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PÁGINA 44

Nelson Rodrigues e seucomeço editando quadrinhos

CARREIRA

381AGOSTO

2012

Emoção e lágrimas em ato da 61ª Caravana da Anistia, no Rio

VIDAS JÚLIO BRAZIL • IRAMAYA BENJAMIN • JOE KUBERT • HARRY HARRISON

ÓRGÃO OFICIAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE IMPRENSA

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Georges Méliès, o cineastaque levou o homem à Lua

CINEMA

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A arte genial de Liniersem exposição no Brasil

ARTE SEQÜENCIAL

PÁGINA 27 PÁGINA 12PÁGINA 12Edmar Morel, um repórter sem medoEdmar Morel, um repórter sem medo

PÁGINA 30

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2 JORNAL DA ABI 381 • AGOSTO DE 2012

DESTAQUES

UM INVENTÁRIO DO HORROR

03 ESPECIAL - Memórias de uma guerra

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que ainda sangra

09 REFLEXÕES - Os demônios estão de volta,

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por Rodolfo Konder

10 COMEMORAÇÃO - Os 80 anos da ACI, a voz

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

da comunicação em Santa Catarina

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11 DISPUTA - A guerra de audiência dos Jogos Olímpicos

12 CENTENÁRIO - Edmar Morel,

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

um gigante do jornalismo

18 LEGISLAÇÃO - O Senado aprova

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

a Pec do Diploma

19 SUGESTÃO - Caó propõe nome

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

de Abdias para a Via Light

20 IMPRENSA - O resgate histórico

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

do Estadão

29 CINEMA - Fernando Meirelles, um

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

cineasta internacional made in Brazil

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30 DEPOIMENTO - Natalia Viana, olhar independente

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

35 CULTURA DE MASSA - A guerra global das mídias

36 CINEMA - A ressurreição de Méliès,

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que levou o homem à Lua

39 COMEMORAÇÕES - O Brasil festeja três

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mestres da mpb

42 ARTE SEQÜENCIAL - Liniers, o idioma

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

das coisas que passam

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44 CARREIRA - Os quadrinhos de Nelson Rodrigues

SEÇÕES

080ACONTECEU NA ABI

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

Estudantes de Jornalismo visitam a Casa

26 LIBERDADE DE IMPRENSA

No Pará, Prefeito candidato ameaça

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jornalistas de O Globo

27 DIREITOS HUMANOS

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Emoção e lágrimas na Caravana da Anistia

VIDAS

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46 A paixão segundo Joe Kubert

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47 Iramaya Benjamin, Júlio Brazil, Harry Harrison

EDITORIAL

MAURÍCIO AZÊDO

SÃO ESTARRECEDORAS AS REVELAÇÕES fei-tas em depoimento aos jornalistas RogérioMedeiros e Marcelo Netto pelo ex-Delega-do do Dops Cláudio Guerra, que expõe comriqueza de pormenores os crimes cometidosnos porões da ditadura sob a chefia dele e deoutros criminosos que serviram à ditaduramilitar 1964-1985, como o Delegado SérgioFleury, um dos monstros que infestaram osistema de repressão desse período omino-so da vida nacional.

AGORA TRAVESTIDO DE PRÓCER religio-so, como se sua alegada fé pudesse absolvê-lo dos crimes que cometeu, Cláudio Guerraenunciou nomes e situações que conduziramà prática de dezenas de assassinatos, grandeparte deles consumada com requintes de ini-maginável perversidade. Um dos cenários des-ses crimes foi a sinistra “Casa da Morte”montada em Petrópolis, na região serranafluminense, e que foi reproduzida, para osmesmos hediondos fins, em outras cidadesdo País. Ali ocorreram brutalidades sem pre-cedentes na nossa História e que só encon-tram símile na barbárie espalhada pelos na-zistas pela Europa e pela antiga União Sovi-ética durante a Segunda Guerra Mundial epelos Estados Unidos com suas bombas denapalm no território do Vietnã na guerra dosanos 1960 a 1970 contra o povo vietnamita.

APÓS A DIVULGAÇÃO DAS CONFISSÕES deCláudio Guerra, a Comissão Nacional da Ver-dade tomou a iniciativa de ouvi-lo sobre odepoimento que prestara, para confirmaçãodas graves revelações que fizeram. Tal comono depoimento a Medeiros e Marcelo Netto,Cláudio Guerra absteve-se de citar nomes dosprofissionais da repressão que participaramdos crimes por ele expostos, deixando a cri-tério destes a revelação da parte que lhes coubenesse inventário do horror. O assassinoGuerra, carrasco de dezenas de presos polí-ticos, invocava suposto drama de consciên-cia: embora matador por atacado, afeta pou-par-se do papel de delator.

SEJA PELO QUE TENHA REVELADO à Co-missão Nacional da Verdade, confirmandoou alargando o depoimento transformado emlivro, Guerra abriu a porteira de um itinerá-rio que a CNV tem a obrigação de percorrer,mediante o levantamento de quantos servi-ram à empreitada criminosa, sobre os quaishaverá registros em escalas de serviço, ematos de designação de lotação e em tudo maisque compõe a burocracia oficial, mesmo parafins ilícitos, como aqueles em que se esme-rou a repressão da ditadura. Não será por faltade pistas que se deixará de identificar essesassassinos e expô-los à exprobração públi-ca que há muito merecem.

O OLHAR DE ALPINO Publicado no portal Yahoo! Notícias, em 3 de agosto.

ILUSTRAÇÃO DE JOE KUBERTPARA A MINISSÉRIE INÉDITAJOE KUBERT PRESENTS 46

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3JORNAL DA ABI 381 • AGOSTO DE 2012

ESPECIAL

E

MEMÓRIASDE UMAGUERRA

QUE AINDASANGRADepoimento de torturador

que matou dezenas de presospolíticos desvenda um filão

de crimes cometidos durante aditadura militar e que deverãoser investigados pela Comissão

Nacional da Verdade.

POR PAULO CHICO

les tratam do mesmo tema: os crimes cometidos du-rante a ditadura militar no Brasil. Ambos ganharamamplo espaço na mídia quase que de forma simultâ-nea. Em 16 de maio era instalada, em solenidade ofi-

cial na capital federal, a Comissão Nacional da Verdade-CNV.Poucos dias depois, mais precisamente no dia 21 do mesmomês, o livro Memórias de Uma Guerra Suja teve realizado seulançamento no Rio de Janeiro – evento que se repetiu logoem seguida em São Paulo (em 26 de maio) e em Brasília (nodia 30 subseqüente). A comissão ainda dá seus primeirospassos nas investigações. A obra editada pela Topbooks, porsua vez, é resultado final de muita pesquisa e entrevistasde fôlego, comandadas pelos jornalistas Rogério Medeirose Marcelo Neto.

Logo de cara, Memórias de Uma Guerra Suja causou sur-presa e revirou estômagos mais sensíveis, pelo teor explosi-vo das revelações feitas por seu personagem central. O livro,na verdade, é um vasto e detalhado depoimento do ex-dele-gado do Dops (Departamento de Ordem Política e Social)Cláudio Guerra, colhido pelos dois jornalistas autores daobra. Em 15 anos, o militar capixaba teria participado de umacentena de mortes como matador e estrategista do ServiçoNacional de Informações-SNI. Arrependido de tais atos, apóster experimentado o que descreve como um ‘encontro comDeus’, Guerra resolveu dar seu testemunho.

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ESPECIAL MEMÓRIAS DE UMA GUERRA QUE AINDA SANGRA

O Presidente da Ordem dos Advoga-dos do Brasil-Seção do Estado do Rio deJaneiro, Wadih Damous, considera que énecessário investigar com profundidadeas informações contidas em Memórias deUma Guerra Suja: “Esses relatos podem vira dar alguma pista sobre o que mais que-remos, que é o paradeiro dos desapareci-dos, uma ferida ainda não cicatrizada naHistória da democracia brasileira. E tam-bém não se deve aceitar de pronto tudoo que está sendo relatado. Temos a Polí-cia Federal, o Ministério Público Federal.Esses órgãos devem, a partir de relatoscomo esse, iniciar uma investigação”.

Rose Nogueira, Presidente do TorturaNunca Mais de São Paulo, classifica Cláu-dio Guerra como assassino e réu confes-so. “Ele cometeu crimes permanentes, deseqüestro e de desaparecimento de cor-pos. Ele cometeu crime de tortura, deexecução sumária. Esses crimes são delesa-humanidade, são imprescritíveis.Esse livro muda toda a História. Há mui-tos fatos ali que são congruentes, quebatem com aquilo que a gente sabia”,sublinhou Rose. Ela ponderou que o relatode Guerra situa a esquerda como umaquadrilha que se aproveitava do dinhei-ro dos empresários, visão afinada com apolítica de Estado dos anos de chumbo.Rose, no entanto, defende que o direitoà resistência é um dos Direitos Humanos:“Quando se fala em luta armada, eu pen-so que quem a fez contra o povo brasilei-ro foi a ditadura militar. O que nós fize-mos foi uma luta de resistência”.

A visão radical de Rose Nogueira não écompartilhada por Marcelo Neto. “Eleingressou na Igreja Assembléia de Deus, naqual hoje é pastor. Guerra tem a consciên-cia de que vai viver uma vida muito com-plicada a partir do que contou no livro, quevai ter um resto de vida cheio de polêmi-cas, acusações. Mas ele está tranqüilo,consciente de que o seu papel é ajudar aesclarecer o que se passou. Ele quer colabo-rar com a Comissão Nacional da Verdade,quer mesmo se colocar à disposição paraficar em paz consigo mesmo.”

ENFIM, O DEPOIMENTO ÀCOMISSÃO DA VERDADE

Por sugestão dos autores de Memóriasde Uma Guerra Suja e também por funda-mentada pressão da mídia, Cláudio Guer-ra foi convidado a depor na ComissãoNacional da Verdade. No dia 25 de junhoo ex-delegado do Dops reafirmou os cri-mes que cometeu durante a ditaduramilitar. De acordo com o coordenador dacomissão, Ministro Gilson Dipp, Guerrasugeriu que o grupo ouvisse algumas pes-soas citadas por ele no livro. As denúnciasde incineração de cadáveres feitas porGuerra – fato que teria ocorrido na usinade açúcar Cambahyba, em Campos, noNorte Fluminense – estão sendo investi-gadas pelo Ministério Público Federal epela Polícia Federal.

Perguntado sobre a possibilidade de asinvestigações prejudicarem os trabalhosda Comissão, Dipp disse que é necessárioesclarecer que o grupo de trabalho coman-dado por ele não é jurisdicional ou perse-

Assim, o livro traz informações sobreos bastidores das Operações Condor eBandeirantes e outros episódios marcan-tes, como o caso Riocentro, o assassina-to do jornalista Alexandre von Baumgar-ten e a morte do Delegado Sérgio ParanhosFleury, também do Dops. A obra mostracomo Cláudio Guerra e seu grupo tenta-ram dificultar ao máximo a aberturapolítica proposta pelo então PresidenteErnesto Geisel (1974-1979) com umasérie de atentados a bomba, falsamentecreditados ao Partido Comunista. Ele co-mandou, por exemplo, uma explosão noprédio de O Estado de S.Paulo e arquitetouum ataque ao Jornal do Brasil, desarticula-do por ordem do General Golbery doCouto e Silva.

Os autores do livro participaram doprograma Observatório da Imprensa, comgrande repercussão. No dia 5 de junho aatração da TV Brasil, comandada por Al-berto Dines, exibiu trechos de entrevis-ta exclusiva feita pelo jornalista comCláudio Guerra – a primeira concedidapelo militar após o lançamento da obra.Em meio à narrativa do ex-delegado doDops, cuja precisão de detalhes revelou-se tão impressionante quanto a aparen-te frieza do relato, Marcelo Neto e Rogé-rio Medeiros chamaram a atenção paraum fato: diante do teor das revelaçõesfeitas por Guerra e de sua disposição decolaborar para o esclarecimento de mui-tos dos crimes cometidos pelos militaresna época, mostrava-se urgente a necessi-dade de que o personagem central de Me-mórias de Uma Guerra Suja fosse convida-do a colaborar com a recém-instalada Co-missão Nacional da Verdade.

Os autores contaram que o ex-Delega-do já sofrera duas ameaças. A primeirahavia ocorrido em novembro do ano pas-sado, quando um ex-companheiro man-dou um tenebroso recado a Guerra: àque-la altura, afirmava, ele ‘já estaria fedendo’.

“A Comissão da Verdade, ou mesmo aPolícia Federal, que precisa dar garantiasde segurança ao Cláudio, devem corrermais. Pois ele é um senhor de 71 anos deidade e tem problemas de saúde. O Guer-ra pode acrescentar muito mais coisas. Te-nho certeza disso. A cada conversa com eleapreendemos um detalhe novo. E eu e oRogério Medeiros não conseguimos maisdar conta disso. O Estado brasileiro é quedeve se ocupar dessas informações quepodem ajudar a esclarecer muitos crimes”,disse Marcelo Neto no programa de Dines.

Rogério complementou: “O CláudioGuerra estava numa casa de idosos mas,após algumas ameaças, saiu de lá e foi paraoutro local, à espera da convocação paradepoimento na Comissão da Verdade”.

APÓS AS DURAS CONFISSÕES,AS NATURAIS REAÇÕES

“As pessoas nem precisam acreditar emmim, mas devem, sim, investigar. Hámuitas famílias que ainda aguardam res-postas. E muitos dos militares que forammeus companheiros de ações estão aí,vivos. Será que eles vão querer se apresen-tar? Acho que deviam fazê-lo. Eles nãodevem ter medo da verdade, podem con-

tar a história que aconteceu. Houve anis-tia para os dois lados, os crimes já têm maisde 20 anos – estão, portanto, prescritospela lei. Por causa desse livro, das revela-ções que fiz ali, perdi minha companheirade 18 anos. Tive perdas pessoais e a con-denação moral. Mas eu não sou dedo-duro, não vou apontar as ações dos outros.Falo apenas na primeira pessoa. Aquelesque quiserem, que contem suas própriashistórias”, afirmou Cláudio Guerra a Al-berto Dines.

Antes do debate no estúdio, em edito-rial, o apresentador do Observatório daImprensa comentou que o livro não podeficar esquecido porque é “um tremendosafanão” naqueles que acham que a Co-missão da Verdade é inútil.

“Deste livro sai um Brasil irreconhecí-vel, que só se reconhecerá quando fordevidamente apurado o que está contadocom tantos detalhes nestas páginas. Épossível que a prioridade da Comissão da

Verdade seja desvendar o que aconteceucom os desaparecidos. Mas os corpos inci-nerados por Cláudio Guerra em uma usi-na de açúcar em Campos dos Goytacazes,no Estado do Rio, jamais serão resgatados.Cabe a nós, e a todos os buscadores daverdade, o resgate de suas histórias”, ava-liou Dines. Para ele, mesmo que parte dosdados possa ter sido inventada, esta é umapauta que precisa ser verificada.

“Eu sentia sim que estava cometendocrimes. Mas naquela época entendia aqui-lo como cumprimento do dever. Apren-di desde criança a ver o comunismocomo inimigo. Não apenas os militarescometeram crimes, mas também muitoscivis. Na verdade, muitos empresários sebeneficiaram da revolução de 1964. Al-guns deles davam prêmios para quemexecutasse líderes de movimentos popu-lares”, tentou justificar-se Cláudio Guer-ra, numa clara sinalização de que aindatem muito a revelar.

O grupo terroristade Cláudio Guerra

tentou impedir aabertura política

iniciada noGoverno Geisel

com uma série deatentados a

bomba, como oscasos do Riocentro(ao lado) e da ABI.Guerra comandou

o atentado aoprédio de O Estado

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5JORNAL DA ABI 381 • AGOSTO DE 2012

cutório, nem atua visando a fornecer da-dos para o Ministério Público. Os depoi-mentos que vêm sendo colhidos pela Co-missão da Verdade seguem em caráter sigi-loso. Os membros acreditam que essa tá-tica pode facilitar a obtenção de novosdados e convencer pessoas importantes acontribuírem com os trabalhos do órgão.

Se os jornalistas Rogério Medeiros eMarcelo Netto concordaram sobre a ne-cessidade de uma participação ampla deGuerra na Comissão da Verdade, eles di-vergem sobre as reais intenções do militarao revelar sua história secreta ao País. “Eue Rogério temos posições diferentes. ORogério é muito cético com relação aoGuerra, talvez tenha dúvida da fé dele. Eusou absolutamente materialista, nuncaacreditei em Deus, não acredito em nada dereligião. E, no entanto, nesses meses todos,anos de conversa, passei a achar que o Cláu-dio acredita em Deus. Eu acho que ele real-mente está a fim de ajudar”, disse Marce-lo, durante debate no ato de lançamento dolivro no Rio de Janeiro, ocorrido na Livra-ria Travessa do Shopping Leblon.

“Ele é um assassino. Quando me pro-curaram para entregar essa história é claroque eu iria tratá-lo como um assassino,porque realmente ele é. A questão religi-osa serve para ele, mas não é o caminho.Ele se vale da Bíblia para mudar a própriavida”, retrucou Rogério. “Eu tenho feitoesforço, e vou apanhar muito por causadisso, no sentido de mostrar que é muitomelhor tirar dele informações do quepartir para cima, tentar destruí-lo e des-qualificá-lo”, ponderou Neto.

Os jornalistas aproveitaram para re-forçar, mais uma vez, duas linhas distin-tas da atuação de Cláudio Guerra quandoa serviço da ditadura militar. A primeiraatividade, e talvez a mais chocante, era ade execução sumária de pessoas da extre-ma esquerda, oposicionistas ao regimevigente. Algo que o militar já estava acos-tumado a fazer em terras capixabas. De-pois, com a prolongação do regime deexceção, militares descontentes com oincipiente processo de abertura política,grupo do qual faziam parte Cláudio e seuscompanheiros mais próximos, estabele-ceram uma rotina de atentados, sempreassociados a atos supostamente de ori-gem comunista, numa tentativa de mo-bilizar a população em favor da perma-nência dos militares no poder.

O fato irrefutável é que Guerra temmesmo muito a dizer. Ele afirma ter conhe-cimento da existência de cemitérios clan-destinos em Belo Horizonte, Rio de Janeiroe em São Paulo. Em Minas, cita a Lagoa daPampulha e o subsolo da Delegacia de Rou-bos e Furtos de Belo Horizonte como pon-tos de descarte de presos políticos executa-dos. Em São Paulo, contou no livro, ajudoua descartar corpos no sítio de um ex-policialpaulista. Haveria, ainda, outro cemitérioclandestino em Petrópolis, na Região Ser-rana do Rio. Os autores de Memórias de UmaGuerra Suja adiantaram que uma nova edi-ção do livro está em preparo, já que algumasdenúncias devem ser confirmadas e atua-lizadas. Há também rico material fotográ-fico de pesquisa a ser publicado.

Para aprofundar um pouco mais a re-flexão sobre a importância de Memóriasde Uma Guerra Suja, bem como entendermelhor o papel de Cláudio Guerra, perso-nagem central da obra, o Jornal da ABIentrou em contato com um dos autoresdo livro. Rogério Medeiros é fundador dojornal eletrônico Século Diário e traba-lhou em veículos como Jornal do Brasil, OEstado de S. Paulo, A Tribuna e A Gazeta.Escreveu diversos livros, entre eles UmNovo Espírito Santo – Onde a CorrupçãoVeste Toga, em colaboração com o jorna-lista Sten ka Calado, falecido recentemen-te. As obras Espírito Santo, Maldição Eco-lógica e Tradições Populares do Espírito Santosão outras de suas publicações. Tambémfotógrafo, criou e dirigiu a Vix, uma dasprimeiras agências de fotografia do País.Sindicalista, fundou e dirigiu o Sindica-to dos Jornalistas Profissionais do Espí-rito Santo e representou a entidade naFederação Nacional dos Jornalistas.

Na participação no Observatório daImprensa, Rogério contou que há 30 anoshavia publicado uma reportagem no Jor-nal do Brasil que acabou com a áura decombatente do crime organizado que

Guerra mantinha no Espírito Santo. Em2009, um advogado do ex-Delegado pro-curou o jornalista, levando-o ao hospitalonde Guerra estava internado. Logo rece-beu o convite para escrever o livro. Os au-tores consideraram que o depoimento so-aria como verdadeiro se fosse feito na pri-meira pessoa e precisaram convencerGuerra a aceitar esse formato. Eles chega-ram a alertar o militar de que, com a publi-cação das revelações, ele poderia morrer ouvoltar para a cadeia, onde cumpria penapela acusação de ter matado um bicheiro.Alerta feito, condições estabelecidas,Cláudio topou falar. Assim, Memórias deUma Guerra Suja chegou às livrarias eentrou para a História como uma das maisimpactantes obras que retratam as atroci-dades cometidas durante o regime militar.

Jornal da ABI – De todo o relato feitopor Cláudio Guerra, qual foi o momentomais marcante? Não parece existir nelecerta frieza ao relembrar passagens, porvezes, chocantes e dramáticas?

Rogério Medeiros – Olha, a frieza doCláudio pode ser uma percepção de quementra agora nos crimes que ele cometeu para

o regime militar. Você há de considerar queele não era um matador novo, e sim tinha40 anos de experiência, quando andou ma-tando a serviço das elites militares no Nortedo Espírito Santo e Leste de Minas Gerais.E depois passou a atuar para as elites polí-ticas capixabas. Matar, para ele, era uma coi-sa relativamente normal, penso eu. Da con-versa com o Cláudio o momento maismarcante foi quando o convenci de falardos crimes de que ele participou. E que issofosse dito na primeira pessoa. Demorou,houve momentos até de pânico, pois hou-ve desconfiança em áreas militares de queele desse com a língua nos dentes.

Jornal da ABI – Não parece ter sido tí-mido o espaço dedicado à divulgação dolançamento do livro de vocês na gran-de imprensa? A que credita esse fato?

Rogério Medeiros – Eu não estou aquipara tratar de discutir a timidez da imprensada elite brasileira. Mas nunca se esqueça deque Cláudio relata no livro um falso aten-tado à casa do Roberto Marinho e a utiliza-ção de carros devidamente identificados daFolha de S.Paulo por agentes da repressão. Dápara você entender, meu caro repórter?

ROGÉRIO MEDEIROS

“Repórter que se prezacorre atrás dos fatos”

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6 JORNAL DA ABI 381 • AGOSTO DE 2012

Logo ao tentar entrar em contato como Ministro Gilson Dipp para tratar dospassos iniciais da Comissão Nacional daVerdade, este repórter encontrou algumasdificuldades. A mais evidente delas foi jus-tamente acompanhar as notícias sobre o rit-mo dos trabalhos do grupo que havia sidoconstituído em maio. O problema foi solu-cionado em 26 de julho, com o lançamen-to do site oficial da Comissão, ainda provi-sório, que pode ser acessado no endereçowww.cnv.gov.br. Nele podem ser consulta-dos os perfis dos seus membros, a agenda deatividades e o histórico dos debates já rea-lizados, além de um bem-vindo canal FaleConosco – aberto para o recebimento de per-guntas, sugestões e colaborações.

Estreitar os laços da Comissão com apopulação é fator decisivo para que ostrabalhos a serem desenvolvidos ganhemeficácia e tenham relevância. Tratar deviolações aos direitos humanos é pauta deinteresse geral. O gaúcho Gilson Langa-ro Dipp é o primeiro presidente da CNV– outros membros se revezarão nesta fun-ção. Nascido em Passo Fundo em 1944,Dipp é bacharel em Ciências Jurídicas eSociais pela Faculdade de Direito daUniversidade Federal do Rio Grande doSul-UFRS. Ministro do Superior Tribu-

Jornal da ABI – Seria de se esperar que,após as revelações feitas no livro, a im-prensa partisse atrás de outras histó-rias, de agentes do regime militar que,segundo o próprio Guerra, talvez esti-vessem dispostos a falar... Por que issonão ocorreu? Falta vigor investigativoà grande imprensa, hoje, no Brasil?

Rogério Medeiros – Vamos deixar a gran-de imprensa pra lá, porque anteriormentejá elucidei a sua timidez em tratar do livro.

Jornal da ABI – Então, na verdade, boaparte dos veículos tem algum ‘rabo pre-so’ com o regime militar – prestaramapoio de alguma forma... Para muitosjornais não ‘interessa’ levantar histó-rias desse período?

Rogério Medeiros – Sim, mas qual era aimprensa que estava contra o golpe mili-tar? Ela estava do lado dos militares. Sódesceu da companhia dos militares quan-do o regime mostrou a sua podridão inter-na. Esses detalhes vão ser conhecidos...Neste sentido, o depoimento de CláudioGuerra na Comissão da Verdade, em 25 dejunho, poderá ter ajudado muito.

Jornal da ABI – Falta agilidade à Co-missão da Verdade?

Rogério Medeiros – Não, você pode verque ela foi até ágil. Ela já convocou e ou-

viu o Cláudio Guerra. Aí você tem que di-ferenciar uma coisa: ele só falou aquilotudo para não faltar credibilidade ao tra-balho: “Fiz atentados, eu matei, quei-mei...”. Nisso coube ao meu companheiroMarcelo Neto pesquisar as circunstânci-as em que se deram os fatos contados porele. Na verdade, o livro é do Cláudio Guer-ra. Se o livro é na primeira pessoa, é dele.Nessa longa convivência com o Cláudio,de três anos atrás, quando ainda não exis-tia a Comissão de Verdade, o Marceloentrou nos últimos sete meses e fez umbelo trabalho. O Guerra me contou mui-ta coisa que vivenciou, mas da qual nãoera protagonista. Porque ele teve ascensãomuito grande na comunidade de informa-ção. Ele entra como executor, depois passaa braço direito do principal mentor ideoló-gico do Doi/Codi, o Coronel Freddie Perdi-gão, e acaba como estrategista no escritóriodo SNI no Rio de Janeiro. Então, ele sabemuito. Eu ouvi dele que há mais seis ‘Cláu-dios Guerra’ dentro da comunidade de in-formação que podem até não ter matadotanto quanto ele, mas mataram a ponto dese tornarem criminosos. Isso vai ficar porconta da Comissão da Verdade. Aliás, ele foipara lá convencido a contar tudo. Ele estátomado de uma religiosidade enorme queassumiu com a condição de evangélico,membro da Igreja Assembléia de Deus,

tarefas, produzem material de informa-ção destinado a subsidiar as proposiçõesque a Comissão vai suscitar, e que podemser de visitas a locais, coleta de papéis,pesquisa em arquivos públicos ou parti-culares e naturalmente outras inquiri-ções, novas ou complementares.

Jornal da ABI – Como descreveria odepoimento do ex-delegado do DopsCláudio Guerra, cujas histórias deramorigem ao livro Memórias de Uma GuerraSuja? Ele indicou novos nomes quepossam colaborar com depoimentosà Comissão?

Gilson Dipp – O Senhor Cláudio Guer-ra dissertou sobre aspectos de seu livro demaneira mais informal que um textoescrito. Mas as eventuais consideraçõesque não tivessem cabido no livro nãoconstituíram desde logo novidade. De sua

GILSON DIPP

“Já estamos cumprindo o nossopapel de fomentar a discussão”

onde já foi diácono e se transformou empastor. Aí já pensou onde vai dar isso...

Jornal da ABI – Você, Marcelo Neto eCláudio Guerra sofreram novas ame-aças após a repercussão do lançamentodo livro? Temem por sua segurança?Tomam cuidados efetivos?

Rogério Medeiros – Esse é um assunto quepara mim passa batido. Estou muito velhopara que possa me achar um herói. Me con-sidero um repórter que andou atrás dos fa-tos e chegou a dados edificantes capazes demudar a História do País. Me sinto um pri-vilegiado, assim como qualquer repórter sesentiria em uma situação dessas. Emboratenha passado pelo Jornal do Brasil, O Estadode S. Paulo e tenha publicado importantesmatérias. Vejo nos debates de que participoem São Paulo, no Rio de Janeiro, que os jo-vens vão e se perguntam “como um repórterlá da roça encontrou a matéria-prima dessagrandeza?”. A resposta é simples: aos 76 anoscontinuou na rua, fazendo matéria. Repór-ter que se preza corre atrás dos fatos.

Jornal da ABI – Qual foi a tiragem destaprimeira edição de Memórias de uma Guer-ra Suja? Procede a informação de que édifícil encontrar o livro no mercado?

Rogério Medeiros – Isso não é de meuconhecimento, mas o editor José Mário

Pereira já fez várias edições. Basta verque o livro está entre os mais vendidosnas atuais listas.

Jornal da ABI – Por fim, uma pergun-ta absolutamente pessoal: qual sua ava-liação sobre a trajetória de CláudioGuerra, bem como sua decisão de re-velar suas ações em favor do regimemilitar? Até que ponto seus relatos sãoplenamente confiáveis?

Rogério Medeiros – São totalmente con-fiáveis. Nós passamos três anos checan-do, rechecando as coisas dele. Esse livrotem algo extremamente interessante, ra-zão pela qual estou nele. É que, quando noJB, levantei 35 crimes de Cláudio Guer-ra no Espírito Santo em matérias minhas.Justo quando ele era a figura máxima docombate à criminalidade – o que resultouna sua queda e na sua demissão do servi-ço público. E o que valeu o inquérito ondefoi apontado como o chefe do crime or-ganizado. Isso está no livro. Depois de 30anos, ele no hospital, me chamou e disseque quase tudo que eu escrevi era verda-de, mas quis entregar sua vida para que eua contasse. Tudo começou daí. Agora valeo registro de que, desde o início, disse aoGuerra que, questão religiosa à parte, euiria tratá-lo como um criminoso. E o livroo trata exatamente assim.

nal de Justiça, ele é cauteloso ao falar dosobjetivos da Comissão que preside. Nãosegue a linha de revisitar fantasmas.Mexer em feridas. Ao contrário, adota apostura dos que defendem uma espécie de‘pacificação’ da memória nacional.

Gilson Dipp respondeu às perguntasenviadas pelo Jornal da ABI com a mesmadiscrição com que tem pautado suas açõesà frente da Comissão. A partir de suasponderações é possível concluir que,apesar do calor do tema, a temperaturados trabalhos segue amena. Não há indí-cios de febres, nem se vislumbram fortesemoções. Parte disso deve-se ao fato deque foi decidido que a Comissão deveráfazer algumas audiências sigilosas. Amedida, segundo o Ministro, tem comoobjetivo preservar os depoentes e nãocolocar em risco as investigações. “Nãopodemos desperdiçar uma oportunidadede se atingir a verdade pela simples pos-tura de divulgar imediatamente aquilo àsociedade. Vamos tomar depoimentossigilosos, mas eles vão dar vários indíci-os de onde podemos procurar informa-ções mais detalhadas”, garantiu.

Jornal da ABI – Que balanço o Senhorfaz destes três meses iniciais da Comis-

são Nacional da Verdade, da qual é oprimeiro Presidente? Quais as princi-pais ações desenvolvidas e quantos de-poimentos já foram ouvidos? Qual, atéagora, o mais marcante?

Gilson Dipp – Os primeiros momentosde qualquer instituição nova são natural-mente de organização interna e aqui nãoé diferente. Mas na avaliação que façopenso que houve avanços significativos deordenação dos temas a abordar e a propo-sição de linhas e subgrupos de trabalho,como distribuir tarefas e encargos – porexemplo: audiências; coleta de documen-tos; exame de material já existente; revi-são bibliográfica... Depoimentos de perso-nalidades envolvidas não são em si a par-te mais decisiva do objeto da Comissão,que, pela lei, deverá encarregar-se do escla-recimento das graves violações de direitoshumanos. E, nesse sentido, não há um re-lato mais importante do que outro, já queé o resultado que qualifica as iniciativas.

Jornal da ABI – A partir desses depoi-mentos, como se desdobram os traba-lhos da Comissão? No que essas infor-mações levantadas podem resultar?

Gilson Dipp – Os depoimentos, comoo desenvolvimento de todas as demais

ESPECIAL MEMÓRIAS DE UMA GUERRA QUE AINDA SANGRAFA

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entrevista alguns pontos foram destacadospara oportuna verificação juntamente comoutros aspectos. O que será feito assim queos subgrupos tenham completado suas es-tratégias e planos de trabalho.

Jornal da ABI – Jornais têm dedicado re-portagens de capa a pautas investigativas,com o apontamento de torturadores doregime militar, como que num desdobra-mento editorial da série de ‘esculachos’realizados pelo País. Em que medida aimprensa ajuda – ou pode ajudar – a pau-tar a Comissão da Verdade? Imprensa eComissão poderiam – ou deveriam – ca-minhar de mãos dadas?

Gilson Dipp – O interesse que a impren-sa tem revelado pelos trabalhos da Comissão,assim como por achados em arquivos públi-cos e até por manifestações públicas, como oschamados “esculachos”, mostra que a própriacriação da Comissão resulta muito do interes-se que diferentes setores da sociedade têmpelo tema. Quando as pessoas debatem os atose opiniões da Comissão já estamos cumprin-do o nosso papel de fomentar a discussão. Asinstituições, porém, têm cada qual seu cami-nho e não há nenhum inconveniente que si-gam seus objetivos próprios.

Jornal da ABI – Chegaram a ser veicula-das críticas à postura de alguns membrosda Comissão, em especial em relação à de-fesa da não revisão da Lei de Anistia. Re-ver esse posicionamento, isto é, vislum-brar a possibilidade de punição real aautores de crimes como a tortura, não éum ponto vital para que os trabalhos daCNV tenham rumo definido, e cheguema um bom termo final?

Gilson Dipp – A Conselheira Rosa Cardo-so em entrevista recente ao jornal Valor Eco-nômico expôs com precisão sua opinião, que ameu ver coincide com a proposição mais ade-quada. A Comissão não tem finalidade per-secutória nem busca a penalização de condu-tas, mas sim o exame e esclarecimento dasgraves violações de direitos humanos ocorri-das no período das Constituições de 1946 a1988. De outra parte, o Brasil assumiu com-promissos internacionais em face de diver-sas convenções e tratados pelos quais têm res-ponsabilidades das quais deverá dar satisfa-ções no concerto das nações.

Jornal da ABI – Quais são os canais aber-tos para quem deseja colaborar com aComissão? O andamento dos trabalhos,em alguma época e de alguma forma, tal-vez online, estará aberto à consulta pú-blica? Há algum projeto neste sentido?

Gilson Dipp – O site da CNV oferece osdados, endereços e local onde qualquer in-teressado poderá dirigir-se para emprestarsua colaboração, solicitar informações ousimplesmente familiarizar-se com os seustrabalhos. Ao final do prazo será editado umrelatório que abrangerá todos os aspectos daatuação da CNV, embora periodicamenteseja distribuído material informativo, po-dendo, eventualmente, ser disponibilizadoà consulta aqueles informes cuja confirma-ção da opinião pública possa ser interessanteou constituam conhecimento útil para opúblico em geral ou especializado.

Em bom momento a nossa ABI feztranscrever em seu site matéria publi-cada em 5 de abril passado sob o títu-lo A liberdade de Imprensa no Brasil e nomundo, pela Associação Riograndensede Imprensa-ARI.

O fato incisivo da citação liga-se ainúmeros casos relativos à violênciacontra jornalistas no Brasil e no mun-do e levaram-me a reviver um fatoatroz que se deu, em época passada, emSalvador, Bahia, relativo ao assassina-to do nosso pai, jornalista Arthur Fer-reira, proprietário do Jornal A Hora, noano de 1927, crime esse perpetrado co-vardemente pelo dirigente de uma em-presa estatal do Estado.

Esta matéria resulta, pois, das lem-branças, jamais desvanecidas, emoldu-radas que ficaram em todos os seus cru-ciantes aspectos, mormente quandonos vem à mente o imolar de jornalis-tas pela sanha assassina de inconfor-mados criminosos.

Sob todas as nuances que revestemesses crimes, foi meu pai abatido emrazão do afã que o levava a jamais es-quivar-se de lutas que julgava perten-cerem ao seu jornalismo. Essas lutas,ao que soube e do que tenho lido a res-peito do nosso malogrado pai, foramfomentadas nos meandros das cortespalacianas, quando as classes político-partidárias se digladiavam entre si, cul-tivando discórdias, mas que em mo-mentos oportunos se bandeavam, naprocura de outros interesses, como ali-ás até hoje o fazem.

Seabrista (partidário de José Joa-quim Seabra), Governador da Bahia,Arthur Ferreira já em 1918 sofreria oempastelamento do seu jornal, A Hora.Perseguido em Salvador por forçaspolíticas contrárias,com possibilida-de de ser aprisionado,foi defendidopelo Senador Rui Barbosa, o qual usoude veemente discurso como orador degrande prestígio que era, a fim de de-fendê-lo, conforme transcrição efetu-ada no jornal A Hora em 31 de maiode 1918.

A expressão “mídia” não me lembrode ter sido usada para exprimir, como

hoje, fatos relativos à imprensa, ativi-dade essa, todavia, merecedora das ob-servações dos jornais da Bahia, palcoque foi do que poderíamos chamar deestratégias políticas de grande parte desenadores e deputados cujos partidosconflitavam na busca de eleitores.

Segundo a mídia da época, a Bahiafoi palco de estratégias políticas detodos aqueles que ambicionavam portodos os meios, morais ou não, assu-mir o seu Governo. Os períodos maisacirrados foram entre os anos de 1896e 1920, nos quais a imprensa baiana os-cilava no pró ou contra os nomes quesurgiam como candidatos ao Gover-no do Estado. Daí, fatos de grande re-percussão envolveram, como não po-deria deixar de ser, o jornal A Hora eo seu dirigente e proprietário ArthurFerreira.

Dois fatos teriam como pano defundo a figura do meu pai. O primei-ro foi o imprevisto que o fez matar ointendente municipal, Tenente Propí-cio Carneiro da Fontoura, que haviaprometido chicoteá-lo na face quandoo encontrasse: Ele tentaria fazê-lo,quando o jornalista, em companhia decolegas e amigos, tomava seus drin-ques em um dos cafés da Cidade Bai-xa, em Salvador. Ao notar a presença doTenente Propício, Arthur Ferreira aler-tou-o a não prosseguir no seu intentoe alvejou-o com sua arma quando otresloucado oficial brandia o chicoteà procura do seu rosto.

Meu pai, graças a inúmeras teste-munhas do incidente, não chegou aser pronunciado pela Justiça. Todaviao fato, segundo relato da nossa vene-rada mãe, acabrunhou-o bastante, em-bora sua ação tivesse sido compreen-dida por todos os presentes, como emdefesa de sua honra, pois que um ho-mem de brio não poderia permitir quefosse chicoteado.

O segundo incidente se deu no dia8 de setembro de 1927. Eu tinha ape-nas três anos e meus dois irmãos, oitoe doze. Nossa mãe continuava com pre-ocupação constante, face à vida atribu-lada do meu pai, às voltas com os seustrabalhos jornalísticos, e foi então quea nova tragédia aconteceu.

Na data citada, quis o destino traçarum novo embate trágico. No mesmolocal onde fora obrigado a matar um

POR BERNARDINO CAPELL FERREIRA

Seu filho, sócio da ABI, que tinha trêsanos na época, evoca os dias dramáticos

daqueles tempos em Salvador.

Em 1927, o jornalista era Diretor de A Hora, polêmico jornal de uma Bahia conturbada.

O fim trágico deArthur Ferreira

Bernardino Capell Ferreira, sócio da ABI, éeconomista, jornalista e sócio titular do InstitutoGeográfico e Histórico Militar do Brasil, daAcademia Ferroviária de Letras e da Academia doLions Clube do Rio de Janeiro.

semelhante, o restaurante Gastrono-me, o malogrado jornalista seria víti-ma de um desafeto, dirigente da Nave-gação Baiana na época, AristótelesGóes, que o matou a tiro, covardemen-te, pelas costas, sem dar-lhe tempo paradefender-se. O algoz foi preso em fla-grante, não nos cabendo discorrer so-bre as razões que motivaram o estúpi-do crime, aparentemente em razão depossíveis matérias publicadas em AHora sobre a administração da empre-sa onde trabalhava o covarde assassino.

Torna-se ainda hoje cada vez maiscrucial a liberdade de imprensa no Bra-sil e no mundo. Na verdade, a própriaevolução social, trazendo-nos diver-gências abrangentes e em cadeia, ma-térias que envolvam interesses comer-ciais ou industriais; as questões religi-osas; a política de bastidores, as críti-cas mordazes contra desmandos, tudoisso nos leva a temer reações que te-nham como objetivo principal silen-ciar os órgãos da imprensa, seus repór-teres e jornalistas, que atuam dia a diana busca de esclarecimentos e fazemcríticas mordazes que nem sempre sãoaceitas, mormente aquelas que denun-ciam corrupção.

Deixemos, todavia, que o tempo,este nosso grande amigo, nos socorraou, melhor, demonstre cada vez maiso valor da liberdade da Imprensa, comtodas as possíveis falhas de suas dire-ções, dos seus jornalistas e possíveistrêfegos que não deixam de existir, afim de que saibamos sempre erigir aimprensa como um órgão cuja tarefaprincipal é a de informar e fiscalizar averdade das denúncias, para o bem e asegurança da sociedade.

Para fechar, devo lembrar que ao nos-so lado temos como garantia de um pa-drão jamais questionado a nossa Asso-ciação Brasileira de Imprensa, a qual,desde a sua fundação, tem demonstra-do para que veio no que tange à defesados princípios que regem a nossa Car-ta Magna, apresentando periodicamen-te exemplar trabalho na veiculação dematérias que envolvem aspectos polí-ticos, técnicos ou econômicos do País.

LEMBRANÇAS

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Jornal da ABI

O JORNAL DA ABI NÃO ADOTA AS REGRAS DO ACORDO ORTOGRÁFICO DOS PAÍSES DE LÍNGUA PORTUGUESA, COMO ADMITE O DECRETO Nº 6.586, DE 29 DE SETEMBRO DE 2008.

Editores: Maurício Azêdo e Francisco [email protected] / [email protected] gráfico e diagramação: Francisco UchaEdição de textos: Maurício Azêdo

Apoio à produção editorial: Alice Barbosa Diniz,Conceição Ferreira, Guilherme Povill Vianna, Maria IlkaAzêdo, Ivan Vinhieri, Mário Luiz de Freitas Borges.

Publicidade e Marketing: Francisco Paula Freitas(Coordenador), Queli Cristina Delgado da Silva.

Diretor Responsável: Maurício Azêdo

Associação Brasileira de ImprensaRua Araújo Porto Alegre, 71Rio de Janeiro, RJ - Cep 20.030-012Telefone (21) 2240-8669/2282-1292e-mail: [email protected]

REPRESENTAÇÃO DE SÃO PAULODiretor: Rodolfo KonderRua Dr. Franco da Rocha, 137, conjunto 51Perdizes - Cep 05015-040Telefones (11) 3869.2324 e 3675.0960e-mail: [email protected]

REPRESENTAÇÃO DE MINAS GERAISDiretor: José Eustáquio de Oliveira

Impressão: Taiga Gráfica Editora Ltda.Avenida Dr. Alberto Jackson Byington, 1.808 - Osasco, SP

ÓRGÃO OFICIAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE IMPRENSA

Jornal da ABIDIRETORIA – MANDATO 2010-2013Presidente: Maurício AzêdoVice-Presidente: Tarcísio HolandaDiretor Administrativo: Orpheu Santos SallesDiretor Econômico-Financeiro: Domingos MeirellesDiretor de Cultura e Lazer: Jesus ChediakDiretora de Assistência Social: Ilma Martins da SilvaDiretora de Jornalismo: Sylvia Moretzsohn

CONSELHO CONSULTIVO 2010-2013Ancelmo Goes, Aziz Ahmed, Chico Caruso, Ferreira Gullar, Miro Teixeira, Nilson Lage eTeixeira Heizer.

CONSELHO FISCAL 2011-2012Adail José de Paula, Geraldo Pereira dos Santos, Jarbas Domingos Vaz, JorgeSaldanha de Araújo, Lóris Baena Cunha, Luiz Carlos Chesther de Oliveira e ManoloEpelbaum.

MESA DO CONSELHO DELIBERATIVO 2011-2012Presidente: Pery CottaPrimeiro Secretário: Sérgio CaldieriSegundo Secretário: José Pereira da Silva (Pereirinha)

Conselheiros Efetivos 2012-2015Adolfo Martins, Afonso Faria, Aziz Ahmed, Cecília Costa, Domingos Meirelles, FichelDavit Chargel, Glória Suely Alvarez Campos, Henrique Miranda Sá Neto, Jorge MirandaJordão, Lênin Novaes de Araújo, Luís Erlanger, Márcia Guimarães, Nacif Elias HiddSobrinho, Pery de Araújo Cotta e Vítor Iório.

Conselheiros Efetivos 2011-2014Alberto Dines, Antônio Carlos Austregésilo de Athayde, Arthur José Poerner, DácioMalta, Ely Moreira, Hélio Alonso, Leda Acquarone, Maurício Azêdo, Milton Coelho daGraça, Modesto da Silveira, Pinheiro Júnior, Rodolfo Konder, Sylvia Moretzsohn,Tarcísio Holanda e Villas-Bôas Corrêa.

Conselheiros Efetivos 2010-2013André Moreau Louzeiro, Benício Medeiros, Bernardo Cabral, Carlos Alberto MarquesRodrigues, Fernando Foch, Flávio Tavares, Fritz Utzeri, Jesus Chediak, José GomesTalarico (in memoriam), Marcelo Tognozzi, Maria Ignez Duque Estrada Bastos, MárioAugusto Jakobskind, Orpheu Santos Salles, Paulo Jerônimo de Sousa e Sérgio Cabral.

Conselheiros Suplentes 2012-2015Antônio Calegari, Antônio Henrique Lago, Argemiro Lopes do Nascimento (Miro

Lopes), Arnaldo César Ricci Jacob, Continentino Porto, Ernesto Vianna, HildebertoLopes Aleluia, Irene Cristina Gurgel do Amaral, Jordan Amora, Luiz Carlos Bittencourt,Marcus Antônio Mendes de Miranda, Mário Jorge Guimarães, Múcio Aguiar Neto,Rogério Marques Gomes e e Wilson Fadul Filho.

Conselheiros Suplentes 2011-2014Alcyr Cavalcânti, Carlos Felipe Meiga Santiago, Edgar Catoira, Francisco Paula Freitas,Francisco Pedro do Coutto, Itamar Guerreiro, Jarbas Domingos Vaz, José Pereira daSilva (Pereirinha), Maria do Perpétuo Socorro Vitarelli, Ponce de Leon, Salete Lisboa,Sidney Rezende, Sílvio Paixão e Wilson S. J. Magalhães.

Conselheiros Suplentes 2010-2013Adalberto Diniz, Alfredo Ênio Duarte, Aluízio Maranhão, Arcírio Gouvêa Neto, DanielMazola Froes de Castro, Germando de Oliveira Gonçalves, Ilma Martins da Silva, JoséSilvestre Gorgulho, Luarlindo Ernesto, Marceu Vieira, Maurílio Cândido Ferreira, SérgioCaldieri, Wilson de Carvalho, Yacy Nunes e Zilmar Borges Basílio.

COMISSÃO DE SINDICÂNCIACarlos Felipe Meiga Santiago, Carlos João Di Paola, José Pereira da Silva (Pereirinha),Maria Ignez Duque Estrada Bastos e Marcus Antônio Mendes de Miranda.

COMISSÃO DE ÉTICA DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃOAlberto Dines, Arthur José Poerner, Cícero Sandroni, Ivan Alves Filho e Paulo Totti.

COMISSÃO DE DEFESA DA LIBERDADE DE IMPRENSA E DIREITOS HUMANOSPresidente, Mário Augusto Jakobskind; Secretário, Arcírio Gouvêa Neto; AlcyrCavalcânti, Antônio Carlos Rumba Gabriel, Arcírio Gouvêa Neto, Daniel de Castro,Ernesto Vianna, Geraldo Pereira dos Santos,Germando de Oliveira Gonçalves, GilbertoMagalhães, José Ângelo da Silva Fernandes, Lucy Mary Carneiro, Luiz Carlos Azêdo,Maria Cecília Ribas Carneiro, Martha Arruda de Paiva, Miro Lopes, Orpheu SantosSalles, Sérgio Caldieri e Yacy Nunes.

COMISSÃO DIRETORA DA DIRETORIA DE ASSISTÊNCIA SOCIALIlma Martins da Silva, Presidente; Manoel Pacheco dos Santos, Maria do PerpétuoSocorro Vitarelli, Mirson Murad e Moacyr Lacerda.

REPRESENTAÇÃO DE SÃO PAULOConselho Consultivo: Rodolfo Konder (Diretor), Fausto Camunha, George BenignoJatahy Duque Estrada, James Akel, Luthero Maynard e Reginaldo Dutra.

REPRESENTAÇÃO DE MINAS GERAISJosé Mendonça (Presidente de Honra), José Eustáquio de Oliveira (Diretor),CarlaKreefft, Dídimo Paiva, Durval Guimarães, Eduardo Kattah, Gustavo Abreu, José BentoTeixeira de Salles, Lauro Diniz, Leida Reis, Luiz Carlos Bernardes, Márcia Cruz eRogério Faria Tavares.

ACONTECEU NA ABI

Um grupo de cinco alunos doterceiro período do curso deJornalismo da Universidade FederalRural do Rio de Janeiro-UFRRJvisitou pela primeira vez o EdifícioHerbert Moses, sede da ABI, no dia 3de agosto. Acompanhados pelaProfessora Cristiane Venâncio, queleciona a cadeira JornalismoImpresso II, eles conheceram ahistória da entidade e de jornalistasque ajudaram a construir a trajetóriacentenária.

“Em virtude da greve dosprofessores das universidades federaissurgiu a idéia de ocuparmos a nossaagenda com diversas atividades,inicialmente dentro da própriaUFRRJ, mas depois chegamos àconclusão de que seria melhorsairmos do espaço acadêmico”,explicou Cristiane.

Antes da visita, os estudantestinham pouca informação a respeitodo histórico de lutas da ABI pelasliberdades. “Eles adquiriram osprimeiros conhecimentos sobre aentidade durante as minhas aulas,porque sempre que possível procuroagregar o contexto histórico aoconteúdo dado em sala de aula. Estaexperiência extremamenteenriquecedora, de caráter acadêmicoe pedagógico, certamente abrirá oshorizontes dos alunos sob doisaspectos principais: a práticaprofissional jornalística e o papelpolítico e social do jornalista nomundo”, sublinha Cristiane.

As ações extraclasse fazem parteda rotina acadêmica dos alunos deJornalismo da UFRRJ, que jápercorreram as Redações dos jornaisO Globo, Extra e O Dia e da RádioTupi. Na semana seguinte o gruporeuniu-se para conhecer o Centro deCultura e Memória do Jornalismo,instituição de pesquisa do Sindicatodos Jornalistas Profissionais doMunicípío do Rio de Janeiro.

Estudantes de Jornalismo visitam a CasaAlunos da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro ficaram impressionados com o seu histórico de lutas pela liberdade.

“Gostei muito de obterinformações sobre a contribuiçãoda ABI para o jornalismo e aHistória política do Brasil. O acervofotográfico da entidade é um dosdestaques desta visita”, disse aaluna Bruna Rodrigues, que seimpressionou com a galeria de fotossobre a Casa montada no nonoandar do Edifício Herbert Moses.O estudante Kleber Costa, que

deseja seguir a carreira derepórter, também chamoua atenção para o acervo daAssociação. “Achei muitointeressante conhecer aBiblioteca da ABI e saberque temos este espaço pararealizar pesquisas sobre aHistória da Imprensa noBrasil, para trabalhosacadêmicos e até mesmopara estudos maiscomplexos, como amonografia de conclusãode curso. É uma fonteimportante acessível aestudantes e profissionaisda área”, disse ele.

De acordo comCristiane, os alunos serãoestimulados a escreveruma matéria sobre oencontro na ABI, parapublicação no blog docurso de Jornalismo,disponibilizado no site doInstituto de CiênciasHumanas e Sociais-ICHS.

“O curso de Jornalismo da UFRRJteve início em 2010, e já é o terceiromais procurado dentro do universode 51 carreiras oferecidas pela Rural.Por enquanto, temos apenas trêsturmas (1º, 3º e 5º períodos). A Ruralé a única universidade pública naBaixada Fluminense, região formadapor 12 Municípios no Estado do Riode Janeiro”, informou a ProfessoraCristiane. (Cláudia Souza)

A Professora Cristiane Venâncio e seus alunos de Jornalismo Impresso II, da UFRRJ, no Edifício Herbert Moses.

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9JORNAL DA ABI 381 • AGOSTO DE 2012

REFLEXÕES

POR RODOLFO KONDER

RODOLFO KONDER, jornalista e escritor, é Diretor da Representação daABI em São Paulo e membro do Conselho Municipal de Educação daCidade de São Paulo.

Os demôniosestão de volta

De alguma imprevisível esquina do tempo,surgem personagens e exércitos trazidosdas sombras para nos aterrorizar. Sua fe-

rocidade vem de longe, das planícies africanas, dosplanaltos e das cavernas. Envolve tribos antigas eimpérios atuais. Reúne o General Custer e o Presi-dente Bush, Médici e Stroessner, PapaDoc e Leonid Brejnev, Bin Laden e Na-bucodonosor, ditadores e fariseus.

Os inimigos da inteligência têmhoje garras de tungstênio, olhos queenxergam na escuridão e se estendemalém do horizonte, um faro capaz delocalizar os esconderijos mais recôn-ditos, e ouvidos que podem distinguiras árvores pelo farfalhar de suas fo-lhas. Eles avançam e destróem. Theysearch and destroy. É a guerra.

Pelas frestas dos confrontos, res-surge Nabucodonosor, tirano impla-cável que invadiu Jerusalém, depor-tou multidões, sitiou a cidade de Tirodurante treze anos e ergueu mura-lhas quase intransponíveis entre osRios Tigre e Eufrates, numa regiãoconhecida como Mesopotâmia, al-guns séculos antes de Cristo.

Embora os exércitos, os impérios,e os ditadores também se desman-chem no ar, como tudo que e sólido,ficaram os prejuízos, as perdas, asausências. As pessoas já não são nemserão as mesmas, porque as guerras e as ditadurasnos recolocam diante do estilhaçado espelho da His-tória, em que redescobrimos sempre a fera à esprei-ta ou o lagarto esfomeado.

As mesmas explosões que rasgam o silêncio, acarne e a cronologia, junto aos barrentos e poluídosrios da Mesopotâmia, no Sudão ou na Etiópia, tra-zem da Itália dos anos 1940 um enfurecido “Duce”.

O fascismo chega às paisagens desoladas, e das co-lunas de fumaça emergem outros ditadores – Pino-chet, Gomulka, Ceausesco. Vemos exércitos que jáforam disciplinados e assustadores, mas, na pós-mo-dernidade, lavam suas fardas puídas e descascambatatas nos fundos de quartéis decadentes.

Os espanhóis da Falange, discípulos de Francis-co Franco – que comandou um golpe contra o go-verno constitucional, a partir de 1936, até a toma-da do poder, em 1939 –, continuam vivos e ativos.Sonham com a volta da repressão franquista, coma selvageria da Guerra Civil Espanhola e da SegundaGuerra Mundial, entre 1939 e 1945. Então, aindaestarrecidos diante dos massacres ocorridos duran-

te o conflito, diante da bestialidade revelada nos cam-pos de extermínio – Dachau, Treblinka, Birkenau,Auschwitz, Sobibor e tantos outros – descobrimosque os homens precisavam se proteger dos próprioshomens. Em 1948, redigimos a Declaração Univer-sal dos Direitos Humanos, aprovada na Onu. Qual

foi o resultado? Tivemos a GuerraFria e incontáveis conflitos localiza-dos. Ao longo do século 20, o perío-do mais sangrento da História, asguerras mataram 191 milhões de sereshumanos. “Sabemos agora do que ohomem é capaz”, concluiu o pensadorfranco-suiço George Steiner, debru-çado sobre os registros daqueles tem-pos atormentados.

Entramos no século 21, mas o qua-dro permanece inalterado. Não hou-ve avanços. Ao contrário, a situaçãoparece cada dia mais ameaçadora. Àsditaduras e às guerras, somamosagora o terrorismo, a droga, a crimi-nalidade crescente. O que fazer?

Nas tempestades de areia do nossodestino, nas cavernas mais profun-das da nossa aventura, escondem-seterroristas e delatores, torturadorese carcereiros, cassandras e fanáticos,patriotas e usurpadores, predadorese corruptos, seqüestradores e socio-patas. As ditaduras e as guerras sãoo seu espaço vital, os momentos da

sua plena realização. Mas os principais inimigos –cabe lembrar – ainda são a intolerância, o precon-ceito, o ódio, a ignorância. Estão em toda parte, in-clusive dentro de nós. Os principais inimigos, por-tanto, somos nós mesmos.

A intolerância, o preconceito, o ódio, a ignorância sãoos maiores inimigos. Estão em toda parte, inclusive dentro de nós.

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10 JORNAL DA ABI 381 • AGOSTO DE 2012

A fundação da Associação Catarinense deImprensa deu-se em Florianópolis pelo esforçoe liderança do jornalista e Professor Altino Flo-res, um profissional ético, independente, cultoe rigoroso na política, que marcou destacada pre-sença na comunicação do Estado durante maisde cinco décadas. Notabilizou-se, também, porse constituir num dos jornalistas mais polêmi-cos de seu tempo. Não abria mão de suas con-vicções políticas, ideológicas e éticas e, por isso,pagou elevado preço ao longo da carreira.

De formação liberal e depois um dos expo-entes da extinta União Democrática Nacional(UDN), ocupou cargos destacados no magis-tério, até ser convidado para exercer a Secreta-ria da Casa Civil em vários Governos.

O calendário oficial do Estado indicou durantetodo o século passado como sendo em 1934 adata de criação da Associação Catarinense deImprensa. Constava de documentos do Insti-tuto Histórico e Geográfico de Santa Catarinae da Academia Catarinense de Letras, além devárias obras de renomados historiadores. Por isso,o Instituto Histórico e Geográfico de SantaCatarina decidiu realizar em 2009 sessão come-morativa dos 75 anos de fundação da ACI.

Convidado para falar na ocasião, decidirealizar pesquisas nos jornais da época na Bi-blioteca Pública de Florianópolis. Lendo os jor-nais de maior circulação, constatei a publica-ção de um edital de convocação dos profissio-nais para “re-fundação” da Associação. Portan-to, a entidade já existia. Faltava identificar adata de fundação, pesquisa que exigiria mui-to tempo, pois não havia a menor referênciasobre data anterior a 1934.

A primeira luz surgiu com uma cópia doDiário Oficial do Estado, contendo a Lei Estadu-al nº 173, de 1937, que declarava de utilidade pú-blica a Associação Catarinense de Imprensa. Oato era assinado por Nereu Ramos e mencionava1932 como o ano de fundação da entidade.

O extrato da Reforma de Estatutos cons-ta de documento oficial da Imprensa Oficial doEstado e indica o registro na Biblioteca Públi-ca sob número 21.078, de 31-10-83. Revela:

“A Associação Catharinense de Imprensa,sociedade civil, fundada a 31 de julho de 1932,em Florianópolis, onde tem sua sede, compõe-se dos que trabalham na imprensa do Estadode Santa Catarina, de cuja classe se torna ór-gão de amparo, seleção e disciplina.”

O ato histórico aconteceu na sede da LigaOperária Catarinense, na Rua Tiradentes,esquina com Rua Nunes Machado.

A nova dataTranscrevo do livro Altino Flores – Fundador

da ACI o trecho que documenta a descobertada nova data e traz novos dados sobre os jor-nalistas e intelectuais que colaboraram com acriação da entidade. Entre os que tiveram ati-

fundação da Associação Catarinense de Im-prensa. Estavam, pois, presentes, os nossosconfrades srs. Oswaldo Mello, Ney Luz, JoãoBaptista Pereira, Benjamim Lucas de Oliveira,Dagoberto Nogueira, Biagio D’Alascio, L. Ro-manowski, Genésio Paz, Professor Altino Flo-res, Cássio da Luz Abreu e Gustavo Neves. Ossrs. Laércio Caldeira de Andrada, Othon D’Eçae Tito de Carvalho se fizeram representar pelosr. Professor Altino Flores, que o declarou.

O Senhor Professor Altino Flores, em ligeiraspalavras, expôs os propósitos da reunião, convo-cada pelo Estado, e apresentou algumas sugestõesdesde logo aceitas pelos presentes, atinentes à ori-entação que deveria nortear a vida da Associaçãoque se estava fundando. Dentre essas sugestões,três foram unanimemente votadas para figura-rem em ata como princípios assentes que virão aconstar dos Estatutos a serem elaborados:

1) que poderão fazer parte da Associação osdiretores, redatores e gerentes dos jornais pu-blicados em língua estrangeira, no Estado deSanta Catarina; 2) que a Associação Catari-nense de Imprensa não terá, por enquanto,caráter beneficente; 3) que nenhum membroda Associação Catarinense de Imprensa poderá,sem se incompatibilizar com a própria perma-nência no quadro social, aceitar da incumbên-cia de censor de qualquer jornal, no caso deestabelecer-se a censura à imprensa.

Foi, em seguida, aclamada a seguinte direto-ria provisória: presidente, Professor Altino Flo-res; secretário, Oswaldo Mello; tesoureiro, Ben-jamim Lucas de Oliveira. Essa diretoria nomeouos seguintes consócios para elaborarem os Es-tatutos: Prof. Laércio Caldeira de Andrada, NeyLuz e Genésio Paz. Essa comissão fará, também,título provisório, a sindicância.

Para o cargo de tesoureiro, e, depois, paramembro da comissão de redação dos Estatu-tos fora também aclamado o nome do sr. JoãoBaptista Pereira, tendo esse confrade declinadode um ou de outro cargo, pedindo disso escu-sas aos presentes e alegando achar-se sobrecar-regado de ocupações presentemente.

Ficou ainda assentado que se enviassemcirculares a todos os jornais do interior do Es-tado, convidando seus diretores, redatores egerentes a se filiaram nominalmente à Asso-ciação. Também ficou fixada a mensalidade de3$000 para os associados.”

A Associação, o Sindicato, a CasaAo longo destes 80 anos, a semente plan-

tada por Altino Flores e seus companheiros fru-tificou. Durante o Estado Novo a entidade so-freu perseguições e viveu períodos de inatividade.A partir da redemocratização, em 1946, retor-nou com o nome de Associação dos Profissio-nais de Imprensa, tornando-se mais vigorosana década de 1950. Esta Associação foi funda-mental para criação do Sindicato dos Jornalis-tas Profissionais de Santa Catarina.

Em 1968, o jornalista Alirio Bossle, consta-tou em Porto Alegre que a Associação Riogran-dense de Imprensa era uma entidade agregadorae forte, que reunia jornalistas, radialistas eempresários de comunicação. Trouxe a idéia paraSanta Catarina, criando a Casa do Jornalista.

Na gestão de Osmar Teixeira, a entidaderetornou à denominação original, com a mu-dança do nome, passando a se denominarAssociação Catarinense de Imprensa.

A ACI tem hoje na presidência o jornalistaAdemir Arnon.

gerentes, a se reunirem, domingo próximo, às10 horas, em ponto, no salão da Liga OperáriaCatarinense, à rua Tiradentes.”

Era realmente frustrante o relato, eis que,nas edições anteriores, o jornal tratara do assun-to em suas colunas.

Na edição do dia 28 de setembro de 1932, acapa traz bem no alto o título “AssociaçãoCatarinense de Imprensa”, o que já indica adeterminação de sua direção em torno da novaentidade. O tom do escrito é revelador:

“A necessidade da união dos profissionais daimprensa é incontrastável.

Já o reconheceram os jornalistas de todos ospaíses, mesmo no Brasil, havendo, porém, al-guns Estados, onde, por desídia, essa uniãoainda está por se realizar.

Santa Catarina não deve ser o último delesa congregar, em bloco harmônico, para a defe-sa dos interesses da classe, aqueles que laboram,entre nós, na profissão jornalística, diretores,redatores, repórteres e gerentes dos diários e pe-riódicos locais, estejam, ou não, no presentemomento, em atividade.

Foi norteado por essa idéia que O Estado to-mou a iniciativa de promover a fundação daAssociação Catarinense de Imprensa, o que sefará no próximo domingo, às 10 horas, no salãoda Liga Operária, à rua Tiradentes.

Para o aludido ato de fundação, rogamos ocomparecimento de todos quantos se encon-trarem nas condições acima aludidas.”

Dois dias depois, a 30 de julho, O Estadoretoma o tema para reiterar convite a todos osprofissionais em torno da nova causa. O des-taque dado pelo matutino era sinal eloqüentedo empenho de seu diretor, o jornalista AltinoFlores, em torno do projeto. Título, outra vez“Associação Catarinense de Imprensa”. E, acen-tuando, em forma de apelo:

“Amanhã, às 10 horas, reunir-se-ão, na LigaOperária, os jornalistas residentes nesta capi-tal quer estejam em atividade profissional, quernão, para o fim de ser fundada a AssociaçãoCatarinense de Imprensa.

O Estado, que tomou essa iniciativa, renovao convite, que já fez de suas colunas, aos direto-res, redatores e gerentes dos jornais desta capitale aos do interior do Estado, que, porventura, seachem em Florianópolis, bem como a todos osjornalistas mesmo atualmente afastados doexercício da profissão, para se associarem, comsua presença, à reunião de amanhã.”

No dia 31 de julho, o jornal República traz,igualmente, convite para a criação da ACI. Título:“Associação Catarinense de Imprensa”. Texto: “Aconvite dos nossos confrades do Estado reunir-se-ão hoje, às 10 horas, na sede da Liga OperáriaBeneficente, os jornalistas residentes nessa capi-tal, para tratarem da fundação da AssociaçãoCatarinense de Imprensa.”

A data oficial de criação da ACI é publica-da nas edições anteriores de O Estado e de ou-tros jornais da Capital. Pelo interior, espalha-se a informação, quase sempre com destaque.

O Estado publicou o seguinte relato sobre afundação da ACI no dia 10 de agosto de 1932:

“Estiveram, ontem, às 10 horas reunidos,na sala das sessões da Liga Operária Beneficente,gentilmente cedida pela sua digna diretoria, aspessoas que aderiram até agora à iniciativa da

va participação destacam-se Othon Gamad’Eça, José Diniz, Martinho Calado Júnior, Se-bastião Vieira, Osvaldo Melo, João Baptista Pe-reira, Laércio Caldeira de Andrada, Tito Carva-lho, Gustavo Neves, Flávio Bortoluzi de Sou-za. A narrativa é a seguinte:

“Estabelecida a convicção de que a criação daACI não se dera em 1934, o principal desafio seconcentrou em descobrir quando se dera realmen-te a fundação. Uma meta que exigiria semanas,talvez meses de investigação, obrigando o peno-so manuseio de coleções dos jornais de Desterrodurante pelo menos três décadas: de 1910 aosanos 1930. Isto nas precárias instalações da Bi-blioteca Pública do Estado, uma sauna no verãoe um freezer no inverno, com as edições antigasdos jornais com páginas destruídas e folhas emaltíssimo grau de fragilidade.”

Consultas feitas entre historiadores resul-taram infrutíferas. Nas bibliotecas e nos arqui-vos do Instituto Histórico e Geográfico de SantaCatarina e na Academia Catarinense de Letrasnão há um único documento que trate da ACIem período anterior a 1934. Pesquisa efetuadana Biblioteca Central da UFSC revelou-se igual-mente improdutiva.

O documento revelador facilitou as novasconsultas nas edições encadernadas da BibliotecaPública. Edições de vários jornais de Florianópolise de várias cidades do interior comemoram a fun-dação da ACI. Ali, a registrar dois fatos novos. Oprimeiro, pelo destaque dado ao evento histórico,quase sempre no alto da capa dos diários. Segun-do, o relato das dificuldades encontradas para cri-ação da entidade. O Estado narra em sua edição de26 de julho de 1932 que não fora possível fundar aentidade. Mas, por motivos não esclarecidos, dei-xa de oferecer as razões. Muito provavelmente pelaausência de quórum ou número insuficiente paraconcretizar o projeto, fato aliás, ocorrido tambémna Associação Brasileira de Imprensa, em abril de1908. Ou, ainda, porque o líder do movimento,Altino Flores, já era conhecido como o jornalistamais polêmico do Estado. Num período contur-bado da vida nacional, a fundação de uma entidadede jornalistas representava mudança e risco de con-frontações. Altino Flores, também a exemplo doque ocorrera com Gustavo de Lacerda, era um ho-mem dos debates elevados, da polêmica, do apoioa movimentos sociais e, de certa forma, com umtraço de simpatia pelo anarquismo.

A nota está na capa daquela edição, sob otítulo Associação Catarinense de Imprensa,aliás, usado repetidas vezes por quase todos osjornais daquela época:

“Foi recebida com simpatia a iniciativa toma-da, há poucos dias, pelo Estado, para a funda-ção da Associação Catarinense de Imprensa.

Infelizmente, porém, circunstâncias abso-lutamente alheias à vontade dos jornalistas, orapresentes em Florianópolis, os impediram de sereunirem na data fixada para a realização da-quele projeto.

Sendo, como é, absoluta a necessidade de searregimentarem, em coeso bloco, os profissio-nais da imprensa catarinense, pois há váriosproblemas atinentes à classe que estão a exi-gir uma ação conjunta para se obter resultadospalpáveis, na hora que atravessamos, O Esta-do convida a todos os que laboram no jornal danossa terra diretores, redatores, repórteres e

Moacir Pereira, jornalista e escritor, é membro daAcademia Catarinense de Letras e comentarista doGrupo RBS. Foi Presidente da ACI.

COMEMORAÇÃO

POR MOACIR PEREIRA

Os 80 anos da ACI, a voz dacomunicação em Santa Catarina

Fundada sob a liderança de um dos mais polêmicos intelectuais do Estado, o jornalista e Professor Altino Flores,

a Associação Catarinense de Imprensa festeja o 80º aniversário de sua criação.

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11JORNAL DA ABI 381 • AGOSTO DE 2012

Sobre a luta da TV Record para batera audiência das concorrentes, as opiniõesde especialistas do mercado de mídia, jor-nalistas e publicitários se dividem em re-lação às transmissões oficiais dos JogosOlímpicos de Londres 2012, exibidas comexclusividade pela emissora. Em notatransmitida à imprensa, o canal do bispoevangélico Edir Macedo, comemora e dizque durante as 165 horas de exibição doevento passou 36 liderando a audiência,atingiu 87% dos domicílios na Grande SãoPaulo e 86% no Painel Nacional de Televi-são (PNT).

Segundo a emissora, mais de 40 milhõesde telespectadores acompanharam a Olim-píada de Londres pela Record no PNT. EmSão Paulo e no Rio de Janeiro a média ge-ral da transmissão foi de 7 pontos, en-quanto a terceira colocada ficou com 5(cada ponto equivale a 60 mil domicíliosna Grande São Paulo).

Para conquistar pela primeira vez ostatus de emissora oficial de uma Olim-píada como a de Londres 2012, a Recordfechou um contrato com os patrocina-dores do Comitê Olímpico Internacional(COI), em 2007 e pagou US$ 60 milhõespelos direitos de transmissão dos Jogos— valor quatro vezes maior que os US$15 milhões pagos pela TV Globo paratransmitir a Olimpíada de Pequim, em2008. Pelos direitos de transmissão dosJogos de Atenas, na Grécia, em 2004, aemissora do Jardim Botânico pagou US$5 milhões.

Em sua primeira empreitada olímpica,a Record levou para Londres um contin-gente de 350 profissionais, que produziumais de 40 horas de matérias jornalísticassobre as Olimpíadas. Um saldo positivo,na avaliação da emissora, que divulgou tertido um crescimento de 35% de audiên-cia geral do canal nas classes AB, desde oinício do evento, em 27 de julho, até àcerimônia final, em 12 de agosto.

Citando dados do Ibope, coletadosentre os dias 25 de julho e 5 de agosto, noperíodo das 10h às 19h, horário de maiorpique das transmissões, a colunista Cris-tina Padiglione, que escreve sobre televi-são no Estadão, divulgou que a Recordteve um crescimento de 67% na GrandeSão Paulo nas classes AB.

Com a transmissão da partida final dofutebol masculino entre Brasil e México,em 11 de agosto, a emissora paulista ba-teu recorde de audiência em Brasília, com26 pontos de média. Em São Paulo, foram17 pontos, e no Rio foi atingida a médiade 18 pontos de audiência.

meia hora, transmitidos via satélite a to-dos os assinantes do serviço. O acordo per-mitiu à Globo utilizar seis minutos deimagens por dia, em no máximo três pro-gramas jornalísticos regulares, com a pos-sibilidade de cada um deles utilizar até doisminutos, sem direito de ultrapassar 30segundos sequer, por evento ou prova.

As restrições impostas pelo COI for-çaram a Globo a apresentar uma cobertu-ra jornalística mais limitada do que a queos telespectadores se acostumaram a assis-tir quando a emissora detinha os direitosde transmissão. O que se viu foi um noti-ciário concentrado nos principais fatosdos Jogos, nos telejornais da tv aberta e nosprogramas produzidos de Londres pelaequipe do canal a cabo SporTV.

Quando questionada sobre o impactona sua programação da transmissão dosJogos Olímpicos pela Record, por meio daCentral Globo de Comunicação (CG-Com) a emissora informou ao Jornal daABI que não houve impacto significativo,e sustenta que “manteve a liderança en-tre os canais de tv aberta durante todosos dias da Olimpíada”.

A Globo não divulgou os números re-lacionados a faturamento publicitáriodurante os Jogos Olímpicos. Até o fecha-mento desta edição, a informação trans-mitida pela CGCom é de que “o fecha-mento dos números relacionados a fatu-ramento só será conhecido pelo mercadomais adiante e será, como de costume,divulgado no projeto Inter-Meios”.

Mercado publicitárioOs Jogos Olímpicos de Londres 2012

chegaram ao fim. E agora chegou a hora deGlobo e, principalmente, a Record faze-rem as contas e apurar se lucraram ou ti-veram prejuízos com o evento. Segundo aAssessoria de Imprensa da Record, a emis-sora vendeu cotas de patrocínio no valorde R$ 279 milhões para nove patrocinado-res: Caixa Econômica, Cervejaria Petrópo-lis, Coca-Cola, MacDonald’s, Nestlé, Petro-bras, P&G, TIM e Visa.

Nos bastidores do setor publicitário cir-cula uma informação, veiculada na edição de13 de agosto, do caderno Negócios do Estadão,de que os dados sobre audiência em poderde publicitários e diretores de marketing degrandes agências e de patrocinadores dosJogos “não foram dos mais animadores”.

Isto porque apesar de em boa parte dastransmissões da Olimpíada a Record ocu-par a vice-liderança, em algumas ocasiões

pulou para o terceiro lugar e chegou a ficaratrás do SBT, quando transmitia a ginás-tica feminina e o canal de Sílvio Santosapresentava reprise da série Chaves.

Sobre esse quadro, um especialista emmercado publicitário disse ao Estadão queo setor não tinha dúvidas de que a Recordnão ultrapassaria a audiência da Globo,mas não dava para imaginar “que em al-guns momentos ela fosse ter queda noíndice”. Na mesma reportagem RafaelPlastina, diretor da Nielsen Sports, obser-vou que a queda de audiência acaba afe-tando a exposição das marcas.

Entretanto, parece que para alguns exe-cutivos de agências envolvidos no pacotede patrocínio da Record a instabilidade daaudiência da emissora, demonstrada du-rante as transmissões dos Jogos, não chegoua ser um grande problema: “Compramosquantidade, e não qualidade”, disse umpublicitário ao Estadão, acrescentando quetodos sabiam que não estavam comprandoaudiência, mas freqüência na programação,uma vez que suas marcas estariam sendoinseridas mais vezes que na Globo.

Próximos eventos esportivosDentro das emissoras de televisão bra-

sileiras a ordem agora é pensar desde já nofuturo e se preparar para a maratona degrandes eventos esportivos que irão acon-tecer no Brasil nos próximos quatro anos,como a Copa das Confederações 2013, aCopa do Mundo 2014 e a Olimpíada 2016.

A Globo informou que usará toda a suaestrutura na cobertura dos próximoseventos a que tem direito de transmissão,como a Copa das Confederações, a Copado Mundo e a Olimpíada. A emissora játrabalha com uma equipe que reúne pro-fissionais de diversas áreas da empresa,dedicada ao planejamento dessas cober-turas especiais, que não se limitarão àscompetições esportivas.

“Queremos que os telespectadores bra-sileiros se lembrem da importância de ser-mos anfitriões dos maiores eventos espor-tivos mundiais e que sigam essa experiênciaconosco de forma bem abrangente”, infor-mou a Central Globo de Comunicação.

Já a Record garante que o esporte olím-pico continua nos seus planos. Em 2014,o canal vai transmitir a Olimpíada de In-verno em Sochi, na Rússia. Em 2015, vaicobrir com exclusividade os Jogos Pan-americanos de Toronto, no Canadá. Alémdisso, a Record também vai ser a emisso-ra oficial da Olimpíada do Rio, em 2016.

Mesmo com a exclusividade da cobertura obtida em contrato com oComitê Olímpico, a TV Record não alcançou a amplitude desejável,

até por culpa das diferenças de fusos entre o Brasil e a Inglaterra.

DISPUTA

A guerra de audiênciados Jogos Olímpicos

Vice-liderançaMesmo com tantos números favoráveis,

a Record não conseguiu abalar a liderançade audiência da TV Globo. Em sua colunano caderno Ilustrada, da Folha de S.Paulo, acolunista Keila Jimenez informou que amédia de audiência da Record na transmis-são dos Jogos, de 27 de julho (dia da abertu-ra) até o dia 7 de agosto, foi de 6,3 pontos.

Jimenez observa que apesar do cresci-mento na sua audiência por causa da Olim-píada, a Record não chegou perto da Glo-bo, que seria a sua principal concorrente.Para justificar a sua informação, a colunis-ta cita que a média alcançada pelo canal dafamília Marinho nos 12 dias iniciais detransmissões dos Jogos de Pequim (2008)foi de 14,3 pontos. Ou seja, mais que odobro da média atingida pela Record nacompetição em Londres este ano.

Na Olimpíada de Pequim, a Globo atin-giu a média geral de 10,4 pontos na rede.Um dado importante lembrado por Jime-nez foi que, por causa do fuso horário,muitas modalidades eram transmitidas noBrasil de madrugada. Além disso, a emisso-ra dividiu as transmissões com a RedeBandeirantes.

Já o colunista da Veja, Lauro Jardim,noticiou que a audiência da Record na úl-tima semana das Olimpíadas foi uma “es-pécie de síntese” da média alcançada comas transmissões de todo o evento. Apesar deconquistar a liderança durante a exibiçãodo jogo da Seleção Brasileira com 17 pon-tos contra 6 da Globo, dados do Ibopemostram que a tv do bispo Macedo perdeua disputa para a concorrente no sábado,quando a Globo foi líder de audiência en-tre as 7h e meia-noite.

A vice-liderança da Record continuouno domingo, 12 de agosto, quando a Glo-bo alcançou 15 pontos com a apresenta-ção do Programa do Faustão e a transmis-são dos jogos do Campeonato Brasileiro.Durante a exibição da cerimônia de encer-ramento, a Record ficou empatata com oSBT com 7 pontos.

Planejamento alternativoSem a exclusividade na transmissão

dessa última Olimpíada, a Globo adotoualgumas medidas práticas para não de dei-xar de atender à sua clientela com a co-bertura jornalística do evento. Comprouda OBS (Olympic Broadcast Services)o acesso às imagens dos Jogos Olímpi-cos vendido a não detentores dos direi-tos de transmissão que aceitam as re-gras do COI para a utilização jornalís-tica em suas coberturas.

A OBS produziu boletins atualizadosde 30 minutos sobre as Olimpíadas a cada

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LGACAO

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Arthur Zanetti conquistou o primeiro lugar nas argolas da ginástica artística masculina. POR JOSÉ REINALDO MARQUES

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12 JORNAL DA ABI 381 • AGOSTO DE 2012

ntre as mais honrosas efe-mérides de 2012 inscreve-se o centenário de nasci-mento do jornalista e es-critor Edmar Morel, um

dos maiores nomes da História da impren-sa brasileira. A trajetória de mais de cin-co décadas dedicadas ao jornalismo e à de-fesa das liberdades é pontuada por sua in-tensa atividade e dedicação à ABI, da qualé historiador ilustre. Na entrevista a se-guir, Marco Morel, jornalista, historiadore professor do Departamento de Históriada Universidade do Estado do Rio de Ja-neiro–Uerj, neto do jornalista, que man-teve intensa convivência com o avô,expõe os aspectos mais relevantes da vidae da obra do brilhante repórter, sinônimode integridade e lisura profissional, ética,interesse público e dignidade pessoal.

Jornal da ABI – A partir da reconhecidatrajetória de Edmar Morel, o que seria im-portante resgatar nas comemorações pelocentenário de seu nascimento?

Marco Morel – No meio jornalístico, emgeral, meu avô é pouco conhecido. As no-vas gerações de jornalistas, digo jovens nafaixa de 30 anos, conhecem muito pouco ouquase nada sobre ele. Percebo isso commuita freqüência não apenas no meio aca-dêmico, mas também como jornalista, poissou formado em Comunicação Social. Podeser até mesmo em função de uma caracte-rística da categoria dos jornalistas, que nãocultiva uma História própria, uma memó-ria própria. Tudo é muito descartável. Es-

ro, no qual ele já afirmava que o CaboAnselmo era um agente infiltrado, entreoutras coisas que só foram descobertasdepois. O livro ficou mal visto no meioacadêmico, ao qual eu pertenço, porqueas pessoas, em geral, não lêem livros e sebaseiam apenas pelo título. Neste caso,contestam o conteúdo da obra alegandoque o golpe não começou em Washington.Já ouvi várias críticas de pessoas que ja-mais leram este livro.

Jornal da ABI – Edmar Morel começou ase dedicar aos livros inspirado em suaorigem nordestina?

Marco Morel – Sim. O Dragão do Mar éfruto da infância dele em Fortaleza, ondeconvivia com jangadeiros e pescadoresque contavam essas histórias e conhece-ram o Dragão do Mar. Os últimos aboli-cionistas, já idosos na época, tambémconversavam muito com meu avô, quesempre foi curioso e, como queria serrepórter, gostava de puxar assunto com aspessoas na rua. Anos mais tarde, quandoele decidiu escrever e pesquisar foramessas histórias que o motivaram e têm,sim, muito a ver com a origem dele. Esti-ve recentemente no Ceará e descobri queninguém o conhece. Um negócio impres-sionante. Participei de um seminário emuita gente veio me dizer que não sabianada sobre Edmar Morel. Profissionaisdas áreas de História e de ComunicaçãoSocial ouviram falar vagamente. Nãoexiste memória. A ditadura durante todosestes anos não foi em vão.

CENTENÁRIO

POR CLÁUDIA SOUZA

Cassado em 1964 por ter levantado

a história da Revolta da Chibata de 1910,

ele foi um dos maiores repórteres do País

e o primeiro jornalista a denunciar que

o golpe de 1964 começou em Washington

UM GIGANTE DO JORNALISMO

pecificamente sobre meu avô, algumas pes-soas ouviram falar uma vez, outras sabemque ele escreveu tal livro, mas a maioria des-conhece a atuação dele como repórter. AABI é quase uma exceção nesse sentido, pelovínculo mais direto dele com a Casa e comos jornalistas da Associação. A geração delefoi derrotada com o golpe de 1964 e ficourelegada ao segundo plano.

Jornal da ABI – Quais nomes dessa gera-ção você citaria?

Marco Morel – Osvaldo Costa, o própriopessoal da ABI – Fernando Segismundo,Gumercindo Cabral, João Antonio Mes-plé – e as pessoas que trabalharam em jor-nal, como Lourival Coutinho. Eles fize-ram parte de um grupo mais identificávelde jornalistas militantes do nacionalis-mo de esquerda, do qual meu avô foi umdos mais conhecidos. Entretanto, hojequase ninguém ouve falar deles. Meu avôse tornou um pouco mais conhecido emfunção dos livros que publicou, mas a atu-ação dele como repórter, sua principal ati-vidade, é pouco conhecida.

Jornal da ABI – Edmar Morel escreveu 16livros, entre os quais A Revolta da Chibata.Que outros títulos você destacaria pelarelevância histórica e jornalística?

Marco Morel – O livro de maior desta-que foi A Revolta da Chibata, obra que temmais permanência e da qual as pessoas selembram. Mas há outros títulos impor-tantes, anteriores inclusive, como o Dra-gão do Mar - O Jangadeiro da Abolição, com

prefácio de Gago Coutinho e apresenta-ção de Rubem Braga, o primeiro em quemeu avô narra a história de um herói daralé, um herói da plebe, como ele costu-mava chamar. A obra descreve a luta dosjangadeiros do Ceará pela Abolição nofinal do século 19. O Ceará aboliu a es-cravidão quatro anos antes da Lei Áurea.Foi um movimento social, uma luta declasse levada à frente pelos jangadeiros,em sua maioria escravos libertos ou des-cendentes de escravos. Lançado em1949, o livro, muito marcante, é o pri-meiro, e praticamente o único, a apresen-tar a biografia do “Dragão do Mar”, ape-lido de Francisco José do Nascimento,líder dos jangadeiros cearenses, citadonos versos da música Mestre Sala dosMares, de João Bosco e Aldir Blanc, quediz: “Há muito tempo nas águas daGuanabara/ o Dragão do Mar reapare-ceu/ na figura de um bravo feiticeiro/ aquem a História não esqueceu”. A letrafaz referência ao “Dragão do Mar” e tam-bém ao lendário João Cândido, outroherói biografado por meu avô. Destaca-ria também o livro O Golpe Começou emWashington, com apresentação de JoelSilveira, o primeiro a ser publicado con-tendo críticas ao golpe militar. A obra foilançada em 1965. Meu avô aponta váriasevidências de que havia uma articulaçãoda presença dos Estados Unidos na exe-cução do golpe, fato que hoje em dia todomundo sabe, como a existência da Ope-ração Brother Sam, divulgada apenas em1974, dez anos depois. É um livro pionei-

Edmar MorelEdmar Morel

E

Desenho de RamonLLampayas emO Mistério daExpedição Fawcett,adaptação para osquadrinhos do livrode Edmar Morel,editada pela Ebal.

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13JORNAL DA ABI 381 • AGOSTO DE 2012

Jornal da ABI – O desejo de ser um repór-ter surgiu ainda no Ceará?

Marco Morel – Sim. Meu avô foi umapessoa de origem muito modesta. Ele saiudo Ceará aos 20 anos e veio para o Rio deJaneiro com o firme propósito de ser re-pórter. Antes disso, conseguiu empregoem um jornal no Ceará, nas funções deauxiliar de tipografia e contínuo, tudopara ficar perto da atividade. A vontadede ser jornalista era uma coisa dele, dacuriosidade que o movia. Ele costumavacontar que ficava fascinado com a leitu-ra de jornais e revistas na barbearia demeu bisavô. Tinha também uma persona-lidade muito irrequieta que se identifica-va com o trabalho da imprensa.

Jornal da ABI – Que iniciativas Edmar Moreltomou para se tornar um jornalista?

Marco Morel – Ele fez uma vaquinha paracomprar a passagem de terceira classe emum navio e desembarcou no Rio sem co-nhecer ninguém. Ao saber da disposiçãode meu avô de seguir para o Rio de Janei-ro, Filinto Barroso, um intelectual cearen-se, escreveu uma carta de recomendação ecomprou um queijo para que meu avôentregasse ao filho dele, Gustavo Barroso,que estava no Rio de Janeiro e era umapersonalidade pública como advogado,jornalista, escritor, professor e político,um dos líderes da Ação Integralista Brasi-leira–AIB. Meu avô passou muita fomedurante a viagem, acabou comendo o quei-jo inteiro e ficou com vergonha de entre-gar apenas a carta de recomendação. Aodesembarcar à noite no Rio de Janeiro,acabou dormindo no banco da praça.Quando acordou pela manhã, saiu vagan-do pelas ruas e reconheceu a figura deMaurício Lacerda, um político importantena época, pai do jornalista Carlos Lacerda.Dois anos antes disso, em 1930, MaurícioLacerda fizera um comício pela AliançaLiberal em Fortaleza. Na ocasião, meu avô,que era muito espevitado, preparou umasaudação a ele em nome dos jovens dacidade. “Bom dia, Sr. Maurício Lacerda.Sou aquele jovem do Ceará que o saudoudurante o seu comício”, disse meu avô aoreconhecê-lo. Maurício de Lacerda convi-dou-o para almoçar na casa dele e prome-teu ajudá-lo a conseguir um emprego.Depois do almoço, levou meu avô ao Jor-nal do Brasil e o apresentou ao Chefe deRedação, que era ninguém mais ninguémmenos que o jornalista Barbosa Lima So-brinho. Isso aconteceu em 1932. Meu avôcomeçou a trabalhar no jornal e mandoubuscar toda a família. Ele era o irmão maisvelho de seis filhos. Como meu bisavô ti-nha morrido, vieram a mãe, uma tia e oscinco irmãos. A família estava enfrentan-do muita dificuldade no Ceará.

Jornal da ABI – Edmar Morel foi casadodurante 53 anos com Aurora, teve um fi-lho, Mário Morel, cinco netos e oito bis-netos. Como foi a sua convivência com ele?

Marco Morel – Quando meus pais se se-pararam, eu tinha cinco anos de idade e fuimorar com meus avós paternos EdmarMorel e Aurora. Só saí da casa deles paracasar, aos 28 anos de idade. Meu avô faleceuno ano seguinte. Assim sendo, dos cincoaos 28 anos, nossa convivência foi muitopróxima. Meus pais são vivos até hoje.

Jornal da ABI – Você escolheu a profissãode jornalista influenciado pelo exemplode seu avô?

Marco Morel – Inicialmente, sim, masdepois percebi que o jornalismo tinha setransformado, além disso eu não tinha operfil do meu avô, sempre fui mais reserva-do. Acabei mudando para a área de História.

Jornal da ABI –Seu pai, Mário Morel, tam-bém é jornalista, um dos pioneiros da tvno Brasil.

Marco Morel – Ele trabalhou ao lado deWalter Clark, de Fernando Barbosa Lima,na TV Rio. Pertenceu a essa geração.

Jornal da ABI – Outros membros de sua fa-mília optaram pela Comunicação Social ?

Marco Morel – Minha irmã Mônica éformada em Relações Públicas e duas sobri-nhas do meu avô também são jornalistas.

Jornal da ABI – Além da formação jorna-lística, Edmar Morel aprofundou o viés depesquisador. Isto pode ser observado noslivros e matérias que escreveu.

Marco Morel – Ele começou fazendoreportagem, depois fez livro-reportageme, em seguida, jornalismo histórico. Fazianão só um livro sobre determinada repor-tagem, mas também se dedicava à pesqui-sa histórica a partir do jornalismo. Aomesmo tempo em que ele fazia a pesqui-sa histórica, escrevia de uma maneirajornalística com um texto mais agradável,mais claro, fácil de se entender. Ele foi umdos pioneiros, não no livro-reportagem,mas no jornalismo histórico. Atualmen-te podemos citar, dentre outros, Fernan-do de Morais nesta linha de trabalho.

Jornal da ABI – Que título você citaria en-tre os livros-reportagens de maior reper-cussão?

Marco Morel – E Fawcet Não Voltou, comprefácio do Marechal Rondon, reúne umasérie de reportagens que ele fez na Amazô-nia para os Diários Associados. Moscou Idae Volta, com apresentação de Joel Silveira,também foi um livro-reportagem impor-tante, sobre a viagem de meu avô aos paí-ses da Cortina de Ferro, período em que es-creveu diversas matérias. A Revolta da Chi-

bata é um livro histórico, pois ele precisoupesquisar dados, entrevistar pessoas.

Jornal da ABI – A publicação de A Revoltada Chibata trouxe problemas para EdmarMorel em 1964?

Marco Morel – Sim. O fato de ele terescrito A Revolta da Chibata gerou muitoressentimento entre os oficiais da Mari-nha. Meu avô foi muito perseguido e teveos direitos políticos cassados em 1964.Cada vez que ele tentava arranjar empre-go em um jornal, os almirantes pressiona-vam para ele ser demitido. O historiadorHélio Silva costumava contar essa histó-ria, porque meu avô não falava sobre es-sas coisas em família. Além disso, as re-portagens dele apresentavam um cunhoinvestigativo e social muito forte, o quede alguma maneira também incomodava.

Jornal da ABI – Como foi a passagem deEdmar Morel pelo Departamento de Im-prensa e Propaganda–Dip?

Marco Morel – Ele foi nomeado redatordo Dip quando exercia a mesma funçãonos Diários Associados. As reportagensque ele fazia para os Diários Associadoseram aproveitadas e republicadas peloDip. Ele permaneceu assim algum tempoaté escrever a reportagem intitulada ABeliscada. A pauta chamou a atenção demeu avô em Recife, onde existia a baseaérea norte-americana. Ele observou quemuita gente ficava esperando passar ocaminhão de lixo da base aérea norte-americana para catar as sobras de alimen-tos. Crianças, mulheres e velhos disputa-vam os restos de comida dos militares.Quando a matéria foi publicada, meu avôcomeçou a ser perseguido e recebeu umcomunicado informando a sua transfe-rência para o Dip do Amapá, uma coisaassim (risos). Como ele era uma figura,correu para o banheiro, pegou um pedaçode papel higiênico e escreveu: “Peço demis-são!” e entregou para a chefia. Ainda assimexistem pesquisadores que dizem queEdmar Morel trabalhou no Dip porque eraaliado do Governo. Meu avô participouapenas do Governo João Goulart na fun-ção de assessor de imprensa dos Ministé-rios da Saúde e da Viação e Obras Públicas.

Jornal da ABI – Em que período EdmarMorel enfrentou maior dificuldade paraconseguir emprego?

Marco Morel – Em 1952, ele já tinhasaído dos Diários Associados e viajou paraa União Soviética. Na volta ao Brasil,ficou quase um ano desempregado. Era aépoca do marcarthismo. Assim comoaconteceu nos Estados Unidos, aqui tam-bém havia esta coisa de lista-negra nasRedações, perseguição a comunistas, etc.Foi até curioso porque meu avô viajoupara a União Soviética credenciado porvários jornais do Rio de Janeiro e de ou-tros Estados para fazer reportagens. Osveículos de comunicação se cotizarampara pagar a passagem de avião, hospeda-gem e outras despesas e receber as maté-rias. Porém, os mesmos que custearam aviagem se recusaram a publicar os textos.Para completar a situação, um padre re-solveu escrever uma carta para um dessesjornais dizendo que na União Soviéticase fazia sopa com carne de criancinhas(risos). Houve até um episódio que temrelação com a ABI. Quando meu avôvoltou da União Soviética, fez escala emRoma, porque não existia vôo direto.Quando ele chegou em Roma, telefonoupara Herbert Moses, então Presidente daABI, e explicou que estava retornando eque poderia estar correndo o risco de serpreso. O vôo chegou ao Rio por volta das4 horas da manhã. Herbert Moses foi pes-soalmente aguardá-lo no aeroporto. Mo-ses era um homem muito conceituado,um empresário rico com boas relações.Ele passou direto pela Alfândega, cumpri-mentou meu avô e perguntou se ele esta-va trazendo algum material subversivo.Meu avó respondeu que não, mas deixaestar que ele já tinha enviado todo omaterial para o Brasil pelo correio deRoma com o envelope endereçado à mi-nha avó(risos). Moses, então, deu o braçoa ele e passaram direto sem problemas.

Jornal da ABI – Edmar Morel chegou a serpreso em alguma situação?

Marco Morel – Na época do golpe de1964, quando foi publicado O Golpe Come-çou em Washington, ele soube nas Redaçõesque existia uma lista-negra dos jornalistasque seriam presos, na qual o nome deleestava incluído. Ele resolveu, então, con-versar com a escritora Rachel de Queiroz,que era conterrânea e amiga dele no Cea-rá. Se conheceram na adolescência. A Ra-chel, além de ter apoiado o golpe, era pa-rente do Castelo Branco. Meu avô expli-cou para a Rachel que sabia que seria pre-so e pediu apenas para ficar preso no Riode Janeiro, não queria ficar confinado. Naconversa com Castelo Branco, Rachel con-tou que Edmar Morel era cearense, filho defulano, sobrinho de beltrana, primo desicrana, essas histórias. “Sendo assim, digaa ele que nós não vamos aborrecê-lo”, res-pondeu Castelo Branco. Bem antes desteepisódio, mais precisamente em 1935,meu avô estava se dirigindo para o jornalA Manhã, onde trabalhava, e encontrouum conterrâneo do Ceará que tinha entra-do para a Polícia. O amigo avisou que es-tava tendo uma confusão danada na ruaporque o jornal A Manhã tinha sido fecha-do e todos os jornalistas que chegavampara trabalhar estavam sendo presos. Meu

Nos anos 1960, houve uma tentativa de adaptar para o cinema o livro A Revolta da Chibata, de Morel

FOTOS: ACERVO MARCO MOREL

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avô disfarçou, se despediu do amigo poli-cial e deu meia volta (risos).

Jornal da ABI – O perfil de jornalista com-bativo esteve presente desde o início dacarreira de Edmar Morel?

Marco Morel – Posso afirmar que eledesenvolveu isto depois. Começou fazen-do reportagem na editoria de Polícia, umatradição no início da carreira no jornalis-mo. Quando trabalhou em O Globo fezreportagem para as editorias Geral e Ci-dade. Nos Diários Associados começou ater espaço para o que ele chamava de re-portagem popular, jornalismo popular,com matérias de grande repercussão quesensibilizavam a população, mas nadaexplicitamente político que pudesse sercensurado ou vetado.

Jornal da ABI – Qual foi a primeira maté-ria importante com estas características?

Marco Morel – A primeira reportagemde impacto foi sobre a égua Farpa, reali-zada em 1944, durante a Segunda Guer-ra Mundial, quando havia racionamentode leite, de alimentos, em geral. Cadafamília tinha direito a uma quantidademuito pequena de leite por semana.Quem tinha criança pequena em casa oualguém doente enfrentava muita dificul-dade para comprar o produto. As pessoasformavam filas enormes desde o início damadrugada para trocar um cupom por umlitro de leite. Conversando na rua, meuavô descobriu que no Jockey Clube oscavalos estavam sendo alimentados comleite e que os animais pertenciam ao ha-ras de Lineu de Paula Machado! Meu avôapareceu no Jockey às 4 horas da manhã,horário da alimentação dos cavalos. Con-versou com o treinador e disse que que-ria fazer uma matéria sobre os cavalos. Otratador o recebeu muito bem e mostroutudo. Quando meu avô perguntou se oscavalos não iam comer, o tratador apareceucom uma tina grande transbordando deleite. Meu avô perguntou quantos litros deleite os cavalos ingeriam, se era todo dia, etc.Antes de entrar no Jockey, ele tinha vistouma enorme fila do leite na padaria. Parareforçar a denúncia, pediu autorização aotratador para fazer fotos do cavalo na rua.O animal foi fotografado caminhando nafrente da fila com a barriga inchada de lei-te. Rendeu matéria de primeira página. A re-percussão foi impressionante. Em várioslocais da cidade padarias e leiterias foramsaqueadas e padeiros e leiteiros foram es-pancados. Sérgio Cabral, pai, costuma con-tar que quando foi pedir emprego no Jornaldo Brasil a chefia sugeriu que ele apresentas-se uma boa matéria. Lembrando deste epi-sódio da égua Farpa, Sérgio Cabral decidiufazer algo parecido. Como na época estavafaltando carne, ele foi ao Zoológico e foto-grafou os animais comendo o alimento. Amatéria foi bem recebida no JB e SérgioCabral conseguiu o emprego. Quando eleencontrou com meu avô, contou que esta-va na profissão graças a ele (risos).

Jornal da ABI – Quais outras matérias destegênero tiveram boa repercussão?

Marco Morel – A reportagem sobre o leitecontaminado é um exemplo. Na época emque foi feita a matéria, o leite era comerci-alizado em caminhões-pipa e estava sendo

misturado com água. Os responsáveis erammultados, mas as denúncias não cessavam.Meu avô, na condição de repórter, freqüen-tava todo tipo de ambiente, desde as altasrodas ao submundo. Nessas andanças, eledescobriu que os leiteiros estavam colo-cando urina no leite porque era difícil dedetectar nos exames de PH, o que não acon-tecia com a água, facilmente detectada. Eleconseguiu gravar isso de madrugada nomeio dos leiteiros. Ficou conhecido comoo escândalo do leite contaminado e, apósa denúncia, o produto passou a ser vendi-do em sacos plásticos. Por causa dessa re-portagem meu avô foi alvo de vários pro-cessos na justiça por calúnia e outras coi-sas, mas ganhou todos.

Jornal da ABI – Edmar Morel foi alvo deprocessos judiciais em função de outrasreportagens?

Marco Morel – Tem uma história atéengraçada que aconteceu durante a Segun-

Edmar Morel em sua sala no Jornal doCommercio do Rio de Janeiro. Na parede,quadro com sua matéria sobre a expediçãoFawcett. Acima, com a filha que brinca sobreo tapete de uma onça empalhada trazida daAmazônia. Ao lado, Morel concede umaentrevista radiofônica nos anos 1950. Abaixo,capa da adaptação para os quadrinhos deseu livro ...E Fawcett Não Voltou.

da Guerra Mundial. Nesta época, paradriblar a censura meu avô procurava fazermatérias de impacto, de denúncia, mas quenão fosse algo que pudesse ser censuradopelo Governo. Apareceu um príncipe ita-liano, Gabriel Inellas, dizendo-se portadorde uma ordem honorífica e oferecendotítulo de Grã Cruz para pessoas famosas.Mas isso era vendido. Ele fazia uma ceri-mônia e condecorava senadores, deputa-dos e generais, que recebiam faixa e meda-lha, se ajoelhavam diante de uma espada epagavam pela coisa toda. Meu avô desco-briu com alguém da Polícia que ele conhe-cia de matéria que o italiano era fichadocom vários processos por emissão de che-que sem fundos, identidade falsa, entreoutros delitos. O sujeito era um escroque.Como estava para acontecer uma segundacerimônia de condecoração, meu avô ficouquieto e foi para a solenidade. Estavam lágenerais e almirantes que ficavam de joe-lhos na frente do italiano, que vinha com

uma espada, coisa e tal. As cerimônias eramamplamente noticiadas nas colunas soci-ais de jornais e revistas. Meu avô registroutudo, escreveu a matéria Generais e Almi-rantes se ajoelham diante de escroque e publi-cou a ficha do cara. Foi um escândalo. Sócom essa matéria ele recebeu uns 15 pro-cessos por calúnia e injúria. Mas em todosfoi absolvido. O criminalista Evaristo deMoraes Filho se ofereceu para fazer a de-fesa dele de graça. Houve aí também umepisódio folclórico: Em um desses julga-mentos, o tal príncipe italiano levou umjornalista como testemunha de acusação.Eles afirmaram em juízo que meu avô ti-nha pedido dinheiro a eles e como nãorecebera, decidiu fazer a tal reportagem.Como meu avô conhecia o juiz de vista,resolveu falar com ele no intervalo daaudiência. “Excelência, eu vou dar umaporrada nesse cara que está inventando

CENTENÁRIO EDMAR MOREL, UM GIGANTE DO JORNALISMO

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essas histórias!” “Lá fora, aqui dentro não”,respondeu o magistrado. Quando termi-nou a audiência, meu avô deu uma surranos dois. Ele era baixinho, 1,53 m de altu-ra, mas como tinha sido lutador de boxe,jogou os dois no chão.

Jornal da ABI – Ele se interessou por esteesporte ainda no Ceará?

Marco Morel – Exatamente. Chegou a sercampeão peso-mosca. Isso tem a ver coma personalidade dele, sempre combativo,guerreiro, lutador. Dizem que o tal jorna-lista, o Garófalo, era um cara grandão. Elee o escroque entraram com outro proces-so, desta vez por agressão. Na hora do jul-gamento, meu avô disse: “Bati e bato denovo! Vão ficar rendidos na minha lona esempre que passarem na minha frentevoltarão a apanhar!” O juiz o absolveu ale-gando defesa da honra. Após a audiência,meu avô convidou os pais para comemo-rar em um restaurante, mas os dois caras es-tavam lá também. Ele bateu neles de novo(risos). Isso demonstra um pouco como eraa personalidade do meu avô, muito alegre,brincalhão, bem-humorado, extrovertidoe engraçado. Perto dele você estava semprerindo com suas histórias.

Jornal da ABI – A reportagem de Edmar Mo-rel sobre a expedição Fawcet teve desta-que no Brasil e no noticiário internacional.

Marco Morel – Sim. E depois virou livrosobre a história de um expedicionárioinglês que nos anos 1920 veio para a flo-resta amazônica e desapareceu. Membroda Real Sociedade de Ciência, ele chegouao Brasil acompanhado do filho e de ou-tro inglês. Eles entraram pela região doXingu e sumiram. O caso ganhou reper-cussão internacional porque o cientistaera muito conhecido. Vários repórteres deoutros países estiveram na selva em bus-ca de seu paradeiro, inclusive um norte-americano, que desapareceu também. Oepisódio se tornou uma lenda, um misté-rio. Fawcet conversara com MarechalRondon antes de fazer a viagem e este oaconselhou a não ir. Em 1943, no apogeudos Diários Associados, Assis Chateaubri-and resolveu desvendar o mistério e pe-diu para meu avô fazer a matéria. Quan-do meu avô disse que não queria ir por-que não tinha recursos, Chateaubriandenfiou a mão nos bolsos e entregou paraele um dinheirinho de nada todo amassa-do (risos). Para organizar a expedição, meuavô recebeu a verba necessária e pediuapoio ao Marechal Rondon, que dirigia oServiço de Proteção aos Índios–SPI, órgãooficial do Governo. Meu avô formou aequipe com o fotógrafo e o cinegrafistado próprio SPI, que já estavam habitua-dos com o ambiente e conheciam a selva.Eles tiveram acesso a lancha, aeronave eautomóvel para chegar ao Xingu. Namesma ocasião, por coincidência, estavasendo esperada a visita de Getúlio Vargasao Xingu para a assinatura do decreto decriação do Parque da Reserva Nacional doXingu. Meu avô foi o primeiro jornalis-ta brasileiro a fazer matéria no Xingu,pois até então as pessoas chegavam lá emorriam ou sumiam. Ele conseguiu refa-zer o roteiro de Fawcet, conversou comas pessoas que encontraram o cientista eficou na mesma cidade onde ele se hospe-

dou. Meu avô descobriu que havia umíndio branco, louro de olhos azuis em umamissão religiosa perto do Xingu, que se-ria parente do Fawcet. Ele era um índioKalapalo, do Alto Xingu, muito discrimi-nado na aldeia por ser branco e que, por-tanto, fora criado pelos missionários.Meu avô ficou sabendo que os índiosKalapalo não tinham contato com a civi-lização, mas que estavam se dirigindo aum determinado ponto do Xingu parareceber Getúlio Vargas. Getúlio não foi aoencontro, mas meu avô foi recepcionadocom honrarias, como se fosse o Presiden-te, e teve a sorte de registrar todas as tri-bos do Xingu reunidas. Nenhum repórterjamais havia presenciado aquela imagem.Isso tudo foi fotografado e virou um fil-me, que, infelizmente, desapareceu. Meuavô procurou as imagens, eu também pro-curei, sem sucesso. Chegou a ser exibidonos cinemas. Havia uma cópia no acervodo Museu do Índio, mas foi destruída noincêndio nos anos 1960. Meu avô mon-tou um estúdio radiofônico na selva egravou as entrevistas com os índios. Ocacique, líder dos Kalopalo, contou que oinglês era muito agressivo, que tinhabatido em um índio e que por isso eles omataram. O corpo nunca foi encontrado.Depois disso, os irmãos Vilas-Bôas estive-ram no Xingu e pensaram ter localizadoa ossada do cientista, mas foi alarme fal-so. A matéria teve enorme repercussão,afinal meu avô conseguiu desvendar omistério. Envolvido com a história, meuavô trouxe o índio branco para o Rio e feztudo para ajudá-lo, inclusive encaminhou-o para a escola. O índio não se adaptou àcidade grande, ficou muito deprimido, setornou alcoólatra e foi morto em umabriga de bar. Meu avô se arrependeumuito de tê-lo trazido para a cidade, masa intenção era a melhor possível, afinalele não tinha onde ficar no Xingu. AEditora Brasil-América publicou a histó-ria no formato quadrinhos.

Jornal da ABI – Como foi a transição doaplaudido trabalho na reportagem popu-lar para o jornalismo político?

Marco Morel – Desde jovem meu avôsempre assumiu sua posição política deesquerda. O primeiro jornal onde ele tra-

balhou, O Ceará, era de esquerda. Aqui noRio ele fez parte da geração de 1935. Tra-balhou no jornal A Manhã, que era o órgãoda Aliança Nacional Libertadora–ANL. Ochefe de Redação era Pedro Mota Lima,que exerceu grande influência na vida demeu avô. Ele nunca se filiou ao PCB, masfoi o porta-voz informal do partido, queestava na ilegalidade. Meu avô pregavamuito a liberdade individual, assumiaposições independentes, algumas distin-tas da orientação do Partido, e achava quea estrutura partidária iria cerceá-lo. Con-tudo, sempre esteve muito próximo aoPCB. Eu soube pelo Maurício Azêdo quemeu avô, inclusive, contribuía mensal-mente para o partido. Quando João Gou-lart foi Ministro do Trabalho no GovernoVargas, meu avô passou a se filiar à correntejanguista, que era a mais à esquerda dopartido. Na verdade, ele nunca teve umafiliação partidária. A atuação dele era comorepórter, como jornalista. Queria falar averdade e ser livre. Se visse uma coisa erra-da, denunciava. Gostava de se identificarcomo um repórter de posição político-socialbastante clara e jamais escondida.

Jornal da ABI – Quais reportagens destafase fizeram sucesso?

Marco Morel – Ele trabalhou no jornalÚltima Hora, foi um dos fundadores doperiódico de Samuel Wainer. Fez duas ma-térias de muita repercussão. A primeira so-bre o caso Nestor Moreira, jornalista quefoi morto após ser espancado em uma de-legacia. Meu avô deu o furo de reporta-gem quando Nestor Moreira estava entrea vida e a morte no hospital e ninguémsabia o que tinha acontecido. Imagine acena: meu avô se vestiu de médico, colo-cou avental, touca, entrou no hospitalMiguel Couto e foi caminhando até oleito de Nestor Moreira, que, acordado elúcido, revelou que tinha sido espancadopelo policial conhecido como “Coice deMula”. A partir daí a matéria explodiu.Uma semana depois, meu avô fez matériasobre a superlotação nos xadrezes com otítulo: Campo de Concentração no Rio deJaneiro. A tiragem do jornal, que na épocaera de 70 mil exemplares, chegou a 300 milcom essa matéria. Getúlio Vargas chamouSamuel Wainer para conversar e recla-

mou da reportagem. Wainer afastou meuavô por alguns meses, mas depois ele re-tornou com a coluna Cidade Aberta, comessas denúncias do cotidiano.

Jornal da ABI – Edmar Morel contou coma parceria de bons fotógrafos para seustrabalhos.

Marco Morel – Jáder Neves o acompa-nhava sempre. Fez com ele os xadrezessuperlotados, entre outras matérias. ComJean Manzon ele não chegou a trabalhar.Vinculado ao David Nasser, Jean Manzonfazia outro tipo de reportagem. Minha avóme contou que Jean Manzon passou umatarde inteira na casa de meu avô tentan-do convencê-lo a fazerem dupla, mas meuavô não quis de jeito nenhum. Luís Pintotambém trabalhou com meu avô e comi-go quando passei pela Redação de O Glo-bo. Meu avô sempre formou uma parceriaimportante com os fotógrafos.

Jornal da ABI – Como foi a relação de EdmarMorel com a ABI?

Marco Morel – Ele se associou em 1946,cheguei a ver a ficha dele. A filiação acon-teceu no final da ditadura Vargas, a con-vite de Herbert Moses. Nesta época os co-munistas começaram a se aproximar maisda Associação. Meu avô tinha na ABI seuprincipal campo de atuação política etambém como a sua segunda casa, a trin-cheira onde se fazia a defesa da liberda-de de imprensa e de melhores condiçõespara a categoria. Meu avô visitava a As-sociação diariamente e sempre atuou nafunção de Conselheiro, nunca em cargosda diretoria. Ele freqüentava o bar Ver-melhinho, em frente à ABI, com a turmaformada por Eneida, Alvarus, Rubem Braga,entre outros grandes nomes da imprensa.Ele integrou a comissão da ABI que visi-tou Hélio Fernandes na prisão e fez pres-são para libertá-lo. Hélio foi o único jor-nalista preso no Governo JK. Quandoaconteceu o golpe de 1964, meu avô aju-dou a criar a Comissão de Direitos Huma-nos e Liberdade de Imprensa da ABI, cujoobjetivo era atuar em defesa dos jornalis-tas perseguidos, nos casos de censuraprévia e nas prisões. A ABI era tambémum espaço de sociabilidade, especialmen-te quando havia eleição. Todo mundo iaprá lá, jornalistas, intelectuais de esquerdae políticos cassados. Até os cassados po-diam votar na ABI. Este espaço de liber-dade e resistência foi vivenciado por meuavô de uma maneira muito intensa. Elefez parte do Conselho Administrativo daCasa de 1946 até morrer. Foi tambémhistoriador da ABI, juntamente com Fer-nando Segismundo, os primeiros a escre-ver sobre a trajetória da Associação. Meuavô recebeu o Prêmio Gustavo de Lacer-da, da ABI, pelo livro A Trincheira da Liber-dade – História da ABI, com prefácio deHelio Silva, apresentação de José NiloTavares e introdução de Gerardo MeloMourão. Foi escrito em 1968, um anomuito difícil. Todos os jornais e editorasrecusaram publicar. Logo depois veio o AI-5. Enquanto não publicava, meu avô foiaprofundando o livro que, inicialmenteera a biografia de Gustavo de Lacerda, masfoi ampliado para História da ABI. A obrasó foi publicada em 1985, quando acaboua ditadura. Eu comecei a participar dos

Edmar Morelna noite deautógrafos

de seu livroA Revolta

da Chibata.Ao seu lado,

João Cândido,o Almirante

Negro.

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O Supremo Tribunal Federal-STFiniciou no dia 2 de agosto o julgamen-to de 38 acusados, entre deputados e ex-deputados, ex-ministros, empresários ebanqueiros, suspeitos de envolvimen-to no maior escândalo de corrupção napolítica brasileira, conhecido como ocaso Mensalão. Nessa data emblemáti-ca, o jornalista, historiador e pesquisa-dor Marco Morel, professor da Univer-sidade do Estado do Rio de Janeiro-Uerj,lançou na Livraria Argumento (RuaDias Ferreira, 417, Leblon), o livroCorrupção – Mostra a sua Cara (Casa daPalavra), no qual ele apresenta estudosobre a corrupção no Brasil desde oinício da colonização até os dias atuais,incluindo episódios notórios, persona-gens que acumularam práticas ilícitase uma galeria de cidadãos de reconhe-cida trajetória no combate à corrupção.Fotos, charges e cartuns ilustram a obrae acentuam o viés crítico da pesquisa.

No texto de apresentação, MaurícioAzêdo, Presidente da ABI, destaca a re-levância histórica do livro e a urgênciado debate em torno do tema:

“Marco Morel faz aqui um mergu-lho no Brasil Contemporâneo, relatan-do os acontecimentos que marcaram asúltimas décadas da vida nacional nocampo político e social, em que nãoforam poucas nem isoladas as manifes-tações de desapreço à coisa pública e àética no exercício das funções que de-veriam ser honradas e dignificadas enão o foram. Sem falso moralismo,Morel disseca com visível rigor críticoestes tempos em que a improbidadecaminha à solta, sem que a cidadaniaencontre consolo de perspectivas deextinção desses hábitos e de punição deseus agentes mafiosos.”

O convite para escrever sobre a cor-rupção no Brasil representou um impor-tante desafio, explica Marco Morel: “Olivro foi uma proposta da Editora Casada Palavra, aceitei o desafio, mesmo nãosendo, até então, minha área de estudos.Pesquisa e redação duraram cerca de umano. Não realizei nenhuma entrevista.Na verdade é um trabalho de historiador,com estilo jornalístico, entre crônica enoticiário histórico, fora dos padrõesacadêmicos. Há muito besteirol históri-co publicado por aí fazendo sucesso,como os trabalhos de Laurentino Gomese Eduardo Bueno. Mudei a linguagem,mas não abri mão dos conhecimentosque adquiri. Baseei-me em documentosdos séculos XVI a XVIII, publicados emlivros, bem como em jornais do séculoXIX, sobretudo os ilustrados. Para o sécu-lo XX, recorri à minha memória e com-plementei com novas pesquisas em jor-nais e livros. Alguns poucos casos em que

encontros na ABI ainda muito pequeno,levado por meu avô. Só comecei a enten-der o significado de tudo na adolescência.Lembro que aos 16 anos estive em umaeleição na ABI e me aproximei de CarlosDrummond de Andrade para conversar.“Estou sempre na ABI porque aqui eu pos-so votar”, disse Drummond. Freqüentei aABI até os vinte e tantos anos. MaurícioAzêdo me conhece desta época. Depoisque o meu avô morreu, estive na ABI emum dia de eleição, novamente. BarbosaLima Sobrinho, aos 99 anos, estava na salarodeado por muita gente. “Hoje é dia deeleição”, disse ele. “Não adianta vocês fi-carem aqui parados. É preciso sair paraconversar com o eleitor”, alertou o jorna-lista. Quando ficamos sozinhos na sala,ele permaneceu em silêncio por uns cin-co minutos e disse: “Sinto muitas sauda-des do seu avô”. “Eu também sinto” res-pondi. E permanecemos em silêncio.

Jornal da ABI – O livro de memórias deEdmar Morel também demorou para serpublicado?

Marco Morel – História de um Repórter sófoi publicado dez anos após a morte demeu avô. Foi pela Editora Record, nagestão da Luciana Vilas Boas. O pai deLuciana, Augusto Vilas Boas, foi membroda ABI e pertenceu à mesma geração demeu avô. Uma parte deste livro foi dedi-cada à ABI. Toda a família participou daorganização da obra. Eu e minha irmã,Mônica Morel, ajudamos com o materi-al do livro e minha avó na transcrição dasfitas. Meu pai, Mário Morel, tambémajudou. Minha avó Aurora era quem da-tilografava quase todos os textos do meuavô. Ela tinha formação naquele curso dedatilografia exigido na época. Meu avônão gostava de datilografar, não tinhapaciência. Na Redação, ele catava milho.

Jornal da ABI – As reportagens de EdmarMorel renderam boas manchetes e tam-bém muitos prêmios como João do Rio(Prefeitura do Rio de Janeiro, 1954), Gus-tavo de Lacerda (ABI, 1968), Vladimir

Herzog de Direitos Humanos (Sindicatodos Jornalistas de SP, 1979) e OsvaldoOrico(ABL, 1984). Ele produziu um grandeacervo a partir da documentação prove-niente do trabalho na imprensa e como es-critor. Em que circunstâncias o acervo delefoi doado?

Marco Morel – A doação foi feita para aBiblioteca Nacional depois que ele morreu.O vasto material estava guardado na casada minha avó, que na época ainda era viva.Não tinha sentido ficar ali porque haviamuita coisa. Ele guardava as reportagensque escreveu, a correspondência, fotogra-fias e o material de pesquisa para os livros.Conheci um funcionário da BibliotecaNacional, onde eu ia sempre pesquisar, eeles me perguntaram se eu gostaria de doaro arquivo de meu avô. Achei melhor quetoda a documentação ficasse em boas con-dições de armazenamento e aberta aopúblico para preservar a memória dele.Jamais pensei em vender nada, pois nãofaria o menor sentido. Seria contraditóriocom a trajetória de Edmar Morel.

Jornal da ABI – Edmar Morel foi homena-geado com nome de rua no Rio de Janeiro.

Marco Morel – O projeto é de autoria doMaurício Azêdo, quando era vereador.Eles trabalharam juntos no jornal O Se-manário, porta-voz das Ligas Camponesas,de Francisco Julião. Meu avô dizia queviveu neste jornal o ponto alto de suacarreira. No Semanário ele pôde dar ex-pressão ao seu ponto de vista políticocomo jornalista de esquerda, de perfildemocrático, defendendo as reformas debase, fazendo reportagens de denúnciasobre a seca. Era uma Redação formadapor pessoas de esquerda que foi fechadaapós o golpe de 1964. O jornal pertenciaao Osvaldo Costa e no final meu avô eraquem estava mais à frente da Redação.Entre os colaboradores, Barbosa LimaSobrinho e Josué de Castro. Fichel Davittambém trabalhou lá. Esta experiênciamarcou muito meu avô, pois foi o últimojornal onde ele trabalhou. No dia 31 demarço de 1964, quando percebeu que

estava saindo o golpe, ele correu para aRedação, que ficava na Avenida FranklinRoosevelt, e saiu queimando e rasgandotudo para não deixar rastro. Passou o diainteiro lá sozinho. Na manhã seguinte,invadiram a Redação, saquearam as coi-sas, mas não encontraram nada. É por issoque os pesquisadores não conseguemencontrar material do Semanário (risos).

Jornal da ABI – Como você avaliaria ocenário atual do jornalismo e a trajetóriade Edmar Morel?

Marco Morel – O jornalismo das Reda-ções perdeu muito em relação à época domeu avô, mas ficou mais poderoso, maisinfluente. Os jornalistas que têm uma vi-são crítica podem atuar em outros espa-ços que não o das grandes Redações, sinô-nimos de empresa e de grandes aparelhospolíticos. A imprensa sempre teve umaposição política desde os primórdios desua existência, mas agora se afigura a uminstrumento de Estado ou de grupos eco-nômicos. O jornalista está virando umfuncionário burocrata. A única saída écriar uma saída e ocupar os espaços alter-nativos, seja pela internet ou pelos mo-vimentos sociais. É preciso reinventar ojornalismo porque este que se consolidounas grandes Redações, nas grandes revis-tas, é cada vez pior profissional, políticae culturalmente.

Jornal da ABI – Edmar Morel teria optadopelo jornalismo dentro desta conjuntura?

Marco Morel – Possivelmente, não. Épor isso que as novas gerações não reco-nhecem a figura de meu avô e de outrosnomes importantes da imprensa. A per-da do senso crítico é um fato. Não sabemnem que um dia existiu um jornalismoassim. Se ele estivesse vivo hoje estariafazendo o que fez nos últimos anos devida. Ele trabalhou até morrer, mas nãoteve casa própria, nada de material, em-bora vivesse com conforto e dignidade.Ele atuou fora das Redações nas funçõesde assessor de imprensa e de relaçõespúblicas, como na Santa Casa da Miseri-córdia. Ele não estaria trabalhando emgrandes jornais, onde não há mais espa-ço para ele e sua geração. Nos últimos anosda vida ele já não tinha mais espaço emjornal nenhum. Foi uma ruptura muitogrande, sobretudo após o golpe de 1964.Depois da ditadura ele colaborou algumtempo na Tribuna da Imprensa, pois oHélio Fernandes publicava os textos dele.A partir de 1964, foram criadas geraçõesde jornalistas que não tiveram contatocom a geração anterior, criando este va-zio. Ao mesmo tempo, a ditadura foi cer-ceando o perfil de jornalista mais crítico,mais investigativo. Não apenas a ditadura,mas também a evolução das empresas soba influência do grande capital.

Jornal da ABI – Como está a programa-ção do centenário?

Marco Morel – A Secretaria de Cultu-ra do Ceará informou que pretende re-lançar o livro Dragão do Mar - O Janga-deiro da Abolição. A Biblioteca Nacionalmostrou interesse em montar uma expo-sição. Saiu uma nota na coluna do Ancel-mo Gois e será publicada esta matéria noJornal da ABI, o que já está sendo ótimo!

CENTENÁRIO EDMAR MOREL, UM GIGANTE DO JORNALISMO

A foto revela a admiração de Marco Morel pelo avô desde criança: “Tinha também umapersonalidade muito irrequieta que se identificava com o trabalho da imprensa.“

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“Fugi da lógica dos ‘grandes escânda-los’ e das revelações bombásticas, que jánão constituem novidade, somos comfreqüência bombardeados com esse tipode notícia. O conteúdo do livro se restrin-giu a meu próprio universo de pesquisa,dentro dos critérios que falei. Citei casosde corrupção corrosiva, isto é, com di-mensão social, como desvio de verbaspara remediar a grande seca de 1877 edas secas de 2011, já no Governo Dilma.Citei a famosa reportagem sobre a éguaFarpa, de meu avô Edmar, quando haviaracionamento de leite para toda a popu-lação, menos para os cavalos do JockeyClube Brasileiro. Lembrei da matériafeita por meu pai Mário sobre a corrup-ção na Polícia, um dos principais escân-dalos do Governo JK, quando pela pri-meira vez se comprovou tal prática atra-vés da imprensa. Sem esquecer a mar-cante confusão entre público e o priva-do, incluindo situações bem atuais,como a maneira de se conduzir no trân-sito ou o plágio nos trabalhos escolarese universitários.”

Há exemplos de probidadeO compromisso com os valores demo-

cráticos e de incentivo à cidadania podeviabilizar o combate à corrupção no Bra-sil a partir de esforços isolados e inicia-tivas de grande mobilização social, su-blinha Marco Morel:

“Vivemos numa sociedade de consu-mo onde tudo pode se tornar descartá-vel, inclusive os afetos, as memórias e asinformações. Não adianta jogar toda aculpa apenas nos ‘políticos’ lá de cima.Cada um de nós é político em sua área deatuação pessoal. Não tenho uma fórmulaou solução para problema tão vasto, eacho pouco provável que alguém tenha.Em linhas gerais, vejo que as transfor-mações só podem vir da sociedade, nãode governos ou Parlamentos. A partir detomada de consciência coletiva e mobi-lização efetiva, podem surgir esperanças.Há também uma tradição anticorrupção

no Brasil que precisa ser levada em con-ta, assinalo isso no livro, que termina comuma lista de pessoas, notórias ou anôni-mas, que tiveram oportunidade para seapropriarem do dinheiro alheio e não o fi-zeram. A lista é encabeçada pelo nossosaudoso Barbosa Lima Sobrinho. E tive oorgulho de o Prefácio do livro ter sido es-crito pelo jornalista Maurício Azêdo, Pre-sidente da ABI, que leva adiante esta li-nhagem democrática e ética.”

O papel dos jornalistasMorel assinala ainda o papel decisivo

da imprensa no combate à corrupçãoatravés do exercício pleno da liberdadede expressão:

“Nós jornalistas temos esta responsa-bilidade. Hoje em dia a liberdade de im-prensa se confunde, em certos espaços,com o laissez-faire de grandes empresasde enormes negócios, articuladas a gru-pos políticos conservadores. Estão pre-ocupadas com o monopólio da informa-ção e em vender visão de mundo únicae fechada. Ainda assim, a liberdade deexpressão, repito, é crucial. Como dizi-am os anarquistas na Guerra Civil espa-nhola, ‘el bien más preciado es la liber-tad’. Os jornalistas, como seres humanos,não estão imunes às contradições.”

“Conto no livro o caso da primeiracaricatura impressa no Brasil, em 1837:retrata o brilhante jornalista e escritorJustiniano José da Rocha recebendo di-nheiro para escrever a favor do Governo– o que na época, parece, causava escânda-lo. Justiniano acabou admitindo que erapago por ministros para redigir jornais;algumas vezes recebeu o pagamento emescravos africanos. Trazendo para os tem-pos atuais, existe o risco do cinismo e dopessimismo crônicos, embora às vezescompreensíveis, mas isto decorre da so-ciedade de consumo e da defesa dos pa-drões capitalistas que buscam desmobili-zar as pessoas e roubar-lhes a esperança.

As medidas governamen-tais e parlamentares nestesentido, hoje, são restritas einsuficientes. Mas concor-do com o poema de BertoltBrecht, ‘nada é impossívelde mudar’. Como historia-dor, avalio que os livros nãofazem revoluções, mas po-dem, quem sabe, ajudar namobilização de consciên-cias. Um livro é sempreuma contribuição limita-da, mas faz parte de um mo-mento, de um contexto emque cresce a insatisfaçãocom a corrupção no Brasil.Pode ser um bom começo.”(Cláudia Souza)

A corrupção, desde Tomé de Souza,numa pesquisa de Marco Morel

HISTÓRIA

Rouba-se e frauda-se desde a época do primeiro governador-geral, ainda no tempo do Brasil Colônia.

não tive elementos para fazer denúnciasredigi como ficção. Tive total liberdade deescrever o que quis, a relação com a Editorafoi ótima. A publicação tem muitas ima-gens interessantes, pesquisadas pela histo-riadora Renata Santos”.

A corrupção se reinventaEm destaque na capa do livro, uma

frase de Luís Fernando Veríssimo (“Esseestranho País de corruptos sem corrupto-res”) resume um ponto essencial da cor-rupção, mas não toda a sua complexida-de, analisa Marco Morel: “A ocultação ouproteção dos agentes corruptores indicaalgo. A meu ver, não basta acabar com acorrupção (sonhar não custa!) para ter-mos uma sociedade mais justa. A corrup-ção é causadora, mas também causadapela injustiça, desigualdade e violência.É importante combater ambas, a desones-tidade e a desigualdade social”.

O contexto histórico e socioculturalbrasileiro foi determinante para o acúmu-lo de casos de corrupção ao longo da His-tória do País, frisa o autor. “A corrupção éum problema da espécie humana, não dosbrasileiros apenas. Em cada sociedade elaassume formas, dimensões e característi-cas próprias. Em alguns países há maismecanismos de controle, em outros a cor-rupção tem pouca visibilidade. Não en-tendo tal fenômeno como característicagenética e hereditária, mas, sim, historica-mente constituído. A corrupção no Brasiltornou-se uma tradição cultural, políticae econômica relacionada às formas de ex-ploração e controle do período colonial.Depois foi parte integrante da formaçãodo Estado nacional, de seu modo de fun-cionar. Mas não há uma linha de continui-

dade imutável ao longo do tempo, das su-postas origens até hoje. O que era ilícitonum período, não é em outro. Não adian-ta jogar a culpa toda no passado. A corrup-ção é reinventada em cada época.”

Ademar, Maluf, LacerdaOs episódios de corrupção envolvendo

malversação do dinheiro público e o famo-so jeitinho brasileiro nortearam os crité-rios de seleção dos casos observados nolivro: “Se eu fosse fazer uma história dacorrupção no Brasil... eu não conseguiriarealizar! Seria, infelizmente, uma enciclo-pédia com dezenas de volumes inacaba-dos... Fiz alguns recortes. Considerei doistipos de corrupção: mau uso do dinheiropúblico e pequenos comportamentos dodia-a-dia, arraigados em nossas vidas. Apartir daí tirei alguns padrões: figurinhascarimbadas como Ademar de Barros ePaulo Maluf mas, também, o envolvimen-to de Carlos Lacerda com ojogo do bicho, apesar da pos-tura moralista que ele sem-pre assumiu. Há vários indí-cios de que o bicheiro RaulBarulho financiou a campa-nha de Lacerda ao Governoda Guanabara”.

Para citar exemplos re-presentativos da corrupçãono Brasil, o autor buscoureferências em sua práticade pesquisa e nas reporta-gens de seu avô, EdmarMorel, um dos jornalistasmais combativos da Histó-ria da imprensa brasileira, ede seu pai, o também jorna-lista Mário Morel.

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O Plenário do Senado aprovou porexcepcional votação no dia 7 de agosto aProposta de Emenda à Constituição nº33/2009, conhecida como Pec dos Jorna-listas ou Pec do Diploma. A proposta, querecebeu 60 votos favoráveis e quatrocontrários no segundo turno de votação,torna obrigatório o diploma de cursosuperior de Comunicação Social, na ha-bilitação Jornalismo, para o exercício daprofissão. A matéria seguiu para exame daCâmara dos Deputados e poderá ser pro-mulgada após a votação nessa Casa Legis-lativa se não houver modificações notexto originário do Senado.

Apresentada pelo Senador AntônioCarlos Valadares (PSB-SE), a Pec dos Jor-nalistas acrescenta novo artigo à Cons-tituição, o 220-A, estabelecendo que oexercício da profissão de jornalista é“privativo do portador de diploma decurso superior de Comunicação Social,com habilitação em Jornalismo, expedi-do por curso reconhecido pelo Ministé-rio da Educação”.

Pelo texto, é mantida a tradicional fi-gura do colaborador, sem vínculo empre-gatício, e são validados os registros obti-dos por profissionais sem diploma, noperíodo anterior à mudança na Consti-tuição prevista por essa Emenda.

O Supremo Tribunal Federal, em ju-nho de 2009, revogou a exigência do di-ploma para o exercício da profissão dejornalista. Na ocasião, por oito votos aum, os ministros acolheram uma ação doSindicato das Empresas de Rádio e Tele-visão no Estado de São Paulo-Sertesp e doMinistério Público Federal-MPF, quepediam a extinção da obrigatoriedade dodiploma.

O recurso contestava uma decisão doTribunal Regional Federal da 3ª Região-TRF-3, que determinou a obrigatorieda-de do diploma. Para o MPF, o Decreto-Leinº 972/69, que estabelecia as regras paraexercício da profissão, seria incompatívelcom a Constituição Federal de 1988.

Relator do processo, o então Presiden-te do Supremo, Ministro Gilmar Men-des, concordou com o argumento de quea exigência do diploma não está autoriza-da pela Constituição. Ele sustentou entãoque o fato de um jornalista ser graduadonão assegura qualidade aos profissionaisda área. A manifestação de Mendes foirecebida com indignação pela comunida-de jornalística, em razão da grosseiracomparação que, pretendendo fazer gra-ça, ele fez entre o trabalho de um jorna-lista e o de um cozinheiro.

Entre 1º julho de 2010 e 29 de junhode 2011, foram concedidos 11.877 regis-tros, sendo 7.113 entregues mediante aapresentação do diploma e 4.764 combase na decisão do STF.

LEGISLAÇÃO

Com uma votação consagradora, o Senado aprovou em segundo turno o Projeto de Emenda Constitucional nº 33/09, que restabelece a exigência dediploma de formação em Jornalismo para o exercício da atividade profissional. A nova batalha pela aprovação da Pec será na Câmara dos Deputados.

POR CLÁUDIA SOUZA

O Senado aprova a Pec do Diploma

Os quatro do contraO Senador Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-

SP) foi o primeiro e único a se manisfes-tar no plenário contra a Pec dos Jornalis-tas. Ele lembrou que o STF julgou incons-titucional a exigência do diploma e dis-se que esta decisão mostra que a ativida-de do jornalismo é estreitamente vincu-lada à liberdade de expressão e deve ser li-mitada apenas em casos excepcionais.

Nunes Ferreira disse que o interesse naexigência do diploma vem dos donos defaculdades que oferecem o curso de Jor-nalismo e criticou o corporativismo, que,na opinião dele, estaria por trás da defe-sa do diploma: “Em nome da liberdade deexpressão e da atividade jornalística, quecomporta várias formações profissionais,sou contra essa medida”.

Além de Aloysio Nunes Ferreira, vota-ram contra Ciro Miranda (PSDB-GO),Jáder Barbalho (PMDB-PA) e Kátia Abreu(PSD-TO).

Garantia de qualidadeAs Senadoras Ana Amélia (PP-RS) e

Lúcia Vânia (PSDB-GO) defenderam aproposta e se disseram honradas por seremformadas em Jornalismo. Para a SenadoraVanessa Grazziotin (PCdoB-AM), a apro-

Após a votação no Senado, a FederaçãoNacional dos Jornalistas-Fenaj e 31 Sindicatosde Jornalistas do País divulgaram declaração emque apontam a aprovação da Pec 33 como“passo fundamental para a correção de umadecisão obscurantista do Supremo Tribunal Fe-deral”. A declaração:

“A Fenaj e seus 31 sindicatos filiados vêm apúblico agradecer aos 60 senadores brasileirosque, no início da noite de hoje, aprovaram emsegundo turno a Pec 33/09, que restabelece aexigência do diploma de curso superior emJornalismo como condição para o exercícioprofissional. O Senado, absolutamente sinto-nizado com a opinião pública e com a catego-ria dos jornalistas, deu um passo fundamen-tal para a correção de uma decisão obscuran-tista do Supremo Tribunal Federal, que elimi-nou a exigência do diploma para acesso à pro-fissão. Os jornalistas e a sociedade brasileiraagradecem este ato em defesa do Jornalismo.

A Fenaj agradece especialmente ao SenadorAntônio Carlos Valadares, autor da Pec 33, aoSenador Inácio Arruda, que fez a relatoria damatéria, e à Senadora Lídice da Mata, que co-brou daqueles que buscavam protelar a apre-ciação da proposta o compromisso público,assumido há meses, de votá-la. Eles foram in-cansáveis na defesa da Pec, demonstrando umacompreensão singular da importância do Jorna-

Corrigindo uma decisão obscurantista

vação da Pec significa a garantia de maiorqualidade para o jornalismo brasileiro.

O Senador Paulo Davim (PV-RN) des-tacou o papel da imprensa na consolidaçãoda democracia, enquanto Magno Malta(PR-ES) afirmou que o diploma significaa premiação do esforço do estudo. Welling-ton Dias (PT-PI) ressaltou que a proposta

não veta a possibilidade de outros profis-sionais se manifestarem pela imprensa eque valorizar a liberdade de expressãocomeça com a valorização da profissão.

Para o autor da proposta, Senador Antô-nio Carlos Valadares, uma profissão nãopode ficar à margem da lei: “A falta do diplo-ma só é boa para os grandes conglomeradosde comunicação, que poderiam pagar salá-rios menores para profissionais sem forma-ção. Dificilmente um jornalista me pede aaprovação dessa proposta, pois sei das pres-sões que eles sofrem”, disse o autor.

Valadares contou que foi motivado aapresentar a proposta pela própria Consti-tuição, que prevê a regulamentação das pro-fissões pelo Legislativo. Ele salientou que seo diploma fosse retirado a profissão dos jor-nalistas poderia sofrer uma discriminação.

“A profissão de jornalista exige um es-tudo científico que é produzido na univer-sidade. Não é justo que um jornalista sejasubstituído em sua empresa por alguémque não tenha sua formação”, declarou.

O Senador Rodrigo Rollemberg (PSB-DF) sublinhou a importância da forma-ção para o desenvolvimento profissional:“O exercício da profissão de jornalistadeve ser resguardado àqueles que tiveramuma formação técnica, humanística e

lismo nas sociedades democráticas e do papel doprofissional jornalista. Igualmente, agradecemosao Presidente da sessão desta terça-feira, Sena-dor Casildo Maldaner, e aos líderes partidáriosque colocaram a votação da Pec 33 entre as pri-oridades da Casa. Também agradecemos a to-dos os senadores que apoiaram a proposta e quese empenharam pela sua aprovação.

A exigência da formação superior em Jorna-lismo é uma conquista histórica dos jornalis-tas e da sociedade. Depois de 1969, quando foiinstituída, esta exigência contribuiu decisiva-mente para modificar a qualidade do Jornalis-mo brasileiro, representando uma das garan-tias ao direito à informação independente eplural, condição indispensável para a verdadeirademocracia.

O diploma de jornalista foi derrubado danossa legislação profissional por decisão do STFem 17 de junho de 2009, que permitiu quequalquer cidadão, sem qualquer formação,possa exercer esta profissão de grande respon-sabilidade social. A decisão da maior Corte deJustiça representou um retrocesso não somentepara a categoria dos jornalistas, mas para todaa sociedade brasileira, que perde com a desqua-lificação do Jornalismo.

O Congresso Nacional respondeu de prontoa este processo de judicialização da vida nacio-nal, de caráter nitidamente conservador. No

mesmo ano de 2009, foram apresentadas duasPec’s restabelecendo a exigência do diplomapara o exercício profissional.

Hoje, após a aprovação da Pec 33 no Sena-do, a categoria e a sociedade voltam suas aten-ções para a Câmara dos Deputados, que teráde apreciar a Pec 33 em conjunto com a Pec 386,de autoria do Deputado Paulo Pimenta e rela-toria do Deputado Maurício Rands. Ambastêm o mesmo propósito: resgatar a dignidadedos jornalistas brasileiros e contribuir para agarantia do jornalismo de qualidade.

O momento é de comemoração da grandevitória, mas a mobilização dos jornalistas bra-sileiros, organizada pela Fenaj e pelos Sindica-tos de Jornalistas de todo o País, apoiada porentidades do campo do Jornalismo, como oFórum Nacional de Professores de Jornalismo-FNPJ e a Associação Brasileira de Pesquisadoresem Jornalismo-SBPJor, e respaldada pela ener-gia contagiante de estudantes de Jornalismoque engajaram-se em manifestações desde afatídica decisão do STF em 2009 até a vigília noSenado nesta sexta-feira, vai continuar paraque a Pec seja aprovada em tempo recorde naCâmara dos Deputados.

A vitória é nossa e a fazem os que lutam!(a)Diretoria da FENAJ e Sindicatos de Jor-

nalistas do Brasil.Brasília, 7 de agosto de 2012.”

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Senador Antônio Carlos Valadares: A profissãode jornalista não pode ficar à margem da lei.

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ética adequada para trabalhar com estebem precioso que é a informação.”

Os senadores do Rio de Janeiro Lind-berg Farias (PT) e Francisco Dornelles (PP)foram favoráveis à proposta. EduardoLopes (PRB), que substituiu Marcelo Cri-vella (PRB) em março deste ano na ban-cada fluminense, manteve o posiciona-mento de seu antecessor e também votouem defesa do diploma de Jornalismo.

Pressão e manobrasDesde o início da semana, lideranças

sindicais da categoria estavam em Brasí-lia, em contato com lideranças do Sena-do. Comitivas dos Sindicatos dos Jorna-listas de Alagoas, do Amazonas, DistritoFederal, Espírito Santo, Minas Gerais,Paraíba, Rio Grande do Sul, Santa Cata-rina, Goiás, e da Fenaj, além de uma de-legação de estudantes, participaram damobilização e promoveram contatos comlideranças do Senado.

Durante o encaminhamento da maté-ria a tensão aumentou quando cresceramas manobras para tentar adiar a votaçãoda Emenda. Prevaleceu, no entanto, apressão da comitiva dos jornalistas e asintervenções dos Senadores AntônioCarlos Valadares, autor da Pec, InácioArruda (PCdoB-CE), relator da matéria,e da Senadora Lídice da Mata (PSB/BA).Os três parlamentares cobraram o com-promisso público assumido pelas lideran-ças partidárias já no final do ano passado,quando a Emenda foi aprovada em pri-meiro turno, e no início do primeiro se-mestre de 2012, de votar a matéria.

Por volta das 20h30min, a Pec dos Jor-nalistas foi colocada em discussão e vo-tação. A primeira fala, única contrária amanifestar-se no microfone, foi do Sena-dor Aloysio Nunes (PSDB/SP). Sucede-ram-se diversas outras favoráveis à pro-posta. Quando o painel do Senado regis-trou, às 21h7min, o resultado da votação,jornalistas e estudantes comemoraram.Instantes depois o resultado da votaçãoespalhava-se pela internet.

“O Senado mostrou sintonia e sensibi-lidade com o desejo da sociedade e dos jor-nalistas pela qualificação e valorização dojornalismo. Temos certeza de que, com maisluta e mobilização, a Câmara dos Deputa-dos fará o mesmo”, declarou o Presidente daFenaj, Celso Schröder.

A comitiva dos jornalistas permaneceuem Brasília no dia seguinte, reforçada pordirigentes de outros Sindicatos de Jorna-listas e de uma delegação de dirigentes sin-dicais e estudantis de São Paulo. A mobi-lização se concentrara em contatos comlideranças da Câmara dos Deputados, vi-sando à definição de uma estratégia paraacelerar a tramitação da Emenda em con-junto com a Pec 386/09, de autoria doDeputado Paulo Pimenta (PT/RS).

“Demos um importante passo. Ficou cla-ro que a sociedade e os parlamentares estãocontra a decisão maniqueísta do SupremoTribunal Federal(STF) que considerou a exi-gência do diploma uma ameaça à liberdadede expressão. Vamos restaurar a exigênciado diploma e seguir defendendo uma prá-tica jornalística responsável, que só é pos-sível com a formação”, disse a Presidente doSindicato dos Jornalistas do Município doRio de Janeiro, Suzana Blass.

Em mensagens dirigidas ao governa-dor Sérgio Cabral e ao Prefeito Eduar-do Paes, o ex-Deputado Carlos AlbertoCaó propôs que seja dado o nome do ex-Senador Abdias Nascimento à Via Li-ght, ligação entre a cidade de NovaIguaçu e o parque de Madureira, a se-gunda maior área de lazer do Municí-pio do Rio.

"Parte significativa dos negros flu-minenses mora tanto na cidade vizinhaquanto no subúrbio de Madureira", diza mensagem de Caó, que foi membro daAssembléia Nacional Constituinte de1988-89 e é sócio da ABI. Suas palavras:

"Digníssimo Senhor Sérgio Cabral,Em primeiro lugar, minhas cordiais e

fraternas saudações, extensivas a seupai, antigo companheiro na luta pela res-tauração da democracia no País; em se-gundo lugar quero externar meus agra-decimentos pelas palavras elogiosas àminha pessoa por ocasião da assinatura,há cerca de um ano, no Palácio Guana-bara, da lei que disponibiliza 20% dasvagas de concursos do Estado para ne-gros e índios. Isso nos dá a certeza de quea luta de todos nós, brasileiros e nãobrasileiros e negros e não negros, masacima de tudo de qualquer pessoa debom senso, tem embasamento na Justi-ça, que lentamente vem sendo feita àluta empreendida pelo mais remoto an-cestral dos negros brasileiros.

Por último, mas por isso não menosimportante, quero lhe parabenizar pelainiciativa de alinhamento e harmoni-zação com os âmbitos municipal e fe-deral. Isto representa o resgate da plenacidadania e justiça da população flumi-nense, negada até o Governo de LuizInácio da Silva, o nosso Lula, pelos seusantecessores, em retaliação à posiçãooposicionista de nosso povo. Em nossoEstado, somente o Governador LeonelBrizola, fundador do meu partido, PDT,aproximou-se do que o senhor trouxe eestá fazendo para o Rio de Janeiro, so-mente não o conseguindo em sua pleni-tude pelos seus ideais socialistas, pro-gressistas e inclusivos, sendo, por isso,tolhido por aqueles que ocupavam, àque-la época, o cargo mais alto dos Executi-vos Municipal e Federal.

Não é à toa que o nosso Estado é hojeo recordista na captação de verbas peloGoverno Federal. E isso se dá por doismotivos: a sua iniciativa, na harmoniza-ção dos poderes e o discernimento doPresidente Lula e de sua sucessora, a Pre-sidenta Dilma Rousseff, do quanto nos-so Estado foi discriminado ao longo dosanos, não somente no período da ditadu-ra, mas também alguns anos após o seutérmino. Não apenas repasses federais nosforam negados, como receitas do nossoEstado, oriundas da riqueza, foram sola-padas em sessões secretas e desleais, como

as Nascimento. Não postulamos, porexemplo, seu nome na Transcarioca, queligará o Aeroporto Internacional TomJobim à Barra da Tijuca, ou qualquerobra similar.

Mas há uma, que, especificamente,traduz fielmente a existência deste gran-de brasileiro, paulista por nascimento ecarioca por adoção: a Via Light, que ligaráa cidade de Nova Iguaçu, na BaixadaFluminense, a Madureira, especifica-mente ao Parque de Madureira, aquelaque será a segunda maior área de lazerdo Município.

Excelentíssimo Governador SérgioCabral, parte significativa dos negrosfluminenses mora tanto na cidade vi-zinha quanto no subúrbio de Madurei-ra. A presença do povo negro é marcan-te tanto na área econômica, com o cul-tivo de café pelos escravos, ainda hojenotada nas ruínas de várias fazendas emNova Iguaçu, quanto na área cultural nosubúrbio de Madureira, denominada aCapital do Samba.

Excelentíssimo Governador SérgioCabral, louvamos e endossamos todasas iniciativas – UPP, UPAs, vias expres-sas e outras obras. Por isso acreditamosque esta obra, a Via Light, que ligaráNova Iguaçu ao Parque de Madureira, so-mente será perfeita se for denominadacom o nome de Senador Abdias do Nas-cimento, sendo esta homenagem a maisfiel tradução da existência de nossogrande líder.(a) Carlos Alberto Caó Oliveira dos Santos"

SUGESTÃO

Será esta uma homenagem marcante ao povo negro, diz o ex-parlamentar.

Caó propõe nome deAbdias para a Via Light

qualquer pessoa razoavelmente beminformada sabe. Por isso, o momento quenosso Estado passa, sob seu Governo, masnada mais é do que a justiça sendo feitapelos anos de retaliação e descaso impin-gidos à nossa população. A harmoniaentre os três âmbitos – municipal, esta-dual e federal – capitaneada por V. Ex.ª,sem demagogia, tem sido a redenção denosso Estado e sua população.

Governador Sérgio Cabral, como osenhor muito bem sabe, a Cidade do Riode Janeiro tem como característica desua topologia a alternância de áreas no-bres e carentes em qualquer direção quese vá. Uma das peculiaridades da nossacidade, incluindo-se os Municípios vi-zinhos que formam a área do GrandeRio, sempre foi a convivência, na mai-oria das vezes civilizada, de grande partede seus habitantes em lugares comuns,independente de sua classe social; assimocorre nas praias, nos estádios ou emqualquer lugar público, onde são realiza-dos eventos de grande porte. Este é operfil do carioca, propalado nos quatrocantos do planeta.

Em decorrência da realização de me-gaeventos – Copa das Confederações,Copa do Mundo, Jogos Olímpicos e Para-Olímpicos –, obras de grande porte vêmsendo realizadas em todo o Brasil e noRio de Janeiro, onde especificamenteserão realizadas as Olimpíadas 2016.

Excelentíssimo Governador SérgioCabral, acreditamos existirem obras deporte correlato à importância de Abdi-

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Segundo Caó, “a Via Light, que ligará Nova Iguaçu ao Parque de Madureira, somenteserá perfeita se for denominada com o nome do Senador Abdias Nascimento”.

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“Vestido de couro curtido, das alparcassolidas ao desgracioso chapéo de abas lar-gas e affeiçoado aos arriscados lances davida pastoril, o jagunço traiçoeiro e ousa-do rompe-os, atravessa-os, entretanto,em todos os sentidos, facilmente, zom-bando dos espinhos que não lhe rasgamsiquer a vestimenta rústica, vingandocelere como um acrobata as mais altasarvores, destramando, dextro, o amara-nhado dos cipoaes. Não ha persegui-lo noseio de uma natureza que o créou á suaimagem – barbaro, impetuoso, abrupto.”

Costuma-se dizer que na guerra nãoexistem vencedores. Muito menos bele-za. Mas o relato do início das batalhas emCanudos, feito pelo correspondente Eu-clides da Cunha e publicado na primeirapágina de O Estado de S. Paulo de 17 dejulho de 1897, mostra o contrário. Pelomenos, nas páginas da imprensa e da lite-ratura. A partir daquelas reportagens épi-cas no sertão baiano surgiria um dos gran-des clássicos das letras em todo o mundo:Os Sertões. Agora, páginas como essa, quemarcaram época e fizeram a História,estão novamente ao alcance do público,com a digitalização e disponibilização detodo acervo do Estadão na internet.

São 137 anos de jornais na rede, com maisde 2 milhões e 643 mil páginas, o suficien-te para ocupar 2 mil dvds ou 60 potentes ser-vidores. Jornais que vão desde os tempos emque a publicação foi criada por um grupo derepublicanos e abolicionistas, em 1875, e sechamava ainda A Província de S. Paulo, até àsedições mais atuais, incorporadas ao acer-vo diariamente. Estão lá uma série de regis-tros: textos anunciando a abolição da escra-vidão no Brasil; a mudança da Monarquiapara a República; matérias sobre as duasgrandes guerras mundiais; revoluções comoa do Tenentismo, em 1924, e a Constitu-cionalista, de 1932; artigos como um deMonteiro Lobato, em 1917, criticandoAnita Malfatti e jogando lenha na foguei-ra em que se transformaria a Semana deArte Moderna de 1922; e, claro, as famosaspáginas censuradas, nas quais há a opção deler o texto original, com os riscos do censor,ou a versão que foi às bancas, com trechosde Os Lusíadas. Relatos que hoje se encon-tram nos livros de História, mas sem aanálise fria da posteridade. Escritos no ca-lor da hora, marcados pelas minúcias dosacontecimentos de cada dia e registradossob a ótica viva, ainda que tantas vezesimperfeita, do jornalismo.

Um conteúdo que é riquíssimo, sejapara pesquisadores, seja para meros curi-

acontecimentos relevantes relembrados.Uma estratégia que facilita e muito anavegação pelo conteúdo; afinal, pormelhor que esteja a qualidade da digita-lização, ler textos centenários, do tempoem que ainda não se usava o lide e osautores abusavam de empolados narizes-de-cera, com uma diagramação que trazia12 colunas, corpos diferentes e impressãofeita a chumbo com tipos móveis, não édas tarefas mais fáceis e agradáveis. Assim,biografias montadas com base no mate-rial do jornal, páginas selecionadas e in-dicadas pelo editor, seleção dos principaisacontecimentos em determinado dia ousugestões de notícias por década promo-vem interação e ajudam os leitores.

Com apenas poucos dias no ar, o acer-vo recebeu mais de 138 mil visitas a 675mil páginas. Cada pessoa gastou em mé-dia 15 minutos em suas pesquisas, o do-bro da média de tempo que se costumausar em sites na internet. Entre as maisprocuradas estavam as matérias censura-das durante a ditadura militar. Tanto queelas ganharam uma página própria. Nomomento de realizar as pesquisas, tam-bém foi incluída a opção de fazer a bus-ca somente nesse tipo de conteúdo.

“Trata-se da maior memória viva emtermos de cobertura da imprensa no Bra-sil. Não somente em quantidade, mastambém em termos de relevância, já queo jornal foi o maior e mais importante doPaís durante um bom tempo. Tentamosoferecer tudo isso ao leitor da maneiramais descomplicada e interativa possível.No acervo é possível conhecer os princi-pais fatos, acompanhar a evolução dotexto jornalístico e dos anúncios, deempresas ou de classificados”, afirmaRoberto Gazzi, Editor-Chefe do Estadão.

Mais que imagensA preocupação da família Mesquita em

preservar a História de sua instituição nãoé nova. A partir dos anos 1980, o jornalfirmou convênios com instituições comoa Universidade de São Paulo-Usp paramanter seu acervo completo e bem conser-vado. A preocupação era manter mais deuma coleção da publicação, fosse na Bibli-oteca Nacional, no Rio de Janeiro, fosse naBiblioteca do Congresso Americano, emWashington, para evitar tragédias como osincêndios da Record, da Tupi e da Globo,que consumiram boa parte da memória datelevisão brasileira. Nada, no entanto,como o projeto que se realiza agora.

Roberto Gazzi classifica a digitaliza-ção e disponibilização de todas as ediçõesdo jornal como um “sonho”. Primeiro, porcausa da dificuldade de ser realizada.Segundo, pelo preço. A direção não con-firma, mas um projeto desse porte custamilhões de reais. Sua realização só setornou possível por conta do apoio rece-bido de patrocinadores como o Bradescoe a Fundação Armando Álvares Penteado(Faap). Eles ajudaram a financiar o traba-lho, inclusive, da Tractus, uma consulto-ria externa especializada, contratada porlicitação e que foi encarregada de realizara digitalização do material sob a coorde-nação da equipe do Estadão.

O trabalho começou em 2010, quan-do o Grupo Estado finalmente reuniu ascondições necessárias para que tudo fosse

POR MARCOS STEFANO

IMPRENSA

O resgate históricodo Estadão

Ao colocar na internet todas as suas edições desde 1875, o mais antigo diário paulista disponibilizapara o público um acervo único que reúne mais de 2 milhões de páginas e textos que fizeram a História.

osos. Apesar de O Estado de S.Paulo não sero mais antigo jornal em circulação noBrasil, seu acervo é singular. Publicaçõescomo O Diário de Pernambuco, fundado 50anos antes, e o Jornal do Commercio, do Riode Janeiro, criado em 1827, por exemplo,são mais antigas, mas não têm um mate-rial tão vasto e relevante. O jornal pau-lista também não é o primeiro a disponi-bilizar suas edições na rede. O The NewYork Times, dos Estados Unidos, foi um dosprimeiros a oferecer seu imenso acervo nainternet. Porém, não tão aberto quanto oda publicação brasileira e com uma tec-nologia que oferece navegação bem mais

limitada. Ao acessar o acervo do Estado,ver as edições por data é apenas uma dasalternativas do internauta. Ele tambémpode pesquisar palavras, obter gráficoscom a incidência dos termos por décadae por ano, buscar determinadas persona-lidades ou se debruçar sobre tópicos, quevão das Olimpíadas às notícias sobre osconflitos entre Israel e Palestina ao lon-go dos anos.

Melhor: a página está em constanteatualização, não é estática. Não apenaspor conta das novas edições que diaria-mente são adicionadas, mas por assuntosimportantes que ficam em destaque ou

Soldado brasileiro lê O Estado de S.Paulo nas trincheiras durante a Primeira Guerra Mundial.

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realizado, e durou intensos 14 meses. Emsuas diferentes fases, o projeto envolveucerca de 60 profissionais de diversas áreas,entre jornalistas, historiadores, arquivis-tas, bibliotecários, designers, publicitári-os, educadores, técnicos de informática,programadores e engenheiros. Da digita-lização à construção de um ambiente ade-quado para todo esse conteúdo. O desa-fio era garantir a qualidade de leitura daspáginas no novo formato. Com um altopadrão de qualidade estabelecido, sempreque a cópia digital extraída do microfil-me ou da edição impressa não atendesseaos vários critérios técnicos, era precisobuscar outra fonte.

“Acredito que o nível de qualidade sejaúnico no mundo. Como precisávamosgarantir a qualidade para leitura, recorre-mos a diversos acervos. Além do nosso, oda Biblioteca Nacional, o do ArquivoPúblico do Estado de São Paulo, o da Bi-blioteca Mário de Andrade e outros. Senão estivesse bem microfilmado, usáva-mos os originais impressos mesmo”, ex-plica o jornalista Edmundo Leite, Coor-denador do Acervo.

A etapa seguinte exigiu a adaptação dagrafia, indexação e formação de um bancode dados. Não bastava que o leitor encon-trasse simples imagens na internet. Aelevada qualidade de fotografia exigiatambém uma tecnologia que permitisseo reconhecimento de palavras. A dificul-dade foi solucionada com tecnologiamoderna e a adoção do OCR (Optical Cha-racter Recognition), um tipo de softwa-re que faz o reconhecimento ótico de ca-racteres. Ele identifica as letras nas pági-nas e permite a busca por palavras ou ter-mos. Mesmo assim, várias ferramentasprecisaram ser incorporadas para melho-rar a performance do buscador. O Insti-tuto de Estudos Brasileiros-IEB, da Usp,forneceu dicionários de grafias antigaspor eles digitalizados. São eles que permi-tem equacionar as várias reformas orto-gráficas formais e outras tantas transfor-mações informais da língua portuguesa,fazendo que a pessoa encontre as muitasocorrências da palavra “pharmacia” mes-mo quando digita “farmácia” no campode pesquisa. Ainda assim, é preciso paci-ência. Não é raro o buscador confundirpalavras parecidas.

Além de atualizar termos, outra preo-cupação foi a de contextualizar informa-ções, facilitando a compreensão do leitordas notícias, por mais antigas que fossem.Para dar conta das tantas mudanças demoedas e períodos de estratosférica infla-ção atravessados pelo Brasil, por exemplo,os desenvolvedores do site criaram umconversor de valores, que permite calcu-lar quanto custariam hoje produtos, ser-viços e bens imobiliários quantificadosem classificados e reportagens do passa-do. Na busca por um índice mais confiá-vel, foi escolhido como indexador o pre-ço do exemplar do próprio jornal, exce-to em fins de semana. O cálculo é sim-ples. Divide-se o preço do produto ouserviço pelo preço do jornal na data dapublicação. Dessa conta, descobre-se onúmero de exemplares que seria possívelcomprar com tal valor. Multiplicando-seesse número pelo valor atual do jornal,encontra-se o preço atualizado.

Para descobrir quanto custou o ingres-so de arquibancada para o show de FrankSinatra no Maracanã, em 1980, bastapegar o preço do ingresso, de 100 cruzei-ros, e dividir pelo preço do exemplar dojornal em banca, no caso, de dez cruzei-ros. Com o ingresso era possível comprardez exemplares do jornal na época. Hoje,dez jornais, a três reais cada exemplar,custariam 30 reais, que seria o preço atu-alizado do ingresso. Fazer o caminhoinverso – e descobrir o poder de comprado salário em alguma data do passado –também é possível. Com isso é possívelcomparar o preço de uma casa de hoje comoutra que foi anunciada no jornal há umséculo. Ou descobrir que o salário-míni-mo de maio de 1940, então valendo 220mil réis, hoje equivaleria a 550 exempla-res do jornal ou 1.650 reais.

Fotos, áudios e receitas de boloSeguindo uma tendência mundial, o

acesso à maior parte desse material é co-brado. Algo que só não aconteceu entremaio e junho. Durante os 30 primeirosdias em que ficou no ar, o site, que faz partedo portal Estadão.com.br, foi liberado paratodos os usuários da rede. Desde o fim dejunho, quem se cadastra tem direito a vergratuitamente 20 páginas ampliadas. Aces-so irrestrito só mesmo para assinantes daversão impressa ou digital. Ainda assim, a

direção do jornal garante que o objetivomaior da empreitada é disseminar conhe-cimento. E está empenhada em firmarparcerias para tanto.

“O acervo é um presente para o Brasil.Ele preserva um patrimônio e facilita oacesso às informações que antes ficavamrestritas a repórteres e estudiosos queprocuram nossos arquivos. Já temos acor-dos com a Biblioteca Nacional, as univer-sidades estaduais paulistas, com a Bibli-oteca Mário de Andrade e com todas asunidades do Sistema Municipal de Bibli-otecas de São Paulo. Estamos ampliandocom outras bibliotecas estaduais e muni-cipais. Quem for a essas instituições tam-bém terá o acesso às páginas ampliadasliberado”, promete Roberto Gazzi.

Finda a primeira etapa de digitalização,devem ter início agora as próximas. Seráa vez de outros produtos ganharem a rede.Alguns são publicações, como o Suplementoem Rotogravura, uma revista fotográficaimpressa em papel especial e que circuloude 1928 a 1944; o vespertino Estadinho,publicado nos períodos das guerras mun-diais e que serviu de inspiração para a cri-ação da Folha da Noite, atual Folha de S. Paulo;as saudosas edições de Esporte, que saíramtodas as segundas-feiras durante váriosanos; almanaques e materiais especiais.Outros, arquivos de áudio da rádio e gra-vadora Eldorado – atual Estadão/ESPN,

De todos os profissionais que participa-ram durante 14 meses da digitalização e cons-trução do site que abriga o Acervo do Estadãona internet, ninguém se envolveu mais como projeto do que o jornalista Edmundo Lei-te. Com 16 anos de casa, ele é o Coordena-dor do Acervo e principal responsável portransformar mais de um século de informa-ção impressa em um minucioso arquivodigital, com textos e imagens que ajudam areconstruir a História recente do Brasil.

Jornal da ABI – Qual foi o maior desa-fio nesse tempo de trabalho?

Edmundo Leite – Garantir a qualidade deleitura das páginas no formato digital. Paraisso, foi preciso selecionar as melhores amos-tras de microfilmes, a matriz do processo de di-gitalização, disponíveis em diferentes acervos,no nosso, na Biblioteca Nacional e no ArquivoPúblico do Estado de São Paulo, entre outros.Um padrão de qualidade foi estabelecido paraque a cópia digital extraída do microfilme aten-desse a vários critérios técnicos. Quando essepadrão não era atingido, partíamos para umanova microfilmagem, de modo que tivéssemosum arquivo digital de qualidade.

Jornal da ABI – O Acervo não se limitaa encontrar edições antigas. Como fa-zer a ponte com o presente?

Edmundo Leite – Primeiro, com uma atu-alização constante, que incorpora automa-

com registros importantes de artistas quefizeram História na música brasileira e asprimeiras gravações de artistas como Da-niela Mercury; e as fotos. Atualmente hácerca de 200 mil fotografias já digitaliza-das, mas a proposta do Grupo Estado éfazer isso com todo o seu gigantesco acer-vo fotográfico.

Apesar da importância, nenhum des-ses é tão aguardado como o Jornal da Tar-de, especialmente em sua primeira fase,que vai de 1966 aos primeiros anos dadécada de 1970. Era o tempo da grandereportagem na imprensa brasileira e, jun-to com a revista Realidade, o JT foi um deseus principais espaços. Inovador na lin-guagem gráfica, nos assuntos e nas man-chetes – o então vespertino era vistocomo um misto entre o jornal diário e arevista semanal. Até em textos policiaisos repórteres eram encorajados a usar umestilo mais literário, transformando re-portagens em romances da vida real, talqual fazia o New Journalism nos EstadosUnidos. Mais do que saudosismo, paramuita gente ter acesso novamente a essestextos é como retornar ao melhor que ojornalismo brasileiro já produziu: as pá-ginas da História do Brasil. Mesmo debai-xo de pesada censura. Afinal, tão marcan-tes quanto as poesias de Luís de Camõesno Estadão, eram as célebres e inesquecí-veis receitas de bolo do JT.

ticamente cada nova edição publicada. Mastambém pelo uso que fazemos desse acer-vo. Não se trata realmente apenas de encon-trar edições antigas. O Acervo foi pensadocomo um novo canal de informações. Dia-riamente, fazemos conexões de notícias dopassado com os fatos atuais noticiados pelojornal. No dia do lançamento do Acervo, porexemplo, quando seria natural colocar aprimeira página publicada pelo jornal, em4 de janeiro de 1875, em destaque, optamospor destacar uma página de 1974 sobre ainauguração do Metrô em São Paulo, poisnaquele dia acontecia uma greve dos metro-viários que parou a cidade. A primeira fra-se da reportagem de 38 anos atrás não po-deria ser mais apropriada: “O Metrô hojeestá proibido para a população”. Não setrata apenas de saudosismo. Muita coisado passado ajuda a compreender os acon-tecimentos de hoje. Não vai demorar asurgir uma informação nova das centená-rias páginas do jornal.

Jornal da ABI – Como está sendo o retor-no do público neste primeiro momento?

Edmundo Leite – Fantástico. Estamos re-cebendo várias manifestações emocionadasde leitores que encontram coisas que jamaisconseguiriam se não fosse a digitalização.Desde menções aos pais, avós e bisavós anotícias sobre suas vidas, os lugares em queviveram, o tema da pesquisa para o traba-lho acadêmico. Algumas mensagens são to-cantes. As pessoas agradecem por poderem

reviver algo ou lerem de novo um texto queadoraram, mas ficou só na memória.

Jornal da ABI – Entre as notícias ao lon-go desses 137 anos, quais chamarammais a atenção da equipe?

Edmundo Leite – O entusiasmo tem sidotão grande que há horas em que precisamosnos conter, tamanha a vontade de compar-tilhar tudo o que há de bacana ali dentro. Umahora alguém lê um texto do Carlos Drum-mond de Andrade no Suplemento Literário, dalia pouco alguém mostra uma notícia sobre oPelé ou outro jogador de futebol ainda no iní-cio da carreira. Encontramos os primeiros re-gistros de vitória de Ayrton Senna nas cate-gorias menores do kart, em 1974; há as pági-nas censuradas, que sempre causam espan-to. É tanta coisa que seria preciso uma home-page maior que a do Estadão.com.br para darconta de tudo isso. Mas o que mais chamaatenção e emociona até hoje é o belíssimotexto da notícia sobre a abolição da escravidãono Brasil publicado na edição de 15 de maio de1888. É de arrepiar: “Já não há mais escravosno Brazil. A lei n. 3353 de 13 de maio de 1888assim o declara no meio de festas que se esten-dem por todo o paiz, para honra e gloria des-ta nação da America. Desde hontem está emvigor o excepcional Decreto da soberania na-cional que a princeza regente, em nome do im-perador, sanccionou e seus ministros o fizerampublicar. Ahi está uma victoria esplendida daopinião, a affirmação do quanto póde umpovo quando sabe fazer valer a sua vontade…”

“O acervo foi pensado comoum novo canal de informação”

POR CLÁUDIA SOUZA

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BRAZIL, UM PAIZ AGITADOSEGUNDA-FEIRA, 4 DE JANEIRO DE 1875

“Mais uma folha diaria vem offerecerá provincia de S. Paulo campo livreaos debates tão necessarios parasolução de problemas importantesque interessam a seu desinvolvimentomoral e material. Creada peloconcurso de capitaes fornecidos poragricultores, commerciantes,homens de letras e capitalistas, estáella no caso de satisfazer ás maislegitimas aspirações da rica e briosaprovincia, cujo nome toma para seutitulo; e isto justifica seuapparecimento. Esse motivo faz comque o novo jornal se apresente emcondições de poder influirdirectamente no progresso do paiz ena educação do povo, e habilital-o aser, como um escriptor distincto jádefinio, ‘o cuidadoso expositor detodos os productos da intelligenciahumana, a escola em que entramtodos aquelles que sabem soletrar’.”

Foi com uma apresentaçãopomposa que ocupou mais dametade da primeira página que oEstadão, ainda com o nome de AProvincia de São Paulo, chegou àsmãos dos leitores no começo de1875. O primeiro número ainda traziao popular folhetim, instruçõespúblicas e várias seções, como acientífica, a econômica, a judiciária,letras e artes, um noticiário comnotas breves e outro com osacontecimentos nacionais, além dosanúncios publicitários. Mesmodigitalizada, ler toda a edição é umatarefa complicada, já que a qualidadeda impressão original não é dasmelhores e vários pontos trazemmarcas pretas. Apesar disso, épossível perceber o tom de protestocontra a monarquia e contra aescravidão que marcariam osprimeiros anos da publicação.

PÁTRIA LIVRETERÇA-FEIRA, 15 DE MAIO DE 1888

“Já não há mais escravos no Brazil. Alei n. 3353 de 13 de maio de 1888assim o declara no meio de festas

governo provisorio será organisadocom o general Deodoro e QuintinoBocayuva. Affirmam outros que ogoverno será constituido pelo generalDeodoro, Quintino Bocayuva eBenjamim Constant. Foi convocadauma reunião popular paraacclamação do governo. Oministerio foi obrigado a assignar asua demissão. O barão de Ladariofoi ferido e acha-se em perigo devida’. Logo que recebemos estetelegramma, fizemos distribuir oseguinte boletim: ‘Cidadãos: Noticiasda Corte annunciam a proclamaçãoda Republica – a fórma de governoque exprime o sentimento nacional!Unamo-nos para garantir a ordem,porque o novo regimen nasce dalivre manifestação popular!’.”

“Viva a República!”. Foi com essasaudação ocupando toda a primeirapágina da edição, ainda com o títulode A Provincia de São Paulo, que ojornal anunciou o fim da monarquiano Brasil e o começo do novoregime. Com textos repletos deexclamações, a publicação dizia que anotícia não provocara entusiasmo,mas delírio indescritível. Além de dardetalhes sobre o funcionamento donovo governo, que seria encabeçadopelo General Deodoro da Fonseca epor Benjamim Constant, comentava asituação da família imperial, isoladaem Petrópolis, mostrava comorepercutiram as novas em São Pauloe entre as lideranças paulistas, elouvava o movimento militar e oExército, que acabavam de completarsua ação benéfica começada em1831: “mostrando o caminho do

que se estendem por todo o paiz,para honra e gloria desta nação daAmérica. Desde hontem está em vigoro excepcional Decreto da soberanianacional que a princeza regente, emnome do imperador, sanccionou eseus ministros o fizeram publicar. Ahiestá uma victoria esplendida daopinião, a affirmação do quanto pódeum povo quando sabe fazer valer asua vontade. (...) Está completo otrabalho de destruir e arruir de todo avergonhosa instituição, mas é precisoagora não nos esquecermos dotrabalho de reconstruir. A Patria semescravos não é ainda a Patria livre.Agora começa o trabalho de libertaros brancos assentando aconstituição politica sobre basesmais largas e seguras parafelicidade do povo e gloria nacional.”

A notícia da assinatura da LeiÁurea veio com júbilo e expressõescomo “entusiasmo” e “fim dastrevas”, que há muito não sãocomuns no jornalismo, mas erammarcantes até então. Adjetivos àparte, a vitória foi muito comemoradapela publicação, que já anunciava anova batalha que se avizinhava: peloregime republicano e por uma Pátriarealmente livre. Detalhe: umacomemoração feita com um dia deatraso, já que o jornal não circulouem 14 de maio.

DA CORTE PARA A REPÚBLICASÁBADO, 16 DE NOVEMBRO DE 1889

“Recebemos hontem o seguintetelegramma: ‘Foi proclamada aRepublica no Brazil. Consta que o

exilio á um tyramno”. Otítulo Estado só seriaincorporado ao nome dojornal em janeiro de 1890.

A GUERRA NOSERTÃOSEGUNDA-FEIRA,25 DE OUTUBRO DE 1897

“A artilheria fez estragosincalculaveis naspequenas casas, replectastodas. Penetrando pelostectos e pelas paredes asgranadas explodiam nosquartos minusculosdespedaçando homens,mulheres e crianças sobre os quaesdescia, as vezes, o pesado tecto deargilla, como a lagem de um tumulo,completando o estrago. Parece,porém, que os mal feridos mesmosofreiavam os brados da agonia eos proprios timidos evitavam a fuga,tal o silencio, tal a quietudesoberana e extranha, que pairavamsobre as ruínas fumegantes,quando, ás 6 e 48 minutos, cessouo bombardeio.”

Para cobrir a luta das tropasfederais contra o beato AntônioConselheiro e cerca de 25 milsertanejos no arraial de Canudos, novale do rio Vaza-Barris, o Estadãoenviou Euclides da Cunha como seucorrespondente. Após a derrota daterceira expedição, enviada peloGoverno baiano, ele havia publicadono jornal um texto intitulado A nossaVendéia, em que comparava oconflito a um episódio da RevoluçãoFrancesa e demonstrava seu apoio àRepública, já que os “jagunçosrebeldes” eram consideradosmonarquistas e fanáticos religiosos.No entanto, ao visitar pessoalmenteo campo de batalha e testemunharos abusos e o extermínio promovidopelos exércitos, ele passou a ver oconflito com outros olhos. Lançadoem 1902, o livro Os Sertões se tornouum clássico da literatura brasileira emundial. Também revelou ao País arealidade da região, enalteceu a forçado sertanejo e denunciou omassacre dos vencidos.

O BRASIL NO GRANDE CONFLITOSÁBADO, 27 DE OUTUBRO DE 1917

“A commissão de Diplomacia e

Páginasda História

Tratados reuniu-se hoje, na Camara,para tomar conhecimento damensagem do sr. presidente daRepublica, a proposito dotorpedeamento do vapor brasileiro“Macau” por um submarino allemão.O sr. Alberto Sarmento leu o seuparecer sobre a referida mensagem,concluindo por apresentar um projectoreconhecendo e proclamando oestado de guerra que nos foi impostopela Allemanha. (...) Ás 15 horas emeia o sr. Sabino Barroso, presidenteda Camara, annunciou ter sidoapprovado com 149 votos contra 1,do sr. Joaquim Pires, deputadofederal pelo Piauhy, o projecto dacommissão de Diplomacia eTratados, declarando o estado deguerra entre o Brasil e a Allemanha.Todos os deputados, de pé,prorromperam em prolongada salvade palmas e delirantes acclamações.”

Foi com o tom de “Urgente”, queo Estadão anunciou a entrada doBrasil na Primeira Guerra Mundial,conflito que pela primeira vezaconteceu em terra, nas trincheiras efortificações, no mar e no ar,deixando um saldo estimado de 19milhões de mortos. O jornal teveimportante papel na cobertura daguerra, desde que noticiou o eventoque serviu como seu estopim: oassassinato do arquiduque FranciscoFerdinando, herdeiro do trono austro-húngaro, e sua esposa Sofia,Duquesa de Hohnberger, no dia 28de junho de 1914. Posteriormente, ojornal lançou uma edição vespertina,o Estadinho, dirigida por JúlioMesquita, que durante os quatroanos seguintes escreveria textos

Primeira página doprimeiro número deA Provincia de SãoPaulo (acima àesquerda) e daedição de 15 demaio com a notíciada Lei Áurea. Acima,a edição de 16 denovembro noticiaa proclamação daRepública. Nela,D. Pedro II échamado detirano. Já com onome de O Estadode S.Paulo, acrônica de doisconflitos:Canudos (acima)e a PrimeiraGuerra Mundial.

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jornalísticos e de opinião, todas assegundas-feiras, sobre os principaisacontecimentos no front e fora dele.

ARTE DE VANGUARDAQUINTA-FEIRA, 16 DE FEVEREIRO DE 1922

“Realizou-se hontem no TheatroMunicipal o segundo festival da‘Semana de Arte Moderna’. Uma boaconcorrencia, para a qual certamentecontribuiu em grande parte ainclusão no programma o nome danossa illustre pianista GuiomarNovaes. Iniciou-se o sarau com aconferencia do sr. Menotti del Picchia.Pouco a pouco a atmosphera dotheatro foi-se transformando com acollaboração das galerias a pontode lembrar em certos momentos afamosa noite de estrea de TortolaValencia. Talvez isso tambemestivesse nas intenções dospromotores da reunião, embora nãofigurasse no programma. Espontâneamanifestação da galeria ou claquede novo genero, o certo é que asphrases e attitudes menosrespeitosas attingiram algumas vezesartistas respeitaveis pelo seu talentoe seu passado, que collaboravamno festival. Mas para ‘os verdadeirosmodernistas’, o passado das naçõesou dos individuos não conta... Nãose lhes póde negar, nisso ao menos,uma certa lógica.”

Na década de 1910, o mundo dasartes já fervilhava. Influenciados pelasvanguardas artísticas européias e pormovimentos como Futurismo,Expressionismo, Cubismo, Dadaísmoe Surrealismo, os modernistasbrasileiros combatiam a mera imitaçãoda realidade e dividiam opiniões aopropor uma arte mais subjetiva eabstrata. Foi assim com umaexposição do lituano Lasar Segall, em1913, e com outra de Anita Malfatti,em 1917. A ponto de Monteiro Lobatopublicar, na edição vespertina doEstadão de 20 de dezembro de1917, o artigo “A propósito daexposição Malfatti”, desancando apintora. Um ataque que acaboureunindo um grupo de jovens artistasnum movimento de apoio a ela. Cinco

anos mais tarde, esse movimentodesembocaria na Semana de ArteModerna. Concebida por Di Cavalcantie Menotti del Picchia, o eventoaconteceu em fevereiro de 1922 elevou ao Teatro Municipal de SãoPaulo nomes como Graça Aranha,Mário de Andrade e Heitor Vila-Lobos,que promovem uma programaçãocom instalações de arquitetura,esculturas e exposições de telas,palestras, recitais, conferências eapresentações musicais.

A IMPRENSA NO FRONTSEGUNDA-FEIRA, 15 DE AGOSTO DE 1932

“Na região de Pinheiros, proximo deQueluz, por volta das 16 horas, astropas constitucionalistasdesencadearam um ataque contraos adversarios. A luta prosseguiudurante a tarde e a noite. A alaesquerda, sob o comando do capitãoPietsher, tomou uma trincheira,numa brilhante carga de baioneta.As tropas dictatoriaes recuaramdesmoralisadas e as nossascontinuaram a avançar. Mais oumenos nas mesmas horas as tropasconstitucionalistas que operam naregião do Tunnel empenharam-senum assalto violento contra as tropasdictatoriaes, aprisionando-lhes 60soldados e 2 officiaes e causando-lhes perdas elevadas. Esses doiscombates encheram de enthusiasmoas nossas tropas. Os soldados que,em caminhões, seguiram para afrente, cantavam hymnos a SãoPaulo. Medicos, engenheiros,professores, cirurgiões-dentistas têmofferecido aneis de formatura à‘Campanha do Ouro da Victoria’.”

Conta-se que, no ano de 1932,quando as mulheres viam homensdesocupados perambulando pelasruas de São Paulo, diziam-lhes:

“Vistam saias”. A indireta era clara: senão tinham sido contagiados pelacausa, só podiam ser maricas. Nuncaantes se vira tanta mobilização porum esforço de guerra como houvena Revolução Constitucionalista,deflagrada pelos paulistas em 9 dejulho daquele ano. Na insurreiçãoarmada contra o governo de GetúlioVargas, até alianças de ouro e jóiaseram dadas para financiar a luta. Emtroca, as pessoas recebiam anéis delatão com a inscrição: “Doei ouropara o bem de São Paulo”. Aimprensa também entrou na guerra.Júlio de Mesquita Filho, diretor doEstado, era um dos líderes civis domovimento. Também chamavam aatenção as manchetes ufanistas dosjornais que falavam em valentia,vitórias, triunfos inevitáveis e morteda ditadura getulista. Como costumaacontecer nesses casos, a causa sesobrepôs à realidade dos fatos.Exatos 85 dias depois de deflagradoo movimento, isolados, os paulistasassinaram o armistício e puseram fimàs hostilidades. Porém, no anoseguinte, conseguiram o que tantoqueriam: uma nova Constituinte e anomeação de Armando de SalesOliveira como interventor no Estado.

AVÔ DO TABLET E DA INTERNETTERÇA-FEIRA, 25 DE JULHO DE 1972

“À primeira vista, ele não lembra umcomputador como os que existemem funcionamento atualmente noBrasil. É pequeno e compostoapenas de uma máquina central,com um painel cheio de pontosluminosos e botões, e dois terminais

que imprimem linhas – como em umgráfico – ou letras em uma máquinade escrever. Mas, já em operação emuma sala da Escola Politécnica daUSP, ele significa muito mais do quepode indicar seu tamanho: é oprimeiro computador eletrônicointeiramente concebido, projetado,construído e posto em operação noBrasil. (...) A história começou quando,em 1969, a Escola Politécnicaresolveu montar um cursoespecializado em formar engenheiroseletrônicos para trabalhar comcomputadores. Mas, para montar ocurso, segundo o professor HélioVieira, até os professores tinham queaprender. Para isso, a escola adquiriualguns computadores no exterior.‘Nós abrimos esses computadores –explica Vieira – e começamos aestudá-los. Chegamos até a mexerem seu sistema. Envenenamos osaparelhos.’ Depois, a partir dostrabalhos dos professores e dealunos monitores que participaramdo projeto, foi concebido o primeirocomputador inteiramente nacional.”

A máquina pioneira da tecnologianacional de processamento de dadosacaba de completar 40 anos. Com oitobites, foi criada pela Escola Polítécnicada Usp, com o objetivo de fomentar aindústria nacional de computadores. Ocomputador tinha capacidade 32 vezesmenor do que a maioria das máquinaspessoais de hoje, que contam com 256bits. Apelidado de “Patinho Feio”, foilançado com pompa em um eventoque contou com a presença doGovernador de São Paulo na época,

Laudo Natel, o Reitor da Usp, secretáriosde Estado e vários discursos.

PÁGINAS À PARTE DA HISTÓRIAQUARTA-FEIRA, 21 DE AGOSTO DE 1974

“Em seguida, o parlamentar sereferiu à punição imposta à rádioque o entrevistou dizendo: ‘Hoje,tomo conhecimento de dois fatosextremamente graves e não menosdespropositados: uma portaria doMinistro das Comunicaçõesaplicando uma suspensão de 15dias à Rádio Cultura de Feira deSantana, pelo crime de ter-meentrevistado; e as ameaças desubter-me a novo processo ou aotacão massacrante do AI-5. Porúltimo, referindo-se à preservaçãodas instituições do País, oparlamentar disse que “não bastaque vivamos sob a violência do AI-5.Eles precisam, mesmo quandoestimulam especulações sobredistensão, que todas as instituiçõesnacionais estão submetidas aoarbítrio sem limites. Por isso, repito,não temo por mim. Temo pelasinstituições do País. É preciso quetodos lutem contra o arbítrio,praticando a resistênciademocrática, conforme o exemplodado, ainda agora, pela Ordem dosAdvogados do Brasil, rejeitando atentativa do governo em subordiná-la ao Ministério do Trabalho’.”

Diferente dos demais textos destareportagem, o trecho acima nunca foipublicado. Ele foi censurado, assimcomo muitas outras páginas entre osanos de 1972 e 1975. Os problemasdo jornal com os militares começaramlogo após a decretação do AtoInstitucional nº 5, o sinistro AI-5,em 13de dezembro de 1968. Na ocasião, oEstadão recusou-se a mudar seueditorial Instituições em Frangalhos eteve toda a sua edição apreendida.No total, mais de mil páginas forammutiladas pelos censores durante oregime militar. Como aconteceu como texto acima, em que o Deputadooposicionista Francisco Pinto (MDB-BA) comenta uma entrevista dada auma rádio baiana em que criticou oditador Augusto Pinochet, do Chile, efala sobre sua certa cassação, o jornalpaulista publicou no lugar mais versosde Os Lusíadas, de Luís de Camões.

A notícia sobre a abertura daSemana de Arte Moderna foi

publicada na página 2 da edição de16 de novembro. Dez anos depois, a

Revolução Constitucionalistarecebeu grande apoio do jornal.

À direita, umapágina censurada

do jornal em 1974.Abaixo, a mesmapágina depois de

publicada: nolugar dos trechos

censurados, versosde Os Lusíadas.

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LIBERDADE DE IMPRENSA

A Ouvidoria Nacional dos DireitosHumanos, órgão vinculado à Secreta-ria de Direitos Humanos da Presidên-cia da República, abriu sindicância paraapurar denúncias sobre a ameaça feitaa uma equipe do jornal O Globo no Pará,no dia 23 de julho, pelo Prefeito doMunicípio de Redenção, Wagner Fon-tes (PTB-PA), candidato à reeleição.

Os repórteres ameaçados foram Ca-rolina Benevides e Marcelo Piu, queforam a Redenção apurar denúncias defraude envolvendo a Prefeitura local.Os jornalistas saíram da cidade escol-tados por dois policiais federais, depoisde serem ameaçados pelo Prefeito du-rante uma entrevista. “Estou falandopara que você embase suas perguntas,até para que você possa refletir sobre oque eu vou te dizer. Se (alguém) falarmal a fim de me difamar, pode ser queamanhã ou depois esteja morto”, dis-se Wagner Fontes.

Para reforçar a sua intimidação, o Pre-feito contou a história de um blogueiroda região conhecido como Júnior, que foiprocurado por ele e teria sumido no dia se-guinte do encontro. Wagner Fontes con-tou o que disse ao blogueiro: “Se vocêcontinuar fazendo o que está fazendocomigo, a injustiça que está fazendo co-migo, vai custar caro para você. Porquepode ter certeza absoluta de que Deus vaicolocar a mão sobre você e cobrar o quevocê está fazendo comigo”.

Wagner Fontes disse ainda que nãosabe se o blogueiro repensou ou se foi pre-

Após a apresentação dos números doIPCA e do Sinapi pelo IBGE no dia 8 deagosto, os jornalistas gravaram entrevis-ta com a responsável pela divulgação daspesquisas. Um dos profissionais pergun-tou em que medida a greve dos trabalha-dores do IBGE interferiu nas duas pesqui-sas e se os dados foram coletados por ser-vidores temporários. Nesse momento aAssessoria de Imprensa do IBGE inter-rompeu a entrevista, alegando que a gre-ve e outros assuntos deveriam ser tratadosdiretamente com a Presidente, Wasmália

so. “Ele sumiu”, afirmou Fontes, que disseter “visão ampla da liberdade de impren-sa” e continuou falando do blogueiro: “Elefoi preso. Não foi por minha causa. Hou-ve uma coincidência, a Polícia estava con-cluindo um processo de investigação. Foipreso como traficante”, contou.

Carona sob suspeitaConforme noticiou a Agência Glo-

bo, os repórteres registraram a ameaçana Polícia Federal em Redenção, a quallhes deu proteção até à manhã seguin-te, destacando dois agentes federaispara acompanhá-los até a saída do pe-rímetro urbano do Município, na divi-sa com o Estado de Tocantins.

Assim que os policiais federais retor-naram à cidade, dois policiais militarespararam o carro da equipe e pediram ca-rona. O Delegado da Polícia Federal LuizFelipe da Silva foi avisado e fez a equi-pe do jornal retornar à cidade. Disse oDelegado que estranhou o episódio,pois em Redenção não é comum quePMs abordem carros pedindo carona. Ofato foi registrado como adendo à cer-tidão de ocorrência.

No documento, consta que “o Pre-feito coagiu e ameaçou a equipe, ten-do deixado transparecer que um aci-dente poderia acontecer ou ainda quealgo ilícito poderia ser encontradocom a equipe”. De acordo com os regis-tros, um funcionário da Prefeitura te-ria dito ao fotógrafo Marcelo Piu quesabia qual era o carro da reportagem,além de perguntar em que hotel a equi-pe estava hospedada.

Com insinuações sobre o risco enfrentado por quem fala mal a seu respeito, ele pediu aos repórteres que tomassem cuidado.

No Pará, Prefeito candidatoameaça jornalistas de O Globo

POR JOSÉ REINALDO MARQUES Em entrevista, o advogado e pri-meiro-secretário jurídico do PTB,Luiz Gustavo Pereira da Cunha, dis-se que o partido “repudia qualquercensura à imprensa”: “Esse episódioé lastimável, pedimos desculpas an-tecipadas”, disse o advogado, afir-mando que caso O Globo peça esclare-cimentos à Executiva Nacional, essepedido será levado ao Conselho deÉtica do partido.

A Polícia Militar do Estado do Parádisse “não identificar ameaça à vidaou integridade física da jornalista oudas pessoas que estavam com ela”. Oórgão policial pediu que a queixa sejafeita por escrito.

Entidades repudiamEm nota divulgada no dia 26 de

julho, a Associação Brasileira de Jor-nalismo Investigativo-Abraji tam-bém se manifestou sobre o caso. Se-gundo a Diretora-Executiva da enti-dade, Veridiana Sedeh, a Abraji “repu-dia a ameaça sofrida” pela equipe deO Globo.

A Abraji manifestou preocupaçãocom a violência contra jornalistas nointerior do Brasil, onde muitos profis-sionais têm sido assassinados. “A vio-lência contra jornalistas no interior doBrasil é preocupante e configura umgrave atentado à liberdade de expres-são”, disse nota da entidade, que cobroua apuração do caso com rigor.

O Comitê de Liberdade de Expressãoda Associação Nacional de Jornais-ANJ afirmou que considera esse episó-

IBGE discrimina repórterAssessoria de Imprensa da autarquia impede jornalista de participar de entrevista coletiva com a Presidente.

dio “um claro atentado ao direito deinformar e de ser informado”.

Como protegerA Ouvidoria da Secretaria Nacional

de Direitos Humanos pretende solici-tar aos órgãos policiais e ao MinistérioPúblico registros sobre as ameaças. Oórgão só deve se pronunciar após ana-lisar o caso.

A criação de um comitê para acompa-nhar as investigações de crimes cometi-dos contra jornalistas foi proposta recen-temente à Ministra da Secretaria Naci-onal de Direitos Humanos, Maria do Ro-sário, por representantes de sindicatos eassociações de jornalistas, entre as quaisa ABI. Na ocasião, o Presidente da ABI,Maurício Azêdo, disse que a reunião“abriu o caminho para definição de me-didas que menos exponham a risco a ati-vidade profissional de jornalista.”

O Presidente da Confederação Naci-onal de Municípios, Paulo Ziulkoski, ementrevista ao Extra Online, condenou asameaças à equipe de O Globo, e frisou orespeito que é devido ao trabalho da im-prensa: “A gente sabe que a situação (vi-olência) é muito complicada na região.O Município é filiado à CNM, mas so-mos uma entidade de Municípios, nãorepresentamos os prefeitos. Sem entrarno mérito do caso, a imprensa tem queser respeitada. Se vivemos numa demo-cracia, a liberdade é um direito funda-mental. Nós defendemos o direito de in-formação, o acesso à informação plena,de modo geral, sem constrangimentoou omissão”, disse Ziulkoski.

Bivar, na entrevista que ela concederialogo depois, na sala da Presidência.

Os jornalistas de diversos órgãos deimprensa que se encontravam no audi-tório do terceiro andar da sede do IBGEdeslocaram-se até a ante-sala da Presidên-cia. O jornalista Henrique Acker, asses-sor de imprensa da Associação dos Servi-dores do IBGE-Sindicato Nacional foi atéo local da entrevista, mas foi impedidode participar.

O argumento apresentado pela Asses-soria da Presidência foi que os jornalistas

que participariam da entrevista haviamfeito solicitação anteriormente, por es-crito. O jornalista do Sindicato pediu quea solicitação lhe fosse apresentada, o quenão aconteceu. Depois foi-lhe dito que setratava de uma entrevista exclusiva, oque não confere com a prática profissio-nal, visto que entrevista exclusiva é re-alizada por um só profissional de umúnico órgão de imprensa.

Impedido de exercer sua profissão, oassessor da AssIBGE-SN permaneceu naante-sala da Presidência. Ao final da entre-vista coletiva com a Presidente do IBGE,Henri Acker indagou aos colegas da im-prensa se tinham feito alguma solicitaçãopor escrito para participar daquela entre-vista. Não houve resposta de nenhum dosjornalistas presentes e a assessora de im-

prensa do IBGE passou então a argumen-tar que não trabalha com solicitações porescrito, em flagrante contradição com oargumento apresentado pela sua colega daassessoria da Presidência.

Ao final, ficou flagrante que a Asses-soria de Imprensa do IBGE, um órgãopúblico, cerceou a liberdade de exercícioda profissão de um jornalista. Cabe lem-brar que independentemente de traba-lhar para o órgão de classe de uma cate-goria em greve, Acker apenas exerce suaprofissão.

Informada do cerceamento impostoa Acker, a ABI dirigiu mensagem de pro-testo à Presidente do IBGE, lamentandoque o órgão restabeleça agora, sob o Es-tado Democrátioco de Direito, as práti-cas da época da ditadura militar.

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DIREITOS HUMANOS

Em clima de grande emoção e de lá-grimas, centenas de pessoas lotaram oprincipal auditório da Pontifícia Uni-versidade Católica do Rio de Janeiro, nodia 17 de agosto, para o julgamento desete processos de anistia política inclu-ídos na 61ª Caravana da Anistia doMinistério da Justiça, coroamento daConferência Internacional Memória:América Latina em Perspectiva e Com-parada, realizada pela Comissão de Anis-tia com a colaboração da Puc.

O evento teve início com o discursodo Padre Francisco Ivern, Vice-Reitor daPuc-Rio: “Estamos recuperando a me-mória de épocas e de situações quando averdade, a justiça e os direitos humanosestavam sendo violados. Hoje tambémestamos recuperando a memória daque-les que combateram esta situação e arris-caram suas vidas pela democracia. Va-mos lembrar também as pessoas ligadasà Puc-Rio que lutaram contra a ditadu-ra dentro e fora desta Universidade, querepresentou uma ilha de liberdade e umrefúgio frente às perseguições. Não va-mos fomentar o ódio, mas trazer à luz asinjustiças e refletir para que esses fatosnão se repitam”.

Também discursaram Margarida deSouza Neves, Coordenadora do ProjetoMemória Puc; Francisco Guimarães,Diretor do Departamento de Direito daPuc; Adriano Pilatti, professor do Depar-tamento de Direito e Bruno Lourenço,Presidente do Diretório Central dos Es-tudantes da Puc.

Em seguida, foram homenageados osantigos funcionários da Puc Joana Bran-dão de Aguiar, do Departamento de En-genharia Civil, lotada no Laboratório deEstruturas, e o ascensorista Moisés deMesquita, que já morreram, pelo apoioà luta dos estudantes da Universidadecontra a ditadura. As famílias de ambosreceberam placas comemorativas, eMargarida de Souza Neves fez a leiturade um texto elaborado pelo Núcleo deMemória da PUC:

“Dona Joana comandou uma tropade funcionários, entre os quais o Sr.Moisés, insuspeitos aos olhos dos garisdo Dops, na busca dos que chamava de‘os meus meninos’, as lideranças domovimento estudantil. Hábil, soubeconduzir, por caminhos que só os fun-cionários antigos conheciam, aquelebando de jovens assustados, pelo meioda mata que existia onde hoje é um tre-

Estado foi responsabilizado pela prisão,tortura e morte de Raul.

Homenagem a Prestes,

Zuzu Angel e BoalEm seguida, teve início a 61ª Carava-

na da Anistia da Comissão de Anistia doMinistério da Justiça, sob a coordenaçãodo Secretário Nacional de Justiça, Pau-lo Abrão, Presidente da Comissão deAnistia.

Nesta edição, a Caravana homenageouLuiz Carlos Prestes, comandante da Co-luna Prestes, líder do Partido ComunistaBrasileiro (PCB) por mais de 50 anos; aestilista Zuzu Angel, mãe do militanteStuart Angel, do MR-8, torturado e mortopela repressão (Zuzu Angel também foimorta em um misterioso acidente decarro); e o teatrólogo Augusto Boal, fun-dador do Teatro do Oprimido.

Acompanharam a solenidade Luiz Car-los Prestes Filho e Carlos Augusto Mari-ghella, filho do revolucionário baiano,entre dezenas de militantes históricos.

Justiça para sete

vítimas da ditaduraEm clima de grande comoção, foram

analisados os processos de Yuri e Alex Xa-vier Pereira, José Grabois, Lincoln Bica-lho Roque, Maria Cristina da Costa Lyra,Mariela Venâncio Porfírio e FernandoAugusto de Santa Cruz.

Os irmãos Yuri e Alex Xavier Pereira,militantes do Partido Comunista Brasilei-ro (PCB) e da Ação Libertadora Nacional(ALN), foram para Cuba em 1968 e retor-naram na clandestinidade. Após a morte dolíder e fundador da ALN, Carlos Marighe-lla, Yuri passou a ser membro efetivo doComando Nacional da ALN e foi assassi-nado em junho de 1972 após uma embos-cada. Alex foi morto em janeiro de 1972e enterrado com outro nome.

José Grabois, professor da Secretariade Educação do antigo Estado da Guana-bara, foi demitido após sua detenção em1954, quando anunciava a realização deum comício.

Lincoln Bicalho Roque, militante doPCB, foi aposentado compulsoriamenteem 1968 por suas atividades políticas. Foipreso diversas vezes antes de passar à clan-destinidade, em 1972. Em 13 de março de1973, o corpo de Lincoln foi encontradocom 15 tiros. A Polícia afirmou, à época,que ele reagira às forças de segurança.

Maria Cristina da Costa Lyra, militan-te do Partido Revolucionário dos Traba-lhadores, presa e torturada em 1970, e a

Evocação dos sacrifícios e tragédias de combatentes da ditaduracausa comoção na Puc-Rio no julgamento de processos de anistia.

POR CLÁUDIA SOUZA

Emoção e lágrimas naCaravana da Anistia

cho da auto-estrada Lagoa-Barra, até àAvenida Visconde de Pirajá, de onde seescafederam no primeiro lotação Gá-vea–Leme que passou. Da calçada doponto de ônibus, uma Dona Joana sor-ridente e majestosa acenava para os es-tudantes que ajudara a escapar.”

Um dos maiores pensadores brasilei-ros, o filósofo, escritor e militante políti-co Leandro Konder, que lecionou na Puc,foi ovacionado pela platéia em celebraçãoà sua trajetória de luta pelas liberdades.

Raul Amaro Ferreira, ex-aluno da Puc,também recebeu homenagens duranteo evento. Formado em Engenharia Me-cânica em 1967, Raul foi preso peloDops-RJ, na noite do dia 31 de julho de1971, no bairro de Laranjeiras, quandodirigia seu carro em companhia de outroengenheiro, Saidin Denne. Em 2 de agos-to, Raul foi encaminhado ao Doi-Codi/RJ depois de ter sua residência invadidae ocupada pela repressão. Foi torturadoa ponto de ser preciso que o levassem, àspressas, para o Hospital Central do Exér-cito, onde morreu em 12 de agosto.

Em 1979, a família iniciou processocontra a União e ganhou em primeirainstância. Em 7 de novembro de 1994, o

FOTOS CLÁUDIA SOUZA

Conduzido numa cadeira de rodas aoauditório principal da Puc, o filósofo LeandroKonder, que foi professor da Universidade, foi

longamente ovacionado ao chegar para o atoda 61ª Caravana da Anistia. Também

emocionante foi o depoimento do ProfessorJosé Grabois (acima), que foi aprovado em

dois concursos públicos para o magistério ejamais foi nomeado, por discriminação

ideológica e também por ostentar osobrenome de um dos grandes adversários do

regime militar, o ex-Deputado MaurícioGrabois,executado na Guerrilha do Araguaia.

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militante da Ação Popular Mariela Ve-nâncio Porfírio, presa em dezembro de1972, condenada a seis anos de detençãotambém pediram reparação moral eeconômica à Comissão de Anistia.

Fernando Augusto de Santa Cruz,membro da Ação Popular Marxista-Le-ninista, é um desaparecido. Em decor-rência da prisão de vários companheirosda organização, Fernando se mudoupara São Paulo, em 1973. Durante o Car-naval de 1974, Fernando esteve no Riode Janeiro para visitar o irmão. Ao sairda casa, avisou que encontraria umcompanheiro, mas voltaria em duashoras. Nunca mais foi visto.

José Grabois contou que foi duramen-te perseguido por motivos políticos: “Mi-nha ficha no Dops não ajudava muito eo nome da família Grabois era bastanteconhecido entre os militares. Perdi osmeus cargos de professor e lutei muitopara sobreviver. Fui anistiado em 1979,mas recebi de volta apenas um dos meusdois cargos. Certa vez, fui pegar um do-cumento em um órgão do Governo doEstado e o funcionário disse que era bemfeito eu ter sido perseguido. Tenho umamigo que trabalhava em banco e um diaviu na mesa ao lado o seu torturador enada pôde fazer. Nós vivenciamos situ-ações muito dramáticas. A data de hojerepresenta justiça, esperança, gratidão ereflexão sobre o que enfrentamos naque-la época e que, infelizmente, a nossa ju-ventude desconhece.”

Tatiana Roque, filha de Lincoln Bica-lho Roque, ressaltou o empenho da fa-mília em busca de justiça: “Meu pai eraprofessor universitário da UFRJ, mas issonunca foi reconhecido porque ele foiaposentado pelo AI-5 em 1969, e depoisfoi assassinado em 1973, nas dependên-cias do Doi-Codi. Temos documentos doDops com as fotos dele morto e tortura-do. Somente agora teremos a oportuni-dade de reconhecer a sua profissão e os di-reitos que temos em relação a isto. A fa-mília nunca teve esse reconhecimento.Entramos com o processo há alguns anose desde então a luta é grande. Temos tam-bém outro processo responsabilizando aUnião pelo assassinato de meu pai. Já foijulgado, tivemos uma sentença, mas ain-da não foi executada. Hoje é um diamuito importante para a família, a me-mória e a história dele.”

A saga dos irmãosYuri e Alex Xavier

Yara Xavier, irmã de Yuri e Alex Xavi-er, fez um discurso emocionado sobre atrajetória dos irmãos e sublinhou o papelde sua mãe, Zilda Xavier Pereira, presenteao evento, na conquista da democraciabrasileira. Yara foi muito aplaudida aofazer a entrega da bandeira da Anistia.

O jornalista e escritor Altamir Tojalexpressou alegria em partilhar com afamília de Yuri e Alex Xavier o momen-to de justiça: “Fui colega de Yuri na Es-cola Técnica Nacional e companheiro demilitância estudantil. Ele era muitoempolgado pelos ideais da revolução eaprendeu com sua família os mais nobres

O Tribunal de Justiça de São Paulorejeitou recurso protocolado pelos ad-vogados do coronel da reserva CarlosAlberto Brilhante Ustra e mantevedecisão que aponta o ex-militar comoresponsável por torturas ocorridas du-rante a ditadura.

A decisão, divulgada no dia 14 deagosto, é da 1ª Câmara de Direito Pri-vado do TJ-SP. Ela confirma o teor deuma sentença anterior, que foi consi-derada inédita: em outubro de 2008, oJuiz Gustavo Santini Teodoro, da 23ªVara Cível central, julgou procedenteo pedido dos autores de uma ação de-claratória que buscava que a Justiçaapontasse Ustra como responsável porcrimes de tortura.

Na ocasião, o Juiz Santini reconhe-ceu que César Augusto Teles, MariaAmélia de Almeida Teles e CriméiaAlice Schmidt de Almeida, autores daação, foram mesmo torturados. Naação, os autores buscavam mostrar quehavia “relação jurídica de responsabi-lidade civil, nascida de prática de atoilícito, gerador de danos morais”.

Logo após a decisão de outubro, oadvogado de Ustra, Paulo Alves Este-ves, entrou com recurso, com o obje-tivo de reformular a sentença. A deci-são contrária ao pedido foi tomada pordesembargadores do TJ-SP.

Ainda em 2006, quando um dos pro-cessos começou a ser julgado, Amélia jáafirmava que a família não buscava in-denização do Estado ou prisão. “É umaação de efeito político, que vai trazer re-conhecimento de que um coronel doExército, na época major, era tortura-dor”, explicou Amélia na ocasião.

AlegaçõesNo próprio dia 14, o advogado Pau-

lo Esteves disse ao portal G1 que vaipedir um esclarecimento a respeito dadecisão, que afrontaria a legislação es-pecial que rege a Comissão da Verdade,criada para investigar e apontar casosde violências cometidas por agentes doEstado no período do regime militar.

Segundo ele, como se trata de umalegislação especial, é a Comissão da Ver-dade que teria a incumbência de apon-tar se Ustra foi responsável ou não pelosatos de tortura, mesmo com sentençaanterior. Independentemente disso, eleafirmou que irá recorrer da decisão.

valores da democracia. Tenho muitoorgulho de estar aqui neste dia em queestá sendo feita a justiça em nome de ummundo melhor para a humanidade.”

Darci Toshiko Miaky, antiga militan-te da Ação Libertadora Nacional(ALN),presa em janeiro de 1972, também falousobre Yuri e Alex Xavier: “Tive o privi-légio de conhecer os dois irmãos quandotreinávamos guerrilheiros em Cuba. Elestinham dedicação total à causa e com-partilhamos belos momentos de luta.Zilda, gostaria de agradecer a você, quesempre nos apoiou. Em nome de todosos companheiros, de Yuri, de Alex e deYara, muito obrigada por tudo.”

Carlos Maia, professor da Uerj, falousobre a convivência com os irmãos Xa-vier e a lição de vida extraída dessa rela-ção: “Conheci Yuri em 1964. Uma daspaixões da vida dele era a imprensa. Elefez um jornal sobre a nossa luta, quechegou a vender sete mil exemplares.Quando a ALN já estava sendo estraça-lhada, ele cuidou da retirada dos compa-nheiros de Cuba para outros países, masretornou ao Brasil, mesmo sabendo queseria morto. A memória desta luta pre-cisa ser resgatada. Vamos transformar oquartel da PE no centro de memória daHistória brasileira.”

Ilma Noronha, que integrou a ALN,saudou o papel da família Xavier para oavanço da sociedade brasileira: “Tive umafilha na ditadura e um filho na democra-cia, ao qual dei o nome de Yuri, que trans-formou um sonho na conquista plena dademocracia. Tenho orgulho daqueles quetombaram ao longo da caminhada, e pos-so dizer que faria tudo novamente sepreciso fosse e que valeu a pena lutar.”

Após os depoimentos, Paulo Abrão pe-diu desculpas aos perseguidos políticos:“Em nome desta Comissão, do Estadonacional e do povo, peço desculpas pelasperseguições e pela ausência de seus en-tes queridos, lembrando a responsabili-dade do País”.

As CaravanasCriada em 2001, a Comissão de

Anistia do Ministério da Justiça ana-lisa processos de requerimento deanistia política de cidadãos persegui-dos durante os períodos autoritáriosentre 1946 a 1988. As Caravanas sãosessões itinerantes da Comissão deAnistia para o julgamento de proces-sos de cidadãos e familiares atingidospelos atos de exceção no período de1946 a 1988.

Em 2012, a Comissão já realizousete Caravanas nas cidades de Cama-çari (BA), São Paulo (SP), Teresina(PI), Porto Alegre (RS), Bauru (SP),Florianópolis (SC) e Fortaleza (CE).O objetivo das sessões de julgamentoitinerantes é levar o tema a diferen-tes regiões do País e promover o resgatehistórico e o debate na sociedade.

A 1ª Caravana da Anistia foi realiza-da na sede da ABI em 4 de abril de 2008.

DIREITOS HUMANOS

Justiça de São Pauloconfirma a condenação

do torturador UstraSentença da primeira instância de outubrode 2008 havia responsabilizado o antigocomandante do Doi-Codi de São Paulo

pelas sevícias impostas a três presos políticos.

Na visão da Justiça de São Paulo, aação declaratória foi aceita porque elanão é limitada pela Lei da Anistia. Aação foi analisada em um juizado cível,que trata da responsabilidade sobreatos e direitos sobre bens. Na interpre-tação da Justiça, a Lei da Anistia impedeapenas que ela seja julgada em umjuizado criminal, que apura responsa-bilidade sobre crimes.

Tortura, nãoUstra foi o chefe do Doi-Codi, órgão

de repressão política durante o regimemilitar, de 29 de setembro de 1970 a 23de janeiro de 1974. Em 1972, Maria Te-les, seu marido , Cesar Teles, e a irmãCrimeia foram presos e torturados noDoi-Codi. Os filhos do casal, Janaína deAlmeida Teles e Edson Luis de Almei-da Teles, também ficaram em poderdos militares.

De acordo com a sentença de 2008,ao ser apontado como o responsávelpelas torturas, o “réu arcará com cus-tas, despesas processuais e honoráriosdos advogados dos autores, fixadosestes em R$ 10 mil.”

O juiz apontou em sua sentençaque “a investigação, a acusação, o jul-gamento e a punição, mesmo quandoo investigado ou acusado se entusias-me com idéias aparentemente confli-tantes com os princípios subjacentes àpromulgação da Declaração Universaldos Direitos Humanos, devem sempreseguir a lei”: “O agente do Estado nãodeve torturar, pois qualquer autoriza-ção nesse sentido só pode ser clandes-tina ou meramente ilegal”.

Ao recorrer da decisão, o advogadoPaulo Alves Esteves alegou, entre ou-tras razões, a prescrição dos crimes, afalta de sustentação legal para a acusa-ção, incompetência por parte da Justi-ça estadual para julgar a ação e que o seucliente sofreu cerceamento de defesa.

O relator da apelação, Desembarga-dor Rui Cascaldi, argumentou que o Es-tado tem a obrigação de garantir a segu-rança e integridade física dos autores daação e elogiou ainda a sentença de pri-meira instância, considerando que asações meramente declaratórias não pres-crevem jamais. Também participaramdo julgamento do recurso os Desembar-gadores Carlos Augusto De Santi Ribei-ro, revisor, e Hamilton Elliot Akel.

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Quem viu jamais se esquece do irreve-rente repórter Ernesto Varela, persona-gem criado por Marcelo Tas. Mas talveznem todos se lembrem de que o fictíciojornalista sempre se referia ao seu tam-bém fictício cameraman, um certo “Valde-ci”. Valdeci nunca aparecia natela; apenas balançava sua câ-mera, positiva ou negativamen-te, concordando ou não com orepórter.

Pois bem. O companheiro deErnesto Varela nunca mais lar-gou a câmera e hoje é um dos ci-neastas brasileiros mais respei-tados no exterior: Valdeci é, naverdade, Fernando Meirelles,aclamado diretor de Cidade deDeus e Ensaio Sobre a Cegueira,entre outros filmes, e que ago-ra lança mais uma produção in-ternacional: 360.

Assim como Carmen Miran-da, Tom Jobim e outros talentosbrasileiros que fazem e fizeramsucesso no exterior, Meirellestambém sofre certo patrulha-mento por parte de setores maisnacionalistas que argumentamque o cineasta estaria “america-nizado”. Porém, em tempos glo-bais, o que seria um cinema ver-dadeiramente nacional?

No recente Festival de Cine-ma de Gramado, o Jornal da ABIesteve com Fernando Meirelles:

Jornal da ABI – Você é tido como um dire-tor de cinema brasileiro, mas com carrei-ra internacional. Num mercado cada vezmais globalizado, ainda é possível fazereste tipo de diferenciação?

Fernando Meirelles – Bom, na verdade eutenho feito filmes internacionais por umaquestão de praticidade. No Brasil os tem-pos são muito longos, tudo é muito demo-rado, tudo é muito burocrático. Só o tem-po de captação de verbas é enorme e o ris-co é muito grande. Às vezes você faz tudoisso e não consegue lançar o filme nem noseu próprio país. No exterior tudo é maisrápido e prático.

Jornal da ABI – Você deu uma entrevistarecentemente dizendo-se muito decepcio-nado com o mercado brasileiro de cinema,muito decepcionado com a bilheteria deXingu [filme dirigido por Cao Hambur-guer e produzido por Meirelles].

Fernando Meirelles – É, eu falei isso nummomento em que o filme estava com apro-ximadamente 300 mil espectadores. Nomomento [agosto de 2012] ele está com 400

Fernando Meirelles – Será Nemesis, umaprodução de US$ 30 milhões que temcomo tema central o ódio entre Bob Ken-nedy e Aristoteles Onassis. Eu recebi esteroteiro da produtora Pathé, gostei daidéia, mas não gostei da formatação doroteiro. Disse então à Pathé que eu topa-ria dirigir o filme se eu pudesse retraba-lhar todo o roteiro. Eles aceitaram, euchamei o Bráulio Mantovani [roteiristatambém de Cidade de Deus] e nós fizemosum novo roteiro. Isso me deixou muitofeliz, mais até do que fazer ou não fazerum filme no Brasil, porque desde Cidadede Deus eu não tinha a oportunidade dedesenvolver um roteiro desde o comeci-nho. E o trabalho ficou sensacional.

Jornal da ABI – E o próximo filme brasi-leiro?

Fernando Meirelles – Não posso falarnada, ainda... [sorri].

Jornal da ABI – Como é possível ser bra-sileiro dentro de uma grande produção in-ternacional?

Fernando Meirelles – Não sei se é umacoisa brasileira ou se é uma coisa pessoalminha, mas nos filmes que faço há maisintuição que planejamento. Gosto de im-provisar, de usar o melhor do que acontecedentro de cada situação. Talvez isso sejaum jogo de cintura mais brasileiro.

Jornal da ABI – Como foi fazer 360?Fernando Meirelles – Como o filme re-

úne nove situações diferentes, foi comofazer nove filminhos diferentes. E issome deu a melhor experiência de filmarque já tive. Foi muito prazeroso poderbrincar de vários gêneros, e eu gosteimuito do resultado. Eu sempre sonhei emfazer alguma coisa assim, mas não fariade novo este tipo de filme “coral” [filmeque reúne vários tipos de situações e per-sonagens, sem protagonistas principais]porque cada história tem muito mais as-sunto para desenvolver, e não há tempopara isso. É angustiante abandonar os per-sonagens e não ter mais tempo para mos-trar mais as histórias. Como o filme é in-dependente, toda a escolha de elenco foitotalmente minha. Não tive nenhum tipode pressão e isso foi muito bom.

Jornal da ABI – Como foi dirigir AnthonyHopkins?

Fernando Meirelles – Bom, eu chegueipra ele e comecei a explicar o personagem:“Você vai interpretar um britânico declasse média...” Ele me interrompeu edisse que não, que ele iria interpretar elemesmo. Percebi que era melhor deixar acoisa correr mais solta e tudo acaboudando muito certo. A Maria Flor [atrizbrasileira que também está no filme]disse que o Anthony Hopkins é muito“fofo”. E é isso mesmo: ele é “fofo”.

Jornal da ABI – Colocar dois personagensbrasileiros no roteiro foi idéia sua?

Fernando Meirelles – Não, foi do rotei-rista, Peter Morgan. Inclusive eu consi-dero que o filme é tanto meu quantodele. Ele participou muito, ia ao set de fil-magens, conversamos muito, trocamosmuitas idéias.

POR CELSO SABADIN

CINEMA

Fernando Meirelles, um cineastainternacional made in Brazil

O aclamado diretor de Cidade de Deus e Ensaio sobre a Cegueira fala sobre mais um filme que dirigiu no exterior.

mil... bom, 400 mil não é tão desastroso as-sim para o mercado brasileiro, não é? Nãoera o que a gente esperava, mas também nãofoi um desastre. De qualquer maneira já es-tamos remontando o filme para ser trans-formado numa minissérie em quatro episó-dios a ser exibida pela TV Globo. Agora Xin-gu vai ter finalmente o público que merece.

Jornal da ABI – O fato de Xingu não teralcançado o resultado esperado fez comque você abandonasse seu projeto de fil-mar Grande Sertão: Veredas. Mas sua idéianão é mais fazer filmes no Brasil?

Fernando Meirelles – Eu desisti do Gran-de Sertão também porque seria um proje-to muito grande, muito trabalhoso, e pa-rece que atualmente o brasileiro não estáquerendo ver jagunço no cinema, não.Mas fazer filmes no exterior não é umacoisa assim tão pensada, tão planejada.Imagine que um jornalista esteja escre-vendo uma matéria para uma revista bra-sileira. Aí vem um cara e oferece 12 vezesmais para ele fazer um artigo para ser pu-blicado já na semana que vem no New YorkTimes. Claro que o cara faz! Aí ele faz umavez, vem outra pessoa e te pede outramatéria e assim por diante... Foi o queaconteceu comigo. Eu fui ficando nomercado internacional, mas pretendovoltar logo. Faço agora mais um filme in-glês e depois volto a filmar no Brasil.

Jornal da ABI – Qual será este filme inglês?

Um grandediretor de atores

360 passeia com talento e sensibili-dade por pequenos e pungentes dramasdo cotidiano que permeiam as vidas depessoas tangenciadas pelas astutas ar-madilhas do acaso. Se é que o acaso exis-te. Há um executivo chantageado porter marcado um encontro com umaprostituta; uma brasileira traída pelonamorado em Londres; um dentistamuçulmano que se apaixona por suaassistente russa; um estressado moto-rista particular que não suporta maisser mal-tratado pelo seu patrão mafio-so; um pai à procura da filha desapare-cida... e muito mais. E, não, o filme nadatem a ver com o estilo de “histórias pa-ralelas” popularizado por Robert Alt-man. É outra pegada.

Ainda que desenvolvidas em várioscantos do mundo (Viena, Paris, Londres,Bratislava, Denver e Phoenix), as tra-mas de 360 são universalmente locais.Falam de culpa, de sexo, de traições, pai-xões, arrependimentos e buscas. Falamde pequenos detalhes que mudam, emsegundos, as opções de uma vida. Um bi-lhete escrito na hora certa ou um tele-fonema atendido na hora errada podemalterar a trajetória do mundo. Pelo me-nos do mundo particular de cada um.

360 une, no mínimo, três grandes ta-lentos cinematográficos: primeiro, obrilhante roteiro de Peter Morgan, omesmo de Além da Vida, levemente ins-pirado na peça La Ronde, de Arthur Sch-nitlzer, não creditado. Segundo, a vi-brante e sempre criativa montagem deDaniel Rezende, que transforma os cor-tes em algo sempre maior que uma sim-ples transição de cena. E, terceiro, cla-ro, a habilidade de Meirelles em juntartudo isso e contar, com extremas efici-ência e emoção, todas estas histórias esub-histórias, dando a cada personagemo peso correto, a cada subtrama o tão ne-cessário equilíbrio dramatúrgico.

Em 360, Meirelles se mostra um ci-neasta ainda mais maduro do que foiem Ensaio Sobre a Cegueira e compro-va o que nem mais precisava ser com-provado: que também é um grandediretor de atores.

Na apresentação do filme no palcode Gramado, ele disse se tratar de umfilme “pequeno e intimista”. Concor-do com o intimista, mas discordo dopequeno: 360 é um grande filme sobrea complexidade dos grandes relacio-namentos humanos. (CS)

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Jornal da ABI – Como foi o começo da Pú-blica - Agência de Jornalismo Investigativo?

Natalia Viana – Começamos em mar-ço do ano passado, mas fui viajar e, narealidade, começamos a trabalhar mesmoem junho. Até dezembro, estávamos tra-balhando com apoio voluntário. A FordFoundation até deu um apoio, mas foi sim-bólico. Isso significa que eu, Marina e Tatiprecisávamos fazer outros trabalhos parasobreviver. Estávamos pagando o escritó-rio e investindo ao mesmo tempo. No fimde 2011, a Ford topou dar financiamentopor um ano e assim tivemos que nos dedi-car a uma coisa mais burocrática, de orga-nização da Pública, não produzimos tan-to. No início de 2012 começamos a funci-onar de forma mais organizada e fizemosum site novo. A Pública está no Facebookdesde junho de 2011; nesse ano, pouco maisde 150 pessoas curtiam a nossa página.Agora já são mais de 6 mil pessoas curtin-do a nossa página no Facebook. Estamostrabalhando com mais estrutura; temos pro-gramação, metas. Sou coordenadora de es-tratégia (risos). Bonito, né? Temos que es-tar atentos para a real vocação da Pública.Por exemplo, várias ongs queriam nos con-tratar para produzir matérias sobre algumassunto. Mas não achamos que devemos serum serviço de fazer reportagens sob enco-menda, temos que manter nossa visão. Estáacontecendo no Brasil, assim como nomundo inteiro, essa explosão do jornalis-mo independente. Ainda há pouca estrutu-ra, pouco incentivo e pouca discussão. Poroutro lado, há muito jornalista que estádeixando a Redação para se virar sozinho.

Jornal da ABI – Você fala em ‘jornalismoindependente’. Não seria mais correto falarem ‘jornalista independente’?

Natalia – Sim, pode ser. Chamo de ‘jor-nalismo independente’ aquilo que o jor-nalista independente faz. Aquele que nãoestá atrelado a um grande veículo comer-cial. O que está acontecendo não é umamudança de paradigma no jornalismo, éo bom e velho jornalismo de sempre. Oque está mudando é um modelo comerci-al, assim como em outros campos. O queestá acontecendo com o jornalismo é oque aconteceu na música. Antes, pra vocêser conhecido, tinha que passar pela indús-tria, havia o monopólio da gravadora. Nãopodemos negar que há o monopólio dainformação no Brasil. Essa é a única coisaque critico fortemente: a concentração dosmeios de comunicação. Não acho erradoveículo comercial ou com posições políti-cas. Cada veículo faz o tipo de jornalismocorrespondente ao seu modelo de negócio.Por exemplo, o noticiário 24 horas dosgrandes portais e agências de notícia. Quetipo de jornalismo é esse? É a notícia semprofundidade. E é assim mesmo. Faz par-te do modelo deles. Eles não vão parar paraanalisar os fatos, se aprofundar na notícia.Esse tipo de jornalista é mais um tradutordo que um repórter. É importante vocêsaber o que está acontecendo agora no Iê-men. Legal. Mas isso você não vai ver na

começo da carreira de Natalia Viananão foi muito estimulante. Presa en-tre quatro paredes numa sala fria deum grande portal da internet, ela ti-nha que escrever sobre a agitada agen-

da cultural de São Paulo a partir de releases. Não agüen-tou. Depois de um mês, pediu demissão. A partir daí,sua vida profissional teve três momentos cruciais quefizeram toda a diferença.

Primeiro, quando topou trabalhar na Caros Ami-gos com um salário que constituía um décimo do queo do seu emprego anterior. Lá, passou a ter contatocom profissionais como Carlos Azevedo, MarinaAmaral e, principalmente, Sergio de Souza. “Você temjeito pra coisa!”, disse o veterano jornalista para ajovem que buscava seu caminho na profissão. Foramquatro anos na Caros Amigos, onde ela finalmenteaprendeu a fazer jornalismo de verdade. “Lá eu des-cobri que podia escrever absolutamente do jeito queeu queria, ter um tempo de apuração. O Serjão nun-ca reprimiu minha curiosidade. Não acho que isso émelhor ou pior jornalismo, mas é o tipo de jornalis-mo que eu faço, que eu sou”, afirma.

Em seguida, quando tirou férias para fazer um cursona Bolívia, em 2004, descobriu um novo mundo pro-fissional, o dos jornalistas independentes. “Comeceia entender que poderia fazer o que eu acreditava quedeveria ser feito”. E aparentemente era simples. Bas-tava uma boa idéia de pauta na cabeça e um grava-

DEPOIMENTO

POR FRANCISCO UCHA

FOTOS MARTIN CARONE DOS SANTOS

A jornalista conta como surgiu a Pública e fala das dificuldadese do prazer de se fazer jornalismo fora da imprensa tradicional.

dor, um laptop e uma câmera na mão. Começou afazer grandes reportagens com baixo custo e vendê-las para veículos ao redor do mundo. A semente daPública estava lançada.

Finalmente, quando viajou para Londres e passoua trabalhar com Centros de Jornalismo Investigati-vo, novas oportunidades surgiram, como a de traba-lhar em dois documentários e, de volta ao Brasil, serchamada para uma misteriosa reunião com JulianAssange, do site WikiLeaks.

Hoje, pouco mais de um ano depois de ter formal-mente iniciado os trabalhos da Pública – juntamentecom Marina Amaral –, Natalia Viana continua obsti-nada pela boa reportagem. Com o apoio da Ford Foun-dation, a Agência de Reportagem e Jornalismo Inves-tigativo busca ampliar o número de republicadores desuas matérias. Produzidas por repórteres apaixonadospela apuração e que revelam em seus textos um Brasilrepleto de injustiças sociais, as reportagens passarama incomodar alguns setores pouco acostumados à li-berdade de imprensa.

“Muitas vezes há ameaças ou ações que são ape-nas para intimidar o jornalista. Quando sofremos al-gum tipo de intimidação, comunicamos a diversas pes-soas e deixamos claro que não aceitamos isso. Não sepode intimidar jornalistas em pleno século 21 no Bra-sil. É inaceitável!”, disse, nesta entrevista ao Jornal daABI, a jornalista que adora falar de seu trabalho comum sorriso nos olhos.

Pública. Nós não fazemos ‘notícia’ e é super-difícil não fazer. Nós fazemos reportagem.Há muita gente que fala que todo jornalis-mo é investigativo. Eu não concordo. Nãosei fazer notícia... e não quero. Um poucoda idéia da Pública nasce daí também. Nósfazemos reportagens bacanas e bem feitascom fotos lindas e mandamos de graça paraos veículos. O jornal precisa preencherespaço e acaba dando visibilidade para re-portagens bem feitas. Queremos o máximode republicadores possível. Pode-se publi-car livremente desde que dê a fonte. No siteestá bem explicadinho, numa seção que é o“roube nossas histórias”. Qualquer umpode, mas só tem que obedecer a certas

questões. Não pode ser reduzida drastica-mente e editada, por exemplo.

Jornal da ABI – Como surgiu a idéia daPública?

Natalia – É uma idéia antiga. Marina eeu já conversávamos muito com outrosjornalistas que o repórter estava podendocada vez mais ser independente e que,obviamente, a união faz a força. Não tínha-mos um modelo ainda. Quando fui fazermestrado em Londres, em 2006 e fiquei até2008, comecei a conhecer o mundo dosCentros de Jornalismo Investigativo e atrabalhar neles. Era um modelo que nãoexistia no Brasil. Muitos deles pergunta-

vam se eu não queria abrir uma filial aqui,mas era tudo muito vago. Era difícil vercomo isso poderia se materializar aqui.Não temos tradição de um jornal que saiado modelo comercial, um modelo que sejafinanciado só pelas assinaturas. Um mo-delo que estamos tentando começar aqui,e esse é um dos nossos desafios, é o de ongsou fundações que financiem jornalismo.Nos Estados Unidos já existe há muitotempo. A gente não sabia direito comoesse modelo ia caminhar no Brasil. Omodelo comercial leva a uma piora naqualidade do jornalismo, a cada vez me-nos investimento na apuração e a pesso-as que ficam apenas reescrevendo relea-

O

Natalia Viana Natalia Viana

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há aula de assessoria de imprensa! Ah, porfavor! Faz um curso técnico para isso. Jor-nalismo se aprende na prática. Não preci-sa de quatro anos se for um bom curso!

Jornal da ABI – Como você começou nojornalismo?

Natalia – Comecei da seguinte manei-ra: Não passei no Curso Abril e fiquei re-voltada. Uma amiga passou e foi trabalharna Contigo, umas das revistas mais lidas doBrasil. Depois de três meses ela largou e foiser psicóloga. (risos) Eu, que não tinha pas-sado no Curso Abril, que aliás é muito bom,fiquei muito frustrada. Aí comecei a fazerfrila e logo consegui emprego em um gran-de portal. Foi uma segunda chance: sereditora de um canal cultural dentro do siteque se chamava “São Paulo Virtual”. Fica-va selecionando o que acontecia de maislegal na cidade. Mas tudo era feito emcima de press release! Tudo! Ficava dentrode um prédio, com aquela luz artificial,fechada, e tinha que escrever sobre o queestava acontecendo na cidade! Eu não viao que estava acontecendo na cidade! Issome incomodava profundamente! Eu es-crevia “vá ver o filme tal”, e eu não tinhatempo de ver! Eu chorava todos os dias! Eganhava bem. Ligava pra minha amiga queestava na Abril, na Contigo, e ela choravade volta! Depois de um mês eu não agüen-tei e larguei esse trabalho! Pensava “não épossível... como é que estou escrevendo so-bre coisas que eu não vejo! Estou reescre-vendo releases o tempo todo”. Nuncaachei que isso seria o ‘fazer jornalismo’.

Jornal da ABI – Isso não é o “jornalismo”de internet?

Natalia – O jornalismo de internet ébastante assim. Mas há muita coisa que noimpresso é assim. O jornalista está sendoobrigado, nas Redações, a escrever cadavez mais em cada vez menos tempo!Muita gente fala que é culpa do jornalis-ta também. Aquele que pega o release efica reescrevendo. Acho que também é,mas também é muito massacrante. Umadas repórteres da Pública saiu do empre-go num grande portal de internet porquefoi chamada para uma reunião com todomundo e o chefe de Redação falou assim:“Se você está querendo fazer jornalismoinvestigativo, jornalismo correto, podeesquecer, aqui não é o seu lugar. Aqui que-remos títulos clicáveis, não importa se otítulo é um pouquinho diferente da ma-téria. Não importa enganar o leitor”.

Jornal da ABI – Ele usou essas palavras:“jornalismo correto”?

Natalia – Isso, usou. Então, ela saiu delá. É massacrante, mas o jornalista queouve isso e fica também não está acostu-mado a pensar como um. É um local paraquem só fica reescrevendo notícia. Noonline isso é muito forte, mas na tv tam-bém, com essa coisa de ‘notícias 24 horas’.Essa falta de checagem, de cuidado com ainformação, está extrapolando. Mas tudoé fruto do mercado.

ses. Mas para fazer jornalismo investiga-tivo tem que ter investimento de tempo,tem que apurar direito... Não sou do tipode jornalista que vão me contratar por-que vou vender revista ‘adoidado’; nãovou sair perseguindo Adriane Galisteu poraí por causa de um furo. O jornalismo deinvestigação não é furo. Raramente éfuro! Mesmo porque, hoje em dia o que dáfuro? Corrupção no Governo, políticocom dinheiro na cueca, atriz pelada... Ojornalismo de investigação é fundamen-tal para a democracia, mas não dá, neces-sariamente, resultado financeiro. Então,ele precisa ser incentivado de alguma ma-neira. A Ford e a Society Foundation já

têm essa visão e financiam esses projetosem vários lugares. A Ford Foundationapóia o Observatório da Imprensa e o Inter-vozes. O que sentimos? Vejo nos congres-sos da Abraji, todo ano, uma molecadanova que tem muita vontade de aprender.Eles chegam à Redação e não conseguem,não têm espaço para fazer um bom jorna-lismo. Às vezes há treinamentos paranovos jornalistas, mas chegam na Reda-ção e não conseguem...

Jornal da ABI – Não conseguem por quê?Natalia – Eu acho que é por causa da

estrutura comercial e devido à formacomo as notícias são produzidas. Há uma

regra ali que é a regra do mais rápido, doproduzir muito. Eles sofrem. Conheçomuita gente assim. Eu me formei na Puc,e dois terços dos que se formaram comi-go não estão mais no jornalismo.

Jornal da ABI – Mas isso também não épor causa da qualidade dos cursos, que sãomuito ruins e que não preparam bons pro-fissionais?

Natalia – Sim, há muitos cursos muitoruins mesmo. Os cursos de Jornalismo nãoensinam a técnica. Não ensinam nem acriticar, oferecer um olhar crítico. Nãoensinam a pensar. Não preparam para omercado e o mercado é ruim. Hoje em dia

independenteindependenteOlharOlhar

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Jornal da ABI – Essa não seria uma boa horade o jornalismo impresso diário investirna qualidade das reportagens, coisa queo online normalmente não faz?

Natalia – Nunca fui de jornalismo diá-rio impresso. Não saberia palpitar sobre oque eles devem fazer.

Jornal da ABI – Voltando para sua história...Natalia – Comecei a perceber que exis-

tia no mundo uma outra coisa. Então, em2004 fui fazer um curso promovido pelosite Narco News, na Bolívia, onde conhe-ci vários jornalistas independentes dasAméricas. Eu já estava na Caros Amigos etirei umas férias pra fazer o curso. Aícomecei a entender que poderia fazer oque eu acreditava que deveria ser feito demaneira independente! Lá conheci gen-te de uma rádio americana e eu me torneicorrespondente deles no Brasil. Me de-ram um gravador e me ensinaram a edi-tar em áudio. Então, eu fazia reportageme podia vender para uma revista, para umveículo online e para a rádio. Com isso, ga-nhava três vezes e conseguia ficar um mêsem cima de uma matéria, que é o que eugosto e sei fazer. Por que isso acontece?Há quebra da barreira da língua porque aspessoas falam várias línguas; há maisinteresse em histórias transnacionais e atecnologia permite. Viajei muito, eu comum gravador de áudio, um laptop e umacâmera. Baixo custo. Fiz grandes matérias.

Jornal da ABI – Você acha que o jornalis-mo que vocês estão propondo está faltandono Brasil? E mais ainda, as pessoas estãointeressadas nele?

Natalia – Sim, porque esse tipo de jor-nalismo não é de massa. Nem tudo tem queser de massa. Já conversei com o (Leonar-do) Sakamoto e com a Eliane Brum sobreisso, porque existe um mito de que textopara internet tem que ser curto. Não é ver-dade. Esses dois jornalistas escrevem tex-tos grandes na internet e todo mundo lê!Então, você vai chegar no site da Públicae vai ter certeza de que tudo foi apuradoao máximo possível, que é uma reportagempara a qual se ouviu o máximo possível defontes e que o assunto foi pensado de umamaneira completa. Quando os haitianoscomeçaram a chegar ao Brasil e você quersaber por que o nosso País está no Haiti,procura na Pública. E aí você vai ler sobreo drama dessas pessoas. Isso você não vaiachar em outro lugar e é fundamental. Nosportais vai achar milhões de coisas picadi-nhas. Nós vamos fazer investigação mes-mo! Por ter morado fora, tenho muitas re-lações com pessoas de outros países. Essafacilidade de passar informações pra forae ajudar um jornalista que vem para cá...esse tipo de dinâmica também é uma coi-sa nova. Não é uma estrutura enorme emque é necessário enviar um ofício burocrá-tico para um escritório... Hoje em dia é as-sim: ligo pro meu amigo que fala inglês, es-panhol... Pergunto se está a fim de fazer apauta. Ele escreve, eu traduzo. É uma outradinâmica! Mas há espaço pra isso? Há. Nãosei qual tamanho pode ser. Mas vejo mui-to potencial para a Pública, que tambémacaba virando um laboratório de experiên-cia de jornalismo. É uma tendência e isso vaicrescer. Há muita gente boa fazendo e que-remos incentivar. Há uma massa de jorna-

listas frustrados, que são massacrados, quenão conseguem fazer o que querem e vocêtem o potencial de fazer boas reportagensa custo baixo e bem feito.

Jornal da ABI – Como surgiu o WikiLeaksna sua vida?

Natalia – Depois que saí daquele tra-balho em que eu chorava todo dia, fui falarcom o Sergio de Souza e ele me arrumouum estágio na Caros Amigos, para ganhardez vezes menos. Fiquei lá e aí virei repór-ter. Aprendi com o Sergio de Souza e Ma-rina Amaral. Fiquei quatro anos e depoisfui para Londres fazer o mestrado. Quan-do voltei para o Brasil entrei nessa de jor-nalismo independente, es-crevi pra vários locais, TheGuardian, Sunday Times... Por-que fazia uma reportagembem feita em portuguêspara uma revista, um site,escrevia em inglês para forae também para rádio, tudona mesma apuração. Em2010, passei o ano fazendoo livro sobre a história dojornal Movimento, juntocom a Marina e o (Carlos)Azevedo, que eu conheci naCaros Amigos. No fim do ano,em novembro, um amigomeu, que é diretor de umcentro investigativo emLondres, me indicou para oWikiLeaks. Eles me ligaram.Não contaram nada, umacoisa cheia de mistério efalaram para eu ir pra lá. Eutopei. Tinha acabado de ter-minar o livro. Quando cheguei eles fala-ram: “Natalia, temos três mil documentosdas embaixadas brasileiras e nós precisa-mos divulgar no Brasil. Por favor pensenuma estratégia. Nós queremos veículosgrandes”. Depois eu pensei que não era fácilencontrar uma pessoa para fazer o que eufiz. Eles precisavam de um jornalista tãoindependente que pudesse viajar no diaseguinte pra Londres, porque não tinhaemprego fixo. Eles precisavam de alguémcom conhecimento de imprensa e políti-ca no Brasil e que conhecesse gente na im-prensa, mas que fosse independente e queentendesse o que era o WikiLeaks. O Wi-kiLeaks é basicamente o mesmo princípiodo jornalismo independente. Foi fundadopor duas pessoas que têm um propósito: ode publicar documentos secretos, de trans-formar isso em algo massivo. Aquilo queo jornalismo sempre fez. Não há nada denovo nisso, só adaptaram para a tecnolo-gia de hoje. Foram duas pessoas com umagrande idéia. De novo: tecnologia, arran-jo produtivo, novas maneiras de trabalhar.

Jornal da ABI – Como você selecionou osveículos para divulgar esses documentos?

Natalia – As pessoas criticam até hojecomo foi feito, mas acho que foi de umamaneira superlegal. Por que a Folha? Por-que é o maior jornal do País, além de teruma pessoa em que eu confiava, que é oFernando Rodrigues. Eu sabia que o queele combinasse comigo iria cumprir. Queele era jornalista de peso suficiente. Li-guei pra ele falando que estava trabalhan-do com o WikiLeaks e que queria que a

Folha fosse nossa parceira, mas não podiaadiantar nada sobre o vazamento e que sóia entregar o material no domingo. Ima-gina segurar a Folha com base apenasnuma ligação de uma jornalista que nãoera conhecida? Tinha que ser um jorna-lista que pudesse bancar essa situação... efoi o que o Fernando fez. Ele me escreveumilhões de e-mails e estava supernervo-so. Trabalhamos com a Folha na primeirasemana. Mas desde o começo o WikiLe-aks queria trabalhar com dois grandesveículos, porque um acaba monitorandoo outro... E qual seria o outro? O Estadãoé em São Paulo. O outro grande jornal éO Globo, que é no Rio e que também tinhauma pessoa em que eu podia confiar, aTatiana Farah, que é uma excelente jorna-lista. E tudo o que foi combinado do come-ço ao fim foi cumprido. E ficou uma dinâ-mica interessante, apesar de os dois jor-nais quase sempre darem um ângulo pa-recido; são pontos diferentes, textos di-ferentes. Eles entraram em uma parceriamuito interessante em que acordavamquais documentos dariam no dia seguintee um jornal não furava o outro. Cada umtrabalhava o texto a seu modo. Essa coi-sa da colaboração é parte da nova cultu-ra, não tem jeito. E aí, o que aconteceu?Eu, ao mesmo tempo em que tive que coor-denar tudo isso, revisava todos os docu-mentos, porque não podia ter nome deninguém que fosse sofrer ameaça, e tambémescrevia reportagens sobre os mesmos do-cumentos para um site do WikiLeaks emportuguês. Então saíam nos dois veículosmatérias com o viés deles e no site, com o

meu, que era muito diferente. Por exem-plo, os documentos da Copa. Existemdocumentos que os Estados Unidos fazemlobby para que o Brasil fortaleça sua segu-rança na Copa do Mundo, falando quepode haver terrorismo. O que a Folha deu?“Para Estados Unidos, pode ter terroris-mo”. O Globo foi semelhante. No meu foio seguinte: “De olho nas Olimpíadas, EUAfazem lobby e aumentam presença noPaís”. Porque para mim é isso, e na verda-de eles citam isso: Eles querem que asempresas americanas tenham certa segu-rança na Copa do Mundo e dobraram onúmero de agentes do FBI e da Cia. É umolhar completamente diferente.

Jornal da ABI – Como a CartaCapital en-tra nessa história?

Natalia – Como o site do WikiLeaks erapouco conhecido no Brasil, eu entrei emcontato com a CartaCapital, e falei: “Estoupublicando essas matérias diariamente.Vocês querem um blog?” Eles toparam. Es-sas mesmas matérias que eu já estava escre-vendo para o site do WikiLeaks começa-ram a ir para o meu blog na CartaCapitale foi recorde... Acho que 11 mil visitas emum dia. Eles me pagaram. Todo meu traba-lho para o WikiLeaks foi voluntário, já nãotinha mais de onde tirar dinheiro. Masforam só três meses com eles.

Jornal da ABI – Então, a crítica pela esco-lha dos dois veículos foi injusta?

Natalia – É. Muita gente criticou “Ah,mas por que O Globo e a Folha?”. Por con-ta de uma série de fatores. No Brasil há

DEPOIMENTO NATALIA VIANA, OLHAR INDEPENDENTE

A Pública em plena ebulição: no alto, Natalia ao lado de Luiza Bondemüller; acima, com Marina Amaral e Andrea Dip.

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uma forte animosidade contra a grandeimprensa, principalmente na internet.Isso é histórico. Uma das coisas que eusempre pergunto é por que o Brasil nãotem um grande veículo progressista, deesquerda? Historicamente não aconte-ceu. Então, realmente nossa impressa émais que conservadora. Há uma quanti-dade grande de pessoas que não se vê re-presentada e que tem uma animosidadecontra a imprensa. Então, essa crítica énormal. Mas usando critérios técnicos, aescolha foi a melhor. Não dava para daresses 3,5 mil documentos para um jorna-lista só. Precisava de uma equipe.

Jornal da ABI – Como foi o processo paravocê tomar conhecimento do conteúdo des-ses documentos que chegaram à sua mão?

Natalia – Assim que recebi lá na casa,fiquei enlouquecida... fiquei quatro diaslendo direto. Comecei do mais sensívelpara o menos, de acordo com a classifica-ção deles. Comecei pelo ‘Secret’ até che-gar no ‘Confidential’. Não necessaria-mente é a melhor classificação. Depoisvocê acha mais coisas. Eu fiquei mesescom eles e eu lia todo o dia. No fim, soua única pessoa no Brasil que leu todos osdocumentos. Fiz uma classificação e osjornais tinham suas equipes que leram dojeito que conseguiram. Mas os jornaisseguem o ciclo da notícia. Quando onegócio bombou, a Folha publicou váriascoisas na primeira página. O Globo tam-bém. Mas depois de dois meses, acabou ointeresse pela história do WikiLeaks. Aca-bou o interesse de furo e em termos devenda. E o jornal tem que vender, não é?Não adianta só ter uma coisa importan-te. Quando acabou esse tempo, aindahavia muitas histórias. Basicamente detrês tipos: que revelavam coisas interes-santes dos políticos do PSDB, coisas in-teressantes sobre empresas e histórias queestavam dispersas por alguns documen-tos que precisavam de um olhar maisatento. Esses documentos são uma base dedados fantástica! Então, fizemos a sema-na WikiLeaks na Pública. Foi mais ou me-nos no lançamento da Agência. Já tínha-mos publicado o especial sobre o Araguaia.Chamamos vários jornalistas que nós co-nhecemos e confiávamos para ficarem trêsou quatro dias lendo todos os documentosque não tinham sido lidos. Lemos todos! Eaí, só com o material desses documentos,que até tinham sido entregues para a Fo-lha e O Globo e que eles não fizeram nada,ou porque não leram, ou não acharaminteressante por questões editoriais mes-mo, a gente conseguiu pegar mais 50 re-portagens! Foi daí que saiu a história doSerra que tinha pedido ajuda para o Go-verno americano para treinar a Polícia deSão Paulo contra o PCC. Essa história saiuna Pública e muitas outras. Não há ne-nhum problema nisso, mas é um fatopolítico extremamente importante. OGoverno do Estado de São Paulo geral-mente não assume que o PCC é um gran-de problema. O diálogo do Serra com osamericanos é muito interessante. Porqueo embaixador americano fala “ok, a gen-te pode ajudar, mas não é melhor você falarcom o Governo federal primeiro?”. Por-que não se pode fazer parceria passandopor cima do Governo federal. Então, tudo

as pesquisas para esses documentários temque ser uma pessoa que tenha justamenteessa obsessão de buscar, de convencer afonte a falar, de aprofundar. Trabalhei emcada documentário um pouco mais de doismeses, quase três meses.

Jornal da ABI – Como o jornalista inde-pendente deve atuar? Seu trabalho é maissolitário?

Natalia – Não sou a favor do jornalistaindependente como um lobo solitário. Soua favor da troca de experiências. Por issoresolvemos criar o Conselho Consultivo daPública, que antes não existia. Queremoscada vez mais que a Pública seja um centrode discussão e um laboratório de formatos,de estudos para onde o jornalismo pode ir.Não estamos fechados a nenhuma idéia,mas acreditamos no jornalismo e no jorna-lista independente, nos valores básicos dojornalismo, no rigor jornalístico. Aprende-mos com Sergio de Souza.

Jornal da ABI – Essa troca de experiênci-as também se reflete na republicação, pelaPública, de material de parceiros interna-cionais, de jornalistas de outros países,não é mesmo?

Natalia – Sim. Temos pessoas que man-dam matérias. Tenho amigos na Bolívia.Grandes jornalistas, um correspondenteda Times na Bolívia, correspondentes do LeMonde. O jornalista apaixonado quer quesua reportagem saia no máximo de línguaspossível. Eles acham ótimo que saia emportuguês! Então traduzimos e publica-mos. Viramos uma espécie de curadoresdesse material, porque selecionamos o queinteressa para o público brasileiro, damosuma adaptada, editamos. Mas além de serum núcleo para discutir jornalismo e re-portagem, queremos trazer jornalistas in-teressados nisso e discutir idéias de comofazer de maneira nova. Sentimos a faltade projetos jornalísticos. O Brasil não temprojetos jornalísticos.

Jornal da ABI – Gostei muito de uma defi-nição que você deu do que é ser jornalistae está na internet. Você se lembra?

Natalia – Tem aquela do gato: ‘jorna-lista investigativo é como um gato que vêmeia gaveta aberta e quer entrar, querabrir’. (risos) Você está trabalhando e chegauma notícia dizendo: ‘Polícia nega que hajaacampados no Anhangabaú’, isso na épo-ca do Ocuppy Wall Street. O que você vaifazer? Poxa! Vai no Anhangabaú checar,ora! Eu não conseguiria não ir lá! (risos) Onível de não checagem é absurda!

Jornal da ABI – É boa essa definição, maso que você falou tem mais impacto. Vocêdisse que o jornalista tem que estar com-pletamente dentro de sua reportagem. Temque dormir com ela, falar sobre ela comos amigos, refletir, tentar dominá-la, com-preendê-la, melhorá-la, prová-la. Jornalistaé ver o mundo de uma forma singular,sempre observando e analisando a mídia.

Natalia – Nossa, eu falei isso? Bonitomesmo! É aquele negócio da obsessão,você está com uma pauta e não conseguepensar em outra coisa. Tive uma conver-sa sobre isso com o Julian (Assange).Quando se faz algo de forma apaixonadaé quase como uma causa. Acreditamos que

o que é minimamente relevante a gentetem que publicar. Os diálogos do FHC coma embaixada, por exemplo. Não há nadade extremamente relevante, mas é mui-to importante saber o que seu ex-Presi-dente foi fazer na Embaixada dos EstadosUnidos. Não sei por que os jornais nãoderam. Vai ver que acharam que não eranotícia. Tudo bem, mas vamos deixar issoregistrado. Houve essa conversa. Assimcomo com a Dilma, com o Lula, CelsoAmorim, que tem infinitos depoimentos.O Nelson Jobim. E nós demos isso. Umadas coisas que eu acho mais legais é oAndréa Matarazzo falando para o Côn-sul de São Paulo que o Alckmin é da OpusDei. Que babado... e os jornais não deram.Não faço nenhum juízo de valores... masé um fato digno de nota. Há um caso doPresidente da Vale reclamar com o Em-baixador americano que o Governo bra-sileiro estava fazendo um monte de inge-

rências na empresa, querendo mandardemais na Vale.

Jornal da ABI – Essa parceria com WikiLe-aks te marcou também no sentido negativo?

Natalia – Acho que não, mas até hojeas pessoas acham que eu sou representan-te deles. Não sou e nunca fui. Também éinteressante que desde o início falava queeu era colaboradora deles, mas esse termoa mídia tradicional não entende. Acon-teceram umas cinco vezes de eu dizer quesou colaboradora e o cara escreve que sourepresentante. Não posso falar em nomedo WikiLeaks. Uma revista chegou a pu-blicar “uma espécie de representante”.Colaboração é o novo modelo. Mas... fi-cou marcado sim. Não acho isso ruim,porque acho sensacional o projeto deles.

Jornal da ABI – Quero voltar um pouco.Por que você decidiu seguir a carreira dejornalista?

Natalia – Costumo brincar que fuifazer jornalismo pelos motivos errados,porque sempre gostei muito de escrevere porque sou muito curiosa. Sempre gos-tei de história no sentido da essência.Uma das coisas de que mais gosto nomundo é entrevistar pessoas. Fico duashoras fazendo uma entrevista, se deixa-

rem. Mas não conhecia ninguém na área.Lia jornal, não muito. E a faculdade foiextremamente brochante. Na faculdadea gente devia poder experimentar, masnão é bem assim. Eu saí de lá muito desa-nimada. Então, comecei a trabalhar comlivros infantis na Ática e estava achandotudo lindo. Até que fui fazer o Curso Abrile depois passei a trabalhar como free-lan-cer. Sempre propunha pautas de compor-tamento na Capricho, Vejinha. Mas quan-do comecei a trabalhar na Caros Amigos,o Serjão foi muito legal comigo e disse“Você tem jeito pra coisa!”. Mas eu nãoachava que eu era alguma coisa. Foi lá queeu descobri isso. Lá eu descobri que podiaescrever absolutamente do jeito que euqueria, ter um tempo de apuração. Quan-do eu chegava e falava “ai, não sei se eu vouconseguir terminar isso a tempo”, Serjãorespondia “Leve o tempo que tem que le-var, mas faça bem”. Foi assim que aprendi

a fazer jornalismo. O Serjão nunca repri-miu minha curiosidade. Não acho que issoé melhor ou pior jornalismo, mas é o tipode jornalismo que eu faço, que eu sou. É ojornalista obsessivo que vai checar os da-dos. E é chato... checar os dados é chato.Mas eu adoro! (risos)

Jornal da ABI – Você foi produtora assis-tente de um documentário, o Black Money?

Natalia – Na realidade fui de dois. OBlack Money é do Lowell Bergman, que éo jornalista retratado no filme O Informan-te; era o Al Pacino. O documentário é muitolegal; mostra casos de corrupção transna-cional. Há uma lei nos Estados Unidos se-gundo a qual se uma empresa americana pra-ticar corrupção em outro país ela pode serpunida. Eles precisavam de alguém emLondres para pesquisar e ajudei a fazerisso. Também fiz um trabalho semelhan-te para um documentário sobre guerrabiológica chamado Anthrax War, para umarede canadense. Foi superlegal porquenunca tinha trabalhado em tv.

Jornal da ABI – Como aconteceu isso?Natalia – Fui indicada por alguns ami-

gos do Centro de Jornalismo Investigati-vo quando eu estava em Londres, em 2008.É um trabalho bem específico. Para fazer

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fazemos algo fundamental e que vaimelhorar o País. Vai qualificar a democra-cia, melhorar os debates democráticos.Quando estamos com uma matéria é acoisa mais gostosa do mundo.

Jornal da ABI – No início de agosto come-çaram a ser publicadas as primeiras repor-tagens vencedoras das Microbolsas daPública. Como foi a montagem desse pro-jeto e a seleção dos profissionais ganha-dores? Houve o retorno esperado?

Natalia – O Concurso de Microbolsasda Pública foi muito bem sucedido, nanossa opinião. Qual era a idéia? A Públi-ca pretende não apenas produzir repor-tagens próprias de profundidade, mastambém incentivar jornalistas que que-rem fazer suas reportagens de maneiraindependente. É o chamado empreende-dorismo no jornalismo. Nós percebemosque seria muito mais rico abrir uma cha-mada pública para que os próprios jorna-listas enviassem propostas de reportagemdo que simplesmente pautar as pessoas oucontratar trabalhos como freelancer. Etambém achamos importante fazer umconcurso em que os jornalistas não pre-cisassem estar ligados a um veículo paraparticipar – o que acontece muito nosconcursos de jornalismo. Com a internet,a figura do jornalista que consegue fazerjornalismo independente ganha muitaforça. Quando abrimos o concurso, emfevereiro, recebemos 70 propostas detodo o Brasil, muitas delas excelentes. AEliane Brum, que é nossa conselheira eajudou a votar nos selecionados, comotodos os nossos conselheiros, resumiu deuma maneira muito legal: ‘Foi bom cons-tatar que há tanta gente interessante poraí’. Selecionamos os quatro vencedores, eao longo de três meses fizemos um acom-panhamento, conversando sempre comos vencedores, trocando idéias e orien-tando a pauta. É claro que sempre há con-flitos, o que é perfeitamente normal emuma relação profissional em que todos oslados são muito apaixonados – o que, euposso garantir, é o caso tanto da equipe daPública quanto de todos os vencedores. Areportagem da Natália Garcia, sobre oCingapura que dá de frente para o Itaque-rão, é um belo retrato do Brasil que pre-tende lucrar algo com a Copa – ela encon-trou moradores se preparando para alugarseus apartamentos por R$ 20 mil para osjogos. Já o retrato dos assentamentos doMST em São Gabriel, no Rio Grande doSul, feito pelo Jefferson Pinheiro e o An-dré de Oliveira, trouxe uma realidadecomplexa e muito, muito triste, que de-talha o abandono do projeto de reformaagrária, como uma política sistemática,mesmo. Temos outras a caminho, comoum retrato muito interessante de umguerrilheiro gaúcho que lutou na guer-rilha do Che Guevara na Bolívia, depoisda morte dele, um personagem poucoconhecido ainda, feito pelo jornalistatambém gaúcho Daniel Cassol. E hámais a caminho, porque a rede BrasilAtual, uma rede de comunicação ligadaa sindicatos, abraçou a nossa propostae topou financiar mais algumas das pau-tas, em conjunto. Não posso revelar aspróximas pautas, mas serão publicadasaté o final do ano. No ano que vem, abri-

remos o Segundo Concurso de Micro-bolsas da Pública.

Jornal da ABI – Vocês receberam propos-tas de jornalistas que só trabalham emRedações tradicionais, com emprego fixo?

Natalia – Sim, recebemos algumas, eclaro que nos interessa também. Como aPública trabalha com uma licença daCreative Commons (creativecommons.org)e o objetivo é que as reportagens sejam omais republicadas possível, deixamosaberta a possibilidade de os veículos pu-blicarem a reportagem também. Aí, vaidos veículos toparem publicar algo semter exclusividade, que é uma lógica umtanto nova no mercado. Mas recebemosrespostas bem positivas neste sentido,mais do que o esperado. No ano que vem,vamos incentivar mais!

Jornal da ABI – A evolução da conectivi-dade pode ajudar muito no trabalho dojornalismo! Isso deve ajudar muito vocês...

Natalia – O negócio da conectividadeajuda muito. Outro dia estávamos, eu,Andréa Dip e Marina Amaral, cada uma nasua casa, editando e publicando matérias.

Jornal da ABI – O Jornal da ABI é um bomexemplo disso: temos colaboradores noRio, São Paulo, Vitória, São Bernardo, São

Caetano, Natal e outras cidades e todosse encontram e se reúnem na internet.Usamos o Twitter até durante o fechamen-to, para esclarecer dúvidas com fontes erepórteres...

Natalia – É isso! Nossa colaboradora emFloripa revisa e coloca nas redes sociais.Isso é ótimo. É isso que está acontecendo.Mas também uma das coisas que estáacontecendo na comunicação e jornalis-mo, no Brasil, é que há muita notícia eopinião, e pouca reportagem. Mesmo osblogs que tentam fazer frente têm muitaopinião e gritaria com conteúdo poucoconsistente. E há outra coisa: eu não souuma jornalista prioritariamente de inter-net. Nasci sem internet; a primeira vezque tive e-mail eu tinha 19 anos. Fiz issopra me comunicar com minha família,quando fui para Londres fazer intercâm-bio; no meio da faculdade, fui ser garçone-te. Lembro, quando eu estava na CarosAmigos, de alguém que falou sobre a exis-tência “de um tal de Google”. Essa geraçãode agora já nasce com tudo isso e pensa di-ferente, tem outra agilidade. Desde o anopassado, eu, Marina Amaral, Tati e todosos que estão com a gente nessa empreita-da temos que aprender a fazer tudo, a fa-zer o site, a mídia social, editar foto, e issotoma tempo. É um conhecimento não sótécnico, mas estético também. É uma ten-

dência irreversível. Estamos fazendo ques-tão de que todos os envolvidos na Públi-ca consigam fazer todo o processo, o quefica muito dinâmico e coletivo.

Jornal da ABI – Acabou de estrear um hot-site na Pública chamado “Os Caminhosda Corrupção”, sobre os problemas comverbas para Educação na Amazônia. Comofoi desenvolvido esse projeto e como che-garam aos números apresentados?

Natalia – Esse projeto, que a gentechama de “O futuro da Amazônia”, ana-lisa a educação básica na Região Norte apartir de dados públicos, que foram com-pilados, cruzados e analisados pelo ótimojornalista Fabiano Angélico, que é espe-cializado em jornalismo de dados, umatendência que tem crescido no jornalis-mo investigativo. Ele foi financiado pelaFundação Carlos Chagas, o que é legal emsi, porque é a primeira fundação brasileiraque financia um projeto – é muito impor-tante que se crie cultura de financiamen-to de jornalismo investigativo dentro doBrasil, algo que hoje existe muito pouco.O projeto é muito bacana porque alia ojornalismo de dados – publicamos info-gráficos mostrando como a educação daRegião Norte fica atrás da do resto do Bra-sil, e depois cruzando os resultados comos relatórios da CGU (Controladoria-Geral da União) que apontam problemasna administração da verba federal desti-nada à educação em 32 cidades dessa Re-gião, incluindo indícios de fraude e dedesvios. Agora, estamos na segunda fase,que é a de aliar as descobertas do nossocruzamento com o que chamamos de“shoeleather journalism”, que é a velhaarte de sujar os sapatos. Nossa repórter,Ana Aranha, vai até algumas cidades ondeforam encontrados grandes problemaspela CGU para traçar o retrato humanodo que acontece de verdade quando osrecursos da educação são desviados ou malaplicados. Essa aliança do jornalismo dedados com a boa e velha reportagem trou-xe um resultado muito rico.

Jornal da ABI – O Brasil está entre os cin-co países onde mais se assassinam jorna-listas no mundo. Com uma estatísticadessas, quais são os cuidados que jorna-listas independentes devem tomar paratrabalhar em regiões onde há clara amea-ça à liberdade de imprensa?

Natalia – Todo jornalista independen-te tem que tomar ainda mais cuidado,porque ele não está ligado a um veículo. Ésempre importante ter um ponto de apoio,conhecer o território onde se está pisando,entender os riscos antes mesmo de viajarpara algum local. Mas nós percebemostambém que muitas vezes há ameaças ouações que são apenas para intimidar o jor-nalista. Isso não pode e não deve aconte-cer, e um grande amigo nosso, o jornalis-ta britânico Andrew Jennings, sempre dizque é muito importante não se intimidar.Muitas vezes, em especial se tratando dejornalistas mulheres, querem botar medo.

Jornal da ABI – A Pública já sofreu algu-ma ameaça?

Natalia – Olha, não gosto muito defalar disso, até porque dá importância apessoas que querem mesmo é intimidar.

Marina Amaral e Natalia Viana na escada do casarão que abriga a Pública, em São Paulo.

DEPOIMENTO NATALIA VIANA, OLHAR INDEPENDENTE

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Quando sofremos algum tipo de intimi-dação, comunicamos a diversas pessoas edeixamos claro que não aceitamos isso.Não se pode intimidar jornalistas empleno século 21 no Brasil. É inaceitável!

Jornal da ABI – Como tem sido a aceita-ção das matérias da Pública pelos republi-cadores? Tem aumentado o número derepublicadores satisfatoriamente?

Natalia – Sim, o número de republica-dores tem aumentado bastante. Iniciamosnossa operação, com uma equipe, financi-amento e um site customizado, em janei-ro deste ano. Desde então, nossos republi-cadores saltaram: hoje são mais de 40, en-tre veículos tradicionais, alternativos ouindependentes e blogs. Entre eles estão, porexemplo, a EBC, o Yahoo Brasil, a CartaCa-pital, o jornal Lance!, e o Huffington Post, omaior site noticioso dos Estados Unidos...Veículos como o Estado de S.Paulo e os por-tais Uol e Terra têm usado nossas reporta-gens como referência, como ponto de par-tida para realizar matérias próprias, o queé excelente.

Jornal da ABI – Por que você acha que achamada grande imprensa ainda não estárepublicando algumas dessas reportagens?

Natalia – Primeiro, eu não costumousar este termo “grande imprensa”, por-que está carregado de conotações. Euchamo os veículos comerciais estabeleci-dos de tradicionais, enquanto a Pública eoutras organizações parecidas buscammodelos econômicos diferentes, não co-merciais e sem fins lucrativos. Eu vejoque a mídia tradicional está crescente-mente usando a Pública como fonte, pelomenos. E é normal que seja um processolongo, porque é um modelo que não exis-tia antes. Nunca se tinha ouvido falar deuma agência apenas de reportagens. Tam-bém não havia uma organização que pro-duz apenas reportagens aprofundadas,financiada por fundações. Na nossa im-prensa há uma carga política muito gran-de, e é muito freqüente acusarem tal veí-culo de estar deste ou daquele lado. É difícildemonstrar que somos independentes,de fato, que não estamos em favor desteou daquele governo ou partido. Que onosso negócio é monitorar os poderes,sejam eles governos, empresas, institui-ções – sempre com um foco em transpa-rência e direitos humanos. Lendo as nos-sas reportagens é fácil entender isso.Como o jornalismo de interesse públicoe sem fins lucrativos é uma tendênciacrescente no Brasil e no mundo, acho quea idéia vem se firmando aos poucos.

Jornal da ABI – Há algum novo projeto emgestação que você possa adiantar?

Natalia – Estamos realizando uma sé-rie de reportagens especiais sobre a regiãoamazônica, um projeto bem grande e quedeve trazer frutos muito legais até o fimdo ano. Aproveito, aliás, este espaço, paraconvidar os veículos que se interessarempelo trabalho e por utilizarem nosso con-teúdo para nos procurarem: temos mui-ta coisa boa sendo produzida, e temosmuito interesse que veículos impressosusem nossas reportagens!

Diante da realidade digital, como ain-da se produz um best-seller, um hit ou umblockbuster? Por que a pipoca e a Coca-Cola desempenham um papel decisivo naindústria do cinema? Como Bollywoodseduz os africanos e as novelas brasilei-ras apaixonam os russos? O que a Disneytem em comum com a propaganda chi-nesa e os meios de comunicação muçul-manos? Perguntas inqui-etantes e politicamentedelicadas como essas sem-pre tiveram suas respos-tas. Mas em menores tesesacadêmicas e debates uni-versitários, bem à bocamiúda. Nada com a abran-gência que Frédéric Mar-tel dá em seu novo livro,Mainstream (CivilizaçãoBrasileira), que traça ummapa da guerra global dasmídias e das culturas empleno século 21. Melhor:com linguagem mais acessível ao grandepúblico e um verniz acadêmico, que lheconfere respeitabilidade.

Na verdade, o mapa das grandes mídi-as globais foi traçado a partir de um pro-jeto mais amplo, um vasto estudo de cam-po conduzido durante cinco anos pelodoutor em Sociologia, jornalista, profes-sor e apresentador de rádio Frédéric Mar-tel. Nesse período, ele entrevistou 1.250pessoas, em 30 países e 150 cidades doscinco continentes. Inclusive no Brasil.Com isso, analisou a ação dos protagonis-tas, a lógica dos grupos, acompanhou acirculação de conteúdos e demonstrouque, embora os produtos nem sempre se-jam artísticos, as estratégias para sua pro-dução e difusão impressionam.

A primeira parte do livro é dedicadaao entertainment estadunidense. Políticaexterna, a trajetória e o novo papel dosgrandes estúdios de cinema, o marketingpor trás de personagens como o HomemAranha e Indiana Jones. Também o per-curso feito por um modelo econômico,que foi dos românticos drive-in aos mo-dernos multiplex. Mas não fica somen-te nisso. Ainda analisa a produção musi-cal, o papel das universidades nesse mun-do e as tendências do jornalismo cultu-ral, oferecendo ao leitor um vislumbre donovo crítico.

A segunda parte trata mais propria-mente da guerra da cultura mundial.Não ficam de fora a política chinesa, aestratégia globalizadora de Bollywood,as animações japonesas e a geopolítica– uma palavra onipresente em toda aobra – das telenovelas. Há coisas curio-sas, como a estratégia da Al Jazeera parase tornar a principal rede do mundo ára-be. E preocupante, no caso, o provávele temido declínio dos conteúdos produ-

Outro portentoso estúdio visitadopor Martel fica a sudoeste do Rio de Ja-neiro. É a partir do Projac, a CentralGlobo de Produção, com seus 130 hec-tares, dez estúdios, cenários montadossobre rodas que transformam sonhosem realidade e 65 mil costumes, produ-zidos ali mesmo, na oficina de costura,e alinhados ao longo de quilômetros, queele mostra como esse produto conquis-tou o mundo. Mesmo sendo bastantediferentes do norte-americano, quetraz poucos episódios e com históriasque geralmente se encerram no própriocapítulo, as telenovelas brasileiras sãoexportadas para 104 diferentes países,da Romênia, no Leste Europeu, ao Ma-greb, no Norte da África. Entretanto,apesar de a briga ser global e travada comprodutos argentinos, norte-americanose mexicanos, o principal trunfo é casei-ro: a aposta no desenvolvimento brasi-leiro. Para os executivos da Globo, omercado nacional deve ser ampliado, deseis milhões de consumidores com po-der aquisitivo significativo para quase100 milhões, em breve.

É essa geopolítica das mídias e, portabela, das culturas pelo mundo quemove a narrativa de Mainstream. Comênfase declarada na quantidade e não naqualidade. Portanto, não se prende a aná-lises de tantas atrações de gosto duvido-so, embora alguma crítica sempre exista.Mais interessante, todavia, é a discussãotravada a respeito do futuro dessa culturadiante da reprodução digital e da inter-net. As opiniões se dividem quanto ao queesperar daqui para frente com a morte dasmídias físicas, como cds e dvds, dos apa-relhos que as reproduzem e das lojas queas comercializam. Isso traria a reboque ofim de rádios e tvs generalistas e a “gene-ralização” do modelo on demand, sem dis-tinção entre fechado e aberto? Aliás, semdistinção entre televisão e internet? Poroutro lado, com a passagem do texto parao digital, livrarias e mesmo bancas de jor-nal serão trocadas pela “nuvem”, a cloudcomputing?

Na obra, as opiniões se dividem. Háquem pense que a internet é uma revo-lução que trará mudanças nas platafor-mas, sem afetar profundamente os meiosde comunicação e os modos de leitura.Outros são mais radicais. Com transfor-mações fundamentais como a participa-ção nas redes sociais, a hibridação cultu-ral, a contextualização do Google, a agre-gação de conteúdos, a desintermediaçãoe a cultura do compartilhamento, apos-tam que tanto copyright quanto os inter-mediários se tornariam obsoletos. Mui-to difícil imaginar esse cenário. É quasecerto que, seja qual for o resultado, eledeverá reforçar ainda mais o mainstre-am. Conhecer para onde vai a mídia glo-bal, o mapa da guerra digital, mais queoportuno, é essencial.

zidos no Velho Mundo rumo a uma qua-se irrelevância mundial.

O caminho das ÍndiasA origem de Mainstream é a Acade-

mia, mas muitas vezes a obra parecemais uma investigação sociológica ouuma autêntica reportagem, o que con-fere dinamismo e sabor ao texto. É dessamaneira que Martel explora as séries detv e as telenovelas, dois dos produtos de

maior sucesso do entre-tenimento atual, sejanos Estados Unidos, poraqui, na Ásia ou no Ori-ente Médio. Para expli-car a razão desse inusita-do fenômeno, ele viaja omundo. Na Coréia doSul, onde uma série cha-mada Boys Over Flowers,uma espécie de Sex and theCity masculina e adoles-cente em 24 episódios,faz tremendo sucesso,entrevista atores, produ-

tores e empresários e mostra como o paísaprendeu a vender não um produto, mashistórias e formatos capazes de conquis-tar lugares tão diferentes quanto China,Cingapura e até os vizinhos do Norte.

No Egito ainda dos tempos de HosniMubarak, a pauta é outra: as novelas doRamadã. Para compreender o que estápor trás delas, o autor passeia pela MediaCity, uma gigantesca central de produçãocom estúdios e cenários construída nodeserto, a uma hora de carro do Cairo,perto das pirâmides. Lá, são produzidastodo ano mais de 20 novelas com 30 ca-pítulos e 50 minutos de duração cada. Po-pulares em todo o Oriente Médio, elasfazem sucesso principalmente na épocado Ramadã, quando toda a família ficaem casa por conta do mês do jejum sagra-do. As tramas trazem questões da vidacotidiana, problemas conjugais e sociais,relacionamentos. Sempre com um fun-do moral, o do islã. Ainda assim, há espa-ço para romance. Em países mais abertose tolerantes, como o próprio Egito, Mar-rocos, Tunísia, Líbano, Síria ou Palestina,há cenas de mulheres sem véu e beijosentre casais. No Golfo e na Arábia Sau-dita, elas são cortadas.

Mesmo concebido antes da Primave-ra Árabe, o debate que o livro traz sobreessa Cinecittà do Oriente Médio conti-nua atual. Já antes os mais jovens pressi-onavam por menos melodrama, maisação. Menos roupas, mais beijos. Isso temcerto peso. Entretanto, as fontes ouvidaspelo autor já explicavam que, nos últimosanos, as atrizes voltaram a usar o véu.Tanto que as manifestações sorrateiras deislamização já se multiplicavam no audi-ovisual egípcio, prenunciando um deba-te contemporâneo que opõe duas verten-tes: a globalização e a islamização.

CULTURA DE MASSA

POR MARCOS STEFANO

Estudo resultante de entrevistas com 1.250 pessoas de 30 países e 150 cidades em cinco continentes analisaa indústria do entretenimento e suas manifestações, desde a Bollywood indiana às novelas da TV Globo.

A guerra global das mídias

Colaborou Desirèe Luíse

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Há exatamente 110 anos o Homemchegou à Lua. Devidamente trajada defraques, cartolas e bengalas, uma expedi-ção saiu da Terra dentro de uma cápsula,impulsionada por um canhão, e atingiudiretamente o “olho” no nosso satélitenatural. Lá chegando, nossos solenes as-tronautas entraram em conflito com ha-bitantes lunares, foram levados a julga-mento pelas autoridades de lá, apronta-ram a maior confusão, mas conseguiramfugir a tempo de “despencar” da Lua, ca-indo com segurança de volta em Paris,cidade de onde haviam decolado. Tudoisso aconteceu em 1902, e foi filmadopelo francês Georges Méliès. A partir dolivro Viagem à Lua, de Júlio Verne, Mélièslevou para as telas do cinema esta simpló-ria, inesquecível e clássica aventura depouco mais de 11 minutos de projeção. Eentrou definitivamente para a História.

Naquele momento, o cinema aindanem era considerado arte e sua invençãomal completava sete anos de vida. Antesde Georges Méliès começar a criar suasestrepolias visuais, os filmes não passa-vam de cartões postais em movimento,de imagens que se mexiam, de “movingpictures”, expressão que originou o atéhoje utilizado termo “movies”. Foi atra-vés da câmera de Méliès que os filmes evo-luíram de uma mera invenção tecnológi-ca para o status de linguagem artística.

Nascido em Paris em 8 de dezembro de1861, Georges Méliès desde cedo foi resis-tente à idéia de se tornar um industrial doramo de sapatos, como seu pai. Com for-te inclinação para as artes, estudou dese-nho, escultura, pintura e manipulação debonecos e marionetes. Após servir o exér-cito, matriculou-se na École de Beaux Arts,apesar da forte resistência da família. Con-tinuou os estudos em Londres e regressoua Paris, onde começou a trabalhar como ilu-sionista, ao mesmo tempo que desenhavacaricaturas para uma publicação de humor,sob o pseudônimo de Geo Smile. Mas aspressões da família eram cada vez maio-res, e a aposentadoria de seu pai obrigouGeorges – ao lado do irmão Gaston – aassumir a indústria de calçados.

Em 1888, porém, uma proposta irrecu-sável fez Georges vender a Gaston suaparte nos negócios para seguir finalmen-te seu caminho artístico: a viúva do legen-dário mágico ilusionista Jean Eugene Ro-bert Houdin estava colocando à venda ofamoso Teatro Robert Houdin, e estachance George não poderia perder. Robert

Houdin (que não deve ser confundidocom Harry Houdini, mágico húngaro quefez muito sucesso no show business ame-ricano) havia sido um verdadeiro mito emseu tempo, encantando platéias com suasmágicas e truques. Ter acesso ao seu teatroe talvez até aos seus segredos era umapossibilidade que fascinava Georges Mé-liès, então com 27 anos. Assim, o ex-exe-cutivo de uma próspera indústria de calça-dos comprou da viúva todas as instalaçõesdo teatro e durante sete anos obteve algu-ma fama e algum dinheiro com shows demagia e ilusionismo.

Méliès poderia ter passado o resto davida sobrevivendo da mágica, mas suacuriosidade e sua inquietação artísticafizeram que ele estivesse no lugar certo,no dia exato: como não poderia deixar deser, o irrequieto “herdeiro” de Houdinestava presente no histórico Grand Caféde Paris, no não menos histórico 28 de de-zembro de 1895, data em que os irmãosLumière apresentaram ao público e à im-prensa a invenção do cinematógrafo.

Ele ficou absolutamente fascinado poraquelas trêmulas imagens em movimentoexibidas pelos Lumière. Naquela noite,chegou a conversar com Antoine Lumiè-re e pediu que ele lhe vendesse um exem-plar do aparelho; temendo concorrênciadentro de Paris, Antoine recusou. Mélièsentão viajou até Londres, onde comprouum projetor Bioscope da empresa do con-corrente Robert W. Paul e uma série defilmetes feitos para serem exibidos em ci-netoscópios, uma espécie de precursormenos elaborado do cinematógrafo. Semperda de tempo, em 4 de abril de 1896,incorporou curtas projeções cinemato-gráficas aos seus shows de magia.

Pouco depois, projetou e construiuseu próprio modelo de câmera, comprouuma grande quantidade de filmes vir-gens e passou a rodar suas próprias pro-duções sob a orgulhosa chancela deStar Film, onde, sem cerimônias, plagi-ava descaradamente os filmes dos Lu-mière (incluindo uma chegada de trema uma estação).

Os efeitos especiaisDurante aquele ano, Méliès rodou 78

pequenos filmes (média três minutoscada), e apenas um deles é digno de regis-tro histórico: Escamotage d’une Dame ChezRobert Houdin. A princípio, o filme mos-tra apenas um breve show de mágica,onde uma mulher desaparece sob ummanto, mas historicamente Escamotage...é considerado o primeiro trabalho a uti-lizar o recurso do stop motion, inventa-do pelo próprio Méliès. E inventado poracaso. Diz a lenda (quando o assunto écinema, é difícil diferenciar realidade deficção) que certo dia, enquanto rodavaum filme pelas ruas de Paris, a manivelada filmadora de Méliès emperrou poralguns segundos, retomando seu movi-mento normal logo em seguida. Na horada revelação, o mago/cineasta se surpre-endeu com o efeito inesperadamenteobtido, onde um automóvel comum “setransformou” num carro fúnebre. Comcerteza, a manivela parou enquanto oprimeiro automóvel era filmado, e vol-

A ressurreição de Méliès,que levou o homem à Lua

Filho de um fabricante de sapatos, o cineasta francês criou os efeitos especiais nacinematografia e mais de um século depois ganhou nova vida num filme de Martin Scorsese.

POR CELSO SABADIN

CINEMA

Exímio desenhista, Méliès pintava as cenas imaginadas por ele antes de começar a filmar, como a famosa chegada à Lua em Le Voyage Dans la Lune.

FOTOS: DIVULGAÇÃO

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Sucesso de público, de crítica e gran-de vencedor do Prêmio Oscar desteano, A Invenção de Hugo Cabret surpre-endeu muita gente: vários espectado-res que aplaudiram o filme não sabiamque, pelo menos em parte, a históriamostrada por Martin Scorsese era real.Não foram poucos os que se espanta-ram ao saber que Georges, o persona-gem interpretado na tela por Ben Kin-gsley, realmente existiu. Trata-se deGeorge Méliès, mágico, diretor tea-tral, cenógrafo, ator, técnico e cineas-ta da era do cinematógrafo mudo, querevolucionou a Sétima Arte e termi-nou seus dias anonimamente traba-lhando na estação ferroviária de Paris.

Após encantar gerações de cinéfilosem todo o mundo com suas elaboradasfantasias cinematográficas, Méliès, con-siderado o inventor dos efeitos especiais,pode agora ter sua obra amplamenteapreciada na exposição Georges Méliès –Mágico do Cinema, em cartaz até 16 de se-tembro no Museu da Imagem e do Som-Mis da capital paulista. O lançamentodo filme, contudo, não foi o impulsiona-dor da iniciativa, que já estava agenda-da mesmo antes de sua chegada aos cine-mas. “Foi uma feliz coincidência”, expli-ca André Sturm, Diretor do MIS.

Ocupando dois andares do Museu, aexposição é dividida em seis seções, queremontam a trajetória do artista e suasinvenções revolucionárias: Méliès Má-gico, Méliès Mágico e Cineasta, O Es-túdio Méliès, O Universo Fantástico deMéliès, A Viagem à Lua e Fim.

“Não é uma exposição convencio-nal”, explica Sturm. “Ela é inédita noBrasil e soma o acervo da Cinemateca

Na exposição inédita,o mago esquecido

Francesa com o material herdado pelaneta do artista, Madeleine Malthête-Méliès, que foi adquirido em 2004 peloCentro Nacional de Filme, com o apoiodo Fundo Patrimônio do Ministério daCultura. Já o Mis concebeu duas atra-ções exclusivas para esta mostra: a re-produção da nave de Viagem à Lua, ondeas pessoas poderão assistir ao filme, e aInstalação Méliès”, finaliza.

Trata-se de uma instalação especialonde grupos de até oito pessoas podemcriar seus próprios filmes de até 30 se-gundos em meio a quatro cenáriosmóveis inspirados na obra de Méliès:De Volta à Pré-história, Exploração doEspaço, A Chegada do Submarino eMovimento Planetário. Desenvolvidapela artista Letícia Ramos, a instalaçãopermite uma experiência de imersão nomundo mágico do cineasta e ilusionis-ta francês. A partir da escolha de umanarrativa, os visitantes podem mani-pular recursos cenográficos e efeitosespeciais como o aparecimento e desa-parecimento de objetos e pessoas e amudança de tamanho de elementos danarrativa, semelhantes aos truques uti-lizados por Méliès em seus filmes.

Como não poderia deixar de ser, hátambém projeções de filmes do cineas-ta. Dos seus mais de 500 curta-metra-gens (a grande maioria, infelizmente,irremediavelmente desaparecida e per-dida no tempo), foram escolhidos onze.Entre eles, o seu mais famoso: Viagem àLua, que este ano completa 110 anos.

Objetos da época, cartazes, dese-nhos, figurinos, fotografias e documen-tos originais do artista completam aexposição.

tou a funcionar quando passava o carrofúnebre, criando a ilusão da transforma-ção. O princípio extremamente simples,largamente utilizado em qualquer episó-dio de antigos seriados como A Feiticeiraou Jeannie é um Gênio, foi um verdadeiroachado naquela época, e várias vezes re-petido, agora de forma proposital, nosfilmes de Méliès.

Pareceu óbvio também que o pequenoproblema técnico já deveria ter aconte-cido dezenas de vezes, nas mãos de ou-tros operadores. Mas aquilo que para osdemais foi tomado como defeito, paraMéliès se constituiu no primeiro “efeitoespecial” da história do cinema.

Não é difícil perceber que os filmes deMéliès não poderiam permanecer iguaisaos dos Lumière durante muito tempo. Osinventores do cinematógrafo eram basica-mente empresários e financistas, enquan-to Méliès era um artista muito observador,sempre atento a qualquer possibilidadecriativa que os filmes lhe pudessem pro-porcionar. Assim, em 1897, ele produziumais de 53 filmes curtos, estes já bem di-ferentes dos 78 iniciais. No mesmo ano,abandonou os espetáculos de magia etransformou seu teatro em estúdio e salade projeção, passando a se dedicar exclu-sivamente ao cinema. Cons-truiu, em Montreuil, o pri-meiro estúdio cinematográ-fico da Europa, e foi pionei-ro na utilização de luz artifi-cial nas filmagens.

Enquanto Lumière e seusseguidores trabalhavam comenormes limitações temáti-cas, filmando trens e bondes,Méliès ousava transpor paraa película a clássica históriade Cinderela (em 1899) e nãohesitava em contratar 500 fi-gurantes para rodar JoannaD’Arc, em 1900. Nos mais di-versos aspectos da arte e dalinguagem cinematográfica,ele foi um grande inovador,utilizando em suas produ-ções idéias das mais simplóri-as às mais elaboradas. Em Vi-site de L’Epave du Maine(1898), por exemplo, tentan-do criar a ilusão de um ambi-ente submarino, Méliès pin-tou um cenário aquático, di-rigiu seus atores para que elesse movimentassem de forma mais lenta,como se efetivamente estivessem no fun-do do mar e, criativamente, posicionoupoucos centímetros à frente da lente dacâmera um aquário repleto de peixes, que“passeavam” nadando por todo o quadrofilmado, criando assim a sensação deseja-da. É claro que os peixinhos de aquário, mui-to mais próximos da lente que os atores, as-sumiram proporções gigantescas, mas oefeito foi inusitado e bastante satisfatóriopara a época.

Quatro anos mais tarde, Méliès e o ci-neasta inglês Charles Urban resolveramdocumentar a coroação do monarca bri-tânico Eduardo VII, mas logo perceberamque a luminosidade da Abadia de West-

minster, onde a cerimônia seria realiza-da, era insuficiente para as filmagens.Decidiram então misturar realidade eficção. As cenas externas, mostrando odesfile da carruagem real, foram tomadasnormalmente. As internas foram recons-tituídas detalhadamente no estúdio daStar Film, com cenários pintados, figuri-nos cuidadosamente escolhidos e umempregado de Méliès interpretando oRei. O filme foi lançado como Le Sacre d’Edouard VII e consta que nem o própriohomenageado percebeu a diferença. Estespequenos truques, simplesmente geniaispara a época, fizeram o sucesso de Méliès.

Em 1902, ele se antecipava em 50 anosaos chamados filmes “B” norte-america-

Méliès foi redescoberto em sua loja de doces ebrinquedos na estação ferroviária de Paris.

Embaixo, um estudo do personagemMéphistophélès desenhado pelo cineasta.

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MOSTRA A RESSURREIÇÃO DE MÉLIÈS, QUE LEVOU O HOMEM À LUA

nos, realizando L’Homme-Mouche, ondeum homem comum se transformava emmosca. Fez ainda A Viagem de Gulliver aLilliput, As Aventuras de Robinson Crusoé(em 25 cenas), Os Mosqueteiros do Rei,Fausto (em 20 cenas), As Mil e uma Noites(30 cenas), A Morte de Júlio César, As Alu-cinações do Barão de Munchausen, Vinte MilLéguas Submarinas e um profético LeTunnel Sous la Manche, ficção que mostra-va o rei da Inglaterra e o presidente daFrança unindo esforços para construirum túnel submarino ligando Dover eCalais. Isso em 1907, praticamente 90anos antes do Eurotúnel se transformarem realidade.

Fazia com tanta perfeição impressio-nantes cenas de decapitação que o Go-verno francês resolveu proibi-las, em1911. No ano seguinte projetou e cons-truiu com madeira, cordas e um intrinca-do sistema de roldanas um enorme seralienígena que tinha como função ater-rorizar os exploradores humanos no fil-me A Conquista do Pólo. A grande contri-buição de Méliès para a História do cine-ma foi levar, para os seus mais de 500 fil-mes, tudo o que ele havia aprendido noteatro e no ilusionismo. Como ninguém,ele filmava personagens, utilizava cená-rios e figurinos, trabalhava a iluminaçãoartificial e criava seus “efeitos especiais”.A cômica cena do “rosto” da Lua sendoatingido por uma cápsula espacial bem nomeio de seu olho é até hoje uma das maisclássicas da História.

Pirataria americanaO sucesso de Méliès em todo o mun-

do foi tão marcante que despertou para ocinema o fenômeno da pirataria. Viagemà Lua, Cinderella, Cleópatra e diversasoutras produções da Star Film eram ile-galmente copiadas e distribuídas nosEstados Unidos, o que obrigou o cineas-ta francês a abrir um escritório naquelepaís, em 1903. Para administrá-lo, nin-guém melhor que o irmão Gaston, agoratambém um ex-executivo da indústria decalçados. Além de cuidar dos interessesdo irmão em relação a direitos autorais edistribuição, Gaston também chegou aproduzir filmes nos Estados Unidos, in-cluindo até alguns westerns.

Porém, Méliès só filmou até 1913.Extremamente artístico e pouco empre-sarial, ele não percebeu que em poucosanos a atividade cinematográfica haviarapidamente se transformando em in-dústria, principalmente graças as açõescomerciais de seu conterrâneo CharlesPathé. Ele não contabilizou que, em1909, já existiam nos Estados Unidosmais de dez mil locais de exibição defilmes e que o mercado mundial, agoradominado pela Pathé Frères, não tinhamais espaço para produtores artesanais.Em 1915 ele voltou a atuar apenas comomágico e ilusionista em Montreuil, e em1923 abriu falência.

O legendário teatro Robert Houdinfoi demolido naquele mesmo ano, colo-cando um ponto final a toda uma eraromântica de magos-cineastas. Tentou avida de diversas formas e caiu no anoni-

mato, até ser encontrado, aos 70 anos deidade, vendendo doces e brinquedos,como aparece no filme A Invenção de HugoCabret, na estação ferroviária de Paris.Grupos culturais conseguiram então arevitalização de sua imagem e de sua obra,realizando mostras de filmes e conse-guindo junto ao Governo francês umapartamento gratuito para que o grandeGeorges Méliès pudesse passar o resto deseus anos com alguma dignidade.

Ressurreição, por ScorseseMéliès faleceu em 1938, e em sua lápi-

de consta a inscrição: “O pai do espetácu-lo cinematográfico”. O cineasta GeorgesFranju realizou, em 1952, um curta-me-tragem intitulado Le Grand Méliès, comAndré Méliès, o próprio filho do “mago”,vivendo o papel de seu famoso pai.

Sessenta anos após o filme de Franju,eis que Georges Méliès estava novamenteesquecido. Mas a comemoração dos 110anos de Viagem à Lua fez que uma cópiarestaurada do filme fosse exibida compompa e circunstância durante o Festivalde Cinema de Cannes. Logo depois, cou-be a Martin Scorsese ressuscitar nova-mente o velho mestre não somente paraa comunidade cinematográfica comopara o grande público em geral: misturan-do realidade com ficção, seu filme A In-venção de Hugo Cabret apresenta Méliès àsnovas gerações. Em cores, três dimensõese na pele do ator britânico Ben Kingsley.Nem tudo o que o filme fala de Méliès éverdade, mas não importa. A recriaçãoestética de parte de sua história e de suaobra para ser apresentada a novos públi-cos já garante a Scorsese um pedacinho docéu do cinema.

Nesta seqüência de fotos a marca que Georges Méliès deixou para o cinema: grandes efeitos especiais, magia, cenários deslumbrantes, criatividade.Ele não se detinha por nada e buscava sempre a inovação em seus filmes. Não por acaso Méliès é considerado o pai do espetáculo cinematográfico.

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Este ano, dois monstros-sagrados denossa música popular estão fazendo 100anos de nascimento: Luiz Gonzaga eHerivelto Martins. As comemoraçõespor esse duplo acontecimento ocorrempor todo o Brasil e até no exterior. Comoacontece todo ano em 23 de abril, Pixin-guinha também foi homenageado, poisnessa data comemora-se o Dia do Choro,por ser a data de seu nascimento. Ele, queestaria fazendo 115 anos, foi o maiordivulgador dessa genuína manifestaçãode nossa cultura popular, já que a maioriados historiadores considera que o sambafoi trazido ao Brasil pelos escravos afri-canos, enquanto o choro nasceu da cria-tiva espontaneidade carioca. Em Brasília,o Centro Cultural Banco do Brasil - CCBBrecebeu a maior mostra já feita no Paíssobre Pixinguinha. Em 12 salas, a vida ea obra de Alfredo da Rocha Viana Filhoforam apresentadas ao visitante e cele-bradas com um espetáculo gratuito em

COMEMORAÇÕES

POR ARCÍRIO GOUVÊA NETO

Pixinguinha recebe homenagens por seus 115 anos; Luiz Gonzaga e Herivelto Martins, por seus centenários.

O Brasil festejatrês mestres da mpb

que a Orquestra Sinfônica do Teatro Na-cional Cláudio Santoro interpretou oconcerto Pixinguinha Sinfônico.

“O objetivo foi fazer com que o públi-co pudesse entender a importância de Pi-xinguinha para a música brasileira do sé-culo 20 e para a cultura popular. A mos-tra passou pelos principais momentos davida dele, o início da carreira, a convivên-cia com uma família muito musical –todos os irmãos tocavam, o pai tambémera flautista–, seus objetos pessoais e maisde 800 fotos. Com 13 anos ele já tinhacarteira de músico profissional e tocavaem bares. Carinhoso é sem sombra de dú-vida seu maior sucesso e uma das maioresobras-primas da música popular brasileirae, por que não dizer, do mundo. Em todosos levantamentos feitos sobre as músicasbrasileiras mais tocadas e gravadas, elasempre está entre as 10 primeiras”, diz acuradora da mostra, Lu Araújo.

No Rio, o Instituto Moreira Sales-IMS, há mais de dez anos guardião doacervo do compositor, lançou no dia 2 de

maio o livro Pixinguinha – Inéditas e Re-descobertas, com 20 partituras, nove total-mente inéditas e 11 desconhecidas, em-bora editadas anteriormente. São músi-cas que refletem períodos históricos einfluências diversas na carreira do com-positor e são o resultado de um trabalhode prospecção iniciado em 2008 no acer-vo, sob a responsabilidade da Coordena-

dora de Música do IMS, Bia Paes Leme.Esse trabalho já resultou em 2010 em umaprimeira publicação, feita – como a quevai ser lançada agora – em parceria coma Imprensa Oficial do Estado de São Pau-lo. Trata-se do álbum Pixinguinha na Pauta,reunindo 36 arranjos do mestre do cho-ro para o programa de rádio O Pessoal daVelha Guarda, comandado por Almiran-te na década de 1940.

Bia Paes Leme revela que as partiturasdescobertas e redescobertas para estanova publicação constituem composi-ções de alto nível. “Tanto pela confirma-ção da autoria explícita nas partiturasquanto pela análise da composição em siencontramos nove músicas inéditas emais uma que chegou a ser gravada em 78rotações. Para completar o álbum, encon-tramos composições que já haviam sidoeditadas em papel, mas que nunca foramgravadas. Fizemos um grande trabalho derecuperação dessas músicas de excelentequalidade, desconhecidas até agora dorepertório de Pixinguinha”, diz Bia.

ROD

OLFO

ZALLA

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Luiz Gonzaga nasceu em Exu, Pernam-buco, em 13 de dezembro de 1912. Apren-deu a ter gosto pela música ouvindo asapresentações de músicos nordestinos emfeiras e em festas religiosas. Quando mi-grou para o Sul, fez de tudo um pouco,inclusive tocar em bares de beira de cais.Mas foi exatamente aí que ouviu um cabralhe dizer para começar a tocar aquelasmúsicas boas do distante Nordeste.

Pensando nisso compôs o xamêgo:Vira e Mexe. Sabendo que o rádio era omelhor veículo de divulgação musicaldaquela época (corria o ano de 1941), re-solveu participar do programa de calou-ros de Ari Barroso, onde solou sua músi-ca Vira e Mexe e ganhou o primeiro prê-mio. Isso abriu caminho para que pudes-se vir a ser contratado pela Rádio Nacio-nal. Participar do “cast” da emissora era aconsagração para qualquer artista e cer-teza absoluta de sucesso.

Gonzaga simbolizou o que melhor setem da música nordestina, apresentou-aao Brasil e foi seu cicerone por onde pas-sou. Derramou estilos musicais desconhe-cidos no resto do País, como o baião, oxote, o coco, o xamego, o repente e foi oprimeiro músico a assumir a nordestini-dade representada pela sanfona e pelochapéu de couro. Cantou as dores e osamores de um povo que ainda não tinhavoz e somente aparecia na mídia com osofrimento da seca e a indústria de cor-rupção a ela relacionada, as diabruras deLampião e seus cangaceiros, a miséria e acriminalidade. Nesse momento, apareceLuiz Gonzaga mostrando ao brasileiro deoutros Estados, principalmente os dasregiões Sul e Sudeste, que o Norte e oNordeste eram também poesia, corageme amor às coisas brasileiras. Gravou, naconcepção deste jornalista, um dos mai-ores hinos aos retirantes desse País, amúsica Triste Partida, do compositor Pata-tiva do Assaré.

Presente no imaginárioSua canção mais famosa é, sem dúvi-

da, Asa Branca. O repentista Oliveira dePanelas certa vez escreveu: “Foi voandonas asas da Asa Branca/Que Gonzagaescreveu sua história”. A canção Asa Bran-ca desperta inúmeras reações. A compo-sição tem 65 anos de existência, mas porcausa de sua atualidade até hoje se encon-tra presente no imaginário do povo bra-sileiro. Para compor a belíssima toada,Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira tive-ram por base versos que circulavam naSerra da Borborema, Pernambuco. E emoutros, que também rolavam de boca emboca nos confins de Pernambuco e Cea-rá. A asa-branca, como a rolinha e a juri-ti, pode ser encontrada nos cerrados, nascaatingas e nas florestas brasileiras. Elasimboliza paz, saudade e exílio. Mas a

Luiz Gonzaga, o cantador da “seca”e da realidade de um povo

evocativa letra da canção fala da seca, dastristes condições da vida do sertanejo. Aasa-branca entra como metáfora. A avebate asas para achar uma vida melhor e oprotagonista da canção faz o mesmo.Porém, ele promete a seu amor que um diavai voltar, quando a chuva cair de novo.Sua esperança é que tudo vai ficar verdenovamente, exatamente da mesma cordos olhos de sua amada.

Parte dessa cantiga foi feita numa tar-de de agosto de 1945, no Rio de Janeiro,mas ela só seria gravada pelo Rei do Baiãono dia 3 de março de 1947, nos estúdios daRCA Victor. Gonzaga ajudou a populari-zar a melodia com sua aparição no filmeEste Mundo É um Pandeiro. Já são mais de300 versões: a capela, por duplas, trios,quartetos, bandas, orquestras em ritmosque vão de choro a rock. Caetano Veloso,saudoso das coisas brasileiras, gravou a obrade Gonzaga e Teixeira em Londres, em1971. No ano seguinte ela foi magistral-mente adaptada pelo Quinteto Violado emseu primeiro disco. Raul Seixas a juntoucom Blue Moon of Kentucky, de Elvis Pres-ley. A melodia de Asa Branca também con-quistou os artistas estrangeiros. E é conhe-cida a história, não se sabe se verdadeira ounão, que os Beatles chegaram a cogitar suagravação e teriam esboçado, inclusive,alguns ensaios em estúdio de sua melodia.Mas nenhuma interpretação bate a dovelho Gonzagão, que continuou cantan-do-a até sua morte em 1989.

Grande parte do sucesso de Luiz Gon-zaga deve-se à parceria com o cearenseHumberto Teixeira. A união musical du-rou cerca de sete anos, mas foi o temponecessário para produzirem clássicos quepermanecem até hoje, entre eles Asa Bran-ca, Assum Preto, Estrada do Canindé, Paraí-ba, Baião, Lorota Boa, Juazeiro, Qui Nem Jiló,Respeita Januário, No Meu Pé de Serra.Humberto Teixeira compôs ainda sucessoscom outros autores, como Kalu, cantadopor Dalva de Oliveira, e Maria Fulô, porCarmélia Alves. Seu encontro com LuizGonzaga se deu em agosto de 1945. Emconversa animada surgiu a intenção devalorizar o ritmo nordestino, no qual oxote e o baião tinham prioridades. Surgiuo primeiro sucesso da dupla, denominadoNo Meu Pé de Serra. Outros sucessos deLuiz Gonzaga também foram Xote dasMeninas (Luiz Gonzaga/Zé Dantas), Olhapro Céu (Luiz Gonzaga/José Fernandes),Dezessete e Setecentos (Luiz Gonzaga/Mi-guel Lima) e Xamego (Luiz Gonzaga).

Em 1954, Humberto Teixeira candida-ta-se a deputado federal e elege-se comcerca de 12 mil votos. Teve destaque naCâmara Federal, quando do seu empenhona defesa dos direitos autorais. Conseguiuaprovar a Lei Humberto Teixeira, quepermitia maior divulgação da música bra-sileira no exterior, através de caravanas

Música Popular em 1987 e tocou em Pa-ris em 1985. Seu som agreste atravessoubarreiras e foi reconhecido e apreciadopelo povo e pela mídia. Mesmo tocandosanfona, instrumento pouco ilustre e, decerta forma, menosprezado pelo públicoe se vestindo como nordestino típico(roupas de bandido de Lampião, comoalguns desdenhosamente o descreviam)foi justamente por isso tudo que ele che-gou tão longe. Era a representação caris-mática da alma de um povo do qual des-crevia as vicissitudes com detalhada mi-núcia e conhecimento. Representou aalma do Nordeste e levou essa região a serconhecida no resto do Brasil, cantandosua história, mostrando que talento é darao belo a aparência da simplicidade.

HomenagensAs homenagens pelos seus 100 anos

são muitas. A escola de samba Unidos daTijuca desfilou no Carnaval deste ano noSambódromo da Marquês de Sapucaí como enredo O dia em que toda a realeza desem-barcou na Avenida para coroar o Rei Luiz doSertão, de autoria do carnavalesco PauloBarros, enaltecendo Luiz Gonzaga e le-vando o baião e a cultura nordestina àpista. A escola desfilou na segunda noitedo Carnaval carioca e contou com 3.600componentes. A Comissão de Frente ti-nha a sanfona como símbolo principal,que também virou fantasia. A escola foia campeã do desfile.

Além de homenagear Gonzagão, aUnidos da Tijuca reverenciou também acultura nordestina. Um carro alegóricotrazia esculturas de barro, numa mençãoao trabalho do Mestre Vitalino, da cida-de de Caruaru, no Agreste de Pernambu-co. Em outro carro, gangorras e 154 san-foneiros deram um show à parte. O des-file mostrou também a Missa do Vaquei-ro e as festas juninas no Nordeste. Noúltimo carro, a escola de samba cariocaapresentou a coroação do Rei do Baião.Um sanfoneiro representou Luiz Gonza-ga e um bolo comemorou os cem anos denascimento desse pernambucano de Exu,município do sertão do estado.

Dentre as homenagens pelo seu cente-nário, uma das mais inesperadas foi a queo Rei do Baião recebeu de Paul McCart-ney, quando de sua apresentação em abrildeste ano no Recife. O Beatle disse embom português: “Salve a terra de LuizGonzaga”, logo após cantar Drive My Car.A referência de Paul ao Rei do Baião é umadas fusões nunca imaginadas do mundodo pop. E demonstra a projeção do Lua nocenário internacional, embora tenha sidotambém uma jogada de mestre do cantore compositor inglês para cativar a simpa-tia dos pernambucanos.

As homenagens não param por aí; es-tendem-se pelo Maranhão, Ceará, Bahia,Pernambuco, São Paulo, Rio de Janeiro epelo Brasil afora. Com exposições, seminá-rios, palestras, espetáculos e tudo o maisque possa ter referência e de alguma for-ma exaltar e mostrar às gerações posterio-res a vida e a obra de um dos grandes mes-tres de nossa cultura popular, especialmentecom referência à cultura do Nordeste.

musicais financiadas pelo Governo Fede-ral. Humberto Teixeira levou para o exte-rior Waldir Azevedo, Francisco Carlos,Dalton Vogeler, Leonel do Trombone, oguitarrista Poly, a cantora Marta Kelly, oacordeonista Orlando Silveira, o Conjun-to Radamés Gnatalli, o maestro Quincase seus Copacabanas, Vilma Valéria, Carmé-lia Alves, Jimmy Lester, Léo Peracchi, Si-vuca e muitos outros.

Eleito por três anos consecutivos omelhor compositor do Brasil, de Humber-to Teixeira se disse: “O Doutor do Baião,quebrando rotinas e cânones, imprimiunovos rumos à seresta nacional. Com obaião, fincou-se um novo marco na evo-lução da música popular brasileira”. Ele re-presentou o Brasil na Noruega, França eItália, como delegado especial junto aoXVIII Congresso Internacional de Auto-res e Compositores. Humberto Teixeiramorreu aos 63 anos, no dia 3 de outubro de1979, de enfarte de miocárdio, em SãoConrado, no Rio de Janeiro.

Em sua longa carreira o “Lua”, como eracarinhosamente chamado Luiz Gonzaga,nunca perdeu o prestígio, apesar de ter seafastado do palco várias vezes. Os modis-mos e os novos ritmos desviaram a aten-ção do público, mas o velho Lua nunca teveseu brilho diminuído. Quando morreu, em1989, tinha uma carreira consolidada ereconhecida. Ganhou o prêmio Shell de

COMEMORAÇÕES O BRASIL FESTEJA TRÊS MESTRES DA MPB

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Outro de nossos grandes composito-res que também está completando 100 denascimento é Herivelto Martins, queapareceu no cenário da música popularbrasileira no início dos anos 1930, nachamada “Década de Ouro”. Ele nasceu nodia 30 de janeiro de 1912, na cidade deEngenheiro Paulo de Frontin, no interiordo Rio de Janeiro, e tem sua trajetória di-vidida em duas partes: antes e depois deDalva de Oliveira, ou seja, de 1936 até1950, quando se separaram definitiva-mente, e de 1950 até o ano de sua morte,ocorrida em 12 de setembro de 1992.

Herivelto fez de tudo um pouco navida. Era filho do agente ferroviário Fé-lix Bueno Martins e da costureira e docei-ra Carlota. Sempre viveu com dificulda-des financeiras, pois seu pai, envolvidocom sociedades dramáticas e teatrais nacidade, ia aos poucos perdendo tudo eteve que hipotecar a casa, acabando porperdê-la. As atividades artísticas do paimotivaram o pequeno Herivelto a criaro seu próprio grupo teatral, com seus ir-mãos Hedelacy, Hedenir e Holdira e al-gumas meninos da vizinhança, em Barrado Piraí, para onde a família mudou-se.Aos nove anos, compôs a paródia QueroUma Mulher Bem Nua (Quiero una mujerdesnuda) e o samba Nunca Mais, que nãofoi gravado.

Talento precoceAos 10 anos, aprendeu música na So-

ciedade Musical União dos Artistas, deBarra do Piraí, onde tocou bombardino,pistom e caixa, até a idade de 19 anos, mastinha preferência pelo violão e cavaqui-nho, que já “arranhava”. Entre 1922 e1931, participou como músico da bandada Sociedade Musical União dos Artistasde Barra do Piraí. Com o dinheiro sempreausente, Herivelto foi vendedor de docesfeitos por sua mãe e caixeiro ambulante.Em 1925, com apenas 13 anos, conheceuos artistas circenses Zeca Lima e Colos-so, que passavam pela cidade, e com elesformou um trio e seguiu para Juparanã,onde apresentaram um grandioso espetá-culo. Durante um ano, o trio perambuloupelo interior do Rio de Janeiro, até que,procurados pela Polícia (não se sabe porquê), Colosso e Zeca Lima foram presosem Vassouras e o delegado mandou Heri-velto para casa.

Em 1930, a família mudou-se para obairro do Brás, em São Paulo, e Herivel-to conseguiu emprego como balconistade um botequim. Aos 18 anos, mais umavez briga com os pais e resolve sair decasa e viajar para o Rio de Janeiro, comapenas 1 conto e 200 mil réis. No Rio,Herivelto foi palhaço de circo, vende-dor, ajudante de contabilidade; aos sába-dos, fazia barbas na barbearia onde oirmão Hedelacy trabalhava. Com o di-

Herivelto Martins: clássicosnascidos das dores do amor

nheiro da gorjeta, garantia o “Feijão àCamões” (prato fundo com feijão-pretoe uma colher de arroz no meio), do Barde “Seu” Machado”. Ali é convidadopara gerenciar uma barbearia no Morrode São Carlos, reduto de bambas da épo-ca, e passa a conviver com cantores ecompositores de um mundo que come-çava a se abrir e a dinamizar o panoramamusical brasileiro: as gravadoras e o rá-dio. Conhece então o com-positor José Luís da Costa –Príncipe Pretinho –, que oapresentou a J.B. de Carva-lho, do Conjunto Tupi, ami-go de Mr. Evans, diretor dagravadora RCA Victor. E dalipara frente a porta da vidaartística definitivamente seabre para ele.

Vida tumultuadaHerivelto integrou a du-

pla Preto e Branco e, em segui-da, o grupo Trio de Ouro, coma participação da cantoraDalva de Oliveira, dona deuma voz poderosa, por quemHerivelto se apaixonou aoconhecê-la em 1935, duran-te uma apresentação noCine Pátria, de Pascoal Segre-to, no Largo da Cancela, em

1970, adquire um sítio na cidade de Ba-nanal, interior de São Paulo. Ele adora-va a cidade, que o adotou como cidadãobananalense. Lá fez vários shows comSargentelli, Grande Otelo, Emilinha Bor-ba. O mais emocionante foi protagoni-zado por ele com o filho Pery Ribeiro: osdois cantaram juntos, choraram no pal-co e levaram o público a comoção.

Vida amorosaHerivelto teve duas mulheres muito

especiais em sua vida: Dalva de Oliveirae Lurdes Nura Torelly, mas foi MariaAparecida Pereira de Mello, que ele co-nheceu no início da década de 1930, suaprimeira mulher, com quem teve os filhosHélcio Pereira Martins e Hélio PereiraMartins. A convivência durou, aproxima-damente, cinco anos. Separaram-se porMaria não agüentar as bebedeiras e trai-ções de Herivelto.

Em 1935, ele conhece Dalva de Oli-veira, com a qual passa a cantar em du-eto. Começam um namoro e no ano se-guinte iniciam uma convivência conju-gal, oficializada em 1939 num ritual deumbanda, que gerou os filhos Pery Ribei-ro e Ubiratan de Oliveira Martins. Aunião durou até 1947, quando as cons-tantes brigas e traições da parte dele de-ram fim ao casamento. Mesmo casado,passava as noites fora de casa, bêbado ecom prostitutas. Em 1949, após a sepa-ração oficial do casal e o final da primei-ra formação do Trio de Ouro, as brigas en-tre os dois chegam ao auge: quando, apósuma pequena turnê na Venezuela, Heri-velto sai de casa e decide tirar de Dalvaa guarda dos filhos, mandando-os paraum colégio interno. Ele passa então a de-clarar aos jornais que Dalva é prostitutae promove orgias dentro de casa, o que alevou a responder às acusações com ascanções “de guerra”, já tão comuns de umpara o outro.

Pouco antes disso, em 1946, Herivel-to inicia um namoro com a aeromoçaLurdes Nura Torelly, uma mulher desqui-tada que tem um filho do primeiro casa-mento, rica e prima do Barão de Itararé.Em 1952, eles passam a viver juntos; em

1978, Herivelto e Lurdes tiveramtrês filhos: Fernando José (já fale-cido), a atriz Yaçanã Martins e He-rivelto Filho oficializam a união.Ele criou o filho de Lurdes como seu.O casamento durou 44 anos, até àmorte de Lurdes, em 1990. Para elafoi composta a música Pensando emti, que acirrou ainda mais o duelomusical com Dalva.

Algum tempo depois Dalva eLurdes tornaram-se muito amigas;Lurdes foi o esteio de Dalva até ofim de sua vida.

Em sua longa e conturbada car-reira de compositor, Herivelto Mar-tins deixou clássicos, além dos jácitados como Camisola do Dia, Hojequem paga sou eu, Lá em Mangueira,Vermelho 27, Atiraste uma Pedra, AveMaria no Morro, Laurindo, PraçaOnze, Que Rei Sou Eu. O povo brasi-leiro agradece!

OS SUCESSOSDO FECUNDOHERIVELTO

Atiraste Uma PedraAve Maria no MorroCabelos BrancosCaminhemosCaminho CertoCamisola do DiaHoje Quem Paga sou EuLaurindoPraça OnzeQuarto VazioQue Rei Sou EuSegredoVermelho 27

AS CRIAÇÕESMAIS FAMOSASDO GONZAGÃO

Assum PretoAsa Branca

BaiãoDezessete e Setecentos

Entrada do CanindéJuazeiro

Lorota BoaNo Meu Pé de Serra

ParaíbaQui Nem Jiló

Respeita JanuárioXamego

Xote das Meninas

São Cristóvão, bairro do Rio de Janeiro.A vida conjugal de Herivelto e Dalva foisempre muito tumultuada. Após 10 anosde casamento e dois filhos, Pery Ribeiro(que fez muito sucesso bem mais tarde,principalmente ligado à Bossa Nova) eUbiratan, separaram-se, protagonizan-do um escândalo nacional, divulgadopela imprensa. O episódio serviu parafortalecer a carreira de Herivelto, que,diante do sofrimento da separação, fezletras maravilhosas, retratando a crisepela qual passava e que era o retrato fielde milhares de histórias iguais vividaspor casais do Brasil afora. A partir daíhouve um verdadeiro duelo musical, elede um lado, juntamente com David Nas-ser, jornalista e compositor, e Dalva deoutro, sustentada por letras/músicas deAtaulfo Alves, Nélson Cavaquinho,Mário Rossi, J. Piedade e Marino Pinto.A imprensa divulgava as ofensas e acu-sações de parte a parte e explorava o maisque podia o assunto, que cada vez querendia uma manchete vendia jornais erevistas aos milhares.

O duelo começou com o samba deHerivelto Cabelos Brancos, respondidopor Dalva com Tudo acabado, de J. Pieda-de e Osvaldo Martins. Herivelto res-pondia com outras canções como Cami-nhemos, Quarto Vazio, Caminho Certo eSegredo. Dalva rebatia com Calúnia, Er-rei Sim, Que Será e Mentira de Amor. E opúblico ganhava. A época era de viveruma boa fossa e as músicas embalavamos suspiros a favor, ora de Herivelto, orade Dalva. Herivelto resolve reorganizaro Trio de Ouro por duas vezes, com Noe-mi Cavalcanti e Nilo Chagas, que tinhareaparecido, e depois com Lurdinha Bit-tencourt e Raul Sampaio, dissolvendo-o em 1957. Daí para a frente, prefereafastar-se da vida artística. Na década de

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Imagine um personagem que fosse umartista tal, que, cada vez que tenta falar, sóconsegue se exprimir por meio de música.E que a música que ele toca são desenhos.Uma equivalência assim de meios poéticosatravessa os diferentes trabalhos de Lini-ers, desenhista argentino que assina há dezanos as tiras diárias Macanudo. Seus per-sonagens são as pessoas e as coisas quepassam pelas cidades. Flutuam, fazem ounão fazem graça, contam uma história ounão contam nada, têm ou não um nome,muitas vezes são ternos, mas tambémácidos, patéticos, críticos. Em todos, umforte sentido de utopia, de ritmo e de ex-perimentação. Na opinião de Liniers, omundo das hqs está finalmente aberto.Não há mais limite para os desenhos. “Pode-se fazer tudo em hq”, diz.

“Procuro experimentar registros dife-rentes de humor. É um tipo de humornem sempre terno, às vezes humor-negro,auto-referencial. De modo que o leitornunca saiba exatamente para onde vai aidéia”, contou. “No humor, na arte, a sur-presa é uma qualidade fundamental paraalgo interessante. E a maneira de mantera surpresa viva é não ter um modelo dehumor.” Isso significa, afirma, respeitarinclusive as tiras que ele mesmo não che-ga a compreender. “Não entendo, mas élinda, pronto.”

O argentino Ricardo Liniers Siri publi-ca Macanudo desde 2002 no jornal LaNación, na Argentina, e mais recente-mente na Folha de S. Paulo, no Brasil. Émúsico, pintor, escritor. Começou a car-reira produzindo fanzines, até estrear atira semanal Bonjour em setembro de 1999,no Página/12, jornal de esquerda editadoem Buenos Aires. “Era a época dos expe-rimentos, de atrair a atenção com idéiasmuito extremas, do humor-negro, do gro-tesco, violento e terno – queria descobrircomo se consegue esse equilíbrio.”

Para ele, um mestre em equilíbrios su-tis é Charles Chaplin, autor do clássicoTempos Modernos, filme que vemos o dese-

Natural como um idiomaTambém estão lá quatro cadernos de

Liniers, para quem desenhar parece ser tãonatural quanto falar. Talvez mais. De cadaviagem (ao Peru ou à Antártida, por exem-plo) resulta um diário de bordo desenha-do, assim como são desenhadas as cartasaos amigos, as informações editoriais nascontracapas dos livros e outros registros desua rotina pelas cidades. Algumas dessasaparições autobiográficas (na figura do seualterego, o Coelho) foram transpostas paraanimações inseridas no filme de Franca,feitas por Pablo Goitissolo.

Na palestra de abertura da exposição,o artista explicou à platéia a importânciade desenhar constantemente. “Tem queficar natural, como uma linguagem que seinventa, como quem dirige um carro. Aarte precisa ser natural como um idioma.”Por isso, não existe para ele a possibilidadede não desenhar. “Não há bloqueio cria-tivo. Há histórias péssimas, que se mor-re de vergonha de mandar para o jornal,e se torce para o dia passar rápido.” Lem-

POR VERÔNICA COUTO

ARTE SEQÜENCIAL

O idioma das coisas que passamDesenhista argentino é celebrado com exposição, palestras e

lançamento do quinto volume de sua principal criação: a série Macanudo.

nhista assistir em uma cena do documen-tário Liniers, o Traço Simples das Coisas (emuma tradução direta), de Franca Gonzá-lez, filme exibido durante a exposiçãoMacanudismo: quadrinhos, desenhos e pin-turas de Liniers na Caixa Cultural do Riode Janeiro. “Chaplin te põe em uma en-cruzilhada. Você ri, chora, não sabe o quefaz. Essa sensação me interessa e me in-triga. Se posso desenvolver um humor quetenha uma contracorrente de tristeza,gosto muito.”

Liniers acredita que as pessoas nãocompreendem alguns desenhos, porqueestão conformadas a um modo determi-nado de perceber a arte e à expectativa deque as histórias precisam de ponto final,ou as imagens, de interpretações lógicas.“Às vezes, não entendem por que estãobuscando algo que não está lá”, diz ele nofilme de Franca. “Estamos acostumadosa olhar pintura de uma maneira, a escutarmúsica de uma maneira. [Na tirinha], osleitores esperam que haja sempre umchiste. Mas vão se acostumando.”

A exposição aberta no Rio em julhotem curadoria de Bebel Abreu, realiza-ção da Mandacaru Design e vai até o dia9 de setembro, quando será remontadana recém-inaugurada unidade da CaixaCultural de Recife. Nela estão reunidas500 tiras de Macanudo, as quatro capasoriginais das compilações dessa série(Macanudo números 1, 2, 3 e 5), além dacapa de Macanudo Universal e um posterMundo Macanudo. O público poderá con-ferir também outras obras de Liniers,como vinte tiras da série Bonjour, seispáginas do conto em quadrinhos Abajópo-lis, dois pôsteres do filme Incomodos, setepinturas a óleo, quatro curtas de anima-ções (do estúdio Gazz TV), um painelcom reproduções do livro Cosas que Pa-san Si Estás Vivo, duas artes do livro Co-nejo de Viaje, três páginas do conto O In-quilino (presente na edição Macanudo nº5, recém-lançada no Brasil) e 21 ilustra-ções de O Que Existe Antes que Exista Algo,“um livro para crianças um pouco estra-nhas”, nas palavras do autor.

O caderno de viagem a Barcelona e, ao lado,uma ilustração para o documentário Liniers, El

Trazo Simple de las Cosas, de Franca González.

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bra que, sem querer, chegou a enviar trêsvezes a mesma tira à Redação do La Na-ción. Não a mesma tira. Na verdade, amesma idéia, três vezes, sem se lembrardas anteriores: uma cena dos Duendes,comentando: “que buena onda...”

Para quem estuda arte, ensina o dese-nhista, a primeira providência para iradiante é superar o medo de errar. E apren-der as regras, para desobedecê-las. “Háque se conhecer a maior quantidade deregras, para saber quais se quer romper.”Em entrevista ao Jornal da ABI, Liniersfalou de suas influências de outros artis-tas, inclusive do cinema, como WoddyAllen e Monty Python. Mas ele destaca,em primeiro lugar, o argentino Quino, quecompletou 80 anos em 17 de julho. “NaArgentina, aprendemos a ler lendo Mafal-da”. Depois, entre muitos, os livros deTintim, Asterix importados, e o El Eternau-ta, clássico portenho que conta a históriade uma invasão extraterrestre em BuenosAires, de Héctor Germán Oesterheld, queacabou morto pela repressão, desapareci-do em 1977 (Jornal da ABI, nº 375, feverei-ro de 2012). Entre os artistas brasileirosele destacou a impressão que lhe causoua quebra de convenções do trabalho dodesenhista Fábio Zimbres. “A liberdade doFábio era tão extrema. Creio que os Pin-guins vieram daí.”

Na opinião de Liniers, não há mais dife-rença entre hq e literatura. “Para mim, nãofaz diferença. Maus é igual a Tom Sawyer”,diz, numa referência à hq premiada de ArtSpiegelman e ao clássico de Mark Twain. Eo momento, acredita, é ideal para fortale-cer o movimento de valorização dos qua-drinhos. A começar por chamá-los de outromodo. “O problema que temos em algunspaíses é que a denominação já é um dimi-nutivo: historieta, na Argentina, quadri-nhos no Brasil. Na França, olha a diferen-ça: bande dessinée. Mostra mais seriedade.Precisamos acabar com esse complexo deinferioridade da hq.”

Apesar disso, Liniers avalia que nos úl-timos 20 ou 30 anos diminuiu o precon-ceito e há cada vez menos quem pense que

os quadrinhos precisam ser exclusivamen-te de humor, aventura, super-herói. “Des-de a obra Maus e dos trabalhos de RobertCrumb, pode-se fazer o que quiser. Final-mente, está tudo aberto. Nos anos 1950,ninguém ia pensar em fazer um livro de hqsobre Auschwitz; nos anos 1980, Spiegel-man ganhou um Pulitzer. É um movimentodos artistas, das editoras e dos leitores.”

A naturalidade de transpor tudo paratiras ou desenhos levou o autor de Macanu-do a tentar outras possibilidades. Numainovação jornalística, desenvolveu umasérie de entrevistas desenhadas, feitas parao La Nación. “Nunca havia visto isso. Possofazer, tenho que fazer. Então pedi que pu-desse entrevistar pessoas que eu admirasse.”Na lista dos entrevistados, o primeiro foi omúsico argentino Andrés Calamaro. “Gra-vo uma entrevista de uma hora. Então pre-ciso degravar e fazer a história com o cer-ne, o fundamental do que foi dito.”

Música desenhadaLiniers também se apresenta em shows

desenhando ao vivo enquanto os músi-cos tocam no palco. Com o amigo KevinJohansen e sua banda The Nada, come-çou ilustrando as canções escondido daplatéia, em computador que projetava asimagens. Mas logo passou a trabalhardireto no papel – como é a sua preferên-cia – e, finalmente, no próprio palco. “Euera patologicamente tímido. No cursosecundário, tinha muita dificuldade comas garotas. Ficava pensando, se mal con-sigo falar, como vou tirar a roupa? Mas,fazendo os desenhos nos shows, já come-çava a cair a timidez e ascender a megalo-

mania”, brinca. No fim da apresentação,faz gaivotas de papel com os desenhos e aslança para o público.

Ele desenhou no final do ano passadocom Paulinho Moska e Kevin, no Brasil.Na canção Cheio de Vazio, do músico bra-sileiro, Liniers confundiu “vazio” com“vacío” – como se chama em espanhol aparte do boi que aqui comemos pelonome de fraldinha. O resultado levou aplatéia às gargalhadas. “Como todos os de-senhistas, gosto muito de música. Dese-nhar é estar sozinho entre quatro pare-des, precisa de um som. Senão, eu ia metransformar em um monstro.” Ele tam-bém toca piano e violão.

Na abertura da exposição, Liniers pin-tou um mural ao vivo, ao som de ChebaMassolo, que também assina a trilha so-nora do documentário de Franca Gonzà-lez. “A música de Cheba é a cara do Maca-nudo.” Para ele, também fez capas de cd,como para Andrés Calamaro e MarceloEzequiaga – 13 dessas artes estão namostra carioca.

Música, entrevistas, livros de viagens.Então não há limites para a hq? “Há limi-tes de suporte, talento é outra coisa”, diz.Liniers pinta com acrílico, que seca rapi-damente, usa lápis, nanquim e aquarelanos desenhos. “A pintura a óleo requermuita paciência, demora muito. Tenho amaior admiração por quem faz animaçãoe em cima daquela idéia durante três anos.Eu não consigo. Preciso que os projetossaiam rápido.”

Para marcar o surgimento da sua Edi-torial Común, resolveu desenhar à mãoas 5 mil capas do sexto número da anto-

logia de Macanudo, ainda não lançada noBrasil – 64 delas na exposição. “Eu mesenti como Chaplin em Tempos Modernos.No 600º exemplar, ainda pensava: ‘quegênio de vanguarda eu sou’. No 3.000º,‘não agüento mais, seu idiota’.”

Na palestra de abertura da exposição,Liniers apresentou imagens da edição deespecial Macanudos nº 9, que traz o Mons-tro Imaginário na capa e prólogo do mú-sico uruguaio Jorge Drexler. Contou histó-rias e respondeu a perguntas, à moda deseus personagens, numa narrativa sempreoscilante entre o existencial e o franca-mente debochado.

Liniers – pseudônimo de Ricardo Siri– nasceu em 1973 em Buenos Aires, filhode um advogado que teve várias ativida-des, inclusive uma fábrica de pantufas.“Aos 18 anos, fui distribuidor de pantufasem shopping center. Isso não era muitobom para impressionar as garotas. ‘O quevocê faz? Distribuo pantufas.’ Começoua desenhar no colégio. “Era muito ruimno futebol. Um desses párias, que ficavacom só dois ou três amigos, e podia dese-nhar, enquanto fingia estudar”, lembra.Concluiu o curso de Publicidade, mas nãose preocupou em tirar o diploma.

Agora já perdeu a conta de quantos per-sonagens criou. Os Pingüins, os Duendes(que, na tira do dia da aprovação do casa-mento igualitário, saíram do armário eforam ao Congresso argentino), o HomemMisterioso, a irresistível dupla Enriquetae Fellini, o Coelho, ovelhas existencialis-tas, pequenos funcionários, patrões terrí-veis, casais apaixonados. Define como psi-cótica a sua relação com eles. “Uma vez es-tava trabalhando: fiz o desenho a lápis, de-pois com o nanquim, depois com a aqua-rela. Quando passei o nanquim, soprei euma gotícula de cuspe caiu sobre o desenho.E eu pedi perdão! Hum, pensei: acabo depedir perdão a um desenho.” Na verdade,o controle sobre os personagens não é mes-mo absoluto. “Não sei exatamente aondevão chegar. Os personagens vão-se acomo-dando, como uma novela que vai se desco-lando. É linda essa parte. Criar um univer-so que se pode visitar.”

A palavra em espanhol “macanudo” querdizer excelente, extraordinário, magnífico.Também em português está registradacomo poderoso, muito bom, de prestígio.“Basicamente sou um otimista. Adoro o queeu faço para trabalhar. Quando leio o jornal,ponho-me pessimista e negativo. Daí que-ro dizer à gente que não está tudo tão ter-rível. As manchetes são terríveis; mas a gen-te em volta de tudo é maravilhosa. Querodizer: olha o que temos de interessante.” Nacapa de Macanudo nº3, integrante da expo-sição, o escritor e desenhista argentino Ro-berto Fontanarrosa define assim o autor:“O estilo de Liniers é ingênuo, mas – cuida-do, desprevenido viajante! –, é a ingenuida-de ilusória do leão que devora uma gazela.”

AVA

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Enriqueta e seu gatoFellini são dois

personagens quepovoam a série

Macanudo. Abaixo,Ilustração do livro LoQue Hay Antes de QueHaya Algo lançado na

Argentina em 2007.

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A biografia de Nelson Rodrigues tempelo menos duas passagens pouco conhe-cidas ou raramente lembradas por seusbiógrafos e ensaístas: a de roteirista dehistórias em quadrinhos e de editor de re-vistas desse gênero. E não foi uma expe-riência curta. Durou seis anos e rendeubons e esquecidos frutos que bem mere-ciam uma reedição em livro. Fatos opor-tunos de serem lembrados no ano de seucentenário.

No Rio de Janeiro da segunda metadeda década de 1930, quando era o maisobscuro dos rapazes de uma família demuitos irmãos talentosos vindos de Per-nambuco – que incluía o jornalista Má-rio Filho, o produtor de cinema MiltonRodrigues e o ilustrador Roberto Rodri-gues, assassinado na Redação do jornal dafamília, A Crítica, em 1929 –, Nelson foitrabalhar em 1931 na Redação de O Glo-bo como repórter e redator, até ser requi-sitado pelo escritor e jornalista AntônioCallado para ajudá-lo a editar O GloboJuvenil e Gibi Semanal.

Era, então, o ano de 1939, e Nelson jáacumulava 27 anos bem vividos, cinco amais que Callado, mas não decolara aindaem nenhuma das profissões que sonhara,principalmente a de autor de teatro. Suafamília havia chegado ao Rio em 1916,quando ele tinha apenas quatro anos deidade, do que se pode concluir que seria, defato, um legítimo carioca – uma certezaque se tem ao observar sua obra, tão cheiade tipos comuns da então capital federal.Ele próprio registrou em suas Memórias queseu grande laboratório e inspiração fora ainfância vivida na Zona Norte da cidade.

A mudança de endereço ocorrera à for-ça porque seu pai, o ex-deputado federal ecombativo jornalista Mário Rodrigues,sofria perseguição política em seu Estado.Para sustentar a filharada, ele foi trabalharno jornal Correio da Manhã, de EdmundoBittencourt, de quem era amigo. Na déca-da seguinte, a vida da família mudaria derumo, quando o patriarca criou seu própriojornal, A Manhã. Em 1928, com o ajuda fi-nanceira do Vice-Presidente da RepúblicaFernando de Melo Viana, Mário fundou odiário A Crítica, que tinha muito da sua per-sonalidade e seguia à risca seu título naárea política.

Tido como um garoto tímido e retra-ído, na adolescência Nelson se refugiounos livros, o que lhe deu uma base sólidaliterária, explorada principalmente em

POR GONÇALO JÚNIOR

CARREIRA

Os quadrinhos deNelson Rodrigues

Antes de lançar sua primeira peça de teatro e setornar cronista diário de jornal, o dramaturgo

foi editor de O Globo Juvenil, de Roberto Marinho.

suas barulhentas críticas e crônicas diá-rias. No começo, foi leitor compulsivo delivros românticos do século 19, que tan-to serviria de alimento para seus roman-ces dramáticos e passionais, cheios deexageros trágicos e crimes de amor. A es-tréia como jornalista aconteceu no jor-nal do pai, como repórter de polícia de AManhã, quando ele tinha apenas 13 anosde idade, em 1925. Era comum os jornaisdarem ampla cobertura a tragédias decrimes passionais e pactos de morte en-tre casais apaixonados, que marcariam aimaginação de Nelson. Os leitores adora-vam essas histórias, que ele narrava emtom folhetinesco, nas longas reportagensde seis colunas que escrevia quase diari-amente. Em A Crítica, Nelson continuoua escrever na página de polícia, enquan-to o irmão Mário Filho cuidava dos es-portes e Roberto fazia as ilustrações.

Tempos difíceisEmbora o jornal dos Rodrigues fosse

um sucesso de vendas, por causa de suacobertura política apaixonada – e gover-nista – e os relatos sensacionalistas de cri-mes que Nelson e os outros repórteres es-creviam, o jornal existiria por pouco tem-po. Mário Rodrigues pagou um preço altopor ficar contra os rebeldes da Revoluçãode 1930 e, em retaliação, a gráfica e a Re-dação foram empastelados e o jornal mor-reu. Vieram tempos difíceis para a família.Com a ajuda de Mário Filho, amigo de Ro-berto Marinho, Nelson passa a trabalharno jornal O Globo, sem salário inicialmen-te – recebia vales semanais que iam para asdespesas de casa. Apenas em 1932 seriaefetivado como repórter no jornal. Poucotempo depois, descobriu que estava comtuberculose e foi tratar-se em um sanató-rio na cidade de Campos do Jordão, custe-ado por Marinho, que conquistou sua gra-tidão pelo resto de sua vida.

Recuperado, de volta ao Rio, Nelsonassumiu a seção cultural de O Globo, fa-zendo a crítica de ópera. Até que se depa-rou com os quadrinhos. Embora a funçãofosse considerada menor – editar doistítulos para crianças e adolescentes – pa-receu ter gostado da experiência. Ou, aomenos, mostrou-se bastante produtivo.O então jornalista iria além do trabalhode fechar as edições e teria uma brevecarreira como roteirista de quadrinhos,em parceria com o desenhista mineiroAlceu Penna, na adaptação de nada menosque cinco clássicos da literatura, em epi-sódios publicados todas as semanas em O

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Globo Juvenil, entre 1939 e 1941. O tablói-de de Marinho havia sido lançado doisanos antes, em 12 de junho de 1937, eteve como seu primeiro editor PinheiroLemos. No ano, seguinte, a missão seriapassada para Callado. Era uma época emque os quadrinhos engatinhavam no Bra-sil. Sequer havia revistas, somente jor-nais ilustrados – no Rio, circulavam Su-plemento Juvenil e O Correio Universal;em São Paulo, A Gazetinha.

O Globo Juvenil circulava às quartas esábados, com 16 páginas, em média – àsvezes, saíam 24, principalmente no fim desemana. As ilustrações da capa do núme-ro de estréia trouxeram a assinatura do de-senhista Calmon, da equipe de arte de OGlobo, e que colaborarianos primeiros númeroscom várias histórias rotei-rizadas por Lemos. Calla-do começara em O Globohavia pouco tempo, comorepórter. Às vezes, Mari-nho o chamava para fazerrevisão das histórias emquadrinhos que iam serpublicadas. A mesma tare-fa era passada a outros re-datores porque não haviaexatamente um núcleodefinido para fazer as edi-ções em quadrinhos – aRedação ocupava apenasuma sala no primeiro an-dar do prédio do jornal, naRua Bittencourt da Silva,ao lado da Galeria Cruzei-ro, Centro do Rio.

O futuro autor de Qua-rup acabou assumindo aedição – como uma desuas funções fixas no jor-nal. Outro que colabora-va com os quadrinhos erao repórter Henrique Pon-getti, que traduziu AsAventuras do Caveirinha. A Redação dotablóide contava ainda com os desenhis-tas Calmon e Acquarone, que haviam sidorevelados no recém-extinto O CorreioUniversal. Por mais de um ano, Callado eNelson deram conta de fazer as duasedições semanais de O Globo Juvenil. Atéque em abril de 1939 Marinho lançou suaprimeira revista em quadrinhos de fato,Gibi Semanal, mas que circulava três ve-zes por semana, às quartas, sextas e do-mingos. Na prática, porém, quem real-mente fechava tanto O Globo Juvenil quan-to o Gibi Semanal era Nelson, como opróprio Callado contou pouco antes demorrer, em depoimento ao autor destamatéria, para o livro A Guerra dos Gibis(Companhia das Letras, 2004).

Nos primeiros anos de O Globo Juvenil,o trabalho de Nelson incluía ainda produ-zir uma série de seções fixas de humor eoutras sem muita graça, com exaltaçõespatrióticas ao Estado Novo, breves perfisde escritores portugueses ou curiosidadesdo tipo ‘Você sabia que...?’ Também viroutradutor. Seu inglês, no entanto, ainda erauma língua quase desconhecida para ele,que traduzia os balões por conta própria,muitas vezes inventando histórias a par-tir do que os desenhos lhe sugeriam. Alémde editar as histórias, Nelson escreveu vá-

cas para crianças inspiradas em persona-gens da literatura e dos quadrinhos. Novasséries de sugestões saíram nos quatro nú-meros seguintes, numa tentativa de apro-ximar a publicação do mundo real de seusleitores, uma vez que O Globo Juvenil pu-blicava quase exclusivamente quadrinhosnorte- americanos naquele momento.

Clássicos da literaturaPenna produziu nada menos que qua-

tro séries pioneiras dos quadrinhos, comadaptações de clássicos da literatura emparceria com Nelson e que ficariam prati-camente esquecidas nas sete décadas se-guintes: Sonho de uma Noite de Verão, deWilliam Shakespeare; Alice no País das

Maravilhas, de Lewis Carrol; Um Yankeena Corte do Rei Artur, de Mark Twain; e OFantasma de Canterville, de Oscar Wilde.Os roteiros dos três primeiros foram fei-tos por um tal de Robin, pseudônimo deNelson Rodrigues, que só assinou com opróprio nome os (mais de 40) episódios deO Fantasma de Canterville. A certeza sobreo dramaturgo por trás do pseudônimo sedeve ao fato de que nessa fase do tablóidesomente Nelson e Penna estavam envol-vidos diretamente com a edição e com aprodução das histórias, uma vez que Calla-do apenas coordenava o suplemento.

Pelos menos 80 pranchas foram feitaspelo desenhista para O Globo Juvenil, en-tre capas, histórias avulsas e séries. UmYankee na Corte do Rei Artur, por exemplo,teve 17 episódios. Alice no País das Mara-vilhas, doze. A personagem, às vezes, saíaem cores, nas páginas centrais. Dessemodo, Alceu se tornou um dos primeirosdesenhistas brasileiros de quadrinhos,num momento em que chegavam ao Paísos modernos comics americanos. Seu tra-ço quase infantil combinava de modoeficiente com os diálogos curtos e bemhumorados de Nelson, que soube perce-ber a melhor forma de explorar a lingua-gem dos quadrinhos, com pouco texto,graça e ação. Daí a leveza dos roteiros –

nas décadas seguintes, muitos autores nãoconseguiram adaptar com êxito obrasclássicas da literatura, por exagerarem novolume dos textos, que mais pareciam ospróprios romances ilustrados e não histó-rias em quadrinhos.

Em 1941, Antônio Callado trocou adireção dos quadrinhos e a Redação de OGlobo pelo convite para trabalhar no se-tor de jornalismo em português da RádioBBC, de Londres. Para seu lugar, indicoua Marinho que efetivasse Nelson. Apesarde ter estreado como autor de teatro doisanos antes com A Mulher Sem Pecado, eleainda estava distante do posto de drama-turgo polêmico que o consagraria; parasobreviver, continuava a editar os quadri-

nhos das publicações de OGlobo. Vem dessa épocauma curiosidade: duranteos intervalos das ediçõesde O Globo Juvenil e dosGibi Semanal e Gibi Men-sal, Nelson começou a es-crever uma de suas obras-primas, a peça Vestido deNoiva, mas acabou porconcluí-la em casa, duran-te as madrugadas, porquevárias vezes fora flagradoe repreendido por Callado.

A aprovação pela críti-ca de Vestido de Noiva, queestreou em dezembro de1943, colocou o NelsonRodrigues teatrólogo nocentro das atenções. Masele continuava ganhandomal como editor das revis-tas em quadrinhos de Ma-rinho. Não sabia, no en-tanto, que seu trabalhovinha sendo observadopela concorrência. No co-meço de fevereiro do mes-mo ano, Freddy Chateau-briand, sobrinho de Assis

Chateaubriand, convidou-o para assumira direção do recém-criado núcleo de revis-tas juvenis das Edições O Cruzeiro. Se to-passe, receberia um respeitável salário decinco contos de réis. A quantia represen-tava mais de sete vezes o que ganhava emO Globo – 700 mil réis. Na prática, Nelsonnunca exerceria o cargo de diretor nasduas revistas. O comando ficou mesmocom Freddy, que continuou a selecionare comprar as histórias e a coordenar a tra-dução, tanto dos quadrinhos de O Guriquanto dos contos da revista policialDetective, então um fenômeno de vendasem bancas.

As funções de Nelson se limitavam adar títulos às histórias, resumi-las no su-mário e a criar as chamadas de capa, o quepara ele estava de bom tamanho. Nadaque lhe tomasse mais que algumas horaspor mês. Ao fim de dois anos, Freddy aindao dispensou de suas obrigações em Detec-tive, quando passou as tarefas para LúcioCardoso. Aos poucos, Nelson assumiu oposto de cronista, enquanto escreviapeças de teatro. Se os quadrinhos que fezpara as publicações de Roberto Marinhoo ajudaram a dominar a linguagem da nar-rativa visual e influenciaram seu teatrode alguma forma, são pontos interessan-tes a serem ainda devidamente estudados.

rios roteiros em quadrinhos para o tablói-de. Sua experiência começou quando Al-ceu Penna se tornou seu colaborador.

Penna viera de Curvelo, uma pequenacidade do interior de Minas, com objeti-vo maior: fazer faculdade de artes plásti-cas. Pelo menos foi a justificativa que deupara os pais, pois seu sonho mesmo era tra-balhar como ilustrador de revistas. En-quanto estudava, começou a fazer dese-nhos para semanários e acabou com umacoluna de moda e comportamento paramoças jovens em O Cruzeiro, a partir de1938, que denominou de As Garotas.Como não era contratado da publicação deAssis Chateaubriand (1892-1968), Pennapodia colaborar em outras publicações.

Em 1938, ele procurou Pinheiro Lemose lhe ofereceu seus serviços de ilustrador.Seu traço já maduro e o conhecimento quetinha de quadrinhos – apenas como leitor– se mostraram perfeitos para o que elebuscava – histórias em quadrinhos eramum problema porque a maioria dos gran-des heróis naquele momento eram exclu-sivos do concorrente Suplemento Juvenil,de Adolfo Aizen. No primeiro momento,Penna se encarregou com Nelson de cui-dar das traduções e dos letreiramentos dosbalões. Até que, no convívio quase diário,os dois começaram a articular idéias defazer suas próprias histórias. Poderiamcomeçar, sugeriu Nelson, com adaptaçõesde obras clássicas da literatura. E foi assimque Penna se tornou colaborador assíduono suplemento de Marinho por mais de100 edições, quase ininterruptamente, des-de os primeiros números.

A estréia de Alceu Penna apenas comocapista aconteceu no número 44, publica-do em 2 de outubro de 1937. Somente nomês de fevereiro de 1938 a dupla teve tra-balhos publicados em todas as cinco edi-ções: 97 (dia 3), 99 (dia 8), 100 (dia 10),103 (dia 17) e 107 (dia 26). Penna tambémcolaborava nas páginas internas. No nú-mero 99, por exemplo, apresentou aosleitores oito idéias de fantasias carnavales-

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VIDAS

Joe Kubert era um gigante. Talvez nãoseja tão simples defini-lo em uma palavra.Mais complicado será falar sobre ele semexagerar nos adjetivos. Kubert é um nomefundamental na História das histórias emquadrinhos. Ele se transformou em umalenda há muito tempo, não só por tercriado um traço personalíssimo e dinâmi-co, perfeito para dar vida a personagensselvagens e aventureiros como Tarzan,Sargento Rock, Gavião Negro, Tor, ÁsInimigo e tantos outros. Mas seu talentotambém norteou o trabalho de grandesartistas, que deram seus primeiros passosna bem sucedida escola criada por ele e suaesposa, Muriel, em 1976. Na verdade,Kubert sempre foi um apaixonado pelo seutrabalho, tanto como desenhista, quantocomo editor, escritor e professor, inspiran-do inúmeros autores por todo mundo.

Filho de pais judeus, Yosaif (ou Joseph)Kubert nasceu em 18 de setembro de1926 numa pequena cidade chamadaYzeran, que ficava na Polônia e hoje fazparte da Ucrânia. Sua família emigra paraos Estados Unidos quando tinha poucomais de dois meses de vida e passa a viverno Brooklin. Durante sua infância, eledescobre sua paixão pela arte de desenhare, com o apoio dos pais, torna-se um ta-lento precoce. Há controvérsias quantoà época em que começou a trabalharcomo desenhista iniciante. Na introdu-ção de sua graphic-novel Yossel, Kubert es-creveu que ele recebeu cinco dólares porpágina quando tinha 12 anos. “Em 1938,isso era muito dinheiro”, afirmou.

A partir daí, não parou mais. Fã de HalFoster, Alex Raymond e Milton Caniff, ojovem trabalhou para diversos estúdios ecom os mais diferentes personagens egêneros, desde ficção-científica até faro-estes e histórias de guerra. Em meados dadécada de 1940 ele passa a desenhar maisregularmente para a All-American Comics,editora que se tornaria, no futuro, a DCComics; em 1945 Kubert começa a ilustrarum dos personagens que marcariam a suacarreira: Gavião-Negro (Hawkman).

No início da década de 1950, Kubertinicia sua carreira de executivo ao aceitaro cargo de editor da St. John Publications.Ao lado do colega de escola Norman Mau-rer e do irmão deste, Leonard, ele desenvol-ve para a editora, em 1953, a primeira re-vista de quadrinhos em 3D do mundo,apresentando as aventuras de SuperMouse(Mighty Mouse), adaptação do famoso de-senho animado infantil da época. O suces-so foi instantâneo. No mesmo ano elelança as aventuras de Tor, personagem quevive numa época pré-histórica, e tambémganha uma versão em 3D, aproveitando osucesso dessa tecnologia.

Ao contrário do que era comum naque-la época, os direitos autorais de Tor con-

tinuam nas mãos de Kubert e asaventuras desse herói são publica-das com relativo sucesso em diver-sas editoras ao longo da carreira dodesenhista.

Em 1955 ele volta a desenharpara a DC Comics, inicialmentecomo free-lancer, mas logo estariatrabalhando exclusivamente para aeditora. Neste ano ele intensificauma frutífera parceria com o tam-bém lendário escritor e editor Ro-bert Kanigher, que já conhecia des-de os tempos da All-American Co-mics e com o qual desenvolveu di-versas histórias de guerra e persona-gens de sucesso, como o PríncipeViking, lançado em agosto de 1955.Mas foi em janeiro de 1959 que adupla apresentou uma de suas maisimportantes criações: o Sargento

Rock, publicado pela primeira vez na revistaG.I. Combat. Chamado inicialmente de “TheRock”, o soldado que lutava contra os na-zistas durante a Segunda Guerra Mundialganhou mais definição nas histórias seguin-tes e caiu no gosto dos leitores, transforman-do-se numa das séries mais duradouras doscomics americanos.

Apesar de criar histórias de guerra, adupla Kanigher-Kubert jamais glorificou osconflitos e sempre mostrou o lado humanode cada personagem retratado. Seguindoesta linha, a dupla novamente inova em1965 ao apresentar para o público Ás Ini-migo (Enemy Ace), um piloto da aviaçãoque lutou durante a Primeira Guerra Mun-dial. Ele não era inglês ou americano. Eraalemão. E isso fez toda a diferença. Kubertsempre gostou de ilustrar os roteiros deKanigher, carregados de detalhes históricose que exigiam muita pesquisa de época. Cer-ta vez ele escreveu que seus roteiros tinhama capacidade de provocar sua imaginação:“Suas palavras tinham o poder de criarexcitantes imagens dramáticas e dinâmi-cas em minha mente!”. Não foi por acasoque Ás Inimigo é considerado uma dasmelhores histórias de guerra já produzidaspara os quadrinhos.

A partir de 1967 Kubert passou a serDiretor de publicações da DC Comics. Cin-co anos depois aceitou o desafio de readap-tar os livros de Tarzan, de Edgar Rice Bur-roughs, para os quadrinhos (leia O traço sel-vagem de Joe Kubert, Jornal da ABI 357, agos-to de 2010). E assim ele criou mais umaobra-prima da arte seqüencial e o persona-gem de Burroughs retoma o status adquiri-do em seus primórdios, quando era dese-nhado por Hal Foster e Burne Hogarth.

Depois de deixar o cargo de Diretor naDC em 1976, a paixão de Kubert por suaarte e seu interesse em formar uma novageração de artistas fazem com que ele esua esposa fundem a The Joe Kubert Scho-ol of Cartoon and Graphic Art, hoje co-nhecida internacionalmente como TheKubert School. Vários grandes artistas desua geração foram professores de sua es-cola. E ela formou inúmeros novos talen-

tos, como dois dos cinco filhos de Kubert,Adam e Andy, considerados nomes degrande expressão na indústria dos comicsamericanos. Os anos seguintes seriam dededicação quase total aos seus alunos, massem deixar de desenhar quadrinhos.

Na década de 1990 Kubert voltaria aproduzir histórias mais autorais. Em 1991lançou Abraham Stone: Country Mouse CityRat para a Malibu Comics. Em 1994, elerecebeu a visita do célebre editor italia-no Sergio Bonelli em sua residência. Esteo havia convidado a ilustrar uma históriaespecial do popular cowboy italiano Tex,mas Kubert teve que adiar a realizaçãodesse projeto para se dedicar exclusiva-mente à produção daquela que se torna-ria sua nova obra-prima, a premiada gra-phic novel Fax from Sarajevo. Inédito noBrasil, este livro foi baseado numa sériede faxes que seu representante na Euro-pa, Ervin Rustemagiæ, enviou para elerelatando com detalhes a tragédia daguerra na Sérvia durante o massacre decivis em Sarajevo. Esta obra foi, finalmen-te, publicada em 1996. E a história de Texfoi lançada na Itália cinco anos depois, em2001, com enorme repercussão.

Dois anos depois, Kubert voltaria às suasorigens imaginando o que aconteceria sesua família não tivesse emigrado para osEstados Unidos e continuasse vivendo naPolônia. Esse foi o ponto de partida para anovela gráfica Yossel, lançada em 2003.

Neste ano ele também retornaria aopersonagem que consagrou, com a minis-série Sgt. Rock: Between Hell and a HardPlace, escrita por Brian Azzarello, e três anosdepois, com outra aventura estrelada pelosoldado: The Prophecy. Em 2008, um novoretorno. Agora ao seu primeiro personagemna minissérie Tor: A Prehistoric Odyssey, pu-blicada pela DC Comics. São desse períodotambém as histórias autorais Jew Gangstere Dong Xoai, sobre a guerra do Vietnã.

Seu último trabalho publicado foi Be-fore Watchmen: Nite Owl para a DC, ondeele arte-finalizou o desenho a lápis execu-tado por seu filho Andy Kubert. Bem dojeito que ele fazia no início de carreira. Emoutubro, estava previsto pela DC o lança-mento de sua última incursão como qua-drinista: a minissérie Joe Kubert Presents,com novas histórias gráficas.

Joe Kubert faleceu no dia 12 de agos-to em decorrência de um tipo de câncer,um mieloma múltiplo, poucas semanasantes de completar 86 anos.

A paixãosegundo

Joe Kubert

POR FRANCISCO UCHA

Ele produziu a primeirarevista de quadrinhos em 3D,

há quase 60 anos.

46 JORNAL DA ABI 381 • AGOSTO DE 2012

À esquerda, auto-retrato de Joe Kubert. Acima,ilustração para Sgt. Rock: The Prophecy; abaixo,o Ás Inimigo, que criou com Robert Kanigher.

REPROD

UÇÃO

Page 47: Jornal da ABI 381

47JORNAL DA ABI 381 • AGOSTO DE 2012

A ABI homenageou a memória do jor-nalista Júlio César Brazil na reunião dejulho do seu Conselho Deliberativo, nodia 31. Editor de Política do jornal O SãoGonçalo, no qual ingressou em 2007, comorepórter, Júlio César Brazil, morreu aos 42anos, no dia 24, em decorrência de umacidente vascular cerebral. O enterro foirealizado no dia 25, no Cemitério Parqueda Colina, em Pendotiba, Niterói. Cercade 200 pessoas acompanharam o cortejofúnebre, entre amigos, parentes, colegasde trabalho e políticos de São Gonçalo,Itaboraí e Maricá.

Júlio completou 10 anos de casamen-to com Cláudia Peixoto justamente no diade sua morte, e tinha dois enteados. “Ele erao amor da minha vida e não sei se vouconseguir viver sem ele, disse a viúva.”

O passamento de Júlio César foi noti-ciado assim pelo jornal O São Gonçalo:

“Jornalismo perde BrazilTão acostumados a todos os tipos de

notícia, certamente essa não era a que gos-taríamos de publicar. E com a dor da sau-dade e o coração partido, noticiamos amorte do nosso querido colega Júlio Cé-sar Brazil, lhe prestando uma homenagempelos últimos cinco anos de dedicação doseu talento a O São Gonçalo, onde ingres-sou em 2007 como repórter e nos últimosanos ocupava o cargos de Editor de Polí-tica. O vascaíno ‘roxo’ Júlio Brazil, o po-pular Brazil, nos deixou ontem aos 42anos, em decorrência de um avc ocorrido

No começo dos anos 1970, aquímica Iramaya QueirozBenjamin peregrinou pelasRedações de jornais do Rio deJaneiro em busca de informaçõessobre seus filhos César e Cid,participantes dos movimentosarmados de combate à ditadura,os quais foram presos por suaatuação política e corriam riscode vida. Funcionária doMinistério da Fazenda e formadaposteriormente em Filosofia,Iramaya sabia da participaçãopolítica dos filhos e tinha idéiado tratamento brutal a que eleseram submetidos na prisão. Em1970 Cid foi exilado e no anoseguinte foi a vez de César, aindamenor de idade, ser preso naBahia. Submetido ao regime deincomunicabilidade, César sósaiu do isolamento porqueIramaya foi ao Ministério daGuerra, nome da época daSecretaria do Exército, ereclamou aos gritos, como sefizesse um comício, umtratamento digno para o filho.

Essa foi a fase mais difícil davida de Iramaya, que participouativamente de atos de resistênciaà ditadura, como a criação doComitê Brasileiro pela Anistia,lançado na ABI em 1977 emconcorrido ato público presididopelo General Pery ConstantBevilacqua. Aprovada a anistia,Iramaya integrou as comissõesde recepção dos exilados quevoltavam do exterior, a fim deevitar que eles sofressemviolências no dia de seu retornoao País. Em 1982, Iramayadisputou uma cadeira deDeputada federal pelo PT masnão se elegeu. “O PT foi um rioque passou na minha vida”,lembrou O Globo ao noticiar oseu passamento em 19 de junhopassado. Ela se afastou depois doPT e passou a colaborar com oMovimento dos TrabalhadoresRurais Sem Terra–MST.

Iramaya morreu no dia emque fez 88 anos. Teve umaparada cardíaca em casa, quandodormia. Ela deixou três filhos –também Léo, além de Cid eCésar –, oito netos e quatrobisnetos.

Júlio Brazil, a morte precoceno último dia 14 de julho, cinco dias apósseu aniversário. Ele lutou o quanto pôde,com a força de toda a corrente positivapara que se reestabelecesse, o que infeliz-mente não ocorreu.

‘Júlio César Brazil é um exemplo a serseguido. Um jornalista dedicado, compe-tente e sempre preocupado em fazer omelhor. É com profundo pesar que recebe-mos a notícia de seu falecimento. Gosta-ria de transmitir a seus familiares e aoscolegas de Redação de O São Gonçalo omeu profundo pesar’, afirmou o Presiden-te de O São Gonçalo, Wallace Salgado deOliveira, que se encontra em viagem atrabalho pela Europa.

Esta página 3 que ele costumava editarhoje é dedicada integralmente ao nossoquerido amigo, como forma de agradecerpor termos tido o privilégio do seu con-vívio, da sua alegria e até dos momentosde estresse que inevitavelmente fazemparte da vida de todos nós.

Pela necessidade da sobrevivência fi-nanceira, passamos boa parte das nossasvidas em nosso local de trabalho e, por-tanto, é inevitável nos apegarmos uns aosoutros. No caso do Júlio, foi fácil gostar-mos dele. Para quem o conhecia de longadata, sabe como ele sempre foi uma figu-ra popular e carismática desde os temposda faculdade, cursada no Instituto deArtes e Comunicação Social- IACS da Uff,em São Domingos, em Niterói, no inícioda década de 1990.

Harrison, um ás da ficção científica

POR CESAR SILVA

Ele foi também o principal roteirista de Flash Gordon nos anos 1960.

No dia 15 de agosto, em Brighton, In-glaterra, a ficção-científica perdeu um deseus mais criativos autores: Harry Harri-son. Apesar de pouco publicada no Brasil,a obra de Harrison tem um valor signifi-cativo dentro de gênero, devido a sua cri-atividade, ousadia temática e qualidadenarrativa. Harrison se reinventava a cadaobra, modulando sua ficção conforme aproposta estética, e navegava bem emqualquer estilo, indo da comédia nonsenseà space opera e dela ao drama urbano sema menor dificuldade.

Sua obra mais conhecida nunca foi pu-blicada no Brasil. Trata-se da novela distó-pica Make Room! Make Room! (1966), quefoi base para o excelente longa-metragemNo Mundo de 2020 (Soylente Green, 1973),dirigido por Richard Fleischer e estreladopor Edward G. Robinson e Charlton Hes-ton no auge de sua fama.

Henry Maxwell Harrison nasceu em 12de março de 1925 na cidade de Stamford,Connecticut, EUA. Graduou-se em 1943 naForest Hills High School e logo que com-pletou 18 anos alistou-se na Força Aérea.Não se tornou piloto porque usava óculose acabou servindo no solo como técnico de

Como escritor, Harrison usou os pseu-dônimos Felix Boyd, Leslie Cárteres eHank Dempsey. Também atuou comoeditor de revistas e manteve uma produ-tiva parceria com o escritor britânico BrianAldiss, com quem organizou diversas an-tologias e dividiu a presidência da Birmin-gham Science Fiction Group.

O único título do autor publicado noBrasil foi o romance cômico Bill o HeróiGaláctico (Bill, the Galactic Hero, 1965), quesatirizou o subgênero da space opera numaépoca em que os rumos da ficção científi-ca nos Estados Unidos estavam passandopor um acirrado debate entre os veteranosda Golden Age e os novos autores, do qualHarrison fazia parte. Harrison tambémteve alguns contos traduzidos no Brasilem antologias e revistas, principalmenteno Magazine de Ficção Científica, da editoraGlobo, de Porto Alegre, entre 1970 e 1971.

Ele recebeu em 2009 o título de GrandeMestre da Science Fiction and FantasyWriters of America. Seu último livro foi TheStainless Steel Rat Returns, publicado em 2010.Parte da obra de Harry Harrison foi publica-da em Portugal, mas praticamente tudo estáfora de catálogo. Trata-se, sem dúvida, de umautor que merece ser redescoberto pelasnovas gerações de editores e leitores.

Logo que a notícia de sua morte foianunciada ontem à tarde, amigos, que tra-balharam ou não com Júlio, começarama postar depoimentos no Facebook, mui-tos dos quais reproduzimos nesta páginae que expressaram boa parte da nossagratidão e carinho. Perdoem-nos se nãopublicamos todas, por conta da velocida-de do próprio jornalismo para colher asinformações.

Júlio Brazil trabalhou também em OFluminense, Jornal do Brasil e Globo.com.Seu enterro será hoje, às 15h, no Parqueda Colina, em Pendotiba.”

Na sessão do Conselho Deliberativo,José Pereira da Silva, o Pereirinha, Presi-dente da Comissão de Sindicância da ABI,fez esta saudação póstuma a Júlio Brazil:

“Não éramos íntimos, mas admirava otrabalho sério, competente e honesto deJúlio César Brazil no exercício da profis-são que abraçou. Como leitor de O SãoGonçalo, sempre acompanhei o admiráveltrabalho dele e de sua equipe. Entristece-nos a sua partida, precoce e lamentável.Jovem, aos 42 anos de idade, tinha umabrilhante carreira pela frente e, com cer-teza, acompanharia com seu talento for-midável a evolução editorial do jornal,que hoje é a cara do nosso Município. Emnome da Associação Brasileira de Impren-sa, nos solidarizamos com todos os seuscompanheiros de Redação, com a direçãode O São Gonçalo e seu familiares nestemomento de dor.”

equipamentos de mira, durante a SegundaGuerra. Depois da baixa, decidiu estudararte e matriculou-se no Hunter Collegeem Nova York, onde foi instruído pelo pin-tor John Blomshield. Também estudou noCartoonists and Illustrators School, ondefoi aluno de Burne Hogarth.

Montou um estúdio com o ilustradorWallace Wood e ali trabalhou com RoyKrenkle e Al Williamson. A colaboraçãocomo ilustrador nas revistas Weird Fantasye Weird Science, da EC Comics, aproximou-o da ficção-científica. Por causa de umaforte gripe que o impediu de desenhar,Harrison foi para a máquina de escrevere acabou redigindo o conto Rock Diver,que foi aceito pelo editor Damon Knighte publicado em 1951 na revista WorldsBeyond. Mas mesmo depois de se tornarescritor, Harrison continuou envolvidocom os quadrinhos e foi o principal rotei-rista de Flash Gordon ao longo dos anos1960, desenhado por Dan Barry.

Depois do fracasso de seu primeirocasamento, Harrison casou-se em 1954com Joan Merkler, com quem teve doisfilhos: Todd e Moira. A família morou emdiversos lugares do mundo, como Méxi-co, Itália e Dinamarca, e se fixou na Irlan-da em 1975.

IramayaBenjamin, a

mãe coragem

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