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2ARTE: LÍGIA CAIRES

Janeiro de 2016 3ARTE: LÍGIA CAIRES

Janeiro de 2016

Quem paga a

conta?se referiu ao Planalto.

O órgão informou, pela as-sessoria, que “não é atribuição do DNPM fiscalizar a cons-trução física das barragens, nem suas alterações, nem sua manutenção”, ressaltando que a obrigação principal é dos ór-gãos ambientais, que fazem o licenciamento das estruturas.

A Vale e a BHP Billiton negam responsabilidade pela tragédia. “A Vale realmen-te não tem qualquer respon-sabilidade pelo infeliz e triste acidente”, alega um acionis-ta da mineradora brasileira. A Samarco classifica o rom-pimento da barragem como “acidente”. A Samarco e o go-verno de Minas não respon-deram as perguntas feitas pela reportagem do LAMPIÃO.

Poço sem fundoMais de 600 pessoas perde-

ram casas, plantações, animais e bens na tragédia de Ben-to Rodrigues. A Defesa Civil planeja demolir o que não fi-cou submerso, mas ainda não há definição sobre o que será feito com o lugar onde era a comunidade ou se a lama será retirada. Também não há data para as derrubadas do que res-tou. Mais de 11 mil pescado-res e ribeirinhos foram afeta-dos com a morte de milhões de peixes ao longo do percur-so do Rio Doce, entre Minas Gerais e Espírito Santo.

Mesmo pressionada pela Justiça, a mineradora Samar-co ainda não se comprome-teu a pagar os R$ 1.500 mais 30% por dependente, pedido feito pelos próprios morado-res, que estão limitados a ape-nas um salário mínimo mais 20% por dependente. A em-presa pretende dar R$ 10 mil para cada família recomeçar sua vida, e descontar desse va-lor anunciado eventuais inde-nizações judiciais.

Até o fechamento do LAMPIÃO, a Samarco se ne-gava a cumprir os 21 itens propostos pelas comunidades e representados pelo Ministé-rio Público por meio de um acordo. A negativa gerou uma ação civil pública contra a mi-neradora e suas acionistas.

sonoro para alertar os mora-dores sobre o rompimento da barragem. O procedimento, que deveria constar no Plano de Ações de Emergências da mineradora Samarco, era des-conhecido pela Prefeitura de Mariana, pelo DNPM e pelo governo de Minas Gerais. Esse último soube do rom-pimento em Bento Rodrigues somente após duas horas, conforme relatório do Nú-cleo de Emergência Ambien-tal (NEA), órgão da adminis-tração estadual destinado a acidentes. Pela lei, a empresa é responsável por enviar os do-cumentos aos órgãos de fisca-lização e demais interessados, como a Prefeitura.

A falta de prevenção para o subsdistrito, distante 5 km dos diques, foi confirmada por Ricardo Vescovi. Segun-do ele, a ação de emergên-cia previa contato telefônico para as autoridades da região de Mariana, como a Prefeitu-ra e a Defesa Civil. A empre-sa chegou a afirmar que a co-munidade foi avisada, porém não esclareceu quantas ca-sas teriam recebido a ligação. O LAMPIÃO não encontrou moradores que confirmassem o suposto comunicado.

Somente em Mariana, a Prefeitura estima por volta de R$ 100 milhões em perdas, entre as quais as 15 pontes, duas escolas e 250 casas des-truídas. Cerca de 3800 pesso-as foram afetadas direta e in-diretamente no município. Os números de atingidos podem resultar em ações individu-ais contra a Samarco por da-nos morais, relata o promotor Guilherme Meneghin.

As multas e acordos com a empresa já somam mais de R$ 1 bilhão, com possibilidade de subir para R$ 50 bilhões. Po-rém, o prefeito Duarte Júnior (PPS) diz que “não há inte-resse em cobrar os danos da empresa através de uma ação judicial. Vamos levantar esse valor, conversar com a em-presa para que ela faça investi-mentos no município. A gente entende que se fizer uma ação contra a empresa, isso pode

As causas sobre o rompi-mento da barragem do Fun-dão, da Samarco, ainda não foram esclarecidas pelos ór-gãos públicos e as análises contratadas pela empresa de-vem se arrastar por meses, se-gundo o diretor-presidente da mineradora, Ricardo Vescovi. Para o promotor do Ministé-rio Público de Mariana, Gui-lherme Meneghin, não há dú-vidas de que a mineradora foi negligente “antes, durante e depois [do desastre]”.

Sem todas as respostas da tragédia que destruiu o sub-distrito de Bento Rodrigues, deixando 15 mortos e quatro desaparecidos, a empresa é in-vestigada por meio de três in-quéritos criminais, quatro in-quéritos civis, uma preparação de laudo e uma avaliação de causas. Até o fechamento da edição, a mineradora era pro-cessada por uma medida cau-telar e 13 ações civis.

O julgamento da empresa deverá ocorrer após a conclu-são dos pareceres preparados individualmente pelo MP Es-tadual e Federal, Departamen-to Nacional de Produção Mi-neral (DNPM), polícias Civil e Federal e pela Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad). As apurações crimi-nais devem ser submetidas ao Ministério Público, e, em se-guida, a Justiça deverá decidir se as acata ou não.

De acordo com Guilher-me Meneghin, a principal fa-lha, entre uma série de outros erros, foi a ausência do aviso

demorar 15, 20 anos, e esse não é o melhor caminho.”

Mais minérioEm 5 de novembro, a bar-

ragem do Fundão passava por um alteamento. A obra seria útil para acomodar novos re-jeitos, conforme explica o ge-rente geral de projetos da Sa-marco, Germano Lopes.

A Vale, acionista da em-presa em conjunto a BHP Billiton, também contribuía com o aumento de volume minerário, sendo responsável por quase 30% do total despe-jado em 2014, segundo laudo do DNPM. A Vale nega a in-formação e diz que depositou apenas “5% do volume total na barragem do Fundão”.

A recente divulgação de laudos e auditorias revelou que a Samarco teve quatro vazamentos em 2005, 2006, 2008 e 2010. Além disso, pa-ralisou um plano que iria pre-parar ações de emergências em 2009, obteve a licença am-biental sem o aval do Ministé-rio Público e foi recomendada a aplicar 10 medidas de repa-ro no complexo de Germano. A empresa ainda esteve envol-vida em um processo por im-pedir a fiscalização minerária.

Jogo do empurraO DNPM, órgão fede-

ral vinculado ao Ministério de Minas e Energia, é responsá-vel por fiscalizar o setor de mineração, incluindo 700 bar-ragens de rejeitos em MG. A autarquia possui quatro técni-cos no território mineiro e ca-rece de infraestrutura. Para a Comarca de Mariana, os nú-meros são “insuficientes”.

De janeiro a outubro de 2015, o Governo Federal dis-ponibilizou somente R$ 1,2 milhão para a fiscalização de atividades minerárias; em todo o ano de 2014, foram R$ 3,6 milhões. O DNPM atribui a queda de investimento “à crise fiscal”. De acordo com Meneghin, o Governo Federal está “ausente” diante da tra-gédia e a prefeitura faz “papel de palhaço”. À reportagem, o prefeito minimizou a declara-ção e acredita que o promotor

Opinião

Jornal-laboratório produzido pelos alunos do curso de Jornalismo – Instituto de Ciências Sociais Aplicadas (ICSA)/Universidade Federal de Ouro Preto – Reitor: Prof. Dr. Marcone Jamilson Freitas Souza, Diretor do ICSA: Prof. Dr. José Benedito Donadon Leal, Chefe de departamento: Profa. Dra. Virgínia Alves Carrara, Presidente do Colegiado de Jornalismo: Profa. Dra. De-nise Figueiredo Barros do Prado – Professoras responsáveis: Karina Gomes Barbosa (Reportagem), Ana Carolina Lima Santos

(Fotografia) e Talita Aquino (Planejamento Visual) – Editor-chefe: William Vieira – Editora de Texto: Hariane Alves – Editora de Arte: Débora Mendes – Editor de Fotografia: Pedro Menegheti – Repórteres: Agliene Melquíades, Aleone Rodrigues, Alexandro Galeno, Carol Vieira, Camila Guardiola, Caroline Hardt, Fernando Cássio, Flávio Ribeiro, Francielle Ramos, Mariana Rennó, Paloma Demartini, Priscila Ferreira – Fotógrafos: Eduardo Rodrigues, Larissa Lana, Monique Torquetti, Rodrigo Sena, Sabrina Passos, Stela Diogo, Tainara Ferreira, Thiago Barcelos – Diagrama-dores: Alícia Milhorance, Clarissa Castro, Elmo Alves, Lara Massa, Lígia Caires, Luísa Rodrigues – Multimídia: Caio Aniceto, Caroline Rooke, Gabriella Visciglia, Thamiris Prado – Revisão: Anna Flávia Monteiro, Pedro Guimarães – Monitoria: Catarina Barbosa, Silmara Filgueiras, Stênio Lima – Colaboração: Fernando Ciríaco e Rafaella Souza – Tiragem: 3.000 exemplares. Endereço: Rua do Catete, nº 166, Centro. Mariana – MG. CEP: 35420-000.

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Caos e esperançaEditorial

Charge

Crônica

No meio do caminho

Não há interesse de cobrar da empresa através de uma ação judicial. Vamos levantar esse valor, conversar com a empresa para que ela faça investimentos no município.”

Duarte Júnior

Milhões de multa do Ibama

Flávio RibeiRo

HaRiane alves

Naquela quinta de novembro, o tempo estava esquisito, transitando entre pancadas de chuva e o apare-cimento do sol na Região dos In-confidentes. Era uma tarde comum, até que a lama veio e engoliu tudo pelo caminho. Os moradores de um Bento Rodrigues – que começava a ser tingido, quebrado, engolido, de-vastado – corriam para salvar suas vidas. Era uma tarde como qualquer outra… até não ser mais.

“Poderia ter sido muito pior. Muito. Se tivesse sido à noite… Não quero nem pensar”, conta Ve-rônica, enquanto olha para os des-troços que outrora foram sua casa e tenta esconder as mãos trêmu-las e lágrimas que insistem em cair. “Foi o pior dia da minha vida. Da vida da gente. A gente perdeu tudo,

perdeu amigos. Fomos arrancados das nossas casas... Mas a Pedra aju-dou. A Pedra segurou a lama.” Ti-nha uma pedra no meio do caminho. Uma pedra que fez o que a Samarco não conseguiu: dar tempo para que os moradores de Bento salvassem uns aos outros. Uma pedra que di-minuiu, mesmo que minimamente, a força da lama, que insistia em des-truir tudo à sua volta.

“Nunca me esquecerei que no meio do caminho tinha uma pedra”, falou o poeta. E foi aclamado pelo povo que também não vai esquecer. Pelas pessoas que olharam uma úl-tima vez para a Pedra e para Ben-to e viram a lama mudar as suas vi-das. Para o seu Antônio, “foi a mão de Deus que segurou a lama”. A si-rene inexistente e a falta de respostas e avisos da mineradora foram subs-tituídos pela Paula com sua moto e

seus gritos; pela Pedra que retardou o avanço da destruição; pela “mão de Deus”, que não permitiu que a barragem estourasse na calada da noite. A união e o cuidado com o outro salvaram vidas e fizeram com que a lama não levasse mais pessoas.

A Pedra, que fazia parte do ter-ritório do subdistrito, foi engolida pelos rejeitos. Agora é impossível localizá-la. Até isso a lama levou. Ela não conseguiu resistir ao tsunami de rejeitos, mas fez bem o seu papel. Manteve-se firme, ajudou a prote-ger a comunidade e depois desapa-receu no deserto que agora é Ben-to Rodrigues. Mas o seu significado permanece na lembrança daqueles que não podem esquecer. “Não sa-bemos o que teria acontecido se a Pedra não existisse”, mas tinha uma pedra no caminho. Uma pedra que fez toda a diferença.

Reforçando seu ideal jornalístico e o compromisso com a região, esta edição do LAMPIÃO abre espaço para publicar parte das perguntas enviadas à mineradora Samarco e ao Governo de Minas Gerais. Não obtivemos respos-ta para os questionamentos em nenhum dos canais de acesso da empresa e do governo. Também publicamos aqui inquietações rel-ativas à tragédia, as quais ainda não foram esclarecidas à toda a população de Mariana e distritos.

À Samarco- Quais eram os projetos desen-volvidos pela empresa para a população de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo?

- Quanto foi gasto com esses projetos de 2009 a 2014? (Especificar o valor da cada ano). Quais foram os resultados dess-es projetos nas comunidades de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo?

- Há algum projeto realizado com os moradores de Bento e Paraca-tu de Baixo que vem como uma ação emergencial a fim de am-parar os atingidos dos distritos? Qual a quantia até agora direcio-nada para essas ações? Elas ocor-rem em parceria com alguma or-ganização pública ou privada? Quais seriam?

Ao Governo de Minas Gerais- Cerca de 20 dias após a tragédia foi aprovado um projeto proposto pelo governo estadual, acelerando as concessões de licenças ambien-tais para empresas de mineração. Levando em conta os prejuízos decorrentes do rompimento da barragem do Fundão e o caso an-terior, que matou trabalhadores em Itabirito, não é um erro um projeto como este ser aprovado?

- O projeto que afrouxa a con-cessão das licenças ambientais para

mineradoras foi debatido com al-gum setor, entidade ou com a população envolvida?

- Parte dos moradores de Mari-ana estão protestando para que a empresa não termine suas ativi-dades na cidade, temendo desem-prego. O Estado pretende entrar neste assunto, uma vez que o fim da ati-vidade pode afetar também na arrecadação de Minas Gerais?

- Sabendo que a economia de Mariana é majoritariamente man-tida pelo setor de mineração, cerca de 83%, o governo do Estado pre-tende criar uma “ação antifalên-cia” para o município? Ou se tra-ta de uma obrigação exclusiva da administração municipal?

- Segundo a Feam, erros foram detectados no volume de rejei-tos. E mesmo com a constatação, os dados continuaram a ser pub-licados de maneira defasada des-de 2012. Por que não houve ne-nhuma intervenção durante tan-to tempo?

Inquietações

- O que justifica a dificuldade de se conseguir, na região de Ouro Preto e Mariana, após o rom- pimento da barragem, um es- pecialista em direitos ou meio ambiente?

- Que processos serão aplicados para minimizar os efeitos da lama de rejeitos que atingiu o mar? Quais as atitudes a serem toma-das para solucionar ou reduzir os danos ambientais causados?

- Que ações a Samarco preten- de adotar para recuperar as áreas devastadas? Em que pra- zo a empresa pretende executar esse processo?

- O que será feito com a lama que tomou conta do subdistrito de Bento Rodrigues? Como e quan-do ela será retirada do local?

Bilhões para o Governo Federal, ES e MG

Bilhão em acordo com o Ministério Público de Minas e o Federal

FOTO

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Reais mensais por família em acordo com o Ministério do Trabalho

Milhões blo-queados pelo MP de Mariana

Milhões de prejuízo para a Prefeitura de Mariana

Quem matou o tempo? No século XIX, o escritor e poe-ta estadunidense Henry David Thoreau garantiu que não se-ria possível praticar tal fei-to sem desonrar a eternidade. Duzentos anos depois, no dia 5 de novembro de 2015, por vol-ta das quatro da tarde, o tem-po cessou numa terra chamada Bento Rodrigues. Era o anún-cio do fim. Com ele, a exigência de um recomeço por parte dos sobreviventes, afinal, o tempo parou em Bento, mas não no resto do mundo.

Uma tragédia de estragos incalculáveis, que atingiu tam-bém Paracatu de Baixo (onde a foto de capa foi tirada), Barra Longa, Camargos, entre outros, além de devastar o Rio Doce. A cada segundo, as facetas de gru-pos de poder se escancaravam. Na contramão, a solidariedade do povo nos fez crer novamente no ser humano e fez valer uma velha máxima: “a esperança é

a última que morre”. Enquanto Mariana tentava resistir graças à própria comunidade, os atingi-dos permaneciam – e ainda se-guem – à mercê de um novo fu-turo, que está para ser escrito.

Nas ruas da primaz de Minas, a boataria, a omissão, a sub-missão e a culpa se perpetua-vam. Como cenário, eternidades ceifadas e pessoas em fase de readaptação, lutando contra o choque de realidade de um mun-do que não lhes pertencia. “E agora?” é o que nos perguntá-vamos e ainda repetimos. Bento já não existe. Como sobrevi-ver apesar disso? Esta edição do LAMPIÃO convida você a se perguntar: Quem se responsabi-liza? Quem sustenta novas eter-nidades? Quem cuida de nós?

Trazemos aqui uma tragé-dia que não pode ser esquecida. Mariana possui um forte espaço acadêmico e precisa ser abra-çada por esta comunidade. Nos dias que sucederam o acontecido,

estudantes se comprometeram e ajudaram, reforçando o ideal de universidade pública como espa-ço coletivo de aprendizagens e retornos. Este LAMPIÃO é mais um efeito disso. Não somos insti-tuição. Somos gente, somos alu-nos (de um curso de Jornalismo, especificamente) e buscamos, por meio deste jornal, deixar nossa contribuição a esta cidade que nos recebe de braços abertos a cada semestre, dividindo conos-co seu tempo e sua eternidade.

Nossos agradecimentos espe-ciais ao Corpo de Bombeiros de Minas Gerais, à agên-cia A Pública, à Secretaria do Departamento de Ciências Sociais, Jornalismo e Serviço Social (Decso), à Direção do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas (Icsa) e ao Setor de Transportes da Universidade Federal de Ouro Preto, sem os quais não conseguiríamos realizar esta edição.

Sem resposta

lampião

CIDADE

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4ARTE: ELMO OLIVEIRA

Janeiro de 2016 5ARTE: ELMO OLIVEIRA

Janeiro de 2016

POLÍTICA

Relações perigosasNova legislação minerária está sob cuidado de bancada financiada por mineradoras; atual código tem fiscalização insuficiente

AlexAndro GAleno

Após o rompimento da barragem do Fun-dão, uma dúvida permanece na comunida-de de Mariana, principal região atingida pelo desastre: “Quem cuida de nós?”. Bento Ro-drigues, Paracatu de Baixo, Barra Longa e as cidades ao longo da Bacia do Rio Doce so-frem com os impactos da devastação provoca-da pela tragédia. A atividade mineradora é de alto risco e, por isso, a legislação deve - ou de-veria, ao menos - ajudar a minimizar, a fiscali-zar ou a prever esses riscos.

Elmer Salomão, 72 anos, Presidente da As-sociação Brasileira de Empresas de Pesquisa Mineral (ABPM), afirma que, caso a legislação da mineração fosse posta em exercício pleno, amenizaria os riscos e danos possíveis causa-dos por desastres. Ele avalia que a atividade deve ter um setor exclusivamente responsável pela fiscalização, e que a burocracia na divisão de responsabilidades causa ineficiência desse serviço em todo o país.

Em 2010, foi sancionada a Lei nº 12.334, que criou a Política Nacional de Segurança de Barragens (PNSB), responsável pelo controle de barragens de água, rejeitos de mineração e acumulação de resíduos industriais A regula-mentação visa, no papel, pelo menos garantir o amplo gerenciamento e controle dos empre-endimentos sob responsabilidade da Agência Nacional de Águas (ANA).

O controle das barragens também é no pa-pel, com o envio anual dos relatórios ao De-partamento Nacional de Produção Mineral (DNPM). Esses dados formam o Sistema Na-cional de Informação de Segurança de Barra-gens (SINSB), no qual existe o detalhamento daquilo que é represado. Segundo o relató-rio apresentado em 2014, a barragem do Fun-dão apresentava risco baixo e dano potencial alto - essa parte estava correta. No relatório do SINSB de 2014, o campo destinado a des-crever a composição do conteúdo depositado não foi preenchido.

Fiscalização O DNPM possui dois eixos de fiscaliza-

ção: envio de documentação anual e vistoria presencial quando evidencia algum proble-ma. A falha no processo está no órgão ser de-pendente de uma terceirizada contratada pela própria empresa fiscalizada para os laudos.

A Política de Barragens prevê, como res-ponsabilidade do empreendedor, a confecção do plano emergencial para acidentes. Con-forme o DNPM, a Samarco deveria, imedia-tamente após o rompimento, colocar o pla-no em execução a fim de minimizar os danos. A mineradora afirma ter executado medidas emergenciais, validadas pelos órgãos compe-tentes, em conjunto com Defesa Civil, Corpo de Bombeiros e Polícia Militar.

A licença ambiental para o funcionamento das atividades de barragens fica por responsa-bilidade da Secretaria Estadual de Meio Am-biente e Desenvolvimento Sustentável (Se-mad). Em Minas Gerais, a Fundação Estadual do Meio Ambiente (Feam) é a responsável por conceder as licenças. A partir da tragédia em Bento, a licença ambiental da Samarco foi can-celada pela Semad, sob determinação do Mi-nistério Público de MG. Apenas atividades emergenciais para amenizar os impactos am-bientais foram autorizadas.

Novo marcoEm 2013, o Governo Federal apresentou o

projeto de lei 5.807. A tramitação do chama-do “Marco Regulatório da Mineração” pos-suía carácter de urgência para a votação. De-veria ter sido analisado pelo Senado e Câmara Federal em 45 dias, porém a discussão foi ar-rastada até 2015. Durante a apresentação da proposta, a Presidente Dilma Rousseff decla-rou que “o Brasil tem as maiores reservas de minério do mundo, mas o setor ainda convive com uma legislação fraca e burocrática”. Com a nova regulação, o Governo pretende manter sob controle do Estado o desenvolvimento da atividade minerária, além de aumentar a com-petitividade em relação aos mercados interna-cionais e impulsionar o setor.

A discussão do texto na Comissão Espe-cial instalada para debater o assunto com os setores envolvidos acontece desde julho de 2013. A presidência da Comissão ficou a car-go do deputado federal Gabriel Guimarães (PT/MG), e a relatoria com o deputado Le-onardo Quintão (PMDB/MG). A expectati-va de votação do Código na Câmara foi adia-da desde o primeiro parecer (substitutivo), em novembro de 2013.

Após o rompimento da barragem do Fun-dão, o relator retirou o texto de tramitação para adequações ao cenário pós-tragédia de Mariana. Para o advogado do Instituto So-cioambiental (ISA) Maurício Guetta, 30, seria fundamental a inclusão de mecanismos efeti-vos que garantam a proteção das comunidades impactadas. Segundo ele, Quintão não acatou os pedidos de inclusão desses mecanismos re-alizados pelo Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente à Mineração. Quintão afir-mou à Agência Câmara que houve, após o de-sastre de Bento Rodrigues, endurecimento das leis “para obrigar as mineradoras a ter um se-guro geral que cubra acidentes, fatalidades e recuperação do meio ambiente”.

Na terça, 8 de dezembro, Quintão entre-gou o novo substitutivo do projeto à Presi-dência da Câmara. O relator pretendia votar o novo texto até o final de 2015. Para Guet-ta, isso é estratégia para uma rápida aprova-ção, já que existem interesses de deputados, devido ao financiamento de campanhas pa-gas pelas mineradoras. O presidente da Câma-ra, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), foi um dos parlamentares que mais apresentou emendas ao projeto. Em 2014, sua campanha recebeu R$1,7 milhão da mineração, em repasses dire-tos e pela direção estadual do PMDB. Quintão ganhou algo parecido: cerca de R$1,7 milhão, 40% de sua campanha, veio dos cofres das mi-neradoras. Até o fechamento, o deputado não respondeu as perguntas do LAMPIÃO.

Bancada da mineraçãoEm discussão desde 2013 no Supremo Tri-

bunal Federal (STF), o financiamento privado de campanhas vem sendo um ponto de im-passe na reforma eleitoral. Seguindo resultado da votação no Supremo, a presidente Dilma vetou, em setembro, as doações de empresas privadas. Se nada mudar, o financiamento pas-sará a ser ilegal a partir das eleições de 2016.

Na comissão legislativa que analisa o tex-to do novo marco regulatório, 20 dos 27 de-putados receberam repasses de mineradoras. Dos cinco deputados da bancada mineira que mais receberam repasses do setor, três estão na Comissão. Dentre eles, o deputado Gabriel Guimarães, presidente do colegiado. Segundo o Código de Ética do Congresso, fere o de-coro parlamentar “relatar matéria submetida à apreciação da Câmara dos Deputados, de in-teresse específico de pessoa física ou jurídica que tenha contribuído para o financiamento de sua campanha eleitoral”.

Para o deputado federal Chico Alencar (PSOL/RJ), o Código de Ética do Congresso é interpretado ao bel-prazer dos interesses dos poderosos. “A bancada da mineração é tão pre-sente e facilmente identificável que o Supremo proibiu, para as próximas eleições em 2016, o fi-nanciamento empresarial das campanhas”.

O sistema é viciado e dependente, e isso manipula o resultado não só das eleições, mas das pautas discutidas no Parlamento.” Chi-co entrou com pedido para que Quintão fos-se afastado da relatoria da matéria, dado seu envolvimento com o setor minerador. O de-putado é contrário ao financiamento priva-do porque as “empresas têm interesses muito maléficos para o ambiente político, já que sua única preocupação é o lucro”.

O cientista político Ricardo Caldas desta-ca a necessidade de uma noção de limite para definir o conflito de interesses que poderia es-tar atrelado à atividade legislativa do político em relação à origem do dinheiro que o finan-ciou. Caldas acrescenta que o repasse priva-do é previsto pela legislação eleitoral brasilei-ra. Para ele, a relação do parlamentar poderia ser relacionada a uma convergência de ideias pessoais e às das empresas.

Repasse das mineradoras emcampanhas políticas mineiras

R$ 3

.999

.492

,33

R$ 3

.611

.713

,48

R$ 2

.656

.327

,67

R$ 1

.500

.000

,00

R$ 1

.414

.425

,80

R$ 1.000.000

R$ 2.000.000

R$ 3.000.000

Valor total arrecadado por todas as mineradoras:R$ 22.082.617,97

Políticos que mais receberam financiamento da mineração

GOVERNADOR

FERNANDO PIMENTEL (PT)

RECEBEU: R$ 11.474.504,79PROJETO DE LEI: Flexibilização em licenças ambientais

SENADORES

ANTÔNIO ANASTASIA (PSDB)

RECEBEU: R$ 2.179.706,37

AÉCIO NEVES * (PSDB)

RECEBEU: R$ 803.500,00

LEONARDO QUINTÃO (PMDB)

RECEBEU: R$ 1.706.796,71

DEPUTADOS FEDERAIS

LUIZ FERNANDO (PP)

RECEBEU: R$ 1.461.381,75

ITAMAR FRANCO * (PPS)

RECEBEU: R$ 247.000,00

DEPUTADOS ESTADUAIS

PAULO LAMAC (PT)

RECEBEU: R$439.245,00

BOSCO (PT do B)

RECEBEU: R$210.000,00

MARCOS MONTES (PSD)

RECEBEU: R$ 907.031,47

PAULO ABI-ACKEL (PSDB)

RECEBEU: R$ 908.000,00

JOÃO ALBERTO (PMDB)

RECEBEU: R$192.345

* Dados do TSE referentes à campanha de 2010

DURVAL ÂNGELO (PT)

RECEBEU: R$ 173. 424,53

ECONOMIA

À sombra da mineração Mariana sofre impactos que afetam cadeia produtiva, desestimulam comércio e dificultam criação de alternativas de renda

CAmilA GuArdiolA e CAroline HArdt

Reflexão. Após tragédia, população questiona modelo baseado na exploração de recursos naturais

Elder Aparecido dos Santos, 27 anos, desempregado há dez meses, vive na casa dos pais na cidade mi-neira de Catas Altas, a 48,9 quilô-metros de Mariana. Seu pai, Ailton Martins dos Santos, 55, responsá-vel financeiro pela família, trabalha-va há menos de um mês como mo-torista de caminhão-pipa na Integral Engenharia LTDA, terceirizada pela Samarco. Após dois anos desempre-gado, Ailton entrou na mineração procurando oferecer o melhor à fa-mília e está desaparecido desde 5 de novembro. A família, sem notícias ou ajuda financeira, sente os impac-tos econômicos do maior desastre ambiental da mineração brasileira.

Reservas canceladas e queda no comércio turístico são as primeiras consequências enfrentadas pela eco-nomia de Mariana e da região após o rompimento da barragem do Fun-dão. A população começa a perceber os efeitos, mesmo que indiretos, da tragédia. Para os lojistas, a preocupa-ção com o futuro é grande.

Poliane Priscila de Freitas Lube, 28, comerciante de roupas femini-nas, defende a permanência da em-presa em Mariana e afirma que, de-vido à dependência econômica da mineração, a cidade não consegue se manter sem a atividade. Segundo ela, sua loja já sentia o impacto da crise econômica brasileira, com re-flexo nas vendas, que caíram 20%. Após a tragédia, a procura caiu mais de 60%, e tende a piorar.

Essa preocupação não é única dos comerciantes. Entre os funcio-nários da mineradora, o sentimento é de apreensão. Segundo o presiden-te do Sindicato Metabase Mariana, Ronaldo Bento, 38, “há um desequi-líbrio emocional muito grande, no sentido de perda dos seus compa-nheiros de trabalho”.

Só a unidade do Germano pos-sui mais de 1,5 mil trabalhadores, sendo 735 moradores de Mariana. Segundo a Prefeitura, indiretamente, a mineração gera cerca de 2 mil em-pregos na região. Por isso, há uma preocupação com a conservação dessas vagas.

A mineração é responsável por 80% da arrecadação da cidade, o que coloca o desenvolvimento e a manutenção de Mariana diretamente

ligados à exploração. Apenas a Sa-marco contribuir diretamente com R$ 5,3 milhões mensais, em impos-tos, como o Imposto Sobre Servi-ços (ISS). Em 2014, a receita muni-cipal chegou a R$ 303,4 milhões, dos quais R$ 71,5 milhões vêm de trans-ferência de cotas-parte da Compen-sação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (CFEM), tributo calculado sobre o faturamento líqui-do obtido com a venda de produtos minerais. Ou seja, cerca de 23,6% da receita municipal vêm de uma única taxa sobre a mineração.

Por conta dessa dependência, com a queda no setor, o municí-pio sofre com diminuição na recei-ta. Em 2015, antes mesmo do rom-pimento da barragem, com a baixa no preço do minério, Mariana rece-beu R$ 45,7 milhões da CFEM. A baixa reflete na receita e arrecadação municipal, que, segundo a prefeitu-ra, perdeu R$ 22,3 milhões só nos três primeiros meses do ano.

Os dados do Produto Interno Bruto (PIB) de Mariana em 2012, os últimos disponibilizados, confir-mam a discrepância entre os setores econômicos da cidade. Do total de R$ 4 bilhões, 72,9% provêm do se-tor industrial, seguido por 24,4% de serviços e 2,40% de impostos.

O que preocupa a Prefeitura é que impostos como o ISS e o CFEM deixam de ser recolhidos com a pa-ralisação das atividades da Samarco, que teve sua Licença de Operação revogada a pedido do Ministério Pú-blico. Com isso, estima-se que Ma-riana perca R$ 5,53 milhões por mês referente aos dois impostos.

Sem alternativasO especialista em recursos na-

turais e professor de economia da Universidade Federal de Ouro Pre-to (Ufop) Chrystian Mendes, 31, explica as consequências da de-pendência da mineração. “O pro-blema da cidade ser tão dependen-te é que caso ocorra algum evento como o que aconteceu, o municí-pio fica à mercê das mineradoras, o que pode prejudicar seu desenvolvi-mento e a manutenção das ativida-des”, afirma. Segundo ele, o perío-do de esgotamento das minas ainda deve “demorar um longo tempo para acontecer. Porém, isso não im-plica que alternativas não devam ser procuradas, como o turismo, cultu-ra, arte e até a própria universidade,

que tem importante papel nisso, pe-los diversos cursos”.

“Para não deixar a economia re-fém apenas de uma atividade e a ci-dade não parar, é preciso ser cria-tivo”, explica Mendes. Quanto à paralização da exploração, o econo-mista ressalta as consequências que isso traria à cidade e a importância da mineração. “Supondo a interrup-ção, o que pode acontecer é um au-mento do desemprego, bem como fechamento de alguns pontos co-merciais e, consequentemente, ele-vação dos preços”, enumera.

Ronaldo Bento, do Metabase Mariana, concorda que o município precisa da mineração e afirma que a possibilidade de término das ativi-dades mineradoras refletiria direta-mente no setor de comércio e servi-ços, e consequentemente acarretaria a diminuição de empregos, trans-formando Mariana em “uma cidade fantasma”. A solução para essa de-pendência histórica seria o investi-mento em novas atividades, até mes-mo ligadas ao minério, como o uso e a exploração de novos recursos dis-poníveis no município.

Durante sua participação na 21ª Conferência do Clima (COP21), na França, no início de dezembro, o prefeito de Mariana, Duarte Júnior,

criticou a dependência econômica do município. “Temos que entender a mineração como um parceiro que em determinado momento vai ter-minar. É finito. Temos de nos pre-parar para deixarmos de ser tão de-pendentes dessa atividade”, afirma.

Entre as alternativas para no-vas formas de arrecadação está a construção de um polo industrial na cidade, que atrairia empresas de outros segmentos. Segundo a Prefei-tura, não há um setor específico que se deseja atrair para o distrito indus-trial de Mariana. O objetivo, informa a assessoria, é promover um espaço propício para instalação de empre-sas que possam gerar emprego e ri-quezas na cidade, mas não há deta-lhamento do que se espera.

História antiga A relação do município com a

mineração vem de antes de 1850, no primeiro ciclo do ouro. Já a explo-ração de minério de ferro começou em meados da década de 70, e o au-mento de produção veio em 1978, um ano após a fundação da Samarco.

Mariana não é a única que sofreu consequências da exploração. A vi-zinha Itabirito também teve uma barragem de rejeitos, da empresa Herculano Mineração, rompida em

setembro de 2014. O desastre dei-xou três mortos, cursos d’água e o rio Itabirito contaminados.

A semelhança entre ambas abran-ge a dependência econômica. Itabi-rito também já passou por períodos em que mais de 65% de sua receita provinha do setor mineral. Para mu-dar esse cenário, o município inves-tiu em um plano de diversificação da economia, trazendo indústrias e am-pliando as arrecadações municipais.

O mesmo deve acontecer com Mariana. Segundo a Prefeitura, a administração já trabalhava na im-plantação da Área de Diversifica-ção Econômica (ADE) para incenti-var a produtividade rural, implantar novos empreendimentos rurícolas e estimular o desenvolvimento sócio-econômico. Além disso, a Secreta-ria de Desenvolvimento Econômi-co elaborou o Plano de Crescimento e Desenvolvimento de Mariana, que seria lançado em novembro, mas em virtude do rompimento foi adiado por tempo indeterminado.

A construção de um laticínio municipal, o desenvolvimento da agricultura familiar e a elaboração de um mapeamento dos recursos cultu-rais de Mariana também estão entre os planos a longo prazo para equali-zar a economia da cidade.

Turismo é solução?

Reconstrução. Camargos precisa se reestruturar para voltar a ser destino turístico

Com o rompimento da barragem do Fundão, um dos distritos atingidos foi Ca-margos, a cerca de 19 quilômetros de Maria-na. O local possui entre suas principais ati-vidades o turismo e o artesanato. Um dos patrimônios é a Igreja de Nossa Senhora da Conceição, do século XVIII.

Os prejuízos culturais de Camargos e re-gião após o rompimento da barragem ain-da são incalculáveis. O local, conhecido pelo artesanato, pela igreja e a cachoeira, faz par-te do percurso do Iron Biker, competição in-ternacional de mountain bike que acontece em Mariana anualmente. O secretário de Tu-rismo, Cultura e Desportos de Mariana, Vi-cente Freitas, 42, espera que até a próxima edição do evento, em setembro de 2016, o lugar esteja recuperado.

O turismo é apontado como uma das soluções para o fim da grande depen-dência econômica de Mariana da mineração. Entretanto, mesmo que a cidade tenha ca-pacidade para atrair público, ainda há falhas e são necessários aprimoramentos para que as atividades contribuam significativamente para a economia local.

Segundo Freitas há dificuldade de che-gar a um acordo com os comerciantes lo-cais, principalmente em relação aos horários

de funcionamento, o que enfraquece ainda mais as vendas. Isso ocorre porque os turis-tas buscam os estabelecimentos nos fins de semana, quando estão fechados.

Os problemas não acontecem só no co-mércio. O secretário afirma que com a Ar-quidiocese, responsável pelas igrejas - princi-pal atração entre os turistas -, há dificuldade de diálogo e acordo entre horários e dias de funcionamento, devido ao baixo número de funcionários disponíveis. A Arquidiocese não respondeu o LAMPIÃO.

Vicente destaca que um dos problemas mais recorrentes é que, muitas vezes, os vi-sitantes chegam para conhecer os patrimô-nios da região e os encontram fechados. Por meio de programas como o Jovem Apren-diz, em que os estabelecimentos oferecem trabalhos de meio período para menores de 18 anos, os representantes pretendem so-lucionar a situação.

Questionado sobre a capacidade turísti-ca de Mariana, o secretário afirma que o se-tor “não tem condições de sustentar econo-micamente o município”. Novas propostas e investimentos para aquecer a atividade po-dem aumentar sua influência na economia local. A Prefeitura não sabe quanto o turis-mo influencia no PIB de Mariana.

FOTOS: THIAGO BARCELOS

Repasse das mineradoras a campanhas políticas

mineiras

Page 4: Jornal Lampião - 21ª Edição

6 ARTE: LUÍSA RODRIGUES

Janeiro de 2016 7ARTE: LUÍSA RODRIGUES

Janeiro de 2016

Quanto vale um projeto?

A Secretaria de Desenvolvimento Social e Ci-dadania de Mariana entregou à Samarco um Pla-

no de Ação de Assistência Social até março, pedindo contratação de psicólogos e assistentes sociais para os atingidos. O secretário ad-junto de Desenvolvimento Social,

João Paulo Paranhos, diz que essas pessoas estão sob cuidado da empresa. “Não temos autorização para iniciar uma política com os atingidos, ela é de responsabilidade da Samarco.”

Fragmentos de uma tragédia marianense

Direitos em pautaEm 1991, moradores que perderam tudo devido a impac-

tos de barragens no Brasil se juntaram para defender seus di-reitos. O Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB) hoje atua em 17 estados. Desde o rompimento da barragem

do Fundão, o movimento está em Mariana na tentativa de mover ações que garantam os direitos das comunidade de Bento Rodrigues, Paracatu de Baixo e outras áreas

da igreja católica e evangélica.Para a professora de

dos responsáveis. “A Samarco se eximie da res-ponsabilidade de bancar as comunidades expro-

priadas e usurpadas de seus direitos.”

Ecos na ruaNão se rompe uma memória

Em poucos minutos, o comerciante José Barbosa dos San-tos, 68, teve as mãos calejadas e o suor de 45 anos reduzidos a destroços pela onda de lama. No momento em que a barragem rompeu, José trabalhava na venda que construiu há 25 anos. Ao ouvir de longe o barulho, pensou que fosse poeira no vendaval. Quando viu o mar marrom, a correnteza trazia também uma es-cola inteira, e estava a 30 metros de atingi-lo. Foi quando o misto de surpresa, incredulidade e desespero o acometeu. “Matou meu povo tudo. Andei até de passos. Não adiantava correr. Aquela lama poderia me lamber, já tinha lambido o meu povo mesmo”, relembra, quando pensou ter perdido a família.

A aposentada Maria Félix de Souza Santos, 67, mulher de José, recorda com nostalgia os 44 anos que viveu no distrito. “Era um lugar muito sossegado, podia dormir com as portas abertas”. Das tantas saudades de Maria, a maior talvez seja o so-nho da cozinha nova. Depois de um ano em reformas, só falta-vam os vidros do armário.

Nos últimos dois anos, o lugarejo estava diferente. Mais pes-soas visitavam o local, as celebrações religiosas e a igreja estavam mais movimentadas. “Parecia que tudo no Bento foi despedida. Foi tudo muito bem festejado. Tudo era adeus.”, lamenta.

Na tarde do dia 5, Maria se preparava para descansar no sofá da casa quando a filha lhe avisou que a barragem tinha se rom-pido. A aposentada só teve te mpo de chamar a amiga e fugir. “Entrei no ônibus da linha que estava passando, ia em direção a

Santa Rita, mas a lama cortou o caminho. O ônibus recuou e nos deixou no pé do morro. Lá de cima eu só via tudo sendo levado.” O reencontro com os fa-miliares trouxe alívio e aumentou a fé. “Com uma das mãos Deus segurou a lama, com a outra nos empurrou para o morro.”

José tenta seguir a vida com otimismo, mas as memórias do antigo Bento permeiam o pensamento. “Às vezes não quero lem-brar. Mas nos meus sonhos chega um freguês e fala, ‘quanto é aquilo ali, Barbosa?’”. Não é a primeira vez que o aposentado fica sem suas economias. No governo Collor, o aposentado perdeu toda a quantia aplicada na caderneta de poupança. Desde então, passou a guardar dinheiro em casa. Antes da tragédia, cerca de 60 mil reais estavam reservados entre a parede e o guarda-roupa. “O negócio foi diferente do Fernando Collor de Mello, porque ele veio e levou o dinheiro, ao menos a casa deixou pra gente. Agora levou o dinheiro, com casa, com tudo. Meu sonho é que a Samar-co devolva tudo que perdi”, desabafa.

Vanderlei Lucas, 38, é morador de Contagem, MG, e passou 31 dias em um hotel de Mariana sem notícias da mãe. Maria Elisa Lucas, 60, estava a passeio em Bento quando a barragem rompeu. “Ela estava pescando, fazendo a coisa que mais gostava. Aí veio a lama e a levou.” Movido pela inquietação, Vanderlei, junto com famílias de desaparecidos, foi à porta do escritório da Samarco, em Mariana, para exigir que as buscas nas áreas atingidas não fossem cessadas enquanto não houvessem respostas. Até o fechamento do LAMPIÃO, duas pessoas continuam desaparecidas e 17 corpos foram reconhecidos por parentes, entre eles a mãe de Vanderlei.

A barragem do Fundão começou a operar em 2008. Segundo o Presidente da Associação de Moradores de Bento Rodrigues, Ze-zinho do Bento, a população não foi consultada sobre a constru-ção. Na época, a Samarco informou que o empreendimento não trazia riscos à comunidade. Ele conta que depois do fim da obra, as reuniões com a Samarco para esclarecer, entre outros assuntos, sobre os riscos da barragem eram frequentes. A empresa garantia que a estrutura era “muito segura”. O morador visitou a barragem de Santarém. “Sempre garanti o pessoal que se a nossa vida fosse tão segura quanto Santarém, não morreríamos nunca. A do Fun-dão nunca tive a oportunidade de visitar. Eles nunca convidaram.”

Após o rompimento da barragem do Fundão, Mariana se transformou em um lugar de tristeza, desespero e solidariedade. Ora sentia-se o silêncio estarrecedor, a incredulidade, a reflexão. Ora pulsava a tentativa de recomeçar amparada na fé e na vontade de justiça. Algo ficou claro: o algoz e o protetor são o mesmo e compõem o cenário de peças que se encaixam em um passado impiedoso, um presente devastado e um futuro incerto.

Parceiro privilegiado

Letícia Alves, 27, é coordenadora estadual do MAB e afir-ma que normalmente o movimento inicia as atividades nos lo-cais onde há barragem ou durante a construção, sendo nova a experiência com um rompimento. “A gente chegou em um momento impactante, o direito à informação desde o início foi violado e não havia quase nenhuma participação dos atingidos sobre os direitos e propostas para ampará-los.”

Em Mariana, o MAB defende a obrigatoriedade de uma verba de manutenção paga pela empresa, um valor mais alto para iniciar o processo de reconstrução dos bens, o reergui-mento da comunidade priorizando sua dinâmica e laços afeti-vos, além da recuperação da Bacia do Rio Doce. Os integran-tes do movimento esclarecem aos atingidos sobre direitos e os incentivam a não desistir de recuperar tudo o que perderam.

Outra ação que surgiu como estratégia para negociações foi o Reage. O coletivo juntou iniciativas de órgãos da socieda-de civil, para ajudar no processo de ressarcimento das famílias atingidas. Representantes do Ministério Publico, MAB, Arqui-diocese, IFMG, Ufop e moradores das áreas afetadas dialo-gam sobre pautas emergenciais para entregar à empresa. Uma proposta única defende os interesses dos moradores de Ben-to Rodrigues, Paracatu de Baixo e Barra Longa. A criação de comissões que representem os atingidos também é uma ideia surgida no Reage. A comissão representativa é composta por 32 membros, que falam pelos distritos afetados. Os participan-tes, moradores dos locais atingidos, mediam as negociações entre a Samarco e a população. De acordo com o representan-te do distrito de Paracatu de Baixo, Dan Mol Peixoto, 47,o co-mitê tem se preocupado com a união dos atingidos, para que ninguém saia prejudicado das negociações.

Além da comissão representativa, foi criada uma comissão para administrar quase R$ 1 milhão de doações. De acordo com um dos representantes, José do Nascimento de Jesus, 70, “o dinheiro está retido, e a intenção é utilizá-lo depois que a Samarco indenizar e reconstruir as áreas atingidas”. Ainda não foi discutido como a quantia será repartida.

A solidariedade às vítimas do rompimento também se mos-trou na união pela fé. O ato ecumenico realizado na Arena Ma-riana, após 30 dias, contou com a presençade representantes

afetadas pela lama.

Serviço Social da Ufop Sheila Dias, 36, a par-ticipação dos movimentos sociais, o

trabalho voluntário e as doações são atos importantes, mas que po-dem reduzir as ações reparatórias

funcionários. “Nós, que somos do ‘chão de fá-brica’, sabemos que o papel [ranking] de sus-tentabilidade e desenvolvimento social não acontece na convivência do dia-a-dia. A cada dia, a mão humana é mais escravizada.”

De acordo com a pesquisa Política, Econo-mia, Mineração, Ambiente e Sociedade - Poemas 2015, da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), a Samarco res-ponde a 554 processos no Tribunal Regional do Trabalho da 3a Região de Minas Gerais e 1.021 no Tribunal Regional do Trabalho da 17a Região de Espírito Santo. O número é con-siderado alto comparado aos funcionários da empresa, cer-ca de 7 mil no Espírito Santo e em Minas Gerais. O Poemas afirma que o número de desrespeitos trabalhistas pode ser maior, já que muitos não chegam à Justiça.

O risco na execução das atividades minerárias chega à es-cala 4, o nível máximo. Na Samarco, de acordo com o Po-emas, os acidentes com trabalhadores cresceram 95% entre 2009 e 2014. O estudo credita o aumento à queda do preço do minério junto com a necessidade de se manter a constan-te produtividade, reduzindo custos operacionais para man-ter os lucros. Em 2014, a companhia lucrou R$ 2,8 bilhões e teve faturamento bruto de R$ 7,6 bilhões.

O LAMPIÃO procurou trabalhadores da mineradora para relatar o cotidiano de pressão. Ninguém quis falar. “Se me expor, perco meu emprego. E, depois, onde vou traba-lhar em Mariana?”; “Motivos relacionados às exigências do contrato me impedem de falar”. O Código de Conduta da Samarco adverte que é obrigação do colaborador proteger informações que dizem respeito às atividades exercidas na organização, mesmo “após o término do vínculo”.

O papel e o chão de fábricaRodney Cassiano, 62 anos, é aposentado da Samarco, de-

pois de 24 anos como mecânico na empresa. No período re-cebeu auxílio creche, alimentação, bolsa de estudo para os fi-lhos, transporte e participação nos lucros. Ele conta que, na sua época, a mineradora tinha como meta priorizar a segu-rança do trabalhador. Terceirizado da Aveyance, o vulcaniza-dor Rodson Cassiano, 29, filho de Rodney, afirma que, ape-sar de não ter os mesmos benefícios, a conscientização e a exigência de prevenção de riscos no trabalho são as mesmas.

A cultura de organização e proteção interna incluiu a Sa-marco entre as 150 melhores empresas para se trabalhar no Brasil da revista Você S/A, em 2014. Com 81,4 de 100 pon-tos, um dos critérios é o índice de satisfação dos funcionários com o ambiente de trabalho. Na Samarco, 80,7% dos traba-lhadores estão satisfeitos. De acordo com o Metabase Ma-riana, atualmente a mineradora emprega cerca de 2 mil fun-cionários e 3 mil terceirizados de 15 empresas em Mariana, Ouro Preto, Santa Bárbara, Barão de Cocais e Catas Altas.

Apesar disso, Ronaldo Bento, um dos representantes do sindicato Metabase, 38, discorda da colocação no ranking. Segundo ele, a corporação é diferenciada em relação aos be-nefícios dos trabalhadores, contudo a preocupação com o lucro, como em todas as empresas, gera pressão sobre os A estudante Jennyfer Fialho dos Santos, 11, recorda com

saudade a vida em Bento. Os fins de semana e a expectati-va pela construção da piscina no quintal são memórias ainda muito vivas. Em poucos minutos, a lama do Fundão trans-formou a realidade em sonho a ser recuperado. “Meu desejo é que façam um novo Bento, o mais parecido possível. Antes queria que melhorasse, porque lá tinha pouca coisa.”

Jennyfer conta que um dos problemas era a insuficiên-cia na captação de recursos hídricos, assunto muito estuda-do na Escola Municipal de Bento Rodrigues. Em uma repor-tagem de rádio, a estudante entrevistou moradores sobre a falta d’água e possíveis soluções. A iniciativa surgiu de par-ceria entre a escola e o projeto Cidadão do Futuro. Voltado para inovar o ambiente educacional, o programa promoveu a inclusão de tecnologias que auxiliam práticas pedagógicas.

O projeto começou em Bento Rodrigues em 2014 e era executado pelo Instituto Paramitas, contratado pela Samar-co, como parte da política de relacionamento socioinstitu-cional da empresa. Segundo o relatório financeiro de 2014, a organização gastou cerca de R$ 10,4 milhões em projetos sociais em Minas e no ES – cerca de 0,14% do faturamento bruto. A companhia não respondeu sobre a verba para proje-tos em Bento Rodrigues, antes e depois da tragédia.

Diante do cenário, a Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop) criou o Comitê de Articulação para Ação

Voluntária em apoio aos atingidos. A estratégia visa organizar as ações propostas pela comunidade aca-dêmica em uma frente de mobi-lização, de médio e longo prazo,

para acompanhar e orientar os mo-radores de Bento Rodrigues, Paracatu e outras áre-

as afetadas. O comitê é construído por eixos, como Educação e Memória, Saúde, Trabalho, Comunicação, e está aberto a su-gestões. Há 28 projetos para entrar em ação. O chefe de ga-binete da reitoria, José Armando Ansaloni, 55, explicou que,

antes da criação do comitê, a universidade facilitou ações iso-ladas. Entre elas, carros para o envio de donativos a Barra Longa e o ônibus que levou 40 estudantes de medicina para fazer a triagem dos moradores.

A instituição foi convidada pela Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de MG (Semad) para participar de um estudo de normatização da constru-ção de barragens de rejeitos. A pesquisa tem como pro-posta realizar uma força-tarefa para analisar e sugerir nor-mas técnicas para melhorar a fiscalização em Minas Gerais, além de desenvolver novas tecnologias.

A mineração está presente em outras instâncias da Ufop. A Samarco contribui de forma efetiva para a reali-zação de pesquisas e eventos na universidade, por meio de convênios, protocolos e financiamentos. Em outubro de 2015, foi assinado um protocolo de intenções para ofertar aos estudantes aulas de segurança do trabalho, ministra-das por funcionários da Samarco. O reitor da universidade, Marcone Jamilson, 55, conta que ainda não existe nenhu-ma conversa sobre a suspensão das propostas, e que, de-pois do rompimento da barragem, a empresa responsável “terá tempo de sobra” para se dedicar às aulas. A constru-ção do Parque Laboratorial do Instituto Tecnológico Vale (ITV) e do Centro de Geotecnia Aplicada também inte-gram o protocolo. Com investimento de R$ 6,8 milhões em estrutura, Vale e Samarco pretendem criar um polo de tecnologia industrial no campus.

Em 2014, por intermédio da Fundação Gorceix, a Vale e a Samarco investiram R$781,8 mil em pesquisas de pro-fessores da Ufop. As empresas também patrocinam even-tos como Festival de Inverno e Fórum das Letras, realiza-dos pela instituição. Como consequência do rompimento da barragem do Fundão, alguns convênios entre a Funda-ção Educativa de Ouro Preto (Feop) e a Samarco, avalia-dos em R$ 1,2 milhão foi suspenso. A instituição é um dos

principais órgãos de apoio à univer-sidade. O Grupo de Pesquisa RE-CICLOS, da Engenharia Civil, faz

estudos na área. Um deles mostra que é possível incorporar até 80% da

lama no lugar da areia na construção civil.Por meio de nota, a Ufop lamentou o acontecido e se

solidarizou em ajudar as famílias atingidas pela lama. Par-te da universidade classificou a postura dos integrantes da Escola de Minas, maior beneficiária das verbas de pesqui-sa e dos convênios com a mineração, como omissa, já que não houve nenhum pronunciamento do instituto. Segun-do o reitor, alguns professores optaram por não falar so-bre o caso devido à relação que mantêm com a empresa ou por não dominar as peculiaridades da barragem da Samar-co. “Nós temos professores que estão envolvidos no pro-cesso”, confirma, informando que não houve proibição de declarações por parte da reitoria.

da quem cuida realmente do povo, e os questionamentos começaram.

O primeiro uniu as vítimas do rompimento, a Arquidiocese de Mariana e o MAB. Atrás de res-postas, cartazes tomaram conta

das ruas em manifesto pela valorização da vida.Nilza Pena, 72, trazia a incerteza no olhar e nas mãos.

No cartaz, as palavras “pai de família, dedicado, competen-te” descreviam indagações sobre o desaparecimento do gen-ro Daniel de Carvalho, 53, terceirizado da Samarco. “Ele saiu de casa para trabalhar na quinta-feira e não voltou mais.” Na Praça Minas Gerais, os participantes rezaram de mão dadas. A reflexão sobre o recomeço fez muitos pensarem nos rumos da mineração na cidade.

O movimento “Fica Samarco” foi uma resposta à indaga-ção. Comerciantes, estudantes, trabalhadores da mineradora e moradores atingidos participaram. O pedido de todos era um só: “justiça sim, desemprego não”. Era possível ouvir “Fica, Samarco, sem você nós somos fracos”.

Os semblantes e os cartazes reforçavam o receio de que Mariana se torne uma “cidade fantasma”. Na mesma linha, o sentimento de vulnerabilidade motivou a passeata “Todos juntos pelo futuro de Mariana”, com moradores da cidade e dos distritos. A marcha terminou com a entrega de um ma-nifesto ao prefeito, Duarte Júnior (PPS), e ao representante da Câmara dos vereadores, Fernando Sampaio (PRB). Entre os pedidos está a criação de alternativas que diversifiquem a economia da cidade. Para o comerciante Flávio Almeida, 40, a pauta dos desabrigados não exclui a pauta da mineração. “Expressamos o desejo de que as reivindicações se conver-tam em um bem comum.”

Depois da tragédia, que tingiu a primaz de marrom, gri-tos e choros clamavam por justiça. A ação do poder público

e de empresas privadas colocou em dúvi-

TEXTO:Agliene Melquíades

Carol VieiraFOTOS:

Rodrigo Sena

Page 5: Jornal Lampião - 21ª Edição

8ARTE: CLARISSA CASTRO

Janeiro 2016 9ARTE: CLARISSA CASTRO

Janeiro 2016

CIDADANIA

Burocracia feita com mágoaMoradores dos distritos atingidos se veem de mãos atadas depois de perderem a documentação básica e registros de seus bens

Solidariedade em meio à dor

A lama liberada após o rompi-mento da barragem do Fundão da mineradora Samarco, no dia 5 de novembro, não destruiu apenas la-res, vidas e meio ambiente. Os re-jeitos de minério misturados à água prejudicaram o convívio das comu-nidades atingidas e levaram um pe-daço da dignidade das vítimas. Os documentos são suportes para que qualquer pessoa consiga exercer sua cidadania. Não tê-los em mãos difi-culta a comprovação das posses ou até mesmo da própria existência.

Quando se depararam com a in-vasão da lama, os moradores dos dis-tritos de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo se preocuparam em se sal-var. Os bens materiais, assim como a documentação, se tornaram irre-levantes. Alguns resgataram o que puderam, outros perderam tudo, de certidões de nascimento, carteiras de identidade e Cadastro de Pessoa Física (CPF) a documentos que en-volvem maior burocracia para serem repostos. Registros informais de ca-sas e automóveis se dissiparam em meio aos escombros.

“Dei sorte porque meus docu-mentos estavam todos no alto, dei-xei pendurados na parede. As pa-redes molharam, mas a bolsa não”, afirma Geralda da Penha Gomes, 57 anos, moradora de Bento Ro-drigues. A dona de casa conta que, hoje, só tem a documentação essen-cial por um “milagre”. Ela foi levada pela Samarco para buscar o que res-tou somente no dia 24 de novembro. Até então, estava sem os documen-tos básicos e com medo de precisar fazer todos outra vez.

Ao fugir, Geralda não pegou nada. “Quando corri com meu me-

nino, não teve jeito de pegar docu-mento. Nessa hora o mais impor-tante é sair vivo.” Ela revela que vem recebendo apoio da empresa, me-nos na questão documental. Apesar da perda da escritura, sua casa era registrada em cartório, o que facilita a comprovação da propriedade.

Nos distritos, por ser uma área rural, grande parte dos imóveis não eram formalizados. Os proprietá-rios não dispõem de documentos que certifiquem, legalmente, que eram donos dos pertences. Esse é o caso de Vanda Emília Teotono, 60, também dona de casa e mora-dora de Paracatu de Baixo. Ela per-deu a casa onde vivia, deixada de he-rança pelo pai e ajeitada aos poucos por ela. “Fiz minha casa como pude. Era tudo novo, meus móveis... Tudo novo.” Desde a tragédia, Vanda está morando com a irmã em Mariana.

“Tinha acabado de chegar, na-quela quinta-feira fiz compras no mercado. Só peguei minha bolsa e saí com a roupa do corpo”, relem-bra. Atualmente, ela tem a carteira de identidade e o CPF, porque fica-ram na bolsa que protegeu.

Vanda ainda não solicitou a se-gunda via da certidão de nascimento e da carteira de trabalho, porque não está pronta para lidar com o proces-so. Para ela, o único meio de atestar a existência da construção é a conta de luz em seu nome. O documento da Cemig comprova a residência no lugar, não a posse do imóvel.

ProcedimentosNo dia seguinte ao rompimento,

o Centro de Atendimento ao Cida-dão (CAC) de Mariana, em parceria com a Secretaria de Estado de Direi-tos Humanos, a Polícia Civil de Mi-

nas Gerais e o Sindicato dos Cartó-rios (Recivil), iniciou mutirões para que as pessoas pudessem refazer a documentação básica. As equipes foram até os hotéis e recolheram os nomes de quem precisaria. As ações já foram finalizadas, mas os serviços regulares desses órgãos continuam sendo preferenciais.

A Câmara Municipal e o Cartó-rio de Registro de Imóveis de Maria-na garantiram que todos os afetados pela calamidade têm direito à isen-ção para retirar novas vias dos docu-mentos. A Câmara não soube infor-mar quantos deles foram atendidos desde 6 de novembro. Uma fon-te contou ao LAMPIÃO que a Sa-marco pagará a segunda via do do-cumento do carro e descontará no valor da indenização. Até o fecha-mento, 20 moradores de Bento Ro-drigues e Paracatu haviam ido ao

cartório para buscar as escrituras. Alguns voltaram de mãos vazias. Dos 25 imóveis procurados, apenas 10 foram identificados.

Um mês após o desastre, a Sa-marco ainda não tinha uma estraté-gia para ressarcir as vítimas, inclusi-ve as que estão sem a documentação comprobatória dos bens. De acordo com o analista de comunicação da mineradora, Thales de Toledo Fran-ça, a empresa está focada em ações emergenciais. “A Samarco não está discutindo indenizações agora com nenhum dos atingidos, isso não é a prioridade. O que estamos fazen-do é o atendimento aos direitos hu-manos. A prioridade é necessidade básica como alimentação, moradia, água e pagar contas.”

Thales afirmou que existe uma consultoria começando a traçar um plano para reembolsar quem não apresentar provas legítimas de suas posses. “Isso vai entrar nesse plane-jamento, mas ainda não temos uma resposta”. Ele assegurou que a Sa-marco cumprirá os prazos estabe-lecidos pelo Ministério Público. A empresa atrasou para cumprir as primeiras etapas do Termo de Ajus-te de Conduta (TAC).

Segundo o promotor de Direi-tos Humanos da comarca de Maria-na, Guilherme Meneghin, a falta de documentos não é empecilho para a indenização; eles podem ser supri-dos pela prova testemunhal. As ví-timas se enquadram em um meca-nismo jurídico chamado inversão do ônus da prova. Nele, a parte prejudi-cada declara os bens e a outra é que deve comprovar que ela não os pos-suía. “A Samarco não pode se negar a ressarcir. Ela é quem tem que pro-var que a pessoa não tinha aquilo, e ela não vai conseguir.”

“Você chega com uma palavra, um abraço, uma cesta e percebe que, em meio à destruição, consegue ver sorrisos nos rostos dessas pessoas”, conta Elmírio Eduardo de Almeida, 38 anos, sobre os atos de solidarie-dade após a tragédia que deixou 16 mortos, três desaparecidos e cente-nas de desabrigados em Mariana.

O caminhoneiro se envolve em ações de diferentes situações de ca-lamidade pelo país. Por ter um jipe com facilidade para se deslocar, ele oferece ajuda àqueles que querem doar, mas não têm condições de che-gar a lugares precários.

Elmírio saiu do Mato Grosso e foi aos distritos atingidos para resga-tar vítimas, em apoio ao Corpo de Bombeiros. Desde então, compra e recolhe donativos para levar aos que perderam tudo. Ele e quem o acom-panha nas “missões” consultam os moradores para descobrir do que es-

tão precisando. O período de dura-ção de alimentos, remédios e água é considerado para que a próxima car-ga chegue no tempo certo. “A solida-riedade parte das pessoas que estão na sua zona de conforto e se sentem incomodadas quando veem alguém em sofrimento. Parte das pessoas de bom coração”, define. “E então vejo como está sobrando em casa e acho que é hora de ajudar. ”

O caminhoneiro prefere entregar os donativos pessoalmente a quem necessita. Segundo ele, com esse trabalho voluntário pode ter conta-to humano e experimentar a sensa-ção de dever cumprido. “Isso me faz muito bem, me sinto feliz e me gra-tifica muito.” Para Elmírio, todos de-vem estar unidos para que a coope-ração tenha mais força. “Toda ajuda é bem-vinda para essas pessoas. Va-mos nos por no lugar delas, porque um dia podemos precisar também.”

MobilizaçãoOs pontos oficiais de recolhi-

mento de doações foram criados

pela Prefeitura de Mariana em par-ceria com Defesa Civil de Minas Ge-rais, Corpo de Bombeiros e Cruz Vermelha. Após a tragédia, morado-res se voluntariaram para organizar os itens recebidos e amenizar o caos instalado. Com o apoio deles, os gal-pões foram estruturados aos poucos. Segundo o secretário adjunto de De-senvolvimento Social e Cidadania de Mariana, João Paulo Batista, hoje a maioria dos que fazem esse trabalho são servidores públicos municipais.

As doações foram armazenadas no Centro de Convenções e cerca de 940 pessoas podem recebê-las. Tria-gens foram realizadas pela Assistên-

cia Social para identificar as necessi-dades reais dos atingidos. Entre os donativos, estão arroz (230 kg), fei-jão (197 kg), colchões (111), produ-tos de higiene (2104) e água (84,3 mil litros). A Samarco disponibiliza transporte para as famílias buscarem as doações. Em média, elas pegam o que precisam duas vezes por sema-na e os idosos comparecem menos.

A mineradora é responsável por mobiliar as casas alugadas para os desabrigados e arcar com os uten-sílios domésticos e enxovais. Ainda assim, quando foram encaminhadas para os imóveis, as vítimas procura-ram cestas básicas e roupas de cama no Centro de Convenções.

A empresa abastece as casas com alimentos perecíveis. Porém, a Sa-marco não se compromete mais com o suprimento após a entrega do cartão de auxílio financeiro. Ele con-tém um salário mínimo por família, mais 20% para cada dependente e o valor de uma cesta básica. Até o fe-chamento do LAMPIÃO, 754 pes-soas haviam sido alojadas.

Três contas bancárias foram abertas pela Prefeitura para contri-buições em dinheiro e são adminis-tradas por uma comissão de órgãos públicos e moradores. Elas continu-am ativas e o arrecadamento foi de aproximadamente R$ 1 milhão.

O recebimento de donativos foi interrompido no dia 15 de novem-bro, por causa do acúmulo de obje-tos. João Paulo Batista afirmou que a decisão foi tomada para tudo seja contabilizado e distribuído com efi-ciência. Apesar de a campanha es-tar finalizada, três carregamentos de doações chegaram na cidade na se-mana do dia 11 de dezembro.

O secretário diz que os órgãos públicos não têm como controlar ações independentes porque o ato de doar é espontâneo. Ele acredita que os que preferem contribuir as-sim têm medo de que as coisas não cheguem até quem precisa. A grande arrecadação em Mariana possibili-tou que donativos fossem direciona-dos para outras cidades, como Barra Longa e Governador Valadares.

Riqueza tingida de lamaCom a produção afetada pelo rompimento da barragem, patrimônios locais podem se tornar uma raridade no comércio

lidária. Francisca trabalhava com a Ahobero desde maio de 2014 e, nes-se processo, a associação ganhou um prêmio do Banco Santander, que foi dividido em duas fases em 2014. O dinheiro, um total de R$ 100 mil, foi usado para ampliar e adequar a asso-ciação às normas da Anvisa.

ImaterialÉ comum escutar o discurso de

que há alternativas para quem per-deu um patrimônio. A professora de Ciências Sociais da Ufop, Marisa Sin-gulano, 32, explica que, no caso da Ahobero, as mulheres podem voltar a produzir a geleia, já que o saber- -fazer não foi perdido. Ela ouviu de uma das mulheres da Ahobero que a perda mais importante foi a histó-

Além disso, uma diversidade de plantações frutíferas foi destru-ída, juntamente com o trabalho de reflorestamento na beira do rio Gualaxo que ele vinha reali-zando. “E, por enquanto, vou ten-tar tocar o que dou conta.”

Além de vender suas hortali-ças na feirinha, que acontece aos sábados no Centro de Conven-ções de Mariana, ele também en-tregava orgânicos em comunida-des da região. Flávio Ernani, 30, conta que vai à feirinha há cinco. “Ele é muito simpático. Vou lá e deixo tudo separado e busco de-pois.” Flávio começou a fazer isso porque os produtos do seu Wal-dir acabam rápido.

Nas prateleiras dos pequenos co-mércios, já não é possível encontrar as geleias de pimenta biquinho. A promessa de tê-las de volta nos co-mércios é uma etapa adiada. A Aho-bero não se construiu de forma rá-pida e do nada; foram anos para conquistar o que alcançaram. Agora que estavam prontas para avançar, o trabalho foi perdido. Tudo foi leva-do por um mar de lama.

Produzida com a adição de frutas cítricas, açúcar e pimenta malagueta, além da própria biquinho, a geleia de pimenta era vendida em feiras e lati-cínios sob encomenda para revenda em Belo Horizonte e em pequenos comércios da região de Mariana. Ela foi concebida e produzida para aju-dar no desenvolvimento de um gru-po de pessoas e da comunidade.

A Associação de Hortifrutigran-jeiros de Bento Rodrigues (Ahobe-ro) começou em 2002, em Bento Rodrigues, com a produção de ver-dura processada. Em 2006, por in-centivo da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural de Mi-nas Gerais (Emater–MG), a Aho-bero conheceu a pimenta biquinho, novidade no Brasil naquela época. A ideia inicial era vender o produto em seu estado natural para a região.

No mesmo ano, o grupo decidiu mudar e passou a produzir a geleia de pimenta biquinho, estimulado por uma técnica da Emater. A asso-ciação é composta por nove pesso-as, que participavam de todo o pro-cesso de produção, desde o plantio e colheita (processo que levava três meses) até a confecção da geleia.

Com a inclusão da Ahobero na Incubadora de Empreendimentos Sociais e Solidários (Incop), projeto de extensão da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), a associação adequou a produção às normas exi-gidas pela Agência Nacional de Vigi-lância Sanitária (Anvisa), inserindo o código de barras nos produtos para poder vender a geleia em supermer-cados. Estava tudo organizado e pla-nejado para a ampliação das vendas.

Keila Vardele Sialho dos San-tos, 42 anos, presidente da associa-ção, conta que já chegaram a produ-zir mais de 7 mil potes em menos de uma semana devido a uma en-comenda de cestas. Em média eram produzidos 400 potes de geleia por dia. Neuza da Silva Santos, 39, uma das produtoras, comenta que, de-pois do rompimento da barragem, todo o maquinário foi recuperado da sede da associação no subdistri-to de Bento Rodrigues, assim como cerca de 700 garrafas pets (de 1,5l e 2l) cheias de pimenta biquinho, hoje em posse da mineradora Samarco.

Ainda havia 22 caixas e meia de geleia prontas, com 24 potes cada. Logo que ocorreu a tragédia, a pro-cura aumentou. Foram vendidas 21 caixas de geleias para apenas uma pessoa, pelo valor de R$ 10 cada pote. Antes da tragédia, o valor mé-dio de venda era R$ 7,50.

Sem expectativas, Keila e Neuza esperam em breve poder produzir geleia com as pimentas já colhidas e estocadas, assim como conseguir um novo espaço para retomar a plantação e produção da geleia. Am-bas, contudo, ainda estão incertas de quando e como isso vai ocorrer.

CooperaçãoConceito um tanto distante da

economia tradicional, a economia solidária não está relacionada prio-ritariamente ao lucro, como explica a professora do curso de Engenha-ria de Produção da Ufop Francisca Diana, 36. A economia solidária está ligada à autogestão e ao cooperati-vismo e ajuda no desenvolvimento social e local, associando o empre-endimento ao lugar onde está inse-rida. É desenvolvida para a melhoria de vida das pessoas que trabalham nesses empreendimentos.

Francisca, que participa da In-cop, vinha mapeando empreendi-mentos de Mariana, Ouro Preto e João Monlevade para incubar os que tivessem associados à economia so-

Conhecida na região de Ma-riana por sua famosa coxinha, Sandra Quintão, 43, de Bento Rodrigues, espera recomeçar e recuperar um pouco do que per-deu. Assim como outras famílias que aguardam uma casa provi-sória e depois um lugar definitivo para morar, Sandra busca encon-trar uma que a permita continuar fazendo o que usualmente fazia.

Emocionada, conta que, logo quando foi levada ao hotel, de-pois de perder a casa, conseguiu a cozinha emprestada e continua a produção de coxinhas e pé de moleque, com a ajuda da irmã, Terezinha. A procura pelos salga-dos aumentou consideravelmen-

Produto artesanal e familiar, a cachaça Tiara foi mais um dos pa-trimônios da região que teve a produção interrompida. O local onde o bagaço da cana ficava ar-mazenado foi atingido pela lama do rompimento da barragem da Samarco. A tragédia afetou a pro-dução da cachaça, prevista para terminar apenas em dezembro. Segundo Juliano Siqueira, 37, gestor da empresa, quatro fun-cionários formais e outros dez in-formais foram dispensados.

O bagaço serve como com-bustível para o alambique onde produzem a cachaça. Numa safra, que dura, em geral, seis meses, chegam a ter entre 70 e 80 mil li-

tros do produto. Como a produ-ção é anual, a Tiara não deve su-mir do mercado e, por volta de junho de 2016, a safra recomeça.

Desde 1940 no mercado, a cachaça Tiara, inicialmente Iara, é produzida em Barra Longa. Antes de Juliano, o patrimônio foi administrado pelo pai, Benja-min e, antes dele, pelo avô.

A Tiara tem parceria com o departamento de Tecnologia de Alimentos da Ufop, que faz aná-lises periódicas do produto. Em 2014, a Tiara foi premiada com medalha de ouro do Concurso Mundial de Bruxelas. Ela é co-mercializada em Minas Gerais, Rio de Janeiro e Campinas.

Sandra, vida em reconstrução Tiara, iguaria de Barra Longa Seu Waldir, colher o que dá

Com um sorriso no rosto e muita disposição, seu Waldir Pollack, 69, morador de Paraca-tu de Baixo, conta sua história. No dia 7 de novembro, foi a primei-ra vez que chegou à feirinha onde vende suas hortaliças de mãos va-zias, para mostrar aos clientes que estava bem. Ficou ao lado da bar-raca toda a manhã.

Uma semana depois, ele já ti-nha o que vender, mas em menor quantidade. Com o rompimento da barragem, trabalhadores que o ajudavam na plantação foram afe-tados e não tiveram condições de continuar no subdistrito.

A plantação é grande e pos-sui uma diversidade de produtos.

te e ela os vende congelados ou fritos, por R$50 o cento.

Sandra trabalhou durante nove anos em casas de família, em Belo Horizonte, e lá aprendeu a fazer o salgado. Mas o tempero é dela e é segredo. O casarão em que ficava o Bar da Sandra, que servia comida mineira, funciona-va como pousada. “Já tive casos de a pessoa almoçar e pegar a coxinha pra levar na viagem.”

Hérica Mara, 22, frequentava desde a infância o subdistrito e, sempre que dava, visitava os tios. Sobre as coxinhas, ela afirma: “É impossível resistir. Ela tem mãos de fada. E os doces também são maravilhosos”.

TRABALHO

ria. “Ficou enterrada na lama.” Essa memória se materializava em obje-tos, fotografias, recordações, coisas que não serão mais recuperadas.

Para Marisa, a associação faz parte da história da comunidade de Bento Rodrigues. Era muito mais que vender; as pessoas envolvidas estavam juntas desde a plantação da pimenta até a colocação da geleia no pote. Havia uma relação entre o ter-ritório e a vida de cada uma delas. Nesse lugar, todos colocavam em prática o saber-fazer quando passa-vam por todos os processos da pro-dução. “O território de uma comu-nidade é, em parte, uma dimensão material – a terra –, mas, em parte, é ‘imaterial’, é o espaço da vida, e isso se perdeu com a tragédia.”

MG - 129

MG - 129

MG - 262

MG - 262

MG - 326

MG - 326

Ouro PretoMariana

Bento Rodrigues

Paracatu de Baixo

Barra LongaPedras

Ponte Nova

Mendes Cunha

F a

Cachoeira do Brumado

Águas Claras

onsec Achado. Após 19 dias, Geralda volta ao local da tragédia e recupera alguns documentos essenciais

Incerteza. Fabricação da geleia antes produzida em Bento Rodrigues não tem previsão de ser retomada

Empatia. Voluntários ajudam na separação e organização dos donativos para serem distribuídos às vítimas; Centro de Convenções de Mariana é o principal ponto de apoio

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Você chega com uma palavra, um abraço, uma

cesta e percebe que, em meio à destruição, consegue ver sorrisos nos rostos dessas pessoas.”

Elmírio Eduardo de Almeida

Francielle ramos mariana rennó

mariana rennó

Colaboraram Flávio Ribeiro e Rafaella Souza

SABRINA PASSOS

TAINARA FERREIRA

FOTOS: TAINARA FERREIRA

CLARISSA CASTRO

Page 6: Jornal Lampião - 21ª Edição

10ARTE: ALÍCIA MILHORANCE

Janeiro de 2016 11ARTE: ALÍCIA MILHORANCE

Janeiro de 2016

Cruz sagrada, a fé do povoAlém das quatro linhas

O dia 5 de novembro de 2015 es-tará para sempre na memória dos moradores de Bento Rodrigues. Os rejeitos da barragem do Fundão le-varam vidas e interromperam so-nhos. Levaram também o verde das árvores, das plantações, do gramado do campo, o verde da camisa de um time de futebol. Só não foram capa-zes de levar a esperança.

Onézio Izabel de Souza, 52 anos, técnico do União São Bento, time do subdistrito destruído, sonha com dias melhores. Ele era morador de Bento desde 1982. Mecânico, ca-sado e pai de quatro filhos, é um apaixonado por futebol. O mar de lama que invadiu o lugar onde mo-rava causou dor e destruição. “Per-di tudo, menos a minha família e a fé em Deus.” Onézio é atleticano e tinha uma coleção com 77 camisas do time do coração. A recordação o emociona. “Foi doído, não gosto nem de lembrar, perder minha cole-ção. Se pudesse ter pegado algo an-tes da lama chegar, certamente se-riam as minhas camisas e o Jason, meu cachorro.”

Há mais de dois anos como trei-nador do União São Bento, ele diz que comandar a equipe era bom, prazeroso e motivador. Segundo Onézio, a união do time não fica-va só no nome; dentro de campo o que se via era muita raça e vonta-de de vencer. “Os atletas jogam por amizade”, ressalta.

O técnico conta que os mora-dores sentiam satisfação em ajudar o grupo. A relação estabelecida en-tre equipe e comunidade era forte. A fonte de sustento do União São Ben-to costumava vir dos próprios joga-dores, cada um contribuía da forma que podia. O primeiro uniforme que ele conseguiu depois que assumiu o comando da equipe foi comprado com recursos dos moradores.

Onézio, que já foi jogador do time, enxergou no cargo de treina-dor a possibilidade de oferecer qua-lidade de vida por meio do espor-te. No começo, “foi para não deixar os moleques irem para a rua faze-rem coisas erradas”. Depois de um tempo, ele passou a dar conselhos, percebeu que os atletas encaravam o grupo como uma família e que, aci-ma de tudo, se ajudavam.

O campo da comunidade de Bento Rodrigues estava sendo re-formado à custa da Samarco, e a reinauguração estava marcada para dezembro de 2015. Ainda emocio-nado, Onézio se recorda dos quatro conjuntos de uniforme, dos mate-riais de treino, das redes novas dos gols e dos troféus que foram embo-ra na lama. Depois do rompimento, dois conjuntos de uniforme, que es-tavam em uma sacola, e um troféu foram encontrados por um torcedor do time que voltou ao subdistrito.

Símbolos

A equipe de Bento representava o lazer e um dos laços da comunida-de. Ravane Augusto da Silva, 23, tra-balhava no subdistrito como pintor e é lateral esquerdo do União São Bento. Os atletas treinavam duas ve-

zes por semana, e ir ao campo do lu-gar onde moravam era uma terapia. “O futebol, para mim, é tudo. O que mais gosto de fazer é jogar bola.” Ele reforça o que pensa o técni-co ao afirmar que a manutenção da equipe é importante para quem vi-via em Bento Rodrigues. “Não pode parar não, senão perde a cultura do nosso lugar.”

Para o goleiro do time, Vitor de Souza, 18, estudante e ex-funcioná-rio do Restaurante e Bar da Sandra, o campo significava muito pra co-munidade, porque foi lá que a equi-pe sempre jogou. Desde pequeno, gostava de futebol. O jovem expli-ca que quer permanecer no grupo. “Afinal de contas, sou o único go-leiro do time”, explica. Vitor relem-bra que a equipe estava há algum tempo sem disputar campeonatos e, mesmo após o desastre, a intenção é voltar a jogá-los.

Agora, certamente o time de Bento Rodrigues precisará de apoio. Mas, conforme garantiu o prefeito de Mariana, Duarte Júnior, colabo-ração não vai faltar. “Vamos colocar o time para disputar campeonatos e buscar parceiros para pagar as des-pesas. Agora é uma nova realidade, hora de demonstrar que dá para sair mais forte de uma tragédia.”

O torcedor Gleison Alexandrino Souza, 31, tenta dar a volta por cima. Segundo ele, que encontrou os uni-formes perdidos na lama de Bento, a equipe é uma das boas lembranças que restou do subdistrito. “O time

representa tudo hoje. Só de termos na memória todas as coisas que pas-samos lá, temos mais força de von-tade e empenho pra continuar.” A relação de afeto estabelecida com o União São Bento faz com que ele es-teja presente em todos os jogos. O pedreiro conta que sempre acompa-nha e incentiva o time.

Das histórias de arquibancadas, Gleison se lembra de uma em espe-cial, durante um campeonato regio-nal, numa partida disputada na co-munidade de Vargem. Os torcedores do time da casa prestigiavam em peso a equipe mandante, enquanto os de Bento não tinham o mesmo apoio. O União São Bento come-çou jogando bem e logo abriu o pla-car. Os torcedores da casa, nervosos com o resultado, começaram a ame-açar os visitantes, dizendo: “Pega a espingarda lá.” Apreensivos com as ameaças, os torcedores de Bento fo-ram embora, mas os atletas perma-neceram em campo. No fim, tudo não passou de um susto, e a equipe voltou com a vitória pra casa.União. Moradores buscam forças no futebol para manter esperanças

Ao caminhar pela rua do giná-sio, logo na chegada a Bento Rodri-gues, subdistrito de Mariana, impor-tante rota da mineração na Estrada Real, pude ver a corrida contra o tempo: casas não atingidas, destru-ídas pela metade e suas ruínas. Não foi possível chegar até meu destino, a Capela de São Bento.

Uma das primeiras igrejas de Mi-nas, construída por volta de 1718, derrubada e reerguida no fim do sé-culo XVIII, com o nome do padro-eiro da cidade, a capela é lembrada com saudade pelos moradores. Mes-mo histórica, não era patrimônio tombado, tinha apenas um inven-tário. Construção simples, pequena, acolhedora; com paredes brancas, uma porta, duas janelas azuis e uma cruz latina que ficava na cumeeira.

O altar, de madeira e decorado com anjos e adornos, retratava a arte barroca e guardava a imagem de São Bento. Um corvo, uma cobra, uma bíblia e um cajado são referências do padroeiro para os beneditinos. Havia também uma cruz, em alusão ao santo, simbolizando o livramento de São Bento e do seu povo de todo mal causado pela inveja, iluminando caminhos. “Que a Cruz Sagrada seja minha luz”, rege o santo em oração.

Há 30 anos, a imagem do padro-

eiro foi pintada de marrom. Escon-der o brilho do ouro esculpido no objeto santo foi uma tática dos de-votos, contra a vontade do páro-co Armando Godinho, para prote-ger a materialização da fé de furtos e realocação em igrejas consideradas mais importantes pelas autoridades.

Devoto de São Bento desde pe-queno, José do Nascimento Jesus, 70 anos, mais conhecido como Ze-zinho do Bento, relembra carinhosa-mente como foi acolhido quando se mudou para o subdistrito. O presi-dente da associação dos moradores de Bento ressalta a importância de construir sua casa a 50 metros da ca-pela: “Somos muito católicos, íamos à igreja todos os dias. Sábados e do-mingos, com ou sem missa. A gente ia lá sempre rezar para o Santíssimo que ficava exposto.”

Até que chegou o número 5. Po-deria ser a quantidade das flores co-lhidas no dia; a hora que o remédio deveria ser tomado; os minutos que faltavam para o recreio ou a hora que o sino da Capela de São Bento anunciava para os fiéis. Mas foi o dia em que ele parou de bater.

O dia em que a igreja teve, em questão de minutos, as paredes brancas tingidas de outra cor e, em seguida destruídas. Da estrutura nada restou. Como um redemoinho, o tsunami de rejeitos girou por toda

Todos na escola, menos dois

Fernando Cássio

Paloma demartini a igreja e só deixou por lá a pia ba-tismal, que tem na base, como de-coração, uma cobra. O marrom não veio para recordar a estrutura de pau a pique. O subdistrito, que vi-via da mineração, foi traído por ela. Bento Rodrigues agora é monocro-mático e carrega o tom terroso da lama por todos os lados.

Cerca de 30 objetos santos fo-ram soterrados pela lama, como imagens de Nossa Senhora Apare-cida, Santo Antônio, São Sebastião e a imagem de São Bento. O cruci-fixo também havia se perdido, mas foi encontrado e devolvido ao pa-dre Armando. Até o fechamento do LAMPIÃO, foram encontradas mais quatro peças, entre elas parte de um anjo barroco que ficava no altar, duas almofadas da porta cen-tral da igreja e fragmentos de um banco. Os arqueólogos seguem trabalhando no local para en-contrar mais

peças sacras ou parte delas.Internado desde o rompimento,

o marido de Tereza Viana Silva, 78, Filomeno, era o procurador da igre-ja e responsável pela chave do local. As toalhas do altar e paramentos da missa ficavam sob responsabilida-de dela, que lamenta: “Estava tudo limpinho, engomadinho, agora tá tudo sujo e perdido na lama!”

Com olhos marejados, Marcos Muniz, 52, genro de Tereza, con-ta que era tradição da família reali-zar batizados, 1as comunhões e ca-samentos na Capela de São Bento. As bodas de prata dele e da es-posa, Marinalda, segui-riam a tradição em 2017.

Conceição Aparecida, 34, teve a cerimônia de casamento que tan-to sonhava em maio de 2015 na ca-pela e planejava comemorar o ani-versário de 2 anos do filho, que tem necessidades especiais, no lugar. “Depois de tanta luta pela vida dele, queria rezar uma missa na Capela para comemorar.” Além dela, ape-nas duas noivas se casaram no lugar este ano. Conceição, como Marcos, guarda na memória os planos que foram feitos. Entre os desejos dos

dois, de Zezinho e Tereza está um novo Bento, com as mes-

mas casas, capela e vizi-nhança. A lama le-

vou tudo, mas não levou

a fé.

EDU

ARD

O RO

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UES

PATRIMÔNIO

CIDADANIA

ESPORTE

EDUCAÇÃO

Foi doído, não gosto nem de lembrar, perder minha coleção. Se pudesse ter pegado algo antes da lama chegar, certamente seriam as minhas camisas e o Jason, meu cachorro.”

Onézio Izabel de Souza

ELMO

DE O

LIVEIRA

Renascer longe do BentoApós ter sua casa levada pela lama, perder história e memória, Terezinha luta para reconstruir a vida com sua família

PrisCila Ferreira

STELA D

IOG

O

Improvisado. Dona Tê é abrigada em hotel enquanto espera novo lar

Transição. 20 dias depois ela é realocada para apartamento alugado

STELA D

IOG

O

Olhos expressivos, cabeça baixa e poucos sorrisos. Fala firme, con-cisa e com pausas que gritam. Sen-timentos que transbordam em lágri-mas. Nervosismo misturado com ansiedade. Um turbilhão de reações em cada entrevista. Terezinha Quin-tão, conhecida como Dona Tê, 49 anos, moradora de Bento Rodrigues (ex-moradora, do ex-Bento Rodri-gues?), viu seu trabalho, sua história e memória serem levados no rom-pimento da barragem do Fundão da mineradora Samarco. O mar de lama avançou destruindo o que en-controu pela frente. Ao relembrar esse momento, que “parece um pe-sadelo”, Terezinha conta como pen-sa em reconstruir sua vida com a fa-mília e fala sobre as dificuldades do processo de adaptação.

Acostumada a cozinhar para muitas pessoas e a fazer várias coi-sas no dia, como ela mesma diz: “mexia o dia inteiro, menina”, Tere-zinha acha difícil ficar sem sua roti-na. Percebo, ao observar seu jeito in-quieto, que lhe fora arrancado algo que ela não só cultivava, mas tinha como princípio: a liberdade. Sinto o nó na garganta de Terezinha.

Ela conta sobre a dificuldade de morar por mais de um mês em quar-to de hotel, com três camas para ela e os dois filhos. Não há espaço para organizar a roupa. Lá, as visitas são preestabelecidas em horários, assim como as refeições. “Não estou acos-tumada a ficar presa e a não ter pri-vacidade. Tem horário para tudo. Tudo bem, é regra deles, está cer-to, tem que respeitar... Mas a gen-te tinha o nosso cantinho. Não pre-cisava estar nessa situação.” A dor aumenta quando ela cita a frase do filho mais novo, Marlon, que, como ela, se cansou da situação. “Ah, mãe, não aguento mais ficar preso!”

Alguns empecilhos foram en-contrados ao tentar voltar à Bento Rodrigues para resgatar seus perten-

ces. “Cheguei a esperar no carro du-rante duas horas até alguém vir fa-lar comigo.” Terezinha conta que só conseguiu voltar no dia e horário marcado pela Samarco.

Outros obstáculos são se adap-tar ao barulho da rua Dom Silvério, à violência da cidade, ou até mesmo à cama, que parece estranha demais. Em uma de nossas conversas, ela confessa o que tinha acontecido na noite anterior: “Nunca tinha caído da cama. Desde pequena nunca caí da cama, mas naquela noite eu caí.”

Outra coisa que soa estranho, para quem “vivia em uma tranquili-dade só”, são os inúmeros cadastros e reuniões que já foram feitos, dos quais perdeu a conta. A incerteza de não saber como serão os próximos meses torna a espera ainda mais an-gustiante. A dor da perda daquilo que compunha sua identidade e suas lembranças é atemporal. “A casa da minha mãe se foi. As lembranças verdadeiras foram todas embora.”

Terezinha não quer voltar para onde nasceu. Por causa do trauma, ela não quer se mudar para uma área rural, que lhe faça lembrar do mar de lama que arruinou sua vida. “Não quero mais casa no Bento, nem em lugar de terra. Se tiver como, quero um apartamento com três quartos para os meus filhos e eu. Um prédio em que fique também minhas irmãs, pra gente não se separar.”

O prédio não chegou, mas, aos poucos, Terezinha enxerga a som-bra de alguns desses direitos. De-pois de semanas morando no hotel, foi transferida para um apartamen-to com três quartos, cozinha, sala e área. “Ainda não é a casa da gen-te, mas já é melhor do que ficar no hotel. É um espaço mais amplo.” A casa que tinha em Bento Rodrigues era de sua propriedade. Aos pou-cos algumas peças do quebra-cabeça vão tomando forma, como o traba-lho, que agora passa a ser feito qua-se todos os dias na cozinha do hotel em que estava, onde sua irmã San-

dra permanece. Com o tempo, Tere-zinha também recebeu da Samarco um cartão cujo valor se aproxima a R$ 1.500. O contrato do apartamen-to ainda será fechado, mas provavel-mente valerá para 2016.

O apartamento foi mobilia-do pela Samarco com peças padro-nizadas. Todos vêm com os mes-mos móveis, não escolhidos pelos ocupantes. A filha não ganhou um guarda-roupa, apenas uma cômo-da. Terezinha pretende dar o móvel à menina. “Está bom. Não é igual

como se a gente escolhesse, mas está bom.” Como a casa de Bento era maior, as coisas recuperadas por ela em meio à lama não cabem no apar-tamento. Terezinha está arrumando o lugar aos poucos.

Os alimentos, como frutas, ar-roz e carne chegam a cada semana, mas tudo isso não se compara com o sentimento de mais uma perda: a mudança do local em que passava o Natal e Ano Novo há anos. O almo-ço, a ceia e, até mesmo, a troca de presentes ocorriam naquele lugar. O

sentimento gerado por esse desloca-mento é ainda de muita confusão.

Para a professora de Serviço So-cial da Ufop, Cristiane Nobre, 42, os atingidos pela barragem, como a fa-mília Quintão, têm direito ao acesso a todas as políticas que tinham an-tes: saúde, educação, assistência, en-tre outros. Nesse processo, o papel do assistente social é acompanhar o percurso e ajudar na compreen-são de que tudo isso seja percebido como direito dos atingidos e não fa-vores prestados pela Samarco. “Eles precisam continuar sendo assistidos para além do atendimento emergen-cial, isso não pode se perder”, res-salta. Cristiane ainda explica que é importante pensar ações para mi-nimizar os danos causados, que, se-gundo ela, não são possíveis de se-rem totalmente reparados.

O município planeja políticas públicas para disponibilizar esses atendimentos, mas não pode se so-brecarregar e deixar de atender as demandas já existentes. Caso fal-te pessoal, por exemplo, a Samarco pode contratar esses profissionais que serão inseridos na rede desen-volvendo ações para atender a esse público. “Muitos serviços deverão continuar disponíveis para essas fa-mílias de acordo com suas necessi-dades”, explica Cristiane.

A esperança de Terezinha é que a Samarco construa um novo bairro, o São Bento, para abrigar as famí-lias atingidas. Nele, quer ter sua casa própria – sem quintal. A expectati-va de “ganhar” a moradia transfor-ma o choro em sorriso, a ansiedade em esperança e o desespero já não transparece mais. Ser ressarcida com uma nova casa significa renascer para uma vida que até o momento tem sido um pesadelo. “Quando ga-nhar a casa, vou chorar igual quan-do perdi a minha. Aí vou sentir real-mente que nasci de novo, porque até agora parece que nós estamos mor-tos. Ou então que a gente está dor-mindo e não acordou ainda.”

Adaptação. Crianças do subdistrito atingido tentam retornar à rotina escolar apesar das dificuldades

Sobreviventes do rompimento de barragem, meninos e meninas voltam à sala de aula após a perda de colegas, lembranças e afetos

Chego para conversar com Cris-tiam, 8 anos, em um dos hotéis que alojam moradores dos subdistri-tos de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo. Encontro o garoto senta-do no chão do quarto, olhos fixos na TV. Pergunto o que tanto lhe pren-de a atenção e ele me responde que é um “desenho”, que nem sabe o nome. O pai, que acompanha o fi-lho durante a entrevista, diz que ele e o amigo Flávio gostavam de andar de bicicleta o tempo todo. Cristiam se entristece. Pergunto sobre a bici-cleta. “Perdi.” Cristiam não conse-gue mais brincar com Flávio.

Como está no colégio? “Estou gostando”, responde timidamente. “Lá na nossa escola, tinha Lego e nessa não tem. As mesas de lá eram de madeira e aqui tudo é de plásti-co”, compara. E a merenda? “Era mais gostosa.” Por quê? Cristiam não sabe explicar. O garoto sabe que as cozinheiras vieram para a nova escola e ajudam a preparar o lanche. A professora é a mesma? Concor-da com a cabeça. E os coleguinhas? “Tem um que morreu… Na lama. Ele se chama Thiago.”

No hotel em que Cristiam se hos-peda, conheço Silvany, também de 8 anos. Ela estudava na Escola Muni-cipal de Bento Rodrigues, na mesma turma de Cristiam e Thiago Damas-ceno, uma das vítimas da tragédia. Outra vítima, Emanuele Vitória Fer-nandes, 5, também estudava lá. Na nova escola, Silvany brinca com to-dos os coleguinhas, “menos um. Ele não se salvou. Algumas pessoas di-zem que encontraram ele morto, ou-tros dizem que não”.

A saudade da antiga escola e de Bento aparece nas falas de Silvany. “Tinha a quadra e um parquinho para os meninos menores.” Ela gos-

tava muito de brincar na rua e de pular corda. “Brincava também no barro, sujava a roupa toda e minha mãe brigava.” Silvany e Cristiam não têm mais a grandeza de Bento. Eles já não soltam pipa, nem brincam de amarelinha, nem andam de bicicleta. Agora, além da televisão, Cristiam tem carrinhos e Silvany tem bone-cas, doados. A nova escola, no mo-mento um local estranho para am-bos, parece ser mais próximo do que eles viviam em Bento, já que nela re-encontram amigos, professores e constroem novas lembranças.

Depois do encontro com as crianças, converso com a secretá-ria da escola de Bento, Miriam Go-mes, que foi transferida para a Es-cola Municipal Dom Luciano, no Alto Rosário. Como era a escola? “Era a escola perfeita. Onze horas o cheiro do almoço ia lá na secre-taria”, lembra, sorrindo. E na hora do recreio? “As merendeiras serviam cada menino e perguntavam: ‘O que você quer?’ Uns diziam: ‘Ah, quero só arroz, quero só verdura’. Já ou-tros: ‘Ah, quero só angu com couve’. Até esse cuidado, esse carinho, tinha como ter.” A secretária, porém, tem tido problemas para se adaptar de-pois da tragédia. “Tô com dificul-dade de estabelecer rotina. Saía 6h, chegava 17h40 e dava conta de tudo. Hoje eu saio 7h30, chego 17h20, e não dou conta de nada.”

Para a pedagoga da escola de Bento, Alcione Araújo, funcioná-rios e alunos estão com dificuldade para se adaptar. “Eles pedem a roti-na, mas não depende só do profes-sor, e vai levar tempo. Acho que em fevereiro, quando começar o ano le-tivo e as coisas se assentarem um pouco, melhora. Está tudo bagunça-do na cabeça deles, mas estão fazen-do tratamento com especialista em traumas”, afirma.

E o colégio antigo?Após o rompimento da barra-

gem de rejeitos do Fundão, da Sa-marco, o prédio da escola foi to-talmente destruído pela lama. De acordo com a secretária Miriam Gui-marães, a empresa não ligou avisan-do do rompimento. Eles souberam às 16h03, pelo marido da diretora, que a lama estava chegando. Para conseguir se salvar, os 40 alunos e 10 funcionários que estavam no pré-dio correram em direção à Igreja de Nossa Senhora das Mercês, que fica na parte mais alta do distrito. Só fo-ram resgatados no dia seguinte.

Dez dias depois, a Prefeitura de Mariana encaminhou 178 alunos, 102 de Bento Rodrigues e 76 de Paracatu de Baixo, que cursam en-tre a pré-escola e o 9° ano do En-sino Fundamental, à Escola Munici-

pal Dom Luciano, para retomarem os estudos. Também foram transfe-ridos para a nova escola os 43 pro-fissionais que atuavam nos distritos atingidos. Os alunos do ensino mé-dio continuam nas escolas em que estudavam em Santa Rita Durão e Águas Claras, antes da tragédia.

De acordo com o então secre-tário interino de Educação de Ma-riana, Israel Quirino, os alunos que estão na Escola Municipal Dom Lu-ciano irão permanecer na instituição, pelo menos, até o início do ano leti-vo em fevereiro. Quirino teme que esses estudantes não voltem, em sua totalidade, para a mesma escola em 2016. “Trabalhamos a hipótese de que a escola do Bento seja esvaziada por causa da dispersão das famílias.Lá moravam numa vila e aqui estão espalhados pela cidade”, completa.

Para Quirino, enquanto a Samar-co não reconstruir a escola, há pos-sibilidade de esses estudantes serem transferidos para um espaço menor, por causa dessa possível dispersão, avalia. Ainda segundo ele, se isso ocorrer, “a responsabilidade finan-ceira de achar esse espaço, de ade-quá-lo, é da Samarco”.

O secretário de Educação afirma que o valor médio mensal investido pela Prefeitura nos alunos de Bento é de R$ 700 por criança. Levando em conta o número de alunos da unida-de, eram investidos em torno de R$ 80 mil por mês na escola do distri-to. Depois da tragédia, a mineradora ofereceu kits escolares e transporte para os alunos e funcionários. Além disso, a Samarco contratou uma em-presa da área de psicologia para fa-zer acompanhamento.

aleone Higidio

LARISSA VIDGAL

Page 7: Jornal Lampião - 21ª Edição

Elas têm muito a falar sobre o passado, sobre como agir no presente e possibilitar o futuro. É com elas que agora enxugamos e secamos as lágrimas para acordar e lutar, mais uma vez, pelos nossos sonhos.

As mãos que antes ficavam sujas. Litros de graxa e óleo depois de inúmeras horas de trabalho em uma correia para transportar minério. Agora, totalmente limpas, apertam uma elegante gravata borboleta e têm pela frente mais uma noite de trabalho como garçom. Elas não perderam o equilíbrio e carregam a bandeja com humildade e perseverança.

As mãos que seguram uma foto. A horta ficava em um terreno herdado do pai em Bento Rodrigues. Lá as mãos aprenderam a cultivar frutas, verduras, flores. Ainda que a casa não exista mais, as mãos não se abaixaram para desistir e hoje jogam, em outro pedaço de terra, as sementes de uma nova vida.

As mãos que seguram a esperança, as mãos que agarraram firme outras mãos quando a lama veio sem avisar. É por essa esperança que pais e mães se sacrificam todos os dias. É por essa esperança que essas mãos, maiores e mais calejadas, se sujam de diferentes modos e maneiras. É por essa esperança que acreditamos que, para todo fim, há um recomeço.

12ARTE: LARA MASSA

Janeiro de 2016

ENSAIO

FOTOS E TEXTO: THIAGO BARCELOS

O que as mãos podem dizer?


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