espreitar um poço de água para a sededos seus dias de travessia. E quando o avistavam, faziam aaterrissagem em magote, escurecendo a areia branca do rio. Nós

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ficávamos à espreita, de cacete na mão, para o massacre. E asede das pobres rolas era tal que elas nem davam pelos nossosintuitos. DeZatávamos às cacetadas, como se elas não tivessemasas para voar. A seca tirara-lhes o instinto natural dedefesa. Depois, no colégio, quando no Génio do Cristianismo eulia uns versos falando dos pássaros da Bretanha, que fugiam doInverno da sua pátria, vinha-me a saudade das pobres rolassertanejas que trucidávamos. Uma tarde, chegou um portador, num cavalo cansado de tantocorrer, com um bilhete para o meu avô. Era um recado docoronel Anísio, de Cana-Brava, prevenindo que António Silvinonaquela noite estaria entre nós. A casa toda ficou debaixo depavor. O nome do cangaceiro era o bastante para mudar o tom de umaconversa. Falava-se dele baixinho, em cochicho, como se ovento pudesse levar as palavras. Para os meninos, a presença de António Silvino era como sefosse a de um rei das nossas histórias, que nos marcasse umavisita. Um dos nossos brinquedos mais preferidos era até o defingirmos de bando de cangaceiros, com espadas de pau ecacetes ao ombro, e o mais forte dos nossos fazendo de AntónioSilvino. Naquela noite íamos tê-lo em carne e osso. Meu avô é que erao mesmo. Aquele seu ar de tranquilidade poucas vezes eu o viaalterar-se. A velha Sinhazinha para dentro e para fora, nassuas ordens para o jantar, gritando para osnegros e osmoleques com a mesma arrogância incontentável. A tia Mariaficava no seu quarto a rezar. Tinha muito medo dessa gente quevivia no crime. Quando me viu a seu lado, abraçou-me,chorando. Não havia, porém, perigo de espécie alguma. António Silvinovinha ao engenho em visita de cortesia. Um ano antes eleestivera na vila de Pilar com outras intenções. Fora ali parareceber o pagamento de uma nota falsa que o coronel Napoleãolhe passara. E não encontrando o velho, vingara-se nos seus bens com umafúria de vendaval. Atirou para a rua tudo o que era da loja, equando não teve mais nada para desperdiçar, jogou do sobradoabaixo uma barrica de dinheiro para o povo. Mas com meu avô obandido não tinha rixa alguma. Naquela noite viria fazer a suaprimeira visita. À noitinha chegava o bando à porta da casa-grande. VinhaAntónio Silvino à frente, os seus doze homens a distância.Subiu a calçada como um chefe, apertou a mão do meu avô com umriso na boca. Levado para a sala de visitas, os cabras ficaramenfileirados na banda de fora, numa ordem de colegiais. Só eletomava intimidade com os de casa. Ficávamos nós, os meninos,numa admiração, de olhos estarrecidos para o nosso herói, parao seu punhal enorme, os seus dedos cheios de anéis de ouro e amedalha com pedras de brilhantes que trazia ao peito. O seurifle pequeno, não o deixava, trazendo-o entre os joelhos. À hora do jantar foram todos para a mesa. Ele à cabeceira, eos cabras por ordem, todos calados, como se estivessem commedo. Só ele falava, contava histórias - o último cerco que osmacacos Lhe fizeram em Cachoeira-de-Cebola -, numa fala detátaro, querendo fazer-se muito engraçado. Alta noite foi-se com o seu bando. Para mim tinha perdido um

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bocado do prestígio. Eu fazia-o outro, arrogante e impetuoso,e aquela fala bamba viera desmanchar em mim a figura do herói. No outro dia o meu primo Silvino contou-nos que se tinhalembrado de dizer ao cangaceiro que a tia Sinhazinha nãogostava dele. É que nos falavam sempre de uma velha queAntónio Silvino fizera dançar nua, dando umbigadas num pé decaldeiros, por motivo semelhante. Se isto tivesse acontecidocom a velha Sinhazinha, os moleques, as negras e os meninos doSanta-Rosa teriam dormido uma noite de grande. - Vamos hoje ao sítio do seu Lucino - disse-me a tia Maria. E de tarde saímos para esse passeio. Íamos a pé. Os meninosna frente a correr, e a tia Maria, uma negra e as duascostureiras atrás, conversando. Pela estrada encontrávamos dequando em vez gente a cavalo que vinha da feira de São Miguel.Traziam as cargas vazias, os caçuás emborcados e o quilo decarne dependurado na cangalha. Também: mulheres a pé, dechinelas batendo no calcanhar e flor na cabeça. Os molequesinformavam que eram as raparigas do Pilar que iam fazer afeira a São Miguel. Mas eu reparava que elas não traziamquilos de carne: vinham com as mãos vazias, a abanar. Essagente tola conversava: os de cavalo com os que iam a pé. Maisadiante encontrámos o negro Zé Passarinho bêbado, no seucostume de sempre. E um peso de carne, sujo de terra, aoombro, num cacete. Os moleques caíam em cima do pobre compancadas, a que ele respondia descompondo-os. Pela estrada, toda sombreada de cajazeiras, rescendia umcheiro ácido de cajá maduro. Nós íamos colhendo cabrinhasamarelas e arrebenta-bois vermelhos que não comíamos porquematavam as pessoas. Depois a cerca de arame abria-se num terreiro que dava parauma casa de telha, com parede de barro escuro. Um menino nu,que estava à porta, correu assombrado para dentro de casa.Umas mulheres apareceram. - São os meninos do engenho. Saíram para nos ver, quando avistaram a tia Maria naestrada. Foi uma festa de exclamações: - Entre, Maria Menina, entre. Como vão todos de lá? Comoestá gorda, benza-a Deus! E puseram tamboretes à porta, numa alegria saudável de quemestivesse em casa com uma princesa. Tia Maria conversava comelas sem altivez, perguntando pelos seus porcos, que elascriavam de meias, comendo umas goiabas que lhe foram buscar. - Maria Menina, cadê o menino de Dona Clarisse? Minha tia chamou-me, e elas fizeram-me todos os mimos, comaquelas mesmas exclamações: - É a cara da mãe! Foram-me dando goiabas e limas-de-umbigo. Os primos já estavam no local a atirar pedras às fruteiras.Atrás da casa ficava uma meia dúzia de laranjeiras egoiabeiras e um pé enorme de genipapo. Num girau, umas panelasvelhas com craveiros a brotar e bogaris pelas biqueirasflorindo. E uns leirões de coentro cercados de faxina, porqueas galinhas e os porcos criavam-se soltos, entrando por dentrode casa, como gente. Na cozinha, uma trempe de ferro com fogoaceso e um pote com água barrenta do rio, que bebiam. Dois meninos com medo correram para outra casa perto. Depoisforam-se chegando para nós, desconfiados como cabritos, sujos

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e de barriga grande. Mas, quando o meu primo quis um genipapomaduro, um deles trepou pela árvore numa ligeireza de macaco. A tia Maria ainda conversava no terreiro com as meninas deseu Lucino, como o povo chamava àquelas três velhas solteiras.Agora era de doenças que elas se queixavam, perguntando quandoviria ao engenho o doutor, para receitar-lhes. A tia Mariaprometia remédios, e contava a visita de António Silvino àsvelhas, que cortavam a conversa com um Pai-do-Céu e umaNossa-Senhora de vez em quando. À tardinha voltámos para casa. A estrada escurecia com as sombras da noite. Ainda restavampelas folhas das canas os últimos raios de sol do dia. E osmoleques começavam a falar em mal-assombrados. Bem juntos detia Maria, quietos e calados, com medo de almas do outromundo, íamos fazendo o retorno da nossa viagem. A velha Sinhazinha não gostava de ninguém. Tinha umaspreferências temporárias por certas pessoas a quem passava afazer gentilezas com presentes e generosidades. Isto somentepara fazer raiva aos outros. Depois mudava. E vivia assim, deuns para outros, sem que ninguém gostasse dela e sem gostar asério de ninguém. De mim nunca se aproximou. E eu mesmo fugia,sempre que podia, da sua proximidade. Mas a propósito de nada,lá vinha com beliscões e cocorotes. Trancava na despensa asfrutas, andava com a chave do guarda-comidas no cós da saia,para contrariar as nossas gulodices e fazer raiva à genteadulta da casa. A tia Maria roubava para nós os sapotis e asmangas que a veLha deixava em montão apodrecer. O meu ódio por ela crescia dia a dia. Numa ocasião, quandoeu jogava o pião na calçada, o brinquedo foi cair em cima doseu pé. A velha levantou-se como uma fúria direita a mim, ecom o seu chinelo de couro encheu-me o corpo de açoitesterríveis. Bateu-me como se desse num cachorro, rangendo osdentes de raiva. E se não fosse a tia Maria, que me acudiu,ela ter-me-ia despedaçado. Eu nunca tinha apanhado. Minha mãe,quando queria repreender-me por qualquer maldade, punha-me decastigo em pé ou sentado num lugar. Esta surra fora a primeirada minha vida. Chorei como um desenganado a tarde inteira,mais de vergonha que pelas pancadas. Não houve mimo que mefizesse calar. E quando a negra Luísa, passando, me dissebaixinho: "Ela só faz isto porque você não tem mãe", parece que a minha dor chegou ao extremo, porque foi quandochorei de verdade. À hora da ceia não quis ir para a mesa. Ouvi então minha tiaMaria dizer indignada: - Num menino daqueles não se bate! É tão sentido! E a velha Sinhazinha, replicando que era por isso que aosmeninos da Emília ninguém podia aturar, porque não lhes davameducação: - Meninos só se endireitam com chinelo! Fui dormir imaginando tudo o que era vingança contra o diaboda velha. Queria vê-la despedaçada entre dois cavalos como amadrasta da história de trancoso. E cortada aos pedaços naserra do engenho. Aquela injustiça brutal despertava em meucoração puro de menino os impulsos mais cruéis de desforra. Há oito dias que relampejava no horizonte. Meu avô ficava,de noite, por muito tempo, a espreitar o abrir rápido dorelâmpago para os lados de cima. E quando se cansava de tanto

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esperar, punha os moleques no seu lugar. Um dia, para as cordas das nascentes do Paraíba, via-se,quase rente ao horizonte, um abrir longínquo e espaçado derelâmpagos: era Inverno pür certo no alto sertão. Asexperiências confirmavam que com duas semanas de Inverno oParaíba apontaria na várzea com sua primeira cabeça de água. Orio no Verão ficava seco, capaz de se atravessar a pé enxuto.Apenas, aqui e ali, pelo seu leito, formigavam grandes poços,que venciam a estiagem. Nestes pequenos açudes pescava-se,lavavam-se os cavalos, tomava-se banho. Nas vazantesplantavam-se batatas doces e cavavam-se pequenas cacimbas parao abastecimento de gente que vinha das caatingas, andandoléguas, de pote à cabeça. O seu leito de areia brancacobria-se de salsa e junco verde-escuro, enquanto pelasmargens os marizeiros davam uma sombra amiga nos meios-dias.Nas grandes secas o povo pobre vivia da água salobra e dasvazantes do Paraíba. O gado vinha entreter a sua fome no capimralo que crescia por ali. Com a notícia dos relâmpagos nascabeceiras, entraram a arrancar as batatas e os jirimuns dasvazantes. O povo gostava de ver o rio cheio, a água correndo debarreira a barreira. Porque era uma alegria por toda a partequando se falava da cheia que descia. E anunciavam a chegada, como se se tratasse de visita de gente viva: - a cheia já passou na Guarita, vem em Itabaiana. A notícia corria de boca em boca. No engenho era no que sefalava. A canoa já estava calafetada e pintada de novo. Nóstodos dormíamos pensando na cabeça da cheia que não tardaria.Eu aguardava com uma ansiedade medonha essa cheia de que tantose falava. No Recife, vira o Capibaribe nos seus dias deenchente, coberto de balsas, mas o Capibaribe vivia todos osdias a encher e a vazar com as marés. Por isto pensava tantona cheia do Paraíba, como em coisa inédita para mim. Vieram dizer, ao engenho: - O chefe da estação de Pilar recebeu um aviso de que acheia já vinha em Itabaiana. Não custava, portanto, a apontar entre nós. Diziam que o riovinha de barreira a barreira. E uma tarde um moleque chegou àscarreiras, gritando: - A cheia vem no engenho de sen Lula! Todos correram para a beira do rio - os moleques, osmeninos, os trabalhadores do engenho, o meu avô. E começava-sea ouvir a gritaria da gente que ficava pelas margens: - Olha a cheia! Olha a cheia! - Ainda vem longe - diziam uns. - Qual nada! Olha os urubus a voarem por ali! De facto, dentro em pouco, um fio de água apontava, numaligeireza coleante e espantosa de cobra. Era a cabeça da cheiacorrendo. E quando passava por perto da gente, arrastandobasculhos e garranchos, já a vista alcançava o leito do riotodo tomado de água. - É muita água. O rio vai às margens. Vem com força de açudearrombado. O povo a gritar por todos os lados. E o barulho das águasque cresciam em ondas enchendo-nos os ouvidos. Num instantenão se via nem um banco de areia descoberto. Tudo estavainundado. E as águas subiam pelas barreiras. Começavam então

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a descer grandes tábuas de espumas, árvores inteirasarrancadas pela raiz. - Lá vem um boi morto! Olha uma cangalha! - E uma linha de madeira lavrada. - Aquilo é cumieira de casa que a cheia deitou abaixo. Longe ouvia-se um gemido como um urro de boi. Estavamtocando o búzio para os que ficavam mais distantes. O rumorque as águas faziam nem deixava ouvir-se o que gritavam dooutro lado do rio. As ribanceiras que a correnteza ruía porbaixo arriavam com estrondo abafado de terra caída. Com a noite, um coro melancólico de não sei quantos saposroncava sinistramente, como vozes que viessem do fundo daterra cavada pelos seus confins, pela verruma dos redemoinhos. Eu fiquei a pensar de onde viria tanta água barrenta, tantaespuma, tantos pedaços de pau. E custava a crer que umachuvada no sertão desse para tanta coisa. Saímos da beira do rio quase à hora da ceia. Meu avô, àmesa, contava episódios da enchente de 75: - O rio subiu até à calçada da casa-grande. O velho Calisto,ao querer salvar um animal, foi arrastado pela corrente. Eletinha perdido um escravo numa virada de canoa. A várzea ficoutoda debaixo de ágúa, com mais de um metro de lama. Mas há muitos anos que o Paraíba não repetia a façanha. Fui dormir com a cabeça cheia de tanta novidade. E altanoite acordámos com o barulho que ia pela casa. Eram as águasque estavam a crescer cada vez mais. E se continuassem assim,de manhã estariam dentro da casa-grande. Fomos ver o rio. E pouco andámos, porque já estava a entrarpelas estrebarias. O marizeiro ficava em baixo; a correntecorria por cima dele. Era um mar de água roncando. O meu avô,com aquele seu capote de lã, comandava o pessoal como umcapitão de navio em tempestade. Operigo estava na casa depurgar, pois a safra de açúcar do ano encontrava-se nos grandes caixões de madeira e no tanques cheios de mel de furo. Não havia nada a fazer. Como evitar a invasão dos tanques Emudar para onde aquela enormidade de açúcar? - É preciso mandar uma canoa para o povo da Ponte. Lá é maisbaixo, deve haver precisão de socorros. E José Ludovino seguiu com a canoa pela várzea. Já estavatudo tomado pelas águas. Púnhamos marcos de pau para ver se orio baixava ou subia. Às três horas da manhã parara de encher.E ouvia-se por toda aquela extensão de águas como que umgemido soturno. E de quando em vez um rumor de pancada dasribanceiras que caíam. Não sei porquê, eu tinha vontade de que o rio continuasse aencher, a entrar por toda a parte com as suas águas sujas.Queria ver os baús nadando dentro de casa. A minha tia Mariaficava com as negras no quarto do oratório a rezar. Quando acordei, de manhã, a várzea era um lago de águabarrenta. Apenas, aqui e ali, uns pedaços verdes de canavial,como ilhas de verdura. O rio entrara pelos sangradouros daslagoas e deixava-nos cercados de um lado e de outro. Ia até ospés da caatinga. Meu avô, de pé, olhava de uma ponta da calçada as suasplantas de cana submersas, com a safra quase toda perdida. Masnão se lastimava, porque sabia que riqueza em limo Lhetrouxera o rio para as suas terras. Ele mesmo dizia:

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- Gosto mais de perder com água do que com sol. Mais tarde os canoeiros chegaram contando os trabalhos damadrugada. Encontraram gente dentro de casa com água pelopeito. Mulheres chorando, sem esperança de mais nada. Passarampara o alto para mais de cem pessoas, móveis, e criações.Tinha, porém, desaparecido o negro Salvador, quando procuravapassar a nado pelo riacho da Ponte. Era preciso mandar comidapara todo aquele povo desarvorado. Meu avô dava ordens paralevarem uma barrica de bacalhau. - E o povo de Maravalha? - perguntava ele aos canoeiros. - Estão em São Miguel. Mas o capitão Joca ficou. O riochegou ao batente da cozinha. Não se vê nem um pé de cana. Éum mar de água daqui até lá. A canoa passou por cima docerrado do engenho. Mas o rio, que vazara para mais de um metro, à noitinhacomeçou a encher outra vez. Nós íamos sair de casa num carrode bois para a caatinga. Era preciso fazer uma volta de léguapara chegar à estrada nova e alcançar uma bueira queatravessava a lagoa. Para os meninos tudo isto parecia umafesta. Saltávamos de contentes com as arrumações. E quandosaímos no carro parecia que íamos fazer uma daquelas nossasvisitas a outros engenhos. Pela estrada encontrávamos gentecom notícia da cheia para as bandas do Pilar. "Na Rua da Palhanão ficara uma casa de pé. A canoa virara-se, morrendo seispessoas. A ponte de Itabaiana acabou-se". E isto ia aumentando mais o pavor da minha tia Maria.Connosco vinham as costureiras e umas quatro negras. Noutrocarro, deitada, a avó Galdina paralítica. A velha Sinhazinhanão quisera vir: não ia abandonar o Cazuza sozinho. Os seusinimigos não podiam deixar de respeitar esta sua coragem. Enaquela hora perdoávamos-Lhe muito da sua ruindade. O carro chegou a casa do velho Amâncio às cinco horas damanhã. Todos estavam acordados. Pelo terreiro da casa viam-seos haveres dos refugiados, chegados ali primeiro do que nós.Eram, talvez, duas famílias, com os seus meninos, os seusporcos, suas panelas, as suas galinhas. Nós, os dacasa-grande, estávamos ali reunidos no mesmo medo, com aquelapobre gente do eito. E com eles bebemos o mesmo café comaçúcar em bruto e comemos a mesma batata doce do velhoAmâncio. E almoçámos com eles a boa carne-do-ceará com farofa. À noite dormimos em cama de vara. A chuva pingava dentro decasa por não sei quantas goteiras. E o cheiro horrível doschiqueiros de porcos pertinho da gente. Os outros refugiados ficaram na casa da farinha, pelo chão. Era tudo isto o que demelhor o pobre do velho Amâncio tinha para nos oferecer: estasua desgraçada e fedorenta miséria de pária. Depois chegou do engenho o mantimento que tínhamos esquecidocom a pressa. E a minha tia Maria distribuiu por aquela gentetoda a carne-de-sol e o arroz que nos trouxeram. Eles pareciamfelizes de qualquer forma, muito submissos e muito contentescom o seu destino. A cheia tinha-lhes comido os roçados demandioca, levando o quase nada que tinham. Mas não levantavamos braços para imprecar, não se revoltavam. Eram unscordeiros. - O que vale é a saúde e a protecção de Deus - diziam sempre. Mas, coitados, com que saúde e com que Deus estavam eles

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contando! No outro dia de manhã veio um portador chamar-nos. O rio jáestava no leito. Atrelaram os bois ao carro e descemos para avárzea. Do alto podia-se avistar o grande lençol de águasbarrentas que corria lá em baixo. E quando chegámos mais paraperto, a várzea estendia-se aos nossos olhos, ainda coberta deágua: é que os sangradouros naturais tinham-se obstruído comos depósitos de areias trazidas pela corrente. Era precisocavar com uma enxada para que as águas descessem outra vezpara o rio. Nós, os meninos, queríamos encontrar os estragosda cheia. Parece que havia um certo prazer, uma vaidade nossa,em que também no engenho ela tivesse deixado sinais dedestruição. Pelo caminho o homem que nos viera chamar contara como oscanoeiros tinham encontrado o corpo do negro Salvador: - Zé Guedes viu uma coisa amarela a boiar. Pensou que fosseuma jaca. Meteu o remo: era a cabeça do negro coberta de lama,engalhada num pé de cabreira. Estava com três dias de afogado.E os urubus por cima, rondavam. Vimos então o estado em que as águas deixaram os canaviais.Parecia que uma chuva pesada, de oca, caíra por ali; tudoparecia cor de barro vermelho. - O coronel este ano não faz duzentos pães de açúcar - diziao carreiro. - Só ficou com cana para semente. E por onde as águas tinham passado, espelhava ao sol umalama cor de moedas de ouro: o limo que ia fazer a fartura dosnovos partidos. O meu avô esperava no terreiro. Quando chegámos, começou ainterrogar-nos sobre tudo por que tínhamos passado. - A cheia destruiu mais que em 75. O Joca perdeu a sementede cana. A linha férrea foi arrastada em mais de um quilómetrono Engenho Novo. No Espírito Santo caíram ruas de casas. Hámuita Miséria. Muita fome no povo. O governo está a mandarmantimentos. Havia uma sombria tristeza na gente da casa-grande. Há trêsdias que ali não se dormia, comia-sa à pressa, com o pavor dainundação. O engenho e a casa da farinha repletos de flagelados. Era apopulação das margens do rio, arrasada, morta de fome, se nãofossem o bacalhau e a farinha seca da «fazenda»... Conversavamsobre os incidentes da enchente, achando graça até nasperipécias de salvamento. João de Umbelino mentia à vontade,contando fanfarronadas a que ninguém assistira. Genteesfarrapada, com meninos amarelos e chorões, com mulheres depeitos murchos e homens que ¨ninguém dava nada por eles- masuma gente com quem se podia contar na certa para o trabalhomais duro e a dedicação mais canina. Saí¨mos então para ver de perto o que o rio tinha feito. Naparede da estrebaria e nos paus do cercado ficara a marca daságuas. A boca da fornalha parecia um açude; com mais um palmoa casa de purgar ter-se-ia ido embora, O cercado era umatoleiro por onde os bois iam deixando as marcas dos cascos.Por toda a parte um cheiro aborrecido de lama. Os galhos dos marizeiros, todos pendidos para um lado, como setivessem sido torcidos por uma ventania. E garranchos eramarias secas por cima deles. O engenho todo estava triste.Só os canoeiros alegres, passando a bom preço, de um lado para

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outro, os aguardenteiros que vinham do contrabando de cachaçade Pernambuco. E para nós era a única coisa a ver: a canadacheia de ancoretas, e os cavalos puxados à corda, nadando, e agritaria obscena do pessoal. O resto, tudo muito triste, elama por toda a parte. Mandaram-me, para aprender as primeiras letras, para casa deum Dr. Figueiredo, que viera da capital passar um tempo navila do Pilar. Pela primeira vez eu ia ficar com genteestranha um dia inteiro. Fui ali recebido com os agrados e as condescendências quereservavam para o neto do prefeito da terra. Tinha o meumestre uma mulher morena e bonita, que me beijava todas asvezes que eu chegava, que me fazia as vontades: chamava-seJudite. Gostava dela de forma diferente da que sentia pelaminha tia Maria. Ela sempre que me ensinava as letrasdebruçava-se por cima de mim. E os seus abraços e os seusbeijos eram os mais quentes que já tinha recebido. E o Dr. Figueiredo não parava no lugar. Só ficava quieto aler os jornais e os livros, que tinha muitos pela mesa. Amulher era quem me ensinava, quem tomava conta de mim, Uma vezví-a a chorar, com os olhos vermelhos e o Dr. Figueiredo sairde casa batendo com a porta. E de outra, enquanto eu ficavasozinho na sala com o meu livro na mão, ouvi no interior dacasa um ruído de pancadas e uns gritos de quem estivesse aapanhar. Compreendi então que a minha bela Judite apanhava domarido. Tive mesmo o ímpeto de correr para a rua e chamar opovo para lhe acudir. Mas fiquei quieto na ladeira,escutando-lhe os soluços abafados. Mais tarde ela chegou parame ensinar, e abraçou-me e beijou-me como nunca. Fiquei apensar no que sofria a minha amiga, na convivência daquelehomem magro e alto. E o meu coração sentiu-se cheio de uma afeição estranha pelasua mulher. Era tão terna para mim, punha-me no colo para meacarinhar, para me dizer que me tinha um amor de mãe. Eusentia o seu sofrimento como se fosse o meu. Foi ali com ela, sentindo o cheiro dos seus cabelos pretos ea boa carícia das suas mãos morenas, que aprendi as letras doalfabeto. Sonhava com ela de noite, e não gostava dos domingosporque ia ficar longe dos seus beijos e abraços. Depois mandaram-me para a aula de outro professor, comoutros meninos, todos de gente pobre. Havia para mim um regimede excepção. Não ralhavam comigo. Existia um copo separadopara eu beber água, e um tamborete de palhinha para «o neto docoronel Zé Paulino». Os outros meninos sentavam-se em caixotesde gás. Lia-se a lição em voz alta. A tabuada era cantada emcoro, com os pés balançando, num ritmo que ainda hoje tenhonos ouvidos. Nas sabatinas nunca levei uma palmatoada, masquando acertava mandavam-me que desse nos meus coMpetidores.Eu sentia-me bem com todo esse regime de miséria. Os meninosnão me tinham raiva. Muitos deles eram de moradores doengenho. Parece que ainda os vejo, com seus bauzinhos defolha, voltando a pé para casa, a olharem para mim, de bolsa atiracolo, na garupa do cavalo branco que me levava e trazia daescola. Outro mestre que eu tive foi o Zé Guedes, meu professor demuita coisa ruim. Levava-me e trazia-me da escola todos osdias. E na meia hora que estava com ele, de ida e volta,

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aprendi coisas mais fáceis de aprender que a tabuada e asletras. Contava-me tudo que era história de amor, sua e dosoutros. - Ali mora a Zefa Cajá. E lá vinha com os detalhes, com as coisas erradas da vidadesta mulher. Às vezes parava à porta, e era uma conversacomprida, cheia de ditos e de descaramentos. - Olha o menino, Zé Guedes! Ó homeM desbocado! Mas ele pouco se importava comigo, Eu mesmo gostava de ouviro palavreado imundo. Pelo caminho o moleque continuava nassuas lições, falando de mulheres e de doenças do mundo. E,nome por nome, ele dava-os de todas as doenças: cavalo, mula,crista-de-galo. As velhas, da estrada, pediam para comprar coisas na vila:carretéis de linha, papel de agulhas. Zé Guedes entregava asencomendas, puxando conversas compridas com as mulatinhas. - Aquela ali já foi passada. Quem manda nela é o doutorJuca. E eu ia sabendo que o meu tio Juca tinha mulatas em quemmandava. De uma feita desceu numa casa de palha, onde sómorava uma negra. Ficou lá dentro uma porção de tempo. Quandosaía, ouvi a mulher dizemdo: - Não vá esquecer-se do corte de chita, seu xeixeiro! Eram assim as minhas lições de porcaria com aquele mestreque não se contentava com o lado teórico do seu magistério etambém dava as suas lições de coisas. Nós tínhamos, porém, no curral pegado à casa-grande, umaaula pública de amor. O que Zé GuedeS nos contava de si com asZefas, os touros e as vacas faziam-no entrar peloentendimento. Era ali um bom campo de demonstração. No cercadodos engenhos o menino inicia-se nestes mistérios do sexo,antecipando-se por muitos anos no amor. A reprodução daespécie ficava para nós um acto sem grandeza nenhuma. Víamosas vacas e as porcas nas dores do parto. E éramos quase osseus assistentes. Lembro-me de uma vaca malhada que morreu poruma malvadez do meu primo Silvino. Ele meteu-se a médico, ecom uma imperícia infeliz matou a pobre novilha turina do meuavô. Ninguém soube no engenho deste crime cometido com a minhacumplicidade. Concorríamos também no amor com os touros e os pais dochiqueiro. Tínhamos as nossas cabras e as nossas vacas paraencontros de lubricidade. A promiscuidade selvagem do curralarrastava a nossa infância às experiências de prazeres que nãotínhamos idade de gozar. Era apenas uma buliçosa curiosidadede menino, a mesma curiosidade que nos levava a ver o quehavia por dentro dos brinquedos. Uma tarde o primo Silvino disse-me: - Hoje vamos fazer porcaria no curral. De facto, à boca da noite, quando o gado chegado da pastagemdescansava, uns deitados e outros parados a olhar para o chão,eu vi o primo Silvino trepado na cerca, procurando pôr-se emcima de uma vaca mansinha. Nós todos ficávamos de longe, mudose sôfregos, como se fôssemos cúmplices de um crime. - Sai daí, menino sem vergonha. Vou dizer ao coronel. Meu avô levava-me sempre nas suas visitas de corregedoràs terras do seu engenho. Ia ver de perto os seus moradores,fazer uma visita de senhor aos seus campos. O velho José

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Paulino gostava de percorrer a sua propriedade, de percorrê-lacanto por canto, entrar pelas suas matas, olhar as suasnascentes, saber das precisões do seu povo, dar os seus gritosde chefe, ouvir queixa; e implantar a ordem. Andávamos muitonessas suas visitas de patriarca. Ele parava de porta emporta, batendo com a tabica de cipó-pau nas janelas fechadas.Acudia sempre uma mulher com cara de necessitada: a pobremulher que paria os seus muitos filhos em cama de vara e oscriava até grandes com o leite de seus úberes de mochila.Elas respondiam pelos maridos: - Anda no roçado. - Está doente. - Foi para a rua comprar gás. Outras lastimavam-se de doenças em casa, os meninos comsezões e o pai entrevado na cama. E quando o meu avô queriasaber porque o Zé Ursulino não vinha para os seus dias noeito, elas arranjavam desculpas: - Levantou-se hoje, do reumatismo. O meu avô então gritava: - Ponho-os fora. Gente safada, com quatro dias de serviçoadiantado e metidos no eito do Engenho Novo. Pensam queeu não sei? Deito fogo à casa. - É mentira, seu coronel, Zé Ursulino nem pode andar. Tomouaté purga de batata. O povo foi-lhe contar mentiras. SantaLuzia me cegue se estou a inventar. E os meninos nus, de barriga esticada como arco. E o maispequeno, na lama, a brincar com o barro sujo como se fosse comareia da praia. - Estamos a morrer de fome. Deus quisera que Zé Ursulinoestivesse com saúde. - Diga-Lhe que para a semana começa o corte da cana. E quase sempre mais adiante nós encontrávamos Zé Ursulino decacete na mão e com a sua saúde bem rija. - Já disse à sua mulher que o mando embora. Não vaitrabalhar na «fazenda» mas anda vadiando por aí. Não querocabras safados no meu engenho. E era a mesma conversa. Que para a semana ia pela certa. Queandava doente de novo, com dores pelo corpo todo. De outras vezes batíamos a uma porta onde não acudianinguém. Mais adiante a família toda estava agarrada à enxada:o homem, a mulher, os meninos. E vinham logo de chapéu na mãopedir às suas ordens. Era um rendeiro que não tinha aobrigação dos três dias no eito. Pagava o foro e ficava livreda servidão da bagaceira. O seu roçado de algodão e de favagarantia essa meia liberdade que gozava. Então meu avôperguntava pelo que se passava nos arredores, se alguém andavaa vender algodão por fora ou a levar lenha da mata paravender. - Que eu saiba não, seu coronel. - Pois você vigie por aqui. E depois: - Cabra bom - dizia-me. - Nunca me deu trabalho. E numa casa de palha uma mulher branca, como madapolão, semuma gota de sangue na cara, com um menino pequeno engatinhandono chão quente do terreiro e o outro de peito nos braços: eraa mulher de Chico Baixinho. Tinha parido há oito dias, e omarido estava ausente.

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- Ninguém sabe onde ele anda, seu coronel. Aquilo é umdesgraçado. Deixou-me de cama com a barriga a estalar, edanou-se. Só não morri à míngua porque o povo daqui mesocorreu. O meu avô dizia para ela ir buscar bacalhau ao engenho. Noutra casa o povo todo estava atacado de sezões. Tinhamvoltado da várzea de Goiana amarelos e inchados de paludismo. - Mande o menino buscar quinino ao engenho. Vocês saem daquicom saúde e voltam assim. em petição de miséria. Vão outra vezpara a Goiana. Eram assim as viagens do meu avô, quando ele saía a corrertodas as suas grotas, revendo as árvores do seu engenho.Ninguém Lhe tocava num capão de mato, que era o mesmo quearrancar um pedaço do seu corpo. Podiam roubar as mandiocasque plantava pelas chãs, mas não lhe bulissem nas matas. Elemesmo, quando queria fazer qualquer obra, mandava comprarmadeira aos outros engenhos. Os seus paus-darco, as suasperobas, os seus corações-de-negro cresciam indiferentes aomachado e às serras. Uma vez, numa das nossas viagens, vi-ofurioso como nunca. Entrávamos por uma picada na mata grande,e ouvimos um ruido de machado: - Quem lhe deu ordem para deitar abaixo este pau-darco? - Foi o doutor Juca - respondeu mais morto do que vivo o seuFirmino carpina. - Mas o senhor sabe que eu não quero que se meta machado poraqui, com seiscentos mil diabos! E voltou para casa sem dar mais uma palavra, sem parar emparte alguma. Nos dias de festa tiravam um pano que cobria o oratóriopreto de jacarandá e acendiam as velas dos castiçais. O quartodos santos ficava aberto para toda a gente. Não havia capelano Santa-Rosa nem nos outros engenhos, talvez porque ficassempertinho dali as duas matrizes do Pilar e de São Miguel. Emesmo o meu avô não era um devoto. A religião dele nãoconhecia a penitência e esquecia alguns dos mandamentos da leide Deus. Não ia às missas, não se confessava, mas em tudo queprocurava fazer lá vinha um se-Deus-quiser outenha-fé-em-Nossa Senhora. A minha tia Maria cuidava deensinar-me e aos moleques as rezas que ainda hoje sei. Ao meuavô, nunca o vi rezar. Com ele, contavam os padres das duasfreguesias nas suas festas e nas suas necessidades. Apesar deque morria pelas suas matas, mandara uma vez que os carp inasdeitassem abaixo a madeira que o padre Severino quisesse paraas obras da igreja. Quando acendiam as velas do quarto dos santos, nós íamos veras estampas e as imagens. Havia um menino Jesus que era onosso encanto, um menino bonito com os olhos azuis da primaLili e um nrriso bonzinho na boca. Trazia numa das mãos umlongo bastão de ouro e na outra a bola do mundo. - Se aquela bola caísse, o mundo acabava-se. Mas o nosso menino, vestido de manto azul estrelado, traziapor debaixo das súas vestes uma rolinha bicuda de criança.e nós levantávamos o manto, de quando em vez, espantados deque a gente do Céu também precisasse daquelas coisas. - Os meninos estão a mexer no santuário. Vinham ralhar com a gente. As estampas das paredes contavam histórias de mártires. Um

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São Sebastião atravessado de setas, com os seus milagres emredor do quadro. O Anjo Gabriel com a espada no peito de umdiabo de asas de morcego. São João com um carneirinho manso.São Severino fardado, estendido num caixão de defunto. Umsanto comprido com uma caveira na mão. Os moleques entãomostravam-nos uma santa mulata com uma criança no braço, umaque tinha no rosto a marca de ferro em brasa. - Ela era uma escrava - contavam os moleques. - E a senhoraqueimou-lhe o rosto com um garfo quente. Eu pensava sempre na tia Sinhazinha quando os molequesfalavam nesta senhora malvada. Mas o quarto dos santos estava sempre fechado. Não havia noengenho o gosto diário da oração. Talvez que o exemplo de meuavô, justo e bom como ele era, mas indiferente às práticasreligiosas, arrastasse os seus a esses afrouxamentos dedevoção. Pagava-se muita promessa, dava-se muito dinheiro paraas festas de Nossa Senhora. Mas nunca vi ninguém do engenhonuma mesa de comunhão, nem mesmo a tia Maria. O povo pobre, doeito, só se confessava na hora da morte, quando, à reveliadeles, mandavam chamar o padre à pressa. E, no entanto, nãotiravam Nosso Senhor da boca e faziam novenas a propósito detudo. A não ser a tia Maria, que me ensinava o padre-nosso,ninguém ali me falava de catecismo. A religião que eu tinhavinha ainda das conversas com a minha mãe. Sabia que Deusfizera o mundo, que havia Céu e Inferno, e que a gente sofriana terra por causa de uma maçã. Os moleques também não sabiammais do que eu. Nas missas de festa a que assistíamos na vila,pouco víamos o padre no altar. Andávamos pelos botequins, nocapilé, ou tirando sorte de papeizinhos enrolados. Pela Semana Santa contavam-nos as maldades dos judeus paracom Nosso Senhor - da coroa de espinhos, da lançada no coraçãoe do sangue que correu da ferida e abriu os olhos de um cegoque ficara por baixo da cruz. Na Sexta-feira Santa só se comiauma vez, no engenho. Vinha peixe fresco da cidade e parentesde outros engenhos: comia-se muito mais do que nos outrosdias. As negras na cozinha falavam do martírio de Jesus comuma compaixão de dentro da alma, e diziam que se o padre namissa do sábado não achasse a Aleluia, o mundo se acabaria deuma vez. Os moradores vinham então pedir o jejum, em bandos.Davam-Lhes bacalhau e farinha. Eles saíam com a mulher e osfilhos rotos, de saco às costas, como se estivessem fazendo umnúmero de via-sacra. O dia todo era triste. O comboio nãocorria na linha. Às vezes vinha ao engenho por este tempo uma velha, Totonha,que sabia uma Vida, Paixão e morte de Jesus-Cristo em verso enos deixava com os olhos molhados de lágrimas com a suanarrativa dolorosa. A velha Snhazínha dizia que Semana Santa boa era a doItambé. O padre Júlio beijava os pés dos pobres, faziaProcissão do Encontro e um sermão de lágrimas, que toda agente chorava na igreja. As negras ficavam pela cozinha,sentadas, conversando em cochichos sobre o dia. Não se tomavabanho de rio, para não se ficar nu na frente uns dos outros.Não se judiava com os animais. Não se chamava nomes a ninguém.Um canário que eu tinha apanhado, fizeram-me soltá-lo. E asnossas conversas avançavam até em corrigenda à vontade de

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Deus. Nós achávamos que Jesus Cristo devia ter liquidado todosos judeus e tomado conta de Jerusalém. Não atinávamos com agrandeza do sacrifício. Queríamos a vitória material sobre osseus algozes. Abriam, por esse tempo, o quarto dos santos. O santuáriocoberto de preto e as estampas viradas todas para a parede. Ossantos estavam com vergonha de olhar para o mundo. Era assim a religião do engenho onde me criei. O meu avô mandou prender o cabra no tronco. E nós fomosvê-lo, estendido no chão, com o pé metido no furo do suplício.Raramente eu tinha visto gente no tronco. Somente um negroladrão de cavalos ficara ali até que chegassem os soldados davila, que o levaram. Agora, porém, Chico Pereira estava lá,com os pés no buraco redondo. - É mentira daquela bicha sem vergonha. Ela deitou para cimade mim os estragos que os outros fizeram. Ela pode casar com odiabo, comigo não. O coronel mata-me, mas eu não me amarro comaquela peste. Vou para a cadeia, crio bicho na peia, mas nãovivo com aquela prostituta descarada. Eu não tapo os buracosdos outros. O cabra, deitado de costas, com os pés presos no tronco,impressionou-me com aquela sua revolta. Chico Pereira erarufião, moleque chibante da bagaceira, cheio de dinheiro enomes obscenos. Toda a gente acreditava que tivesse sido elemesmo o autor do mal feito à mulata Maria Pia. A mãe daofendida viera fazer queixas ao meu avô, atirando a coisa paracima do Chico Pereira. E ele ficaria no tronco até se resolvera casar com a sua vítima. No outro dia voltei para junto do prisioneiro. As pernaspresas já estavam inchadas, apertadas de mais no buraco dotronco. Ele quando me viu chamou-me: - Vá pedir à Maria Menina para me valer. A tia Maria disse-me: - Se ele deve, tem de pagar. Na hora do almoço eu mesmo fui levar ao preso o prato decomida. Estava com o corpo todo dormente. Aquela imobilidadede mais de vinte e quatro horas entorpecia-lhe a circulação. - Morro aqui e não caso. Aquela desgraçada paga-me. Ocoronel pode picar-me com um facão. Fiquei ao lado de Chico Pereira, deixei os meus primos e osmoleques. Não fui ao poço lavar os cavalos, para ficar comele, conversando, ouvindo as suas histórias, sentindo as suasangústias. Era uma injustiça o que estavam a fazer. Porque nãoseria mentira da mulata? Não havia ninguém no engenho queestivesse a favor do cabra. A moça tinha sido ofendida, e omoleque que pagasse o que devia. Chico Pereira só contavacomigo. À tarde, estava o meu avô sentado na sua cadeira, perto dabanca, no alpendre, quando chegaram Maria Pia e a mãe. Vinhamas duas a chorar. A velha correu logo para a tia Maria,ajoelhando-se aos seus pés: - Proteja a minha filha, Maria Menina... O meu avô ordenou que acabasse com aquele barulho. E mandoubuscar um livro que havia debaixo do santuário. - Você vai jurar em cima deste livro santo em como contará averdade toda. O cabra está no tronco. Ele nega, prefere morrera casar. Vamos, ponha a mão aqui em cima e diga o nome de quem

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lhe fez mal. Deu o livro vermelho com a cruz dourada na capa para a negrapôr a mão em cima. A velha e a filha ficaram fora de si.Aquele livro santo não era para menos. E então a mãe de MariaPia, como se estivesse com a faca nos peitos: - Menina, não lances a tua alma no Inferno... O povo todo tinha-se chegado para perto da mulata. - Vamos - disse o meu avô, com aquela sua voz de mando. E a mulata, com os olhos esbugalhados: - Juro que foi o doutor Juca quem me fez mal... O meu avô não deu uma palavra. Só disse: - Soltem o cabra. Corri para ver o Chico Pereira, na ânsia de encontrar o meuconstituinte inocente. Ele não podia andar. Os pés inchados não tocavam no chão. - Estou com um formigueiro no corpo todo. Eu não dizia que anegra não prestava? O doutor Juca vai ficar agora com maisesta às costas... Na casa-grande só se falava baixinho no caso. Minha tiaMaria não me deu palavra. À hora da ceia, meu avô pouco falou.Tio Juca não viera para a mesa. Apenas no fim o velho JoséPaulino se queixou: - Não sei para que servem os estudos. A gente gasta umdinheirão e eles voltam para fazer asneiras desta ordem... O caminho de ferro passava do outro lado do rio. Do engenhonós ouvíamos o comboio apitar, e fazía-se da sua passagem umaespécie de relógio de todas as actividades: antes do comboiodas dez, depois do comboio das duas. Costumávamos ir para a beira da linha ver de perto oscomboios de passageiros. E ficávamos em cima dos cortesolhando como se fossem uma coisa nunca vista os horários quevinham de Recife e voltavam da Paraíba. Mas proibiam-nos esseespectáculo, com medo das nossas traquinices pelo leito daestrada. E tinha razão de ser tanta cautela: um dos lancesmais angustiados da minha infância passei-o numa dessasesperas do caminho de ferro. O meu primo Silvino combinarafazer virar a máquina na rampa do Cabocho. Já de outra vez,com um pano vermelho que um moleque pregara num pau, ummaquinista alterara o horário das dez. Agora o que o meu primoqueria era um desastre. E colocou uma pedra mesmo na curva darampa. Nós ficámos à espreita, esperando a hora. Quando vi ocomboio aproximar-se como um bicho comprido que viesse parauma armadilha, senti uma agonia dentro de mim que eu não soubeexplicar. Parecia que eu ia ver ali perto de mim pedaços degente morta, cabeças rolando pelo chão, sangue correndo nomeio de ferros desmantelados. E num ímpeto, já o comboio vinharoncando pertinho, corri para a pedra e com toda a minha forçaempurrei-a para fora. Um instante depois ouvi o ruído damáquina que passava. Fiquei sozinho, ali no ermo do caminho de ferro. Os meusprimos e os moleques tinham corrido. O meu coração batiaapressado. Parecia que eu era o único culpado daquela desgraçaque não acontecera. Comecei a chorar, com medo do silêncio.Muito de longe o comboio apitava. E banhado em lágrimas fuiPara casa. Nunca mais em minha vida o heroísmo me tentaria poressa forma. Na mata do Rolo apareciam lobisomens. Na cozinha era no que

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se falava, num vulto daninho que agarrava gente para lhe bebero sangue. Manuel Severino, quando voltava de uma novena, foraperseguido pelo bicho. Ele mesmo contava: - Eu vi o vulto partir para cima de mim, e dei às pernasnuma corrida de cavalo desembestado. Olhei para trás e só vi o mato bulindo com um pé-de-vento de arrancar raízes. As notícias do bicho misterioso chegavam com todos osdetalhes. Uns afirmavam que José Cutia estava encantado outravez. José Cutia era um comprador de ovos da Paraíba, un pobrehomem que não tinha uma gota de sangue na cara. Andava semprede noite, talvez para melhor fazer as suas caminhadas, semsol. E por isto tinha-se na certa que era ele o lobisomem. - Ele quer corar com o sangue dos outros... E havia gente que até vira José Cutia por debaixo dasingazeiras transformando-se em bicho. As unhas cresciam comolâminas enormes, os pés ficavam como os das cabras, e oscabelos eram crinas de cavalo. Diziam que o homem grunhia comoum porco na faca, nos momentos de se encantar. Ele não queria,mas o seu corpo não podia viver sem sangue. E tornava-selobisomem contra vontade. O povo não lhe tinha raiva; tinha até pena, Porque era certoque José Cutia era mandado de noite por uma força que não eradele. Mas nós, quando o víamos passar com as suas cestas deovos, fugíamos da estrada com medo. Diziam também que ele comia o fígado dos meninos e que tomavabanho com o sangue de crianças de peito! - Lá vem o papa-figo! - era assim que diziam para nos correrde qualquer parte. E as histórias corriam como os factos mais reais destemundo. Agora era o encontro do padre Ramalho com o lobisomemna mata. O padre ia para a extrema-unção a um doente nosCaldeiros, quando viu uma coisa puxando pelo rabo do cavalo.Chicoteou-o, meteu as esporas, e nada. O cavalo parecia com ospés enterrados no chão. Olhou para trás, viu o bicho querersaltar para cima dele. Tirou do bolso a caixinha já com ahóstia consagrada, e apontou. Ouviu o baque de um corpo todo,e um gemido prolongado de moribundo. O cavalo tomou as rédeas,largando numa correria. No outro dia encontraram José Cutiadesfalecido na estrada. E o lobisomem bebia sangue também dos animais, chupava oscavalos no pescoço. O poldro coringa do meu avô amanheceu umdia com um golpe jorrando sangue. O lobisomem andara de noitepelas estrebarias. Eu acreditava em tudo isto, e muitas vezes fui dormir commedo destes bichos infernais. Na minha sensibilidade iacrescendo este terror pelo desconhecido, pelas matas escuras,pelos homens amarelos que comiam o fígado dos meninos. E atégrande, rapaz de colégio, quando passava pelos sombriosrecantos dos lobisomens era assobiando ou cantando alto paraafugentar o medo que sentia. Os zumbis também existiam noengenho. Os bois que morriam não se enterravam. Arrastavam-separa o cemitério dos animais, à beira do rio, debaixo dosmarizeiros, onde eles ficavam para o repasto dos urubus. Delonge sentia-se o hálito podre da carniça, e a gente via oscomensais disputando os pedaços de carne e as tripas docadáver. O zumbi, que era a alma dos animais, ficava por ali a

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rondar. Não tinha o poder maligno dos lobisomens. Não bebia sanguenem dava surras como as caiporas. Encarnava-se em porcos ebois, que corriam pela frente da gente. E quando se procuravaagarrá-los, desapareciam por encanto. Ao velho Fausto, maquinista, uma vez, indo para o sítio daPaciência, deparou-se-lhe um porco-espinho a roncar. Para ondeia, ia o porco, como um cachorro de fila. E ele, perdendo acalma, deu com o seu cacete de jucá, com toda a força, nolombo do barrão: foi num toco preto de pau que bateu. Eles contavam-me estas histórias tão detalhadamente, queninguém podia suspeitar de mentira. E a verdade é que para mimtudo isto criava uma vida real. O lobisomem existia, era decarne e osso, bebia sangue de gente. Eu acreditava nele commais convicção do que acreditava em Deus. Ele ficava tão pertoda gente, ali na mata do Rolo, com as suas unhas de espetos eos seus pés de cabra! Deus fizzera o mundo somente. Eradistante dos nossos medos, e nós não o víamos como o JoséCútia com o seu cesto de ovos. Pintavam o lobisomem com umarealidade tão da terra que era como se eu o tivesse visto. DeDeus, tinha-se uma ideia vaga de sua pessoa. Um homem bom, comúm Céu para os justos e um Inferno para a gente ruim como avelha Sinhàzinha, com caldeiras e espetos quentes. Mas tudoisto depois que o sujeito morresse. O lobisomem lutava corpo acorpo com a gente viva. Era só sair antes da meia-noite para amata do Rolo, e encontrá-lo. Punham-nos a dormir embalando-nos com o bicho-carrapato. Acabra-cabriola, a caipora, encontravam na mata os caçadoressolitários. A burra-de-padre andava tinindo as correntes dassuas patas pelos portais distantes. Um mundo inteiro deduendes em carne e osso vivia para mim. E o que de Deus noscontavam era tudo muito no ar, muito do Céu, muito do começodo Mundo. É verdade que os sofrimentos de Jesus Cristo naSemana Santa nos tocavam profundamente. Mas Jesus Cristo erapra nós diferente de Deus, Deus era um homem de barbasgrandes, e Jesus era um rapaz. Deus nunca nascera, e Jesus tivera uma mãe, aprendera a ler, ouvira ralhar, foramenino como os outros. E nós não sabíamos compreender osmistérios da Santíssima Trindade. Só depois o catecismo viriadestruir a minha crença absoluta nos bichos perigosos doengenho. Muita coisa deles, porém, ficou por dentro da minhaformação de homem. A velha Totonha, de quando em vez, batia no engenho. E eraum acontecimento para a meninada. Ela vivia de contarhistórias de trancoso. Pequenina e toda engelhada, tão leveque uma ventania poderia levá-la, andava léguas e léguas a pé,de engenho a engenho, como uma edição das Mil e Uma Noites.Que talento ela possuía para contar as suas histórias, com umjeito admirável de falar em nome de todos os personagens! Semum único dente na boca, e com uma voz que dava todos os tonsàs primeiras. As suas histórias para mim valiam tudo. Ela também sabiaescolher o seu auditório. Não gostava de contar para o primoSilvino, porque ele se punha a tagarelar no meio dasnarrativas. Eu ficava calado, quieto, diante dela. Para esteseu ouvinte a velha Totonha não conhecia cansaço. Repetia,contava mais uma, entrava por uma perna de pinto e saía por

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uma perna de pato, sempre com aquele seu sorriso de avó degravura dos livros de histórias. E as lendas eram suas,ninguém as sabia contar como ela. Havia uma nota pessoal nasmodulações da sua voz e uma expressão de humanidade nos reis enas rainhas dos seus contos. O seu Pequeno-Polegar eradiferente. A avó que engordava os meninos para comer era maiscruel que a das histórias que outros contavam. A velha Totonha era uma grande artista para dramatizar. Elasubía e descia ao sublime sem forçar as situações, como acoisa mais natural deste mundo. Tinha uma memória prodigiosa. Recitava contos inteiros em verso, intercalando de vez emquando pedaços de Prosa, como notas explicativas. Havia ahistória de um homem condenado à morte. Os sinos já dobravampara o desgraçado que caminhava para a forca. Era acusado porcrime de morte. Todos os indícios eram contra ele. E quando ocortejo passava pela porta da casa de sua mulher em lágrimas,um filho seu que mamava tirou a boca do peito e começou afalar em verso e descobriu tudo, salvando o pai que ia morrerinocente. Os versos que esse menino recitava, a velha Totonhadeclamava-os com uma expressão de dor de arrepiar. As lágrimasvinham-me aos olhos com aquele lamento fanhoso de menino depeito a cantar. Havia sempre reis e rainhas nus seus contos, e forca eadivinhações. E muito da vida, com as suas maldades e as suasgrandezas, encontrava naqueles heróis e naqueles intrigantes,que eram semPre castigados com mortes horríveis. O que fazia avelha Totonha mais curiosa era a cor local que ela punha nosdescritivos. Quando ela queria pintar um reino era como seestivesse a falar de um engenho fabuloso. Os rios e asflorestas por onde andavam os seus personagens pareciam-semuito com o Paraíba e a mata do Rolo. O seu barba-Azul era umsenhor de engenho de Pernambuco. A história da madrasta que enterrara uma menina era a suaobra-prima. O pai saíra para uma viagem comprida, deixando afilha, que ele amava mais do que tudo, com a sua segundamulher. Quando partiu, encheu a mulher de recomendações, paraque tivesse todos os cuidados com a filha. Era menina decabelos louros, linda como uma princesa. A madrasta, porém, não lhe queria bem com os ciúmes do amorde seu marido pela menina. Começou, então, a maltratar amenina. Ela era quem ia de pote à cabeça buscar água ao rio,quem tratava dos porcos, quem varria a casa. Nem tinha tempopara brincar com as suas bonecas. Parecia uma criada, com oscabelos maltratados e a roupa suja. Um dia a madrasta mandou-a ficar debaixo de um pé defigueira, com uma vara na mão a espantar os sabiás das frutas.E a menina passava o dia inteiro enxotando os passarinhosfamintos. As rolas lavandeiras, aquelas que lavavam a roupa deNosso Senhor, vinham conversar com ela, contavam-lhe históriasdo Céu. Mas um dia ela pôs-se a olhar para o mundo bonito,para o céu azul e a alegria toda do canto dos pássaros. Nasombra da figueira, com aquele mormaço do meio-dia, adormeceusonhando com o pai que andava longe e com os brinquedos quetraria. E os sabiás depenicaram os figos da figueira. Era oque a madrasta queria. Agarrou na menina, deu-lhe uma sova dematar, e enterrou-a, ainda viva, na beira do rio. De volta opai chorou como um desgraçado, com a notícia da morte da

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filha. A madrasta disse-lhe que a menina adoecera desde queele saíra de casa: - Não houve remédio Para a pobrezinha. Uma manhã, porém, o capineiro do engenho saiu para cortarcapim para os cavalos. Uma touceira bem verde crescia do meiodo capinzal. Ele meteu a serra. Ouviu então de dentro da terrauma voz muito de longe. Pensou que fosse engano dos seusouvidos e meteu outra vez a serra. Aí uma voz dorida, como ade uma alma sofrendo, levantou-se numa cantiga:

Capineiro de meu pai, não me corte os meus cabelos. Minha mãe me penteou, minha madrasta me enterrou, pelos figos da figueira que o passarinho picou.

O capineiro assombrado correu para chamar o senhor deengenho. E voltaram com a enxada, e cavaram a terra. A meninaestava verde como uma folha de mato. Os cabelos crescidos emtouceiras de capim de planta. Os olhos cheios de terra. E asunhas das mãos pretas e enormes.O senhor de engenho chorou como um doido, abraçando e beijandoa filhinha. No engenho foi uma festa que durou muitos dias. Osnegros dançaram o coco duas semanas e Muitos escravos tiveramcartas de alforria. E amarraram a madrasta às pernas de doispoldros bravos. Os pedaços dela ficaram pela estrada a cheirarmal. Havia também umas viagens de Jesus Cristo com os Apóstolos.Chegava Jesus para dormir num rancho com os seus companheiros.Os donos da casa eram pobres de fazer pena. Nem um pedaço depão tinham para os hóspedes. Jesus mandou Pedro buscar o sacoque ficara com os mantimentos. - Mestre, o saco está vazio. - Homem de pouca fé, vai ver o saco. MaS Pedro sabia que deixara o saco sem coisa nenhuma, masfoi. E encontrou duas cargas de farinha e de carne na porta. MaS, Pedro nestas histórias era um homem que só acreditavano que via e estava sempre a levar descomposturas de NossoSenhor. A velha Totonha sabia um poema a propósito do naufrágio dopaquete Baía nas costas de Pernambuco. Um náufrago contava oque vira do desastre:

Oh, que dia de juízo! Oh, que dia de horror! Só as pedras não choravam, que não sentiam dor. Ó mestres e contramestres, pilotos e capitão, vamos ver nosso Baía se quer afundar ou não.

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Incidente por incidente eram narrados nestes versos: meninosagarrados às mães, em pranto; um choro angustiado de gente quevai morrer; a água entrando dentro do navio; uma velhasalvando-se num garajau de galinhas; um homem rico chamado Pataca-Lisa correndo para dentro docamarote para buscar um pacote de dinheiro e não voltandomais: foi ao fundo com a sua riqueza. Todo o poema era umaabundância de detalhes. E na voz plástica da velha a tragédiaparecia a dois passos de nós. Ficava arrepiado com esse cantosoturno. Vinha-me então um medo antecipado de embarcar emnavios, pelo horror das penas do naufrágio desse pobre Baía. Depois sinhá Totonha saía para outros engenhos, e eu ficavaà espera do dia em que ela voltasse, com suas histórias semprenovas para mim. Porque ela possuía um pedaço do génio que nãoenvelhece. Restava ainda a senzala dos tempos do cativeiro. Uns vintequartos com o mesmo alpendre na frente. As negras do meu avô,mesmmo depois da abolição, ficaram todas no engenho, nãodeixaram a «rua», como elas chamavam à senzala. E ali forammorrendo de velhas. Conheci umas quatro: Maria Gorda,Generosa, Galdina e Romana. O meu avô continuava a dar-lhes decomer e vestir. E elas a trabalharem de graça, com a mesmaalegria da escravidão. As suas filhas e netas iam-lhessucedendo na servidão, com o mesmo amor à casa-grande e amesma passividade de bons animais domésticos. Na rua ameninada do engenho encontrava os seus amigos: os moleques,que eram os companheiros, e as negras que lhes deram os peitospara mamar; as boas servas nos braços de quem se criaram, Alivivíamos misturados com eles, levando desandas das negras maisvelhas, iguais aos seus filhos moleques, napartilha de seus carinhos e de suas zangas. Nós não éramosseus irmãos de leite? Eu não tivera estes irmãos porquenascera na cidade, longe da salubridade daqueles úberes deboas turinas. Mas a mãe de leite de dona Clarisse, a tiaGenerosa, como a chamávamos, fazia as vezes de minha avó. Todacheia de cuidados comigo, ralhava com os outros por minhacausa. Quando reclamavam por tanta parcialidade a meu favor,ela só tinha uma resposta: - Coitadinho, não tem mãe. Nós mexíamos pela senzala, nos baús velhos das negras, naslocas que elas faziam pelas paredes de taipa, para os seus cofres, e onde elas guardavam os seus rosários,os seus ouros falsificados, os seus bentos milagrosos. Nas paredes de barro havia sempre santos dependurados, e numcanto a cama de tábuas duras, onde há mais de um século faziamo seu coito e pariam os seus filhos. Não conheci marido de nenhuma, e no entanto viviam debarriga enorme, perpetuando a espécie sem previdência e semmedo. Os moleques dormiam nas redes fedorentas; o quarto todocheirava horrivelmente a mictório. Via-se o chão húmido dasurinas da noite. Mas era ali onde estávamos satisfeitos, comose ocupássemos aposentos de luxo. O interessante era que nós, os da casa-grande, andávamosatrás dos moleques. Eles dirigiam-nos, mandavam mesmo em todasas nossas brincadeiras, porque sabiam nadar como peixes,andavam a cavalo de todo o jeito, matavam pássaros ao arco,tomavam banho a todas as horas e não pediam ordem para sair

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para onde quisessem. Tudo eles sabiam fazer melhor do que agente: soltar papagaios, brincar ao pião, jogar a castanha. Só não sabiam ler. Mas isto, para nós, também não pareciagrande coisa. Queríamos viver soltos, com os pés nus e acabeça ao tempo, senhores da liberdade que os moleques gozavama todas as horas. E eles às vezes abusavam deste poderio, dafascinação que exerciam. Pediam-nos para furtar coisas dacasa-grande para eles: laranjas, sapotis, pedaços de queijo. Trocavam connosco os seus arcos e os seus piões pelosgéneros que roubávamos da despensa. E iniciavam-nos nasconversas picantes sobre as coisas do sexo. Por eles comecei aentender o que os homens faziam com as mulheres, por ondenasciam os meninos. Eram uns óptimos repetidores de HistóriaNatural. Andávamos juntos nas nossas libertinagens pelo cercado.Havia um quarto dos carros onde iam ficando os veículos velhosdo engenho. Dali fazíamos uma espécie de lúpanar para jardimde infância. A nossa doce inocência perdia-se assim nessasconversas parvas, no contacto libidinoso com os moleques dabagaceira. As megras, porém, respeitavam-nos. Não abriam aboca para imoralidades na nossa frente. Estavam elas nas suaspalestras de intimidade de cada uma, e mal nos viam mudavam deassunto. E no entanto recebiam os seus homens no quarto com osfilhos. O meu primo Silvino contou-nos um dia o que vira noquarto da negra Francisca: - Zé Guedes numa cama de vara ringindo. E todos os anos pariam o seu filho. Avelina tinha filho doZé Ludovina, do João Miguel destilador, do Manuel Pedropurgador. Herdavam das mães escravas esta fecundidade de boasparideiras. Eu vivia assim, no meio dessa gente, sabendo detudo o que faziam, sabendo de seus homens, de suas brigas, desuas doenças. No quarto da negra Maria Gorda não se podia entrar. Nuncaconseguíamos aproximar-nos desta velha africana. Ela não sabiafalar, articulava uma meia língua, e à hora do almoço e dojantar saía da loca pendida em cima de uma vara para ir buscara ração. Gritava com os moleques e as negras, com aquelesbeiços caídos e os peitos moles dependurados. Era deMoçambique, e com mais de oitenta anos no Brasil, falava umamistura da língua dela com não sei quê. Esta velha fazia-memedo. As fadas perigosas dos contos da sinhá Totonha tinhammuito dela. O seu quarto fedia como carniça. Na noite de SãoJoão era à sua porta somente que não acendiam fogueira. Odiabo dançava com ela a noite inteira. Eu mesmo pensava que anegra tivesse qualquer coisa de infernal, porque, nela, nadasenti, nunca, de humano, de parecido com gente. Todos na ruatemiam a Maria Gorda. À tardinha sentava-se num caixote àporta de casa, para fumar o seu cachimbo de canudo comprido;mas ficava sozinha, resmungando ninguém sabe o quê. A velha Galdina era outra coisa. Africana também, de Angola,andava de muletas, pois quebrara uma perna ao fazer decabra-cega para brincar com os meninos. Fora ama de colo de meu avô, e todos nós a chamávamos de vovó. As negrasqueriam-lhe um bem muito grande. A tia Galdina era para elasuma espécie de dona da rua. Não se falava com ela aos gritos,e davam-lhe o tratamento de vossa mercê. Eu vivia em conversacom ela, atrás das suas histórias da costa de África. Viera de

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lá com dez anos. Furtaram-na ao pai. Um seu irmão vendera-aaos compradores de negros, e marcaram-na no rosto a ferro embrasa. Contava a sua viagem de muitos dias: os negrosamarrados e os meninos soltos; de dia punham todos a tomar solonde viam o céu e o mar. Já estava contente com aquela vida denavio. O veleiro corria como o vapor na linha. E um diachegaram a terra. Ela levou muito tempo ainda a ser comprada. Os homens que vinham, queriam mais gente grande e molecastaludas. A vovó contava que via almas, pássaros brancos batendo asaspelas paredes. Na viagem, estas almas, de noite, ficavam avoar por cima dos negros amarrados. E ensinava-nos uns restosde palavras que ela ainda sabia da sua língua. Na noite deNatal atrelavam os bois ao carro para a velha Galdina ir ouvirmissa ao Pilar. E davam colchões velhos para a cama dela. Porqualquer coisa chorava como uma criança. Quando queriamagarrar a gente para nos surrarem, era para junto dela quecorríamos. Ela pedia pelos seus netos com os olhos cheios delágrimas. A velha Generosa cozinhava para a casa-grande. Ninguém mexianum cacareco da cozinha a não ser ela. E viessem meter-se nosseus serviços, que ouviam gritos, fosse mesmo gente da sala.Tinha não sei quantos filhos e netos. Negra alta e com braçosde homem, tirava uma tacha de doce do fogão sem pedir ajuda aninguém. Só falava a gritar, mas nós tínhamos tudo o quequeríamos dela. A negra Generosa era boa como os seus doces eas suas cangicas. Era só pedir as coisas ao seu ouvido, e eladava-no-las sem ligar importância às impertinências da velhaSinhazinha. - Quem quisesse mandar na cozinha que viesse para a boca dofogo. E quando iam reclamar por qualquer coisa, saía-se com quatropedras na mão: - Que se quisessem, era assim. Os tempos de cativeiro játinham passado. Distribuía aos moleques da pastagem as rações de carne-do-ceará e farinha seca. E fazia-o aos gritos, chamando"severgonha" a todos eles. Não se importavam, porém, com estaraiva da velha Generosa. Os moleques sabiam que o coração delaera um torrão de açúcar. Pois dava remédios para as suastosses e as suas feridas, e remendava-lhes os farrapos dasroupas. A senzala do Santa-Rosa não desaparecera com a abolição. Elacontinuava pegada à casa-grande, com as suas negras parindo,as boas amas de leite e os bons cabras do eito. Depois do jantar o meu avô sentava-se numa cadeira perto dogrande banco de madeira do alpendre. O gado não havia chegadoda pastagem. Lia os telegramas do Diário de Pernambuco, oudava as suas audiências públicas aos moradores. Era gente quevinha pedir ou queixar-se. Chegavam sempre de chapéu na mão,com um "Deus guarde a Vossa Senhoria". Queriam terras paraplantação, lugar para fazer casas, remédios para os meninos,cartas para meter pessoas no hospital. Alguns vinham fazerqueixa dos vizinhos: - Não podiam ter um pau de roça, com os animais do outrodestruindo. Os porcos andavam a fossar nos leirões de batatase os filhos a chupar as caninhas verdes. Já não tinham

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paciência, vinham queixar-se porque não queriam fazer umadesgraça. - Vou mandar chamar aqui o Chico Carpina. Quero saber bemcomo isto é. E ficavam pela banca conversando com as negras, contando osseus aperreios à tia Maria, chamando-a para madrinha de maisum filho. Outro vinha a chamado do meu avô. Porém, tudo o que diziamdele era mentira. Nunca vendera um quilo de algodão na balançado Pilar. Nem estava a criar animais de outros engenhos nospastos da fazenda. Se fosse verdade podia deitar fogo às suascoisas e meter o gado dentro do seu roçado. O meu avô chamava-os de ladrões, de velhacos, e nemmostravam cara de aborrecidos. Parecia que aquelas palavrasfeias na boca do velhoJosé Paulino não quisessem dizer coisanenhuma. Muitos vinham arranjar carros do engenho para fazermudanças, e alguns dar conta de suas meações com o senhor oupagar o foro do ano. A todos o meu avô ia dando uma respostaou passando uma descompostura, mas cedendo sempre ao que elespediam. Uma vez chegoú lá um homem de cara diferente. Estava alipara pedir a protecção do coronel. Tinha matado um sujeito noOiteiro, e correra para se valer do meu avô. O velho quissaber do crime, Havia sido por questão de mulher. - Vá entregar-se ao delegado. Eu não acoito criminosos. Sematou com razão vai para a rua. Aqui não quero que fique. Nojúri protejo. Entregue-se à Justiça. Conte a sua história aojuiz. No meu engenho nunca protegi criminosos. Quando a genteestá de cima, muito bem. Caiu, lá vem a Polícia cercar apropriedade. Não estou para isso. Outro dia o tenente Maurícioentrou nas terras do Quincas do Jatobá para prender umcriminoso, e surrou uns moradores que nada tinham com o facto. Pela estrada iam passando os matutos que voltavam dasfeiras. Às terças, em Itabaiana, aos sábados, no Pilar. O meuavô chamava-os para saber quanto dera a cuia de farinha ou aarroba de algodão. Davam notícia de tudo - do preço dosgéneros e dos boatos que corriam. - Feijão verde, de graça, de fazer lama. O coronel Nô Borgesvai cair na política. A política está a prender o povo dodoutor Odilon. Os matutos já não podem andar de camisa porfora das calças, nas ruas, nem estalar o chicote a tocar osanimais. Tem descido muito gado magro do sertão. Acarne-de-sol a dois e oito. O doutor Ribeirinho comprouduzentas reses para a solta. Feira ruim, a do Pilar. O povoanda com medo de António Silvino.Mamaram somente dois bois, e sobrou carne no açougue. E daí a pouco aparecia o gado voltando do pasto. O meu avôlevantava-se para ver de perto as vacas e os bois de carro debarriga cheia. Indagava dos moleques em que pasto estiveram.Mandava curar as bicheiras dos animais. Havia sempre um boiladrão que chegava fora de horas. - Amanhã vamos passar o dia no Oiteiro. Fui dormir assim, com a viagem na cabeça. Estes passeios aoutros engenhos de perto eu fazia-os com alegria, de todo ocoração. De manhã bem cedo já estávamos prontos, com o carro de boisà porta. Cobriam o carro com uma esteira de piripiri e

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forravam as tábuas da sua mesa com um colchão. Era a nossacarruagem ronceira, mas segura. O carreiro Miguel Targino,grande e agigantado como um São Cristóvão, capaz de tirarsozinho o seu carro de um valado, já estava de vara e macaca,esperando a gente para a viagem. Quando a família saía apasseio, chamavam-no para carrear. Todos os seus irmãos erammestres carreiros: Chico, João e Pedro Targino. Ele, porém"fazia os serviços da casa-grande. O gado na sua mão nãoapanhava, e ele não ficava sentado à mesa, deixando o carro aodeus-dará. Nunca dera úma virada. Punha-se de vara na mãochamando os bois de cambão para os atalhos, desviando asrodeiras das pedras da estrada: - Ei, Labareda! Ei, Medàlha! E nós saíamos para a grande viagem, com a gente adultasentada e os meninos dependurados pela mesa do carro, pedindode quando em vez a Miguel Targino a macaca para tocar os boisdo coice. Chamavam-se Medalha e Javanês os do coice, grandes elargos para bem aguentarem o peso e sustentarem as manobras; Estrela e Labareda os do cambão, pequenos e de pescoçoscompridos, ágeis, os verdadeiros motores do carro. Para estesa vara de ferrão, e a macaca para os do coice. E todos elesatendiam à voz do carreiro. Quando o Miguel Targino fazia um ôdescansado, os do coice enterravam os pés na areia, e ninguémarrastava o carro dali. E com um ei, Labareda, de ordem, os docambão espichavam o pescoço na canga, e lá ia o carro andando. Ainda tudo estava escuro com a madrugada. A névoa dos altoschegava até os cajueiros. Tudo parecia branco daquele lado,como grandes paióis de algodão. Pelo curral começavam a tiraro leite; ouvia-se o falazar dos moleques na manjedoura. Mas ocarro já deixara o cercado do engenho, ganhava a estrada deSão Miguel. Vinham cargueiros com sacos brancos de farinha ecaçuás cheios de louças de barro para a feira do Pilar. Ochicote deles estalava naquele silêncio bom da madrugada.Passava-se por casas de moradores ainda com as portasfechadas; os homens, nus da cintura para cima, já estavam aver o tempo, enquanto os meninos e a mulher se encolhiam nopobre quente das camas de vara. Os bogaris das biqueirascheiravam no ar frio. Galinhas empoleiradas em árvores, compreguiça de deixar o seu sobrado de galros. Mais adiante o solespelhava os campos, esquentando as folhas da cana, aindapingando do orvalho. As casas dos moradores abertas, bem comoas portas e as janelas, com a família inteira no terreirotomando o seu banho de sol, de graça. Às vezes o carro paravapara minha tia falar com as comadres, que vinhamalegríssimasdar duas palavras com a senhora. E os meninos decamisa comprida tomavam a bênção à madrinha. - Deus te abençoe... E eram mesmo abençoados por Deus, porque não morriam de fomee tinham o Sol, a Lua, o rio, a chuva e as estrelas comobrinquedos que não se quebravam. Depois o carro saía - e a casa toda ficava a olhar-nos atédobrar a curva da estrada. Punham sabão nos cocões quecomeçavam a chiar.Carros que levavam gente não cantavam: rodavam mudos peloscaminhos. Agora passava-se à porta do engenho Maravalha. Aestrada passava rente à casa-grande. - É o carro do Santa-Rosa.

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E corriam as primas para falar com a tia Maria. - Deviam apear-se. Tomar café. Chegariam ao Oiteiro muitocedo. Perguntavam por tudo. E a tia Nenén, magrinha, perguntavapelo José Paulino e porque não viera a Sinhazinha. Falavam aomesmo tempo. Mas a tia Maria na volta apear-se-ia paraconversar. E o carro partiu, com promessas de que à noitinhaficaríamos em Maravalha para a ceia. O Oiteiro estava bem perto. Passávamos já pelo balde doaçude, coberto de folhas de baronesa. E via-se o sobradobranco aparecendo com os pilares do seu alpendre. Os molequesabriam a porta para o carro entrar. O povo da casa corria paranos receber. Era uma festa, da cozinha à sala de visitas.Levaram a tia Maria para mudar o vestido da viagem. Ofereciamroupas de casa para vestir, davam aos meninos fofas dosoutros, As negras do Santa-Rosa todas metidas no seu vestidode recepção, em conversas pela cozinha. Para nós o Oiteiro tinha muito que ver. O senhor de engenhode lá, um primo do meu avô, o coronel Lola, morrera deixandoum palácio para os seus. Era a melhor casa de morada daribeira do Paraíba. Tínha água encanada até na horta. Ebanheiro de torneira para os criados. O engenho bem tratado,com -um sobradinho de varanda para se vigiar o serviço. O dia que passávamos ali anoitecia depressa. Em cima dosobrado um corta-vento puxava água para os tanques daserventia. Para mim, aquele ruído do moinho, o batuquecompassado dos canos, parecia uma música. Nós mexíamos por todos os cantos, com a liberdade que acerimónia dava às visitas. E os meus primos pequenos de láabriam-se em gentilezas. Não ficava nada que não víssemos. Havia uma caixa de música, com uns cilindros cheios deespinhos, que me deslumbrava com o Trovador e o Carnaval deVeneza. O meu grande número de concerto era o Trovador. Aquelamonotonia de canto de igreja tocava a minha precocemelancolia. Pensava sempre em minha mãe diante de qualquercoisa triste da vida. Esta lembrança acompanhava-me em todosos caminhos da minha sensibilidade em formação. Era um menino triste. Gostava de saltar com os meus primos efazer tudo o que eles faziam. Metia-me com os moleques portoda a parte. Mas, no fundo, era um menino triste. Às vezesdava-me para falar comigo mesmo, e solitário andava pordebaixo das árvores da horta, ouvindo sozinho a cantoria dospássaros. O meu desporto favorito concorria para estes isolamentos demelancólico. Eu andava a apanhar pássaros em alçapão. E,escondido, passava horas inteiras na expectativa do sucesso.Via o canário chegar, pousar em cima da gaiola, trocar as suascarícias com o prisioneiro, lastimar a sorte daquele pobreamigo, e depois subir para o alçapão armado, fitar o milhodentro da armadilha, demorar um bocado, na indecisão de quemvai dar um grande passo na vida, e cair na cadeia. Mas istodemorava horas a fio. Muitos chegavam, examinavam tudo, punhamo bico quase dentro do alçapão, e iam-se embora, bem senhoresdo que se preparava para eles, Enquanto os canários vinham evoltavam, eu metia-me comigo mesmo, nos meus íntimossolilóquios de caçador. Pensava em tanta coisa... E umrastejar de calangro nas folhas secas fazia um ruído como de

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coisa grande bulindo. Pensava então naquilo em que junto dos outros eu não podiapensar. Já estava no engenho há mais de quatro anos. Mudaramuito desde que viera do Recife. - Para o ano - diziam -, iria para o colégio. E o que seria esse colégio? Os meus primos contavam tantacoisa de lá, de um director medonho, de bancas, de castigos, de recreios, de exercícios militares, que me deixavam mesmocom vontade de ir com eles. Mas o engenho tinha tudo para mim.Minha tia Maria tomava conta de mim como se fosse mãe. E alembrança de minha mãe enchia os meus retiros de cinza. Porquemorrera ela? E de meu pai, porque não me davam notícias?Quando perguntava por ele, afirmavam que estava doente nohospital. E o hospital ia-se tornando assim um lugar de ondenão se voltava mais. Via gente do engenho que ia para lá, comcartas do meu avô, não voltarem nunca, E as negras quandofalavam do hospital mudavam a voz: "Foi para o hospital".Queriam dizer que foi morrer. Tinha um medo doentio da morte. Aquilo da gente apodrecerdebaixo da terra, ser comido pelos tapurus, parecia-meincompreensível. Toda a gente tinha de morrer. As negrasdiziam que alguns ficavam para semente. Eu desejava ser destesfelizardos. Porque não podia ficar para semente? Dentro de umnavio, enquanto o mundo todo se acabasse. E nesse barco euvia-me cercado de todos os bichos, e a minha tia Maria, anegra Generosa, a vovó Galdina, o meu avô, todos os que meestimavam estariam comigo. Esta horrível preocupação da mortetomava conta da minha imaginação. Uma ocasião estava um trabalhador a morrer no engenho.Levaram-me para vê-lo, estendido na esteira, com a boca meiaaberta, arquejando. O homem estava na hora da morte. Aquelerosto lívido e molhado, aqueles olhos a revirarem-se, e a,boca caída, não me deixaram dormir à noite. Acordei aosgritos, com o homem do engenho perto de mim. - Não deviam ter levado este menino para ver essas coisas! E a morte deixou essa imagem gravada na minha memória. Viratambém a prima Lili no seu caixãozinho de rosas. Mas nãoparecia morta a minha pobre prima. Ela fora assim mesmo emvida, tão branca, que morta mudara pouco. O homem do engenho não me deixava ficar sozinho no escuro.Era ele quem eu via quando se apagava a luz para dormir. E sópodia dormir com uma pessoa junto de mim. Fiquei um menino medroso. De dia, porém, esperando os meuscanários, amava a solidão. Era ela que deixava falar o que euguardava por dentro - as minhas preocupações, os meus medos,os meus sonhos. O mundo de um menino solitário é todo dos seusdesejos. Eu queria ter tudo nesses meus retiros: o tesouro dahistória de trancoso, o cavalinho de sela, aquela vara mágicadas fadas, que transformava tudo no que a gente quisesse. Eudesejava também que a velha Sinhazinha morresse. Então,começava a ver a minha inimiga trucidada, com os cavalosdesembestados puxando-lhe o corpo pelos espinhos. Sentia um prazer sem limites quando me caía um canário noalçapão. Não ia para o almoço, entretido com a gaiola darhama. Procuravam-me por toda a parte. Minha tia Mariaameaçava soltar tudo quanto fosse passarinhos. - Nem come, só a pensar em canários.

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Absorvia-me inteiramente nesse desporto cruel. Deixava osmoleques e os primos para um canto. Mas os meus canários nãocantavam. Via-os soltos, com trinados de estalos, dando osseus concertos nos galhos das árvores. Nas gaiolas,irremediavelmente mudos. Faziam greve contra mim. Tratavadeles com cuidados maternos. Limpava-lhes as gaiolas,pisava-lhes milho - e nada, calados de vez. Dependurava-osentão nas árvores, para ver se os enganava com esse contactocom os palcos dos seus dias de festa. E mudos sempre. Os meuspássaros só trabalhavam ao bom preço da liberdade. As negras ameaçaram-me: - Fazer mal aos passarinhos bota as pessoas no Inferno,menino. Deus nosso Senhor fez os pássaros foi para cantar nomato, soltinhos. Porém, os grandes dias de glória da minha infância dera-moso meu alçapão, escancarado aos ingénuos canários doSanta-Rosa. Eu ia para junto dos mestres do ofício, ver os seustrabalhos. Os tanoeiros com as formas e as cubas, os carpinascom as rodas de carro ou lavrando as cumieiras. A enxódescascava os paus-darco, e as plainas iam aos poucosdesbastando, alisando, as tábuas de cedro. Seu Firminocarpina, Pinto tanoeiro, seu Rodolfo mecânico, tomavam contada casa do engenho na vaga da safra. Passavam os seus meses deInverno raspando madeira e batendo ferro. Gostavam de mim.Mexia nos seus instrumentos, e nem se importavam com as minhastravessuras. O que, porém, mais me prendia aos meus amigos, eram as suasconversas e confissões. O seu Rodolfo sabia de muita coisa.Vivia consertando engenhos desde menino. E de toda a partetrazia uma história. Trabalhara para um marinheiro no engenhodo Meio, para o major Ursulino do Itapuá, para o Dr. Pedro doMiriri. Os negros de Ursulino todas as manhãs levavam umachibatada, à porta da senzala, para aquecer o corpo, Omarinheiro dormia na rede, com a garrafa de cana nos braços. Adestilação do engenho só trabalhava para a gente dacasa-grande. E o seu Rodolfo falava também de mulheres. Quandoestivera no Jaburu, apanhara uma carga de gálico que lhedeixara o corpo numa chaga. O mestre Firmino parava com oserviço para ouvir o fim da história. Eu passava o dia inteiro rondando os oficiais nas suasconfidências. Contavam a história de uns carpinas num engenhodo Brejo. - O senhor de engenho só lhes mandava bacalhau, ao jantar e ao almoço. Passavam o dia inteiro a beber água,com a boca seca. Um dia un deles disse ao negro que nãogostava de bacalhau, que não aguentava mais aquilo. No outrodia o tabuleiro com a comida chegou: era peru. É peru detarde. E a semana toda, peru. Um Domingo, o mestre saiu para dar umas voltas nosarredores. Viu um negro com uma porção de urubus às costas: - O que é isso, moleque? - É peru para os carpinas. Os oficiais anoiteceram e não amanheceram na propriedadedele. E rebentaram-lhe feridas pelo corpo. Estiveram à mortedurante muito tempo. - O velho Duda do Riachão não gostava de mulheres. Uma filhafugira con um cambiteiro. Casou a segunda vez. E sempre que a

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mulher estava para dar à luz, o velho ficava à porta doquarto. Chorava uma criança lá dentro. Batia à porta para aparteira, a saber do sucedido. E se a notícia era ruim, ovelho Duda só dizia: "Acabai com ela". - O capitão Quincas, irmão do velho José Paulino, tinha umamulher chamada Calu. Morava no sítio da sinhá Germínia. Erauma cabrocha bonita. Ele tirara-a menina da família de ummorador do Maravalha. Da irmandade, o capitão Quincas pareciao mais arrebatado. O seu tio, Manuel César do Taipu, tinhafama de bravo. Falava aos gritos com toda a gente. Uma vezumas bestas do Santa-Rosa fugiram para o engenho dele. O velhoManuel César mandou pôr os animais na almanjarra, de manhã ànoite. Os bichos estavam a comer muito. Ninguém no Santa-Rosatinha coragem de os ir buscar. O coronel José Paulinorespeitava o tio. Tinha medo. O capitão Quincas, quando soube,saiu. Entrou pelo engenho dentro, parou a moagem e cortou osarreios da almanjarra. O velho Manuel César engoliu calado oatrevimento. Era assim o irmão mais moço do coronel. Pois bem, a cabrocha dera corda ao feitor. O homem soube dacoisa. Um dia, estavam na planta da cana, aqui, nos cajueiros. Os escravos no eito. O feitor Salvino de lado.O capitão chamou o cabra para junto dele. Os negros levantarama cabeça do serviço. "Cabra atrevido!" E o chicote cortou-lheo rosto. Pegaram-se os dois por cima das canas verdes, Rolaram nochão. Brigaram muito. Os negros correram, O capitão Quincasficara estendido com uma facada no lado esquerdo. O cabraentregou-se, Quiseram matá-lo na peia. O coronel mandou-o paraa cadeia. O partido dele estava debaixo, e no júri foi umserviço. O velho Manuel César protegia o assassino dosobrinho. Estava a vingar-se da afronta. O povo do Santa-Rosa vendia oengenho, mas o cabra não saía livre. Arranjou trinta anos emFernando. À hora do almoço vinham chamar os mestres. Na mesa nempareciam aqueles das histórias: todos calados, a comer decabeça baixa. Ficava a olhar para eles, naquela boa humildadedos seus modos. No fim da mesa, parece que nem ouviram o quese dizia. Eram surdos-mudos para as conversas da casa-grande. Aquele irmão mais moço do meu avô passava para a galeria dosmeus heróis. O velho José Paulino governava os seus engenhoscom o coração. Nunca o vi com armas no quarto. Umas carabinasque guardava atrás do gúarda-roupa, de tão imprestáveis, agente brincava com elas. Eu queria um senhor de engenho queprotegesse assassinos, que tivesse guarda-costas, gente derifle. Ouvia falar no Dr. Quincas do Engenho-Novo, num seu Nédo Cipó-Branco que, com cabras armados, arrombara a cadeiapara tirar um protegido das grades. Estes sim, que eramsenhores de engenho de verdade. Quando chegavam os parentes doItambé, o seu Álvaro daAurora, o Manuel Gomes do Riacho Fundo,com os filhos pequenos de botas e faca no colete, punha-me aadmirá-los como os meus grandes modelos. Meu avô falava daseleições da monarquia, dentro das igrejas. Os senhores deengenho iam até às armas, nas disputas. Brigavam pelos seuspartidos, profanavam os templos de Deus, arrombando urnas equeimando actas. No Brejo-de-Areia, Félix António levantou o povo contra o

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Governo. De Goiana saiu um exército para atacar o Recife. Ossenhores de engenho iam à frente com os seus negros. Mas ovelho José Paulino não era homem para tais coisas. Ele eratemido mais pela sua bondade. Não havia coragem de levantarema voz para aquela mansa autoridade de chefe. Não tinhaadversários na sua comarca. Os seus inimigos eram mais de suafamília do que dele. Herdara-os com o Santa-Rosa. O meu grandesenhor de engenho teria outro tipo. O irmão que morrerabrigando, o capitão Quincas Vieira, esse sim, eu quisera quevivesse, para o gozo da minha vaidade. Até que afinal conseguira o meu carneiro para montar. Vivia a pedi-lo ao tio Juca, ao primo Baltasar do Beleza, atodos os parentes que tinham rebanho. Um dia chegou umcarneiro para mim. Já vinha manso e era mocho, Carneironascido para montaria. Chamava-se Jasmim. Via chegar aoengenho os meninos do Zé Medeiros, do Pilar, cada um no seucarneiro arreado, esquipando pela estrada. E uma grande invejaenchia o meu coração. Comecei então a alimentar o sonho de ser dono também de umcavalinho daqueles. E um sonho de menino é maior que os degente adulta porque fica mais próximo da realidade. O meutomara conta de todas as minhas faculdades. E de tanto pedir,eu entrara na posse do objecto sonhiado. Já tinha o meucarneiro Jasmim. Faltavam-me a sela e os arreios. Sonheitambém noites inteiras com o meu corcel todo metido nos seusarreios de luxo. Queria-os, e, por fim, mandaram fazê-los emItabaiana. Os canários do Santa-Rosa iriam cantar sem a sedução daminha armadilha escancarada. Era todo agora para o meucarneiro chamado Jasmim. Conduzia-o de manhã para o pasto,levava água fria para ele beber, dava-lhe banho com sabonete,penteava-lhe a lã. E à tardinha saía para os meus passeios.Esses passeios, sozinho, pela estrada, montado no meu Jasmimpenteado, arrastavam-me a pensamentos de melancólico. Deixavaa dócil cavalgadura à rédea solta, e fugia para dentro do meuíntimo, Pensava em coisas ruins - no meu avô morto, e no queseria do engenho sem ele. Ouvia sempre dizer. - Quando o velho fechar os olhos, quem vai sofrer é apobreza do Santa-Rosa. E esta ideia da morte do velho José Paulino dominava asminhas cogitações. Quem tomaria conta do Santa-Rosa, quempagaria aos trabalhadores? O carneirinho, com o passo miúdo, andava os meus caminhos, eeu nem os olhava, embebido que estava nos meus pensamentos.Pensava muito na minha tia Maria. Ela estava a preparar-separa casar com o meu primo do Gameleira. Não sei quantascostureiras cosiam as suas camisas e as súas saias brancas.Bordavam letras nas fronhas. E ela comprava as rendas da terraque apareciam. Havia na horta um girau com craveirostrabalhando para o dia do casamento. Ia-se embora a minhagrande amiga. Mas um incidente qualquer arrancava-me dessascogitações. E começava a ver a estrada de verdade. O Jasmim sabia andar os seus caminhos com segurança,conhecia os atalhos e os desvios das poças de água. Eu paravaquase sempre à porta dos moradores. As mulheres, sem casaco,quase com os peitos de fora, faziam renda sentadas pelosbatentes. Os filhos corriam para ver o meu carneiro e pediam

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uma montada. Ficava a brincar com eles, misturado com ospequenos servos do meu avô, com eles subindo às pitambeiras ecomendo genipapo maduro, sujo de terra, que encontrávamos pelochão. Contavam-me muita coisa da vida que levavam, dos ninhosde rola que descobriam, dos preás que apanhavam para comer,das botijas de castanha que faziam. Muitos deles amarelos,inchados, coitadinhos, das lombrigas que lhes comiam astripas. As mães davam-lhes jaracatiá" e eles passavam dias edias obrando ralo como passarinho. Cresciam, e eram os homensque ficavam de sol a sol, no eito puxado do meu avô. Asmulheres perguntavam pelas coisas do engenho, queriam saber detudo: do casamento de minha tia, da saúde de toda a gente. Equando eu pedia água para beber, iam arear o caneco de folha,para me darem a água barrenta de seu gasto.Na volta não se esqueciam das lembranças, dos remédios que atia Maria prometera. E entregavam-me pacotes de renda: - Diga à Maria Menina que é para o enxoval dela. E também plantavam craveiros pensando no dia do casamento dafilha do senhor de engenho. O sol ia já quase escondido, nas minhas caminhadas de volta.Por debaixo das cajazeiras, o escuro frio da noite próxima. Ocarneiro corria. E o medo daquele silêncio de fim de dia,daquelas sombras pesadas, fazia-me correr depressa com o meucorcel. Trabalhadores, de enxada ao ombro, vinham do serviçopara casa. Conversavam às gaitadas, como se as doze horas doeito não lhes viessem pesando nas costas. O Santa-Fé ficava encravado no engenho do meu avô. As terrasdo Santa-Rosa andavam, léguas e léguas de norte a sul. O velhoJosé Paulino tinha este gosto: o de perder a vista nos seusdomínios. Gostava de descansar os olhos em horizontes quefossem seus. Tudo o que tinha era para comprar terras e maisterras. Herdara a Santa-Rosa pequeno, e fizera dele um reino,rompendo os seus limites pela compra de propriedades anexas.Acompanhava o Paraíba com as várzeas extensas e entravacaatinga adentro. Ia encontrar as divisas de Pernambuco nostabuleiros de Pedra-de-Fogo. Tinha mais de três léguas, deestrema a estrema. E não contente do seu engenho possuía maisoito, comprados com os lucros da cana e do algodão. Os grandesdias da sua vida davam-lhos as escrituras de compra, osbilhetes de sisa que pagava, os bens de raiz que lhe caíam nasmãos. Tinha para mais de quatro mil almas debaixo da suaprotecção. Senhor feudal ele foi, mas os seus párias nãotraziam a servidão como um ultraje. O Santa-Fé, porém,resistira a essa sua fome de latifúndios. Sempre que viaaqueles condados na geografia, espremidos entre grandespaíses, lembrava-me do Santa-Fé. O Santa-Rosa crescera a seulado, fora ganhar outras posses contornando as suas encostas.Ele não aumentara um palmo e nem um palmo diminuíra. Os seusmarcos de pedra estavam ali nos mesmos lugares de que falavamos papéis. Não se sentiam, porém, rivais, o Santa-Fé e oSanta-Rosa. Era como se fossem dois irmãos muito amigos, quetivessem recebido de Deus uma protecção de mais ou uma protecção de menos. Coitado do Santa-Fé! Já o conhecide fogo morto. E nada é mais triste do que um engenho de fogomorto. Uma desolação de fim de vida, de ruína, que dá àpaisagem rural uma melancolia de cemitério abandonado. Nabagaceira, crescendo, o mata-pasto de cobrir gente, o melão

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entrando pelas fornalhas, os moradores fugindo para outrosengenhos, tudo deixado para um canto, e até os bois de carrovendidos para dar de comer aos seus donos. Ao lado daprosperidade e da riqueza do meu avô, eu vira ruir, até noprestígio da sua autoridade, aquele simpático velhinho que erao coronel Lula de Holanda, com o seu Santa-Fé caindo aospedaços. Todo barbado, como aqueles velhos dos álbuns deretratos antigos, sempre que çaía de casa era de cabriolé e decasimira preta. A sua vida parecia um mistério. Não plantavaum pé de cana e não pedia um tostão emprestado a ninguém. - Coitado do Lula -- diziam os senhores de engenho em suasconversas. - Atrasou-se. E o seu engenho perdera até o nome bonito, chamavam-nosomente de engenho do seu Lula. Diziam então que ele vivia deuma botija que arrancara ao avô. As suas visitas ao Santa-Rosaeram sempre de cerimónia. Tiniam na estrada as campainhas, elá vinha o seu Lula com a família, com os cavalos magros dasua carruagem. Iam sempre para a sala de visitas, numadistância de estranhos que se encontrassem pela primeira vez.A Nenén do seu Lula, sua filha, educara-se nos colégios deRecife. Falava diferente do meu povo. Eu olhava para ela,sentindo uma criatura que nunca tinha visto. Sentava-se comose estivesse de castigo, sem um movimento de vida, numaposição só, desde que entrava até que saía. E dona Amélia,pequenina, petrificara-se também, na etiqueta. Sabia tocarpiano, casara-se com o coronel Lula de Holanda, no Recife. Para o Santa-Rosa, a visita dessa gente educada de maistornava-se um suplício. A minha tia Maria já nem tinhaconversa. Os assuntos todos tinham-se ido embora. Ficavam então calados, a olhar uns para os outros, até ànoitinha, qùando saíam. Nós interessávamo-nos pelo cabriolé.As histórias de trancoso falavam muito das carruagens. E sinháTotonha contava-nos os seus romances, com princesas queandavam pelas estradas reais, em carros que tinham ascampainhas como o de seu Lula. Maria Borralheira perdera umsapato ao descer de uma carruagem daquelas. Passava pelo Santa-Fé, quando ia para a escola. A mesmatristeza, todas as manhãs e todas as tardes. O mato a tomarconta do engenho. E a várzea com ressocas acanhadas, unsrestos de cana que o tempo ia deixando viver, no meio do pastogrande. As casas dos moradores a cair. Morava numa melhor ovelho JosÉ. Amaro sapateiro, que não plantava nada. Eu via oseu Lula à porta. Não tirava a gravata do pescoço. mandavaparar o cavalo para saber notícias do coronel José Paulino.Muito solene, muito parecido com aqueles senhores arruinadosda Califórnia, que a gente vê no cinema, com os Americanos atomarem conta das terras deles. Corriam histórias da casa do seu Lula: o povo de lá nãocomia, as negras viviam de jejum; uma lata de manteiga erapara um mês; as vacas trabalhavam nos carros de bois. E eletinha dinheiro em ouro enterrado. Quando se ia a pé para oPilar, via-se pela faxina da sua horta uma sua irmã maluca,Dona Olívia, andando de um lado para outro, falando só. Com oscabelos todos brancos e soltos, nunca vi uma imagem tãopungente de dor. Não me contavam nada da sua vida. Pareciamesmo que não tinha história. O meu avô olhava para o seu vizinho com certo respeito.

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Dava-lhe a presidência da Câmara, como se quisesse corrigircom honrarias aquela crueldade de destino. Os molequescontavam-me que o primeiro nome do Santa-Fé foraPegue-Aqui-por -Favor. O pai do seu Lula era um unhas-de-fome.Levantara o engenho com o povo que passava na estrada. "Pegueaqui por favor", e ia levantando a cumieira,cobrindo a casa. E por isso ninguém ali progredia. Aquele destino sombrio preocupava-me. Nas visitas aoSanta-Fé demorava-me a olhar os quadros, os candeeirosbonitos, os tapetes, os móveis ricos de lá. Havia sempre umanobreza naquela ruína. Dona Amélia tocava piano, e a conversaera sempre de cerimónía. A doida às vezes aparecia sentada aum canto, olhando-nos de longe, com a boca bulindo, como secomesse as palavras. Ouvia-se um sussurro de todo aquelecochichar com o desconhecido. Uma noite bateram à porta do engenho. Era uma carta do seuLula chamando o meu avô com urgência. Depois soube-se. O velhoestava dentro de casa como um leão enfurecido. Um Dr. LuísViana queria roubar-lhe a filha. Dois negros com espingarda decaçar passarinhos e o seu Lúla de clavinote. A casa todaescorada com trancas. A filha e a mulher a chorarem nosantuário. Tinha apanhado uma carta combinando a fuga. E dalia filha não saía, com ele vivo, Tudo aquilo, porém, era maisde sua imaginação. Ninguém queria roubar Dona Neném. Isso sóserviu para a mangação da cabroeira. Fizeram até versos com oroubo da moça. Seu Lula falava em voz alta, repetindo as palavras com um"já ouviu?", autoritário, no fim. Dizia uma mesma coisa duas,três vezes. De tarde aparecia para conversar com o velho JoséPaulino. Eu ficava a ouvir o que ele dizia. O meu avô sóescutava. O seu vizinho sabia muita coisa mais do que ele. - Pobre do Lula - dizia, quando lhe vinham contar históriasdo seu amigo. E o açúcar subia e o açúcar descia - e o Santa-Fé semprepara trás, caminhando devagar para amorte, como um doente quenão tivesse dinheiro para a farmácia. Já estava mais crescido, quando comecei a sofrer de asma.Uma moléstia horrível que me deixava sem fôlego, com o peitochiando, como se houvesse pintos a sofrerem dentro de mim.Tenho uma impressão de terror das minhas noites de asmático,dos meus dias compridos em cima da cama, dos vomitóriosabomináveis que me davam. Eram acessos de mais de três dias.Depois a convalescença, sem poder pisar o terreiro, sem ir aoalpendre por causa do mormaço, do relento, dos chuviscos. Nãocomia frutas, não tocava em coco, assavam-me a cana parachupar, num resguardo rigoroso de mulher parida. Mandavam aomeu quarto para brincar comigo os moleques menores, mas elesenjoavam-se daquela companhia de enfermo e deixavam-mesozinho, abandonavam-me, E, sozinho, começava a vencer o tempocom as minhas cismas de menino. Os primos tinham chegado do colégio mudados, nos primeirosdias. - Os meninos só se endireitam no colégio -- era como toda agente julgava essa cura milagrosa. Dentro em pouco voltaram a ser os mesmos diabos deantigamente. O engenho estava a moer. Do meu quarto ouvia o barulho da

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moenda quebrando a cana, a gritaria dos cambiteiros, a cantigados carros que vinham dos partidos. A fumaça cheirosa do melentrava-me de janelas adentro. O engenho todo na alegria ruralda moagem. E o diabo daquela asma tomando-me a respiração,deixando-me sem ar e com um gosto amargo na boca. Olhava para as réstias que as telhas de vidro espalhavampelo quarto. Elas iam fugindo devagarinho, até subirem pelasparedes, redondas ou ovais, e, enfim, desapareciam, quando nãohavia mais sol no telheiro. Às vezes vinham de cima, como umaflecha, e enfileiravam num canto. Eu tinha visto esse jacto deluz nas estampas do santuário. Diziam que era o Espírito Santoentrando em nossa senhora. O menino Jesus havia saído dessaréstia de sol vinda do céu. Jesus viera do céu, mas os outrosmeninos não seriam como ele. Eram os homens que faziam osmeninos. Tudo igual ao que a gente via nos cercados. O meu avô passava pelo meu quarto para me ver: não tinhafebre, dizia, e ia-se embora. A febre, para ele, era o grandemal, e o seu grande remédio a lavagem. As moléstias do engenhotinham o seu diagnóstico e a sua medicina certa: sarampo,bexigas doidas, papeira, sangue novo. Saindo dali era febre. Ovelho José Paulino tratava de tudo, fazia sinapismos demostarda, dava banhos quentes, óleo de rícino, jaracatiá paravermes. Curava assim os negros, os netos, os trabalhadores. Elancetava furúnculos. Uma vez um carro de bois passara porcima do pé de um carreiro, esmigalhando-lhe um dedo. O meu avôcortou à tesoura aquele pedaço de carne dependurada, pôstintura de jucá na ferida e amarrou com tiras de uma camisavelha o pé de Chico Targino. Para a minha asma prescreviamvomitórios de cebolas cem-cem. Minha tia Maria ficava comigoenquanto eu me extenuava nos vómitos desesperados. A asma,porém, só passava com o tempo. Piava no peito até quando bemquisesse. As noites pareciam-me uma eternidade. Ficava acordado naânsia miserável do acesso, horas seguidas, de olhos fechados,com o meu medo do escuro. Depois via a madrugada entrar pelastelhas-vãs do quarto, e ouvia os passos do meu avô andandopela calçada, para o seu banho frio das quatro horas. O rumor do curral, o apito do engenho chamando o povo para otrabalho pareciam-me uma novidade de todos os dias. Mais tardeos pássaros cantavam as suas matinas no gameleiro. Eram noites de pieira que envelheciam a minha meninice, masobrigavam os meus olhos cansados da escuridão a esperaremextasiados as madrugadas. Quando o sol se abria, chegavam asréstias ao meu quarto. Havia mesmo uma em cima da minha cama,bem redonda, junto dos meus travesseiros. Estendia as mãospara lhe sentir a quentura, e via as nuvens passando por ela acarreiras ou devagar. Devagarinho lá iam deixando o meu leitode doente; faziam apenas uma visita ao enfermo, e já estavamcom a metade pela barra da cama, e caíam no chão, onde se iamarrastar o dia inteiro. Eu entretinha a minha doença com esse cinema, em que o sol eas nuvens faziam de artistas. O quarto do meu tio Juca estava fechado à chave o diainteiro. Ali só entrava a negra que lhe fazia limpeza e mudavaas roupas da cama. Mas quando aos domingos descansava na suagrande rede do Ceará, de varandas a arrastar no chão, eu iater com ele. O meu tio punha-me ao seu lado, e brincava

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comigo. Era o único sobrinho com quem se dava de intimidade.Ele tinha muita coisa para me mostrar: os seus álbuns defotografias, os seus livros de muitas gravuras, o Malho, queassinava, cheio de gente de cara virada do avesso. Lia ashistórias todas do Malho, com retratos dos políticos e com umZé-Povo que tinha resposta para tudo. - Ali não mexa - dizia-me quando eu tocava por acaso numpacote embrulhado em cima da cómoda. Num dia em que ele me deixou sozinho, corri sôfrego para oobjecto da proibição; uma colecção de mulheres nuas, depostais em todas as posições da obscenidade. Não sei para quemeu tio guardava aquela nojenta exposição de porcarias. Sempreque sucEdia ficar sem ele no quarto, era para os postaisimundos que eu corria. Sentia uma atracção irresistível poraquelas figuras descaradas de meu tio Juca. Uma vez em que ele se demorou muito, fora não sei onde,entretive-me com as gravuras longo tempo. O meu tio apanhou-mede surpresa com o pacote na mão. Pôs-me para fora do seuquarto. Eu não era digno da sua intimidade, dos segredos dasua alcova. Mas ficava-me dos seus aposentos uma saudade ruimdaquelas mulheres e daqueles homens indecentes. Um moleque chegou, a gritar: - O partido da Paciência está a arder! Tinha sido faísca do comboio, decerto. O povo todo correu para lá, com enxada, foice, pedaços depau. Via-se a fumaceira do outro lado do rio, tomando o céutodo. - Mande chamar o pessoal do eito - gritava o meu avô. E daí a pouco chegavam os cabras em disparada, para os ladosdo partido. O fogo ganhava o canavial com úma violênciadanada. As folhas da cana estalavam como taboca a arder.Parecia tiroteio de verdade. - Corta o fogo no Riacho-do-Meio! Era a única forma de atalhar o incêndio para salvar o restodo partido, meter a enxada e a foice no riacho que cortava ocanavial, abrindo aceiros de lado a lado. A casa de palha do negro Damião, comeu-a o fogo numinstante. Nem tiveram tempo de tirar os trastes. O ventosoprava, atirando faíscas à distância. Mil línguas de fogodevoravam as canas maduras, com uma fome canina. E o ventoinsuflando este apetite diabólico, com um sopro que nãoparava. Mas os cabras do eito estavam ali para conter aquelafúria. E o meu tio Juca no meio deles. As enxadas tiniam nomassapê, as foices cantavam nas touceiras de cana, abrindo osaceiros para barrar a corrida das chamas. E batiam no fogo comgalhos de mato verde, gritando como se estivessem numabatalha. Ficávamos de longe, vendo e ouvindo as manobras e o rumor docombate. Os meus olhos choravam com a fumaça, e o cheiro demel de cana queimada rescendia no ar. Descia gente dascaatingas para um adjutório. E com o escurecer, o fogo eramais vermelho. Agora as chamas subiam mais para o alto, porque o ventoabrandava. Os cabras andavam por cima das brasas, chamuscavamos cabelos, nessa luta braço a braço com um inimigo que não serendia. - Olha, a casa do Zé Passarinho está a arder!

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Zé Guedes correu para dentro das chamas, e voltou com avelha Naninha, entrevada, nos braços, atirando-a para o chãocomo um saco de açúcar. - Ataca o fogo - gritava meu tio, de panavoeiro na mão. O meu tio Juca crescia, para mim, neste arranco de coragemcom os seus cabras. Estava metido com eles no mesmo perigo eno mesmo aperreio. Chegavam moradores de Maravalha e de Taipu. E eram para maisde quinhentos homens que enfrentavam o inimigo desesperado.Não passaria do riacho, porque todo ele estava tomado deaceiros. E gente com galhos nas mãos para esperar o avanço. Ovento abandonara o aliado no campo da lúta. E só se via gentecom os pés queimados, a cara tisnada, os olhos vermelhos, asroupas em tiras. Zé Guedes com o peito em chaga viva. E opretume do canavial a fumegar. - É preciso deixar gente nos aceiros a noite toda. No engenho, o meu avô punha jucá nos feridos. A destilaçãoabria-se para uma bicada. A boca de fogo podia fazer mal. E oeito esperava por eles de manhãzinha. Estavam na limpa do partido da várzea. O eito bem pertinhodo engenho. Da calçada da casa-grande viam-se no meio docanavial aquelas cabeças de chapéu de palha velho subindo edescendo, no ritmo do manejo da enxada: uns oitenta homenscomandados pelo feitor JoSé Felismino que; de cacete na mão,vigiava o serviço deles. Pegava com o sol das seis, até à bocada noite. Às vezes eu ficava por lá, entretido com a conversados cabras. Trabalhavam conversando, bulindo uns com osoutros, os mais moços com gabarolices de mulheres. Outrosmuito calados olhavam para o chão, cumprindo a sua tarefa coma cara fechada. Assim, poucos. Os demais raspavam a junça dospartidos contando histórias e soltando ditos. - Deixem-se de conversas! - gritava seu José Felismino -,Vamos para diante com o serviço. Daqui a pouco o coronel estáaqui a gritar. E a enxada tinia no barro duro, e ele espalhando com os péso mato que ficava atrás. O sol espelhava nas costas nuas;corria o suor em bica dos lombos encharcados. Manuel Riachão puxava o eito na frente, como um capataz. Erao mais ligeiro. De cabeça enterrada nos ombros, a enxada nassuas mãos raspava como uma máquina a terra que aparecesse nafrente. Sempre na dianteira, deixando os companheiros paratrás. O moleque Zé Passarinho a remanchas, o último do eito.Não havia grita que animasse. aquela preguiça alcoolizada.Também ganhava dois cruzados, davam-lhe a mesma diária dasmulheres na apanha do algodão. - Tira a peia da canela, moleque safado! O diabo não anda! E ele atrás, na maciata, com os pés roliços de bicho e ocorpo a rebentar em moléstias do mundo. Paravam às dez horas, para o almoço de farinha seca combacalhau. Comiam na marmita de folha, lambendo os beiços comose estivessem em banquetes. E deitavam-se por debaixo dos pésde juá, esticando o corpo no repouso dos quinze minutos. Dealguns, as mulheres traziam a comida num pano sujo; acarne-do-ceará assada, com farofa fria. Pegavam no trabalhooutra vez, até às seis da tarde. O meu avô vinha ver a «canalha» no trabalho forçado. - Que está esta gente a fazer, seu José Felismino? Oitenta

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pessoas, e o partido no mato? em eito de mulher! Não se importavam com a gritaria do velho. Aquilo era detodos os dias, fizessem eles muito ou fizessem pouco. Só tinhaboca, o coronel José Paulino. Chamava nomes a todos,descompunha-os como a malfeitores, mas não havia um ali quenão estivesse com dias adiantados no livro de apontamento. Cachorrinhos com a barriga encolhida, de magros,acompanhavam os seus donos para a servidão. Rondavam peloscajueiros, perseguindo os preás. Porém, não pisavam o terreiroda casa-grande. Os cachorros gordos do engenho não davamtréguas aos seus infelizes irmãos pobres. João Rouco vinha com três filhos para o eito. A mulher e osmeninos ficavam em casa, no roçado. com mais de setenta anos,aguentava o repuxo todo, como o filho mais novo. A boca jáestava murcha, sem dentes, e os braços rijos e as pernasduras. Não havia rojão para o velho caboclo do meu avô. Nãoera subserviente como os outros. Respondia aos gritos docoronel José Paulino, gritando também. Talvez porque fossem damesma idade e tivessem em pequenos brincado juntos. - Cabra malcriado! E quando precisava de gente boa, para um serviço pesado, láia um recado para João Rouco. O velho Pinheiro não prestava para nada. Roubava como boiladrão, vivia de intrigas no engenho. E os filhos, a mesmacambada. Quando vinha ao eito, passava o tempo queixando-se de dores. Mandavam-no então para serviços maneiros. Ouvia osdesaforos do feitor com a cara mais serena do mundo. E os seusvizinhos não criavam galinhas, porque ele era como uma raposacom fome. Também para os cabras do eito não valia nada. AoJoão Rouco, respeitavam-no de verdade. Tratavam-no de seuJoão, e para ele não vinham com brincadeiras. Nós mesmos, osmeninos da casa-grande, as negras da cozinha, os moleques doengenho, púnhamos o velho João Rouco numa categoria diferente. Em tempos de emergência, o eito avolumava-se com os foreirose os lavradores. Desciam para um adjutório ao senhor deengenho. Mais de duzentas enxadas espalhavam-se peloscanaviais. Os foreiros e os lavradores, os pequenos burguesesdo engenho, desciam do seu mandado para este contacto ombro aombro com os párias. E não recebiam nada pelo dia que davam.Queriam assim fugir da indignidade do eito, trabalhando degraça. Quando havia ajuntamentos destes, para nós, meninos,era um espectáculo. Levavam mel de furo, para regalada merendados cabras. E à noite o terreiro da casa-grande enchia-se comum exército de esfarrapados. Bebiam cachaça nos dias de chuva,e voltavam para casa para o sono miserável da cama de vara. O costume de ver todos os dias esta gente na sua degradaçãohabituava-me à sua desgraça. Nunca, menino, tive pena deles.Achava muito natural que vivessem dormindo em chiqueiros,comendo pouco, trabalhando como burros de carga. A minhacompreensão da vida fazia-me ver nisto uma obra de Deus. Elesnasceram assim porque Deus quisera, e porque Deus quisera nóséramos brancos e mandávamos neles. Mandávamos também nos bois,nos burros, nos matos. O meu avô costumava, à noite, depois da ceia, conversar paraa mesa toda, calada. conttava histórias de parentes e deamigos, dando, dos factos, os mais pitorescos detalhes. - Isto deu-se antes da cólera de 48 ou depois da cólera de

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56. Eram os sinistros marcos das suas referências. O seu grandemotivo era, porém, a escravidão. - Tio Leitão batia nos negros como em bestas de almanjarra.Tinha uma escravatura pequena: um negro só para mestre deaçúcar, purgador, pé-de-moenda. - O major Ursulino de Goiana fizera a casa de purgar noalto, para ver os negros que subiam a ladeira com a caçamba demel quente à cabeça. Cortavam cana com a corrente tinindo nospés. Uma vez um negro dos Picos chegou à casa-grande do major,calçado e engravatado. Vinha conversar com o senhor deengenho. Subiu as escadas do sobrado oferecendo cigarros.Estava ali para prevenir das destruições que o gado do engenhofizera na cana dos Picos. Ele era o feitor de lá. O seu senhorpedira para levar este recado. O major calou-se, afrontado.Mandou comprar o negro ao outro engenho. Mas do negro só umabanda ainda era escrava. Pertencendo a duas pessoas numapartilha, um dos herdeiros libertara a sua parte. Então omajor comprou a metade do escravo. E trouxe o atrevido para asua bagaceira. E mandou chicoteá-lo no carro, a cipó de courocru, somente do lado que lhe pertencia. Esta história do banda-forra, o meu avô contava-a paramostrar a ruindade do velho Ursulino. Era raro o senhor deengenho de coração duro para os escravos. Os dele vestiam ecomiam com fartura. - Negro só mesmo com barriga cheia. Era verdade que haviaalguns que pediam cipó de boi. Ali mesmo no Santa-Rosa, umaescrava deitara uma erva venenosa no caldeirão de comida dosescravos. Quase que morria tudo de dor de barriga. Tinha-seinimizado com uma crioula por causa de um negro, e queriamatar o resto. Os jornais, na abolição, falavam de senhores deengenho que matavam negros a relho. Ninguém hoje mata boi demacaca. Queria-se o negro gordo para o trabalho e a revenda.Não se ia deitar fora um conto nem dois de réis. Aqui comiamaté fartar, e na várzea só Ursulino punha negros em correntes.Também os escravos dele eram uma desgraça. Quem tinha o seunegro fujão vendia-o para o eito do Itapuá. Mandavam-seescravos para o Úrsulino como hoje se mandam meninos para amarinha - para amansar. E a gente do Partido Liberal pôs aUrsulino o nome de «barão do couro cru». Quando veio o 13 deMaio, fizeram um coco no terreiro até alta noite. Ninguémdormiu no engenho, com o zabumba batendo. Levantei-me demadrugada, para ver o gado sair para a pastagem, eencontrei-me com a negrada, de enxada ao ombro: iam para oeito. E aqui ficaram comigo. Não me saiu do engenho um negrosó. Para esta gente pobre a abolição não serviu de nada. Vivemhoje comendo farinha seca e trabalhando a dias. O que ganhamnem dá para o bacalhau. Os meus negros enchiam a barriga comanu de milho e ceará, e não andavam nus, como hoje, com tudo àmostra. Só vim a ganhar dinheiro em açúcar com a abolição.Tudo o que fazia dantes era para comprar e vestir negros. "Cabeça-de-Puque ensinava os meninos de Manuel António doBonito. Um dia desapareceu um dinheiro de ouro do velho.Atirou-se logo a culpa para cima do mestre.E judiaram com o homem de tal forma, para descobrir o roubo,que o deixaram a morrer. Dias depois prenderam um pedreiro emItabaiana, que estava a trocar dinheiro em ouro na feira.

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Então tudo ficou descoberto. O pedreiro trabalhava retelhandoo sobrado do Bonito, quando viu o velho Manuel António pondoum saquinho debaixo de uma galinha choca, deitada. Era ali aburra do engenho. E por causa desta surra no Cabeça-de-Puque osenhor de engenho andou pelos matos até o Partido Conservadorsubir. Dom Pedro chegou ao Pilar uma tarde. Ninguém esperava porele. A casa da Câmara estava fechada. Era certo que estaria navila no outro dia, mas o imperador só andava a correr,cansando os cavalos. Quando a cavalhada entrou na rua grande,o povo todo correu para ver. Dom PEdro parou defronte da casada Câmara. Vieram abrir. Tio Henrique, vereador, tremia demedo. Não havia nem uma cadeira lá dentro. Estava tudo nomarceneiro a envernizar. A grande sala do júri, vazia. DomPedro subiu, com o seu grande chapéu do Chile, olhou paratodos os lados: não viu móveis. Atirou o chapéu para o chão edeitou-se na rede do pedreiro que estava a limpar a casa paraa festa. O presidente da província mandou prender o tioHenrique pelo desastre. Estas histórias do meu avô prendiam-me a atenção de um modobem diferente daquelas da velha Totonha. Não apelavam para aminha imaginação, para o fantástico. Não tinham a soluçãomilagrosa das outras. Puros factos diversos, mas que segravavam na minha memória como incidentes a que eu tivesseassistido. Era uma obra de cronista ressumando realidade. A história inteira da família era contada nestes serões dedepois da ceia. O avô do velho José Paulino viera de Pasmado,com um irmão padre para São Miguel. Fundara ali pelas várzease caatingas do Paraíba uma grande prole de senhores deengenho. Espalhara sangue de branco por entre os caboclosdaquelas redondezas.Por isso a gente do Taipu falava de bronquidade com a bocacheia. - Hoje em dia está tudo a tornar-se camumbembe - dizia o meuavô. - Este negócio de família já não é dote para moça casar. Ele tinha o orgulho da casta, a única vaidade daquele santoque plantava cana. A minha primeira paixão tinha sido pela bela Judite, que meensinara as letras no seu colo. O meu coração de oito anosarrebatava-se agora com mais violência. Estavam no engenho apassar uns tempos umas parentas do Recife. Era uma gente quenão tirava as meias de manhã à noite; falavam francês uma coma outra, só conversavam de negócios de teatro: o tenor Tal,que belo homem!, a artista Fulana, que chique! As filhas do tio João, quando chegavam ao engenho,revolucionavam os hábitos pacatos da casa-grande. Só viviammetidas nos banhos mornos, dando trabalho às negras, lendoromances nas cadeiras de balanço. Punham esteiras de piripiripor cima dos quartos delas, porque tinham medo da telha-vã:podiam cair bichos de lá. Os moleques passavam o dia inteiroespantando os sapos das calçadas. Elas fugiam das baratas, aosgritos. E até em nós esta influência se exercia: não tirávamosos sapatos dos pés, por causa da gente do Recife. A tia Mariadesdobrava-se em cuidados, temendo a língua das parentascivilizadas. Uma delas dissera em carta, para uma amiga dacidade, que o povo do Santa-Rosa só tinha de gente os olhos. Eenchiam a casa de chiliques e de cheiros de essência. Aos

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domingos iam de chapéu à missa do Pilar. E censuravam opessoal do engenho, porque, a meia légua da igreja, ficava emcasa nos dias de obrigação. - José Paulino é um hereje, e cria esta gente daqui comobichos. O menino da Clarisse nem fez a primeira comunhão. O meu avô ouvia as primas com aquele seu sorriso de justo.Ele sentia-se amigo de Deus com o coração de bom que era odele. A grita de suas primas devotas não lhe doía naconsciência. O Santa-Rosa com as meninas do tio João parecia outro. Asala de visitas abérta o dia inteiro, as negras a conversarembaixo na cozinha, a tia Maria de vestido de passeio, osmoleques pequenos vestidos, sem as nadegazinhas de fora. Astardes, visitas de outros engenhos; brinquedos de prendas denoite, conversas sobre a moda, e queijo do reino na mesa. Atéo meu avô, sem os seus gritos e palavras para os moleques daestrada. Para mim, a visita viera aperrear-me o coração de menino.Maria Clara, mais velha do que eu, andava comigo pela horta.Menina da cidade, encontrara um bedéquer amoroso paramostrar-lhe os recantos do Santa-Rosa. Queria ver tudo - orio, os cajueiros, o cercado. Maria Clara, com aqueles seuscabelos em cachos e uns olhos grandes e redondos, fizeram-meesquecer o carneiro e os passeios solitários. Brincávamosjuntos, comíamos juntos e toda a gente reparava nesse pegadioconstante. Ela contava-me as histórias das suas viagens demar, pintava-me o vapor, os camarotes, o tombadilho e o marbatendo no olho de vidro das vigias. - Não havia perigo, parecia que se estava em casa. Haviamesa para os meninos e gente adulta. E banho de chuveiro.Passavam-se dias só se vendo céu e mar. Sentávamo-nos por debaixo dos gameleiros, nestas longasconversas. Eu também contava as minhas coisas de engenho: ofogo no partido, a cheia cobrindo tudo de água. Exagerava paraparecer impressionante à minha prima viajada. Ali mesmo, aondeestava sentada, o rio passara com mais de nado. A canoaencalhara no gameleiro. As nossas conversas iam longe. Maria Clara perguntava porAntónio Silvino. Então desfazia-me em histórias. O cangaceiroencantava-se em bicho. Uma tropa vinha atrás dele, e o queencontrava era um rebanho de carneiros. Uma vez matara uma onça numa luta corpo a corpo; quando nãopodia mais com a fera, lembrou-se do punhal: meteu o chapéu decouro no focinho da onça e enfiou-lhe a arma no coração. Ocouro desta onça era aquele que meu avô tinha na sala. Procurávamos a sombra dos cajueiros para os nossoscolóquios. Havia folhas secas pelo chão, como um grande tapetecinzento, que rangiam sob os pés. E o cheiro agradável da florde caju chegava até longe. - Vamos fazer piquenique nos cajueiros. Levávamos merenda, pedaços de Pão e queijo, que as formigascomiam. Maria Clara olhava-me séria, pegava-me nas mãos,perguntando o que a gente faria ali se o António Silvinoaparecesse. - Ele casava-nos. E contava-me cena por cena das fitas do cinema que vira, dosamores dos seus heróis predilectos e dos casamentos bonitos

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que faziam. Os galos-da-campina cantavam bem perto de nós os seusnúmeros de sucesso. E os concris depenicavam os cajusvermelhos, chiando de gozo. - O engenho é melhor do que o Recife - dizia-me Maria Clara.- A mamã conta que morando aqui nos tornamos bichos. Ela querque eu toque piano e fale francês. Aqui é bom porque não háaulas, não há professoras. Uma ocasião, depois que ela terminou uma fita de doisnamorados deitados na relva nos braços um do outro, eu agarreiMaria Clara e beijei-a forte na boca, Corri como um doido paracasa, com o coração a bater. - Este menino fez travessura. Basta estar corado -repararam, quando apareci na cozinha. Escondi-me da namorada o resto da tarde. À hora da ceia, elaestava, com os seus olhos redondos e pretos, a olhar para mim.A noite toda, foi um sonho só com Maria Clara. Ia com ela nonavio não sei por onde. E o mar batia com raiva no meu barco.Chovia tanto, que a água começava a encher o casco. Só se viamar e céu. Eu tinha medo de ir para o fundo. Maria Clara diziaque não havia perigo. E nós chegávamos aos cajueiros eficávamos nas folhas secas, a dormir. Um dia ela chamou-me para ver uma coisa: a canalha do curralestava em amor livre, num canto da cerca. Tirei a minhanamorada dali. Aquilo era porcaria para os seus olhoslimpinhos. E o meu amor crescia, dilatava o meu verde coraçãode menino. As meninas do tio João já estavam em despedidas. Para asemana voltariam para o Recife. De engenho a engenho andavampassando dias. E chegavam prestes de toda a parte: rendas daterra, colchas bordadas, panos de filé. Os bichos dos engenhosgostavam das primas assanhadas. A viagem seria na terça-feira. Depois de amanhã não tornariaa ver a minha companheira. Fizemos os idílios derradeiros,correndo os nossos recantos preferidos, como um casal denamorados de livro. De manhã, o carro de bois saía com o povo para a estação. Asmeninas do tio João dando dinheiro às negras, a velha Generosachorando, todos na sala aos abraços e beijos. O tio Juca iriacom a tia Maria à estação. Para meninos não havia lugar. MariaClara nem parecia que me queria bem, toda satisfeitta, sentadano carro. Esperava que ela estivesse triste como eu. Mas qual!Alegre com a viagem, bem contente no meio do alvoroço dasdespedidas. Já saíam do terreiro, ganhando a estrada. Corri para asestacas do cercado a fim de olhar ainda o carro. Trepei àcerca até que se sumisse a carruagem com a minha ingrata.Quando cheguei, de volta, não sei quem disse, na cozinha: - Ficou sem namorada, hem? As lágrimas chegaram-me aos olhos, disparei num choro quenão contive. Foi a graça da casa durante o dia. À mesacontaram ao meu avô. O velho José Paulino riu-se: -A quem saiu este menino assim namorador? E o meu amor era a conversa de toda a gente. Dormi à noite, com Maria Clara junto de mim. Os sonhos de ummenino apaixonado são sempre os mesmos. Acordei, porém, com aprimeira angústia da minha vida. Os pássaros cantavam tão

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alegres no gameleiro, porque talvez não soubessem da minhador. Senti nesse meu despertar de namorado um vazio dolorosono coração. Tinha perdido a minha companheira dos cajueiros. Echorei ali, entre os meus lençóis, lágrimas que o amor fariaainda muito correr dos meus olhos. O meu avô recebera uma carta sobre o meu pai. Soube isto poruma conversa dele com o tio Juca. Não sabiam que eu estava nasala de visitas a ver umas revistas velhas - e conversavam. Odirector do hospício escrevera perguntando se o meu paicontinuaria como pensionista, pois os parentes dele há mesesque haviam suspendido a mesada. - Acho que o senhor deve pagar. Afinal de contas, é seugenro. - Foi isso mesmo que eu fiz. Escrevi ao Lourenço para tomarconta disso todos os meses. Foi um choque para mim essa certeza da desgraça de meu pobrepai. Sabia que estava doente, mas assim, quase na indigência,tocou-me fundamente. Contei à tia Maria o que escutara daconversa. Ela não me quis dizer coisa nenhuma. - Isso não é assunto para o menino. Vá brincar lá fora. Não achei graça a nada, nesse dia. Só pensava no meu pai,amarrado num quarto, gritando. Chegara uma vez um doido ao engenho, para ser levado para oasilo. O homem olhava-nos como se quisesse comer-nos com osolhos, e fazia um esforço desesperado para soltar os braços,amarrados com cordas. De noite cortavam o coração os seusgritos angustiados. Cuando saiu de manhã, para o comboio, fuiolhá-lo. Estava manso, com um sorriso de menino na boca. O meu pai devia ser assim também, Devia estar fechado numquarto de grades, com aqueles gritos de desespero, tratadocomo animal perigoso. - Eles vão para o Céu - afirmavam dos doidos. - Sãoinocentes como os anjos. Havia, porém, doidos que o eram por influência do diabo.Metiam-se com invocações, e o demónio tomava-lhes conta docorpo. O meu pai, sem dúvida, não seria destes. Seria inocente comoos outros, e iria para o Céu. E isto consolava-me um bocado dasua situação. Mas os doidos começavam a tomar conta de mim deuma maneira absorvente. E comecei a ter medo de endoidecertambém. No engenho todos diziam: - Fulano saiu ao pai, é a cara da mãe, tem o génio dafamília. Quem sabe se eu não ficaria como meu pai? Punha-me tristecom estes pensamentos sombrios. - É porque a namorada se foi embora. A lembrança do homem amarrado com cordas, e com aquelesolhos de cachorro doente, atormentava a minha tenrasensibilidade. Essas preocupações de doença, começadas nainfância, iriam ser uma das torturas da minha adolescência. Um médico que veio ao engenho examinou-me da minha asma.Perguntou tudo: de que morrera minha mãe, de que sofria meupai. Disse então que era preciso um tratamento rigoroso para omeu caso; fazer uma série de injecções. E porque não sepudesse aplicar ali no engenho o seu tratamento, receitariauns remédios internos. Fiquei preso aos horários dos frascos de mezinhas e às

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dietas exageradas. O meu avô com cuidados. Ninguém ralhavacomigo. Certa ocasião o primo Silvino queria uma coisa que eutambém desejava. Deram-ma, e como o meu primo protestasse: - O Carlinhos está doente, ninguém pode fazê-lo zangar. Isso aumentava o meu desengano, as minhas desconfianças demim mesmo. Voltei-me para os canários e o carneiro. Eles nãome falavam de doenças, não tinham medo de que eu morresse.Eram também as meditações solitárias e as conversas mudas como meu íntimo que voltavam. Já não ia aos banhos de rio,ralhavam-me quando me viam ao sol, não podia ficar de noite deconversa na senzala. - Vem para dentro, Carlinhos. Era o que ouvia de todos os lados. A minha vida estava atornar-se como a dos meus canários prisioneiros, enquanto osmeus primos se soltavam e um magnífico Verão se abria em diasde festa de sol, em noites brancas de lua cheia. Não mequeriam levar para parte alguma, Os moleques tinham medo deandar comigo. - Ralham com a gente - era como respondiam aos meus convitesde passeios e brincadeiras. Via os meus primos vermelhos de sol, chupando tudo que erafruta, com uma amargura que me consumia. Aqueles cuidadosexcessivos transformavam-me. Criava uma raiva bem viva a todosos que se opunham às minhas vontades. Até para a minha tiaMaria, tão meiga para mim, tão cheia de ternura para o seufilho adoptivo, me voltava com rancor. "Este menino está a tornar-se diferente", pensava ela dosmeus maus humores de contrariado. A minha amiga acertava. Só me consentiam sair à tardinha,nos meus passeios de carneiro. Mas que não voltasse sob ahumidade da noite. Eu consolava-me das proibições nessas fugidas aos arredoresdo engenho. Os meninos dos muradores brincavam comigo semreceio, pois até lá não chegavam os zelos da minha gente. Nacasa de Maria Pitu demorava-me tardes inteiras, com ocarneirinho amarrado comendo folhas de cabreira, enquanto eu,solto com os camaradas, fazia tudo o que não me consentiam noengenho. Eram três os meninos de Maria Pitu.E um doente, coitado, sempre sentado num caixote, e com umacabeça enorme, pendendo. Não andava, não falava, a cabeçaarriada para a frente, com o peso, olhava para o mundo com unsolhos que ardiam de vivacidade. Desde que nascera que eraassim. A mãe tratava dele como de um bicho doméstico. Dava-lhea comida com úma colher de pau, deixando-o esquecido dentro docaixote, no terreiro. Fazia-me horror essa criatura quasedona. Mas os seus olhos pareciam mesmo de gente. Pretos evivos, fitavam-me com um interesse que me perturbava. Era, semdúvida, por se tratar de coisa estranha da casa. Não tinhanome, não fora ainda baptizado. Chamavam-no Cabeção, e elerespondia com um riso de boca mole, que fazia nojo. Às vezesficava com medo dele, com aqueles guinchos que lhe saíam daboca. Era a fome. E davam-lhe um pedaço de brote para roer. Amãe desejava-lhe a morte em todas as conversas. - Deus Nosso Senhor devia levar aquilo do mundo. Só davatrabalho, aquele aleijão. Seria até um alívio para opobrezinho. Mas ele não morria, como se estivesse muito sólido e

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satisfeito daquela miséria da natureza. Voltava para casa apensar nele. Ouvira dizer que o pai morrera por beber de mais.O filho nascera assim por causa da cachaça. Destes problemas de hereditariedade me aproximava com pavor.Também tinha um pai a quem podia sair. E todos no engenhopensavam nisto, porque me cercavam de cautelas e precauções. Eos frascos de remédio enchiam-me a boca de amargo três vezesao dia. O pai do Cabeção bebia como o José Passarinho. E deraao mundo um filho daqueles. Os meus pensamentos vinham assim de fontes envenenadas depessimismo. Menino, e pingando em cima da minha infância esteácido corrosivo que me secava a alegria de viver. E os meusparentes ainda mais me sacrificavam, em vez de me deixarem nocontacto inocente com os meus pequenos prazeres. O diabodaquele doutor fechara-me núm inferno, ali, a dois passos deum paraíso de portas abertas. Os pensamentos ruins principiavam a fazer ninho no meucoração. Batiam asas por fora, mas vinham sempre terminarcomigo, nas soluções que me davam, nos sonhos que me faziamsonhar, nos ódios a que me arrastavam. Por debaixo dossapotizeiros, nas sombras amigas destas árvores, à espera doscanários, só tinha pensamentos maus. Criava assim dentro demim uma pessoa que não era a minha. As reclusões forçadas aque submetiam o menino que precisava de ar e de sol iamperdendo mais a minha alma que salvando o meu corpo.Lembrava-me de Maria Clara com uma saudade cheia de desejosque nunca tivera. Misturava as minhas alegrias de antigamentea umas vontades perversas de posse. Os meus impulsos tinhammais anos que a minha idade. Ficava horas seguidas olhando, nocurral, as vacas que mandavam de outros engenhos parareproduzirem com os zebus do meu avô, e as bestas vadiasrinchando com os pais-d'égua pelo cercado. O sexo crescia emmim mais depressa do que as pernas e os braços. A negra Luísa fizera-se comparsa das minhas depravaçõesantecipadas. Ao contrário das outras, que nos respeitavamseriamente, ela seria uma espécie de anjo mau da minhainfância. Ia-me deitar para dormir, e quando estávamossozinhos no quarto, arrastava-me a coisas ignóbeis. Eu era ummenino sem contacto com o catecismo. Pouco sabia de rezas. Eesta ausência perigosa de religião não me levava a temer ospecados. Muito depois, esta miséria de sentimentos religiososse reflectiria em toda a minha vida, como uma desgraça. Amoleca iniciava-me, naquele verdor de idade, nas suasconcupiscências de mulata incendiada de luxúria. Nem seicontar o que ela fazia comigo. Levava-me para os banhos dabeira do rio, sujando a minha castidade de criança com os seusarrebatamentos de besta. A sombra negra do pecado juntava-seaos meus desesperos de menino, contrariado, para mais me isolar da alegria imensa que gritava por toda aparte. O engenho, na festa das doze horas da moagem. O povomiserável da bagaceira compunha um poema na servidão: omestre-de-açúcar pedindo fogo para a boca da fornalha, o ruídocompassado das talhadeiras no mel quente que espumava. E do péda moenda:

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Tomba cana, negro; eu já tombei.

O engenho de Massanguana faz três anos que não mói. Ainda ontem plantei cana, faz três anos que não mói.

Os carros de bois gemendo nos eixos de pau-darco, oscambiteiros tangendo os burros com o chicote tinindo, e o ô!dos carreiros para os Labareda e os Medalha, mansinhos. Osmoleques, trepados nas mesas dos carros, aprendiam a carrearcom os mestres carreiros. Tudo nessa labuta melódica doengenho moendo. Chegavam visitas do Pilar. Os meninos do capitão JoséMedeiros com farda do colégio diocesano. Já não vinhammontados em carneiros, com vergonha da montada de outrora.Contavam-me histórias do internato. E aqueles botões douradosde uniforme enchiam-me de inveja. O meu avô conversava com opadre Severino e o Dr. Samuel, o juiz municipal. Tratavam dosnegócios políticos da vila, das eleições próximas, e do júride algum protegido do coronel José Paulino. À noite, quando essa gente retornava, saíam atrás osmoleques com as latas de mel e os cabaços de caldo à cabeça.Mas tudo isso, que constituía um acontecimento, agora, delonge, parecia-me indiferente. Só pensava nos meus retiroslúbricos com o meu anjo mau, nas masturbações deliciosas com anegra Luísa. E comecei a querer-lhe um bem esquisito. Um bemque me arrastava à roda da sua saia para onde ela ia. E nãogostava dos negros com quem se metia em cochichos. O grandemal dos amorosos, a inquietação dos que se sentem enganados,um ciúme impertinente enfiava-se todo pelo meu coração. Anegra, porém, dizia-me que eu ainda tinha o cheiro de leite naboca, e dava rendez-vous aos cabras pelas alcovas cheirosasdas fruteiras. Era um vício absorvente o meu pegadio com a negra Luísa. Osexo impunha-me essa escravidão abominável. O casamento da tia Maria estava marcado para o São Pedro.Ela fora ao Recife comprar muita coisa do seu enxoval.Trouxera-me um velocípede e um bonito fato de marinheiro.Comprara com estes presentes a minha vontade de ir com elatambém. No engenho, os preparativos da festa tomavam conta de todasas actividadeS. Os pintores játinham terminado a limpeza dacasa-grande. Tudo cheirava ao óleo novo das portas: osmarceneiros envernizavam a mobília preta da sala; rescendia oouro-banana das molduras remoçadaS. O mestre Galdino,cozinheiro, chegara da cidade para fazer o banquete. A negraGenerosa ficava assim destronada do seu reino, e na cozinha jánão podiam entrar os meninoS. O homem de chapéu branco e deavental preparava os fiambres, isolado de toda a gente.Parecia que a casa-grande perdera metade da sua vida com aporta da cozinha fechada. O homem não queria conversas pelosbancoS. Ninguém podia saber das coisas, era ali onde sepublicavam todas as novidades do engenho. Nas cozinhas das

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casas-grandes vivem as brancas e as negras, nessas conversascomo de igual para igual. As brancas deitadas, davam ascabeças para os cafunés e a cata dos piolhoS. E as negrasiam-lhes contando as suas histórias, fazendo as suas queixas,pedindo os seus favoreS. Agora, para o casamento da tia Maria,o velho Galdino fechara a cozinha do Santa-Rosa. Começavam a chegar as gentes dos outros engenhos para grandefesta de São Pedro: o povo da Aurora, de Fazendinha, do Jardim, do Cambão. Os carros de bois paxavam no terreirocom uma festa de abraçoS. Vinham meninos, vinham negras, vinhao baú com o vestido novo para o dia. Chegava gente a cavalo,gente de comboio, da Paraíba e do Recife. Mandaram buscar opiano de dona Nenén do seu Lula. E quando chegou, à cabeça doscabras, lembrei-me de repente do Recife. Lá, eles cantavam.Corri então para ver a cantiga dos ganhadores, regulando ospassos com a toada, para não desafinar:

João Crioulo, Maria Mulata: João Crioulo, Maria Mulata.

Ai pisa-pilão, pilão gonguê. Ai pisa-pilão, pilão gonguê.

E na beira dos rios começava a matança dos porcos e doscarneiroS. Fui ver os sacrifícios. Iam matar também o meucarneiro. Dar-me-iam outro, mas o Jasmim rebolava, de gordo,bom mesmo para o talho. Os porcos gemiam na ponta da faca deZé Guedes, e um sangue escuro corria em arco do pescoçofurado. - Os meninos não podem ver estas coisaS. Tornam-seassassinoS, gente. E o bicho ficava com o olho duro, olhando para a gente. Omeu pobre Jasmim iria para a faca. Estava debaixo dosmarizeiros esperando a hora da morte. Comia ainda o capim dochão, numa inocência que me tocou. Não sabia de nada. Olheipara o meu companheiro como para um amigo condenado à forca.Zé Guedes com a maceta na mão pegou-o pelo cabresto.Descarregou-lhe o cacete na cabeça, que o deixou estendido,arquejando. Amarrou o meu Jasmim pelos pés e dependurou-o decabeça para baixo. Depois meteu-lhe a faca de ponta nagarganta. Nem um gemido do pobrezinho. Calado, com o sanguecorrendo e os olhos abertos, bem vivo. Duas grandes lágrimasmiravam naquele longo olhar de sofrimento. E começaram a tiraro couro, com a quicé a chiar e a carne branca a aparecer. - Tem muita gordura. Saí da matança com a alma a doer-me, e teria chorado muitose não fosse o alvoroço do povo na casa-grande. As negras,trepadas, limpavam os vidros das rótulaS. As visitas emconversas pelos quartoS. E a pândega dos homens na rua. Asrisadas e as histórias contadas para fazer graça. Os senhoresde engenho da redondeza, de meia e chinela no pé, falavam de

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safras, do preço do açúcar, de bois de carro, do Inverno, deplantações de cana. Na casa-grande do Santa-Rosa já não haviacómodos para tanta gente. Armavam redes pela casa da farinha eno sobradinho do engenho. E ainda chegariam convidados nopróprio dia do casamento. O meu avô ficava de palestra com osmais velhoS. Os perus de roda e os capões gordos morriam aosmagotes na cozinha. Vinha um caixote de gelo e outro de frutasestrangeiras, de Paraíba. A música da Polícia chegaria ali nocomboio das dez. Pelo alpendre da casa-grande só se via gentea falar. Os moleques a cavalo, em caso, levando e trazendorecados do Pilar. O vestido da noiva chegaria de tarde, doRecife. O mestre Galdino não consentia ninguém na cozinha. Osmoradores que apareciam iam ficando sentados pelas pontas dacalçada, escutando tudo de boca aberta. Lica da Ponte trouxerauma porção de cravos para a noiva. velha Sinhazinha dividiacom os outros o seu prestígio de dona. Toda a gente mandavanas arrumações E havia três e quatro mesas para o almoço epara o jantar. Esperava-se o noivo com o pessoal do Gameleira,no outro dia de manhã.E de manhã chegaram, esquipando na estrada. Correram todospara os ver chegar. E foi uma gritaria de recepção. Levaram-nopara o quarto de cortinados, e ele também ficou de meia echinela, de conversa com os outroS. A tia Maria, nem pudefalar com ela. As primas do Maravalha estavam no seu quarto,preparando a noiva para a tardinha. Os craveiros da horta,limpoS. Uma bem casada preparava o ramo da noiva. E a horaaproximava-se. O padre Severino já estava lá com o juiz. A tiaMaria, toda de branco, bem triste, olhava para o chão. Amúsica da Paraíba tocava no alpendre. O noivo, contente,respondia às pilhérias dos rapazeS. O meu avô, de preto, com asua corrente de ouro no colete, e a velha Sinhazinha ringindo,na seda do vestido comprado feito, no Recife. A casa estavacheia de gente. Era um zunzum por toda a parte. Metiam-secomigo: - Vai ficar sozinho, hem? Quem vai tomar conta dele agora éa velha Sinhazinha. Não quis ver o casamento. Corri chorando para a minha cama.Tiniam os pratos na sala de jantar. Era o banquete. O doutorJurema fazia um discurso aos noivoS. Bateram nos copos quandoele se levantou. A tia Maria, enfiada. Nem olhava paraninguém. Os senhores de engenho, embevecidos com o discurso dopromotor. Era um elogio ao meu avô, que nem ouvia nada,pensando na filha. Depois veio a segunda, a terceira, a quartae a quinta mesa. E o baile de arromba na sala de visitaS. Quemmarcava a quadrilha era o professor José Vicente, do Pilar. Osnoivos sentados no sofá, no centro da sala. E o bailecontinuava. Fui dormir. Minha tia Maria beijou-me chorando. E de manhã,quando acordei, ainda a música tocava para a dança. Os noivos iriam no cabriolé do seu Lula. Já estavampreparados para a partida. Maria Menina dava os seus adeusescom os olhos cheios de lágrimaS. Abraçava-se às negras, quesoluçavam de pena. E beijou-me, abraçou-me não sei quantasvezes, enquanto eu chorava num pranto desesperado. O cabriolé saía tinindo as campainhas dos seus arreioS. Epela estrada molhada das chuvas de fim de Junho, lá se fora asegunda mãe que eu perdia. No terreiro ainda fumegava o resto

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da fogueira na noite. Depois selaram os cavalos para asvisitas que se iam. Os de longe, mais cedo. Outros ficavamainda para o almoço. Os carros de bois saíam carregados degente. O outro dia amanheceu chuvoso, e o Santa-Rosa, a coisa maistriste do mundo. Tudo vazio para mim, tudo oco, sem oscuidados, os beijos e as cavilações da minha tia Maria. A tia Sinhazinha chamou-me para perto dela, e passou a suamão pela minha cabeça, acarinhando-me. Era a primeira vez queeu sentia um afago da velha. - Você, no mês que entra, vai para o colégio. Desde que a minha tia Maria se fora que me falavam docolégio: - Ele não vai sentir muito, porque está a aprontar-se para ocolégio. E preparavam o meu enxoval, faziam camisas de homem paramim, e calças compridas, e ceroulaS. Tinha a mala nova cheiade roupa branca, para o internato. Comeceientão a reprimir asminhas lágrimas, pensando no tempo de colégio que viria. Nãoia para ali com medo. Pelo contrário: vivia a desejar o dia daminha partida. Os primos tinham-se ido embora, e chovia todosos diaS. E os dias de chuva deixavam-me preso aos meuspensamentoS. O aguaceiro zunia nos cajueiroS. Descia da mata numacarreira rumorosa, e roncava ao longe como um comboio nalinha. - Tira o feijão do sol! Empurra o balcão do açúcar! Os moleques corriam para o terreiro coberto de ramos demulatinho meio secoS. A chuva chegava com pingos de furar ochão e chovia dia e noite sem parar. As primeiras chuvas doano originavam uma festa no engenho. O tempo armava-se comnuvens pesadas, fazia um calor medonho. - Vamos ter muita água! O meu avô ficava pelo alpendre a olhar o céu, batendo com avara de jucá pelas ruaS. Era a sua grande alegria: a bátegaamolecia o barro duro dos partidos e enverdecia as folhasamarelas das canas novas. Às primeiras pancadas do Inverno, os cabras deixavam o eitopara tomar uma bicada na destilação. Vinham gritando decontente, numa alegria estrepitosa de bichoS. Mas isto somentenas primeiras chuvaS. Depois aguentavam nas costas oaguaceiro, tomando o seu banho de chuva de doze horaS. Pelaestrada passavam os cargueiros metidos em capotes, no passomoroso do cavalo. Paco, paco, paco, paco - lá iam espadanandoa água com os cascoS. Chegavam os moradores com as calçasarregaçadas, pedindo sementes de algodão para o roçado. E achuva a cair sem cessar. Ficava a olhar os riachos descendo pelos altos e a estradaque parecia um rio de lado a lado: A casa-grande, escura comose fosse a boca da noite. Acendiam os candeeiros mais cedo. Ea cozinha suja de lama, da gente de pé descalço que entravalá. José Felismino chegava de noite, respondendo às perguntasde meu avô: - A térra molhou-se mais de um palmo. Tiraram-se quatrocinquentas na planta do roçado. Acabou-se o partido de baixo. O Inverno deste ano vai ser pesado. O Crumataú já desceu commuita água. Invernão.

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Os dias tornavam-se compridoS. Não se tinha para onde ir. Eu olhava a chuva, que era a mesma coisa sempre, engrossandoe afinando numa intermitência monótona e impertinente. À tardinha os cabras do eito chegavam, pingando da cabeçaaos péS. Vinham com as canelas enlameadas e as mãosenregeladas de frio. O chapéu de palha pesado de água,gotejando. Mas indiferentes ao tempo. Parecia que estavamdebaixo de bons capotes de lã. Levavam bacalhau para asmulheres e os filhos, e iam dormir satisfeitos, como se osesperasse o quente agradável de uma cama de rico. Dentro da casa deles, a chuva trazida pelo vento amolecia ochão de barro, fazendo riachos da sala à cozinha. Mas os sacosde farinha do reino eram os edredões das suas camas demarmeleiro, onde se encolhiam para sonhar e fazer os filhos,muito satisfeitoS. Iam com a chuva nas costas para o serviço evoltavam com a chuva nas costas para casa. Curavam as doençascom a água fria do céu. Dentro em pouco, porém, teriam o milhoverde e o macaça maduro para a fartura da barriga cheia. Estes dias de chuva, agora que a minha tia se fora,faziam-me mais triste, mais íntimo comigo mesmo. Acordava demanhã com a chuva a correr na goteira e nem um sinal depássaro no gameleiro. Estirava-me na cama, pensando na vida.Todos me diziam que eu era um atrasado. Com doze anos semsaber nada. Havia meninos da minha idade que faziam contas esabiam as operaçõeS. Só indo para o colégio. Sabia ruindades,puxara de mais pelo meu sexo, era um menino-prodígio daporcaria. E ali, sozinho, no quarto, os pensamentos mausconduziam-me às agradáveis masturbaçõeS. A negra Luísadeixara-me, andava de barriga empinada, com as dificuldades eos medos da primeira cria. Estava prenhe e não sabia de quem.Diziam que era de todos os cambiteiros do Santa-Rosa. Olhava muito para um São Luís Gonzaga que a minha tia Mariadeixara na parede do quarto. Tinha vergonha dos meus pecadosna frente do santo rapaz. Arrepia-me sinceramente daquelasminhas lubricidades de pequena besta assanhada. E no outrodia, enquanto a chuva se derramava lá por fora, voltavam-meoutra vez os pensamentos do diabo. Sujava os olhos do santocom os meus actos imundos de sem-vergonha. Um dia a chuva parava, e o sol, vingando-se das nuvensescuras que lhe taparam o rosto, queimando, brilhava em cimados matos, como nunca. As tanajuras aproveitavam a trégua parauma passeata por toda a parte. Zuniam junto dos ouvidos dagemte e depois iam arrastar a bunda gorda pelo chão. Mané Firmino comia, torradas, com farinha seca, as tanajurasque apanhava. Era melhor do que galinha, dizia ele. Estes dias de estiagem acabavam com o mofo da humidade.Punham feijão de rama a secar no terreiro. E abriam os baús deroupas pelas calçadaS. Ia ver o milho novo apontando no roçadoe os bezerrinhos nascidos saltando à doida pelo curral. Asmães ficavam bravas nos primeiros dias do parto, irritadaspelo nascimento dos filhoS. Um sol criador ajudava a terra nosseus trabalhos de mãe. E, se demorasse, as lagartas caíam emcima das folhas das plantações, deixando-as rentes ao chão.Pedia-se então uma pancada de água de alagar. E começava achover: os pés de milho cresciam, a cana acamava-se na várzea,o gado engordava e as vacas pariam.

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O engenho estava a moer quando se ouviu um rumor de pancadana boca da fornalha. Eram dois cabras brigando de cacete efaca de ponta: Mané Salvino e o negro José Gonçalo. O de armana mão avançava para o que brandia o cacete pequeno, que acada momento tocava de raspão na cabeça do outro. O engenhotodo correu para ver a briga. Os cabras não atendiam aosgritos do velho José Paulino. - Deixem os negros matarem-se. Já estavam na bagaceira pegados como cachorros num vaivém depancadas e de golpeS. Nisto o negro Gonçalo deu um grito etombou para um lado com a mão na barriga. E Mané Salvino emdisparada pelo cercado. - Pega o cabra! Pega o cabra! Corria gente de todos os lados atrás do assassino. MestreFausto atirou-Lhe um tijolo e ele caiu de bruços por cima dacerca de arame. Já estava amarrado com cordaS. E o outro estendido com asduas facadas mortaiS. Pedia água, olhando para a gente com unsolhos amortecidoS. E nem dava um gemido: - Quero água, quero água! - com uma fala rouca de tísico,arrastando a voz como um bêbado. - Leve o homem para o sobradinho. Mas quando pegaram nele, os braços caíram bamboS. Estava nasúltimaS. - Moleque bom, ordeiro -, diziam do ofendido. Mais tarde chegavam a mulher e os filhos num berreirodoloroso. Era um choro alto e pungente, o da negra e dosmoleques pequenoS. Cinco fiLhos miúdos e um de peito ainda. Deitaram o defunto na rede. Ia para o corpo de delito noPilar. A família saiu atrás, enchendo aquela boa tranquilidaderural de uns lamentos de canto fúnebre. O outro estava na casa de bagaço, a apanhar: - Valei-me, minha Nossa Senhora! Valei-me, minha NossaSenhora! E o cipó de boi roncava-lhe nas costas - lápote!, lápote! Eo grito de misericórdia do negro chicoteado. - Vá dizer ao seu Juca que eu não quero isto aqui. Mande ocabra para a vila. Entregue-o à Justiça. Lá, façam dele o quequiserem; aqui, não. Estas surras não adiantam nada. O cabra vinha com a cabeça lascada, a gotejar. A camisa todasuja de sangue, com as cordas a amarrar-lhe os braçoS. Nãoolhava para ninguém. - Diabo malv ado! - O negro afrontou-me, seu coronel. Quando saiu para o Pilar, foi com um bando atráS. Muitos jáestavam do lado dele. - A cadeia fez-se para os homenS. A mulher e os filhos choravam também, pedindo protecção aosenhor de engenho. O defunto deixara as tábuas do sobradinho encardidas desangue. Rasparam com bucha no outro dia, mas a mancha ficou.Sangue de gente não larga. Sempre que estávamos no engenho,não pisávamos por cima daquilo, com medo. Espalhavam queenquanto aquele sangue não se sumisse, o defunto apareceriapor ali. Havia gente que vira o negro deitado pelospicadeiroS. E as visões começavam a aparecer. Uns tinhamencontrado o engenho a moer vazio. Outros, carros de bois

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andando sem sair do lugar. E o negro Gonçalo a cortar cana. Estas histórias chegavam àcozinha, onde ninguém duvidava. O pé de marizeiro andava de um lado para outro pelo rio. Etodos os dias havia um sonho de botija para contar. Já não sefalava de lobisomenS. As almas do outro mundo tomavam conta domedo do povo do Santa-Rosa. Tinha uns doze anos quando conheci uma mulher, como homem.Andava atrás dela, beirando a sua casa de palha, numa ânsia,misturada de medo e de vergonha. Zefa Cajá era a grandemundana dos cabras do eito. Não me queria. - Vá-se criar, menino intrometido. Mas eu ficava por ali, conversando com ela, a olhar para amulata mesmo com vontade de fazer coisa ruim. Esteve comigouma porção de vezeS. Levava as coisas do engenho para ela -pedaços de carne, queijo roubado do armário; dava-Lhe odinheiro que o meu avô deixava por cima das mesaS. Elaacariciava-me com uma voracidade de animal de amor; dizia queeu tinha gosto de leite na boca e queria-me comer como umafruta, de vez. Andava magro. - Este menino está com vício. Era mesmo um vício visguenito aquele dos afagos de ZefaCajá. Mal tomava o café, ia para casa dela, ia depois doalmoço e depois do jantar. Foram dizer ao meu avô: - O menino não sai da casa da rapariga. O velho José Paulino então disse-me aos gritos: - Se não fosse para a semana para o colégio, dava-lhe umatareia. Mas não fez o barulho que eu esperava. Para estas coisas ovelho olhava por cima. A sua vida também fora cheia deirregularidades dessa natureza. Quando se zangou com o tioJuca por causa da mulata Maria Pia, ouvi a negra Generosa dizer na cozinha: - Quem fala! Quando era mais moço, parecia um pai-d'éguaatrás das negraS. O seu Juca teve a quem sair. Mas eu tinha que pagar o meu tributo antecipado ao amor.Apanhei «doença do mundo». Escondi-me muitos dias do povo dacasa-grande. Ensinaram-me remédios que eu tomava em segredo,na beira do rio. Deixava ao relento a goma com açúcar para osmeus maleS. Não melhorava, tinha medo de urinar com as doresmedonhaS. E por fim souberam na casa-grande, Foi um escândalo: - Daquele tamanho, e com gálico! Meteram a Zefa Cajá na cadeia, e eu, desconfiado, comvergonha de olhar para as pessoaS. Fui motivo de todos oscomentários, de risadaS. O meu tio Juca tomou conta dotratamento. Onde eu chegava, lá vinham com indirectas: - Menino danado! E comecei a envaidecer-me com a minha doença. Abria aspernas, exagerando no andar. Era uma glória para mim essacarga de bacilos que o amor deixara pelo meu corpo imberbe.Mostravam-me às visitas masculinas como um espécime devirilidade adiantada. Os senhores de engenho debochavam-sediante de mim, dando-me confiança nas suas conversaS.Perguntavam pela Zefa Cajá, chamavam-na professora. - Saiu ao avô! E riam-se, como se fosse uma coisa inocente este libertinode doze anoS.

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O moleque Ricardo apanhara na mesma fonte a sua doença dehomem. Estava entrevado na rede, sem dar um passo. Eu tinhamedo de ficar como ele. E precavia-me de tudo, prendendo-meaos remédios, em escravidão. O meu companheiro pagara maiscaro do que eu o seu imposto de masculinidade. Curava-se comos remédios de casa: as garrafas de raiz de mato comaguardente de cana. - A minha foi pior do que a sua: é de cabresto. Parecia nun orgulho da ruindade de cada um. O tio Juca nãodava tréguaS. Levava-me aos banhos para o tratamento rigorosode seringa. Bebia refrescos de pega-pinto em jejum, chá deurinana de manhã à noite. E os diuréticos faziam-me vergonha: - Mijou na cama! E era um debique de todo o mundo. - Isto é lá homem! - dizia o velho José Paulino, quandosoube da minha fraqueza. A negra França lavava os panos da minha doença. Batia no rioas minhas imundícies purgadaS. Com um mêsmais, já estaria capaz de ir para o colégio. A «doença do mundo» operara em mim uma transformação. Via-memais alguma coisa do que um menino; e mesmo já me olhavam deforma diferente. Já não tinham para mim as condescendênciasque se reservam às criançaS. As negras tratavam-me como a umhomem. Não paravam as conversas quando eu chegava.Intrometiam-se. Procurava as lavadeiras de roupa pela beira dorio. Ficavam quase nuas, batendo os panos nas pedraS. Tomavabanho despido junto delas, olhando as suas partesrelaxadamente descobertaS. - Sai daí, menino safado! Mas riam-se, gostando dacuriosidade. Agora o engenho oferecia-me o amor por toda a parte: nasenzala, na beira do rio, nas casas de palha. Os molequeslevavam-me para as visitas por debaixo dos matos, esperando avez de cada um. Na casa-grande os homens achavam graça a tantalibertinagem. - Menino vadio! Só pai de chiqueiro! Eu ficava a pensar na tia Maria, se ela soubesse de tudoaquilo. Longe de mim, parecia um vulto de uma outra vida, aminha tia. Era um outro o menino que ela criara com tantocarinho. O sexo vestira calças compridas ao seu CarlinhoS. E o coração de um menino depravado só batia ao compasso dassuas depravações, Estava até a esquecer a doce ternura daminhasegunda mãe. Corria os campos como um cachorro no cio,esfregando a minha lubricidade por todos os cantoS. Osmoradores queixavam-se: - Ninguém pode deixar as meninas em casa com o seuCarlinhoS. João Rouco deu-me uma corrida por causa do filho pequeno,que eu quis agarrar. Em Junho iria para o colégio. Estava marcado o dia da minhapartida. - Lá ele endireita-se. Recorriam ao colégio como a uma casa de correcção.Abandonavam-se em desleixos para com os filhos, pensandocorrigi-los no castigo dos internatoS. E não se importavam coma infância, com os anos mais perigosos da vida. Em Junhoestaria no meu sanatório. Ia entregar aos padres e aos mestres

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uma alma onde a luxúria cavara galerias perigosaS. Perdera ainocência, perdera a grande felicidade de olhar o mundo comoum brinquedo maior que os ouhroS. Olhava o mundo através dosmeus desejos e da minha carne. Tinha sentidos que desejavam asbotas do Polegar para as suas viagenS. No dia seguinte tomaria o comboio para o colégio. O meu tioJuca levar-me-ia para os padres, deixando carta branca a meurespeito. Acordei com os pássaros cantando no gameleiro. Tocavamdobrados ao meu bota-fora. E uma saudade antecipada do engenhome tomou, em cima da cama. Vieram-me acordar. Há tempo queestava de olhos abertos na companhia dos meus pensamentoS. Umaoutra vida ia começar para mim. - O colégio amansa os meninos! Em mim havia muita coisa a precisar de freios e de chibata.As negras diziam que eu tinha o mal dentro de mim. A tiaSinhazinha falava dos meus atrasoS. Os homens riam-se dasintemperanças dos meus doze anoS. - Menino safado, menino atrasado, menino vadio! A minha asma entrava e saía sem ninguém dar por ela. Iamelhorando com a idade. E nada de Deus por dentro de mim. Eraindiferente aos castigos do Céu. Os lobisomens faziam-me maismedo. A minha religião não conhecia os pecados e aspenitênciaS. O pavor do inferno, confundia-o com os castigosdos contos de trancoso. Tudo entrava por uma perna de pinto esaía por uma perna de pato. Ia para a cama sem um pelo-sinal eacordava sem uma ave-maria. O meu São Luís Gonzaga devia olharcom nojo para o seu irmão afundado na lama. Agora o colégio iria consertar o desmantelo desta almacrescida de mais para a terra. Iriam podar os galhos de umaárvore, para que os seus brotos crescessem para cima. - Quando voltar do colégio, vem outro, nem parece o mesmo. Toda a gente acreditava nisto. Este outro, de que tantofalavam, seria o sonho da minha mãe. O Carlinhos que eladesejava ter como filho. Esta lembrança animava-me para a vidanova. - Vá-se vestír. A minha mala subira à cabeça do Zé Guedes para a estação.Iríamos depois a cavalo. E nesta viagem, passando à beira dospartidos de cana, passando pela porta dos moradores, a minhasaudade demorava-se por toda a parte. - O seu Carlinhos vai para o colégio. E vinham os moleques olhar para mim. O tio Juca à frente, eeu, ronceiro, sentindo em cada passo do Coringa o engenho queficava para tráS. À porta da Zefa Cajá só se viam uns panos estendidos ao sol.A casa de portas fechadas, e mulheres de pano na cabeça, noroçado, perto. Um sol das nove horas enxugava a terra ensopadada chuva da noite. A enxada limpava o mato bonzinho de cortar.Os pés do povo deixavam o seu tamanho no barro mole daestrada. Lá vinha ùm moleque com uma carga de milho, com asfolhas verdes arrastando no chão. Ia para a cangica e aspamonhas da negra Generosa. O engenho dava-me assim as suas despedidas, como osnamorados, fazendo os derradeiros mimos. Na estação estava o povo do Angico esperando o comboio. - Vai para o colégio, já era tempo.

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As mulheres achavam-me parecido com Dona Clarisse. Os homensconversavam com o tio Júca. Já sabiam da minha doença, echamavam-me para perguntas inconvenientes. O comboio pedira ordens de Itabaiana, partira do Pilar. A gente via-o enroscar na curva do Engenho Novo. Depois,sumindo-se no corte, roncava perto. O poste do sinal caía. E chegava, apertando os passos, à plataforma. - Fique deste lado, para ver o pessoal do engenho. E o comboio saiu, correndo por entre os canaviais e osroçados de algodão do meu avô. Chegava gente à porta para ver o horário em disparada. O povo da Lagoa-Preta, no alpendre, olhava. O homem do correio atirava a correspondência à porta. E o comboio entravapelos cortes e saía nos aterros da várzea, separando a águadas lagoas improvisadas no Inverno. Longe, via o bueiro comprido do Oiteiro e o corta-ventotrepado no sobrado. O gado pastava pela beira da linha. - Zebu bonito! Os bois levantavam a cabeça da rama apetitosa para vertambém o comboio correndo. Daí a pouco apitoú na rampa doCaboclo. Lá estava o Santa-Rosa com o bueiro branco e acasa-grande rodeada de pilareS. Os moleques estavam na beirada linha para me ver passar. - Adeus, adeus, adeus! - com as mãos para mim. E eu, com o lenço, acenava-lheS. Os olhos encheram-se-me delágrimas. Cortava-me a alma a saudade do meu engenho. E o comboio corria para o Entroncamento. Vinha Santana,Maraú no alto, Massangana com o coronel Trombone à porta. A máquina tomava água. O comboio de Guarapira chegava, maiscurto que o nosso. Apareciam passageiros de- guarda-pó paraconversar com os outros do nosso comboio. Todo esse movimento me vencia a saudade dos meus campos, dosmeus pastoS. Queriam endireitar-me, fazer de mim um homeminstruído. Quando saí de casa o velho José Paulino disse-me: - Não vá perder o seu tempo. Estude, que não se arrepende. Eu não sabia nada. Levava para o colégio um corpo sacudidopelas paixões de homem feito e uma alma mais velha do que omeu corpo. Aquele Sérgio, de Raul Pompeia, entrava nointernato de cabelos grandes e com uma alma de anjo cheirandoa virgindade. Eu não: era sabendo de tudo, era adiantado nosanos que ia atravessar as portas do meu colégio. Meninoperdido, menino de engenho.

Fim

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OBRAS DE JOSÉ LINS DO REGO

PUBLICADAS POR LIVROS DO BRASIL

MENINO DE ENGENHO - DOIDINHOBANGUê

O MOLEQUE RICARDOUSINAPUREZA

PEDRA BONITARIACHO DOCEÁGUA-MÃE

FOGO MORTOEURÍDICE

CANGACEIROS

Data da Digitalização

Amadora, Agosto de 1998


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