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Page 1: Jorge Luiz Borges Obra Completa Volume 1

Este livro foi digitalizado por Raimundo do Vale Lucas, com aintenção de dar aos cegos a oportunidade de apreciarem mais umamanifestação do pensamento humano..

#JORGE LUIS BORGES OBRAS COMPLETASB j o 1JORGE LUIS BORGESOBRAS COMPLETASVOLUME 1 1923-1949JORGE LUIS BORGESOBRAS COMPLETASVOLUME 11923-1949Título do original em espanhol: Jorge Luis Borges - Obras Completas98-3272Copyright ©1998 by Maria Kodama Copyright ©1998 das traduções by Editora Globo S.A.

1a Reimpressão-9/98 22 Reimpressão-1/99 32 Reimpressão - 12/99

Edição baseada em Jorge Luis Borges - Obras Completas,

publicada por Emecé Editores S.A., 1989, Barcelona - Espanha.

Coordenação editorial: Carlos V. Frías

Capa: Joseph Llbach / Emecé Editores

Ilustração: Alberto Ciupiak

Coordenação editorial da edição brasileira: Eliana Sá

Assessoria editorial: Jorge Schwartz

Preparação de textos: Maria Carolina de Araujo

Revisão de textos: Flávio Martins, Levon Yacubian,

Luciana Vieira Alves e Márcia Menin

Projeto gráfico: Alves e Miranda Editorial Ltda.

Fotolitos: GraphBox

Agradecimentos a Antonio Fernández Ferrer, Maite Celada, Ana Cecilia Olmos,

Blas Matamoro, Fernando Paixão, Daniel Samoilovich e Michel Sleiman

Agradecimentos especiais a Élida Lois

Direitos mundiais em língua portuguesa, para o Brasil, cedidos à

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EDITORA GLOBO S.A.

Avenida Jaguaré, 1485

CEP O5346-9O2 - Tel.: 3767-7OOO, São Paulo, SP

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Impressão e acabamento:

Gráfica Círculo

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte - Câmara Brasileira do Livro, SPBorges, Jorge Luis, 1899-1986.Obras completas de Jorge Luis Borges_ volume 1 / Jorge Luis Borges. - São Paulo : Globo, 1999.

Título original: Obras completas Jorge Luis Borges.Vários tradutores.V. 1. 1923-1949 / v. 2. 1952-1972 / v. 3. 1975-1985 / v. 4. 1975-1988 ISBN 85-25O-2877-O (v. 1) / ISBN 85-25O-2878-9 (v. 2) ISBN 85-25O-2879-7 (v. 3) / ISBN 85-25O-288O-O(v. 4.)

1. Ficção argentina 1. Título.Índices para catálogo sistemático

1. Ficção: Século 20: Literatura argentina ar863.4

2. Século 20: Ficção: Literatura argentina ar863.4CDD-ar863.4Biblioteca Pública "Arthur Vianna

FERVOR DE BUENOS AIRESFervor de Buenos AiresTradução de Glauco Mattoso e Jorge SchwartzLUA DEFRONTELuna de EnfrenteTradução de Josely Vianna BaptistaCADERNO SAN MARTÍNCuaderno San MartínTradução de Josely Vianna BaptistaEVARISTO CARRIEGOEvaristo CarriegoTradução de Vera Mascarenhas, Jorge Schwartz,

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Maria Carolina de Araujo e Vistoria RéboriDISCUSSÃODiscusiónTradução de Josely Vianna BaptistaHISTÓRIA UNIVERSAL DA INFÂMIAHistoria Universal de Ia InfamiaTradução de Alexandre Eulálio

Revisão de tradução: Maria Carolina de Araujo e Jorge SchwartzHISTÓRIA DA ETERNIDADEHistoria de Ia EternidadTradução de Carmen Cirne Lima

Revisão de tradução: Maria Carolina de Araujo e Jorge SchwartzFICÇÕESFiccionesTradução de Carlos Nejar

Revisão de tradução: Maria Carolina de AraujoO ALEPHEl AlephTradução de Flávio José Cardozo

Revisão de tradução: Maria Carolina de AraujoA Leonor Acevedo de BorgesQuero deixar escrita uma confissão, que a um tempo será íntima e geral, já que as coisas que ocorrem a um homem ocorrem a todos. Estou falando de algo já remotoe perdido, os dias de meu santo, os mais antigos. Eu recebia os presentes e pensava que não passava de um menino e que não havia feito nada, absolutamente nada,para merecê-los. Certamente, nunca o disse; a infância é tímida. Desde então tu me tens dado tantas coisas e são tantos os anos e as recordações. Pai, Norah, osavós, tua memória e nela a memória dos antepassados - os pátios, os escravos, o aguateiro, a carga dos hussardos do Peru e o opróbrio de Rosas -, tua prisão valorosa,quando tantos homens calávamos, as manhãs do Paso del Molino, de Genebra e de Austin, as compartilhadas claridades e sombras, tua fresca ancianidade, teu amor aDickens e a Eça de Queirós, Mãe, tu mesma.Aqui estamos falando os dois, et tout le reste est littérature, como escreveu, com excelente literatura, Verlaine.J. L. B.7

#FERVOR DE BUENOS AIRES1923PRÓLOGONão reescrevi o livro. Mitiguei seus excessos barrocos, limei asperezas, risquei sentimentalismos e imprecisões e, no decurso desse labor às vezes grato e outras vezes incômodo, senti que aquele rapaz que em 1923 o escreveu já era essencialmente - que significa essencialmente? - o senhor que agora se resigna ou corrige. Somos o mesmo; os dois descremos do fracasso e do sucesso, das

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escolas literárias e de seus dogmas; os dois somos devotos de Schopenhauer, de Stevenson e de Whitman. Para mim, Fervor de Buenos Aires prefigura tudo o que faria depois. Pelo que deixava entrever, pelo que prometia de algum modo, aprovaram-no generosamente Enrique Díez-Canedo e AI fonso Reyes.Como os de 1969, os jovens de 1923 eram tímidos. Temerosos de uma íntima pobreza, tratavam como agora de escamoteá-lá sob inocentes novidades ruidosas. Eu, por exemplo, me propus demasiados fins: arremedar certas fealdades (que me agradavam) de Miguel de Unamuno, ser um escritor espanhol do século XVII, ser Macedonio Fernández, descobrir as metáforas que Lugones já havia descoberto, cantar uma Buenos Aires de casas baixas e, para o poente ou para o sul, de chácaras gradeadas.Naquele tempo, procurava os entardeceres, os arrabaldes e a desdita; agora, as manhãs, o centro e a serenidade.J. L. B.Buenos Aires, 18 de agosto de 1969.11

A QUEM LER

Se as páginas deste livro consentem algum verso feliz, perdoe-me o leitor a descortesia de tê-lo usurpado eu, previamente. Nossos nadas pouco diferem; é trivial e fortuita a circunstância de que sejas tu o leitor destes exercícios, e eu seu redator.

#AS RUAS

As ruas de Buenos Airesjá são minhas entranhas. Não as ávidas ruas,incômodas de turba e de agitação, mas as ruas entediadas do bairro, quase invisíveis de tão habituais, enternecidas de penumbra e de ocaso e aquelas mais longínquas privadas de árvores piedosasonde austeras casinhas apenas se aventuram, abrumadas por imortais distâncias, a perder-se na profunda visão de céu e de planura.São para o solitário uma promessaporque milhares de almas singulares as povoam, únicas ante Deus e no tempo e sem dúvida preciosas.Para o Oeste, o Norte e o Sulse desfraldaram - e são também a pátria - as ruas; oxalá nos versos que traço estejam essas bandeiras.15

#FERVOR DE BUENOS AIRESFERVOR DE BUENOS AIRESLA RECOLETA

Convencidos de caducidade por tantas nobres certezas do pó, demoramos e baixamos a voz entre as lentas filas de panteões,

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cuja retórica de sombra e de mármore promete ou prefigura a desejável dignidade de ter morrido. Belos são os sepulcros,o desnudo latim e as petrificadas datas fatais, a conjunção do mármore e da flor e as pracinhas com frescor de pátio e os muitos ontens da história hoje detida e única.Confundimos essa paz com a morte e cremos anelar nosso fim e anelamos o sonho e a indiferença. Vibrante nas espadas e na paixão e adormecida na hera, só a vida existe.O espaço e o tempo são formas suas,são instrumentos mágicos da alma, e quando esta se apague,se apagarão com ela o espaço, o tempo e a morte, como ao cessar a luzcaduca o simulacro dos espelhos que a tarde já foi apagando. Sombra benigna das árvores,vento com pássaros que sobre as ramas ondeia, alma que se dispersa em outras almas,fora um milagre que alguma vez deixaram de ser, milagre incompreensível, embora sua imaginária repetição infame com horror nossos dias. Estas coisas pensei em La Recoleta, no lugar de minha cinza.O SULDe um dos pátios ter olhadoas antigas estrelas, do banco da sombra ter olhado essas luzes dispersasque minha ignorância não aprendeu a nomear nem a ordenar em constelações, ter sentido o círculo da água na secreta cisterna,O odor do jasmim e da madressilva, o silêncio do pássaro adormecido, o arco do saguão, a umidade - essas coisas são, talvez, o poema.1617#FERVOR DE BUENOS AIRESFERVOR DE BUENOS AIRESRUA DESCONHECIDA Penumbra da pombachamaram os hebreus à iniciação da tardequando a sombra não entorpece os passos e a vinda da noite se adverte como música esperada e antiga, como um grato declive. Nessa hora em que a luz tem uma finura de areia, dei com uma rua ignorada, aberta em nobre largura de terraço, cujas cornijas e paredes mostrava cores brandas como o próprio céu que comovia o fundo. Tudo - a mediania das casas,as modestas balaustradas e aldravas,talvez uma esperança de menina rias sacadas -entrou no meu vazio coraÇãocom limpidez de lágrima.Quiçá essa hora da tarde de prata desse sua ternura à rua, fazendo-a tão real como UM verso esquecido e recuperado. Só depois refletique aquela rua da tarde era alheia, que toda casa é um candelabro onde as vidas dos homens ardem como velas isoladas, que todo imediato passo nosso caminha sobre Gólgotas.Em busca da tardefui esquadrinhando em vão as ruas.Já estavam os alpendres entorpecidos de sombra. Com fino brunimento de mogno a tarde inteira tinha-se remansado na praça, serena e sazonada,benfeitora e sutil como uma lâmpada, clara como uma fronte,grave como gesto de homem enlutado. Todo sentir se aquieta sob a absolvição das árvores - jacarandás, acácias - cujas piedosas curvasatenuam a rigidez da impossível estátua e em cuja rede se exalta a glória das luzes eqüidistantes do leve azul e da terra avermelhada. Como se vê bem a tarde do

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fácil sossego dos bancos! Abaixoo porto anela latitudes longínquase a profunda praça igualadora de almas se abre como a morte, como o sonho.A PRAÇA SAN MARTÍNA Macedonio Fernández1819#FERVOR DE BUENOS AIRESO TRUCOQuarenta naipes deslocaram a vida. Pintados talismãs de papelão nos fazem olvidar nossos destinos e uma criação risonha vai povoando o tempo roubado com as floridas travessuras de uma mitologia caseira. Nos lindes da mesa a vida dos outros se detém. Dentro há um estranho país: as aventuras do truco e do aceito, a autoridade do ás de espadas, como dom Juan Manuel, onipotente, e o sete de ouros tilintando esperança. Uma lentidão preguiçosa vai demorando as palavras e como as alternativas do jogo se repetem e se repetem, os jogadores desta noite copiam antigas vazas:fato que ressuscita um pouco, muito pouco, as gerações dos antepassados que legaram ao tempo de Buenos Aires os mesmos versos e as mesmas diabruras.2OFERVOR DE BUENOS AIRESUM PÁTIOCom a tardecansaram as duas ou três cores do pátio. Esta noite, a lua, o claro círculo, não domina seu espaço. Pátio, céu canalizado. O pátio é o declivepelo qual se derrama o céu na casa. Serena,a eternidade espera na encruzilhada de estrelas. Grato é viver na amizade escurade um saguão, de uma parreira e de uma cisterna.21#FERVOR DE BUENOS AIRESFERVOR DE BUENOS AIRESINSCRIÇÃO SEPULCRAL

Para meu bisavô, o coronel Isidoro Sudrez

Dilatou seu valor sobre os Andes. Afrontou montanhas e exércitos.A audácia foi costume de sua espada. Impôs na planura de junín término venturoso à batalhae às lanças do Peru deu sangue espanhol. Seu censo de façanhas escreveuem prosa rígida como os clarins belíssonos. Elegeu o honroso desterro. Agora é um pouco de cinza e de glória.A ROSAA rosa,a imarcescível rosa que não canto, a que é peso e fragrância, a do negro jardim na alta noite,a de qualquer jardim e qualquer tarde, a rosa que ressurge da tênue cinza pela arte da alquimia, a rosa dos persas e de Ariosto, a que sempre está só, a que sempre é a rosa das rosas, a jovem flor platônica, a ardente e cega rosa que não canto, a rosa inalcançável.2223#FERVOR DE BUENOS AIRESFERVOR DE BUENOS AIRES

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BAIRRO RECONQUISTADONinguém viu a formosura das ruasaté que em pavoroso clamor o céu esverdeado dasabouem abatimento de água e de sombra. O temporal foi unãonimee aborrecível aos olhares foi o mundo, mas quando um arco bendisse com as cores do perdão a tarde, e um odor de terra molhada alentou os jardins,nos pusemos a andar pelas ruas como por uma recuperada herdade,e nas vidraças houve generosidades de sol e nas folhas luzentesgravou sua trêmula imortalidade o estio.SALA VAZIA

Os móveis de mogno perpetuam entre a indecisão do brocado sua tertúlia de sempre. Os daguerreótipos mentem sua falsa cercania de tempo detido num espelho e ante nosso exame se perdem como datas inúteis de embaçados aniversários. E faz muito temposuas angustiadas vozes nos buscam e agora estão apenasnas manhãs iniciais de nossa infância. A luz do dia de hoje exalta os vidros da janela vinda da rua de clamor e de vertigem e encurrala e apaga a voz macia dos antepassados.2425#FERVOR DE BUENOS AIRESFERVOR DE BUENOS AIRESROSAS

Na sala tranqüilacujo relógio austero derramaum tempo já sem aventuras nem assombro sobre a decente brancuraque amortalha a paixão vermelha do mogno, alguém, como repreensão carinhosa, pronunciou o nome familiar e temido. A imagem do tiranoabarrotou o instante,não clara como um mármore na tarde, mas grande e umbrosacomo a sombra de uma montanha remota e conjecturas e memórias sucederam-se à menção eventual como um eco insondável. Famosamente infame seu nome foi desolação nas casas, idolátrico amor na gauchagem e horror do talho na garganta. Hoje o olvido apaga seu censo de mortes, porque são venais as mortes se as pensamos como parte do Tempo, essa imortalidade infatigávelque aniquila com silenciosa culpa as raças e em cuja ferida sempre abertaque o último deus haverá de estancar no último dia, cabe todo o sangue derramado. Não sei se Rosasfoi só um ávido punhal como os avós diziam; creio que foi como tu e eu um fato entre os fatosque viveu na soçobra cotidiana e dirigiu para exaltações e penas a incerteza dos outros.26Agora o mar é uma longa separação entre a cinza e a pátria. já toda vida, por humilde que seja, pode pisar seu nada e sua noite. já Deus o terá esquecidoe é menos uma injúria que uma piedade demorar sua infinita dissolução com esmolas de ódio.27Biblioteca Pública `~#rthur VíLL#FERVOR DE BUENOS AIRESFERVOR DE BUENOS AIRES

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FINAL DE ANO

Nem o pormenor simbólicode substituir um três por um dois nem essa metáfora baldiaque convoca um lapso que morre e outro que surge nem o cumprimento de um processo astronômico aturdem e solapamo altiplano desta noitee nos obrigam a esperaras doze irreparáveis badaladas. A causa verdadeira é a suspeita geral e embaçada do enigma do Tempo; é o assombro ante o milagrede que a despeito de infinitos acasos, de que a despeito de que somos as gotas do rio de Heráclito, perdure algo em nós: imóvel.AÇOUGUEMais vil que um lupanaro açougue rubrica como uma afronta a rua. Sobre o dinteluma cega cabeça de vaca preside a algazarrade carne charra e mármores finais com a remota majestade de um ídolo.2829FERVOR DE BUENOS AIRESREMORSO POR QUALQUER MORTEO arrabalde é o reflexo de nosso t Meus passos claudicaram quando iam pisar o horizonte e fiquei entre as casas, quadriculadas em quarteirões diferentes e iguais como se fossem todas elas monótonas recordações repetidas de um só quarteirão. O matinho precário, desesperadamente esperançado, salpicava as pedras da rua e divisei na profundeza os naipes de cores do poentee senti Buenos Aires.Esta cidade que acreditei ser meu passadoé meu porvir, meu presente;os anos que vivi na Europa são ilusórios,eu estava sempre (e estarei) em Buenos Aires.Livre da memória e da esperança,ilimitado, abstrato, quase futuro,o morto não é um morto: é a morte. Como o Deus dos místicos,de Quem devem negar-se todos os predicados, o morto ubiquamente alheio não é senão a perdição e ausência do mundo. Tudo dele roubamos,não lhe deixamos nem uma cor nem uma sílaba:aqui está o pátio que já não compartilham seus olhos, ali a calçada onde sua esperança espreitava.Até o que pensamos poderia estar pensando ele também; repartimos como ladrõeso caudal das noites e dos dias.3O31#FERVOR DE BUENOS AIRESJARDIM

Valetas,serras ásperas, dunas,sitiadas por ofegantes singraduras

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e pelas léguas de temporal e de areia que do fundo do deserto se aglomeram. Num declive está o jardim.Cada arvorezinha é uma selva de folhas. Assediada em vãopelos estéreis morros silenciososque apressam a noite com sua sombra e o triste mar de inúteis verdores. Todo o jardim é uma luz aprazível que ilumina a tarde. O jardinzinho é como um dia de festa na pobreza da terra.Yacimientos deI Chubut, 1922.FERVOR DE BUENOS AIRESINSCRIÇÃO EM QUALQUER SEPULCRONão arrisque o mármore temeráriogárrulas transgressões à onipotência do esquecimento, enumerando com meticulosidade o nome, a opinião, os acontecimentos, a pátria. Tanto avelório bem atribuído está às trevas e o mármore não fale o que calam os homens. O essencial da vida fenecida - a trêmula esperança,o milagre implacável da dor e o assombro do gozo - sempre perdurará.Cegamente reclama duração a alma arbitrária quando a tem assegurada em vidas alheias, quando tu mesmo és o espelho e a réplica daqueles que não alcançaram teu tempoe outros serão (e são) tua imortalidade na terra.3332#FERVOR DE BUENOS A1RESA VOLTA

Ao cabo dos anos de desterrovoltei à casa de minha infânciae ainda me é alheio o seu âmbito. Minhas mãos tocaram as árvorescomo quem acaricia alguém que dorme e repeti antigos caminhoscomo se recobrasse um verso esquecido e vi ao espalhar da tarde a frágil lua novaque se achegou ao amparo sombrio da palmeira de folhas altas, como ao seu ninho o pássaro. Que caterva de céusabarcará entre suas paredes o pátio, quantos heróicos poentes militarão na profundeza da rua e quantas quebradiças luas novas infundirão ao jardim sua ternura, antes que volte a reconhecer-me a casa e de novo seja um hábito!Sempre é comovedor o Opor indigente ou charro q porém mais comovedor amé aquele brilho desesperado e final que enferruja a planície quando o sol último afundou.Nos dói suster essa luz intensa e distinta, essa alucinação que impõe ao espaço o unãonime medo da sombra e que cessa de repente quando notamos sua falsidade, como cessam os sonhos quando sabemos que sonhamos.3534#FERVOR DE BUENOS AIRESFERVOR DE BUENOS AIRESAMANHECER

Na profunda noite universal

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que apenas contradizem os postes de luz uma ventura perdida ofendera as ruas taciturnas como pressentimento trêmulo do amanhecer horrível que ronda os arrabaldes desmantelados do mundo. Curioso pela sombra e acovardado pela ameaça da aurora revivi a tremenda conjectura de Schopenhauer e de Berkeley que declara que o mundo é uma atividade da mente, um sonho das almas, sem base nem propósito nem volume. E já que as idéiasnão são eternas como o mármoremas imortais como um bosque ou um rio, a doutrina anteriorassumiu outra forma na aurora e a superstição dessa horaquando a luz como uma trepadeira vai implicar as paredes da sombra, persuadiu minha razão e traçou o capricho seguinte:Se estão alheias de substância as coisas e se esta numerosa Buenos Aires não é mais que um sonhoque eriÚem em compartilhada magia as almas, há um instanteem que periga desmedidamente seu ser e é o instante estremecido da aurora, quando são poucos os que sonham o mundo e só alguns notívagos conservam,cinzenta e apenas esboçada,a imagem das ruasque definirão depois com os outros. Hora em que o sonho pertinaz da vida corre perigo de quebranto, hora em que seria fácil a Deus matar de todo Sua obra!

Porém de novo o mundo se salvou.A luz discorre inventando sujas cores e com algum remorsode cumplicidade no ressurgimento do dia solicito minha casa,atônita e glacial nã luz branca, enquanto um pássaro detém o silêncio e a noite gastapermaneceu nos olhos dos cegos.3637#FERVOR DE BUENOS AIRESFERVOR DE $UENOS AIRESBENARES

Falsa e densacomo um jardim calcado num espelho, a imaginada urbeque não viram nunca meus olhos entretece distâncias e repete suas casas inalcançáveis. O brusco soldesgarra a complexa escuridãode templos, muladares, cárceres, pátios e escalará os muros e resplandecerá num rio sagrado. Ofegante,a cidade que oprimiu uma folhagem de estrelas transborda o horizontee na manhã cheiade passos e de sonhoa luz vai abrindo como ramas as ruas. Juntamente amanheceem todas as persianas que olham para o oriente e a voz de um muezimaflige de sua alta torre o ar deste diae anuncia à cidade dos muitos deuses a solidão de Deus.(E pensarque enquanto brinco com duvidosas imagens, a cidade que canto persiste num lugar predestinado do mundo, com sua topografia precisa, povoada como um sonho, com hospitais e quartéis e lentas alamedas

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e homens de lábios podres que sentem frio nos dentes.)AUSÊNCIA

Hei de levantar a vasta vidaque ainda agora é teu espelho: cada manhã hei de reconstituí-la. Desde que te afastaste,quantos lugares se tornaram vãos e sem sentido, iguais a luzes no dia.Tardes que foram nicho de tua imagem, músicas em que sempre me aguardavas, palavras daquele tempo,eu terei que quebrá-las com minhas mãos. Em que ribanceira esconderei minha alma para que não veja tua ausência que como um sol terrível, sem ocaso, brilha definitiva e desapiedada? Tua ausência me rodeia como a corda à garganta. O mar no qual se afunda.3839#FERVOR DE BUENOS AIRESSINGELEZAA Haydée LangeAbre-se a cancela do jardimcom a docilidade da páginaque uma freqüente devoção interroga e dentro os olhares não precisam deter-se nos objetos que já estão cabalmente na memória. Conheço os costumes e as almas e esse dialeto de alusõesque todo agrupamento humano vai urdindo. Não necessito falarnem mentir privilégios;bem me conhecem aqueles que aqui me rodeiam, bem sabem minhas penas e minha fraqueza. Isso é alcançar o mais alto, o que talvez nos dará o Céu: não admirações nem vitórias mas simplesmente ser admitidos como parte de uma Realidade inegável, como as pedras e as árvores.FERVOR DE BUENOS ARESCAMINHADA

Cheirosa como um mate curadoa noite aproxima agrestes lonjuras e desanuvia as ruas que acompanham minha solidão,feitas de vago medo e de longas linhas. A brisa traz presságios de campo,doçura das quintas, memórias dos álamos, que farão tremer sob rigidez de asfalto a detida terra vivaque oprime o peso das casas. Em vão a furtiva noite felina inquieta as sacadas fechadas que na tarde mostrarama notória esperança das meninas. Também está o silêncio nos vestibulos. Na côncava sombra vertem um tempo vasto e generoso os relógios da meia-noite magnífica, um tempo caudalosoonde todo o sonhar encontra acolhida, tempo de largueza d"alma, diferente dos avaros termos que medem as tarefas do dia.Eu sou o único espectador desta rua; se a deixasse de ver, ela morreria. (Advirto um longo paredão eriçado de uma agressão de arestas e um farol amarelo que aventura sua indecisão de luz. Também advirto estrelas vacilantes.) Grandiosa e vivacomo a plumagem escura de um Anjo cujas asas tapam o dia, a noite perde as medíocres ruas.4O41#FERVOR DE BUENOS AIRES

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FERVOR DE BUENOS AIRESA NOITE DE SÃO JOÃO

O poente implacável em esplendores quebrou a fio de espada as distâncias. Suave como um salgueiral está a noite. Vermelhos faíscamos redemoinhos das bruscas fogueiras; lenha sacrificadaque se dessangra em altas labaredas, bandeira viva e cega travessura.A sombra é aprazível como uma lonjura; hoje as ruas lembram que foram campo um dia. Toda a santa noite a solidão rezando seu rosário de estrelas esparramadas.CERCANIAS

Os pátios e sua antiga certeza,os pátios alicerçados na terra e no céu.As janelas com grade da qual a ruase torna familiar como uma lâmpada. As alcovas profundas onde arde em quieta chama o mogno e o espelho de tênues resplendores é como um remanso na sombra. As encruzilhadas escurasque lanceiam quatro infinitas distâncias em arrabaldes de silêncio. Nomeei os lugaresonde se esparrama a ternura e estou só e comigo.4243#FERVOR DE BUENOS AIRESSÁBADOSA c. c.Fora há um ocaso, jóia escura engastada no tempo, e uma profunda cidade cega de homens que não te viram. A tarde cala ou canta.Alguém descrucifica as aspirações cravadas no piano.Sempre, a multidão de tua formosura.A despeito de teu desamortua formosuraesbanja seu milagre pelo tempo. Está em ti a venturacomo a primavera na folha nova. Já quase não sou ninguém, sou tão-somente essa aspiração que se perde na tarde. Em ti está a delíciacomo está a crueldade nas espadas.Agravando a grade está a noite. Na sala severase buscam como cegos nossas duas solidões. Sobrevive à tardea brancura gloriosa de tua carne.44FERVOR DE BUENOS ARESEm nosso amor há uma pena que se parece com a alma.Tuque ontem eras só toda a formosura és também todo o amor, agora.45#FERVOR DE BUENOS AIRESFERVOR DE BUENOS AIRESTROFÉU

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Como quem percorre uma costamaravilhado com a multidão do mar, alvissarado de luz e pródigo espaço, eu fui o espectador de tua formosura durante um longo dia. Nos despedimos ao anoitecer e em gradual solidãoao voltar pela rua cujos rostos ainda te conhecem, escureceu minha ventura, pensando que de tão nobre profusão de memórias perdurariam escassamente uma ou duas para ser decoro da almana imortalidade de sua andança.ENTARDECERESA clara multidão de um poente exaltou a rua,.a rua aberta como um vasto sonho para qualquer acaso. O límpido arvoredoperde o último pássaro, o ouro último. A mão esfarrapada de um mendigo agrava a tristeza da tarde.O silêncio que habita os espelhos forçou seu cárcere. A escureza é o sangue das coisas feridas. No incerto ocaso a tarde mutilada foi umas pobres cores.4647#FERVOR DE BUENOS AIRESFERVOR DE BUENOS AIRESCAMPOS ENTARDECIDOS

O poente de pé como um Arcanjo tiranizou o caminho.A solidão povoada como um sonho se remansou ao redor do vilarejo. Os cincerros recolhem a tristeza dispersa da tarde. A lua nova é uma vozinha do céu. À medida que vai anoitecendo volta a ser campo o vilarejo.

O poente que não se cicatriza ainda lhe dói a tarde.As trêmulas cores se resguardam nas entranhas das coisas. No dormitório vazio a noite fechará os espelhos.DESPEDIDA

Entre meu amor e eu hão de levantar-se trezentas noites como trezentas paredes e o mar será magia entre nós.

Não haverá senão recordações.Ó tardes merecidas pela pena, noites esperançadas de olhar-te, campos de meu caminho, firmamento que estou vendo e perdendo... Definitiva como um mármore entristecerá tua ausência outras tardes.4849#FERVOR DE BUENOS AIRESLINHAS QUE POSSO TER ESCRITO E PERDIDO POR VOLTA DE 1922Silenciosas batalhas do ocasoem arrabaldes últimos,sempre antigas derrotas de uma guerra no céu, albas ruinosas que nos chegam do fundo deserto do espaço como do fundo do tempo,negros jardins da chuva, uma esfinge de um livro que eu tinha medo de abrir e cuja imagem volta nos sonhos, a corrupção e o eco que seremos, a lua sobre o mármore,árvores que se elevam e perduram como divindades tranqüilas, a mútua noite e a esperada tarde,

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Walt Whitman, cujo nome é o universo, a espada valorosa de um rei no silencioso leito de um rio, os saxões, os árabes e os godos que, sem o saber, me engendraram, sou eu essas coisas e as outrasou são chaves secretas e árduas álgebras do que não saberemos nunca?FERVOR DE BUENOS AIRESNOTASRuw DascoNxECroA. É inexata a notícia dos primeiros versos. De Quincey (Writings, terceiro volume, página 293) anota que, segundo a nomenclatura judaica, a penumbra da aurora tem o nome de penumbra da pomba; a do entardecer, do corvo.

O TtzUCO. Nesta página de duvidoso valor assoma pela primeira vez uma idéia que sempre me inquietou. Sua declaração mais cabal está em "Sentirse en muerte° (El Idioma de los Argentinos, 1928) e em "Nueva refutación del tiempo° (Otras Inquisiciones,1952).Seu erro, já denunciado por Parmênides e Zenão de Eléia, é postular que o tempo está feito de instantes individuais, que é possível separá-los uns dos outros, assim como o espaço de pontos.

Rosas. Ao escrever este poema, eu não ignorava que um avô de meus avós era antepassado de Rosas. O fato nada tem de singular, se considerarmos a escassez da população e o caráter quase incestuoso de nossa história.Por volta de 1922 ninguém pressentia o revisionismo. Este passatempo consiste em "revisai" a história argentina, não para indagar a verdade mas para chegar a uma conclusão de antemão resolvida: a justificativa de Rosas ou de qualquer outro déspota disponível. Continuo sendo, como se percebe, um selvagem unitário.5O51PRÓLOGOPor volta de 19O5, Hermann Bahr decidiu: "O único dever, ser moderno". Vinte e tantos anos depois, eu também me impus essa obrigação totalmente supérflua. Ser moderno é ser contemporâneo, ser atual; todos fatalmente o somos. Ninguém - a não ser certo aventureiro sonhado por Wells - descobriu a arte de viver no futuro ou no passado. Não há obra que não seja de seu tempo; o escrupuloso romance histórico Salammbô, cujos protagonistas são os mercenários das guerras púnicas, é um típico romance francês do século XIX. Nada sabemos da literatura de Cartago, que verossimilmente foi rica, só que não podia incluir um livro como o de Flaubert.Esquecido de que já o era, quis também ser argentino. Incorri na arriscada aquisição de um ou dois dicionários de argentinismos, que rne forneceram palavras que hoje mal posso decifrar: madrejón,espadana, estaca pampa...A cidade de Fervor de Buenos Aires não deixa nunca de ser ínfima; a deste volume tem algo de ostentoso e de público. Não quero ser injusto com ele. Uma que outra composição - "O general Quiroga vai de coche para a morte" - talvez possua toda a vistosa beleza de uma decalcomania; outras - "Manuscrito encontrado num livro de Joseph Conrad" - não desonram, permito-me afirmar, quem as compôs. O fato é que as sinto alheias; não me dizem respeito seus erros nem suas eventuais virtudes.Pouco mudei este livro. Agora, já não é meu.

J. L. B.

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Buenos Aires, 25 de agosto de 1969. 55#RUA DO ARMAZÉM ROSADO

Já se acendem os olhos dessa noite em cada boca de rua, e é como a estiagem farejando chuva. Agora todos os caminhos estão perto, até mesmo o caminho do milagre. O vento traz a aurora entorpecida.A aurora é nosso medo de fazer coisas diferentes e descesobre nós.Caminhei por toda a santa noite e sua inquietude me deixa nesta rua, uma qualquer.Aqui outra vez esse sossego da planície no horizontee o terreno baldio que se desfaz em amarantos e arames e o armazém tão claro como a lua nova de ontem à tarde. A esquina é familiar como a lembrança com seus longos frisos e a promessa de um pátio.Que bom testemunhar-te, rua de sempre, já que meus diasviram tão poucas coisas!A luz já risca o ar.Meus anos percorreram os caminhos da terra e da águae é só a ti que sinto, rua dura e rosada.Penso se tuas paredes conceberam a alvorada, armazém assim claro no limite da noite. Penso e ganha voz diante das casas a confissão de minha pobreza: não vi os rios nem o mar nem a serra, mas conviveu comigo a luz de Buenos Airese eu forjo os versos de minha vida e de minha morte com essa luz de rua.Rua grande e sofrida,és a única música que minha vida conhece.57#LliA DEFRONTELUA DEFRONTEAO HORIZONTE DE UM SUBÚRBIOPampa:Avisto tua amplidão que afunda os subúrbios, estou me dessangrando em teus poentes.

Pampa:Posso ouvir-te nas tenazes violas sentenciosas, e nos altos bem-te-vis e no ruído cansado, dos carros de bois que vêm do verão.

Pampa:O espaço de um pátio colorado me basta para te sentir meu.

Pampa:Eu sei que te cortamtrilha e atalhos e o vento que te muda.Pampa sofrido e macho que estás nos céus,não sei se és a morte. Sei que estás em meu peito.fAMOROSA ANTECIPAÇÃO

Nem a intimidade de tua fronte clara como uma festanem o costume de teu corpo, ainda misterioso e tácito e de

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menina,nem a sucessão de tua vida assumindo palavras ou silêncios serão favor tão misteriosocomo olhar teu sonho envolvido na vigília de meus braços.Virgem miraculosamente outra vez pela virtude do sonoque absolve,calma e resplandecente como a alegria que a memória elege, vais me dar essa margem de tua vida que tu mesma não tens. Lançado no silêncio,fitarei essa praia última de teu sere hei de te ver pela primeira vez, quem sabe, como Deus há de ver-te, a ficção do Tempo dissipada, sem o amor, sem mim.5859#LUA DEFKONTELUA DEFRONTEUMA DESPEDIDA

Tarde que solapou nosso adeus.Tarde afiada e prazerosa e monstruosa como um anjo obscuro. Tarde em que viveram nossos lábios na intimidade nuados beijos.O tempo inevitável transbordavasobre o abraço inútil.Juntos dissipávamos paixão, não para nós, mas para asolidão já próxima.A luz nos afastou; a noite chegara de repente.Fomos até o portão com a seriedade da sombra que agorauma estrela atenua.Como quem volta de um prado perdido eu voltei de teuabraço.Como quem volta de um país de espadas eu voltei de tuaslágrimas.Tarde que dura vívida como um sonhoentre as outras tardes.Depois fui alcançando e ultrapassandonoites e singraduras.O GENERAL QUIROGA VAI DE COCHE PARA A MORTE

O leito seco nu já sem um fio de águae uma lua perdida no frio da alvorada,e o campo morto de fome, pobre como uma aranha.

O coche balançava resmungando a altura;um cantorio enfático, enorme, funerário. Quatro tapados com pinta de morte na negrura carregavam seis medos e um valor desvelado.

Junto aos cocheiros cavalgava um moreno.Ir pra morte de coche, que coisa mais vanglória! O general Quiroga quis entrar na sombra levando seis ou sete degolados de escolta.

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Essa cordobesada turbulenta e ladina(meditava Quiroga), o que há de poder com minha alma? Aqui estou asseverado e cravado na vida como o esporão pampa bem cravado no pampa.

Eu, que já sobrevivi a milhares de tardese a cujo nome estremecem as lanças, não perderei a vida por estes pedregais.Morre acaso o pampeiro, se perecem as espadas?

Mas ao brilhar o dia sobre Barranca Yacoferros que não perdoam desceram sobre ele; a morte, que é de todos, arriou com o riojanoe um par de punhaladas assinalou Juan Manuel.

Já morto, ou de pé, imortal, ou fantasma, compareceu ao inferno por Deus designado, e sob as suas ordens, rasgadas, dessangradas, seguiam almas penadas de homens e cavalos.6O61#LUA DEFRONTELUA DEFRONTEMANUSCRITO ENCONTRADO NUM

LIVRO DE JOSEPH CONRADNas terras trêmulas que exsudam o estio, O dia é invisível de puro branco. O dia É uma estria cruel numa gelosia,Um fulgor nas praias e uma febre no sítio.

Mas a antiga noite é funda como um jarroDe água côncava. A água se abre a infinitos rastros, E em canoas ociosas, de frente para os astros, O homem mede o tempo livre com o cigarro.

A fumaça esmaece em cinza as constelações Remotas. O imediato perde pré-história e nome. O mundo é um par de ternas imprecisões. O rio, o rio primeiro. O homem, o primeiro.SINGRADURA

O mar é uma espada inumerável e uma plenitude de pobreza. A labareda se traduz em ira, a fonte em tempo, e a cisternaem clara aceitação.O mar é solitário como um cego.O mar é uma linguagem antiga que não consigo mais decifrar. Em sua profundei, a aurora é um modesto muro caiado. De seus confins surge o claror, qual nuvem de fumaça. Impenetrável como de pedra lavrada o mar persiste diante dos muitos dias. Cada tarde é um porto.Nosso olhar flagelado de mar caminha por seu céu: Última praia macia, celeste argila das tardes.Que doce intimidade a do ocaso com o mar intratável! Claras como uma feira as nuvens brilham. A lua nova enredou-se num mastro.A mesma lua que deixamos sob um arco de pedra e cuja luzvai enfeitar os salgueiros.No convés, em silêncio, compartilho a tarde com minha irmã,

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como um naco de pão.6465#LUA DEFRONTELUA DEFRONTEDAKAR

Dakar está na encruzilhada do sol, do deserto e do mar.O sol nos esconde o firmamento, o areal espreita nos caminhos, o mar é um furor.Vi um cavaleiro em cuja manta o azul era mais vivo que no céu incendiado.A mesquita perto do cinema reflete uma lucidez de oração. A ressolana afasta as choças, o sol como um ladrão escala os muros.A África tem na eternidade seu destino, onde há façanhas, ídolos, reinos, árduos bosques e espadas. Eu alcancei um entardecer e uma aldeia.A PROMISSÃO EM ALTO-MAR

Não tenho mais teus arredores, minha pátria, mas aindaguardo tuas estrelas.O mais remoto firmamento as trouxe e agora se perdem emsua graça os mastros.Soltaram-se das altas cornijas como um assombro de pombos. Vêm do pátio onde o poço é uma torre invertida entre doiscéus.Vêm do viçoso jardim cuja inquietude sobe ao pé do murocomo água sombria.Vêm do lasso entardecer de província, manso como amarantos. São imortais e veementes; nenhum povo vai medir suaeternidade.Diante de sua firmeza de luz todas as noites dos homens vãose curvar como folhas secas.São um claro país e de algum modo minha terra habita seuespaço.w6667#LUA DEFRONTELUA DEFRONTEDULCIA LINQUIMUS ARUÁ

Meus avós fizeram amizadecom estes ermose conquistaram a intimidade dos lhanos e ligaram a seu campear a terra, o fogo, o ar, a água. Foram soldados e estancieiros e apascentaram o coração com manhãs e o horizonte, como um bordão,soou nas profundezas de sua austera jornada. Sua jornada foi clara como um rio e a tarde era fresca como a água oculta do poço

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e as quatro estações foram para eles como os quatro versos da copla esperada. Decifraram longínquas nuvens de pó em carroças ou em cavalhadas e alegrou-os o esplendor com que a espadana aviva o sereno. Um lutou contra os godos, outro no Paraguai cansou a sua espada; todos conheceram o abraço do mundoe a campanha foi mulher submissa ao seu amor. Vastos eram seus diasfeitos de céu e descampado. Sabedoria de campo além da sua, a daquele que está firme no cavalo e rege os homens da planície e os trabalhos e os dias e as gerações dos touros.Sou do povoado e já não sei dessas coisas, sou homem de cidade, de bairro, de rua:os bondes distantes embalam minha tristeza com o lamento longo que soltam pelas tardes.QUASE JUÍZO FINALMeu errante não fazer nada vive e se solta pela variedade danoite.A noite é uma festa longa e solitária.Em meu coração secreto eu me justifico e celebro: Testemunhei o mundo; confessei a estranheza do mundo. Cantei o eterno: a clara lua volvedora e as faces que o amorenseja.Comemorei com versos a cidade que me cercae os arrabaldes que se apartam.Disse assombro onde outros dizem apenas hábito.Diante da canção dos tíbios, acendi minha voz em poentes. Exaltei e cantei os antepassados de meu sangue e osantepassados de meus sonhos.Fui e sou.Travei com palavras firmes roeu sentimento que pode terse dissipado em ternura.A lembrança de uma antiga vileza volta a meu coração. Como o cavalo morto que a maré inflige à praia, volta a meucoração.Ainda estão a meu lado, no entanto, as ruas e a lua.A água continua sendo doce em minha boca e as estrofes nãome negam sua graça.Sinto o pavor da beleza; quem se atreverá a condenar-mese esta grande lua de minha solidão me perdoa?6869#LUA DEFRONTELUA DEFRONTEMINHA VIDA INTEIRA

Aqui outra vez, os lábios memoráveis, único e semelhante a vós.Persisti outra vez na aproximação da ventura e na intimidade do sofrimento.Cruzei o mar.Conheci muitas terras; vi uma mulher e dois ou três homens. Amei uma menina altiva e branca, de uma hispânica quietude. Vi um arrabalde infinito onde se cumpre uma insaciadaimortalidade de poentes.Saboreei numerosas palavras.Acredito profundamente que isso é tudo e que não verei nem farei coisas novas.

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Acredito que minhas jornadas e minhas noites se igualam em pobreza e em riqueza aos de Deus e aos de todos os homens.ÚLTIMO SOL EM VILLA ORTÚZAR

Tarde como de Juízo Final.A rua é uma ferida aberta no céu.Não sei se foi Anjo ou ocaso a claridade que ardeu naprofundeza.Insistente, como um pesadelo, pesa sobre mim a distância. Um arame farpado fere o horizonte. O mundo parece imprestável e inerte. No céu é dia, mas a noite é traiçoeira nas sarjetas.Toda a luz está nas paredes azuis e nesse alvoroço de moças. Já não sei se é uma árvore ou um deus, esse que surge pelagrade enferrujada.Quantos países ao mesmo tempo: o campo, o céu, os subúrbios. Hoje fui rico de ruas e de ocaso afiado e da tarde entorpecida. Longe, vou me devolver a minha pobreza.7O71#LUA DEFRONTEPARA UMA RUA DO OESTEVais me dar uma estranha imortalidade, rua sozinha. És a sombra de minha vida.Atravessas minhas noites com tua segura exatidão de estocada. A morte - tempestade obscura e imóvel - confundirá minhashoras.Alguém recolherá meus passos e usurpará minha devoção e essa estrela.(A distância como um longo vento flagelará seu caminho.) Desvelado de nobre solidão, vai levar um mesmo desejo ateu céu.Vai levar esse mesmo desejo que sou eu. Ressurgirei em seu vindouro assombro de ser.Em ti outra vez:Rua que dolorosamente como uma ferida te abres.72LUA DEFRONTEVERSOS DE CATORZEÀ minha cidade de pátios côncavos como cântaros e de ruas que sulcam as léguas como um vôo, à minha cidade de esquinas com auréola de ocaso e de subúrbios azuis, feitos de firmamento,

à minha cidade que se abre clara como um pampa, eu retornei das terras antigas do oriente, recuperei suas casas e a luz de suas casas e essa modesta luz que os armazéns exigem

e conheci nas margens, do querer, que é de todose no fio de um poente dessangrei o peito em salmos e cantei o bem-vindo costume de estar só e o retalho de pampa colorido de um pátio.

Falei dos carrosséis, o engenho dos domingos, do paredão que cresta a sombra de um paraíso, do destino que espreita, tácito, no punhal, da noite perfumada como um mate curado.

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Pressenti as entranhas da fala as margens, palavra que na terra põe o acaso da águae que dá aos subúrbios sua aventura infinita e às campinas agrestes um sentido de praia.

Assim vou devolvendo a Deus alguns centavos do caudal infinito que Ele me põe nas mãos.73As to an occasional copy of verses, there are few men zupo have leisure to real, and are possessed of any musie in their souls, who are not capable of z~ersifying on some ten or twelve occasions during their natural lives: at a proper conjunction of [fie stars. There is no harm in taking advantage of such occasions.E. FiTzGERALD. Numa carta a Bernard Barton (1842).PRÓLOGOFalei muito, falei demais, sobre a poesia como brusco dom do Espírito, sobre o pensamento como atividade da mente; vi em Verlaine o exemplo de puro poeta lírico; em Emerson, de poeta intelectual. Creio agora que em todos os poetas que merecem ser relidos ambos os elementos coexistem. Como classificar Shakespeare ou Dante?No que se refere aos exercícios deste volume, é notório que aspiram à segunda categoria. Devo ao leitor algumas observações. Diante da indignação da crítica, que não perdoa que um autor se arrependa, escrevo agora "Fundação mítica de Buenos Aires" e não "Fundação mitológica", já que a última palavra sugere maciças divindades de mármore. As duas seções de "Mortes de Buenos Aires" - título que devo a Eduardo Gutiérrez - imperdoavelmente exageram a conotação plebéia de Lã Chacarita e a conotação aristocrata de Lã Recoleta. Penso que a ênfase de "Isidoro Acevedo" teria feito meu avô sorrir.Além de "Llaneza", "A noite em que no Sul o velaram" talvez seja o primeiro poema autêntico que escrevi.J. L. B.

Buenos Aires, 1969.79FUNDAÇÃO MÍTICA DE BUENOS AIRES

E foi por este rio de modorra e de barroque as proas vieram fundar minha pátria? Deviam ir aos trancos os barquinhos pintados por entre os aguapés de sua corrente zaina.

Pensando bem na coisa, vamos supor que o rio fosse então azulado, como oriundo do céu com sua estrelinha rubra para marcar o sítio em que Juan Díaz jejuou e os índios comeram.

O certo é que mil homens e outros mil chegaram por um mar com a largura de umas cinco luas e ainda povoado de sereias e endríagose dessas pedras-ímãs que enlouquecem a bússola.

Fincaram alguns ranchos trêmulos pela costa,dormiram assombrados. Isso - dizem - foi no Riachuelo, mas são desses embustes que se forjam na Boca. Foi numa quadra inteira e em meu bairro: Palermo.

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Uma quadra inteira, mas do lado do campo exposto às madrugadas e chuvas e suestadas. Essa quadra parelha que persiste em meu bairro: Guatemala, Serrano, Paraguay, Gurruchaga.

Um armazém rosado como o verso de um naipe brilhou e em seus fundos conversaram um troco; o armazém rosado floresceu num compadre, dono da esquina agora, já ressentido e duro.

O primeiro realejo surgia no horizontecom seu porte queixoso, a habanera e o gringo. Na certa o barracão já falava de YRIGoYEN, um piano mandava tangos de Saborido.81#CADERNO SAN MARTÍNUma tabacaria incensou como uma rosao deserto. A tarde mergulhara em ontens,os homens partilharam um passado ilusório. Só faltou uma coisa: a calçada defronte.

Parece-me história o começo de Buenos Aires: julgo-a tão eterna como a água e o ar.82CADERNO SAN MARTÍNELEGIA DOS PORTÕESA Francisco Luis BernárdezBairro Villa Alvear: entre as ruas Nicaragua, Arrogo Maldonado, Canning e Rivera. Muitos terrenos baldios ainda existem e sua importância é reduzida.MANUEL BILBAO: Buenos Aires, 19O2.Esta é uma elegiados portões retos que alongavam sua sombra na praça de terra.Esta é uma elegiaque recorda um longo esplendor merencório que os entardeceres davam aos baldios. (Até nas passagens havia céu bastante para toda uma felicidade e as paredes eram da cor das tardes.) Esta é uma elegiade um Palermo traçado com vaivém de lembrançae que se esvai na pequena morte dos esquecimentos.

Moças comentadas por uma valsa de realejoou pelos condutores do Klaxon insolente da linha 64,sabiam nas portas a graça de sua espera. Havia ocos de cactos e a margem hostil do Maldonado - menos água que barro na estiagem -e descaradas veredas em que flamejava o namoro e uma fronteira de apitos de ferro.

Houve coisas felizes,coisas que só existiram para alegrar as almas: o canteiro do pátioe o andar balançado do compadre.83CADERNO SAN MARTÍNO dia era mais longo em tuas veredasque nas ruas do centro,porque aos buracos fundos se afeiçoava o céu. Carroças de flanco sentencioso cruzavam tua manhãe nas esquinas eram suaves os armazéns como se à espera de um anjo.

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De minha rua nos altos (é coisa de uma légua) vou procurar lembranças em tuas ruas noturnas. Meu assobio de pobre penetrará nos sonhos dos homens que dormem.

Essa figueira que surge sobre a muretase afina com minha almae é mais grato o rosado firme de tuas esquinas que o das nuvens suaves.Minha lembrança do jardim de casa: vida benigna das plantas, vida cortês de misteriosa e lisonjeada pelos homens.

A mais alta palmeira daquele céue estância de pardais;parra firmamental de uva preta,os dias de verão dormiam à tua sombra.

Moinho colorado:remota roda laboriosa no vento,honra de nossa casa, porque nas outras o rio.ia sob a sineta do aguadeiro.

Porão circular da baseque tornavas vertiginoso o jardim, dava medo entrever por uma frincha teu calabouço de água sutil.

Jardim, diante da grade cumpriram seus caminhos os sofridos carreirose o carnaval berrante aturdiu com insolentes blocos.

O armazém, padrinho do malévolo, dominava a esquina;mas tinhas canaviais para fazer lanças e pardais para a oração.

O sonho de tuas árvores e o meuainda se confundem na noite e a extinção da urracadeixou um medo antigo em meu sangue.CADERNO SAN MARTÍNPalermo do princípio, tu possuíasumas quantas milongas para fazer-te valente e um baralho crioulo para esquecer da vida e alvoradas eternas para saber a morte.CURSO DAS LEMBRANÇAS8485CADERNO SAN MARTÍNTuas poucas varas de profundidade se transformaram em geografia; um topo era "a montanha de terra" e uma temeridade seu declive.

Jardim, eu cortarei minha oração para seguir sempre lembrando: vontade ou acaso de dar sombra foram tuas árvores.86CADERNO SAN MARTÍNISIDORO ACEVEDO

É verdade que ignoro tudo sobre ele- salvo os nomes de lugar e as datas: fraudes da palavra -

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mas com temerosa piedade resgatei seu último dia, não o que outros viram, o seu,e quero me distrair de meu destino para escrevê-lo. Afeito à conversa portenha do truco,alsinista e nascido do lado bom do Arrogo del Medio, fiscal de frutos do país no antigo mercado do Once, no terceiro distrito,lutou quando Buenos Aires o quisem Cepeda, em Pavón e na praia dos Corrales.

Mas minha voz não deve assumir suas batalhas, porque ele as travou num sonho essencial. Porque como outros homens escrevem versos, meu avô fez um sonho.

Quando uma congestão pulmonar o estava arruinando e a febre inventiva falseou-lhe a face do dia, reuniu os documentos ardentes da memória para forjar seu sonho.

Isto aconteceu numa casa da rua Serrano,no verão abrasado de mil novecentos e cinco. Sonhou com dois exércitos que entravam na sombra de um combate; enumerou os comandos, as bandeiras, as unidades. "Agora os chefes estão parlamentando", disse em vozque se ouviu,e quis se levantar para vê-los.87#CADERNO SAN MARTÍNCADERNO SAN MARTÍNRecrutou gente do pampa:viu terreno quebrado para que a infantaria pudesse aferrar-se e planície arrojada para que o arranque da cavalaria fosseinvencível.Fez uma última leva,reuniu os milhares de rostos que o homem sabe, sem saber,com os anos:rostos de barba que devem estar desmaiando emdaguerreótipos,rostos que viveram junto ao seu na Puente Alsina e em Cepeda. Naquela época saqueoupara essa visionária rebelião que sua fé pedia, não que umafraqueza lhe impôs;juntou um exército de sombras portenhas para que o matassem.

Assim, no quarto que dava para o jardim, morreu num sonho pela pátria.Em metáfora de viagem me contaram sua morte; não acreditei. Era um menino, ainda não conhecia a morte, eu era imortal; procurei-o durante dias pelos quartos sem luz.A NOITE EM QUE NO SUL O VELARAMA Letizia Álvarez de Toledo

Pelo passamento de alguém- mistério cujo desconhecido nome possuo e cuja realidadenão abarcamos -há até o alvorecer uma casa aberta no Sul,uma casa ignorada que não estou destinado a rever, mas que me espera esta noite com tresnoitada luz nas altas horas do sono, consumida por noites em claro, diferente,

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minuciosa de realidade.

Para sua vigília que gravita em morte caminhopor ruas elementares como lembranças, pelo tempo exuberante da noite, sem mais vida audívelque os vadios do bairro junto ao armazém apagado e algum assovio perdido no mundo.

O andar lento, na posse da espera,chego à quadra e à casa e à singela porta que busco e me recebem homens constrangidos à seriedade que viveram a época de meus antepassados,e nivelamos destinos no aposento arrumado que dá para o pátio - pátio que está sob o poder e na integridade da noite - e dizemos, porque a realidade é maior, coisas indiferentes e somos apáticos e argentinos no espelho e o mate compartilhado mede horas vãs.

Comovem-me as miúdas sabedoriasque em todo falecimento se perdem- hábito de alguns livros, de uma chave, de um corpo entreos outros.8889#CADERNO SAN MARTíNCADERNO SAN MARTíNEu sei que todo privilégio, embora obscuro, é da linhagem do milagree é muito o de participar desta vigília,reunida ao redor do que não se sabe: do Morto,reunida para acompanhar e guardar sua primeira noite na morte.

(O velório gasta os rostos;nossos olhos estão morrendo no alto como Jesus.) E o morto, o incrível?Sua realidade está sob as flores diferentes dele e sua mortal hospitalidade vai nos dar uma lembrança a mais para o tempoe sentenciosas ruas do Sul para merecê-las devagar e brisa obscura sobre a fronte que se volta e a noite que nos livra da maior angústia: a prolixidade do real.MORTES DE BUENOS AIRES

I

LA CHACARITA

Porque a entranha do cemitério do sulfoi saciada pela febre amarela até dizer basta; porque os tugúrios fundos do sul lançaram morte sobre a face de Buenos Airese porque Buenos Aires não pôde encarar essa morte, golpes de pá te abriramna ponta perdida do oeste, atrás das tempestades de póe do barro pesado e primitivo que moldou os quarteadores. Ali só existia o mundoe os costumes das estrelas sobre umas chácaras, e o trem saía de um galpão em Bermejo com os esquecimentos da morte: mortos de barba desabada e olhos desvelados, mortas de carne desalmada e sem magia.

As trapaças da morte - suja como o nascimento do homem - continuam multiplicando teu subsolo e assim recrutas teu cortiço de almas, tua guerrilha clandestina de

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ossos que caem no fundo de tua noite, tão enterrada quanto as profundezas de um mar.

Uma dura vegetação de restos desoladosinveste contra teus paredões intermináveis cujo sentido é perdição,e as margens, convencidas de mortalidade, apressam sua vida quente a teus pésem ruas transpassadas por um lampejo pálido de barro ou se atordoam com desgosto de bandoneões ou com balidos de cornetas insossas no carnaval. (A sentença inalterável do destino que dura em mim eu ouvi nessa noite em tua noite9O91CADERNO SAN MARTÍNquando a viola na mão do ribeirinhodisse o mesmo que as palavras, e elas diziam:A morte é vida vivida,a vida é morte que vem; a vida não é outra coisa que a morte que se mostra.)

Macaco do cemitério, La Quemagesticula adventícia morte a teus pés.Gastamos e adoecemos a realidade: 21O carroças infamam as manhãs, levando a essa necrópole de fumaça as coisas cotidianas que contagiamos de morte. Cúpulas desengonçadas de madeiras e cruzes no altose movem - peças pretas de um xadrez final - por tuas ruas e sua enfermiça majestade vai encobrindo as vergonhas de nossas mortes. Em teu disciplinado recintoa morte é incolor, oca, numérica; se reduz a datas e a nomes, mortes da palavra.

Chacarita:desaguadouro desta pátria de Buenos Aires, encosta final, bairro que sobrevives aos outros, que sobremorres, lazareto que estás nesta morte, não na outra vida, ouvi tua palavra de caducidade e não acredito nela, porque tua própria convicção de angústia é ato de vidae porque a plenitude de uma só rosa é maior que teus mármores.11

LA RECOLETAAqui a morte é briosa,é a recatada morte portenha,a consangüínea da duradoura luz venturosa do átrio do Socorroe da cinza minuciosa dos braseirose do fino doce de leite dos aniversários e das fundas dinastias de pátios.92CADERNO SAN MARTíNCombinam bem com elaessas velhas doçuras e também os velhos rigores.

Tua fronte é o pórtico valorosoe a generosidade de cego da árvoree a dicção de pássaros que aludem, sem conhecê-la, à morte e o rufo, endeusados de peitos, dos tambores nos enterros militares;teu dorso, os tácitos cortiços do norte e o paredão das execuções de Rosas.

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Cresce em dissolução sob os sufrágios de mármore a nação irrepresentável de mortos que se desumanizaram em tua trevadesde que María de los Dolores Maciel, menina do Uruguai - semente de teu jardim para o céu - adormeceu, definhada, em teu descampado.

Mas eu quero demorar-me no pensamentodas flores leves que são teu comentário piedoso - chão amarelo sob as acácias de tua encosta, flores içadas para comemorar em teus mausoléus - e no porquê de seu viver belo e adormecido junto às terríveis relíquias dos que amamos.

Falei do enigma e direi também sua palavra:as flores sempre vigiaram a morte,porque nós, homens, sempre soubemos de um modoincompreensívelque seu existir adormecido e beloé o que melhor pode acompanhar os que morreram sem ofendê-los com soberba de vida, sem ser mais vida que eles.93#CADERNO SAN MARTíNA FRANCISCO LÓPEZ MERINO

Se te cobriste, por deliberada mão, de morte,se tua vontade foi recusar todas as manhãs do mundo, é inútil que palavras rejeitadas te solicitem, predestinadas à impossibilidade e à derrota.

Só nos resta entãofalar da desonra das rosas que não souberam demorar-te, da afronta do dia que te permitiu o balaço e o fim.

O que nossa voz poderá oporao que a dissolução, a lágrima, o mármore confirmaram? Mas há ternuras que nenhuma morte torna menores: as íntimas, indecifráveis notícias que a música nos conta, a pátria que condescende com figueiras e poço, a gravitação do amor, que nos justifica.

Penso nelas e penso também, amigo escondido,que talvez, com a imagem preferida, trabalhamos a morte, que já a conhecias de sinos, menina e graciosa, irmã de tua aplicada letra de colegial, e que terias gostado de distrair-te nela como num sonho.

Se isto é verdade, e se quando o tempo nos deixa permanece em nós um sedimento de eternidade, um gosto do mundo,então tua morte é leve,como os versos em que sempre estás nos esperando, e assim não profanarão tua treva estas amizades que invocam.CADERNO SAN MARTÍNBAIRRO NORTEEsta é a declaração de um segredoproibido pela inutilidade e pelo descuido, segredo sem mistério nem juramento que só o é por indiferença:

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hábitos de homens e anoiteceres o possuem,resguarda-o o esquecimento, que é o modo mais pobre domistério.Um dia este bairro foi uma amizade,um argumento de aversões e afetos, como as outras coisas doamor;essa fé persiste apenasnuns fatos distanciados que vão morrer: na milonga que recorda as Cinco Esquinas,no pátio como uma rosa firme sob os muros crescentes, no letreiro desbotado que ainda diz La Flor del Norte, nos rapazes de violão e carteado do armazém, na memória estancada do cego.Esse amor disperso é nosso esmorecido segredo.Uma coisa invisível está perecendo no mundo,um amor não maior que uma música. O bairro nos afasta,as sacadas atarracadas de mármore não nos defrontam o céu. Nosso afeto se acovarda em tristezas, é outra a estrela de ar das Cinco Esquinas.Mas sem ruído, e sempre,em coisas incomunicadas, perdidas, como as coisas sempreestão,na seringueira com seu estriado céu de sombra, na vasilha que recolhe o primeiro e o último sol, perdura este fato diligente e amistoso,essa obscura lealdade que minha palavra está declarando: o bairro.9495#CADERNO SAN MARTÍNCADERNO SAN MARTíNPASSO DE JULIO

Juro que foi sem pensar que voltei à ruada alta feira repetida como um espelho,das grelhas com a trança de carne dos Corrales,da prostituição oculta pelo mais distinto: a música.

Porto mutilado sem mar, afunilado bafo salobre,ressaca que aderiste à terra: Paseo de Julio,embora minhas lembranças, antigas até a ternura, te saibam nunca te senti pátria.

Só guardo de ti uma deslumbrada ignorância,uma incerta propriedade como a dos pássaros no ar, mas meu verso é de interrogação e de prova e para obedecer ao entrevisto.

Bairro com lucidez de pesadelo ao pé dos outros,teus espelhos curvos denunciam o lado feio dos rostos, tua noite aquecida em bordéis pende da cidade.

És a perdição forjando um mundocom os reflexos e a deformação deste; sofres de caos, adoeces de irrealidade,te empenhas em jogar com cartas marcadas a vida; teu álcool move pelejas,tuas gregas manuseiam invejosos livros de magia.

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Por ser vazio o infernoserá espúria tua própria fauna de monstrose a sereia prometida por esse cartaz morta e de cera?

Tens a terrível inocênciada resignação, do amanhecer, do conhecimento, a do espírito não purificado, apagado pelos dias do destino,que ora branco de muitas luzes, ora ninguém,só cobiça o presente, o atual, como os homens velhos.

Atrás dos muros de meu subúrbio, as carroças rudes rezarão com os varais em riste para seu impossível deus deferro e de pó,mas, que deus, que ídolo, que veneração a tua, Paseo de Julio?

Tua vida fez um pacto com a morte;toda felicidade, por existir, já te é adversa.9697EVARISTO CARRIEGO193O... a mode of truth, not of truth coherent and central, but angular and splintered.DE QUINCEY: Writings, XI, 68.PRÓLOGOAcreditei, durante anos, que tinha crescido num subúrbio de Buenos Aires, um subúrbio de ruas perigosas e de ocasos visíveis. A verdade é que cresci num jardim, atrás de grades com lanças, e numa biblioteca de inumeráveis livros ingleses. Palermo do punhal e da guitarra andava (me afirmam) pelas esquinas, mas os que habitavam minhas manhãs e trouxeram agradável horror às minhas noites foram o corsário cego de Stevenson, agonizante sob as patas dos cavalos, e o traidor que abandonou seu amigo à luz da lua e o viajante do tempo, que trouxe do futuro uma flor murcha, e o gênio, durante séculos encarcerado no cântaro salomônico, e o profeta velado do Kurassan, que, por trás das pedras e da seda, ocultava a lepra.Contudo, o que havia do outro lado do gradil com lanças? Que destinos vernáculos e violentos foram-se cumprindo a alguns passos de mim, no obscuro armazém ou no baldio sem leis? Como foi aquele Palermo, ou como deveria ter sido para que fosse belo evocá-lo?A tais perguntas este livro menos documental que imaginativo quis responder.

J. L. B.1O3DECLARAÇÃOPenso que o nome de Evaristo Carriego pertencerá à ecclesia visibilis de nossas letras, cujas instituições piedosas - cursos de oratória, antologias, histórias da literatura nacional - contarão definitivamente com ele. Também penso que pertencerá à mais verdadeira e reservada ecclesia invisibilis, à dispersa comunidade dos justos, e que essa melhor inclusão não se deverá à fração de pranto de sua palavra. Tenho tentado fundamentar essas opiniões.Tenho considerado também - talvez com preferência indevida - a realidade que se propôs imitar. Quis proceder por definição, não por suposição: perigo voluntário,

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pois suspeito que mencionar rua Honduras e se abandonar à repercussão casual de seu nome é método menos falível - e menos fatigante - que defini-lo com prolixidade. O amante dos temas de Buenos Aires não se impacientará com essas delongas. Para ele, acrescentei os capítulos do suplemento.Usei o utilíssimo livro de José Gabriel e os estudos de Melián Lafinur e de Oyuela. Minha gratidão quer reconhecer também outros nomes: Julio Carriego, Félix Lima, doutor Marcelino del Mazo, José Olave, Nicolás Paredes, Vicente Rossi.

J. L. B.

Buenos Aires, 193O.1O5#1

PALERMO DE BUENOS AIRESA vindicação da antigüidade de Palermo deve-se a Paul Groussac. Está registrada nos Anais da Biblioteca, numa nota da página 36O do tomo quatro; as provas ou documentos foram publicados muito depois no número 242 de Nosotros. Trazemnos de volta um siciliano, Domínguez (Domenico) de Palermo da Itália, que acrescentou a seu nome o de sua pátria, talvez para manter, pelo menos, um sobrenome não hispânico, "e chegou com vinte anos e casou-se com filha de conquistador". Este, portanto, Domínguez Palermo, fornecedor de carne para a cidade, entre os anos de 16O5 e 1614, possuía um curral perto do Maldonado, para abrigo ou matança de rebanho selvagem. Degolado e suprimido foi esse rebanho, mas restou-nos a precisa referência a "uma mula tordilha que anda pela chácara de Palermo, no limite desta cidade". Posso vê-la absurdamente clara e pequenina, no fundo do tempo, e não quero somar-lhe pormenores. Que nos baste vê-la sozinha: o confuso estilo incessante da realidade, pontuado de ironias, de surpresas, de previsões estranhas como as surpresas, só recuperável pelo romance, intempestivo aqui. Felizmente, o copioso estilo da realidade não é o único: há o da memória também, cuja essência não é a ramificação dos fatos, mas a perduração de traços isolados. Essa poesia é a natural de nossa ignorância e não procurarei outra.Nos esboços de Palermo estão a chácara decente e o matadouro torpe; tampouco faltava em suas noites algum barco contrabandista holandês, atracando na parte baixa do rio, diante do afiado capim oscilante. Recuperar essa quase imóvel pré-história seria tecer insensatamente uma crônica de infinitesimais processos: as etapas da distraída marcha secular de Buenos Aires sobre Palermo, então, uns terrenos baldios ala1O7#EVARISTO CARRIEGOgadiços, às costas da pátria. A forma mais direta, conforme o procedimento cinematográfico, seria propor uma continuidade de figuras que cessam: um arreio de mulas carregadas de vinhas, as xucras com a cabeça coberta; uma água quieta e longa em que bóiam algumas folhas de salgueiro; uma vertiginosa alma penada, enforquilhada em pernas-de-pau e vadeando os torrenciais riachos; o campo aberto sem nada para fazer; as marcas do pisotear teimoso do rebanho, rumo aos currais do Norte; um camponês (por volta da madrugada) que apeia do cavalo derreado e lhe degola o largo pescoço; uma fumaça que se desentende no ar. Assim até a fundação por Dom Juan Manuel: pai mitológico de Palermo, não meramente histórico, como esse Domínguez-Domenico, de Groussac. A fundação foi a ferro e fogo. Uma chácara adocicada pelo tempo, no

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caminho para Barracas, era o costumeiro então. Mas Rosas queria construir, queria a casa filha dele, não saturada de forasteiros destinos, nem provada por eles. Milhares de cargas de terra negra foram trazidas dos campos de alfafa de Rosas (depois Belgrano) para nivelar e adubar o solo argiloso, até que o barro selvagem de Palermo e a terra ingrata conformassem com sua vontade.Por volta dos quarenta, Palermo elevou-se à condição de cabeça da República, corte do ditador e palavra de maldição para os unitários. Não conto sua história para não desluzir o resto. Limito-me a enumerar "essa grande casa caiada chamada seu Palácio" (Hudson, Far Away and Long Ago, página 1O8) e os laranjais e a piscina de paredes ladrilhadas e a balaustrada de ferro de onde o bote do Restaurador se aventurava para uma navegação tão frugal que Schiaffino comentou: "O passeio aquático em tão pouca água devia ser pouco prazeroso e em tão curto circuito equivalia a navegar em petiço. Mas Rosas estava tranqüilo; levantando o olhar via a silhueta, recortada no céu, das sentinelas que faziam a guarda perto da balaustrada, escrutando o horizonte com o olho vigilante do quero-quero". Essa corte já se dividia pelas margens: o escondido acampamento de adobe cru da Divisão Hernández e a rancharia, palco de brigas e paixão das quarteleiras negras, os Quartos de Palermo. O bairro, como se vê, foi sempre carta dúbia, moeda de duas caras.PALERMO DE BUENOS AIRESDurou doze anos esse ardido Palermo, na soçobra da exigente presença de um homem obeso e loiro que percorria os caminhos limpinhos, com calça azul militar, debruada de vermelho, colete escarlate e sombreiro de aba muito larga, e que costumava manejar e dobrar uma cana comprida, como um cetro de ar, bem leve. Esse homem temeroso saiu de Palermo num entardecer para comandar a mera debandada ou batalha de antemão perdida a que se entregou em Caseros; a Palermo chegou o outro Rosas, justo José, com sua aparência de touro xucro, e a faixa mazorqueira escarlate, ao redor da ridícula cartola, e o uniforme pomposo de general. Chegou, e se os panfletos de Ascasubi não nos enganam:

na entrada de Palermo ordenou pôr pendurados dois homens desgraçados que depois de fuzilados içaram nos umbuzeiros até que daí aos pedaços caíssem apodrecidos...

Ascasubi, depois, detém-se na desprezada tropa entrerriana do Exército Grande:

Entretanto nos lodaçaisde Palermo amontoados quase todos sem camisa, estavam seus Entrerrianos (como ele diz) miseráveis, comendo novilhos magros e vendendo cacarecos...

Milhares de dias de que não se tem lembrança, zonas embaçadas pelo tempo, cresceram e gastaram-se depois, até chegar-se, com as fundações individuais - a Penitenciária, no ano de 77, o hospital Norte, de 82, o hospital Rivadavia, de 87 -, ao Palermo das vésperas de 9O, em que os Carriego compraram sua casa. É sobre esse Palermo de 1889 que quero escrever. Direi sem restrição o que sei, sem omissão nenhuma, porque a vida é recatada como um delito, e não sabemos o que1O81O9#EVARISTO CARRIEGOPALERMO DE BUENOS AIRESé enfatizado por Deus. Além disso, o circunstancial sempre é patético." Escrevo tudo, com risco de escrever verdades notórias, mas que amanhã o descuido confundirá

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entre os papéis, que é o modo mais pobre do mistério e sua primeira face."Além do ramal da estrada de ferro do Oeste, que seguia por Centroamérica, espreguiçava-se entre bandeirolas de leiloeiros o bairro, não só sobre o campo elementar, mas também sobre o desmantelado corpo de chácaras, loteadas brutalmente para logo serem pisoteadas por armazéns, carvoarias, pátios, cortiços, barbearias e barracões. Há abafados jardins de bairro, com palmeiras enlouquecidas entre material e ferros, que é a relíquia degenerada e mutilada de uma grande chácara.Palermo era uma despreocupada pobreza. A figueira escurecia sobre o taipal; as varandinhas de modesto destino entregavam-se a dias iguais; a perdiOa corneta do vendedor de amendoim explorava o anoitecer. Na humildade das casas, não era estranho algum vaso de alvenaria, coroado aridamente de cactos: planta sinistra que, no sono universal das outras, parece corresponder a uma região de pesadelo, mas tão sofrida, na verdade, que vive nos terrenos mais ingratos e no ar deserto, e a consideram distraidamente um adorno. Havia felicidades também: a jardineira do pátio, o andar orgulhoso do compadre, a balaustrada com espaços de céu.1 "O patético, quase sempre, está no pormenor das pequenas circunstâncias", observa Gibbon numa das notas finais do capítulo qüinquagésimo de seu Declin and Fa11.2 Afirmo - sem afetado temor nem romanesco amor pelo paradoxo - que somente os países novos possuem passado; isto é, lembrança autobiográfica do mesmo; isto é, têm história viva. Se o tempo é sucessão, temos de reconhecer que quanto maiora densidade dos fatos, mais tempo corre e mais caudaloso é o tempo deste inconseqüente lado do mundo. A conquista e a colonização destes reinos - quatro temerosos fortins de barro, presos à costa e vigiados pelo inclinado horizonte, arcoque disparava inesperados ataques - foram de tão efêmera operação que um de meus avós, em 1872, comandou a última batalha importante contra os índios, realizando, depois da metade do século XIX, obra conquistadora do XVI. Contudo, porque trazer destinos já mortos? Não senti a leveza do tempo em Granada, à sombra de torres cem vezes mais antigas que as figueiras, e, sim, em Pampa e Triunvirato: insípido lugar de telhas anglicizantes agora, de fornos de tijolos enfumaçados hátrês anos, de cavalariças caóticas há cinco. O tempo - emoção européia de homens repletos de dias que são sua vindicação e apanágio - é da mais imprudente circulação nestas repúblicas. Os jovens, para seu pesar, sentem-no. Aqui somos do mesmo tempo que o tempo, somos seus irmãos.O cavalo escorrido de limo e seu Garibalda não deprimiam os Portões antigos. (A dolência é geral: não resta praça que não esteja suportando seu fantoche de bronze.) O Botânico, estaleiro silencioso de árvores, pátria de todos os passeios da capital, formava esquina com a desmantelada praça de terra; não era assim o Jardim Zoológico, que se chamava então as feras e ficava mais ao norte. Agora (cheirando a caramelo e a tigre), ocupa o lugar onde se alvoroçaram faz cem anos os Quartos de Palermo. Somente algumas ruas - Serrano, Canning, Coronel - estavam grosseiramente calçadas, com corredores aplainados para passagem das grandes carroças, imponentes como um desfile, e para as pomposas vitórias. Na rua Godoy Cruz, subia-lhe a ladeira aos trambolhões, o 64, veículo serviçal que divide com a poderosa sombra passada de Dom Juan Manuel a fundação de Palermo. As viseiras laterais e a corneta milongueira do condutor instigavam a admiração ou as emulações do bairro, mas o inspetor - duvidados profissional da retidão - era instituição combatida, e não faltou espertalhão que, enfiando o bilhete na braguilha, repetia com indignação que se quisesse era só tirá-lo daí.Procuro realidades mais nobres. Nos confins com Balvanera, a leste, havia casarões em abundância com reta sucessão de pátios, casarões amarelos ou pardos com porta

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em forma de arco - arco repetido especularmente em outro saguão - e com delicada porta do tipo cancela de ferro. Quando as noites impacientes de outubro levavam cadeiras e pessoas para a calçada e as casas devassadas se deixavam ver até o fundo e havia amarela luz nos pátios, a rua era confidencial e leviana e as casas ocas eram como lanternas em fila. Essa impressão de irrealidade e de serenidade é mais bem lembrada por mim numa história ou símbolo, que parece ter sempre estado comigo. É um instante desgarrado de uma história que ouvi num armazém e que era, ao mesmo tempo, trivial e enredado. Relembro-o sem muita segurança. O herói dessa extravagante Odisséia era o eterno crioulo, acossado pela justiça, delatado dessa vez por um sujeito mal-encarado e odioso, mas que na guitarra não havia outro igual. O sobrevivente instante da narrativa conta como o herói pôde fugir da prisão, como tinha que cumprir sua vingança numa única noite, como procurou em vão o traidor, como vagando pelas11O111#EVARISTO CARRIEGOPALERMO DE BUENOS AIRESruas com lua o vento subjugado lhe trouxe indicações da guitarra, como seguiu esse rastro entre os labirintos e as inconstâncias do vento, como dobrou esquinas de Buenos Aires, como chegou ao umbral distante em que guitarreava o traidor, como abrindo passagem entre os ouvintes o alçou sobre a faca, como saiu aturdido e se foi, deixando mortos e calados atrás o delator e sua guitarra mexeriqueira.No poente, ficava a pobreza gringa do bairro, sua nudez. O termo Ias orillas ajusta-se com sobrenatural precisão a esses pontais escassos, em que a terra assume a indeterminação do mar e parece digna de ilustrar a insinuação de Shakespeare: "A terra tem borbulhas, como as tem a água". No poente, havia becos empoeirados que se iam empobrecendo pela tarde afora; havia lugares em que um galpão da estrada de ferro ou um vazio com pitas, ou uma brisa quase confidencial, inaugurava mal e mal o pampa. Ou, então, uma dessas casas baixotas sem reboco, de janela baixa, com grade - às vezes com uma amarela esteira atrás, com figuras - que a solidão de Buenos Aires parece criar, sem participação humana visível. Depois: o Maldonado, ressequido e amarelo leito, estirando-se sem destino desde Lã Chacarita e que, por milagre espantoso, passava de morto de sede às desmedidas extensões de água violenta, que carregavam furtivamente a rancharia moribunda das margens. Há uns cinqüenta anos, depois desse irregular leito ou morte, começava o céu: um céu de relinchos e crinas e pasto doce, um céu cavalar, os happy hunting-grounds preguiçosos das cavalhadas eméritas da polícia. Para o lado do Maldonado, tornava-se escassa a gentalha nativa, substituída pelo calabrês, gente com quem ninguém queria meter-se, pela perigosa boa lembrança de seu rancor, por suas punhaladas traiçoeiras iniludíveis. Aí Palermo entristecia, pois os trilhos de ferro do Pacífico bordejavam o arroio, descarregando essa peculiar tristeza das coisas escravizadas e grandes, das barreiras altas como varal de carroça em descanso, dos verticais terrenos aplainados e das plataformas. Uma fronteira de fumaça trabalhadora, uma fronteira de vagões rudes em movimento fechava esse lado; atrás, crescia ou emperrava o arroio. Estão encarcerando-o agora: esse quase infinito flanco de solidão que até bem pouco se acavernava, atrás da casa de doces e de truco La Paloma, será substituído por uma rua atrevida, de telhas do tipo inglês. Do Maldonado, não restará senão nossa lembrança, elevada e solitária, e a melhor tragicomédia popular argentina, e os dois tangos

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que se chamam assim - um primitivo, atualidade que não se preocupa, mera marcação da dança, ocasião de arriscar-se nos requebros; outro, um doloroso tango-canção, ao estilo da Boca - e algum clichê apoucado que não facilitará o essencial, a impressão de espaço, e uma equivocada outra vida, na imaginação dos que não o viveram. Ao imaginá-lo, não creio que o Maldonado fosse diferente de outros locais muito pobres, mas a idéia de sua gentalha, excedendo-se em esfarrapados bordéis, à sombra da inundação e do fim, imperava na imaginação popular. Assim, na hábil tragicomédia local que mencionei, o arroio não é um gasto pano de fundo: é uma presença muito mais importante do que o mulato Nava e que a china Dominga e que o Títere. (A ponte Alsina, com seu ainda não cicatrizado passado pendenciador e sua memória da grande ação patriótica dos oitenta, desbancou-o na mitologia de Buenos Aires. No que se refere à realidade, é fácil observar que os bairros mais pobres costumam ser os mais rebaixados e que neles floresce uma assustada decência.) Do lado do arroio, zarpavam as tormentas altas de terra que toldavam o dia, e o ataque de ar do pampeiro, golpeando todas as portas voltadas para o sul e que deixavam no vestíbulo uma flor de cardo, e a arrasadora nuvem de gafanhotos, que as pessoas tentavam espantar aos gritos," e a solidão e a chuva. Gosto de pó tinha esse bairro.Na direção da água traiçoeira do rio, próximo ao bosque, o bairro tornava-se cruel. A primeira construção desse pontal foi a dos matadouros do Norte, que ocuparam umas dezoito quadras, entre as futuras ruas Anchorena, Lãs Heras, Áustria e Beruti, e agora sem mais vestígio verbal que o nome La Tablado, que ouvi de um carroceiro, ignorante de sua antiga justificativa. Tenho induzido o leitor a imaginar esse dilatado recinto de muitas quadras, e embora os currais tenham desaparecido nos setenta, a figura é típica do lugar, atravessado sempre por propriedades - o cemitério, o hospital Rivadávia, o presídio, o mercado, o barracão municipal, o atual lanifício,3 Destruí-los era coisa de hereges, porque levavam o sinal da cruz: marca de sua emissão e repartição especiais por parte do Senhor.112113#EVARISTO CARRIEGOPALERMO DE BUENOS AIRESa cervejaria, a chácara de Hale -, com a pobreza de surrados destinos ao redor. Essa chácara era por duas razões mencionada: pelos pereirais que a garotada do bairro saqueava com clandestinos ataques e pela aparição que visitava os lados da rua Agüero, reclinada na haste de um lampião a cabeça impossível. Porque, aos verdadeiros perigos de um compadrio de facão e soberba, tinha-se que acrescentar os fantásticos de uma mitologia foragida; a viúva e o estapafúrdio porco de lata, sórdidos como o baixo mundo, foram as mais temidas criaturas dessa religião de escória. Antes tinha sido uma queimada esse norte: é natural que gravitassem em seus ares lixos de almas. Restam esquinas pobres que se não desabam é porque as sustentam ainda os compadritos mortos.Descendo pela rua de Chavango (depois Las Heras), o último botequim do caminho era La Primera Luz, nome que, apesar de aludir a seus madrugadores hábitos, deixa impressão - correta - de cegas ruas, atascadas, sem ninguém, e por fim, nas cansadas curvas, uma humana luz de armazém. Entre os fundos do cemitério avermelhado do Norte e os da Penitenciária, ia-se levantando do pó um subúrbio achatado e despedaçado, sem rebocar: sua notória denominação, a Terra do Fogo. Escombros dos primórdios, esquinas de agressividade ou de solidão, homens furtivos que se chamam assobiando e que se dispersam de repente na noite lateral dos becos, designavam seu caráter.

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O bairro era uma esquina final. Uma corja a cavalo, corja de sombreiro pontudo como mitra sobre os olhos e com a acaipirada bombacha, sustentava por inércia ou por impulso uma guerra de duelos individuais com a polícia. A lâmina do valentão suburbano, sem ser tão longa - era luxo de corajosos usá-la curta -, era de melhor têmpera que a do sabre adquirido pelo Estado, vale dizer, com predileção pelo custo mais alto e pelo pior material. Era manejada por um braço com mais vontade de derrubar, melhor conhecedor dos rumos instantâneos do entrevero. Só pela virtude da rima, sobreviveu ao desgaste de quarenta anos um instante desse impulso:

Fique longe, eu lhe rogo, que sou da Terra do Jogo."

4 Taullard, 233.Não só de lutas; essa fronteira era feita de guitarras também.Escrevo esses recuperados fatos, e me atrai com aparente arbitrariedade o agradecido verso de Home-thoughts: "Here and here did England help me", que Browning escreveu pensando em uma abnegação sobre o mar e no alto navio torneado como um bispo do xadrez em que Nelson caiu, e que repetido por mim - traduzido também o nome da pátria, pois para Browning não era menos próximo o de sua Inglaterra - serve-me como símbolo de noites solitárias, de caminhadas extasiadas e eternas pela infinitude dos bairros. Porque Buenos Aires é profunda, e nunca, na desilusão ou no penar, abandonei-me a suas ruas sem receber inesperado consolo, seja por sentir irrealidade, seja pelas guitarras ao fundo de um pátio, seja pelo roçar de vidas. "Here and here did England help me", aqui e aqui veio me ajudar Buenos Aires. Essa razão é uma das razões por que resolvi compor este primeiro capítulo.114115#LIMA VIDA DE EVARISTO CARRIEGO11

UMA VIDA DE EVARISTO CARRIEGOQue um indivíduo queira despertar em outro indivíduorecordações que não pertenceram senão a um terceiro, é umparadoxo evidente. Realizar com despreocupação esse paradoxo é a inocente vontade de toda biografia. Acredito tambémque ter conhecido Carriego não retifica, neste caso particular, adificuldade do propósito. Tenho recordações de Carriego:recordações de recordações de outras recordações, cujos mínimos desvios originais terão obscuramente crescido, a cada novo ensaio. Conservam, eu sei, o idiossincrático sabor que chamo Carriego e que nos permite identificar um rosto na multidão. É inegável, mas esse leve arquivo mnemônico - intenção da voz, maneiras de seu andar e de sua quietude, emprego dos olhos - é, por escrito, a menos comunicável de minhas informações sobre ele. Unicamente a transmite a palavra Carriego, que exige a mútua possessão da própria imagem que desejo comunicar. Há outro paradoxo. Escrevi que para as pessoas das relações de Evaristo Carriego bastava a menção de seu nome para imaginá-lo; acrescento que toda descrição pode satisfazêlas, sempre que não desmentir crassamente a representação já formada em seu espírito. Repito esta de Giusti, no número 219 de Nosotros: "magro poeta de olhinhos instigadores, sempre trajado de preto, que vivia nos arrabaldes". A indicação de morte, presente no trajado sempre de preto e no adjetivo, não faltava em

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seu vivacíssimo rosto, que refletia sem maior divergência as linhas da caveira interior. A vida, a mais urgente vida, estava nos olhos. Também os lembrou com justiça o discurso fúnebre de Marcelo del Mazo. "Esse acento único de seus olhos, com tão pouca luz e tão eloqüente expressão", escreveu.Carriego era entrerriano, de Paraná. Foi seu avô o doutor Evaristo Carriego, escritor deste livro de papel escuro e capasrijas que se chama com inteira razão Páginas Esquecidas (Santa Fé, 1895) e que meu leitor, se tem o costume de remexer os turvos purgatórios de livros velhos da rua Lavalle, provavelmente teve nas mãos alguma vez. Teve e deixou, porque a paixão escrita nesse livro é circunstancial. Trata-se de uma soma de páginas partidárias de urgência, em que tudo é requisitado para a ação, desde o uso caseiro do latim até Macaulay ou Plutarco segundo Garnier. Sua valentia é da alma: quando a legislatura do Paraná resolveu erigir uma estátua para Urquiza ainda em vida, o único deputado que protestou foi o doutor Carriego, num belo discurso, porém inútil. Carriego, o antecessor, é memorável aqui não só por sua possível herança polêmica, mas também pela tradição literária de que se valeria seu neto depois para rabiscar essas primeiras coisas frouxas que são condição para as válidas.Carriego era de muitas gerações entrerriano. O acento entrerriano do crioulismo, semelhante ao oriental, reúne o decorativo e o impiedoso da mesma maneira que os tigres. É batalhados, seu símbolo é a lança guerrilheira das insurreições patrióticas. É doce: uma doçura vergonhosa e mortal, uma doçura despudorada, tipifica as mais belicosas páginas de Leguizamón, de Elías Regules e de Silva Valdés. E grave: a República Oriental, onde o acento a que me refiro é mais evidente, não escreveu nada bem-humorado, nem sequer uma nota de felicidade, desde os mil e quatrocentos epigramas hispano-coloniais propostos por Acuna de Figueroa. Posta a versificar, vacila entre a aquarela e o crime; seu tema não é a aceitação do destino de Martín Fierro, mas as febres da aguardente ou da divisa, bem adoçadas. Colabora com esse sentir uma efusão que não compreendemos, a árvore; uma impiedade que não encarnamos, o índio. Sua gravidade parece derivar de um mais sobressaltado rigor: Dom Segundo Sombra, portenho, conheceu os retos rumos da planície, a condução do rebanho e um duelo ocasional a punhal; oriental, teria conhecido também o ataque da cavalaria das insurreições patrióticas, o duro recrutamento de homens, o contrabando... Carriego conhecia por tradição esse crioulismo romântico e o misturou ao crioulismo ressentido dos subúrbios.Às razões evidentes de seu crioulismo - linhagem provinciana e vivência nos subúrbios de Buenos Aires - devemos116117#EVARISTO CARRIEGoUMA VIDA DE EVARISTO CARRIEGoacrescentar uma razão paradoxal: a de sua porção de sangue italiano, articulada em seu sobrenome materno Giorello. Escrevo sem malícia; o crioulismo do inteiramente crioulo é uma fatalidade, o do mestiço, uma decisão, uma conduta escolhida e resolvida. A veneração do étnico inglês que se lê no ínspired Eurasian journalist Kipling não é mais uma prova (se a fisionômica não bastasse) de seu mesclado sangue?Carriego costumava vangloriar-se: "Os gringos, não me basta detestá-los; eu os caluOio", mas a irreverência alegre dessa declaração prova que não é verdadeira. O crioulo, com a segurança de seu ascetismo e de quem está en1 sua casa, considera o gringo inferior, e acha graça de sua felicidade, de sua apoteose densa. É observação

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costumeira que o italiano tudo pode nesta república, exceto ser levado realmente a sério pelos que foram desalojados por ele. Essa benevolência, no fundo totalmente dissimulada, é a desforra reservada dos filhos do país.Os espanhóis eram outra preferência de suú aversão. A acepção corrente do espanhol - o fanático que substituiu o auto-de-fé pelo Dicionário de Galicismos, o criado rla selva de espanadores - era também a dele. Falta acrescentar que essa prevenção ou preconceito não o impediu de ter algumas amizades hispânicas, como a do doutor Severianb Lorente, que parecia carregar consigo o tempo ocioso e generoso da Espanha (o largo tempo muçulmano que gerou o Luro das Mil e Uma Noites) e que se demorava até o amanhecer, no Royal Keller, diante de sua meia garrafa.Carriego acreditava ter obrigação com seu bairro pobre: obrigação que o estilo velhaco da época traduzia em rancor, mas que ele sentiria como forço- Ser pobre implica posse mais imediata da realidade, um choque com o primeiro gosto áspero das coisas: conhecimento que parece faltar aos ricos, como se tudo lhes chegasse filtrado. Tão endividado se acreditava Evaristo Carriego com seu ambiente, que em duas diferentes passagens de sua obra sedesculpa por escrever versos a uma mulher, como se a consideração pela pobreza amarga da vizinhança fosse o único emprego lícito de seu destino.Os fatos de sua vida, ainda que infinitos e incalculáveis, são de enumeração aparentemente fácil e Gabriel ps cita de modo prestativo em seu livro de novecentos e vinte e um. Elenos revela aí que nosso Evaristo Carriego nasceu em 1883, em 7 de maio, que concluiu o terceiro ano do colegial e freqüentava a redação do jornal La Protesta, falecendo no dia 13 de outubro de novecentos e doze, e outras pontuais e invisíveis informações que despreocupadamente obrigam àquele que as recebe esse trabalho descosido do narrador, que é o de reconstituir em imagens os relatos. Penso que a sucessão cronológica não possa ser aplicada a Carriego, homem de conversada e passeada vida. Enumerá-lo, seguir a ordem de seus dias, parece-me impossível; melhor será procurar sua eternidade, suas repetições. Somente uma descrição atemporal, morosa e com amor, pode devolvê-lo a nós.Literariamente, seus juízos de condenação e elogio ignoravam a dúvida. Era muito maledicente: atacava os mais justificados nomes famosos com essa evidente falta de razão que costuma não ser mais do que cortesia ao próprio cenáculo, uma lealdade em acreditar que a reunião presente é perfeita e não poderia ser melhorada pelo acréscimo de ninguém. A revelação da capacidade estética da palavra ocorreu nele, como em quase todos os argentinos, mediante os desconsoles e os êxtases de Almafuerte: afeição que a amizade pessoal corroborou depois. O Quixote era sua mais freqüente leitura. Com Martín Fierro deve ter tido o procedimento comum em seu tempo: algumas apaixonadas leituras clandestinas, quando jovem, um gosto sem regras. Era aficionado também pelas caluniadas biografias de valentões feitas por Eduardo Gutiérrez, desde a semi-romântica de Moreira até a claramente realista de Formiga Negra, o de SanNicolás ( "del Arrogo y no me arrollo!"). A França, país então derecomendado entusiasmo, tinha lhe transmitido sua representação em Georges D"Esparbès, em algum romance de Victor Hugo e nos de Dumas. Também costumava publicar em suas conversas tais preferências guerreiras. A morte erótica do caudilho Ramírez, desmontado do cavalo a golpes de lança e decapitado por defender sua Delfina, e a de Juan Moreira, que passou dos ardentes jogos do lupanar às baionetas policiais e aos balaços, eram muito contadas por ele. Não descuidava da crônica de seu tempo: as punhaladas dos bailecos e das esquinas, os relatos de ferro cujo valor recai em quem os está contando. "Sua conversa" - escreveria118

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119#EVARISTO CARRIEGOUMA VIDA DE EVARISTO CARRIEGOGiusti depois - "evocava os pátios da vizinhança, os queixosos realejos, os bailes, os velórios, os valentões, os lugares de perdição, sua carne de presídio e de hospital. Nós, os homens do Centro, o escutávamos encantados, como se nos contasse fábulas de um distante país". Ele se sabia delicado e mortal, mas léguas rosadas de Palermo o estavam respaldando.Escrevia pouco, o que significa que seus rascunhos eram orais. Na caminhada noite vagabunda, na plataforma dos Lacroze, nas tardias voltas para casa, ia tramando versos. No dia seguinte - em geral depois de almoçar, hora venulada de indolência, mas sem grande pressa -, definia-os no papel. Nem se fatigou à noite, nem se atreveu jamais à cerimônia desconsolada de madrugar para escrever. Antes de entregar um original, punha à prova sua imediata eficácia, lendo-o ou repetindo-o aos amigos. Destes, um que menciona invariavelmente é Carlos de Soussens."A noite em que Soussens me descobriu" era uma das freqüentes referências na conversa de Carriego. Este queria-o ou não o queria pelas mesmas razões. Gostava de sua condição de francês, de homem associado ao prestígio de Dumas pai, de Verlaine e de Napoleão; incomodava-o sua condição anexa de gringo, a de homem sem mortos na América. Além disso, o oscilante Soussens era francês mais por aproximação: era, como ele próprio circunloqueava e repetiu Carriego em um verso, cavalheiro de Friburgo, francês que não chegava a francês e não passava de suíço. Agradava-lhe, em abstrato, sua condição libérrima de boêmio; aborrecia-o - até a reflexão pedagógica e a censura - sua complicada preguiça, seu alcoolismo, sua rotina de adiamentos e de complicações. Essa aversão revela que o Evaristo Carriego da honesta tradição crioula era o essencial e não o tresnoitado de Los Inmortales.Contudo, o amigo mais verdadeiro de Carriego foi Marcelo dei Mazo, que sentia por ele essa quase perplexa admiração que o instintivo costuma produzir no homem de letras. Del Mazo, escritor injustamente esquecido, exercia na arte a mesma cortesia exacerbada que no trato comum, e as piedades ou as delicadezas do mal eram seu argumento. Publicou em 191O Los Vencidos (segunda série), livro ignorado que contém algumas páginas virtualmente famosas, como a diatribe contra as pessoas de idade - menos feroz, mas maisbem observada que a de Swift (Traveis finto Several Remote Nations, 111, 1O) -, e o que se intitula La última. Outros escritores amigos de Carriego foram Jorge Borges, Gustavo Caraballo, Félix Lima, Juan Más y Pi, Alvaro Melián Lafinur, Evar Méndez, Antonio Monteavaro, Florencio Sánchez, Emilio Suárez Malimano, Soiza Reilly.Elucido agora suas amizades do bairro, que ele teve em abundância. A mais útil foi a do caudilho Paredes, então o dono de Palermo. Essa amizade Evaristo Carriego procurou com catorze anos. Tinha sua lealdade disponível, inquiriu o nome do caudilho do bairro, informaram-lhe quem era, procurou-o, abriu caminho entre os robustos pretorianos de sombreiro de copa alta, disse-lhe que era Evaristo Carriego, de Honduras. Isso aconteceu no mercado situado na praça Güemes; o rapaz não se moveu daí até o amanhecer, igualando-se aos valentões, tuteando - a genebra gera confiança - assassinos. Pois a votação naquele tempo se decidia a machadadas, e os pontais norte e sul da capital produziam, em virtude da sua população crioula e de sua miséria, o elemento eleitoral que as distribuía. Esse elemento agia também na província: os caudilhos do bairro iam onde o partido precisava deles e levavam seus homens. Olho e aço - velhas cédulas nacionais de papel e profundos revólveres - depositavam

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seu voto independente. A aplicação da lei Sáenz Pena, em novecentos e doze, desarticulou essas milícias. Não importa; a desvelada noite que narrei é só de 1897, e quem manda é Paredes. Paredes é o crioulo ostentoso, com inteiro domínio de sua realidade: o peito virilmente dilatado, a presença autoritária, a cabeleira negra insolente, o bigode frisado, a grave voz usual que deliberadamente se efemina e se arrasta na provocação, o sentencioso andar, o domínio da possível curiosidade heróica, do palavrão, do naipe habilidoso, da faca e da guitarra, a segurança infinita. E bom cavaleiro também, porque se criou num Palermo anterior a este do trânsito, naquele da distância e das chácaras. É o varão dos churrascos homéricos e do desafio poético incansável. Do desafio eu disse; trinta anos após essa memorável noite me dedicaria umas décimas, das quais não esquecerei esta destreza impensada, esta resolução de amizade: "Senhor, companheiro Borges, eu o saúdo inteiramente". Brinca com a12O121#EVARISTO CARRIEGoUMA VIDA DE EVARISTO CARRIEGOlei, porém o malfeitor que quis desobedecê-lo foi submetido, não por ferro igual, mas pelo chicote autoritário ou pela mão aberta, para manter disciplina. Os amigos, tanto quanto os mortos e as cidades, colaboram em cada homem e há linhas de El Alma del Suburbio: "pois uma vez já o fez ca ... ir com uma machadada", em que parece retumbar a voz de Paredes, esse trovão cansado e enfastiado das imprecações crioulas. Por meio de Nicolás Paredes, Evaristo Carriego conheceu a gente da faca das redondezas, a flor do Deus te livre. Manteve com eles durante um tempo uma desigual amizade, amizade profissionalmente crioula, com efusões de armazém e juramentos leais de gaúcho e de mano, tu me conheces e outras bobagens do gênero. Cinza dessa freqüência são algumas décimas en lunfardo que Carriego se desinteressou de assinar e das quais reuni duas séries: uma agradecendo a Félix Lima a remessa de seu livro de crônicas Con los Nueve; outra cujo nome parece zombaria de Dies Irae, chamada Día de Bronca e publicada com o pseudônimo de El Barretero na revista policia]L. C. No suplemento deste segundo capítulo copio algumas,Não se conheceram dele fatos de amor. Seus irmãos têm a lembrança de uma mulher de luto que costumava esperar na calçada e que mandava qualquer menino procurá-lo. Gracejavam: nunca lhe arrancaram o nome dela.Chego à questão de sua doença, que imagino importantíssima. A crença geral é que a tuberculose o consumiu: opinião desmentida pela família, guiada talvez por duas superstições, a de que esse mal é degradante e a de que é hereditário. Exceto seus parentes, todos asseguram que morreu tísico. Três considerações vindicam essa opinião geral de seus amigos: a inspirada mobilidade e vitalidade da conversa de Carriego, benefício possível de um estado febril; a imagem, repetida com obsessão, do escarro vermelho; a necessidade urgente de aplauso. Ele se sentia preso à morte e sem outra possível imortalidade senão a de suas palavras escritas; por isso, a impaciência da glória. Impunha seus versos no café, desviava a conversa para temas próximos dos versificados por ele, denegria com elogios indiferentes ou com total reprovação seus colegas de aptidão perigosa; dizia, com ar distraído, meu talento. Além disso, tinha preparado ou seapropriado de um sofisma, que vaticinava que toda a poesia contemporânea iria perecer por retórica, com exceção da sua, que poderia subsistir como documento - como se a tendência retórica não fosse também documento de um século. "Tinha razão de sobra" - escreve Del Mazo - "ao requisitar pessoalmente a atenção geral para sua

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obra. Compreendia que a consagração lentíssima alcança em vida alguns poucos anciãos, e sabendo que não produziria um amontoado de livros, abria o espírito ambiente à beleza e à gravidade de seus versos". Esse procedimento não significava vaidade: era a parte mecânica da glória, era obrigação da mesma ordem que a de corrigir as provas. A premonição da incessante morte tornava-a urgente. Cobiçava Carriego o futuro tempo generoso dos outros, o afeto dos ausentes. Por causa dessa abstrata conversa com as almas, chegou a desinteressar-se do amor e da desprevenida amizade, e se reduziu a ser seu próprio divulgador e apóstolo.Posso intercalar uma história. Uma mulher ensangüentada, italiana, que fugia da surra de seu marido, irrompeu uma tarde no pátio dos Carriego. Ele saiu, indignado, à rua e disse as quatro duras palavras que tinha de dizer. O marido (um cantineiro vizinho) tolerou-as sem resposta, mas guardou rancor. Carriego, sabendo que a fama é artigo de primeira necessidade, mesmo vergonhosa, publicou na Ultima Hora uma nota de evidente reprovação sobre a brutalidade desse gringo. O resultado foi imediato: o homem, vindicada publicamente sua condição de bruto, declarou entre impróprias chacotas bajuladoras o mau humor; a surrada andou sorridente alguns dias; a rua Honduras se sentiu mais real, quando se leu impressa. Quem podia espelhar nos outros esse apetite clandestino de fama adoecia por causa dela também.A perduração na lembrança dos outros o tiranizava. Quando alguma definitiva pena de aço decidiu que Almafuerte, Lugones e Enrique Banchs integravam já o triunvirato - ou seria o tricórnio ou o trimestre - da poesia argentina, Carriego propôs nos cafés a destituição de Lugones, para não ter quem atrapalhasse sua própria inclusão nesse arranjo ternário.As variantes rareavam: seus dias eram um único dia. Até sua morte, morou no 84 de Honduras, hoje 3784. Era infalível aos domingos em nossa casa, na volta do hipódromo.122123EVARISTO CARRIEGORepensando as freqüências de seu modo de viver - os insípidos despertares domésticos, o gosto pelas travessuras com os meninos, a taça grande de um licor uruguaio, ou de aguardente de laranja, no vizinho armazém de Charcas e Malabia, as partidas no bar de Venezuela e Peru, as discussões amistosas, as italianas comidas portenhas, na Cortada, a comemoração dos versos de Gutiérrez Nájera e de Almafuerte, a assistência viril à casa de saguão rosado como uma menina, o cortar um galhinho de madressilva ao ladear um muro, o hábito e o amor pela noite -, vejo um sentido de inclusão e de círculo em sua própria trivialidade. São ações comunitárias, mas o sentido fundamental de comum é o de compartilhado por todos. Essas freqüências de Carriego que enunciei, sei que nos aproximam. Repetem-se infinitamente em nós mesmos, como se Carriego perdurasse disperso em nossos destinos, como se cada um de nós fosse por alguns segundos Carriego. Creio que literalmente é assim e que essas momentâneas identidades (não repetições!) que aniquilam o suposto correr do tempo provam a eternidade.Inferir de um livro as tendências de seu escritor parece operação muito fácil, principalmente se esquecermos que esse não redige sempre o que prefere, mas o menos difícil e o que lhe parece que esperam dele. Essas suficientes imagens apagadas do campo da época do cavalo, que são o fundo de toda consciência argentina, não podiam faltar em Carriego. Nelas teria querido viver. Outras incidentais (de acaso domiciliar, no princípio, de ensaio aventureiro depois, de carinho por fim) eram, não obstante, as que defenderiam sua memória: o pátio que é ocasião de serenidade, rosa para os dias, o fogo humilde de São João, revolvendo-se como um cão no meio da

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rua, os limites da carvoaria, seu bloco de cerrada treva, seu monte de lenha, a cancela de ferro do cortiço, os homens da esquina rosada. Elas o revelam e aludem. Espero que Carriego o tenha entendido assim, alegre e resignadamente, num de seus últimos passeios tresnoitados pelas ruas; imagino que o homem é poroso à morte e que sua imediação costume marcá-lo com veios de fastios e de luz, de vigilâncias milagrosas e previsões.AS MISAS HEREIESAntes de considerar este livro, convém repetir que todo escritor começa por um conceito ingenuamente físico do que seja arte. Um livro, para ele, não é expressão ou concatenação de expressões, mas literalmente um volume, um prisma de seis lados retangulares, feito de finas lâminas de papel que devem apresentar uma folha de rosto, uma falsa folha de rosto, uma epígrafe em itálico, um prefácio em cursiva maior, nove ou dez partes com uma versai no começo, um índice de assuntos, um ex libris com um reloginho de areia e um arrojado latim, uma concisa lista de erratas, algumas páginas em branco, um colofão centralizado e uma nota com local de impressão: elementos que se sabe constituem a arte de escrever. Alguns estilistas (geralmente os do inimitável passado) oferecem além disso um prólogo do editor, um retrato duvidoso, uma assinatura autógrafa, um texto com variantes, um espesso aparato crítico, algumas leituras propostas pelo editor, uma lista de referências bibliográficas e algumas lacunas, mas se compreende que isso não é para todos... Essa confusão de papel da Holanda com estilo, de Shakespeare com Jacob Peuser, é indolentemente comum e perdura (apenas mais decente) entre os retóricos, para cujas informais almas acústicas uma poesia é um mostruário de acentos, rimas, elisões, ditongações e outra fauna fonética. Escrevo essas misérias características de todo primeiro livro, para destacar as inusuais virtudes deste que considero.Irrisório, contudo, seria negar que as Misas Herejes é um livro de aprendizado. Não pretendo definir assim a falta de habilidade, a não ser estes dois hábitos: o deleitar-se quase fisicamente com determinadas palavras - em geral, de resplendor e de força - e a simples e ambiciosa determinação de definir pela enésima vez os fatos eternos. Não há versificados incipiente124125#EVARISTO CARRIEGOque não empreenda uma definição da noite, da tempestade, doapetite carnal, da lua: fatos que não requerem definição, porquejá possuem nome, ou seja, uma representação compartilhada.Carriego incide nessas duas práticas.Tampouco pode ser absolvido da acusação de escrevinhador. E tão evidente a distância entre o incompreensível palavrório de composições - de decomposições, é melhor - como Las últimas Etapas e a retidão de suas boas páginas ulteriores em La Canción del Barrio, que não se deve nem enfatizar, nem omitir. Vincular essas insignificâncias ao simbolismo é desconhecer deliberadamente as intenções de Laforgue ou de Mallarmé. Não é preciso ir tão longe: o verdadeiro e famoso pai desse relaxamento foi Rubén Darío, homem que sob pretexto de importar do francês algumas conveniências métricas, mobiliou a mancheias seus versos no Petit Larousse com tão infinita ausência de escrúpulos que panteísmo e cristianismo eram palavras sinônimas para ele e que ao imaginar tédio escrevia nirvana." Odivertido é que o formulados da etiologia simbolista, José Gabriel, não se conforma em não encontrar símbolos nas Misas Herejes e propõe aos leitores da página 36 de seu livro esta solução ainda mais insolúvel do soneto "El clavel": "Ele dirá (Carriego)

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que tentou dar um beijo em uma mulher e que ela, intransigente, colocou a mão entre ambas as bocas (e isso não se compreende senão após muitos penosos esforços); contudo, dizê-lo assim seria vulgar, não seria poético e, por isso, chama seus lábios de cravo e rubro emblema de amorosos credos, e o ato de negação da fêmea, de execução do cravo pela guilhotina de seus nobres dedos".Esta é a interpretação; veja-se agora o interpretado soneto:Foi ao vir de suspeita insinuação quando feriu tua senhoril nobreza, como símbolo rubro de afoiteza, rubro cravo desfeito por tua mão.Houve, talvez, na frase sugestão sentiu-a tua inteligente natureza, pois tua calma tão plena de beleza fingiu acalentar rebelião.1 Conservo essas impertinências para castigar-me por tê-las escrito. Naquele tempo acreditava que os poemas de Lugones eram superiores aos de Darío. E verdade que também acreditava que os de Quevedo eram superiores aos de Góngora.(Nota de 1954)As MISAS HEREJESAssim, em tua vaidade impaciente condenado pelo orgulho intransigente, meu rubro emblema de amorosos credos

mereceu, por ser símbolo atrevido, como um apóstolo ou qual bandido a guilhotina de teus nobres dedos.

O cravo é, sem dúvida, um cravo mesmo, uma flor popular qualquer, desfeita pela menina, e o simbolismo (o mero gongorismo) é o do prolixo espanhol, que o traduz por lábios.O que não se discute é que grande parte das Misas Herejes incomodou seriamente os críticos. Como justificar essas incontinências inócuas no especial poeta do subúrbio? A tão escandalizada interrogação creio satisfazer com esta resposta: esses princípios de Evaristo Carriego são também do subúrbio, não no superficial sentido temático em que tratam dele, mas no essencial de que assim versificam os arrabaldes. Os pobres gostam dessa pobre retórica, preferência que não costumam estender às descrições realistas. O paradoxo é tão admirável como inconsciente: discute-se a autenticidade popular de um escritor em virtude das únicas páginas desse escritor das quais o povo gosta. É um gosto por afinidade: o palavreado, o desfile de termos abstratos, o sentimentalismo piegas são os estigmas da versificação suburbana, desinformada de qualquer acento local, menos do gauchesco, íntima de Joaquín Castellanos e de Almafuerte, não de letras de tango. Recordações de coretos e de armazéns me auxiliam aqui; o arrabalde se abastece de seu jargão na rua Corrientes, mas o grandiloqüente abstrato é o seu e é a matéria com que trabalham os cantadores. Resumindo, com brevidade: essa pecadora maioria das Misas Herejes não fala de Palermo, mas Palermo poderia tê-la inventado. Prova-o esta balbúrdia:

E no salmo coral que concertaum selvagem ciclone sobre a pauta, venha o robusto canto que anuncie, com a alegre fereza de uma diana que resgatasse como um verso altivo o soberbo delírio de uma gama,126127#EVARISTO CARRIEGOo futuro próximo dos triunfos, futuro precursor das desforras;o instante supremo em que se agita a missão terrenal da canalha...

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Ou seja: uma tempestade colocada em salmo que deve conter um canto que deve parecer-se com uma diana que deve parecer-se com um verso, e a predição de um futuro recémchegado, confiada ao canto que deve parecer-se com a diana que se parece com um verso. Seria uma exposição de rancor prolongar a citação: limito-me a afirmar que essa rapsódia de cantador aturdido pelo hendecassílabo ultrapassa duzentas linhas e que nenhuma de suas muitas estrofes pode lamentarse da falta de tempestades, de bandeiras, de condores, de vendas maculadas e de martelos. Eliminem sua má lembrança estas décimas, de paixão suficientemente circunstancial para que as pensemos biográficas e que tão bem podem ser acompanhadas pela guitarra:

Que este verso, que pediste, vá para ti, como enviado de algum recordar vertido de uma terra de olvido... para insinuar-te ao ouvido sua agonia mais secreta, quando nas noites, inquieta, pelas memórias, talvez, leias, sequer uma vez, as estrofes do poeta.

Eu ...? Vivo com a paixão daquele sonho remoto,que guardei como um voto, já velho, do coração.Sei em minha amarga obsessão que minha cabeça cansada cairá, recém-libertada, da prisão desse sonho,quando dormir o derradeiro sono, sobre a derradeira almofada!AS MISAS HEREJESPasso a rever as composições realistas que integram El Alma del Suburbio, em que podemos escutar, até que enfim!, a voz de Carriego, tão ausente nas menos favorecidas páginas. Vou revê-las em sua própria ordem, omitindo voluntariamente umas duas: "De Ia aldea" (cromo à moda andaluza e de trivialidade categórica) e "El guapo", que deixo para consideração final mais extensa.A primeira, "El alma del suburbio", narra um entardecer na esquina. A rua popular, transformada em pátio, é o que descreve, a consoladora posse do elementar que resta aos pobres: a magia serviçal dos naipes, o trato humano, o realejo com sua habanera e seu gringo, a prolongada frescura da prece, o eterno bate-boca sem rumo, os temas da carne e da morte. Evaristo Carriego não se esqueceu do tango, que se quebrava com diabrura e bulício pelas calçadas, como recémsaído das casas da rua Junín, e que era a delícia exclusiva de varões, tal como o duelo:z

Na rua, a boa gente esbanjaseus palavrões mais lisonjeiros,porque no compasso do tango, que é La Moroeha, luzem ágeis requebros dois orilheiros.

Segue uma página de misterioso renome, "La viejecita", festejada quando se publicou porque sua leve dose de realidade, indistinta agora, era infinitesimalmente mais forte que a das rapsódias coetâneas. A crítica, com a mesma facilidade de elogiar, corre o risco de profetizar. Os encômios que se dirigiram a "La viejecita" são os que mereceria "El guapo" depois; os dedicados em 1862 a "Los mellizos de Ia Flor", de Ascasubi, são uma profecia escrupulosa de Martín Fierro.2 A épica circunstanciada do tango já foi escrita: seu autor, Vicente Rossi; seu nome na livraria, Cosas de Negros (1926), obra clássica em nossas letras e que unicamente pela intensidade de seu estilo o merecerá. Para Rossi, o tango é afro-montevideano,do Bajo, o tango tem carapinha na raiz. Para Laurentino Mejías (La Policia por Dentro, 11, 1913, Barcelona) é afro-portenho, inaugurado nos enfadonhos candombes da Concepción e de Montserrat, degradado depois nos prostíbulos: o de Lorea, o da

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Boca del Riachuelo e o de Solís. Era dançado também nos bordéis da rua do Temple, com o realejo de contrabando sufocado por um colchão, cedido por um dos leitos venais, escondidas as armas dos freqüentadores nos esgotos vizinhos, prevendo-se uma batida policial.128129#EVARISTO CARRIEGOAS MISAS HEREJES"Detrás del mostrador" é uma oposição entre a urgente vida alvoroçada dos bêbados e a mulher bela, grosseira e aprisionada,por trás do balcão como uma estátuaque, impávida, os enlouquece de desejoe passa sem dor, assim, inconsciente, sua vida material de carne escrava:a tragédia opaca de uma alma que não vê seu destino.A página seguinte, "El amasijo", é o reverso deliberado de "El guapo". Nela se denuncia com ira santa nossa pior realidade: o valentão doméstico, a dupla calamidade da mulher insultada e surrada e do malfeitor que, com infâmia, teima nessa pobre macheia, vaidosa da opressão:Deixou de castigá-la, por fim, cansado de repetir o diário brutal ultraje que havia de contar depois, felicitado, na roda insolente da malandragem...Segue "En el barrio", página cujo gracioso motivo é o acompanhamento eterno e a eterna letra da guitarra, proferidos não por convenção como é hábito, mas literalmente para indicar um efetivo amor. O episódio dessa reanimação de símbolos é de ofuscada luz, mas é forte. Do primitivo pátio de terra ou pátio vermelho, clama com ira apaixonada a urgente milongaque escuta insensível a orgulhosa moça, que não quer sair do quarto.Sobre o rosto triste tem o guitarreiro velhas marcas de violáceo fanal, no peito um fundo rancor arruaceiro e nos negros olhos a luz do punhal.E não é para o outro sua eterna ira.A esse desgraçado que a golpes aparelha dá o mesmo favor, seja bruto ou frouxo, que ao pucho que esquece atrás da orelha.

Pois tem tal gana sua altivez airada com todos os mexericos acabar.Tão capaz se sente de uma fanfarronada para três ou quatro dias o bairro falar!...

A penúltima estrofe é de ordem dramática; parece dita pelo mesmo que foi golpeado. O último verso também é carregado de sentido, a apressada atenção de uns poucos dias que o bairro, mal-acostumado então, dedicava a uma morte, a passageira glória de uma facada no rosto.Depois vem "Resíduo de fábrica", que é o piedoso relato de uma dor, no qual o que mais importa talvez seja a versão instintiva das doenças como imperfeição, como culpa.

Tossiu novamente. O irmãozinho que às vezes no quarto se distrai brincando sem lhe falar, tornou-se subitamente sério, como se pensasse.

Depois se levantou e bruscamente foi, murmurando ao afastar-se, com algo de pesar e muito de asco:- que a porca outra vez cospe sangue.

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Acho que a ênfase emotiva da penúltima estrofe está na circunstância cruel: sem lhe falar.Segue "La queja", que é uma premonição fastidiosa de não sei quantas letras fastidiosas de tango, biografia do esplendor, desgaste, declínio e obscuridade final de uma mulher de todos. O tema é de ascendência horaciana - Lydia, a primeira dessa estéril dinastia infinita, enlouquece de ardente solidão como enlouquecem as mães dos cavalos, matres equorum, e em seu já abandonado quarto amai janua limen, a porta se prendeu ao umbral - e deságua em Contursi, passando por Evaristo13O131#EVARISTO CARRIEGOAs MIAS HERE/ESCarriego, cujo harlot"s progress sul-americano, completado pela tuberculose, não pesa muito na série.Segue-se "Lã guitarra", desconcertante enumeração de imagens bobas, indigna do autor de En el Barrio, e que parece desdenhar ou ignorar as situações de eficác"a poética motivadas pelo instrumento: a música dedicada à rua, o ar venturoso que nos entristece pela lembrança incidental que lhe acrescentamos, as amizades que ela apadrinha e coroa. Vi dois homens tornarem-se amigos e suas almas começarem a correr emparelhadas, enquanto dedilhavam nas duas guitarras um gato, dança que parecia o alegre som dessa confluência.A última, "Los perros del barrio", é uma surda reverberação de Almafuerte, mas traduz uma realidade, pois na pobreza desses subúrbios sempre foram abundantes os cães, seja por serem sentinelas seja para bisbilhotarem seu jeito de viver, uma diversão que não cansa, seja por desleixo. Alegoriza indevidamente Carriego essa cachorrada mendicante e sem lei, mas transmite sua quente vida de matilha, sua chusma de apetites. Quero repetir esse verso

quando bebem água de lua nos charcos

e aquele outro de

uivando exorcismos contra a carrocinha,

que desperta uma das minhas fortes recordações: a visita atroz a esse pequeno inferno, vaticinado por latidos aflitos e precedido - de perto - por uma nuvem de crianças pobres, que espantavam com gritos e pedradas outra nuvem de cães, para protegê-los do laço.Falta-me considerar "El guapo", exaltação precedida de uma famosa dedicatória ao também cabo eleitoral alsinista São Juan Moreira. É uma calorosa apresentação," cuja virtude reside também nas ênfases laterais: no

conquistou com o tempo renome de ousado

3 Lastima, nos versos finais, a menção arbitrária ao mosqueteiro.que se refere às muitas candidaturas para merecer esse renome, e nessa quase mágica indicação de poder erótico:

caprichos de fêmea que teve a daga.

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Em "El guapo", também interessam as omissões. O valentão não era um salteador nem um rufião, nem obrigatoriamente um chato; era a definição de Carriego: um cultor da coragem. Um estóico no melhor dos casos; no pior, um profissional da desordem, um especialista da intimidação progressiva, um veterano do ganhar sem brigar: menos indigno - sempre - que sua atual desfiguração italiana de cultor da infâmia, de pequeno malfeitor afligido pela vergonha de não ser cáften. Viciado no álcool e no perigo ou calculista vencedor pela simples presença: isso era o valentão, sem implicar covardia o último traço. (Se uma comunidade decide que a valentia é a primeira das virtudes, a simulação da valentia será tão geral como a da beleza entre as moças, ou a do pensamento inventivo entre os que publicam; mas essa mesma aparente valentia será um aprendizado.)Penso no valentão de outrora, personagem de Buenos Aires que me interessa com mais justificada atração que esse outro mito mais popular de Carrtego (Gabriel, 57), a costureirinha que deu aquele mau passo e seu contratempo orgânico-sentimental. Sua profissão, carroceiro, amansador de cavalos ou magarefe; sua educação, em qualquer das esquinas da cidade, e estas principalmente: a do sul, o Alto - o circuito Chile, Garay, Balcarce, Chacabuco -, a do norte, a Terra do Fogo - o circuito Lãs Heras, Arenales, Pueyrredón, Coronel -, outras, o Once de Setiembre, a Bateria, os Corrales Viejos." Não era sempre um rebelde: o comitê alugava sua valentia e esgrima e lhe dava proteção. A polícia, então, tomava precauções contra ele:

4 Seu nome? Entrego à lenda esta lista, que devo à ativa amabilidade de D. José Olave. Refere-se às duas últimas décadas do século que passou. Sempre despertará uma suficiente imagem, embora imprecisa, de mestiços briguentos, duros e ascéticos no empoeirado subúrbio, semelhantes aos cactos.PARÓQUIA DO SOCORROAvelino Galeano (do regimento Guardia Provincial). Alejo Albornoz (morto emluta pelo que se segue, na rua Santa Fé). Pio Castro.Aproveitadores, valentões ocasionais: Tomás Medrano. Manuel Flores.132133#EVARISTO CARRIEGOnuma desordem, o valentão não se deixava prender, mas dava - e cumpria - sua palavra de comparecer em seguida. As tutelares influências do comitê retiravam todo perigo desse rito. Mesmo temido, não pensava em renegar sua condição; um cavalo arreado com prata vistosa, algumas moedas para a rinha ou para o jogo bastavam para iluminar seus domingos. Podia não ser forte: um dos valentões de La Primera, o Baixinho Flores, era um indiozinho peçonhento, uma miséria, mas com o punhal, um raio. Podia não ser um provocador: o valentão Juan Murava, famoso, era uma obediente máquina de brigar, um homem sem mais traços diferenciais que a segurança letal de seu braço e uma incapacidade perfeita de sentir medo. Não sabia quando agir, e pedia com os olhos - alma servil - a vênia de seu patrão de turno. Uma vez na briga, atirava somente para matar. Não queria criar corvos. Falava, sem temor e sem preferência, das mortes que pagou - ou melhor: que o destino executou por meio dele, pois existem feitos de tão infinita responsabilidade (o de procriar um homem ou matá-lo) que o remorso ou a vaidade por eles é uma insensatez. Morreu repleto de dias, com sua constelação de mortes na lembrança, já esmaecida, sem dúvida.PARÓQUIA DEL PILAR, ANTIGAJuan Murava. Romualdo Suárez, apelidado El Chileno. Tomás Real. Florentino Rodríguez. Juan Tink (filho de ingleses, que acabou inspetor de polícia em Avellaneda).

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Raimundo Renovales (magarefe).Aproveitadores, valentões ocasionais: Juan Ríos, Damásio Suárez, apelidado Carnaza.PARÓQUIA DE BELGRANOAtanásio Peralta (morto em luta com muitos). Juan González. Eulógio Murava, apelidado Cuervito.Aproveitadores: José Díaz. Justo González.Nunca lutavam em grupos, sempre com arma branca, sozinhos.O desprezo britânico pelo punhal tornou-se tão amplo que posso lembrar, comdireito, o conceito vernáculo: Para o crioulo a única luta séria, de homens, era a quepermitia risco de morte. O soco era mero prólogo do aço, uma provocação.lv

LA CANCION DEL BARRIOMil novecentos e doze. Para o lado dos muitos barracões da rua Cervino ou dos canaviais e vazios do Maldonado - zona desleixada, com galpões de zinco, chamados diversamente salões, onde flamejava o tango, a dez centavos por cabeça e mais a companheira - engalfinhava-se ainda a gente dos subúrbios, e alguma cara de macho virava história, ou um compadrito desdenhosamente morto amanhecia com uma punhalada humana no ventre; mas, em geral, Palermo se portava como Deus manda e era uma coisa meio decente, infeliz, como qualquer outra comunidade gringo-crioula. O júbilo astrológico do Centenário era já tão defunto como suas léguas de lãzinha azul de bandeiras, como seus tonéis de vinho para brindar, seus foguetes malucos, suas luminárias municipais no enferrujado céu da praça de Mayo e sua luminária predestinada ao cometa Halley, anjo de ar e de fogo para quem os realejos tocaram o tango Independencia. Já a ginástica interessava mais do que a morte: os garotos ignoravam a provocação do duelo para assistir ao football, rebatizado por indolência vernácula de o foba. Palermo se apressava até a tolice: a sinistra construção art noveau brotava como afetada flor até dos lamaçais. Os ruídos eram outros: agora a campainha do cinema - com seu bom anverso americano de coragem a cavalo e seu reverso erótico-sentimental europeu - se misturava ao cansado estrondo das carroças e ao silvo do amolador. Com exceção de algumas veredas, não restava rua para pavimentar. A densidade da população dobrou: o censo, que registrou em mil novecentos e quatro um total de oitenta mil almas para as circunscrições de Las Heras e de Palermo de San Benito, registraria, em catorze, cento e oitenta mil. O bonde mecânico rangia pelas aborrecidas esquinas.134135#EVARISTO CARRIECOCattaneo, na imaginação popular, desbancara Moreira... Esse quase invisível Palermo, mateador e progressista, é o de La Canción del Barrio.Carriego, que publicou em mil novecentos e oito El Alma del Suburbio, deixou em mil novecentos e doze os materiais para La Canción del Barrio. Este segundo título é melhor que o primeiro quanto à delimitação e à veracidade. Canção é de intenção mais lúcida do que alma; subúrbio é título receoso, um sobressalto de homem que tem medo de perder o último trem. Ninguém nos diz Moro no subúrbio Tal; todos preferem indicar em que bairro. Essa alusão ao bairro não é menos íntima, útil e unificadora na paróquia de La Piedad do que em Saavedra. A distinção é pertinente: o emprego de palavras de distância para elucidar as coisas desta república deriva de uma propensão para detectar em nós a barbárie. Querem explicar os camponeses pelo pampa; o compadrito pelos ranchos de ferro velho. Exemplo: o jornalista ou artefato vasco J. M. Salaverría, num livro em que se equivoca desde o título: El Poema de Ia Pampa, Martín Fierro y el Criollismo Espanol. Crioulismo espanhol é um contra-senso deliberado,

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feito para assombrar (logicamente, uma contradictio in adjecto); poema do pampa é outro menos voluntário acidente. Pampa, segundo informação de Ascasubi, era para os antigos camponeses o deserto onde vagavam os índios." Basta rever Martín Fierro para saber que é o poema, não do pampa, mas do homem desterrado do pampa, do homem rejeitado pela civilização pastoril, concentrada nas estâncias como vilarejos e no pago sociável. Para Fierro, o tão corajoso homem Fierro, era doloroso suportar a solidão, quer dizer, o pampa.

E nessa hora da tardeEm que tudo adormece,Que o mundo adentrar parece A viver em pura calma, Com as tristezas da alma Ao capinzal enderece.1 Agora é um exclusivo termo literário, que no campo chama a atenção.LA CANCIÓN DEL BARRIOÉ triste no meio do campo Passar noites inteiras Contemplando em suas carreiras As estrelas que Deus cria, Sem ter por mais companhia Que seu delito e as feras.E estas estrofes são para sempre, porque são o momento mais patético da história:Cruz e Fierro de uma estância Uma tropilha conduziram, Para diante a lançaram Como crioulos entendidos, E logo, sem serem percebidos, Pela fronteira cruzaram. E quando por ela passaram Numa madrugada clara, Disse-lhe Cruz que olhasse As últimas povoações E em Fierro duas lágrimas Rolaram-lhe pela face.Outro Salaverría - de cujo nome não quero me lembrar, porque o restante de seus livros tem minha admiração - fala, como não!, do cantador pampiano que "à sombra do umbu, na infinita calma do deserto, entoa acompanhado da guitarra espanhola as monótonas décimas de Martín Fierro"; mas o escritor é tão monótono, décimo, infinito, espanhol, cheio de calma, desértico e acompanhado, que não percebe que em Martín Fierro não há décimas. A predisposição para detectar em nós a barbárie é muito geral: Santos Vega (cuja verdadeira lenda é que haja uma lenda de Santos Vega, segundo as quatrocentas páginas da monografia de Lehmann-Nitsche podem evidenciá-lo) armou ou herdou a estrofe que diz: "Se este novilho me mata / Não me enterrem no sagrado; /Enterrem-me no campo verde / Onde me pise o gado", e sua evidentíssima idéia ("Se sou tão torpe, renuncio a meu lugar no cemitério") foi136137#EVARISTO CARRIEGOLA CANCIÓN DEL BARRIOaplaudida como declaração panteísta de homem que deseja, depois de morto, ser pisado pelas vacas."Os subúrbios padecem também de uma atribuição irritante. São representados pelo homem do arrabalde e pelo tango. No capítulo anterior escrevi como o arrabalde se nutre de seu próprio jargão na rua Corrientes e como as efusões de El Cantaclaro, dos discos de fonógrafo e da rádio adaptam essa gíria de ator em Avellaneda ou em Coghlan. Sua pedagogia2 Fazer do camponês um percorredor infinito do deserto é um contra-senso romântico; assegurar, como o faz nosso melhor prosador de lutas, Vicente Rossi, que o gaúcho é o guerreiro nômade charrua, é simplesmente assegurar que chamaram de gaúchos esses desapegados charruas: associação primitiva de uma palavra, que resolve muito pouco. Ricardo Güiraldes, para sua versão do homem do campo, como homem ocioso, teve de recorrer ao grêmio dos tropeiros. Groussac, em sua conferência de 1893, fala

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do gaúcho fugido para o longínquo sul, no que resta do pampa, mas todos sabem que no longínquo sul não restam gaúchos, porque não os teve antes, e que perduram nas regiões próximas àquelas de hábitos crioulos. Mais que no étnico (o gaúcho pode ser branco, negro, mestiço, mulato ou cafuzo), mais que no lingüístico (o gaúcho rio-grandense fala uma variante brasileira do português) e mais do que no geográfico (vastas regiões de Buenos Aires, de Entre Rios, de Córdoba e de Santa Fé são agora gringas), o traço diferencial do gaúcho está na prática cabal de um tipo primitivo de criação de gado.Caluniado também é o destino dos compadritos. Há mais de cem anos chamavam-se assim os portenhos pobres que não podiam morar nas imediações da Plaza Mayor, fato responsável também por seu nome de suburbanos. Eram literalmente o povo: tinham seu terreninho, ocupando um quarto de quadra, e casa própria, além da rua Tucumán ou da rua Chile ou ainda da rua de Velardes Libertad-Salta. As conotações desbancaram mais tarde a idéia principal: Ascasubi, na revisão de seu Gallo número doze, escreveu: "compadrito: moço solteiro, dançarino, apaixonado e cantor". O imperceptível Monner Sans, vice-rei clandestino, tornou-o equivalente a mata-sete, fanfarrão e valentão, e perguntou: "Por que compadre toma aqui sempre o mau sentido?", questão que se apressou em responder, escrevendo, com sua tão invejável ortografia, sadio gracejo etc.: "Sabe-se lá". Segóvia o define com insultos: "Indivíduo jactancioso, falso, provocativo e traidor". Não é para tanto. Outros confundem grosseiro e compadrito: estão enganados, o compadre pode não ser grosseiro, como não costuma sê-lo o camponês. Compadrito, sempre, é o cidadão da plebe que maneja o aço; outras atribuições são a coragem que alardeia, a invenção ou a prática das piadas, o canhestro emprego de palavras insignes. No vestuário, usou o costumeiro de seu tempo, com acréscimo ou acentuação de alguns pormenores: por volta de noventa foram característicos o chapéu negro requintado de copa altíssima, o paletó cruzado, as calças francesas com galões, pouco sanfonada na barra, a botina negra com abotoaduras ou elástico, de salto alto; agora (1929) prefere o chapéu cinza na nuca, o lenço farto, a camisa rosa ou grená, o paletó aberto, um dedo pesado de anéis, as calças retas, a botina negra como espelho, com polainas claras.O que em Londres é o cockney, em nossas cidades é o compadrito.não é fácil: cada tango novo, redigido no pretenso idioma popular, é um enigma, sem que lhe faltem as perplexas variantes, os corolários, as passagens obscuras e a argumentada discórdia dos comentadores. A névoa é lógica: o povo não precisa acrescentarse cor local; o simulador pensa que sim, mas passa do ponto na operação. No que se refere à música, tampouco o tango é o natural som dos bairros; foi dos bordéis somente. O representativo deveras é a milonga. Sua versão corrente é uma infinita saudação, uma cerimoniosa gestação de rípios lisonjeiros, corroborados pelo grave lamento da guitarra. As vezes, narra sem pressa coisas de sangue, duelos de muito tempo, mortes por corajoso bate-boca provocador; outras, resolve simular o tema do destino. Os tons e os argumentos costumam variar; o que não varia é a entonação do cantor, apudecida, arrastada, com sobressaltos de fastio, nunca gritada, meio conversada e cantada. O tango está no tempo, nos desaires e contrariedades do tempo; já o cotidiano aparente da milonga é o da eternidade. A milonga é uma das grandes conversas de Buenos Aires; o troco é a outra. Sobre o troco me aprofundarei em capítulo à parte; limito-me a escrever que, entre os pobres, o homem alegra o homem, como o primogênito de Martín Fierro compreendeu na prisão." O aniversário, o dia dos mortos, o dia santo, o dia da pátria, o batizado, a noite de São João, uma doença, as vésperas do ano, tudo é ocasião de se ver gente. A morte provoca

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o velório: falatório geral que não fecha a porta a ninguém, visita a quem morreu. Tão evidente é essa patética sociabilidade da gente humilde que o doutor Evaristo Federico Carriego, para zombar das recém-liberadas recepções, escreveu que se pareciam muitíssimo aos velórios. O subúrbio é a água apodrecida e os becos, mas é também a balaustrada celeste e a madressilva pendente e a gaiola com o canário" Gente atenciosa, costumam dizer as comadres.

3 E antes do filho de Martín Fierro, o deus Odin. Um dos livros sapienciais da Antiga Edda (Havamal, 47) lhe atribui a frase Mathr er mannz gaman, que se traduz literalmente por O homem é a alegria do homem.4 Nos arredores estão as involuntárias belezas de Buenos Aires, que são também as únicas - a ligeira rua navegadora Blanco Encallada, as desamparadas esquinas de Villa Crespo, de San Cristóbal Sur, de Barracas, a majestade miserável dos subúrbios da estação de cargas La Paternal e da Ponte Alsina -, mais expressivas, creio, que as obras feitas com deliberação de beleza: a Costanera, o Balneário e o Rosedal, e a elogiada estátua de Pellegrini, com a revolta bandeira e o tempestuoso pedestal incoerente que parece aproveitar os escombros da demolição de um banheiro, e as reticentes gavetinhas de Virasoro, que, para não delatar o íntimo mau gosto, esconde-se na nua abstenção.138139#EVARISTO CARRIEGOLA CANCIÓN DEL BARRIOPobrerio tagarela, o de nosso Carriego. Sua pobreza não é a desesperada ou congênita do europeu pobre (pelo menos, a do europeu romanceado pelo naturalismo russo), mas a pobreza que confia na loteria, no comitê, nas influências, no baralho que pode ter seu mistério, na aposta de módica possibilidade, nas recomendações ou, na falta de outra mais circunstanciada e baixa razão, na pura esperança. Uma pobreza que se consola com hierarquias - os Requeria de Balvanera, os Luna de San Cristóbal Norte - que se tornam simpáticas, por seu próprio apelo ao mistério, e que nos representa tão bem certo digníssimo compadrito de José Alvarez: "Nasci na rua Maipú, sabia?.._ na casa dos Garcia e estava acostumado a me dar com gente e não com lixo... Bem!... E se não sabia, fica sabendo... me batizaram na Mercê e foi meu padrinho um italiano que tinha armazém do lado de casa e que morreu na febre grande... Lhe comendo o peso!"Entendo que o defeito substancial de La Canción dei Barrio é a insistência naquilo que foi definido por Shaw como: "mera mortalidade ou infortúnio" (Man and Superman, XXXII). Suas páginas publicam desgraças; têm a única gravidade do destino brutal, não menos incompreensível para seu escritor que para aquele que as lê. Não lhes surpreende o mal, e elas não nos conduzem a essa meditação sobre sua origem, como o fizeram os gnósticos que resolveram diretamente a questão com a postulação de uma divindade minguante ou gasta, improvisando este mundo com material adverso. É a reação de Blake. "Deus, que fez o cordeiro, te fez?", pergunta ao tigre. Tampouco é objeto dessas páginas o homem que sobrevive ao mal, o varão que, apesar de sofrer injúrias - e de causá-las -, mantém limpa a alma. É a reação estóica de Hernández, de Almafuerte, de Shaw pela segunda vez, de Quevedo.

Alma robusta em dores se examinaE trabalhos ansiosos e mortaisTolhem, mas não derrubam nobres peitos

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se lê em "Lãs musas castellanas ", em seu segundo livro. Tampouco distrai Carriego a perfeição do mal, a precisão e a inspiração, pode-se dizer, do destino em suas perseguições, o arrebatamento cênico da desgraça. É a reação de Shakespeare:All strange and terrible events are welcome, But comforts we despise: our size of sorrow, Proportion"d to our cause, must be as great As that which makes it.Carriego apela somente para nossa piedade.Aqui é inevitável uma digressão. A opinião geral, tanto falada quanto escrita, decidiu que esses apelos à piedade são a justificativa e a virtude da obra de Carriego. Devo discordar, embora sozinho. Uma poesia que vive de contrariedades domésticas e que se vicia com perseguições miúdas, imaginando ou registrando incompatibilidades para que o leitor as deplore, parece-me uma privação, um suicídio. O argumento é qualquer emoção mutilada, qualquer desgosto; o estilo é mexeriqueiro, com todas as interjeições, ponderações, falsas piedades e preparatórios receios como os utilizam as comadres. Uma errônea opinião (que tenho a decência de não compreender) afirma que essa apresentação de misérias implica generosa bondade. Está mais para indelicadeza. Produções como "Mamboretá " ou "El neve está enfermo" ou "Hay que cuidaria mucho, hermana, mucho" - tão utilizadas para distração nas antologias e para declamação - não pertencem à literatura, mas ao delito: são uma deliberada chantagem sentimental, redutível a esta fórmula: "Apresento-lhe um sofrimento; se você não se comove, é um desalmado". Copio este final de um poema ("El otono, muchachos"):...Que tristonha anda, há dias, a vizinha!Será por algum novo desengano? Outono melancólico e chuvoso,que deixarás, outono, em casa este ano? que folha te levarás? Tão silencioso chegas que nos dás medo.Sim, anoitece e te sentimos, na paz caseira,entrar sem um rumor... Como envelhece nossa tia solteira!Essa apressada tia solteira, gerada na urgência do verso final para que possa encarniçar-se nela o outono, é bom indí14O141#EVARISTO CARRIEGOLA CANCIÓN DEL BARRIOcio da caridade dessas páginas. O humanitarismo é sempre desumano: certo filme russo prova a iniqüidade da guerra mediante a infeliz agonia de um pangaré morto a balaços; naturalmente, pelos que dirigem o filme.Feita essa restrição - cuja decente finalidade é consolidar e firmar a fama de Carriego, provando que não lhe faz falta o auxílio dessas queixosas páginas -, quero reconhecer com alacridade as verdadeiras virtudes de sua obra póstuma. Em seu decurso, possui refinamentos de ternura, invenções e intuições da ternura, tão precisas como esta:

E quando não estiverem, durante quanto tempo ainda se ouvirá a voz querida deles na casa deserta?Como serão na recordação os rostosque já não veremos mais?

Ou este trecho de conversa com uma rua, esta secreta possessão inocente:

És familiar como uma coisa que fosse nossa: somente nossa.

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Ou este encadeamento, emitido tão de uma vez como se fosse uma única extensa palavra:

Não. Digo-te que não. Sei o que digo: nunca mais, nunca mais teremos noiva, e os anos passarão, mas nunca mais voltaremos a querer a outra. Podes ver. E pensar que nos dizias, aflita talvez por te veres só, que quando morresses nem te lembraríamos. Que tola! Sim. Passarão os anos, mas sempre como uma lembrança boa, a toda hora estarás conosco.Conosco... Porque eras carinhosacomo ninguém o foi. Dizemos-tetarde, não é verdade? Um pouco tarde agora que não nos podes ouvir. Mocinhas como tu têm havido poucas. Não temas nada, te lembraremos, e a ti somente recordaremos: nenhuma mais, nenhuma mais. E nunca mais voltaremos a querer a outra.

A forma repetitiva dessa página é a de certa página de Enrique Banchs ("Balbuceo ", em El Cascabel del Halcón, 19O9) que a supera incomensuravelmente linha por linha ("Nunca poderia dizer-te/o quanto te queremos: é como um montão de estrelas/o quanto te queremos", etc.), mas que parece mentira, enquanto a de Evaristo Carriego é verdade.Pertence também a Lã Canción del Barrio a melhor poesia de Carriego, intitulada "Has vuelto".

Voltaste, realejo. Na calçadahá risos. Voltaste chorão e cansado como antes.O cego te esperano mais das noites sentadod porta. Cala e escuta. Apagadas memórias de coisas distantes evoca em silêncio, de coisasde quando seus olhos tinham manhãs,de quando era jovem... a noiva... quem sabe!

O verso que anima a estrofe não é o final, é o anterior, e acredito que Evaristo Carriego o colocou assim para evitar a ênfase. Uma de suas primeiras composições - "El alma del suburbio" - tratara do mesmo assunto, e é agradável comparar a solução antiga (quadro realista feito de observações particulares) com a definitiva e límpida festa para a qual são convocados os símbolos preferidos por ele: a costureirinha que deu aquele mau passo, o realejo, a esquina desmantelada, o cego, a lua.

...Realejo que cruzas a rua cansado moendo o eterno142143#EVARISTO CARRIEGOfamiliar motivo que no ano passado gemia à lua de inverno:com tua voz fanhosa dirás na esquinaa canção ingênua, a de sempre, por acaso essa preferida de nossa vizinhaa costureirinha que deu aquele mau passo. E após uma valsa partirás como uma tristeza que cruza a rua deserta, e haverá quem se ponha a olhar a lua de alguma porta.... Na noite de ontem, depois que partiste quando todo o bairro tornava ao sossego - que triste -choravam os olhos do cego.

A ternura é apanágio dos muitos dias, dos anos. Outra virtude do tempo, já utilizada neste segundo livro e nem suspeitada ou verossímil no anterior, é o bom humor.

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É condição que implica um delicado caráter: nunca se distraem os ignóbeis com esse puro prazer simpático às debilidades alheias, tão imprescindível ao exercício da amizade. É condição que acompanha o amor: Soame Jenyns, escritor de mil e setecentos, pensou com reverência que a parte da felicidade dos bem-aventurados e dos anjos derivaria de uma percepção refinada do ridículo.Copio, exemplo de sereno humorismo, estes versos:

E a viúva da esquina?A viúva morreu anteontem. Bem dizia a adivinha,que quando Deus determina já nada há mais que fazer!

Os recursos de sua graça devem ser dois: primeiro, o de colocar na boca de uma adivinha essa não divinatória moralidade sobre o inescrutável dos atos da Providência; segundo, o respeito impertérrito da vizinhança, que desculpa sabiamente essa distração.Contudo, a mais deliberada página de humorismo deixada por Carriego é "El casamiento". E a mais portenha tamLA CANCIÓN DEL BARRIObém. "En el barrio" é quase uma fanfarronice entrerriana; "Has vuelto" é apenas um frágil minuto, uma flor de tempo, de um único entardecer. "El casamiento", em compensação, é tão característico de Buenos Aires como os versos dos delitos de Hilário Ascasubi ou o Fausto crioulo ou o humorismo de Macedonio Fernández ou o estilhaçado ím,peto festeiro dos tangos de Greco, de Arolas e de Saborido. E uma articulação habilíssima dos muitos infalíveis traços de uma festinha pobre. Não falta o rancor desenfreado da vizinhança.Na calçada da frente várias mexeriqueiras que se encontram a par do que se passa, afirmam que para ver certas coisas muito melhor seria ficar em casa.Afastadas do cara de presidiárioque sugere torpezas, umas vizinhas pretendem que esse sujo vocabulário não o deveriam ouvir as pequeninas.Embora - tal acontece - tudo seja possível, tirando conseqüências pouco oportunas, lamenta uma venenosa a incompreensível sorte que, por desgraça, têm algumas.E não é o primeiro caso... Embora lhe estranhe que tenha saído tonto... pois em janeiro do ano que passa, que não se engane, deu o que falar com o filho do açougueiro.

O orgulho de antemão ferido, a quase desesperada decência:

O tio da noiva, que se acreditouobrigado a reparar, se o baile traça bom rumo, afirma, meio ofendido,que não se admitem requebros, nem por troça...- Que, modéstia à parte, não a pega nenhum desses vivos... seguramente. A casa será pobre, ninguém o nega, tudo o que se quiser, porém decente.144145

Este livro foi digitalizado por Raimundo do Vale Lucas, com aintenção de dar aos cegos a oportunidade de apreciarem mais umamanifestação do pensamento humano..

Carriego, moço de tradição entrerriana, criado nos subúrbios do norte de Buenos Aires, decidiu dedicar-se a uma versão poética desses subúrbios. Publicou, em mil

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novecentos e oito, Misas Herejes: livro despreocupado, aparente, que registra dez conseqüências desse deliberado propósito de localismo e vinte e sete amostras desiguaisde versificação: algumas de bom estilo trágico - "Los lobos" -, outra de sentimento delicado - "Tu secreto, en silencio" -, mas que em geral passam despercebidas.As páginas sobre a observação do bairro são as que interessam. Repetem a corajosa idéia que o subúrbio tem de si mesmo, apreciam-nas com todo o direito. Desse tipopreliminar são "El alma dei subúrbio", "El guapo", "En el barrio". Carriego se estabeleceu nesses temas, mas sua exigência de comover o conduziu a uma lacrimosa estética socialista, cuja inconsciente redução ao absurdo realizaria muito depois o grupo de Boedo. Exemplos do segundo tipo, que usurpou até a informação das outras, com sua glória efeminada, são "Hay que cuidaria mucho, hermana, mucho", "Lo que dicen los vecinos", "Mamboretá". Ensaiou depois uma forma narrativa, com inovação de humorismo: tão indispensável num poeta de Buenos Aires. Desse último tipo - o melhor - são "El casamiento", "El velorio", "Mientras el barrio duerme". Também, ao longo do tempo, anotou algumas intimidades: "Munia", "Tu secreto", "De sobremesa".Qual o futuro de Carriego? Não há uma posteridade judicial sem posteridade, dedicada a emitir sentenças irrevogáveis, mas os fatos me parecem seguros. Creio que algumas de suas páginas - talvez "El casamiento", "Has vuelto", "El alma dei subúrbio", "En el barrio" - comoverão148UM POSSÍVEL RESUMOsuficientemente muitas gerações argentinas. Creio que foi o primeiro espectador de nossos bairros pobres e que para a história de nossa poesia isso é importante. O primeiro, quer dizer, o descobridor, o inventor.Truly I loved the man, on this side idolatry, as much as any. 149vi

PÁGINAS COMPLEMENTARES

i. DO SEGUNDO CAPÍTULO

Décimas em lunfardo, que publicou Evaristo Carriego na revista policial L. C. (quinta-feira, vinte e seis de setembro de 1912) com o pseudônimo El Barretero.

Compadre: se não tenho escrito, perdoa... Estou rebentado! Ando muito embuchado, que se continua palpito que vou pegar direitinho o caminho de Triunvirato; pois já tenho para tanto esta minha sorte suína: Hoje me largou a mina e se visse com que rato!

Sim, mano, é como digo: se visse que maloqueiro! mixo, sarnento, fuleiro, mau lanceiro e pior amigo. Até me dobra o umbigo de pensar no cacetaço que me deram! O bacanão não vale nem uma cuspida e o que é dela, na vida não imaginei esse desaforo.

Neles eu tô de olho! Visse o que se sabe de velho! Não tem como correr igualPÁGINAS COMPLEMENTARESpara estar bem na carreira.Te engrupem com a manqueira e que talvez nem sejam da patota, e se vãona cara dura, de qualquer jeito. Quando se abre a guarda já não tem caso: te dão!

Mas logo na minha idadevai me suceder essa coisa!

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Se não é pra abrir a piolhenta de tanta bronca que me dá. Porque é triste, na verdade, - o dizer é necessário - que com o lindo prontuário que com tanto sacrifício conseguido no serviço me tenham feito de otário.

Bem, que isto é lamuriento e escrito como sem gana! Deixa a culpa ao espertalhão que me afanou a ladrona. Tigreiro de minha marona, veremos como se esforça, se é que o corpo não safa quando lhe ponha a mão! Até logo.- Aindatenho que afiar o facão!15O151#EVARISTO CARRUGOPÁGINAS COMPLEMENTARES11. DO QUARTO CAPÍTULO

O TRUCO

Quarenta cartas querem deslocar a vida. Nas mãos rangeo maço novo ou se trava o velho: miscelâneas de papelão quese animarão, um ás de espadas que será onipotente comoDom Juan Manuel, valetes pançudos dos quais Velásquezcopiou os seus. O gravador embaralha essas pinturazinhas.A coisa é fácil de dizer e também de fazer, mas o mágico edesmedido do jogo - do fato de jogar - desponta da ação.Quarenta é o número das cartas e 1 yor 2 por 3 por 4... por 4O,o de maneiras em que podem sair. E uma cifra delicadamentepontual em sua enormidade, com imediato predecessor eúnico sucessor, mas não escrita nunca. É uma remota cifra de vertigem que parece dissolver em sua multidão os que a embaralham. Assim, desde o princípio, o central mistério do jogo se vê enfeitado com outro mistério, o de que haja números. Sobre a mesa, descoberta para que resvalem as cartas, esperam os gravanços em seu monte, aritmetizados também. A trucada se arma; os jogadores, acrioulados de repente, alijam-se do eu habitual. Um eu distinto, um eu quase antepassado e vernáculo, enreda os projetos do jogo. Subitamente, o idioma é outro. Proibições tirânicas, possibilidades e impossibilidades astutas pesam sobre toda palavra. Mencionar flor sem ter três cartas de um naipe é fato delituoso e punível, mas se alguém já disse truco, não importa. Mencionar um dos lances do truco é empenhar-se nele: obrigação que continua desdobrando-se em eufemismos a cada termo. Quebro quer dizer aceito, aposta quer dizer truco, uma perfumada ou uma jardineira quer dizer flor. Geralmente costuma retumbar na boca dos que perdem esta consabida sentença de caudilho de salão: "Na lei do jogo tudo está dito: falta aposta e truco e se há flor, contra flor para a mesa!" O diálogo se entusiasma até o verso, mais de uma vez. O truco conhece receitas de paciência para os perdedores; versos para a exultação. O truco é memorioso como uma data. Milongas de cozinha ou de botequim, tumultos de velório, bravatas de políticos, safadezas das casas de Junín e de sua madrasta, arua do Temple, fazem parte, graças a ele, das relações humanas. O truco é bom cantor, principalmente quando se ganha ou se finge ganhar: canta nas pontas das ruas à noitinha, nos armazéns iluminados.O habitual do truco é mentir. Sua forma de enganar não é a do pôquer: simples desânimo ou aborrecimento por não hesitar e pôr em risco um monte de fichas a cada

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tantas jogadas; é ação de voz mentirosa, de rosto que se julga desvendado e que se defende, de embusteiro e desatinado palavrório. Uma potencialização do engano ocorre no truco: esse jogador resmungão, que atirou suas cartas sobre a mesa, pode ocultar um bom jogo (astúcia elementar) ou talvez nos esteja enganando com a verdade para que não acreditemos nela (astúcia ao quadrado). À vontade e conversador está o jogo crioulo, mas sua frieza é de astúcia. É uma superposição de máscaras, e seu espírito é o dos mascateiros Mosche e Daniel que no meio da grande planície da Rússia se cumprimentaram.- Aonde você vai, Daniel? - disse um.- A Sebastopol - disse o outro.Então, Mosche o olhou fixamente e afirmou:- Você mente, Daniel. Diz que vai a Sebastopol para que eu pense que vai a Nijni-Novgorod, mas o certo é que vai mesmo a Sebastopol. Você mente, Daniel!Observo os jogadores de truco. Estão como escondidos no ruído crioulo do diálogo; querem espantar a vida a gritos. Quarenta cartas - amuletos de papelão pintado, mitologia barata, exorcismos - lhes bastam para conjurar o viver comum. Jogam de costas para as transitadas horas do mundo. A pública e urgente realidade em que estamos todos chega às fronteiras dessa reunião e não passa; o recinto de sua mesa é outro país. Povoam-no o "truco" e o "aceito", a perfumada cruzada e o que ela trará inesperadamente, o ávido folhetim de cada partida, o 7 de ouros tilintando esperança e outras apaixonadas bagatelas do repertório. Os truqueiros vivem esse alucinado mundinho. Alimentam-no com piadas crioulas que não se esgotam, cuidam-no como se fosse um fogo. É um mundo estreito, eu sei: fantasma de política de paróquia e de trapaças, mundo inventado enfim por feiticeiros de barracão e bruxos de bairro, mas nem por isso menos substituto deste mundo real e menos inventivo e diabólico em sua ambição.152153#EVARISTO CARRIEGOPensar em um argumento local como este do truco e não sair dele ou não aprofundá-lo - as duas figuras podem simbolizar aqui um ato igual, tamanha é sua precisão - parece-me gravíssima frivolidade. Desejo não esquecer aqui um pensamento sobre a pobreza do truco. As diversas instâncias de sua polêmica, seus sobressaltos, seus palpites, suas cabalas não podem não voltar. Têm com as experiências de se repetir. Que é o truco para um exercitado no jogo, senão um hábito? Vejase também o aspecto rememorativo do jogo, seu gosto por fórmulas tradicionais. Todo jogador, na verdade, não faz mais que reincidir em vazas remotas. Seu jogo é uma repetição de jogospassados, o que equivale a dizer de átimos de viveres passados. Gerações já invisíveis de crioulos estão como enterradas vivas nele: são ele, podemos afirmar sem metáfora. Depreende-se que o tempo é uma ficção, de acordo com esse pensar. Assim, partindo dos labirintos de papelão pintado do truco, acercamo-nos da metafísica: única justificativa e finalidade de todos os temas.154Vil

AS INSCRIÇÕES DOS COCHESImporta que meu leitor imagine um coche. Não custa imaginá-lo grande, as rodas traseiras mais altas que as dianteiras, como se fosse reserva de força, o cocheiro

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crioulo robusto como a construção de madeira e ferro em que está, os lábios distraídos num assobio ou com ordens paradoxalmente suaves aos cavalos puxadores: às parelhas seguidoras e à montaria dianteira (proa insistente para os que precisam de comparação). Carregado ou não dá no mesmo, salvo que voltando vazio está menos preso a seu uso e mais entronizada a boléia, como se a conotação militar que os coches tiveram no império guerrilheiro de Átila permanecesse nele. A rua pisada pode ser Montes de Oca, ou Chile, ou Patrícios, ou Rivera ou Valentín Gómez, mas é melhor Lãs Heras, pela heterogeneidade de seu tráfego. O tardio coche é aí distanciado perpetuamente, mas essa mesma postergação se torna vitória, como se a alheia celeridade fosse espavorida urgência de escravo, e a própria demora, possessão inteira do tempo, quase de eternidade. (Essa possessão temporal é o infinito capital crioulo, o único. Da demora, podemos exaltar a imobilidade: possessão do espaço.) Persiste o coche, com uma inscrição no lado. O classicismo do subúrbio assim o decreta, e, embora essa desinteressada gorjeta expressiva, sobreposta às visíveis expressões de resistência, forma, destino, altura, realidade, confirme a acusação de tagarelas que os conferencistas europeus nos imputam, não posso escondê-la, porque é o argumento desta informação. Faz tempo que sou caçador dessas inscrições: epigrafia de barracão que supõe caminhadas e desocupações mais poéticas que as efetivas peças colecionadas, que rareiam nesses italianizados dias.Não penso em despejar esse coletado capital de centavos sobre a mesa, mas mostrar alguns. O projeto é de retórica,155#EVARISTO CARRIEGOcomo se vê. Sabe-se que os metodizadores dessa disciplinaenglobavam nela todos os empregos da palavra, até os irrisóriosou humildes do enigma, do calembour, do acróstico, do anagrama, do labirinto, do labirinto cúbico, do emblema. Se esta última, que é figura simbólica e não palavra, tem sido admitida, entendo que a inclusão da sentença do coche é irrepreensível. É uma variante da América para o lema, gênero que nasceu nos escudos. Além disso, convém comparar a sentença do coche às outras letras, para que o leitor se desiluda e não espere portentos de meu exame. Como desejá-los aqui, quando não existem ou nunca existiram nas premeditadas antologias de Menéndez y Pelayo ou de Palgrave?Um equívoco é muito comum: o de tomar como genuínolema do coche o nome da casa a que pertence. O modelo daChocara Bollini, rótulo perfeito da grosseria sem inspiração, podeser dos que apontei; A mãe do Norte, coche de Saavedra é comcerteza. Lindo nome é este último e podemos experimentar duasexplicações. Uma, inacreditável, é a de ignorar a metáfora esupor o Norte parido por esse coche, fluindo casas, armazéns elojas de tintas de seu passo inventor. Outra é a que previramvocês, a de acolher. Mas nomes como este correspondem a outrogênero literário menos doméstico, o das empresas comerciais:gênero abundante em concisas obras-primas tais como a alfaiataria O Colosso de Rodes, de Villa Urquiza, e a fábrica de camasA dormitológica, de Belgrano, mas que não é de minha jurisdição.A genuína letra de coche não é muito diversa. É tradicionalmente assertiva - A flor da praça Vértiz, O vencedor - e costuma estar como que enfastiada de ostentação. Da mesma forma, O anzol, A mala, O garrote. O último me agrada, mas se apaga quando me lembro deste outro lema, de Saavedra também, que revela viagens dilatadas como navegações, prática nas azinhagas pampianas e em

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poeiradas altas: O barco.Uma espécie definida do gênero é a inscrição nos pequenos coches distribuidores. O regateio e a conversa cotidiana da mulher os têm distraído da preocupação com a coragem, e suas vistosas letras preferem o alarde serviçal ou a galanteria. O liberal, Viva quem me protege, O vasquinho do Sul, O beija-flor, O leiterinho do futuro, O bom moço, Até amanhã, O recorde de Talcahuano, O sol nasce para todos podem ser alegres exemplos. Que me terão feito teus olhos e Onde restam cinzas houve fogo são da mais individuali156zada paixão. Quem me inveja morre desesperado deve ser intromissão espanhola. Não tenho pressa é crioulo na certa. A displicência ou severidade da frase breve costuma ser corrigida também, não só pela graça do dizer, como pela profusão das frases. Vi um pequeno coche de frutas que, além de seu presumível nome O preferido do bairro, afirmava em dístico satisfeito

Eu o digo e sustentoQue a ninguém inveja tenho.

e comentava a figura de um par de bailarinos de tango, sem muita luz, com a resoluta indicação Sempre em frente. Essa charlatanice da brevidade, esse frenesi sentencioso, lembra-me a maneira de falar do célebre estadista dinamarquês Polônio, de Hamlet, ou a do Polônio natural, Baltasar Gracián.Volto às inscrições clássicas. A meia-lua de Morón é lema de um coche com balaustradas de ferro tão altas que pareciam quase de barco, o qual pude contemplar numa úmida noite no centro pontual de nosso Mercado de Abasto, reinando em doze patas e quatro rodas sobre a fermentação luxuosa de odores. A solidão é mote de uma carroça que vi pelo sul da província de Buenos Aires e que vai a distância. É o objetivo de O barco outra vez, mas menos obscuro. Que importa à velha que a filha me queira é de omissão impossível, menos por sua ausente agudeza que por seu genuíno tom de barracão. E o que se pode observar também em Teus beijos foram meus, afirmação derivada de uma valsa, mas que por estar escrita em um coche se adorna de insolência. Que olha, invejoso? tem algo de efeminado e de presumido. Sinto orgulho é muito superior, pela dignidade de sol e pela alta boléia, às mais efusivas acusações de Boedo. Aqui vem o Aranha é um belo anúncio. Pra loura, quando é ainda mais, não só por sua apócope crioula e por sua antecipada preferência pela morena, mas também pelo irônico emprego do advérbio quando, que tem aqui o valor de nunca. (Encontrei pela primeira vez esse quando de renúncia em uma intransferível milonga, que lamento não poder ler em voz baixa ou mitigar recatadamente em latim. Destaco em seu lugar esta parecida, crioula do México, registrada no livro de Rubén Campos, El Folklore y Ia Música Mexicana: "Dizem que me hão de fechar / as veredas por onde ando; / as veredas fecharão, / mas a querência, quando". Quando, meu157#E VARISTO CARRIEGObem era também uma saída habitual dos que brincavam, ao interceptar o pau queimado ou o punhal do outro.) O ramo está florido é anúncio de grande serenidade e magia. Quase nada, Disseram-me isto e Quem diria são incorrigíveis por serem bons. Implicam drama, estão na circulação da realidade. Correspondem a freqüências da emoção: são como do destino, sempre. São trejeitos que perduram na escrita, são uma afirmação incessante. Seu modo alusivo é o do conversador dos subúrbios que não pode

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ser direto narrador ou argumentador e que se compraz com descontinuidades, com generalidades, com logros: sinuosos como o requebro. Mas a honra, mas a tenebrosa flor deste censo, é a opaca inscrição Não chora o perdido, que manteve a Xul Solar e a mim escandalosamente intrigados, afeitos, sem dúvida, a entender os mistérios delicados de Robert Browning, os tolos de Mallarmé e os meramente chatos de Góngora. Não chora o perdido; passo esse cravo retinto ao leitor.Não há ateísmo literário fundamental. Eu acreditava descrer da literatura, e me deixei guiar pela tentação de reunir essas partículas dela. Absolvem-me duas razões. Uma é a democrática superstição que postula méritos reservados a qualquer obra anônima, como se apenas nós soubéssemos o que ninguém sabe, como se fosse nervosa a inteligência e funcionasse melhor nas ocasiões em que não a vigiam. Outra é a facilidade de julgar o breve. Custa-nos admitir que nossa opinião sobre uma frase, possa não ser a última. Depositamos nossa fé nas frases, já que não nos capítulos. É inevitável aqui a menção a Erasmo: incrédulo e curioso de provérbios.Esta página começará a ser erudita depois de muitos dias. Nenhuma referência bibliográfica posso indicar, salvo esta quadra casual de um predecessor meu nesses afetos. Pertence aos desalentados rascunhos do verso clássico que agora se chamam versos livres.Lembro-o assim:

Os coches de dorso sentencioso franqueavam tua manhãe eram nas esquinas ternos os armazéns como esperando por um anjo.Agradam-me mais as inscrições de coche, flores do brejo.VIII

HISTÓRIAS DE GINETESSão muitas e poderiam ser infinitas. A primeira é modesta; logo a aprofundarão as que seguem.Um estancieiro do Uruguai tinha adquirido um estabelecimento do campo (estou certo de que foi essa a palavra que usou) na província de Buenos Aires. Trouxe de Paso de los Toros um domador, homem de toda a sua confiança, mas muito xucro. Alojou-o em uma pensão perto do Once. Depois de três dias, foi à sua procura; encontrou-o mateando em seu quarto, no último andar. Perguntou-lhe o que tinha achado de Buenos Aires, e o resultado foi que o homem não tinha chegado à rua uma única vez.A segunda não é muito diferente. Em 19O3, Aparicio Saravia dirigiu a campanha do Uruguai; em algum momento da luta, temeu-se que seus homens pudessem irromper em Montevidéu. Meu pai, que se encontrava aí, foi pedir conselho a um parente, Luis Melián Lafinur, o historiador. Este lhe disse que não havia perigo, "porque o gaúcho teme a cidade". De fato, as tropas de Saravia se desviaram e meu pai comprovou, com algum assombro, que o estudo da história pode ser útil e não só agradável."A terceira que contarei também pertence à tradição oral de minha casa. Nos fins de 187O, as forças de López Jordán, sob o comando de um gaúcho chamado O Chumbado, cercaram a cidade de Paraná. Uma noite, aproveitando um descuido da guarnição, os guerrilheiros conseguiram atravessar1 Burton escreve que os beduínos, nas cidades árabes, tampam os narizes com o lenço ou com algodões; Amiano, que os hunos tinham tanto medo das casas como dos sepulcros. Da mesma forma, os saxões que irromperam na Inglaterra no séculoV não se atreveram a morar nas cidades romanas que conquistaram. Deixaram-nas cair aos pedaços e compuseram depois elegias para lamentar essas ruínas.158159

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#EVARISTO CARRIEGOas defesas e deram, a cavalo, toda a volta na praça central, batendo na boca e fazendo algazarra. Em seguida, entre apupos e assobios, foram embora. A guerra não era para eles a execução coerente de um plano, mas um jogo de machismo.A quarta das histórias, a última, está nas páginas de um livro admirável: L"Empire des Steppes (1939), do orientalista Grousset. Dois parágrafos do capítulo dois podem ajudar a entendê-la; eis aqui o primeiro:"A guerra de Gêngis Khan contra os kin, começada em 1211, devia, com breves tréguas, prolongar-se até sua morte (1227), para ser terminada pelo seu sucessor (1234). Os mongóis, com sua móvel cavalaria, podiam arrasar os campos e povoações abertas, mas durante muito tempo ignoraram a arte de tomar as praças fortificadas pelos engenheiros chineses. Além disso, guerreavam na China como na estepe, por incursões sucessivas, no fim das quais se retiravam com seu butim, deixando que na retaguarda os chineses voltassem a ocupar as cidades, levantassem as ruínas, reparassem as fendas e refizessem as fortificações, de tal modo que no decorrer daquela guerra os generais mongóis se viram obrigados a reconquistar duas ou três vezes as mesmas praças".Eis aqui o segundo:"Os mongóis tomaram Pequim, degolaram a população, saquearam as casas e depois lhe atearam fogo. A destruição durou um mês. Evidentemente, os nômades não sabiam o que fazer com uma grande cidade e não atinavam com a maneira de utilizá-la para consolidar e estender seu poderio. Há aí um caso interessante para os especialistas da geografia humana: o embaraço do povo das estepes quando, sem transição, o acaso lhes entrega velhos países de civilização urbana. Queimam e matam, não por sadismo, mas porque ficam desconcertados e não sabem agir de outra forma".Eis aqui, agora, a história que todos os testemunhos confirmam: Durante a última campanha de Gêngis Khan, um de seus generais observou que seus novos súditos chineses não lhe serviriam para nada, já que eram ineptos para a guerra, e que, conseqüentemente, o mais ajuizado era exterminá-los, arrasar as cidades e fazer do quase interminável Império Central um dilatado campo de pastoreio para a cavalaria. Assim, pelo menos, aproveitariam a terra, já que o resto eraHISTORIAS DE GINETESinútil. O Khan ia seguir esse parecer, quando outro conselheiro o fez notar que mais proveitoso era fixar impostos sobre as terras e sobre as mercadorias. A civilização salvou-se, os mongóis envelheceram nas cidades que tinham desejado destruir e, sem dúvida, acabaram por apreciar, nos jardins simétricos, as desprezíveis e pacíficas artes da prosódia e da cerâmica.Distantes no tempo e no espaço, as histórias que reuni são uma só; o protagonista é eterno, e o receoso peão que passa três dias diante de uma porta que dá para o último pátio é, embora maltratado, o mesmo que, com dois arcos, um laço feito de crina e um alfanje, esteve a ponto de arrasar e apagar, debaixo dos cascos dos cavalos das estepes, o reino mais antigo do mundo. É agradável perceber, sob os disfarces do tempo, as eternas espécies do ginete e da cidade;"- esse prazer, no caso dessas histórias, pode deixar-nos um sabor melancólico, já que nós, os argentinos (por obra do gaúcho de Hernández ou por gravitação de nosso passado), identificamo-nos com o ginete, aquele que perde no fim. Os centauros vencidos pelos lápitas, a morte do pastor de ovelhas Abel nas mãos de Cairo, que era lavrador, a derrota da cavalaria de Napoleão pela infantaria britânica em Waterloo são emblemas e sombras desse destino.Ginete que se afasta e se perde, com sugestão de derrota, é igualmente o gaúcho em nossas letras. Assim, em Martín Fierro:

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Cruz e Fierro de uma estância Uma tropilha conduziram, Para diante a lançaram Como crioulos entendidos E logo, sem serem percebidos, Pela fronteira cruzaram.E quando por ela passaram, Numa madrugada clara, Disse-lhe Cruz que olhasse As últimas povoações E em Fierro duas lágrimas Rolaram-lhe pela face.Z Sabe-se que Hidalgo, Ascasubi, Estanislao del Campo e Lussich foram pródigos em versões jocosas do diálogo do ginete com a cidade.16O161#EVARISTO CARRIEGOE seguindo o fiel do rumo Entraram pelo deserto...

E em El Pagador, de Lugones:"Dir-se-ia que o vimos desaparecer por trás das colinas familiares, no trote de seu cavalo, devagarinho, porque não vão acreditar que é de medo, com a última tarde que ia se tornando parda como a asa da pomba-trocai, sob o chapéu lúgubre e o poncho pendente dos ombros em decaídas pregas de bandeira a meio-pau".E em Don Segundo Sombra:"A silhueta reduzida de meu padrinho apareceu no morro. Minha vista se fixava energicamente sobre aquele pequeno movimento no pampa sonolento. Foi chegar no alto do caminho e desaparecer. Foi-se reduzindo como se o cortassem por baixo em consecutivos talhos. Sobre o ponto negro do chapéu, meus olhos se aferraram no afã de fazer perdurar aquele vestígio".O espaço, nos textos supracitados, tem a missão de significar o tempo e a história.A figura do homem sobre o cavalo é secretamente patética. Sob Atila, Açoite de Deus, sob Gêngis Khan e Timor, o ginete destrói e funda com violento fragor dilatados reinos, mas suas destruições e fundações são ilusórias. Sua obra é efêmera como ele. Do lavrador procede a palavra cultura, das cidades a palavra civilização, mas o ginete é uma tempestade que se perde. No livro Die Germanen der Vãlkerwanderung (Stutrgart, 1939), Capelle observa, nesse sentido, que os gregos, os romanos e os germanos eram povos agrícolas.1x

O PUNHALA Margarita BungeNuma gaveta há um punhal.Foi forjado em Toledo, nos fins do século passado; Luis Melián Lafinur deu-o a meu pai, que o trouxe do Uruguai; em algum momento, Evaristo Carriego teve-o na mão.Quem o vê tem de brincar um pouco com ele; percebe-se que há muito o procuravam; a mão se apressa a apertar a empunhadura que a espera; a lâmina obediente e poderosa encaixa com precisão na bainha.Outra coisa quer o punhal.É mais que uma estrutura feita de metais; os homens o pensaram e o formaram para um fim muito preciso; é, de algum modo, eterno, o punhal que ontem à noite matou um homem em Tacuarembó e os punhais que mataram César. Quer matar, quer derramar brusco sangue.Numa gaveta da escrivaninha, entre rascunhos e cartas, interminavelmente sonha o punhal seu singelo sonho de tigre, e a mão se anima quando o empunha, porque o metal se anima, o metal que pressente em cada contato o homicida para quem o criaram os homens.

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As vezes me dá pena. Tanta dureza, tanta fé, tão impassível ou inocente soberba, e os anos passam, inúteis.162163#P1,O1,O(,O A UMA EDIÇÀO DAS POESIAS COMPLETAS DE EVARISTO CARRIEGOX

PRÓLOGO A UMA EDIÇÃO DAS POESIAS

COMPLETAS DE EVARISTO CARRIEGOTodos, agora, vemos Evaristo Carriego em função do subúrbio e tendemos a esquecer que Carriego é (como o valentão, acostureirinha e o gringo) personagem de Carriego, assim como osubúrbio em que o imaginamos e projeção e quase ilusão de suaobra. Wilde sustentava que o Japão - as imagens que essa palavradesperta - tinha sido inventado por Hokusai; no caso de Evaristo Carriego, devemos postular uma ação recíproca: o subúrbiocria Carriego e é recriado por ele. Influem em Carriego o subúrbio real e o subúrbio de Trejo e das milongas; Carriego impõe suavisão do subúrbio; essa visão modifica a realidade. (Depois amodificarão, muito mais, o tango e a tragicomédia popular.)Como se produziram os fatos, como pôde esse pobre rapazCarriego chegar a ser o que agora será para sempre? Talvez opróprio Carriego, interrogado, não nos pudesse dizer. Semoutro argumento que minha incapacidade para imaginar de outra maneira as coisas, proponho esta versão ao leitor:Um dia, entre os dias do ano 19O4, numa casa que persiste na rua Honduras, Evaristo Carriego lia com pesar e com avidez um livro da gesta de Charles de Baatz, senhor de Artagnan. Com avidez, porque Dumas lhe oferecia o que a outros oferece Shakespeare ou Balzac ou Walt Whitman, o sabor da plenitude da vida; com pesar, porque era jovem, orgulhoso, tímido e pobre, e se acreditava desterrado da vida. A vida estava na França, pensava, no claro contato com os aços, ou quando os exércitos do Imperador inundavam a terra, mas a mim tocou o século XX, o tardio século XX, e um medíocre arrabalde sul-americano... Nessa elucubração estava Carriego quando algo aconteceu. Um rasgado de laboriosa guitarra, a desparelhada fileira de casas baixas vistas pelajanela, Juan Murava tocando no chapéu para responder a uma saudação (Juan Murava que anteontem marcou Suárez, o Chileno), a lua no quadrado do pátio, um homem velho com um galo de rinha, algo, qualquer coisa. Algo que não poderemos recuperar, algo cujo sentido sabemos, mas não sua forma, algo cotidiano e trivial e imperceptível até ali, que revelou a Carriego que o universo (que se dá inteiro em cada instante, em qualquer lugar, e não só nas obras de Dumas) também estava ali, no simples presente, em Palermo, em 19O4. Entrai, que aqui também estão os deuses, disse Heráelito de Éfeso às pessoas que o encontraram aquecendo-se na cozinha.Tenho suspeitado algumas vezes que qualquer vida humana, por intricada e povoada que seja, consta na realidade de um momento: o momento em que o homem sabe para sempre quem é. A partir da imprecisa revelação que tentei intuir, Carriego é Carriego. Já é o autor daqueles versos que anos depois lhe será permitido inventar:

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Cruzam-lhe o rosto, de estigmas violentos, Fundas cicatrizes, e por certo lhe agrada Mostrar indeléveis adornos sangrentos: Caprichos de fêmea que teve a daga.

No último, quase milagrosamente, há um eco da imaginação medieval, do consórcio do guerreiro com sua arma, dessa imaginação que Detlev von Liliencron fixou em outros versos ilustres:

In die Friesen trug er sein Sehwert Hilfnot, das hat ihn heute betrogen...Buenos Aires, novembro de 195O.164165#xt

HISTÓRIA DO TANGOVicente Rossi, Carlos Vega e Carlos Muzzio Sáenz Pena,pesquisadores pontuais, historiaram de diversas maneiras aorigem do tango. Não me custa declarar que subscrevo todas as suas conclusões, e ainda qualquer outra. Há uma história do destino do tango que o cinema periodicamente divulga; o tango, segundo essa versão sentimental, teria nascido no subúrbio, nos cortiços (na Boca del Riachuelo, geralmente, pelas virtudes fotográficas dessa região); a aristocracia tê-lo-ia rejeitado a princípio; até 191O, doutrinado pelo bom exemplo de Paris, teria franqueado finalmente suas portas a esse interessante suburbano. Esse Bildungsroman, esse "romance de um jovem pobre", é agora uma espécie de verdade incontestável ou de axioma; minhas recordações (já completei cinqüenta anos) e as indagações de natureza oral que empreendi certamente não a confirmam.Conversei com José Saborido, autor de Felicia e de La Morocha, com Ernesto Poncio, autor de Don Juan, com os irmãos de Vicente Grecco, autor de La Virutü e de La Tablada, com Nicolás Paredes, caudilho que foi de Palermo, e com algum cantador de seu conhecimento. Deixei-os falar; cuidadosamente me abstive de formular perguntas que sugerissem determinadas respostas. Interrogados sobre a procedência do tango a topografia e até a geografia de seus relatos eram singularmente diversas: Saborido (que era oriental) preferiu uma origem montevideana; Poncio (que era do bairro do Retiro) optou por Buenos Aires e por seu bairro; os portenhos do Sul invocaram a rua Chile, os do Norte, a meretrícia rua do Temple ou a rua Junín.A despeito das divergências que enumerei e que seria fácil enriquecer, interrogando platenses ou rosarienses, metesHisróri.n Do TANGOassessores concordavam com um fato essencial: a origem do tango nos lupanares. (Assim como com a data dessa origem, que para ninguém foi muito anterior a oitenta ou posterior a noventa.) O instrumental primitivo das orquestras - piano, flauta, violino, depois bandônion - confirma, pelo custo, esse testemunho; é uma prova de que o tango não surgiu nos subúrbios, onde se satisfaziam sempre, ninguém o ignora, com as seis cordas da guitarra. Outras confirmações não faltam: a lascívia das figuras, a conotação evidente de certos títulos (El Choclo, El Fierrazo), a circunstância que em criança pude observar em Palermo e, anos depois, em Lã Chacarita e em Boedo, de que nas esquinas o dançavam pares de homens, porque as mulheres do povo não queriam participar de um baile de perdidas. Evaristo Carriego assim o descreveu em suas Mesas Herejes:

Na rua, a gente boa esbanja

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seus palavrões mais lisonjeiros,porque no compasso de um tango, que é Lã Moroeha, luzem ágeis requebros dois orilheiros.

Em outra página de Carriego mostra-se, com luxo de aflitivos detalhes, uma pobre festa de casamento; o irmão do noivo está na prisão; há dois rapazes agressivos que o valentão tem que pacificar com ameaças, há receio e rancor e bazófia, mas

O tio da noiva, que se acreditouobrigado a reparar, se o baile traça bom rumo, afirma, meio ofendido,que não se admitem requebros, nem por troça... Que, modéstia à parte, não a pega nenhum desses vivos... seguramente. A casa será pobre, ninguém o nega, tudo o que se quiser, porém decente.

O homem momentâneo e severo que as duas estrofes nos deixam entrever, para sempre, mostra muito bem a primeira reação do povo diante do tango, esse réptil de lupanar, como o definiria Lugones com laconismo desdenhoso (El Pagador, página 117). De muitos anos precisou o Bairro Norte para166167#EVARISTO CARRUGOimpor o tango - já tornado decente em Paris, é verdade - nos cortiços, e não sei se o conseguiu inteiramente. Antes era uma orgiástica diabrura; hoje, é uma maneira de caminhar.O TANGO BRIGUENTO

A índole sexual do tango foi notada por muitos, mas não a índole briguenta. É verdade que as duas são modos ou manifestações de um mesmo impulso, e assim a palavra homem, em todas as línguas que sei, conota capacidade sexual e capacidade belicosa, e a palavra virtus, que em latim quer dizer coragem, provém de vir, que é varão. Paralelamente, em uma das páginas de Kim um afegão afirma: "Aos quinze anos, eu tinha matado um homem e procriado um homem" ("When I was fifteen, I had shot my man and begot my man"), como se os dois atos fossem, essencialmente, um.Falar do tango briguento não basta; eu diria que o tango e as milongas expressam diretamente algo que os poetas, muitas vezes, têm desejado dizer com palavras: a convicção de que brigar pode ser uma festa. Na famosa História dos Godos que Jordanès compôs no século VI, lemos que Átila, antes da derrota de Châlons, arengou a seus exércitos dizendo que a fortuna lhes tinha reservado os júbilos dessa batalha (certaminis hujus gaudia). Na Iluda se fala de aqueus para quem a guerra era mais doce que regressar nas vazias naus a sua querida terra natal e se diz que Páris, filho de Príamo, correu com pés velozes para a batalha, como o cavalo de agitada crina a procurar as éguas. Na antiga epopéia saxônica que inicia as literaturas germânicas, no Beowulf, o rapsodo chama sweorda gelas (jogo de espadas) à batalha. Festa de vikings a chamaram, no século XI, os poetas escandinavos. No princípio do século XVII, Quevedo, numa de suas xácaras, chamou dança de espadas a um duelo, o que é quase o jogo de espadas do anônimo anglo-saxão. O esplêndido Hugo, em sua evocação da batalha de Waterloo, disse que os soldados, compreendendo que iam morrer naquela festa ("comprenant qu"ils allaient mourir dans cette fête"), saudaram seu deus, de pé na tormenta.Esses exemplos, que ao acaso de minhas leituras fui anotando, poderiam, sem maior diligência, multiplicar-se e porventura na Chanson de Roland ou no vasto poema

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de Ariosto seHISTÓRIA Do TANGOencontrem passagens congêneres. Alguns dos registrados aqui - o de Quevedo ou o de Atila, digamos - são de irrecusável eficácia; todos, contudo, padecem do pecado original do literário: são estruturas de palavras, formas feitas de símbolos. Dança de espadas, por exemplo, convida-nos a unir duas representações díspares, a do baile e a do combate, para que a primeira sature de alegria a última, mas não fala diretamente com nosso sangue, não recria em nós essa alegria. Schopenhauer (Welt als Wille und Vorstellung, 1, 52) escreveu que a música não é menos imediata que o próprio mundo; sem mundo, sem um caudal comum de memórias evocáveis pela linguagem, não haveria, certamente, literatura, mas a música prescinde do mundo, poderia haver música sem mundo. A música é a vontade, a paixão; o tango antigo, como música, costuma transmitir diretamente essa alegria belicosa cuja expressão verbal ensaiaram, em idades remotas, rapsodos gregos e germânicos. Certos compositores atuais procuram es se torn valente e elaboram, às vezes com felicidade, milongas do bairro baixo da Bateria ou do Barrio del Alto, mas seus trabalhos, de letra e música estudadamente antiquadas, são exercícios de nostalgia do que foi, prantos pelo perdido, essencialmente tristes, ainda que a toada seja alegre. São para as bravias e inocentes milongas que o livro de Rossi registra o que Don Segundo Sombra é para Martín Fierro ou para Paulino Lueero.Num diálogo de Oscar Wilde, lê-se que a música nos revela um passado pessoal que até esse momento ignorávamos e nos leva a lamentar desventuras que não nos ocorreram e culpas que não cometemos; quanto a mim, confessarei que não posso ouvirEl Marne ou Don Juan sem lembrar com precisão um passado apócrifo, ao mesmo tempo estóico e orgiástico, em que desafiei e lutei para cair, por fim, silencioso, num obscuro duelo a punhal. Talvez a missão do tango seja essa: dar aos argentinos a certeza de terem sido valentes, de terem já cumprido com as exigências da valentia e da honra.

UM MISTÉRIO PARCIAL

Admitida uma função compensadora do tango, resta um breve mistério por resolver. A independência da América foi, em grande parte, uma ação argentina; homens argentinos168169EVARISTO CARRIEGOlutaram em distantes batalhas do continente, em Maipú, emAyacucho, em Junín. Depois houve as guerras civis, a guerrado Brasil, as campanhas contra Rosas e Urquiza, a guerra doParaguai, a guerra de fronteira contra os índios... E copiosonosso passado militar, mas o indiscutível é que o argentino,à força de pensar-se valente, não se identifica com ele (a despeito da preferência que nas escolas se dá ao estudo da história), mas com as vastas figuras genéricas do Gaúcho e do Compadre. Se não me engano, este traço instintivo e paradoxal tem sua explicação. O argentino acharia seu símbolo no gaúcho e não no militar, porque o valor cifrado naquele pelas tradições orais não está a serviço de uma causa e é puro. O gaúcho e o compadre são imaginados como rebeldes; o argentino, diferentemente dos americanos do Norte e de quase todos os europeus, não se identifica com o Estado. Pode-se atribuir isso ao fato geral de que o Estado é uma inconcebível abstração;"

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o certo é que o argentino é um indivíduo, não um cidadão. Aforismos como o de Hegel "O Estado é a realidade da idéia moral" parecem-lhe galhofas sinistras. Os filmes elaborados em Hollywood repetidamente propõem à admiração o caso de um homem (em geral, um jornalista) que procura a amizade de um criminoso para entregá-lo depois à polícia; o argentino, para quem a amizade é uma paixão, e a polícia, uma maffia, sente que esse "herói" é um incompreensível canalha. Sente com Dom Quixote que "vá-se cada um com seu pecado" e que "não é bem que os homens honrados sejam verdugos de outros homens, não levando nada nisso" (Quixote, 1, XXII). Mais de uma vez, diante das vãs simetrias do estilo espanhol, suspeitei que diferimos inapelavelmente da Espanha; essas duas linhas do Quixote bastaram para convencer-me do erro; são como o símbolo tranqüilo e secreto de uma afinidade. Profundamente a confirma uma noite da literatura argentina: essa desesperada noite em que um sargento da polícia rural gritou que não ia consentir no delito de se matar um valente e se pôs a lutar contra seus soldados, junto com o desertor Martín Fierro.1O Estado é impessoal; o argentino só concebe uma relação pessoal. Por isso, para ele, roubar dinheiro público não é crime. Comprovo um fato, não o justifico ou desculpo.HIsrORIA Do TANGO

AS LETRAS

De valor desigual, já que notoriamente derivam de centenas e de milhares de penas heterogêneas, as letras de tango que a inspiração ou o esforço elaboraram integram, ao fim de meio século, um quase inextricável corpus poeticum que os historiadores da literatura argentina lerão ou, em todo caso, vindicarão. O popular, sempre que o povo já não o entenda, sempre que os anos tenham-no tornado antigo, obtém a nostálgica veneração dos eruditos e permite polêmicas e glossários; é verossímil que até 199O surja a suspeita ou a certeza de que a verdadeira poesia de nosso tempo não está em La Urna de Banchs ou em Luz de Província de Mastronardi, mas nas obras imperfeitas que se entesouram em El Alma que Canta. Esta suposição é melancólica. Uma culpável negligência vedou-me a aquisição e o estudo desse repertório caótico, mas não desconheço sua variedade e o crescente âmbito de seus temas. No princípio, o tango não teve letra ou a teve obscena e casual. Alguns a tiveram agreste ("Sou a fiel companheira / do nobre gaúcho portenho"), porque os compositores procuravam a popular, e a má vida e os arrabaldes não eram matéria poética, então. Outros, como a milonga congênere," foram alegres e vistosas bravatas ("No tango sou tão estourado / que quando faço um duplo requebro / corre a voz pelo Norte / se é que me encontro no Sul"). Depois, o gênero relatou, como certos romances do naturalismo francês, ou como certas gravuras de Hogarth, as vicissitudes locais do harlot"s progress ("Logo foste a amiguinha / de um velho boticário / e o filho do comissário / todo enfunado te levou"); depois, a deplorável conversão dos bairros briguentos ou arruaceiros para a decência ("Ponte Alsina, /onde está essa malandragem?" ou "Onde estão aqueles homens e essas chinas / faixas vermelhas e chapéus que Requeria conheceu? / Onde está minha Villa Crespo de outros

Eu sou do bairro do Alto, Son do bairro do Retiro. Eu sou aquele que não olho Corai quem tenho de lutar,E quem se põe a milonQuear, Vin,kn~m o r,rrea tírn.17O1%1

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#EVARISTO CARRIEGOHISTBRIA DO TANGOtempos? / Vieram os judeus, Triunvirato acabou"). Desde muito cedo, as soçobras do amor clandestino ou sentimental atarefaram as penas ("Não te lembras que comigo / puseste um chapéu / e aquele cinturão de couro /que de outra mina afanei?"). Tangos de recriminação, tangos de ódio, tangos de zombaria e de rancor se escreveram renitentes à transcrição e à lembrança. Toda a agitação da cidade foi entrando no tango; a má vida e o subúrbio não foram os únicos temas. No prólogo das sátiras, Juvenal memoravelmente escreveu que tudo o que move os homens - o desejo, o temor, a ira, o prazer carnal, as intrigas, a felicidade - seria matéria de seu livro; com perdoável exagero poderíamos aplicar seu famoso quidquid agunt homines à soma das letras de tango. Também poderíamos dizer que essas formam uma desconexa e vasta comédie humaine da vida de Buenos Aires. Sabe-se que Wolf, em fins do século XVIII, escreveu que a Ilíada, antes de ser uma epopéia, foi uma série de cantos e rapsódias; isso permite, talvez, a profecia de que as letras de tango formarão, com o tempo, um longo poema civil, ou sugerirão a algum ambicioso a escrita desse poema.E conhecido o parecer de Andrew Fletcher: "Se me deixam escrever todas as baladas de uma nação, não me importa quem escreva as leis"; o ditame sugere que a poesia comum ou tradicional pode influir nos sentimentos e ditar a conduta. Aplicada a conjetura ao tango argentino, veríamos nele um espelho de nossas realidades e, ao mesmo tempo, um mentor ou um modelo, de influxo certamente maléfico. A milonga e o tango das origens podiam ser bobos ou, pelo menos, estabanados, mas eram valentes e alegres; o tango posterior é um ressentido que deplora com luxo sentimental as desditas próprias e festeja com descaramento as desditas alheias.Lembro que por volta de 1926 costumava atribuir aos italianos (e mais concretamente aos genoveses do bairro da Boca) a degeneração dos tangos. Naquele mito, ou fantasia, de um tango "crioulo" corrompido pelos "gringos", vejo um claro sintoma, agora, de certas heresias nacionalistas que assolaram o mundo depois - impulsionado pelos gringos, naturalmente. Não foi o bandônion, que chamei de covarde algum dia, nem os aplicados compositores de um subúrbio fluvial que fizeram com que o tango fosse o que é, mas a República inteira. Alémdisso, os crioulos velhos que geraram o tango se chamavam Bevilacqua, Greco ou de Bassi...Alguém poderá objetar, quanto a meu descrédito da fase atual do tango, que a passagem da valentia ou bravata à tristeza não é necessariamente culpável e pode ser indício de maturidade. Meu imaginário adversário bem pode acrescentar que o inocente e valoroso Ascasubi é para o queixoso Hernández o que o primeiro tango é para o último e que ninguém - salvo, talvez, Jorge Luis Borges - se animou a inferir dessa diminuição de felicidade que Martín Fierro é inferior a Paulino Lucero. A resposta é fácil: a diferença não é somente de tom hedonista: é de tom moral. No tango cotidiano de Buenos Aires, no tango dos serões familiares e das confeitarias decentes, há uma canalhice trivial, um sabor de infâmia de que nem suspeitaram os tangos do punhal e do lupanar.Musicalmente, o tango não deve ser importante; sua única importância é a que lhe damos. A reflexão é justa, mas talvez seja aplicável a todas as coisas. À nossa morte pessoal, por exemplo, ou à mulher que nos desdenha... O tango pode ser discutido, e o discutimos, porém encerra, como tudo que é verdadeiro, um segredo. Os dicionários musicais registram, por todos aprovada, sua breve e suficiente definição; essa definição é elementar e não promete dificuldades, mas o compositor francês ou espanhol que, confiante nela, urde corretamente um "tango" descobre, não sem espanto, que urdiu algo que nossos ouvidos não reconhecem, que nossa memória não

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hospeda e que nosso corpo rejeita. Dir-se-ia que sem entardeceres e noites de Buenos Aires não se pode fazer um tango e que no céu nos espera, aos argentinos, a idéia platônica do tango, sua forma universal (essa forma que apenas soletram La Tablada ou E1 Choclo), e que essa espécie venturosa tem, ainda que humilde, seu lugar no universo.

O DESAFIO

Há um relato lendário ou histórico, ou ao mesmo tempo feito de história e de lenda (o que, talvez, seja outra maneira de dizer lendário), comprovando oculto da coragem. Suas172173#EVARISTO CARRIEGOmelhores versões escritas podem ser encontradas nos romances de Eduardo Gutiérrez, esquecidos agora com injustiça, no Hormiga Negra ou no Juan Moreira; das orais, a primeira que ouvi provinha de um bairro demarcado por uma prisão, um rio e um cemitério, chamado a Terra do Fogo. O protagonista dessa versão era Juan Murava, homem da faca e carroceiro, em que convergem todos os contos de coragem que andam pelos subúrbios do Norte. Essa primeira versão era simples. Um homem de Corrales ou de Barracas, conhecedor da fama de Juan Murava (a quem nunca tinha visto), vem de seu subúrbio do Sul para desafiá-lo; provoca-o num armazém, os dois saem para lutar na rua; ferem-se; Murava marca-o por fim e lhe diz:"- Deixo-te com vida para que voltes a me procurar."A falta de interesse daquele duelo gravou-se em minha memória; em minhas conversas (meus amigos estão cansados de saber) não prescindi dele; por volta de 1927, escrevi-o e com enfático laconismo o intitulei "Hombres pelearon"; anos depois, o caso me ajudou a imaginar um conto afortunado, ainda que não fosse bom, "Hombre de Ia esquina rosada"; em 195O, Adolfo Bioy Casares e eu o retomamos para compor o roteiro de um filme que as empresas recusaram com entusiasmo e que se chamaria Los Orilleros. Acreditei, ao fim de tão dilatadas fadigas, ter-me despedido da história do duelo generoso; neste ano, em Chivilcoy, recolhi uma versão muito superior, que oxalá seja a verdadeira, embora as duas muito bem possam sê-lo, já que o destino se compraz em repetir as formas e o que ocorreu uma vez ocorre muitas. Dois contos medíocres e um filme que considero muito bom saíram da versão deficiente; nada pode sair da outra, que é perfeita e cabal. Como me contaram, vou contá-la, sem adição de metáforas ou de paisagem. A história, disseram-me, ocorreu na região de Chivilcoy, por volta de mil oitocentos e setenta e tantos. Wenceslao Suárez é o nome do herói, que desempenha a tarefa de trançados e vive num ranchinho. É homem de quarenta ou cinqüenta anos; tem reputação de valente e é bem inverossímil (em razão dos fatos da história que narro) que não carregue uma ou duas mortes, mas estas, cometidas dentro da ordem, não perturbam sua consciência nem mancham sua fama. Uma tarde, na vida pacata desse homem, ocorre umHISTÓRIA Do TANGOfato insólito: na taberna lhe informaram que havia chegado uma carta para ele. Dom Wenceslao não sabe ler; o taberneiro decifra com lentidão uma cerimoniosa missiva que tampouco seria do punho e letra de quem a manda. Em nome de alguns amigos que sabem admirar a destreza e a verdadeira serenidade, um desconhecido cumprimenta

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Dom Wenceslao, por sua fama que atravessou o Arrogo del Medio, e oferece-lhe a hospitalidade de sua humilde casa, num povoado de Santa Fé. Wenceslao Suárez dita ao taberneiro uma resposta; agradece a fineza, explica que não se anima a deixar sozinha sua mãe, já muito idosa, e convida o outro para vir a Chivilcoy, a seu rancho, onde não faltarão um churrasco e uns copos de vinho. Passam os meses e um homem num cavalo aperado de modo um tanto diferente do da região pergunta na taberna onde fica a casa de Suárez. Este, que viera comprar carne, ouve a pergunta e lhe diz quem é; o forasteiro lembra-lhe as cartas escritas há algum tempo. Suárez se alegra que o outro tenha decidido vir; depois os dois vão a um carapinho e Suárez prepara o churrasco. Comem e bebem e conversam. Sobre o quê? Suspeito que sobre temas de sangue, temas bárbaros, mas com atenção e prudência. Almoçaram e o pesado calor da sesta desce sobre a terra, quando o forasteiro convida Dom Wenceslao para darem uns tirinhos. Recusar seria uma desonra. Os dois se provocam e fingem lutar no início, mas Wenceslao não tarda a sentir que o forasteiro se propõe matá-lo. Entende, por fim, o sentido da carta cerimoniosa e lamenta ter comido e bebido tanto. Sabe que se cansará antes do outro, que é ainda um jovem. Com troça ou cortesia, o forasteiro propõe um descanso. Dom Wenceslao aceita, e, quando reatam o duelo, permite ao outro que o fira na mão esquerda, na que traz o poncho, enrolado." O punhal entra no pulso, a mão fica como morta, pendendo. Suárez, com um grande salto, recua, põe a mão ensangüentada no chão, pisa-a com a bota, arranca-a,3 Dessa velha maneira de combater à capa e espada, fala Montaigne em seus Ensaios (l, 49) e cita uma passagem de César: "Sinistras sagis involvunt, gladiosque ais1? ingunt-. Lugones, na página 54 de E1 Pagador, traz passagem análoga do romancede Bernardo del Carpio:Envolvendo o manto no braço, Aespada fora sacar.174175#EVARISTO CARRIEGOameaça um golpe no peito do forasteiro e lhe abre o ventre com uma punhalada. Assim acaba a história, exceto que para algum narrador fica o homem de Santa Fé no campo e, para outro (que lhe amesquinha a dignidade de morrer), volta a sua província. Nessa última versão, Suárez usa para o primeiro socorro a aguardente que sobrou do almoço...Na gesta do Maneta Wenceslao - agora Suárez se chama assim, para a glória -, a brandura ou cortesia de certos traços (o trabalho de trançados, o escrúpulo de não deixar a mãe sozinha, as duas cartas floridas, a conversa, o almoço) mitigam ou acentuam com felicidade a terrível fábula; tais traços dãolhe caráter épico e até cavalheiresco que não encontraremos, por exemplo, a não ser que resolvamos encontrá-lo, nas lutas de bêbado do Martín Fierro ou na congênere e mais pobre versão de Juan Murava e o sulista. Um traço comum às duas é talvez significativo. Em ambas, o provocador termina derrotado. Isso pode dever-se à mera e miserável necessidade de que triunfe o campeão local, mas também, e assim o preferiríamos, a uma tácita condenação do desafio nessas ficções heróicas ou, e isso seria o melhor, à obscura e trágica convicção de que o homem sempre é o artífice de sua própria desdita, como o Ulisses do canto XXVI do Inferno. Emerson, que louvou nas biografias de Plutarco "um estoicismo que não é das escolas, mas do sangue", não teria desdenhado esta história.Teríamos, pois, homens de paupérrima vida, gaúchos e suburbanos das regiões ribeirinhas do Prata e do Paraná, criando, sem sabê-lo, uma religião, com sua mitologia e seus mártires, a dura e cega religião da coragem, a de estar pronto para matar e para morrer. Essa religião é velha como o mundo, mas teria sido redescoberta,

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e vivida, nestas repúblicas, por pastores, magarefes, tropeiros, prófugos e rufiões. Sua música estaria nos estilos, nas milongas e nos primeiros tangos. Escrevi que é antiga essa religião; em uma saga do século XII se lê:"- Diga-me qual é sua fé - disse o conde.Creio em minha força - disse Sigmund."Wenceslao Suárez e seu anônimo oponente, e outros que a mitologia esqueceu ou incorporou a eles, professaram sem dúvida essa fé viril, que bem pode não ser vaidade, mas a consciência de que em qualquer homem está Deus.xi1

DUAS CARTAS(A publicação de um dos capítulos que integram a Historia del Tango valeu a seu autor estas duas cartas, que agora enriquecem o livro.)C. del Uruguay (E. R.), 27 de janeiro de 1953.SenhorJorge Luis Borges

Li em La Nacián de 28 de dezembro "El desafio".Em razão do interesse que o senhor manifesta por acontecimentos da natureza do que relata, penso que lhe será grato conhecer um que meu pai, falecido há muitos anos, contava, dizendo-se testemunha presencial do mesmo.Local: a chasqueada "San José" de Puerto Ruiz, próximo a Gualeguay, que funcionava sob a orientação da firma Laurencena, Parachú e Marcó.Época: por volta dos 6O.Entre o pessoal da chasqueada, quase exclusivamente formado de vascos, estava um negro de nome Fustel, cuja fama de hábil no manejo do facão havia transposto os limites da província, como o senhor verá.Um belo dia, chegou a Puerto Ruiz um camponês luxuosamente vestido ao estilo da época: um chiripá de merino negro, um calção bordado, lenço de seda no pescoço, cinto coberto de moedas de prata, num bom cavalo aperado regiamente: freio, peitoral, estribos e cabeçada de prata, com adornos de ouro, e facão, compondo o conjunto.Deu-se a conhecer dizendo que vinha da chasqueada "Fray Bentos", onde havia sabido da fama de Fustel, e que, considerando-se muito homem, desejava pôr-se à prova com ele.176177#EVARISTO CARRIEGOFoi fácil colocá-los em contato, e não havendo motivo para nenhum tipo de malquerença, acertou-se o lance para o dia e hora determinados, no mesmo lugar.No centro de uma grande roda, formada por todo o pessoal da charqueada e vizinhos, começou a luta, em que ambos os homens demonstravam admirável destreza.Depois de longo tempo de luta, o negro Fustel conseguiu tocar seu rival com a ponta do facão na testa, abrindo-lhe uma ferida que, embora pequena, começou a verter bastante sangue.Ao ver-se ferido, o forasteiro jogou o facão e, estendendo a mão a seu adversário, disse-lhe: "O senhor é mais homem, amigo".Tornaram-se muito bons amigos e, ao se despedirem, trocaram os facões como prova de amizade.Parece-me que contado por sua prestigiosa pena, este fato, que acredito histórico (meu pai nunca mentiu), poderia servir-lhe para refazer o roteiro de seu filme,

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trocando o nome de Los Orilleros por Nobleza Gaucha, ou algo parecido.Saúda-o com especial consideração

ERNESTO T. MARCóChivilcoy, 28 de dezembro de 1952.

Senhor Jorge Luis Borges, em La Nación. Com minha distinta consideração:

Ref.: Comentários a "EI desafío" (28/12/52)

Escrevo esta com propósito de informação e não de retificação, já que o essencial não sofre alteração nenhuma, variando somente algumas formas do fato.Muitas vezes escutei de meu pai pormenores do duelo que serve de essência a "El desafío" publicado em La Nación de hoje. Ele, naquela época, vivia num campo de sua propriedade, situado nas proximidades da "Taberna de donaHipólita", cuja praia limítrofe foi o cenário em que se desenrolou o terrível duelo entre Wenceslao e o camponês azulense - o próprio visitante disse a Wenceslao que vinha de Azul, até onde chegaram os ecos da destreza deste -, que veio para definir posições.Próximo de uma parva de pasto seco, os rivais comeram, seguramente estudando-se, e quando talvez os ânimos esquentaram, veio o convite para um duelo, feito pelo sulista e aceito no ato pelo nosso.Ágil como era o azulense, tornava-se inatingível para o facão de seu rival, prolongando-se a luta em prejuízo de Wenceslao. De cima da parva, um peão de dona Hipólita, que tinha fechado a porta de sua taberna por causa do aspecto da questão, presenciava atemorizado as alternativas da luta. Wenceslao, resolvido a obter uma decisão, descobriu sua guarda, oferecendo o braço esquerdo protegido pelo poncho, aí enrolado. O azulense caiu-lhe em cima como um raio, com um terrível golpaço descarregado sobre o pulso de seu adversário, ao mesmo tempo que a ponta aguçada do facão de Wenceslao lhe atingia um olho. Um alarido selvagem rasgou o silêncio do pampa, e o azulense, em fuga, refugiou-se atrás da sólida porta da taberna, enquanto Wenceslao pisava sua mão esquerda, sustentada por uma tira de pele, e de um golpe a separava do braço, enfiava o coto na abertura da camisa e corria atrás do fugitivo, rugindo como um leão e reclamando sua presença para continuar a luta.A partir daí, Wenceslao passou a ser conhecido como o maneta Wenceslao. Vivia de seu trabalho com os couros. Nunca provocava. Sua presença nas tabernas tornou-se garantia de paz, pois bastava sua enérgica advertência, proferida calmamente, com sua voz varonil, para desanimar os briguentos. Dentro dessa pobreza foi um senhor. Sua vida simples teve transcendência, porque sua orgulhosa personalidade não tolerou o insulto, nem sequer o desdém, e seu profundo conhecimento das debilidades humanas o fez duvidar da imparcialidade da justiça daquele tempo e, por isso, habituouse a fazê-la por si mesmo. Foi aí que esteve seu erro, quanto à própria sobrevivência.A velhacaria de um gringo obrigou-o a agir e daí partiu sua desgraça. Uma numerosa comissão policial integrada por178179#EVARISTO CARRIEGOcivis encurralou-o numa taberna, onde fora à procura dos vícios. A luta com arma branca, de cinco contra um, decidia-se vantajosamente para Wenceslao, quando o certeiro disparo de um civil estendeu para sempre o herói da quadra 13.

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O resto é exato. Vivia num rancho com sua mãe. Os vizinhos, entre eles meu pai, ajudaram-no a construí-lo. Nunca roubou.Aproveito a oportunidade para saudar o talentoso escritor, com expressões de minha admiração e simpatia.JUAN 13. LAUHIRAT18OEste é o mal de não dar à estampa as obras: passamos a vida a refazé-las.ALFONso REYES Cuestiones Gongorinas, 6O.PRÓLOGOAs páginas compiladas neste livro não pedem maiores esclarecimentos. "A arte narrativa e a magia", "Filmes" e "A postulação da realidade" respondem a cuidados idênticos e creio mesmo que estão de acordo. "Nossas impossibilidades" não é, como disseram alguns, um tosco exercício de invectiva; é um relato reticente e doloroso de certos aspectos, não muito gloriosos," de nosso ser. "Uma vindicação do falso Basilides" e "Uma vindicação da Cabala" são resignados exercícios de anacronismo: não restituem o difícil passado - interagem e divagam com ele. "A duração do Inferno" revela meu incrédulo e persistente pendor pelas dificuldades teológicas. O mesmo ocorre com "A penúltima versão da realidade". "Paul Groussae" é a página mais dispensável do volume. A que tem por título "O outro Whitman" omite voluntariamente o fervor que seu tema sempre me inspirou; lamento não ter dado um pouco mais de destaque às numerosas invenções retóricas do poeta, certamente mais imitadas e mais belas que as de Mallarmé ou as de Swinburne. "A perpétua corrida de Aquiles e da tartaruga" não solicita outra virtude que a de sua profusão de dados. "As versões homéricas" são minhas primeiras letras - que não creio um dia ascendam a segundas - de helenista divinatório.Vida e morte faltaram à minha vida. Dessa indigência, meu laborioso amor por estas minúcias. Não sei se a desculpa da epígrafe vai me valer.

Buenos Aires, 1932.7 O artigo, que agora pareceria muito fraco, não figura nesta reedição. (Nota de 1955.)185A POESIA GAUCHESCAÉ fama que ao perguntarem a Whistler quanto tempo lhe fora necessário para pintar um de seus noturnos, ele respondeu: "A vida toda". Com o mesmo rigor ele poderia ter dito que necessitara de todos os séculos que precederam o momento em que o pintou. Dessa correta aplicação da lei da causalidade segue-se que o menor dos fatos pressupõe o inconcebível universo e, inversamente, que o universo necessita do menor dos fatos. Pesquisar as causas de um fenômeno, mesmo de um fenômeno tão simples como a literatura gauchesca, é avançar no infinito; limito-me a mencionar as duas causas que considero principais.Os que me precederam neste labor restringiram-se a uma: a vida pastoril que era típica das coxilhas e do pampa. Essa causa, sem dúvida apta à amplificação oratória e à digressão pinturesca, é insuficiente; a vida pastoril foi típica de muitas regiões da América, de Montava e Oregon, até o Chile, mas esses territórios, até agora, abstiveram-se energicamente de redigir El Gaucho Martín Fierro. Não bastam, pois, o rude pastor e o deserto. O cowboy, apesar dos livros documentais de Will James e do insistente cinema, pesa menos na literatura de seu país que os camponeses do Midde West ou os homens negros do Sul... Derivar a literatura gauchesca de sua matéria, o gaúcho, é um engano que desfigura a notória verdade. Não menos necessário para a formação desse gênero do que o pampa e as coxilhas foi o caráter urbano

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de Buenos Aires e Montevidéu. As guerras da Independência, a guerra do Brasil, as guerras anárquicas fizeram com que homens de cultura civil se identificassem com a gaucharia; da fortuita conjunção desses dois estilos vitais, do assombro que um causou no outro, nasceu a literatura gauchesca. Insultar (alguns o fize187#Dis cussÀoram) juan Cruz Varela ou Francisco Acuna de Figueroa por não terem exercido, ou inventado, essa literatura, é uma tolice; sem as humanidades que suas odes e paráfrases representam, Martín Fierro não teria assassinado, numa taberna de fronteira, cinqüenta anos depois, o Moreno. Tão vasta e incalculável é a arte, tão secreto seu jogo. Tachar a literatura gauchesca de artificial ou de inverídica por não ser obra de gaúchos é pedante e ridículo; no entanto, não há cultor desse gênero que algum dia não tenha sido, por sua geração ou pelas vindouras, acusado de falsidade. Assim, para Lugones, o Aniceto de Ascasubi "é um pobre-diabo, mescla de filosofastro e de farsista"; para Vicente Rossi, os protagonistas do Fausto são "dois camponeses ladinos e embusteiros"; Vizcacha, "um velho mensalista, maníaco"; Fierro, "um frade federal partidário de Oribe de barba e chiripá". Estas definições, naturalmente, são meras curiosidades da invectiva; sua frágil e remota justificativa é que todo gaúcho da literatura (todo personagem da literatura) é, de alguma forma, o literato que o inventou. Já se repetiu que os heróis de Shakespeare são independentes de Shakespeare; para Bernard Shaw, no entanto, "Macbeth é a tragédia do homem de letras moderno, como assassino e cliente de bruxas"... Sobre a maior ou menor autenticidade dos gaúchos escritos, cabe observar, talvez, que para quase todos nós o gaúcho é um objeto ideal, prototípico. Daí, o dilema: se a figura que o autor nos propõe se ajusta com rigor a esse protótipo, nós a julgamos batida e convencional; se difere, sentimo-nos logrados e defraudados. Veremos depois que de todos os heróis dessa poesia Fierro é o mais individual, o que menos responde a uma tradição. A arte sempre opta pelo individual, pelo concreto; a arte não é platônica.Passo, agora, ao exame sucessivo dos poetas.

O iniciador, o Adão, é Bartolomé Hidalgo, montevideano. A circunstância de em 181O ele ter sido barbeiro, ao que parece, fascinou a crítica; Lugones, que o reprova, estampa a voz "rapabarbas"; Rojas, que o considera, não se resigna a prescindir de "rapista". Transforma-o, de uma única penada, num cantador, e descreve-o de forma ascendente, com profusão de traços minuciosos e imaginários: "vestido o chiripá sobre o calção aberto em crivos; calçadas as esporas na bota surradaA POESIA GAUCHESCAcio cavaleiro gaúcho; aberta sobre o peito a camisa escura, inflada pelo vento dos pampas, a aba do chapéu erguida sobre a testa, como se estivesse sempre galopando a terra natal; a cara barbuda realçada por seu olho habituado ao campear da imensidão e da glória". Muito mais memoráveis que essas licenças da iconografia e da alfaiataria me parecem duas circunstâncias, também registradas por Rojas: o fato de que Hidalgo foi um soldado, o fato de que, antes de inventar o capataz Jacinto Chano e o gaúcho Ramón Contreras, foi pródigo - disciplina singular num cantador - em sonetos e odes hendecassílabas. Carlos Roxlo julga que as composições rurais de Hidalgo "ainda não foram superadas por nenhum dos que se distinguiram, imitando-o". Eu penso o contrário; penso que ele foi superado por muitos e que seus diálogos, agora, beiram o esquecimento. Penso também que sua paradoxal glória está nessa vasta e diversa superação filial. Hidalgo sobrevive nos outros, Hidalgo é, de algum

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modo, os outros. Em minha breve experiência de narrador, comprovei que saber como um personagem fala é saber quem ele é, que descobrir uma entonação, uma voz, uma sintaxe peculiar, é ter descoberto um destino. Bartolomé Hidalgo descobre a entonação do gaúcho; isso não é pouco. Não repetirei linhas suas; inevitavelmente incorreríamos no anacronismo de condená-las, usando como cânone as de seus famosos seguidores. Lembrarei apenas que nas melodias alheias que ouviremos está a voz de Hidalgo, imortal, secreta e modesta.Hidalgo faleceu obscuramente de uma doença pulmonar, no vilarejo de Morón, em 1823. Por volta de 1841, em Montevidéu, desandou a cantar, multiplicado em insolentes pseudônimos, o cordobês Hilario Ascasubi. O futuro não foi piedoso com ele, nem mesmo justo.

Ascasubi, em vida, foi o "Béranger do Rio da Prata"; morto, é um precursor apagado de Hernández. Ambas as definições, como vemos, traduzem-no em mero rascunho - errôneo tanto no tempo como no espaço - de outro destino humano. A primeira, a contemporânea, não lhe fez mal: aos que a apadrinharam não faltou uma noção direta de quem era Ascasubi, e uma notícia suficiente de quem era o francês; agora, os dois conhecimentos raleiam. A glória honesta de188189#DISCUSSÃOBéranger declinou, embora ele ainda disponha de três colunas na Encyclopaedia Britannica, assinadas por ninguém menos que Stevenson; e a de Ascasubi... A segunda, a de premonição ou anúncio do Martín Fierro, é uma insensatez: a semelhança das duas obras é acidental, nula a de seus propósitos. O motivo dessa atribuição equivocada é curioso. Esgotada a edição princeps de Ascasubi de 1872 e raríssima em livrarias a de 19OO, a editora La Cultura Argentina quis oferecer ao público algumas de suas obras. Por motivos de extensão e seriedade escolheram o Santos Vega, impenetrável sucessão de treze mil versos de sempre empreendida e sempre adiada leitura. As pessoas, entediadas, afugentadas, tiveram de recorrer a esse respeitoso sinônimo da incapacidade meritória: o conceito de precursor. Imaginá-lo precursor de seu declarado discípulo, Estanislao del Campo, era evidente demais; resolveram aparentá-lo com José Hernández. O projeto sofria desse mal, que abordaremos adiante: a superioridade do precursor, nessas poucas páginas ocasionais - as descrições do amanhecer, do ataque indígena - cujo tema é o mesmo. Ninguém se demorou nesse paradoxo, ninguém passou desta comprovação evidente: a costumeira inferioridade de Ascasubi. (Escrevo com um pouco de remorso: um dos distraídos fui eu, em certa consideração inútil sobre Ascasubi.) Uma ligeira meditação, no entanto, teria demonstrado que, bem postulados os objetivos dos dois escritores, era de prever uma freqüente superioridade parcial de Aniceto. Qual era o objetivo de Hernández? Um, limitadíssimo: a história do destino de Martín Fierro, narrada pelo próprio. Não intuímos os fatos, mas o camponês Martín Fierro contando-os. Daí que a omissão, ou atenuação da cor local, seja típica de Hernández. Não especifica dia e noite, ou o pêlo dos cavalos: afetação que em nossa literatura de criadores de gado tem correlação com a mania britânica de especificar os aparelhos, os roteiros e as manobras, em sua literatura do mar, pampa dos ingleses. Não silencia a realidade, mas refere-se a ela apenas em função do caráter do herói. (Como faz, no ambiente marinheiro, Joseph Conrad.) Assim, as muitas danças que necessariamente figuram em seu relato nunca são descritas. Ascasubi, por sua vez, propõe a intuição direta da dança, do jogo descontínuo dos corpos que começam a se entender (Paulino Lucero, pág. 2O4):A POESIA GAUCHESCA

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Depois tirou a parceira fuana Rosa, pra dançar, e largaram a cadenciar meia-canha e canha inteira. Ah, morena! as cadeirasdo seu corpo se esquivavam, e tanto o negaceava nos requebros que fazia, que meio que se perdia quando Lueero adentrava.E esta outra décima, vistosa como baralho novo (Aniceto el Gallo, pág. 176):Olha Pilar, a Portenhalinda de nossa campanha, dançando a meia-canha: vejam como desempenhae a graça com que desdenha os avanços do gauchito, que sem soltar o ponehito com sua mão na cintura, lhe fala nessa postura: minh"alma, eu sou compadrito!É esclarecedor também o cotejo da notícia dos ataques indígenas que há no Martín Fierro com a imediata apresentação de Ascasubi. Hernández (La Vuelta, canto quarto) quer destacar o horror judicioso de Fierro diante da desatinada depredação; Ascasubi (Santos Vega, XIII), as léguas de índios que investem:Mas quando vem a Indiada dá pra sentir, pois na raia do campo corre a alimária escapando assustada, e cercados na malhada vêm os cachorros-do-mato, raposas, emas, leões, gamas, lebres e veados cruzando atribulados por entre as povoações.19O191#DISCUSSÃOE então os ovelheiros coleando bravos toureiam e também revoluteiam gritando os tero-teros; mas, é claro, os primeiros que anunciam a agitação com inteira precisãoquando os puelches avançam são os taãs, que então lançam voando: taã! taã!

E atrás das madrigueirasque os selvagens espantam, campo afora se levantam como nuvens, as poeiras grávidas todas inteiras de puelches descabeladosque em trote largo apressados, sobre os potros estendidos investem soltando gritos e em meia-lua formados.

O cênico outra vez, outra vez o prazer da contemplação. Nessa tendência está para mim a singularidade de Ascasubi, não nas virtudes de sua ira unitária, destacada por Oyuela e por Rojas. Este (Obras, 1X, pág. 671) imagina o desgosto que seus versos bárbaros causaram, sem dúvida, em Dom Juan Manuel e lembra o assassinato, na praça sitiada de Montevidéu, de Florencio Varela. O caso é incomparável: Varela, fundador e redator de El Comercio del Plata, era uma pessoa internacionalmente visível; Ascasubi, cantador incessante, limitava-se a improvisar os versos caseiros do lento e vivo truco do cerco.Ascasubi, na bélica Montevidéu, cantou um ódio feliz. O facit indignado versum de Juvenal não nos revela a razão de seu estilo; cortante ao extremo, mas tão desaforado e à vontade nas injúrias que mais parece uma diversão e uma festa, um gosto de provocar. É o que deixa entrever uma suficiente décima de 1849 (Paulino Lucero, pág. 336):Senhor patrão, aí estáessa carta, uma flor! com que ao Restaurador eu daqui retruco já.Se a leres vais encontrar no remate do papelcoisas que também dão léu para ele se alegrar; porque a bem da verdadeé gaúcho o dom Juan Manuel.

Mas contra esse mesmo Rosas, tão gaúcho, mobiliza danças que parecem evolucionar como exércitos. Deixemos serpear e ressoar novamente este primeiro giro de sua meiacanha

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do campo, para os livres:

O potro que em dez anosninguém não encilhou,dom Frutos em Caganchasem mais o cavalgou, e durante a batida transmitiu-lhe um rigor que não tem nem medida!Amai, minha vida - os Orientaisque são domadores - sem dificuldades.Que viva Rivera! Que viva Lavalle!E arrimo a Rosas... que ele não desmaie. Meia-canha, em campanha, canha inteira, como queira.E vamos a Entre Rios, que lá está Badana,pra ver se dançamos esta Meia-Canha:que lá está Lavalle tocando o violão,e dom Frutos quer dançá-la até a conclusão. Os de Cagancha se afinam com o diabo em qualquer cancha.A POESIA GAUCHESCA192193#DISCUSSÃOTranscrevo, também, esta combativa felicidade (Paulino Lucero, pág. 58):

Vá ld um delito raivoso coisa boa se há ensejo e o homem é só desejode se entreter com balaços.

Coragem florida, gosto por cores límpidas e objetos precisos podem definir Ascasubi. Assim, no início do Santos Vega:

Ia o tal de pêlo a pêloem um potrinho bragado, flete lindo como um dado, roçando o solo com zelo de tão ligeiro e delgado.

E esta menção a uma figura (Aniceto el Gallo, pág. 147):

Olha a estampa do Gallo segurando a bandeira dessa Pátria verdadeira do Vinte e cinco de Maio.

Ascasubi, em La Refalosa, apresenta o pânico normal dos homens prestes a serem degolados; mas evidentes razões de data lhe vetaram o anacronismo de praticar a única invenção literária da guerra de mil novecentos e catorze: o patético tratamento do medo. Essa invenção - paradoxalmente preludiada por Rudyard Kipling, tratada depois com delicadeza por Sheriff e com boa insistência jornalística pelo concorrido Remarque - ficava fora de mão para os homens de mil oitocentos e cinqüenta.Ascasubi lutou em Ituzaingó, defendeu as trincheiras de Montevidéu, lutou em Cepeda, e registrou em versos resplandecentes seus dias. Não há em suas linhas o empuxo do destino que há no Martín Fierro; há essa despreocupada, dura inocência dos homens de ação, hóspedes contínuos da aventura, nunca do assombro. Há também sua boa audácia, porque seu destino era a guitarra insolente do compadrito e osA POESIA GAUCHESCAfogões da tropa. Há ainda (virtude correlata desse vício e também popular) a felicidade prosódica: o verso fútil cuja entonação, apenas, já o faz funcionar.

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Dos muitos pseudônimos de Ascasubi, Aniceto el Gallo foi o mais conhecido; talvez o menos feliz, também. Estanislao del Campo, que o imitava, escolheu o de Anastasio el Pollo. Esse nome ficou vinculado a uma obra celebérrima: o Fausto. A origem desse afortunado exercício é conhecida; Groussac, não sem certa perfídia inevitável, assim a referiu: "Estanislao del Campo, oficial superior do governo provincial, tinha já muitos expedientes despachados sem grande alarde em versos de todo metro e jaez, quando em agosto de 66, assistindo a uma exibição do Fausto de Gounod no Colón, lhe ocorreu imaginar, entre os espectadores do paraíso, o gaúcho Anastasio, que depois contava a um companheiro suas impressões, interpretando a seu modo as fantásticas cenas. Fazendo certa vista grossa ao argumento, a paródia resultava divertidíssima, e lembro que eu mesmo festejei na Revista Argentina a redução para guitarra da aplaudida partitura... Tudo concorria para o sucesso; a extraordinária voga da ópera, recém-estreada em Buenos Aires; o viés cômico do "pato" entre o diabo e o doutor, que, assim parodiado, fazia o drama retornar, passando por alto pelo poema de Goethe, a suas origens populares e medievais; o ritornelo fácil das redondilhas, em que o trêmulo sentimental se alternava habilmente com punhados de sal grosso; por fim, naqueles anos de crioulismo triunfante, o sabor de mate chimarrão do diálogo gauchesco, em que o filho do pampa folgava à vontade, se não como jamais o fizera na realidade, pelo menos como o haviam composto e "convencionado" cinqüenta anos de má literatura".Até aqui, Groussac. Ninguém ignora que este douto escritor pensava que o desdém fosse obrigatório ao tratar com meros sul-americanos; no caso de Estanislao del Campo (a quem, imediatamente depois, chama de "cantador de gabinete"), acrescenta a esse desdém uma impostura ou, pelo menos, uma omissão da verdade. Perfidamente o define como funcionário público; minuciosamente esquece que lutou no cerco de Buenos Aires, na batalha de Cepeda, em Pavõn e na revolução de 74. Um de meus avós, unitário, que militou com ele, costumava lembrar que Del Campo vestia o uniforme de194195#Discussàogala para entrar na batalha e que saudou, a mão direita no quepe, as primeiras balas de Pavón.O Fausto foi julgado de modos muito diversos. Calixto Oyuela, nem um pouco generoso com os escritores gauchescos, qualificou-o de jóia. E um poema que, como os primitivos, podia prescindir da imprensa, por viver em muitas memórias. Singularmente, em memórias de mulheres. Isso não implica uma censura; há escritores de valor inquestionável - Marcel Proust, D. H. Lawrence, Virgínia Woolf - que costumam agradar mais às mulheres do que aos homens... Os detratores do Fausto acusam-no de ignorância e de falsidade. Até o pêlo do cavalo do herói foi examinado e reprovado. Em 1896, Rafael Hernández - irmão de José Hernández - anota: "Esse parelheiro é de cor oveiro rosado, justamente a cor que um pare~ lheiro jamais teve, e consegui-la seria tão raro como encontrar um gato de três cores"; em 1916, Lugones confirma: "Nenhum crioulo ginete e garboso, como o protagonista, monta em cavalo oveiro rosado: um animal sempre depreciado, cujo destino é puxar o balde nas estâncias ou servir de montaria aos moços mandadeiros". Também foram condenados os últimos versos da famosa décima inicial:

Capaz de levar um potro A sofreá-lo na lua.

Rafael Hernández observa que no potro não se põe freio, mas bocal, e que sofrear o cavalo "não é próprio de crioulo ginete, mas de gringo raivoso". Lugones confirma,

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ou transcreve: "Nenhum gaúcho segura o cavalo, sofreando-o. Esta é uma crioulada falsa de gringo fanfarrão, que anda gineteando a égua de sua jardineira".Eu me declaro indigno de terçar nessas controvérsias rurais; sou mais ignorante que o reprovado Estanislao del Campo. Atrevo-me apenas a confessar que, embora os gaúchos de mais firme ortodoxia menosprezem o pêlo oveiro rosado, o verso

En un overo rosco

continua - misteriosamente - me agradando. Também censurou-se que um rústico pudesse compreender e narrar o196argumento de uma ópera. Os que fazem isso esquecem que toda arte é convencional; também o é o repente biográfico de Martín Fierro.Passam as circunstâncias, passam os fatos, passa a erudição dos homens versados no pêlo dos cavalos; o que não passa, o que talvez seja inesgotável, é o prazer que nos dá a contemplação da felicidade e da amizade. Esse prazer, talvez não menos raro nas letras que neste mundo corporal de nossos destinos, é a meu ver a virtude central do poema. Muitos louvaram as descrições do amanhecer, do pampa e do anoitecer que o Fausto apresenta; tenho para mim que a menção preliminar dos bastidores cênicos contaminou-as de falsidade. O essencial é o diálogo, a clara amizade que transparece no diálogo. O Fausto não pertence à realidade argentina, mas - como o tango, como o truco, como Irigoyen - à mitologia argentina.Mais próximo de Ascasubi que de Estanislao del Campo, mais próximo de Hernández que de Ascasubi, está o autor que passo a considerar: Antonio Lussich. Que eu saiba, só circulam duas menções a sua obra, ambas insuficientes. Copio na íntegra a primeira, que bastou para incitar minha curiosidade. E de Lugones e figura na página 189 de El Pagador."Dom Antonio Lussich, que acabava de escrever um livro elogiado por Hernández, Los Tres Cauchos Orientales, pondo em cena tipos gaúchos da revolução uruguaia chamada campanha de Aparicio, deu-lhe, ao que parece, o oportuno estímulo. O envio dessa obra a Hernández resultou na feliz idéia. A obra do senhor Lussich apareceu editada em Buenos Aires pela gráfica da Tribuna em 14 de junho de 1872. A carta com que Hernández cumprimentou Lussich, agradecendo-lhe o envio do livro, é de 2O do mesmo mês e ano. Martín Fierro apareceu em dezembro. Galhardos e geralmente apropriados à linguagem e peculiaridades do camponês, os versos do senhor Lussich formavam quadras, redondilhas, décimas e também aquelas sextilhas de cantador que Hernández devia adotar como as mais típicas."O elogio é considerável, principalmente se levarmos em conta o propósito nacionalista de Lugones, que era exaltar o Martín Fierro, e sua reprovação incondicional de Bartolomé Hidalgo, de Ascasubi, de Estanislao del Campo, de RicardoA POESIA GAUCHESCA197#DISCUSSÀoA POESIA GAUCHESCAGutiérrez, de Echeverría. A outra menção, incomparável em reserva e extensão, aparece na Historia Crítica de la Literatura Uruguaya, de Carlos Roxlo. "A musa" de Lussich, lemos na página 242 do segundo tomo, "é excessivamente desalinhada e vive num calabouço de prosaísmos; suas descrições carecem de luminosa e pitoresca policromia".O maior interesse da obra de Lussich é sua evidente antecipação do imediato e posterior Martín Fierro. A obra de Lussich profetiza, ainda que de modo esporádico,

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os traços diferenciais do Martín Fierro; é bem verdade que a convivência com este último lhes dá um relevo extraordinário que no texto original talvez não possuam.O livro de Lussich, em princípio, é menos uma profecia do Martín Fierro que uma repetição dos colóquios de Ramón Contreras e Chano. Entre amargo e amargo, três veteranos contam suas batalhas pela pátria. O procedimento é o habitual, mas os homens de Lussich não se prendem à notícia histórica e contam muitas passagens autobiográficas. Essas freqüentes digressões de ordem pessoal e patética, ignoradas por Hidalgo ou por Ascasubi, são as que prefiguram o Martín Fierro, seja na entonação, nos fatos ou nas próprias palavras.Serei generoso nas citações, pois comprovei que a obra de Lussich é, virtualmente, inédita.E como primeira transcrição, vai o desafio destas décimas:

Mas me chamam marginal Porque eu fujo da espada, Pois o toque da alvorada Na orelha me soa mal; Sou livre como o pampeiro E sempre livre eu vivi. Fui livre quando do ventre De minha mãe eu saíSem outro cão que me espante Que o destino que segui...

Meu facão tem uma folha Com um letreiro no envesso Que diz: quando eu apareço É pra que a gente se encolha.Meu cinturão só afrouxa Ao dispor de minha sorte, Com ele eu sempre fui forte E altivo como um leão; Não me salta o coração Nem tenho medo da morte.Sou robusto boleador,Enlaço lindo e com gosto; Eu lanço as bolas tão justo Que mais que acerto é primor. Não se encontra outro melhor Pra rebolear uma lança, É famosa minha pujança, Minha bravura, e forte e duro Meu sabre com o rude impulso Eita! se não faz matança!Outros exemplos, desta vez com sua correspondência imediata ou conjeturai:Diz Lussich:Eu tive ovelhas, fazenda; Cavalos, mangueira e herdade; Era feliz de verdade Mas me cortaram as rédeas!Rincão, malhada e querência Voaram com a campanha, E até a velha choupanaQue caiu... na minha ausência!Tudo me levou a guerraE o rastro do que se foiÉ o que encontrarei depois Quando voltar a minha terra.198199#DISCUSSAOA POESIA %AUCHESCADirá Hernández:

Tive no meu pago um tempo Filhos, fazenda e consorte Mas começou a má sorte, Me jogaram na fronteira E ao voltar o que encontrei? Só a Tapera inteira.

Diz Lussich:

Me mandei com todo o apego,Rico e de eoscós o freio, Rédeas novas pro campeio Trançadas com todo esmero; Uma carona de couro De vaca, e bem curtida; Até uma manta fornidaEu trouxe entre os meus trens,E embora o chapeado não fosse bom pra Montei o pingo em seguida.

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Virei meu bolso do avesso Porque nunca fui tacanho: Usava um poncho de pano Que chegava ao tornozelo E um coxinilho bem concho Pra descansar o esqueleto; Eu quis passar a tormenta De fome e frio ao amparo Sem deixar dos meus aperos Nem argola ferrugenta.

As excelentes esporas,Meu rebenque com virolas, Rico facão, boas bolas, Peia e cabresto na mão. Deixei no meu cinturão Dez pesos de prata brancaPra juntar-me a qualquer bancavaivéns,Pois às cartas tenho apego, E presumo que no jogoA minha mão não é manca.Copas, correias, buçal, Estribos e cabeçadasCom nossas armas bordadas, Da grande Banda Oriental. Nunca mais vi sela igual Tão companheira e paquete Caramba! em cima do flete Aquilo era como um céu. Mas pra que me lembrar dele Se já foi pro beleléu?Montei um pingo de cincerro Como uma luz de ligeiro Eita, se prum entrevero Era coisa superior! Seu corpo dava calor E a ferragem que levava Como uma lua brilhava Ao sair detrás da lomba. Com orgulho, e não é broma, Em seu lombo eu montava.Dirá Hernández:Levei um mouro de número Sobresselente o diacho! Ganhei com ele em Ayacucho Mais prata do que água benta. O gaúcho sempre alentaUm pingo pra fiar-lhe um pueho.E avancei sem mais rodeios Com os trens que possuía; Xergas, poncho, o que havia Em minha casa apanhei. Minha china eu deixei Meio nua nesse dia.2OO2O1#DISCUSSÀO Não me faltava uma guasca; ou novembro de 1872,Nesse então juntei o resto: Buçal, loco e cabresto, Laço, bolas e maneia. Talvez do fato descreia Quem hoje me vê modesto! Diz Lussich: E há de sobrar monte ou serra Que em sua guarida me acolha, Pois onde a fera se acoita, Também o homem se encerra. Dirá Hernández: Assim que ao cair da noite Ia buscar minha guarida. Pois onde o tigre se acoita Também o homem pernoita, E nas casas não queria Que me cercasse a guerrilha. Percebe-se que, em outubro Hernández estava tout sonore encore dos versos que em junho do mesmo ano o amigo Lussich lhe dedicou. Vamos perceber também a concisão do estilo de Hernández, e

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sua ingenuidade voluntária. Quando Fierro enumera: Filhos, fazenda e consorte, ou exclama, depois de mencionar uns tentos:

Talvez do fato descreia Quem hoje me vê modesto!

sabe que os leitores urbanos não vão deixar de agradecer essas simplicidades. Lussich, mais espontâneo ou estouvado, nunca procede desse modo. Suas ansiedades literárias eram de outra ordem, e costumavam acabar em imitações das ternuras mais insidiosas do Fausto:A POESIA GAUCHESCAEu tive um nardo uma vezE o acariciava tantoQue seu puríssimo encanto Perdurou por mais de um mês.

Mas, ai! uma hora de olvido Secou até a última folha. Assim também se desfolha A ilusão de um bem perdido.

Na segunda parte, que é de 1873, essas imitações se alternam com outras fac-similares do Martín Fierro, como se Dom Antonio Lussich reclamasse o que era seu.São desnecessárias outras confrontações. Bastam as anteriores, creio, para justificar esta conclusão: os diálogos de Lussich são um rascunho do livro definitivo de Hernández. Um rascunho descomedido, lânguido, ocasional, mas útil e profético.

Chego agora à obra máxima: o Martín Fierro.Desconfio que não existe outro livro argentino que tenha sabido provocar na crítica um tal dispêndio de inutilidades. Três profusões teve o erro com nosso Martín Fierro: uma, as admirações condescendentes; outra, os elogios grosseiros, ilimitados; outra, a digressão histórica ou filológica. A primeira é a tradicional: seu protótipo está na incompetência benévola dos pequenos artigos de jornal e das cartas de leitores que usurpam o caderno da edição popular, e seus seguidores são insignes. Depreciadores inconscientes do que elogiam, nunca deixam de celebrar no Martín Fierro a falta de retórica: palavra que lhes serve para nomear a retórica deficiente - como se utilizassem arquitetura para significar a intempérie, os desmoronamentos e as demolições. Imaginam que um livro pode não pertencer às letras: o Martín Fierro lhes agrada contra a arte e contra a inteligência. Todo o resultado de seu trabalho cabe nestas linhas de Rojas: "Seria o mesmo que repudiar o arrulho da pomba por não ser um madrigal, ou a canção do vento, uma ode. Assün este pitoresco poema será considerado na rusticidade de sua forma e na ingenuidade de seu fundo como uma voz elementar da natureza".2O22O3#DISCUSSÃOA segunda - a do elogio hiperbólico - só realizou até hoje o sacrifício inútil de seus "precursores" e um nivelamento forçado com o Cantar del Cid e com a Comédia dantesca. Ao falar do coronel Ascasubi, discuti a primeira dessas atividades; da segunda, limito-me a referir que seu perseverante método é o de pesquisar versos de pé-quebrado ou ingratos nas epopéias antigas - como se as afinidades no erro fossem probatórias. Além disso, toda essa laboriosa manobra deriva de uma superstição: pressupor que determinados gêneros literários (neste caso particular, a epopéia) valem formalmente mais do que outros. A extravagante e inocente necessidade de que

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o Martín Fierro seja épico pretendeu reduzir, ainda que de modo simbólico, a história secular da pátria, com suas gerações, seus desterros, suas agonias, suas batalhas de Tucumán e de Ituzaingó, às andanças de um homem da faca de mil oitocentos e setenta. Oyuela(Antologia Poética Hispanoamericana, tomo terceiro, notas) já desbaratou esse complot. "O assunto do Martín Fierro", assinala, "não é propriamente nacional, muito menos de raça, nem se relaciona de modo algum com nossas origens como povo, nem como nação politicamente constituída. Trata-se nele das dolorosas vicissitudes da vida de um gaúcho, no último terço do século anterior, na época da decadência e próximo desaparecimento deste nosso tipo local e transitório, diante de uma organização social que o aniquila, contadas ou cantadas pelo próprio protagonista".A terceira distrai com melhores tentações. Afirma com erro sutil, por exemplo, que o Martín Fierro é uma apresentação do pampa. O fato é que para os homens da cidade o campo só pode ser apresentado como um descobrimento gradual, como uma série de experiências possíveis. É o procedimento dos romances de aprendizado pampiano, ThePurple Land (1885), de Hudson, e Don Segundo Sombra (1926),de Güiraldes, cujos protagonistas vão pouco a pouco se identificando com o campo. Não é o procedimento de Hernández, que pressupõe deliberadamente o pampa e os hábitos diários do pampa, sem nunca detalhá-los - omissão verossímil num gaúcho, que fala para outros gaúchos. Alguém poderá oporme estes versos, e os que os precedem:A POESIA GAUCHESCAEu conheci esta terraNa qual o campônio vivia E um ranchinho possuía, E seus filhos e mulher. Era uma delícia ver Como passava seus dias.

O tema, a meu ver, não é a miserável idade de ouro que poderíamos entrever; é a destituição do narrador, sua nostalgia presente.Rojas só deixa lugar no futuro para o estudo filológico do poema - vale dizer, para uma discussão melancólica sobre a palavra cantra ou contramilla, mais adequada à infinita duração do Inferno que ao tempo relativamente curto de nossa vida. Nesse particular, como em todos os outros, uma deliberada subordinação da cor local é típica de Martín Fierro. Comparado ao dos "precursores", seu léxico parece evitar os traços diferenciais da linguagem do campo, e solicitar o sermo plebeius comum. Lembro-me de que quando menino surpreendeu-me sua simplicidade, e que me pareceu mais de compadre crioulo do que de camponês. O Fausto era minha norma de fala rural. Agora - com algum conhecimento do campo - o predomínio do soberbo homem da faca de taberna sobre o camponês reservado e solícito me parece evidente, não tanto pelo léxicó empregado, mas pelas repetidas bravatas e o tom agressivo.Outro recurso para descurar o poema é oferecido pelos provérbios. Essas lástimas - como as qualifica definitivamente Lugones - foram consideradas, mais de uma vez, parte substantiva do livro. Inferir a ética do Martín Fierro não dos destinos que apresenta, mas dos mecânicos chocarreiros hereditários que estorvam seu decurso, ou das moralidades forâneas que aparecem no epílogo, é uma distração que só o respeito à tradição pode ter recomendado. Prefiro ver nessas prédicas meras verossimilhanças ou marcas do estilo direto. Acreditar em seu valor nominal é obrigar-se infinitamente à contradição. Assim, no canto sétimo de "La ida" encontramos esta copla que define plenamente o camponês:2O42O5#DISCUSSÃOLimpei o facão no pasto, Desatei meu redomão, Montei devagar, e fui No tranco pro canhadão.

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Não preciso restaurar a cena perdurável: o homem, resignado, acaba de matar alguém. O mesmo homem que depois quer nos servir esta moralidade:

O sangue que se derrama Não se esquece até a morte. A impressão é de tal sorte Que pra meu pesar, não nego, Cai como gotas de fogo Na alma de quem o verte.

A verdadeira ética do crioulo está no relato: a que presume que o sangue derramado não é muito memorável, e que aos homens ocorre matar. (O inglês conhece a locução kill his man, cuja versão direta é matar seu homem, entenda-se matar o homemque todo homem tem que matar.) Quem, em minha época, não carregava uma morte, ouvi um senhor de idade queixar-se serenamente uma tarde. Também não me esquecerei do homem do arrabalde que me disse, bem sério: "Senhor Borges, posso ter estado na prisão muitas vezes, mas sempre foi por homicídió".Assim aporto, por eliminação dos percalços tradicionais, a uma consideração direta do poema. Desde o verso decidido que o inaugura, quase todo ele está em primeira pessoa: considero este fato capital. Fierro conta sua história a partir da plena idade viril, tempo em que o homem é, não tempo dócil em que a vida está à sua procura. Isso nos ilude um pouco: não em vão somos leitores de Dickens, inventor da infância, e preferimos a morfologia dos personagens a sua maturidade. Gostaríamos de saber como se chega a ser Martín Fierro...Qual a intenção de Hernández? Contar a história de Martín Fierro, e nessa história, seu caráter. Servem de prova todos os episódios do livro. O qualquer tempo passado, normalmente melhor, do canto segundo, é a verdade do sentimento do herói, não da desolada vida das estâncias no tempo de Rosas. A robusta luta com o negro, no canto sétimo, não cor."~ POESIA GAUCHESCAresponde nem à sensação de lutar nem às momentâneas luzes e sombras que a memória de um fato rende, mas ao gaúcho Martín Fierro contando-a. (Na guitarra, como costumava cantá-la a meia voz Ricardo Güiraldes, o esporeio do acompanhamento sublinha bem sua intenção de triste coragem.) Tudo o corrobora: limito-me a destacar algumas estrofes. Começo por esta comunicação total de um destino:

Um italianinho preso Sempre falava de um barco E o afogaram num charco Como causador da peste. Tinha os olhos celestes Como um potrinho zarco.

Entre as muitas circunstâncias infelizes - atrocidade e inutilidade dessa morte, lembrança verossímil do barco, estranheza de que venha a se afogar no pampa quem atravessou ileso o mar -, a eficácia máxima da estrofe está nessa pósdata ou adição patética da lembrança: tinha os olhos celestes comoum potrinho zarco, tão significativa de quem imagina que uma coisa já está contada e à qual a memória restitui mais uma imagem.Também não é em vão que estas linhas assumem a primeira pessoa:

De joelhos a seu lado Encomendei-o a Jesus. Faltou aos meus olhos luz, Tive um terrível desmaio. Como por obra de um raio Caí ao ver morto o Cruz.

Quando viu Cruz morto, Fierro, por um pudor do desgosto, dá por consumado o falecimento do companheiro, finge tê-lo mostrado.Essa postulação de uma realidade me parece significativa de todo o livro. Seu tema - repito - não é a impossível apresentação de todos os fatos que atravessaram

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a consciência de um homem, tampouco a desfigurada, mínima parte que deles2O62O7#DISCUSSÃOa lembrança pode resgatar, mas a narração do camponês, o homem que se mostra ao contar. O projeto comporta assim uma dupla invenção: a dos episódios e a dos sentimentos do herói, estes últimos retrospectivos ou imediatos. Esse vaivém impede a elucidação de alguns detalhes: não sabemos, por exemplo, se a tentação de açoitar a mulher do negro assassinado é uma brutalidade de bêbado ou - talvez o preferíssemos - a vertigem do desespero, que essa perplexidade dos motivos torna mais real. Nesta discussão de episódios me interessa menos a imposição de uma determinada tese do que esta convicção central: a índole romanesca do Martín Fierro, até nos detalhes. Romance, romance de organização instintiva ou premeditada, é o Martín Fierro: única definição que pode transmitir pontualmente o tipo de prazer que nos dá e que condiz sem escândalo com sua época. Esta, para quem não sabe, é a do século romanesco por antonomásia: o de Dostoiévski, Zola, Butler, Flaubert, Dickens. Cito esses nomes evidentes, mas prefiro unir ao de nosso crioulo o de outro americano, na vida do qual também foram constantes o acaso e a lembrança: o íntimo, insuspeito Mark Twain de Huckleberry Finn.Eu falei de um romance. Serei lembrado que as epopéias antigas representam uma prefiguração do romance. Concordo, mas comparar o livro de Hernández a essa categoria primitiva é esgotar-se inutilmente num jogo de fingir coincidências, é denunciar toda possibilidade de análise. A legislação da épica - metros heróicos, intervenção dos deuses, destacada situação política dos heróis - não é aplicável aqui. As condições romanescas, sem dúvida o são.A PENÚLTIMA VERSÃO DA REALIDADEFrancisco Luis Bernárdez acaba de publicar uma apaixonada notícia das especulações antológicas do livro The Manhood of Humanity (A idade viril da humanidade), escrito pelo conde Korzybski: desconheço esse livro. Deverei ater-me, portanto, nesta apreciação geral dos produtos metafísicos desse conterrâneo, ao relato límpido de Bernárdez. Não tenho, é claro, a pretensão de substituir o bom funcionamento assertivo de sua prosa pela minha, dubitativa e conversada. Transcrevo o resumo inicial:"A vida tem três dimensões, segundo Korzybski. Comprimento, largura e profundidade. A primeira dimensão corresponde à vida vegetal. A segunda dimensão pertence à vida animal. A terceira dimensão equivale à vida humana. A vida dos vegetais é uma vida em longitude. A vida dos animais é uma vida em latitude. A vida dos homens é uma vida em profundidade".Creio que me é permitida, aqui, uma observação elementar; a de quão suspeita é uma sabedoria que se funda não sobre um pensamento, mas sobre uma mera comodidade classificatória, como o são as três dimensões convencionais. Escrevo convencionais porque - separadamente - nenhuma das dimensões existe: sempre há volumes, nunca superfícies, linhas ou pontos. Aqui, mais generoso no palavreado, propõe-nos um esclarecimento das três ordens convencionais do orgânico, planta-animal-homem, mediante as não menos convencionais ordens do espaço: comprimento-largura-profundidade (esta última no sentido figurado de tempo). Diante da incalculável e enigmática realidade, não acredito que a mera simetria de duas de suas classificações humanas baste para elucidá-la, e que supere um atrativo vazio aritmético. Segue a citação de Bernárdez:2O82O9#JJISCUSSgO

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"A vitalidade ve etal se define pela fome de Sol. A vitalidade animal, pelo apet~tdaseplantá°- Aquela é estática. Esta é dinãomica. O estilo vita tal do " criaturas diretas, é umapura quietude. O estilo vl s anlrrlais, criaturas indiretas, é um livre movimento. flua e"A diferença subst~n ntre a Vida vegetal e a vida animal reside numa noção. A noção de espaço. Enquanto as planirnais atas a ignoram, os a~ p°ssuem. Umas, afirma Korz bski, vivem armazenando ener ia, e os outros, amontoando espaço. Sobre aí~ divul axsst g pias, estáticas e erráticas, a existência humana rema ori ua originalidade superior. Em ue consiste esta ssp glndidade do homem? Em que próximo do vegetí~o~em ente óha energia e do animalque acumula espaço, o l . ica ão ura tempo".Essa ensaiada clas51f o da 1 rn~ria do mundo parece divergência ou emprésfl~ eneros sslficação quaternária de Rudolf Steiner. Este, m~ly g ° quanto a uma unidade com o universo, parte día tilde ~atalo oral, não da geometria, e vê no homem uma espécie der a go ou de resumo da vidanão humana. Faz corresy^On mera estadia inerte dos minerais à do homem morto,a fUte at e sileTlciosa das plantas à dohomem que dorme; a sol~(Á verdad~esquecidiça dos animaisà do homem que sonha- dáver a grosseira verdade, é que despedaçamos os ca das outreternos dos primeiros e aproveitamos a dormênola or e as para devorá-las ou até para roubar-lhes algum2 fl qUe rebaixamos o sonho dosúltimos a pesadelo. De um cavalo ocupamos seu único minuto - minuto sem saída,1171nuto do talhanho de uma formiga eue não se alon a em leltlbranças ou esperanças -, que encerramos entre os garais de rroceiror) p d~ sob o regime crioulo ou Santa Federação do c~ ome ono dessas três hieraruias é, se undo Steiner, ° ~ rn" que, além do mais, tem o u : vale dizer, a memória d° passado e a previsão do futuro, vale dizer, o tempo. Come v2óso~oanátribuição de únicos habitantes do tem o concedi~ía enS, de únicos seres previsores e históricos, não e original de korzybski. Sua implicação - também maravill"adde e fp a q~ie os animais estão na pura atualidade ou eterniaa hau r dv tempo tampouco o é.Steiner o demonstra; Schi"p chamado postula continuamentenesse tratado, com modéstia d~ capítulo, que está noA PENÚLTIMA VERSÃO DA REALIDADEsegundo volume do Mundo como Uontnde e Representação, e que versa sobre a morte. Mauthner (Woerterbueh der Philosophie, III, pág. 436) o propõe com ironia. "Parece", escreve ele, "que os animais não têm senão obscuros pressentimentos da sucessão temporal e da duração. Em compensação, o homem, quando além do mais é um psicólogo da nova escola, pode diferenciar no tempo duas impressões que estejam separadas por até 1/5OO de segundo". Gaspar Martín, que exerce a metafísica em Buenos Aires, declara essa intemporalidade dos animais e também das crianças como verdade consabida. Ele escreve: "A idéia de tempo falta aos animais e é no homem de avançada cultura que aparece em primeiro lugar" (El Tiempo, 1924). Seja de Schopenhauer ou de Mauthner ou da tradição teosófica, ou mesmo de Korzybski, a verdade é que essa visão da sucessiva e ordenadora consciência humana perante o efêmero universo é realmente grandiosa."

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O explanador prossegue: "O materialismo disse ao homem: Faz-te rico de espaço. E o homem se esqueceu de sua própria tarefa. Sua nobre tarefa de acumulador de tempo. Quero dizer que o homem se deu à conquista das coisas visíveis. À conquista de pessoas e territórios. Assim nasceu a falácia do progressismo. E, como brutal conseqüência, nasceu a sombra do progressismo. Nasceu o imperialismo."É preciso, pois, restituir à vida humana sua terceira dimensão. É necessário aprofundá-1a. É mister encaminhar a humanidade a seu destino racional e válido. Que o homem volte a capitalizar séculos em vez de capitalizar léguas. Que a vida humana seja mais intensa em lugar de ser mais extensa".Declaro não entender o que foi dito. Creio ser delusória a oposição entre os dois conceitos incontrastáveis de espaço e de tempo. Consta-me que a genealogia desse equívoco é ilustre e que entre seus ancestrais está o magistral nome de Spinoza, que deu a sua indiferente divindade - Deus sive Natura - os atributos de pensamento (vale dizer, de tempo sentido) e de extensão (vale dizer, de espaço). Penso que, para um bom idealismo, o espaço não passa de uma das formas que integram a densa fluência do tempo.

1 Seria preciso acrescentar o nome de Sëneca (Epístolas a Luctlio, 124).Z1O211#DISCUSSÃOA PENÚLTIMA VERSÃO DA REALIDADEE um dos episódios do tempo e, ao contrário do consenso natural dos metafísicos, está situado nele, e não vice-versa. Em outras palavras: a relação espacial - mais alto, esquerda, direita - é uma especificação como tantas outras, não uma continuidade.Além do mais, acumular espaço não é o contrário de acumular tempo: é um dos modos de realizar essa operação que nos parece única. Os ingleses, que por impulso ocasional ou genial do escrevente Clive ou de Warren Hastings conquistaram a Índia, não acumularam somente espaço, mas tempo: ou seja, experiências, experiências de noites, dias, descampados, montes, cidades, astúcias, heroísmos, traições, dores, destinos, mortes, pestes, feras, felicidades, ritos, cosmogonias, dialetos, deuses, venerações.Volto à consideração metafísica. O espaço é um incidente no tempo e não uma forma universal de intuição, como impôs Kant. Há províncias inteiras do Ser que não o solicitam: as do olfato e da audição. Spencer, em sua punitiva análise do raciocínio dos metafísicos (Princípios de Psicologia, parte sétima, capítulo quarto), argüiu bem essa independência e a corrobora, linhas depois, com esta redução ao absurdo: "Quem pensar que o cheiro e o som têm por forma de intuição Oespaço facilmente se convencerá de seu erro apenas buscando o lado esquerdo ou direito de úm som ou tentando imaginar um cheiro do avesso".Schopenhauer, menos extravagante e mais apaixonado, já havia declarado essa verdade. "A música", escreve ele, "é uma objetividade da vontade tão imediata quanto o universo" (obra citada, volume primeiro, livro terceiro, capítulo 52). Uma postulação de que a música não precisa do mundo.Quero complementar essas duas ilustres imaginações com uma de minha autoria, que delas deriva e as explicita. Imaginemos que todo o gênero humano só se abastecesse de realidades mediante a audição e o olfato. Imaginemos anuladas assim as percepções oculares, táteis e gustativas e o espaço que estas definem. Imaginemos também - seqüência lógica - uma percepção mais afinada do que a que os outros sentidos registram. A humanidade - a nosso ver tão assombrada por essa catástrofe - continuaria urdindo sua história. A humanidade se esqueceria de que houve espaço.

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A vida, em sua não opressiva cegueira, em sua incorporeidade, seria tão apaixonada e precisa quanto a nossa. Não quero dizer que essa humanidade hipotética (não menos plena de vontades, de ternuras, de imprevistos) entraria na casca de noz proverbial: afirmo que estaria fora e ausente de todo espaço.

1928212213#A SUPERSTICIOSA ÉTICA DO LEITORA SUPERSTICIOSA ÉTICA DO LEITORA condição indigente de nossas letras, sua incapacidade de atrair produziram uma superstição do estilo, uma distraída leitura de atenções parciais. Os que sofrem dessa superstição entendem por estilo não a eficácia ou ineficácia de uma página, mas as habilidades aparentes do escritor: suas comparações, sua acústica, os episódios de sua pontuação e de sua sintaxe. São indiferentes à própria convicção ou à própria emoção: buscam tecniquerías (a palavra é de Miguel de Unamuno) que lhes informarão se o escrito tem o direito ou não de agradar-lhes. Ouviram dizer que a adjetivação não deve ser trivial e vão considerar que uma página está mal escrita se não houver surpresas na junção de adjetivos com substantivos, embora sua finalidade geral esteja cumprida. Ouviram dizer que a concisão é uma virtude e consideram conciso quem se demora em dez frases breves e não quem domina uma longa. (Exemplos normativos dessa charlatanice da brevidade, desse frenesi sentencioso, podem ser encontrados na dicção do célebre estadista dinamarquês Polônio, de Hamlet, ou do Polônio natural, Baltasar Gracián) Ouviram dizer que a repetição próxima de algumas sílabas é cacofônica e fingirão que na prosa isso os incomoda, embora no verso lhes proporcione um gosto especial, penso que fingido, também. Ou seja, não percebem a eficácia do mecanismo, mas a disposição de suas partes. Subordinam a emoção à ética, ou, antes, a uma etiqueta incontestável. Generalizou-se tanto essa inibição que quase não restam mais leitores, no sentido ingênuo da palavra, mas todos são críticos potenciais.Essa superstição é tão aceita que ninguém se atreverá a admitir ausência de estilo em obras que o tocam, principalmente se forem clássicas. Não há livro bom sem seu atributo214estilístico, do qual ninguém pode prescindir - a não ser o próprio autor. Vejamos o exemplo do Quixote. A crítica espanhola, diante da comprovada excelência desse romance, não quis pensar que seu maior (e talvez único irrecusável) valor pudesse ser o psicológico, e lhe atribui dons de estilo que a muitos parecerão misteriosos. Na verdade, basta rever alguns parágrafos do Quixote para sentir que Cervantes não era estilista (ao menos na presente acepção acústico-decorativa da palavra) e que lhe interessavam sobremaneira os destinos de Quixote e Sancho para que se deixasse distrair por sua própria voz. A Agudeza y Arte de Ingenio de Baltasar Gracián - tão laudatória de outras prosas narrativas, como a do Guzmán de Alfarache - não se digna de lembrar Dom Quixote. Quevedo faz versos satíricos sobre sua morte e o esquece. Alguém poderá objetar que os dois exemplos são negativos; Leopoldo Lugones, em nosso tempo, emite um juízo explícito: "O estilo é a fraqueza de Cervantes, e os estragos causados por sua influência foram graves. Pobreza de cor, insegurança de estrutura, parágrafos ofegantes que nunca se resolvem, desenvolvendo-se em convólvulos intermináveis; repetições, falta de proporção, esse foi o legado dos que, não vendo senão na forma a suprema realização da obra imortal, ficaram roendo

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a casca cujas rugosidades escondiam a força e o sabor" (EI Imperio Jesuítico, pág. 59). Também nosso Groussac: "Se é para descrever as coisas como são, teremos de confessar que uma boa metade da obra tem a forma demasiadamente frouxa e desalinhada, o que é suficiente para justificar o humilde idioma que os rivais de Cervantes lhe imputavam. E com isto não me refiro única nem principalmente às impropriedades verbais, às intoleráveis repetições ou trocadilhos, nem aos trechos de pesada grandiloqüência que nos aborrecem, mas à contextura geralmente desmaiada dessa prosa de sobremesa" (Crítica Literaria, pág. 41). Prosa de sobremesa, prosa conversada e não declamada, é a de Cervantes, e outra não lhe faz falta. Imagino que essa minha observação deve ser justa no caso de Dostoiésvski ou de Montaigne ou de Samuel Butler.Esta fatuidade do estilo se enfatua em outra fatuidade mais patética, a da perfeição. Não há um escritor métrico, por mais casual e nulo que seja, que não tenha cinzelado (o verbo costuma figurar em sua conversa) seu soneto perfeito, monu215#DISCUSSÃOA SUPERSTICIOSA ÉTICA DO LEITORmento minúsculo que custodia sua possível imortalidade, e que as novidades e aniquilações do tempo deverão respeitar. Trata-se de um soneto sem rípios, geralmente, mas que é todo ele um rípio: ou seja, um resíduo, uma inutilidade. Essa falácia em perduração (Sir Thomas Browne: Urn Burial) foi formulada e recomendada por Flaubert nesta sentença: "A correção (no sentido mais elevado da palavra) faz com o pensamento o que fizeram as águas do Estige com o corpo de Aquiles: tornam-no invulnerável e indestrutível" (Correspondance, II, pág. 199). A sentença é categórica, mas não conheço nenhuma experiência que a confirme. (Dispenso as virtudes tônicas do Estige; essa reminiscência infernal não é um argumento, é uma ênfase.) A página de perfeição, a página na qual nenhuma palavra pode ser alterada sem prejuízo, é a mais precária de todas. As mudanças de linguagem apagam os sentidos laterais e os matizes; a página "perfeita" é a que é composta desses valores sutis, e a que com maior facilidade se desgasta. Inversamente, a página que tem vocação de imortalidade pode atravessar o fogo das erratas, das versões aproximativas, das leituras distraídas, das incompreensões, sem deixar a alma na prova. Não se pode mudar impunemente (é o que afirmam aqueles que trabalham no estabelecimento de seu texto) nenhuma das linhas fabricadas por Góngora; mas o Quixote ganha batalhas póstumas contra seus tradutores e sobrevive a toda versão descuidada. Heine, que nunca o ouviu em espanhol, pôde celebrá-lo para sempre. Mais vivo é o fantasma alemão ou escandinavo ou hindustânico do Quixote que os ansiosos artifícios verbais do estilista.Eu não gostaria que a moralidade desta comprovação fosse vista como de desespero ou niilismo. Não quero fomentar negligências nem creio numa virtude mística da frase tosca e do epíteto grosseiro. Afirmo que a emissão voluntária desses dois ou três agrados menores - distrações visuais da metáfora, auditivas do ritmo e imprevistas da interjeição ou do hipérbato - costuma nos provar que a paixão do tema tratado manda no escritor, e isso é tudo. A aspereza de uma frase é tão indiferente à genuína literatura quanto sua suavidade. A economia prosódica não é menos forasteira à arte que a caligrafia ou a ortografia ou a pontuação: certeza que as origens judiciais da retórica e musicais do canto sempre nos216esconderam. O equívoco preferido da literatura de hoje é a ênfase. Palavras definitivas, palavras que postulam sabedorias divinatórias ou angelicais ou resoluções de uma firmeza mais

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que humana - único, nunca, sempre, todo, perfeição, acabado - sãodo comércio habitual de todo escritor. Não pensam que dizer demais uma coisa é tão inábil quanto não dizê-la inteiramente, e que a descuidada generalização e intensificação é uma pobreza, e que assim a sente o leitor. Suas imprudências causam a depreciação do idioma. É o que acontece no francês, cuja locução Je Buis navré costuma significar Não irei tomar o chá com vocês, e cujo aimer foi rebaixado a gostar. Esse hábito hiperbólico do francês aparece também em sua linguagem escrita: Paul Valéry, herói da lucidez ordenadora, transcreve algumas esquecíveis e esquecidas linhas de La Fontaine, e afirma a seu respeito (contraalguém): "ces plus beaux vens du monde" (Variété, 84).Agora quero lembrar-me do futuro, não do passado. Já se pratica a leitura em silêncio, sintoma venturoso. Já existe leitor calado de versos. Dessa capacidade sigilosa a uma escritura puramente ideográfica - comunicação direta de experiências, não de sons - há uma distância incansável, mas sempre menos extensa que o futuro.Releio estas negações e penso: ignoro se a música sabe desesperar da música e o mármore do mármore, mas a literatura é uma arte que sabe profetizar aquele tempo em que já terá emudecido, e encarniçar-se com a própria virtude e enamorar-se da própria dissolução e cortejar seu fim.

193O217#O OUTRO WHITMANQuando o remoto compilador do Zohar teve que arriscar alguma notícia de seu indistinto Deus - divindade tão pura que nem mesmo o atributo de ser pode ser aplicado a ele sem blasfêmia - imaginou um modo prodigioso de fazê-lo. Escreveu que seu rosto era trezentas e setenta vezes maior que dez mil mundos; entendeu que o gigantesco pode ser uma forma do invisível, e mesmo do abstrato. Esse é o caso de Whitman. Sua força é tão avassaladora e tão evidente que só percebemos que é forte.A culpa não é, essencialmente, de ninguém. Nós, homens das diversas Américas, permanecemos tão incomunicados que nos conhecemos apenas por referência, contados pela Europa. Em tais casos, a Europa costuma ser sinédoque de Paris. A Paris interessa menos a arte que a política da arte: veja-se a tradição corrilheira de sua literatura e de sua pintura, sempre dirigidas por comitês e com seus dialetos políticos: um, parlamentar, que fala de esquerdas e direitas; outro, militar, que fala de vanguardas e retaguardas. Para ser mais exato: interessa-lhes a economia da arte, não seus resultados. A economia dos versos de Whitman lhes foi tão inaudita que não conheceram Whitman. Preferiram classificá-lo: louvaram sua licence majestueuse, tornaram-no precursor dos muitos inventores caseiros do verso livre. Além disso, remedaram a parte mais vulnerável de sua dicção: as complacentes enumerações geográficas, históricas e circunstanciais que Whitman alinhou para realizar certa profecia de Emerson sobre o poeta digno da América. Esses remedos ou lembranças foram o futurismo, o unanimismo. Foram e são toda a poesia francesa de nosso"tempo, com exceção da que deriva de Poe. (Da boa teoria de Poe, quero dizer, não de sua deficienteprática.) Muitos nem sequer perceberam que a enumeração é um dos procedimentos poéticos mais antigos - recordem-se os Salmos da Escritura e o primeiro coro d"Os Persas e o catálogo homérico das naves - e que seu mérito essencial não é a extensão, mas o delicado ajuste verbal, as "simpatias e diferenças" das palavras. Walt Whitman não o ignorou:

And of the threads that connect the stars and of wombs and of

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the father-stu f f.From what the divine husband knows, from the work of fatherhood.

Ou:

Iam as one disembodied, triumphant, dead.

O assombro, contudo, lavrou uma imagem falsa de Whitman: a de um homem meramente laudatório e mundial, um insistente Hugo imposto desconsideradamente aos homens à força de repetição. Não nego que Whitman foi essa infelicidade em grande número de suas páginas, limito-me a demonstrar que em outras, melhores, foi poeta de um laconismo trêmulo e suficiente, homem de destino comunicado, não proclamado. Para isso, nada melhor do que traduzir alguns de seus poemas:

ONCE I PASSED THROUGH A POPULOUS CITY

Certa vez passei por uma cidade populosa, guardando na mente,para uso futuro, seus espetáculos, sua arquitetura, seus hábitos,suas tradições.Agora de toda essa cidade me lembro apenas da mulher que encontreipor acaso, que me demorou por amor.Dia após dia, noite após noite estivemos juntos - e de todo o resto hátempos me esqueci.Lembro-me apenas dessa mulher que apaixonadamente se apegoua mim.218219#DISCUSSÃOO OUTRO WHITMANOutra vez caminhamos, nos amamos, outra vez nos deixamos. Outra vez ela me leva pela mão, não preciso partir. E a vejo a meu lado com os lábios quietos, triste e estremecida.

WHEN I READ THE BOOK

Enquanto eu lia o livro, a famosa biografia,Então é isso (eu disse) o que o autor chama a vida de um homem.E é assim que alguém vai escrever sobre mim quando eu estivermorto?(Como se alguém pudesse saber alguma coisa de minha vida;Eu mesmo costumo pensar que pouco ou nada sei de minha verdadeira vida.Só alguns traços, alguns sinais desmaiados e indíciosQue tento, para minha própria informação, resolver aqui.)

WHEN I HEARD THE LEARNED ASTRONOMER

Quando ouvi o douto astrônomo

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Quando me apresentaram em colunas as provas, os algarismos, Quando me mostraram os mapas e os diagramas, para medir, dividir e somar,Quando de meu lugar ouvi o douto astrônomo dissertando em sua cátedra, muito aplaudido,Senti-me inexplicavelmente atordoado e aborrecido, Até que me esgueirei e me afastei sozinhoNo ar úmido e místico da noite, e de tempos em tempos Em silêncio perfeito eu olhei as estrelas.

Assim é Walt Whitman. Não sei se é excessivo indicar - acabo de perceber - que essas três confissões possuem um tema idêntico: a peculiar poesia da arbitrariedade e da privação. Simplificação final da lembrança, impenetrabilidade e pudor de nossa existência, negação dos esquemas intelectuais e apreço pelas notícias primárias dos sentidos são as respectivas moralidades desses poemas. É como se Whitman dissesse: Inesperado e elusivo é o mundo, mas sua própria contingência é uma riqueza, já que não podemosnem mesmo determinar a que ponto somos pobres, pois tudo é dádiva. Uma lição da mística da parcimônia, proveniente da América do Norte?Uma última sugestão. Estou pensando que Whitman - homem de infinitas invenções, simplificado pela visão alheia como mero gigante - é um abreviado símbolo de sua pátria. A história mágica das árvores que encobrem o bosque pode servir, invertida magicamente, para esclarecer minha intenção. Porque houve certa vez uma selva tão infinita que ninguém se lembrou de que era feita de árvores; porque entre dois mares há uma nação de homens tão forte que ninguém costuma lembrar que é de homens. De homens de humana condição.

192922O221#UMw VtrJ~tcnção ~a CnaatiaUMA VINDICAÇÃO DA CABALANão é esta a primeira vez que se empreende nem será a última que falha, mas dois fatos a distinguem. Um é minha inocência quase total do hebraico; outro é a circunstância de que não quero vindicar a doutrina, mas os procedimentos hermenêuticos ou criptográficos que a ela conduzem. Esses procedimentos, como se sabe, são a leitura vertical dos textos sagrados, a leitura chamada bouestrophedon (uma linha da direita para a esquerda, da esquerda para a direita a seguinte), metódica substituição de umas letras do alfabeto por outras, a soma do valor numérico das letras, etc. Zombar de tais operações é fácil, prefiro procurar entendê-las.É evidente que sua causa remota é o conceito da inspiração mecânica da Bíblia. Esse conceito, que faz de evangelistas e profetas secretários impessoais de Deus que escrevem o que lhes ditam, aparece com imprudente energia na Formula consensus helvetica, que reclama autoridade para as consoantes da Escritura e até para os sinais diacríticos - que as versões primitivas não conheceram. (Esse preciso cumprimento no homem dos propósitos literários de Deus é a inspiração ou entusiasmo: palavra cujo sentido exato é endeusamento.) Os islamitas podem se gabar de exceder essa hipérbole, pois resolveram que o original do Alcorão - a mãe do Livro - é um dos atributos de Deus, com Sua misericórdia ou Sua ira, e o julgam anterior ao idioma, à Criação. Também há teólogos luteranos que não ousam englobar a Escritura entre as coisas criadas e a definem como uma encarnação do Espírito.Do Espírito: já nos espreita um mistério. Não a divindade geral, mas a hipóstase terceira da divindade foi quem ditou a Bíblia. É a opinião corrente; Bacon, em 1625, escreveu: "O lápis do Espírito Santo demorou-se mais nas aflições de Jó que nas

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venturas de Salomão"." Também seu contemporâneo John Donne: "O Espírito Santo é um escritor eloqüente, um veemente e copioso escritor, mas não um tagarela; tão distante de um estilo indigente quanto de um supérfluo".Impossível definir o Espírito e silenciar a horrenda sociedade trinitária e una da qual faz parte. Os católicos laicos a consideram um corpo colegiado infinitamente correto, mas também infinitamente entediado; os liberais, um vão Cérbero teológico, uma superstição que os muitos avanços do século vão se encarregar de abolir. A trindade, é claro, supera essas fórmulas. Imaginada repentinamente, sua concepção de um pai, um filho e um espectro, articulados num só organismo, parece um caso de teratologia intelectual, uma deformação que só o horror de um pesadelo pode ter parido. É o que penso, mas tento considerar que todo objeto cujo fim ignoramos é provisoriamente monstruoso. Essa observação geral se vê agravada aqui pelo mistério profissional do objeto.Desligada do conceito de redenção, a distinção das três pessoas em uma só pode parecer arbitrária. Considerada necessidade da fé, seu mistério fundamental não diminui, mas sua intenção e seu emprego despontam. Entendemos que renunciar à Trindade - à Dualidade, pelo menos - é fazer de Jesus um delegado ocasional do Senhor, um incidente da história, não o auditor imorredouro, contínuo, de nossa devoção. Se o Filho não é também o Pai, a redenção não é obra divina direta; se não é eterno, tampouco o será o sacrifício de ter-se rebaixado a homem e ter morrido na cruz. "Só uma infinita excelência poderia ser satisfatória para uma alma perdida por infinitas eras", instou Jeremy Taylor. Assim o dogma pode se justificar, embora os conceitos da geração do Filho pelo Pai e da procissão do Espírito pelos dois insinuem hereticamente uma prioridade, sem contar sua culpada condição de meras metáforas. A teologia, empenhada em diferenciá-las, resolve que não há motivo de confusão, posto que o resultado de uma é o Filho, o da outra o Espírito. Geração eterna do Filho, procissão eterna do Espírito, é a soberba decisão de Ireneu: invenção de um ato sem tempo, de um mutilado zeit1 Sigo a versão latina: "diffusius tractavít Jobi afflictiones". Em inglês, com mais acerto, ele escreveu harth laboured more.222223#DISCUSSÃOUnia VtNOtcAção ~n CABALAToses Zeitwort, que podemos rejeitar ou venerar, mas não discutir. O inferno é mera violência física, mas as três inextricáveis pessoas implicam um horror intelectual, uma infinitude sufocada, especiosa, como de espelhos contrários. Dante quis figurá-Tas com o signo de uma reverberação de círculos diáfanos, de várias cores; Donne, com enleadas serpentes, ricas e indissolúveis. "Toto coruscat trinitas mysterio"; escreveu São Paulino; "Fulge em pleno mistério a trindade".Se o Filho é a reconciliação de Deus com o mundo, o Espírito - princípio da santificação, segundo Atanásio; um anjo entre os outros, para Macedônio - não pode receber melhor definição que a de ser a intimidade de Deus conosco, sua imanência em nosso coração. (Para os socinianos - receio que com suficiente razão - não passava de uma locução personificada,uma metáfora das operações divinas, trabalhada depois até a vertigem.) Mera formação sintática ou não, a verdade é que a terceira pessoa cega da enredada trindade é o reconhecido autor das Escrituras. Gibbon, naquele capítulo de sua obra que trata do Islã, incluiu um censo geral das publicações do Espírito Santo, calculadas com certa timidez em cento e tanto; mas a que me interessa agora é o Gênese: matéria da Cabala.

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Os cabalistas, como agora muitos cristãos, acreditavam na divindade dessa história, em sua deliberada redação por uma inteligência infinita. As conseqüências desse postulado são muitas. A distraída execução de um texto corrente - verbi gratia, das menções efêmeras do jornalismo - tolera uma quantidade sensível de acaso. Comunicam - postulando-o - um fato: informam que o sempre irregular assalto de ontem ocorreu em tal rua, tal esquina, a tal hora da manhã, receita não representável por ninguém e que se limita a nos apontar o lugar Tal, onde as informações são fornecidas. Em indicações como essa, a extensão e a acústica dos parágrafos são necessariamente casuais. O contrário ocorre nos versos, cuja lei ordinária é a sujeição do sentido às necessidades (ou superstições) eufônicas. O casual neles não é o som, é o que significam. Assim no primeiro Tennyson, em Verlaine, no último Swinburne: dedicados apenas à expressão de estados gerais, mediante as ricas aventuras de sua prosódia. Consideremos um terceiro escritor, o intelectual. Este, seja no domínio da prosa (Valéry, De Quincey), seja no do verso, cer224tamente não aboliu o acaso, mas o evitou, na medida do possível, e restringiu sua aliança incalculável. Aproxima-se remotamente do Senhor, para Quem o vago conceito de acaso não tem nenhum sentido. Do Senhor, do aperfeiçoado Deus dos teólogos, que conhece de uma vez - uno intelligenti actu - não só todos os fatos deste mundo repleto, mas os que teriam lugar se o mais evanescente deles mudasse - os impossíveis, também.Imaginemos agora essa inteligência estelar, dedicada a manifestar-se não em dinastias nem em aniquilações nem em pássaros, mas em vozes escritas. Imaginemos, também, de acordo com a teoria pré-agostiniana de inspiração verbal, que Deus dita, palavra por palavra, o que se propõe dizer.z Essa premissa (que foi a que os cabalistas assumiram) faz da Escritura um texto absoluto, em que a colaboração do acaso se reduz a zero. Só a concepção desse documento já é um prodígio superior a todos os registrados em suas páginas. Um livro impenetrável à contingência, um mecanismo de propósitos infinitos, de variações infalíveis, de revelações que espreitam, de superposições de luz, como não interrogá-lo até o absurdo, até a prolixidade numérica, como fez a Cabala?

19312 Orígenes atribuiu três sentidos às palavras da Escritura: o histórico, o moral e o místico, correspondentes ao corpo, à alma e ao espírito que integram o homem; João Escoto Erígena, um infinito de sentidos, como as cores cambiantes da plumagem do pavão.225#UMA VINDICAÇÃO DO FALSO BASILIDESEm 19O5, eu sabia que as páginas oniscientes (de A a All) do primeiro volume do Diccionario Enciclopédico Hispanoamericano, de Montaner y Simón, incluíam um breve e alarmante desenho de uma espécie de rei, com perfilada cabeça de galo, torso viril com braços abertos que comandavam um escudo e um látego, e o resto era uma simples cauda enroscada que lhe servia de tronco. Por volta de 1916, li esta obscura enumeração de Quevedo: "Lá estava o maldito Basilides heresiarca. Estava Nicolau da Antióquia, Carpócrates e Cerinto e o infame Ébion. Depois veio Valentim, o que considerou como princípio de tudo o mar e o silêncio". Por volta de 1923, percorri em Genebra não sei que livro heresiológico em alemão, e soube que o aziago desenho representava certo deus miscelâneo, que o próprio Basilides havia horrivelmente venerado. Soube também quão desesperados e admiráveis foram os gnósticos, e conheci suas ardentes especulações. Mais tarde pude interrogar os livros especiais de

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Mead (na versão alemã: Fragmente Bines verschollenen Glaubens, 19O2) e de Wolfgang Schultz (Dokumente der Gnosis, 191O) e os artigos de Wilhelm Bousset na Encyclopaedia Britannica. Hoje me propus resumir e ilustrar uma de suas cosmogonias: a de Basilides heresiarca, precisamente. Sigo passo a passo a notificação de Ireneu. Consta-me que muitos a invalidam, mas suspeito que essa desordenada revisão de sonhos defuntos pode admitir também a de um sonho que não sabemos se habitou algum sonhador. A heresia basilidiana, por outro lado, é a de configuração mais simples. Ele nasceu em Alexandria, dizem que aos cem anos da crucificação, dizem que entre os sírios e os gregos. A teologia, na época, era uma paixão popular.No princípio da cosmogonia de Basilides há um Deus. Esta divindade carece majestosamente de nome, bem como de origem; daí sua aproximada nominação de pater innatus. SeuUMA VINDICAÇÃO DO FALSO BASILIDESmeio é o pleroma ou a plenitude: o inconcebível museu dos arquétipos platônicos, das essências inteligíveis, dos universais. É um Deus imutável, mas de seu repouso emanaram sete divindades subalternas que, condescendendo à ação, dotaram e presidiram um primeiro céu. Desta primeira coroa demiúrgica derivou uma segunda, também com anjos, potestades e tronos, e estes fundaram outro céu mais baixo, que era o duplo simétrico do inicial. Este segundo conclave viu-se reproduzido num terceiro, e este em outro inferior, e assim até 365. O senhor do céu do fundo é o da Escritura, e sua fração de divindade tende ao zero. Ele e seus anjos fundaram esse céu visível, moldaram a terra imaterial que estamos pisando e depois a repartiram. O razoável esquecimento apagou as fábulas precisas que esta cosmogonia atribuiu à origem do homem, mas o exemplo de outras imaginações coetâneas nos permite remediar essa omissão, ainda que de forma vaga e conjeturai. No fragmento publicado por Hilgenfeld, a treva e a luz sempre haviam coexistido, ignorando-se, e quando finalmente se viram, a luz só olhou de relance e se desviou, mas a escuridão enamorada se apoderou de seu reflexo ou lembrança, e esse foi o princípio do homem. No análogo sistema de Satornil, o céu revela aos anjos operários uma momentânea visão, e o homem é fabricado à sua imagem, mas se arrasta pelo chão como víbora, até que o piedoso Senhor lhe transmite uma centelha de seu poder. A essas narrações é o traço comum o que importa: nossa temerária ou culpada improvisação por uma divindade deficiente, com material ingrato. Volto à história de Basilides. Removida pelos anjos onerosos do deus hebreu, a baixa humanidade mereceu a piedade do Deus intemporal, que lhe destinou um redentor. Este devia assumir um corpo ilusório, pois a carne degrada. Seu fantasma impassível ficou publicamente suspenso na cruz, mas o Cristo essencial atravessou os céus superpostos e foi restituído ao pleroma. Atravessou-os ileso, pois conhecia o nome secreto de suas divindades. "E os que sabem a verdade desta história", conclui a profissão de fé referida por Ireneu, "vão saber que estão livres do poder dos príncipes que edificaram este mundo. Cada céu tem seu próprio nome e também cada anjo e senhor e cada potestade desse céu. Quem souber seus nomes incomparáveis os atravessará invisível e seguro, como o redentor. E como o Filho não foi reconhecido por ninguém, tampouco o será o gnóstico. E estes mistérios não deverão ser pronunciados, mas guardados em silêncio. Conhece a todos, que ninguém te conheça".226227#DISCUSSÀOUMA VINDICAÇÃO DO FALSO BASILIDES

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A cosmogonia numérica do princípio degenerou no fim em magia numérica, 365 andares de céu, a sete potestades por céu, requerem a improvável retenção de 2.555 amuletos orais: idioma que os anos reduziram ao precioso nome do redentor, que é Caulacau, e ao do imóvel Deus, que é Abraxas. A salvação, para esta desenganada heresia, é um esforço mnemotécnico dos mortos, assim como o tormento do salvador é uma ilusão ótica - dois simulacros que misteriosamente condizem com a precária realidade de seu mundo.Zombar da vã multiplicação de anjos nominais e de refletidos céus simétricos dessa cosmogonia não é totalmente difícil. O princípio taxativo de Ockham: "Entia non sunt multiplicanda praeter necessitatem", poderia ser-lhe aplicado - arrasando-a. De minha parte, considero anacrônico ou inútil esse rigor. A boa conversão desses pesados símbolos vacilantes é o que importa. Vejo neles duas intenções: a primeira é um lugar-comum da crítica; a segunda - que não pretendo erigirem descoberta - não foi destacada até hoje. Começo pela mais ostensiva, que é a de resolver sem escândalo o problema do mal, mediante a hipotética inserção de uma série gradual de divindades entre o não menos hipotético Deus e a realidade. No sistema analisado, essas derivações de Deus decrescem e se abatem à medida que vão se afastando, até fundear nos abomináveis poderes que rabiscaram os homens com material adverso. No de Valentim - que não considerou como princípio de tudo o mar e o silêncio -,uma deusa caída (Achamoth) tem com uma sombra dois filhos, que são Ofundador do mundo e o diabo. A Simão, o Mago é atribuída uma exacerbação dessa história: o resgate de Helena de Tróia, antes filha primeira de Deus e depois condenada pelos anjos a transmigrações dolorosas, de um bordel de marinheiros em Tiro." Os trinta e três anos humanos de Jesus Cristo e seu anoitecer na cruz não eram expiação suficiente para os duros gnósticos.Falta considerar o outro sentido dessas invenções obscuras. A vertiginosa torre de céus da heresia basilidiana, a proliferação de seus anjos, a sombra planetária dos demiurgos transtornando a terra, a maquinação dos círculos inferiores contra o pleroma,1 Helena, filha dolorosa de Deus. Essa filiação divina não esgota as semelhanças de sua lenda com a de Jesus Cristo. A este, os discípulos de Basilides outorgaram um corpo insubstancial; da trágica rainha, pretendeu-se que apenas seu eídolon ou simulacro fosse levado de Tróia. Um belo espectro nos redimiu; outro fez carreira em batalhas e em Homero. Ver, para este docetismo de Helena, o Fedro de Platão e o livro Adventures among Books, de Andrew Lang, págs. 237-248.a densa população, ainda que inconcebível ou nominal, dessa vasta mitologia, visam também a diminuição deste mundo. O que nelas se prega não é nosso mal, mas nossa central insignificância. Como nos caudalosos poentes da planície, o céu é apaixonado e monumental e a terra é pobre. Essa é a justificadora intenção da cosmogonia melodramática de Valentim, que desfia um infinito argumento de dois irmãos sobrenaturais que se reconhecem, de uma mulher caída, de uma ilusória intriga poderosa dos anjos maus e de um casamento final. Nesse melodrama ou folhetim, a criação deste mundo é um mero aparte. Admirável idéia: o mundo imaginado como processo essencialmente fútil, como reflexo lateral e perdido de velhos episódios celestes. A criação como fato casual.O projeto foi heróico; o sentimento religioso ortodoxo e a teologia repudiam essa possibilidade com escândalo. A criação primeira, para eles, é ato livre e necessário de Deus. O universo, conforme dá a entender Santo Agostinho, não começou no tempo, mas simultaneamente com ele - juízo que nega toda prioridade do Criador. Strauss dá por ilusória a hipótese de um momento inicial, pois este contaminaria de temporalidade não apenas os instantes ulteriores, mas também a eternidade "precedente".

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Durante os primeiros séculos de nossa era, os gnósticos disputaram com os cristãos. Foram aniquilados, mas não podemos representar sua vitória possível. Se Alexandria, e não Roma, tivesse vencido, as estranhas e sombrias histórias que compendiei aqui seriam coerentes, majestosas e cotidianas. Frases como a de Novalis: "A vida é uma doença do espírito"; ou a de Rimbaud, desesperada: "A verdadeira vida está ausente; não estamos no mundo", fulgurariam nos livros canônicos. Especulações como a (renegada) de Richter sobre a origem estelar da vida e sua casual disseminação neste planeta conheceriam o assentimento incondicional dos laboratórios piedosos. Em todo caso, que melhor dom podemos esperar que o de sermos insignificantes, que maior glória para um Deus que a de ser absolvido do mundo?19312 Esse ditame - Lehen ist eive Krankheít des Geistes, ein leidensehaftliches Tun - deve sua difusão a Carlyle, que o destacou em seu famoso artigo da Foreign Review, 1829. Não são coincidências momentâneas, mas uma redescoberta essencial das agoniase das luzes do gnosticismo, a dos Livros Proféticos de William Blake.22s229#A POSTULAÇÀO DA REALIDADEA POSTULAÇÃO DA REALIDADEHume observou definitivamente que os argumentos de Berkeley não admitem a menor réplica e não produzem a menor convicção; eu gostaria, para eliminar os de Croce, de uma sentença não menos educada e mortal. A de Hume não me serve, porque a diáfana doutrina de Croce tem a faculdade de persuadir, embora esta seja a única. Seu defeito é ser impraticável; serve para acabar com uma discussão, não para resolvê-la.Sua fórmula - meu leitor vai se lembrar - é a identidade do estético e do expressivo. Não a renego, mas quero observar que os escritores de hábito clássico costumam evitar a expressividade. O fato não foi considerado até agora; explico-me.O romântico, em geral com pobre fortuna, quer incessantemente expressar; o clássico raramente prescinde de uma petição de princípios. Destituo aqui de toda conotação histórica as palavras clássico e romântico; entendo-as como dois arquétipos de escritor (dois procedimentos). O clássico não desconfia da linguagem, acredita na suficiente virtude de cada um de seus signos. Escreve, por exemplo: "Depois da partida dos godos e da separação do exército aliado, Átila ficou maravilhado com o vasto silêncio que reinava sobre os campos de Châlons: a suspeita de um estratagema hostil deteve-o por alguns dias dentro do círculo de suas carruagens, e sua retirada do Reno marcou a última vitória alcançada em nome do império ocidental. Meroveu e seus francos, observando uma distância prudente e aumentando seu suposto número com os muitos fogos que acendiam a cada noite, seguiram na retaguarda dos hunos até os confins da Turíngia. Os turíngios militavam nas forças de Átila:cruzaram, no avanço e na retirada, os territórios dos francos; talvez nesta ocasião tenham cometido as atrocidades que foram vingadas, uns oitenta anos depois, pelo filho de Clóvis. Degolaram seus reféns: duzentas donzelas foram torturadas com implacável e raro furor; seus corpos foram esquartejados por cavalos indômitos e seus ossos esmagados sob as rodas das carruagens e tiveram seus membros insepultos abandonados pelos caminhos, como presa para cães e abutres". (Gibbon, Decline and Fall of the RomanEmpire, XXXV.) Basta o inciso Depois da partida dos godos paraperceber o caráter mediato desta escrita, generalizante e abstrata até a invisibilidade. O autór nos propõe um jogo de símbolos, rigorosamente organizados, sem dúvida,

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mas cuja eventual animação fica a nosso cargo. Não é realmente expressivo: limita-se a registrar uma realidade, não a representá-la. Os ricos fatos, a cuja póstuma alusão nos convida, implicaram pesadas experiências, percepções, reações; estas podem ser inferidas de seu relato, mas não estão nele. Para ser mais exato: ele não escreve os primeiros contatos da realidade, mas sua elaboração final em conceito. É o método clássico, sempre observado por Voltaire, por Swift, por Cervantes. Transcrevo um segundo parágrafo, já quase abusivo, deste último: "Finalmente a Lotário pareceu mister, no espaço e lugar proporcionado pela ausência de Anselmo, apertar o cerco àquela fortaleza, e atacou, pois, sua presunção com elogios de sua formosura, porque não há outra coisa que mais rápido renda e domine as encasteladas torres da vaidade das belas que a própria vaidade posta na língua da adulação. De fato, ele com toda diligência minou a rocha de sua integridade com essa munição, e ainda que Camila fosse toda de bronze, viria ao chão. Chorou, rogou, ofereceu, adulou, porfiou e fingiu Lotário com tanto sentimento, com mostras de todas as veras, que deitou por terra o recato de Camila, e alcançou o mais inesperado e mais desejado triunfo". (Quixote, I, capítulo 34.)Passagens como as anteriores formam a grande maioria da literatura mundial, mesmo da menos indigna. Rejeitá-las para não perturbar uma fórmula seria inoportuno e prejudicial. Em sua notória ineficácia, são eficazes; falta resolver essa contradição.23O231#DISCUSSÃOA POSTULAÇÃO DA REALIDADEEu aconselharia esta hipótese: a imprecisão é tolerável ou verossímil na literatura, porque sempre tendemos a ela na realidade. A simplificação conceituai de estados complexos é muitas vezes uma operação instantânea. O próprio fato de perceber, de levar em conta, é de ordem seletiva: toda atenção, toda fixação de nossa consciência, comporta uma omissão deliberada do não interessante. Vemos e ouvimos por meio de lembranças, de temores, de previsões. No corporal, a inconsciência é necessidade dos atos físicos. Nosso corpo sabe articular esse difícil parágrafo, sabe lidar com escadas, com nós, com passagens de nível, com cidades, com rios correntosos, com cães, sabe atravessar uma rua sem que o trânsito nos aniquile, sabe engendrar, sabe respirar, sabe dormir, sabe, talvez, matar: nosso corpo, não nossa inteligência. Nosso viver é uma série de adaptações, vale dizer, uma educação do esquecimento. É admirável que a primeira notícia que Thomas Moore nos dá sobre Utopia seja sua perplexa ignorância da "verdadeira" extensão de uma de suas pontes...Releio, para melhor exame do clássico, o parágrafo de Gibbon, e me deparo com uma quase imperceptível e certamente inócua metáfora, a do reinado do silêncio. E um projeto de expressão - ignoro se frustrado ou feliz - que não parece condizer com o estrito desempenho legal do resto de sua prosa. Naturalmente, ela se justifica por sua invisibilidade, sua índole já convencional. Seu emprego nos permite definir outra marca do classicismo: a crença de que uma vez forjada uma imagem, esta constitui um bem público. Para o conceito clássico, a pluralidade dos homens e dos tempos é acessória, a literatura é sempre uma só. Os surpreendentes defensores de Góngora o justificavam da acusação de inovar - mediante a prova documental da boa ascendência erudita de suas metáforas. Nem chegavam a pressentir o achado romântico da personalidade. Agora, estamos tão concentrados nele que o fato de negá-lo ou negligenciá-lo é apenas uma entre tantas aptidões para "ser pessoal". Quanto à tese de que a linguagem poética deve ser una, cabe apontar sua evanescente ressurreição por parte de Arnold, que propôs reduzir o vocabulário dos tradutores homéricos

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ao da Authorized Uersion da Escritura, sem outro alívio que a intercalação eventual de algumasliberdades de Shakespeare. Seu argumento era o poderio e a difusão das palavras bíblicas...A realidade que os escritores clássicos propõem é questão de confiança, como a paternidade para certo personagem dos Lehrjahre. A que os românticos procuram esgotar é, antes, de caráter impositivo: seu método contínuo é a ênfase, a mentira parcial. Não inquiro ilustrações: todas as páginas de prosa ou de verso que são profissionalmente atuais podem ser questionadas com sucesso.A postulação clássica da realidade pode assumir três modos, muito diversamente acessíveis. O de trato mais fácil consiste numa notificação geral dos fatos que interessam. (Salvo certas alegorias incômodas, o supracitado texto de Cervantes não é mau exemplo desse modo primeiro e espontâneo dos procedimentos clássicos.) O segundo consiste em imaginar uma realidade mais complexa que a declarada ao leitor e referir suas derivações e efeitos. Não conheço melhor ilustração que a abertura do fragmento heróico de Tennyson, Mort d"Arthur, que reproduzo em desentoada prosa, pelo interesse de sua técnica. Verto literalmente: "Assim, durante todo o dia, o ruído bélico retumbou nas montanhas, junto ao mar invernal, até que a távola do rei Arthur, homem por homem, tombou em Lyonness ao redor de seu senhor, o rei Arthur: então, porque seu ferimento era profundo, o intrépido Sir Bediver o levantou, Sir Bediver, o último de seus cavaleiros, e o levou para uma capela perto do campo, um presbitério quebrado, com uma cruz quebrada, que ficava num sombrio braço de terreno árido. De um lado jazia o Oceano; do outro, uma grande água, e a lua era cheia". Três vezes essa narração postulou uma realidade mais complexa: a primeira, mediante o artifício gramatical do advérbio assim; a segunda e melhor, mediante o modo incidental de transmitir um fato: porque seu ferimento era profundo; a terceira, mediante a inesperada adição de e a lua era cheia. Outra eficaz ilustração desse método é proporcionada por Morris, que depois de relatar o mítico rapto de um dos remeiros de Jasão pelas ligeiras divindades de um rio, fecha a história deste modo: "A água ocultou as ninfas enrubescidas e o despreocupado homem adormecido. No entanto, antes que a água os engolisse, uma232233#DISCUSSÃOdelas atravessou correndo aquele prado e apanhou na relva a lança com ponta de bronze, o escudo cravejado e redondo, a espada com o punho de marfim, a cota de malhas, e depois se atirou na correnteza. Assim, quem poderá contar essas coisas, senão o vento, ou o pássaro que do canavial as viu e ouviu?" Este testemunho final de seres ainda não mencionados é d que nos importa.O terceiro método, o mais difícil e eficiente de todos, exerce a invenção circunstancial. Sirva-nos de exemplo certo memorabilíssimo traço de La Gloria de Don Ramiro: aquele aparatoso "caldo de toicinho, que era servido numa sopeira com cadeado para defendê-lo da voracidade dos pajens", tão insinuativo da miséria decente, da fileira de criados, do casarão cheio de escadas e voltas e de luzes diversas. Dei um exemplo curto, linear, mas sei de obras extensas - os rigorosos romances imaginativos de Wells," os exasperadamente verossímeis de Daniel Defoe - que não utilizam outro recurso senão o desenvolvimento ou a série desses pormenores lacônicos de longa projeção. Afirmo o mesmo dos romances cinematográficos de Josef von Sternberg, feitos também de momentos significativos. É método admirável e difícil, mas sua aplicabilidade geral o torna menos estritamente literário do que os dois anteriores, e, em particular, do que o segundo. Isto costuma funcionar pela pura sintáxe, pela pura perícia verbal. Prova disso são os versos de Moore:

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1 Como O Homem Invisível. Esse personagem - um solitário estudante de química no desesperado inverno londrino - acaba por reconhecer que os privilégios do estado invisível não compensam seus inconvenientes. Tem que sair descalço e nu,para que um casaco apressado e umas botas autônomas não agitem a cidade. Um revólver, em sua mão transparente, é de impossível ocultação. Antes de assimilados, também o são os alimentos deglutidos por ele. Desde o amanhecer suas pálpebras nominais não barram a luz e ele tem que se acostumar a dormir como se estivesse com os olhos abertos. Também é inútil colocar o braço fantasmal sobre os olhos. Na rua os acidentes de trânsito o preferem e ele está sempre com medo demorrer esmagado. Tem que fugir de Londres. Tem que se refugiar em perucas, em grandes óculos escuros, em narizes de carnaval, em barbas suspeitas, em luvas, para que não vejam que é invisível. Descoberto, inicia num vilarejo do interior ummiserável Reino do Terror. Para que o respeitem, fere um homem. Então o delegado faz com que seja rastreado por cães, cercam-no perto da estação e o matam.Outro exemplo de habilíssima fantasmagoria circunstancial é o conto de Kipling, "The finest story in the world", de sua recopilação de 1893, "Many inventions".234Je sois ton amam, et la blonde Gorge tremble sous mon baiser,

cuja virtude está na transição do pronome possessivo ao artigo definido, no emprego surpreendente do la. Seu inverso simétrico está na seguinte linha de Kipling:

Little they trust to sparrow - dust that stop the seal in his sea!

Naturalmente, his está regido por seal. Que detêm a foca em seu mar.

1931235#FILMESEscrevo minha opinião sobre alguns filmes que estrearam recentemente.O melhor, a considerável distância dos outros: O assassino Karamazov (Filmreich). Seu diretor (Ozep) eludiu sem desconforto visível os aclamados e vigentes erros da produção alemã - a simbologia soturna, a tautologia ou repetição supérflua de imagens equivalentes, a obscenidade, as inclinações teratológicas, o satanismo - e tampouco incorreu nos ainda menos esplendorosos da escola soviética: a omissão absoluta de caracteres, a mera antologia fotográfica, as grosseiras seduções do comitê. (Dos franceses não falo: hoje, seu desejo puro e simples é o de não parecerem norte-americanos - risco que certaménte não correm.) Desconheço o extenso romance do qual foi extraído esse filme: culpa feliz que me permitiu desfrutá-lo sem a contínua tentação de superpor o espetáculo atual sobre a leitura lembrada, para ver se coincidiam. Assim, com imaculada prescindência de suas profanações nefandas e de suas meritórias fidelidades - ambas sem importância -, o presente filme é poderosíssimo. Sua realidade, embora puramente alucinatória, sem subordinação nem coesão, não é menos torrencial que a de Docas de Nova York, de Josef von Sternberg. Sua apresentação de genuína, candorosa felicidade, depois de um assassinato, é um dos momentos altos do filme. A fotografia - o amanhecer já definido, as monumentais bolas de bilhar aguardando Oimpacto, a mão clerical de Smerdiakov, retirando o dinheiro - é excelente, em invenção e execução.Passo a outro filme. O que misteriosamente se chama Luzes da cidade, de Chaplin, conheceu o aplauso incondicional de todos os nossos críticos; é verdade que sua

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aclamaçãoFILMESimpressa é mais uma prova de nossos irrepreensíveis serviços telegráficos e postais do que um ato pessoal, presumido. Quem se atreveria a ignorar que Charles Chaplin é um dos deuses mais seguros da mitologia de nosso tempo, um colega dos pesadelos imóveis de De Chirico, das ardentes metralhadoras de Scarface Al, do universo finito ainda que ilimitado, das costas zenitais de Greta Garbo, dos olhos enevoados de Gandhi? Quem desconheceria que sua novíssima comédie larmoyante era de antemão assombrosa? Na realidade, na realidade que imagino, esse visitadíssimo filme do esplêndido inventor e protagonista de Em busca do ouro não passa de uma lânguida antologia de pequenos percalços, impostos a uma história sentimental. Alguns episódios são novos; outro, como o da alegria técnica do lixeiro diante do providencial (e depois falaz) elefante que deve fornecer uma dose de raison d"être, é reedição fac-similar do incidente do lixeiro troiano e do falso cavalo dos gregos, do pretérito filme A vida privada de Helena de Tróia. Objeções mais gerais podem ser somadas também contra City lights. Sua falta de realidade só é comparável a sua falta, também desesperadora, de irrealidade. Há filmes reais -Defesa que humilha, Caminhos da sorte, A turba, até Melodias daBroadway -; há os de voluntária irrealidade: os individualíssimos de Borzage, os de Harry Langdon, os de Buster Keaton, os de Eisenstein. A este segundo gênero correspondiam as primeiras travessuras de Chaplin, sem dúvida apoiadas pela fotografia superficial, pela velocidade espectral da ação e pelos fraudulentos bigodes, insensatas barbas postiças, agitadas perucas e portentosas sobrecasacas dos atores. City lights não alcança essa realidade, e não é convincente. Salvo a cega luminosa, que tem o extraordinário da beleza, e salvo Opróprio Charlie, sempre tão disfarçado e tão tênue, todos os seus personagens são temerariamente normais. Seu destrambelhado argumento pertence à difusa técnica conjuntiva de vinte anos atrás. Arcaísmo e anacronismo também são gêneros literários, sei disso; mas seu uso deliberado é algo diferente de sua perpetração infeliz. Consigno minha esperança - muitas vezes satisfeita - de não ter razão.Em Morocco, de Sternberg, também é perceptível o cansaço,embora em grau menos todo-poderoso e suicida. O laconismo fotográfico, a organização requintada, os procedimen236237#DrscussnoFILMEStos oblíquos e suficientes de Paixão e sangue foram substituídos aqui pela mera acumulação de figurantes, pelas largas pinceladas de excessiva cor local. Sternberg, para significar Marrocos, não imaginou um meio menos brutal que a trabalhosa falsificação de uma cidade moura nos subúrbios de Hollywood, com luxo de albornozes e piscinas e altos muezins guturais que precedem a alvorada e camelos ao sol. Em compensação, seu argumento geral é bom, e sua resolução em claridade, em deserto, em ponto de partida outra vez, é a de nosso primeiro Martín Fierro ou a do romance Sanin, do russo Arzibáshef. Morocco se deixa ver com simpatia, mas não com o prazer intelectual que proporciona o heróico O super-homem.Os russos descobriram que a fotografia oblíqua (e por conseguinte disforme) de um garrafão, de um cachaço de touro ou de uma coluna possuía valor plástico superior à de mil e um extras de Hollywood, rapidamente fantasiados de assírios e depois embaralhados até a vagueza total por Cecil B. de Mille. Também descobriram que as

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convenções do Midde West - méritos da denúncia e da espionagem, felicidade final e matrimonial, intacta integridade das prostitutas, concludente uppercut administrado por um jovem abstêmio - podiam ser trocadas por outras, não menos admiráveis. (Assim, num dos mais altos filmes do Soviete, um encouraçado bombardeia à queima-roupa o abarrotado porto de Odessa, sem outra mortandade que a de alguns leões de mármore. Essa pontaria inócua se deve ao fato de ser um virtuoso encouraçado bolchevique.) Tais descobertas foram propostas a um mundo saturado até o tédio pelas emissões de Hollywood. O mundo lhes fez as honras, e estendeu seu agradecimento a ponto de pretender que a cinematografia soviética havia obliterado para sempre a americana. (Eram os anos em que Alexander Block anunciava, com a peculiar inflexão de Walt Whitman, que os russos eram citas.) Esqueceu-se, ou se quis esquecer, que a maior virtude do filme russo era sua interrupção de um regime californiano contínuo. Esqueceu-se que era impossível contrapor algumas boas ou excelentes violências (Ivan, o Terrível, O encouraçado Potemkin, talvez Outubro) a uma vasta ecomplexa literatura, exercitada com feliz desempenho em todos os gêneros, desde a incomparável comicidade (Chaplin, Buster Keaton e Langdon) até as puras invenções fantásticas: mitologia do Krazy Kat e de Bimbo. Soou o alarme russo; Hollywood reformou ou enriqueceu alguns de seus hábitos cinematográficos e não se preocupou muito.King Vidor, sim. Refiro-me ao desigual diretor de obras tão memoráveis quanto Aleluia e tão desnecessárias e triviais quanto Billy the Kid: recatada historiação das vinte mortes (sem contar mexicanos) do desordeiro mais afamado do Arizona, feita sem outro mérito que a profusão das tomadas panorâmicas e a metódica prescindência de dose-ups para significar o deserto. Sua obra mais recente, Street Scene, adaptada da comédia homônima do ex-expressionista Elmer Rice, está inspirada pelo mero desejo negativo de não parecer "standard". Há um insatisfatório minimum de argumento. Há um herói virtuoso, mas que é manobrado por um valentão. Há um casal romântico, mas toda união legal ou sacramental lhes está proibida. Há um glorioso e excessivo italiano, larger than life, que tem a seu evidente cargo toda a comicidade da obra, e cuja vasta irrealidade recai também sobre seus colegas normais. Há personagens que parecem de verdade, e há os fantasiados. Não é, substancialmente, uma obra realista; é a frustração ou a repressão de uma obra romântica.Duas grandes cenas a exaltam: a do amanhecer, em que o belo processo da noite é sintetizado pela música; a do assassinato, que nos é apresentado indiretamente, no tumulto e na tempestade dos rostos.

1932238239#A ARTE NARRATIVA E A MAGIAA análise dos procedimentos do romance conheceu pouca publicidade. A causa histórica desta continuada reserva é a prioridade de outros gêneros; a causa fundamental, a quase inextricável complexidade dos artifícios romanescos, que é trabalhoso extrair da trama. O analista de uma obra forense ou de uma elegia dispõe de um vocabulário especial e da facilidade de exibir parágrafos que se bastam; o de um longo romance carece de termos adequados e não pode ilustrar o que afirma com exemplos imediatamente fidedignos. Peço, pois, um pouco de resignação com as verificações que se seguem.Começarei por considerar a face romanesca do livro TheLife and Death of Jason (1867), de William Morris. Meu objetivo

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é literário, não histórico: daí que deliberadamente omita qualquer estudo, ou aparência de estudo, da filiação helênica do poema. Limito-me a transcrever que os antigos - entre eles, Apolônio de Rodes - já haviam versificado as etapas da façanha argonáutica, e mencionar um livro intermediário, de 1474, LesFaits et Prouesses du Noble et Vaillant Chevalier Jason, inacessívelem Buenos Aires, naturalmente, mas que os comentadores ingleses poderiam rever.O árduo projeto de Morris era a narração verossímil das aventuras fabulosas de Jasão, rei de Iolco. A surpresa linear, recurso geral da lírica, não era possível nessa seqüência de mais de dez mil versos. Esta necessitava, antes de mais nada, de uma forte aparência de veracidade, capaz de produzir essa espontânea suspensão da dúvida, que constitui, para Coleridge, a fé poética. Morris consegue despertar essa fé; quero investigar como.Recorro a um exemplo do primeiro livro. Éson, antigo rei de Iolco, entrega seu filho à tutela selvática do centauro Quíron.A ARTE NARRATIVA E A MAGIAO problema reside na difícil verossimilhança do centauro. Morris o resolve insensivelmente. Começa por mencionar essa estirpe, misturando-a com nomes de feras que também são estranhas.

Where bears and wolves the centaurs" arrows find

explica sem assombro. Essa primeira menção, incidental, é continuada, após trinta versos, por outra, que se adianta à descrição. O velho rei ordena a um escravo que vá com o menino até a selva, no sopé dos montes, sopre numa trompa de marfim parachamar o centauro, que será (adverte) de grave fisionomia e robusto, e que se ajoelhe diante dele. Seguem-se as ordens até a terceira menção, enganosamente negativa. O rei lhe recomenda que não tenha medo do centauro. Depois, demonstrando pesar pelo filho que vai perder, tenta imaginar sua vida futura na selva, entre os quick-eyed centaurs - traço que os anima e que se justifica por sua famosa condição de arqueiros." O escravo cavalga com o menino e apeia ao amanhecer, diante de um bosque. Embrenha-se a pé entre os carvalhos, com o filhinho nas costas. Então sopra uma trompa e espera. Um melro está cantando essa manhã, mas o homem já pode perceber um rumor de cascos, e sente um pouco de medo no coração, e se distrai do menino, empenhado em alcançar a trompa reluzente. Aparece Quíron: dizem que antes seu pêlo era malhado, mas agora ele está quase branco, não muito diferente da cor de sua cabeleira humana, e com uma coroa de folhas de carvalho na transição de besta a homem. O escravo cai de joelhos. Anotemos, de passagem, que Morris pode não comunicar ao leitor sua imagem do centauro e nem mesmo convidar-nos a ter uma, basta-lhe nossa contínua fé em suas palavras, como no mundo real.Idêntica persuasão, embora mais gradual, é a do episódio das sereias, no livro quatorze. As imagens preparatórias são de doçura. A cortesia do mar, a brisa de aroma alaranjado, a perigosa música reconhecida primeiro pela feiticeira Medéia, sua prévia operação de felicidade nos rostos dos1 Cf. o verso:Cesare armnto, con gli occhi grifagni (Inferno N, 123).24O241#DiscussAo

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marinheiros que mal tinham consciência de ouvi-la, o fato verossímil de que no início não se distinguiam bem as palavras, dito de modo indireto:And by their faces could the queen behold How sweet it was, although no tale it told, To those worn toilers o"er the bitter sea,antecedem a aparição dessas divindades. Estas, ainda que finalmente avistadas pelos remeiros, estão sempre a alguma distância, implícita na frase circunstancial:for they were pear enow To see the gusty wind of evening bloca Long locks of hair across those bodies white With golden spray hiding some dear delight.O último pormenor: o orvalho de ouro - de seus violentos cachos, do mar, de ambos ou de outro qualquer? - ocultando alguma querida delícia, tem ainda outro objetivo: o de significar sua atração. Esse duplo intento repete-se na seguinte circunstância: a neblina de lágrimas ansiosas, que ofusca a visão dos homens. (Ambos os artifícios são da mesma ordem que o da coroa de ramos na figuração do centauro.) Jasão, desesperado até a ira pelas sereias,Z lhes dá o epíteto de bruxas do mar e faz2 Ao longo do tempo, as sereias mudam de forma. Seu primeiro historiador, o rapsodo do duodécimo livro da Odisséia, não nos diz como eram; para Ovídio, são pássaros de plumagem avermelhada e rosto de virgem; para Apolônio de Rodes, da metade do corpo para cima são mulheres, no restante, pássaros; para o mestre Tirso de Molina (e para a heráldica) "metade mulheres, metade peixes". Não menos discutível é sua índole; ele as chama de ninfas; o dicionário clássico de Lemprière entende que são ninfas, o de Quicherat que são monstros e o de Grimal que são demônios. Moram numa ilha do poente, perto da ilha de Circe, mas o cadáver de uma delas, Partênope, foi encontrado em Campânia, e deu nome à famosa cidade que agora tem o nome de Nápoles, e o geógrafo Estrabão viu sua tumba e presenciou os jogos ginásticos e a corrida com tochas que periodicamente eram celebrados em honra de sua memória.A Odisséia narra que as sereias atraíam e perdiam os navegantes e que Ulisses, para ouvir seu canto e não perecer, tapou com cera os ouvidos de seus remeiros e ordenou que o amarrassem ao mastro. Para tentá-lo, as sereias prometiam o conhecimento de todas as coisas do mundo: "Ninguém passou por aqui em seu negro lenho sem ter ouvido de nossa boca a voz doce como o favo de mel, sem ter se deleitado com ela, sem ter prosseguido mais sábio. Porque sabemos todas as coisas;cantar Orfeu, o dulcíssimo. Vem a tensão, e Morris tem o maravilhoso escrúpulo de nos avisar que as canções atribuídas por ele à boca não beijada das sereias e à de Orfeu não encerram mais que uma transfigurada lembrança do que então foi cantado. A mesma precisão insistente de suas cores - as margens amarelas da praia, a espuma dourada, a rosa gris - pode nos enternecer, porque parecem fragilmente salvas desse antigo crepúsculo. Cantam as sereias para proporcionar uma felicidade vaga como a água - Such bodies garlanded with gold, so faint, so fair -; canta Orfeu contrapondo as venturas firmes da terra. As sereias prometem um indolente céu submarino,roofed over by the changeful sea (coberto pelo mar inconstante) conforme repetiria - dois mil e quinhentos anos depois, ou só cinqüenta? - Paul Valéry. Cantam, e algo da discernível contaminação de sua perigosa doçura entra no canto corretivo de Orfeu. Finalmente os argonautas passam, mas um altivo ateniense, finda a tensão e já longa a esteira atrás da nave, atravessa correndo as filas dos remeiros e se atira, da popa, ao mar.Passo a uma segunda ficção, a Narrative of A. Gordon Pym (1838), de Poe. O secreto argumento desse romance é o medo e a vilificação do branco. Poe imagina algumas tribos que vivem nos arredores do Círculo Antártico, perto da pátria inesgotável dessa cor, e que gerações atrás sofreram a terrível visita dos homens e das tempestades

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da brancura. O branco étodos os afãs sofridos por argivos e troianos na grande Tróada por determinação dos deuses, e sabemos tudo o que acontecerá na Terra fecunda" (Odisséia, XII). Uma tradição recolhida pelo mitólogo Apolodoro, em sua Biblioteca, narra que, da nau dos argonautas, Orfeu cantou com mais doçura que as sereias e que estas se precipitaram ao mar e foram transformadas em rochas, porque sua lei era morrer quando alguém não sentisse seu feitiço. Também a Esfinge se precipitou das alturas quando adivinharam seu enigma.No século VI, uma sereia foi capturada e batizada no norte de Gales, e chegou a figurar como santa em certos calendários antigos, sob o nome de Murgan. Outra, em 14O3, passou por uma brecha num dique, e morou em Haarlem até o dia de sua morte. Ninguém a entendia, mas a ensinaram a fiar e ela venerava a cruz como que por instinto. Um cronista do século XVI argumentou que não era um peixe porque sabia fiar e que não era uma mulher porque podia viver na água.A língua inglesa distingue a sereia clássica (siren) das que têm rabo de peixe (rnermaíds). Na formação destas últimas haviam influído, por analogia, os tritões, divindades do cortejo de Poseidon.No décimo livro da Reyúblicn, oito sereias presidem a rotação dos oito céus concêntricos.Sereia: suposto animal marinho, lemos num dicionário brutal.242243#DISCUSSÃOA ARTE NARRATIVA E A MAGIAanátema para essas tribos e posso confessar que também o é, por volta da última linha do último capítulo, para os condignos leitores. Os argumentos desse livro são dois: um imediato, de vicissitudes marítimas; outro infalível, sigiloso e crescente, que só se revela no final. "Nomear um objeto", dizem que disse Mallarmé, "é suprimir as três quartas partes do prazer do poema, que reside na felicidade de ir adivinhando; o sonho é sugeri-lo". Nego que o escrupuloso poeta tenha redigido essa frivolidade numérica das três quartas partes, mas a idéia geral lhe convém e ele a realizou ilustremente em sua apresentação linear de um ocaso:

Victorieusement fuit le suicide beauTison de gloire, sang par écume, or, tempête!

A sugestão lhe veio, sem dúvida, da Narrative of A. Gordon Pym. A própria impessoal cor branca não é mallarmeana? (Creio que Poe preferiu essa cor, por intuições ou razões idênticas às declaradas depois por Melville, no capítulo "The whiteness of the whale" de sua também esplêndida alucinação Moby Dick.) Impossível exibir ou analisar aqui o romance inteiro, e limito-me a traduzir um traço exemplar, subordinado - como todos - ao secreto argumento. Trata-se da obscura tribo que mencionei e dos riachos de sua ilha. Determinar que sua água era vermelha ou azul teria sido recusar excessivamente toda possibilidade de brancura. Poe resolve esse problema assim, enriquecendo-nos: "Primeiro nos negamos a prová-la, supondo que estivesse estragada. Ignoro como dar uma idéia justa de sua natureza, e não o conseguirei sem muitas palavras. Apesar de correr com rapidez por qualquer desnível, nunca parecia límpida, salvo ao despenhar-se num salto. Em casos de pouco declive, era tão consistente como uma infusão espessa de goma-arábica, feita em água comum. Esta, no entanto, era a menos singular de suas qualidades. Não era incolor nem era de

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cor invariável, já que sua fluência propunha aos olhos todos os matizes da púrpura, como os tons de uma seda furtacor. Deixamos que assentasse numa vasilha e comprovamos que toda a massa do líquido estava separada em diversos veios, cada um de um tom particular, e que esses veios não se misturavam. Se a lâmina de uma faca fosse passada ao longode seus veios, a água se fechava imediatamente, e ao se retirar a lâmina o rastro desapareceria. Em compensação, quando a lâmina era inserida com precisão entre dois desses veios, ocorria uma perfeita separação, que depois não se emendava".É legítimo deduzir do anterior que o problema central da arte romanesca é a causalidade. Uma das variantes do gênero, o moroso romance de personagem, imagina ou dispõe uma concatenação de motivos que se propõem não diferir daqueles do mundo real. Esse caso, no entanto, não é o mais comum. No romance de contínuas vicissitudes, essa motivação é improcedente, como ocorre no relato de breves páginas e no infinito romance espetacular que Hollywood compõe com os prateados idola de Joan Crawford e que as cidades relêem. São regidos por uma ordem muito diversa, lúcida e atávica. A primitiva claridade da magia.Esse procedimento ou ambição dos antigos homens foi submetido por Frazer a uma conveniente lei geral, a da simpatia, que postula um vínculo inevitável entre coisas distantes, seja porque sua figura é igual - magia imitativa, homeopática -, seja pela existência de uma proximidade anterior - magia contagiosa. Encontramos uma ilustração da segunda no ungüento curativo de Kenelm Digby, que se aplicava não ao enfaixado ferimento, mas ao aço delinqüente que o causou - enquanto aquele, sem o rigor de bárbaros tratamentos, ia cicatrizando. Da primeira os exemplos são infinitos. Os peles-vermelhas do Nebraska revestiam couros rangentes de bisão com a cornadura e a crina e martelavam dia e noite sobre o deserto uma dança tormentosa, para chamar os bisões. Os feiticeiros da Austrália Central causam um ferimento no antebraço que faz o sangue correr, para que o céu imitativo ou coerente também se dessangre em chuva. Os malaios da Península costumam atormentar ou denegrir uma imagem de cera, para que seu original pereça. As mulheres estéreis de Sumatra cuidam de uma criança de madeira e a enfeitam, para que seu ventre seja fecundo. Por iguais razões de analogia, a raiz amarela da curcuma serviu para combater a icterícia, e a infusão de urtigas deve ter combatido a urticária. É impossível enumerar o catálogo inteiro desses atrozes ou irrisórios exemplos; creio, no entanto, ter citado o suficiente para demonstrar que a magia é a coroação ou o pesadelo do causal,244245#DISCUSSÃOA ARTE NARRATIVA E A MAGIAnão sua contradição. O milagre não é menos forasteiro nesse universo que no dos astrônomos. Todas as leis naturais o regem, e outras imaginárias. Para o supersticioso, há uma conexão necessária não só entre um tiro e um morto, mas também entre um morto e uma maltratada efígie de cera ou a quebra profética de um espelho ou o sal entornado ou treze comensais terríveis.Essa perigosa harmonia, essa frenética e precisa causalidade, também tem vigência dentro do romance. Os historiadores sarracenos, dos quais o doutor José Antonio Condetraduziu sua Historia de la Dominación de los Árabes en Espana,não escrevem que seus reis e califas morreram, mas: "Foi conduzido às recompensas e prêmios" ou "Passou à misericórdia do Poderoso" ou "Esperou o destino tantos

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anos, tantas luas e tantos dias". Esse receio de que um fato temível possa ser atraído por sua menção é impertinente ou inútil na desordem asiática do mundo real, não num romance, que deve ser um jogo preciso de vigilâncias, ecos e afinidades. Todo episódio, num relato cuidadoso, é de projeção ulterior. Assim, numa das fantasmagorias de Chesterton, um desconhecido empurra um desconhecido para que um caminhão não o atropele, e essa violência necessária, mas alarmante, prefigura seu ato final de declará-lo insano para que não possam executá-lo por um crime. Em outra, uma perigosa e vasta conspiração integrada por um único homem (com o socorro de barbas, máscaras e pseudônimos) é anunciada com tenebrosa exatidão no dístico:

As all stars shrivel in the single sun,The words are many, but The Word is one

que depois se decifra, com permutação de maiúsculas:

The words are many, but the word is One.

Numa terceira, a maquette inicial - a simples menção de um índio que atira sua faca em outro e o mata - é o estrito reverti so do argumento: um homem apunhalado por seu amigo com uma flecha, no alto de uma torre. Faca voadora, flecha que se deixa empunhar. Longa repercussão têm as palavras. Já assinalei uma vez que só a menção preliminar dos bastidorescênicos contamina de incômoda irrealidade as figurações do amanhecer, do pampa, do anoitecer, que Estanislao del Campo intercalou no Fausto. Essa teleologia de palavras e de episódios é onipresente também nos bons filmes. No início de The Showdown, alguns aventureiros jogam uma prostituta nas cartas, ou seu turno; ao terminar, um deles jogou a posse da mulher que deseja. O diálogo inicial de Paixão e sangue versa sobre a delação, a primeira cena é um tiroteio numa avenida; esses traços são premonitórios do assunto central. Em Desonrada há temas recorrentes: a espada, o beijo, o gato, a traição, as uvas, o piano. Mas a ilustração mais cabal de um orbe autônomo de corroborações, de presságios, de monumentos, é o predestinado. Ulisses de Joyce. Basta examinar o livro expositivo de Gilbert ou, em sua falta, o vertiginoso romance.Procuro resumir o anterior. Distingui dois processos causais: o natural, que é o resultado incessante de incontroláveis e infinitas operações; o mágico, em que os pormenores profetizam, lúcido e limitado. No romance, penso que a única honradez possível está no segundo. Que fique o primeiro para a simulação psicológica.

1932246247#PAUL GROUSSACVerifiquei em minha biblioteca dez tomos de Groussac.Sou um leitor hedonista: jamais consenti que meu sentimentodo dever interferisse em inclinação tão pessoal como aaquisição de livros, nem lancei a sorte duas vezes com autorintratável, eludindo um livro anterior com um livro novo,nem comprei livros - grosseiramente - aos montes. Essa perseverante dezena evidencia, pois, a contínua legibilidade de

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Groussac, a condição que em inglês se chama readableness. Em espanhol é virtude raríssima: todo estilo escrupuloso contagia os leitores com uma sensível porção da doença com que foi trabalhado. Além de Groussac, só em Alfonso Reyes comprovei igual ocultação ou invisibilidade do esforço.O elogio, apenas, não é iluminativo; precisamos de uma definição de Groussac. A tolerada ou recomendada por ele - a de considerá-lo mero viajante da discrição de Paris, um missionário de Voltaire entre os mulatos - deprecia a nação que o afirma e o homem que se pretende realçar, subordinando-o a empregos tão escolares. Nem Groussac foi um homem clássico - essencialmente José Hernández o foi muito mais - nem foi necessária essa pedagogia. Por exemplo: o romance argentino não é ilegível por faltar-lhe mesura, mas por falta de imaginação, de fervor. Posso dizer o mesmo de nosso viverem geral.É evidente que houve em Paul Groussac outra coisa além das repreensões do professor, da santa cólera da inteligência diante da inaptidão aclamada. Houve um prazer desinteressado no desdém. Seu estilo se acostumou a desprezar, creio que sem maior desconforto para quem o exercia. O facit indignado versum não nos diz a razão de sua prosa: mortal e punitiva mais de uma vez, como em certa causa célebre de La Biblioteca, mas em geral reservada, cômoda na ironia, retrátil. Soube depreciar bem, atéPAUL GROUSSACcom carinho; foi impreciso ou inconvincente para elogiar. Basta percorrer as pérfidas e belas conferências que tratam de Cervantes e depois a vaga apoteose de Shakespeare; basta cotejar essa boa ira - "Lamentaríamos que a circunstância de ter-se posto à venda o arrazoado do doutor Pinero fosse um obstáculo sério para sua difusão, e que este amadurecido fruto de um ano e meio de vagar diplomático se limitasse a causar "impressãó" na casa de Coni. Isso não acontecerá, com a graça de Deus, e pelo menos enquanto depender de nós, não se cumprirá tão melancólico destino" -, com estas ignomínias ou incontinências: "Depois do dourado triunfo das messes que ao chegar presenciara, o que agora contemplo, nos horizontes esfumados pela névoa azul, é a festa alegre da vindima, que envolve numa imensa guirlanda de saudável poesia a rica prosa dos lagares e fábricas. E longe, muito longe dos estéreis bulevares e seus teatros enfermiços, senti de novo sob meus pés o estremecimento da antiga Cíbele, eternamente fecunda e jovem, para quem o repousado inverno não passa da gestação da primavera próxima..." Ignoro se será possível deduzir que ele requisitava o bom gosto com fins exclusivos de terrorismo, e o mau para uso pessoal.Não há morte de escritor sem a imediata formulação de um problema fictício, que reside em indagar - ou profetizar - que parte de sua obra permanecerá. Esse problema é generoso, já que postula a possível existência de fatos intelectuais eternos, além da pessoa ou circunstâncias que os produziram; mas também é ruim, porque parece farejar corrupções. Afirmo que o problema da imortalidade é, principalmente, dramático. Persiste o homem total, ou desaparece. Os equívocos não prejudicam: se são característicos, são preciosos. Groussac, pessoa inconfundível, Renan queixoso de sua glória inalcançável, não pode deixar de permanecer. Sua mera imortalidade sulamericana corresponderá à inglesa de Samuel Johnson: os dois autoritários, doutos, mordazes.A incômoda sensação de que nas primeiras nações da Europa ou na América do Norte ele teria sido um escritor quase imperceptível fará com que muitos argentinos lhe neguem primazia em nossa desmantelada república. Ela, no entanto, lhe pertence.

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249#A DURAÇÃO DO INFERNOEspeculação que se foi gastando com o tempo, essa do Inferno. Os próprios pregadores o negligenciam, quem sabe privados da pobre, mas serviçal, alusão humana, que as fogueiras eclesiásticas do Santo Ofício eram neste mundo: um tormento temporal, sem dúvida, mas não indigno, dentro das limitações terrenas, de ser uma metáfora do imortal, da dor perfeita sem destruição, que os herdeiros da ira divina conhecerão para sempre. Seja ou não satisfatória essa hipótese, é indiscutível um cansaço geral na propaganda desse estabelecimento. (Que ninguém se assuste: o termo propaganda não é de genealogia comercial, mas católica; é uma reunião de cardeais.) No século II, o cartaginês Tertuliano podia imaginar o Inferno e prever seu funcionamento com este discurso: Agradam-vos as representações; pois esperai a maior, o Juízo Final. Qual não será minha admiração, que gargalhadas, que celebrações, que júbilo, ao ver tantos reis soberbos e deuses enganosos sofrendo na prisão mais ínfima das trevas; quantos magistrados que perseguiram o nome do Senhor, derretendo em fogueiras mais ferozes do que as que jamais foram atiçadas contra os cristãos; quantos filósofos sérios rubificando-se nas fogueiras vermelhas com seus iludidos ouvintes; quantos poetas aclamados tremendo, não diante do tribunal de Midas, mas do de Cristo; quantos atores trágicos, agora mais eloqüentes na manifestação de um tormento tão genuíno... (De Spectaculis, 3O; citação e versão de Gibbon) O próprio Dante, em sua grande tarefa de prever de modo anedótico algumas decisões da Justiça divina relacionadas com-4o Norte da Itália, ignora tal entusiasmo. Depois, os infernos literários de Quevedo - mera oportunidade espirituosa de anacronismos - e de Torres Villarroel - mera oportunidade de metáforas - só!~ DURAÇÀO DO INFERNOevidenciarão a crescente usura do dogma. A decadência do Inferno aparece neles quase como em Baudelaire, já tão incrédulo dos tormentos eternos que finge adorá-los. (Uma etimologia significativa deriva o inócuo verbo francês gêner da poderosa palavra da Escritura gehenna.)Passo a considerar o Inferno. O artigo distraído e pertinente do Diccionario Enciclopédico Hispanoamericano é de leitura útil, não por suas indigentes notícias ou por sua espavorida teologia de sacristão, mas pela perplexidade que deixa entrever. Começa por observar que a noção de inferno não é exclusiva da Igreja católica, precaução cujo sentido intrínseco é: "Que os maçons não venham dizer que essas brutalidades foram introduzidas pela Igreja", mas se lembra ato contínuo de que o Inferno é dogma, e acrescenta com certa pressa: "E glória imarcescível do cristianismo atrair para si todas as verdades que estavam disseminadas entre as falsas religiões". Seja o Inferno um dado da religião natural ou apenas da religião revelada, a verdade é que nenhum outro tema da teologia tem para mim igual fascínio e poder. Não me refiro à mitologia simplíssima de cortiço - esterco, espetos, fogo e tenazes - que foi vegetando a seus pés e que todos os escritores repetiram, para desonra de sua imaginação e de sua decência." Refiro-me à estrita noção - lugar de castigo eterno para os maus - que constitui o dogma, sem outra obrigação que a de situá-lo in loco reali, num lugar preciso, e a beatorum sede distincto, diverso do que habitam os eleitos. Imaginar o contrário seria sinistro. No capítulo qüinquagésimo de sua História, Gibbon quer despossuir de maravilhas o Inferno, e escreve que os dois vulgaríssimos ingredientes de fogo e de escuridão bastam para criar uma sensação de dor, que pode ser infinitamente agravada pela idéia de uma perduração sem fim. Esse reparo rabugento talvez prove que a preparação de infernos

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é fácil, mas não diminui o espanto admirável de sua invenção. O atributo de eternidade é o horroroso. O de continuidade - o1 No entanto, o amnteur de infernos fará bem em não descuidar dessas honrosas infrações: o inferno sabeíta, com quatro vestíbulos superpostos que admitem fffetes de água suja no chão, mas cujo recinto principal é amplo, empoeirado, sem ninguém; oinferno de Swedenborg, cuja lugubridade não é notada pelos condenados que renegaram o céu; o inferno de Bernard Shaw (Man and Superman, págs. 86-13~, que distrai inufilmente sua eternidade com os artifícios do luxo, da arte, da erótica e do renome.25O251#DiscvssAofato de que a perseguição divina carece de intervalos, de que no Inferno não há sonho - é ainda pior, mas impossível de ser imaginado. A eternidade da pena é o que está em questão.Há dois argumentos importantes e belos para invalidar essa eternidade. O mais antigo é o da imortalidade condicional ou aniquilação. A imortalidade, expõe esse compreensível arrazoado, não é atributo da natureza humana caída, é dom de Deus em Cristo. Não pode ser mobilizada, portanto, contra o mesmo indivíduo a quem é outorgada. Não é uma maldição, é um dom. Quem a merece a merece com céu; quem se prova indigno de recebê-la, morre para morrer, como escreve Bunyan, morre, sem mais. O inferno, segundo essa piedosa teoria, é o nome humano blasfematório do esquecimento de Deus. Um de seus propagadores foi Whately, o autor do opúsculo de famosalembrança: Dúvidas Históricas sobre Napoleão Bonaparte.Especulação mais curiosa é a apresentada pelo teólogo evangélico Rothe, em 1869. Seu argumento - enobrecido também pela secreta misericórdia de negar o castigo infinito dos condenados - observa que eternizar o castigo é eternizar o Mal. Deus, afirma ele, não pode querer essa eternidade para Seu universo. Insiste no escândalo de supor que o homem pecador e o diabo caçoem para sempre das benévolas intenções de Deus. (A teologia sabe que a criação do mundo é obra de amor. O termo predestinação, para ela, refere-se à predestinação para a glória; a reprovação é simplesmente o oposto, é uma não eleição traduzível em pena infernal, mas que não constitui um ato especial da bondade divina.) Defende, enfim, uma vida decrescente, minguante, para os réprobos. E os antevê saqueando pelas margens da Criação, pelos desvãos do espaço infinito, mantendo-se com sobras de vida. Conclui desse modo: Como os demônios estão incondicionalmente afastados de Deus e são seus inimigos incondicionais, sua atividade é contra o reino de Deus, e os organiza em remo diabólico, que deve naturalmente eleger um chefe. A cabeça desse governo demoníaco - o Diabo - deve ser imaginada como cambiante. Os indivíduos que assumem o trono desse reino sucumbem à fantasmagoria de seu ser, mas se renovam entre a descendência diabólica. (Dogmatik, I, 248.)Chego à parte mais inverossímil de minha tarefa: as razões elaboradas pela humanidade a favor da eternidade doA DURAÇÃO DO INFERNOinferno. Vou resumi-las em ordem crescente de significação. A primeira é de índole disciplinar: postula que a temibilidade do castigo está precisamente em sua eternidade e que colocá-la em dúvida é invalidar a eficácia do dogma e fazer o jogo do Diabo. É argumento de ordem policial, e não creio que mereça refutação. O segundo prescreve: "A pena deve ser infinita porque a culpa o é, por atentar contra a majestade do Senhor, que é Ser infinitó". Observou-se que esta demonstração é tão probatória que

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podemos inferir que não prova nada: prova que não há culpa venial, que todas as culpas são imperdoáveis. Eu acrescentaria que é um caso perfeito de frivolidade escolástica e que seu equívoco é a pluralidade de sentidos do termo infinito, que aplicado ao Senhor quer dizer incondicionado, e a pena quer dizer incessante, e a culpa, nada que eu possa entender. Além do mais, argumentar que uma falta é infinita por atentar contra Deus, que é Ser infinito, é como argumentar que é santa porque Deus o é, ou como pensar que as injúrias dirigidas a um tigre devem ser rajadas.Agora se levanta sobre mim o terceiro dos argumentos, o único. Talvez se escreva assim: "Há eternidade de céu e de inferno porque a dignidade do livre-arbítrio assim o pede; ou temos a faculdade de agir para sempre ou este eu é uma delusão". A virtude desse raciocínio não é lógica, é muito mais: é inteiramente dramática. Impõe-nos um jogo terrível, concede-nos o direito atroz de nos perdermos, de insistirmos no mal, de recusarmos as operações da graça, de sermos alimento do fogo que não finda, de fazermos Deus fracassar em nosso destino, do corpo sem claridade no eterno e do detestabile cum cacodaemonibus consortium. Teu destino é coisa verdadeira, nos diz, condenação eterna e salvação eterna estão em teu minuto; essa responsabilidade é tua honra. É um sentimento parecido ao de Bunyan: "Deus não brincou ao convencer-me, o demônio não brincou ao me tentar, nem eu brinquei ao mergulhar como num abismo sem fundo, quando as aflições do inferno se apoderaram de mim; tampouco devo brincar agora ao contálas". (trace abounding to the chief of sinners; the preface.)Creio que em nosso impensável destino, em que vigoram infâmias como a dor carnal, toda coisa estapafúrdia é possível, até a perpetuidade de um Inferno, mas também acredito que é uma irreligiosidade acreditar nele.252253#D~scossnoPós-escrito. Nesta página de mera notícia, posso comunicar também a de um sonho. Sonhei que saía de outro - povoado de cataclismos e de tumultos - e que acordava num cômodo irreconhecível. Clareava: uma difusa luz geral definia o pé da cama de ferro, a cadeira estrita, a porta e a janela fechadas, a mesa em branco. Pensei com medo, onde estou?, e compreendi que não sabia. Pensei, quem sou?, e não pude me reconhecer. O medo cresceu em mim. Pensei: Esta vigília desconsolada já é o Inferno, esta vigília sem destino será minha eternidade. Então acordei de verdade: tremendo.254AS VERSÕES HOMÉRICASNenhum problema tão consubstancia) com as letras e seu modesto mistério como o que propõe uma tradução. Um esquecimento animado pela vaidade, o temor de confessar processos mentais que adivinhamos perigosamente comuns, o esforço para manter intacta e central uma reserva incalculável de sombra, velam as tais escrituras diretas. A tradução, por sua vez, parece destinada a ilustrar a discussão estética. O modelo proposto à sua imitação é um texto visível, não um labirinto inestimável de projetos pretéritos ou a acatada tentação momentânea de uma facilidade. Bertrand Russell define um objeto externo como um sistema circular, irradiante, de impressões possíveis; pode-se dizer o mesmo de um texto, em face das repercussões incalculáveis do verbal. Um parcial e precioso documento das vicissitudes que sofre permanece em suas traduções. O que são as várias versões da Ilíada, de Chapman a Magnien, senão diversas perspectivas de um fato móvel, senão um longo lance experimental de omissões e de ênfases? (Não há necessidade essencial de mudar de idioma, esse deliberado jogo da atenção não é impossível no interior de uma mesma literatura.) Pressupor

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que toda recombinação de elementos é obrigatoriamente inferior a seu original, é pressupor que o rascunho 9 é obrigatoriamente inferior ao rascunho H - já que não pode haver senão rascunhos. O conceito de texto definitivo não corresponde senão à religião ou ao cansaço.A superstição da inferioridade das traduções - amoedada no consabido adágio italiano - procede de uma distraída experiência. Não há um bom texto que não pareça invariável e definitivo se o praticamos um número suficiente de vezes. Hume identificou a idéia habitual de causalidade com a sucessão. Assim, um bom filme, visto uma segunda vez, parece ainda255#Discussãomelhor; tendemos a considerar necessidade o que não passade repetição. Com os livros famosos, a primeira vez já é segunda, posto que já os abordamos sabendo-os. A precavida e corriqueira frase reler os clássicos se reveste de inocente veracidade. Já não sei se o relato: "En un lugar de la Mancha, decuyo nombre no quiero acordarme, no ha mucho tiempo que vivia un hidalgo de los de lama en astillero, adarga antigua, rocín flaco y galgo corredor", é bom para uma divindade imparcial; sei apenas que toda modificação é sacrílega e que não consigo imaginar outro começo para o Quixote. Cervantes, creio, prescindiu dessa leve superstição, e talvez não tivesse identificado esse parágrafo. Eu, em compensação, só poderei rejeitar qualquer divergência. O Quixote, graças a meu exercício congênito do espanhol, é um monumento uniforme, sem outras variações que as deparadas pelo editor; o encadernador e o tipógrafo; a Odisséia, graças a meu oportuno desconhecimento do grego, é uma biblioteca internacional de obras em prosa e verso, desde os versos de rimas emparelhadas de Chapman até a Authorized Uersion de Andrew Lang ou o drama clássico francês de Bérard ou a saga vigorosa de Morris ou o irônico romance burguês de Samuel Butler. Sou generoso na menção de nomes ingleses, porque as letras da Inglaterra sempre conviveram com essa epopéia do mar, e a série de suas versões da Odisséia bastaria para ilustrar seu curso de séculos. Essa riqueza heterogênea e mesmo contraditória não é aplicável especialmente à evolução do inglês ou à mera extensão do original ou aos desvios ou à diversa capacidade dos tradutores, mas a esta circunstância, que deve ser exclusiva de Homero: a dificuldade categórica de saber o que pertence ao poeta e o que pertence à linguagem. A essa dificuldade feliz devemos a possibilidade de tantas versões, todas sinceras, genuínas e divergentes.Não conheço exemplo melhor que o dos adjetivos homéricos. O divino Pátroclo, a terra sustentadora, o mar vinoso, os cavalos solípedes, as ondas molhadas, o lenho negro, o negro sangue, os amados joelhos, são expressões que recorrem, comovedoramente a destempo. Num lugar, fala-se dos ricos varões que bebem a água negra do Esepo; noutro, de um rei trágico, que, infeliz em Tebas, a deliciosa, governou os cadmeus, por determinação fatal dos deuses. Alexander Pope (cuja traduçãoAS VERSÕES HOMÉRICASfaustuosa de Homero interrogaremos depois) acreditou que esses epítetos inamovíveis eram de caráter litúrgico. Remy de Gourmont, em seu longo ensaio sobre o estilo, escreve que devem ter sido encantadores algum dia, embora não o sejam mais. Preferi imaginar que esses fiéis epítetos eram o que ainda são as preposições: obrigatórios e modestos sons que o uso acrescenta a certas palavras e sobre os quais não se pode exercer a originalidade. Sabemos que o correto é construir andar a pé, não por pé. O rapsodo sabia que o correto era adjetivar divino Pátroclo. Em nenhum caso haveria propósito estético. Faço essas conjeturas sem entusiasmo; a única certeza

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é a impossibilidade de separar o que pertence ao escritor do que pertence à linguagem. Quando lemos em Agustín 1Vloreto (se resolvermos ler Agustín Moreto):

Pois em casa tão compostas O que fazem todo santo dia?

sabemos que a santidade desse dia é ocorrência do idioma e não do escritor. Já de Homero ignoramos infinitamente as ênfases.Para um poeta lírico ou elegíaco, essa nossa incerteza de suas intenções teria sido aniquiladora, mas não para um expositor pontual de vastos argumentos. Os fatos da Ilíada e da Odisséia sobrevivem com plenitude, mas desapareceram Aquiles e Ulisses, o que Homero imaginava ao nomeá-los e o que na realidade pensou deles. O presente estado de suas obras parece o de uma complicada equação que registra relações precisas entre quantidades incógnitas. Não há maior riqueza possível para os que traduzem. O livro mais famoso de Browning consta de dez informações detalhadas de um único crime, segundo os implicados nele. Todo o contraste deriva dos personagens, não dos fatos, e é quase tão intenso e tão abismal quanto o de dez versões justas de Homero.A bela discussão Newman-Arnold (1861-1862), mais importante que seus dois interlocutores, discorreu extensamente sobre os dois modos básicos de traduzir. Newman defendeu o modo literal, a manutenção de todas as singularidades verbais; Arnold, a severa eliminação dos detalhes que distraem ou detêm, a subordinação do sempre irregular256257#DISCUSSÃOHomero de cada linha ao Homero essencial ou convencional, feito de simplicidade sintática, de simplicidade de idéias, de rapidez que flui, de altura. Esta conduta pode fornecer os agrados da uniformidade e da seriedade; aquela, dos contínuos e pequenos assombros.Passo a considerar alguns destinos de um único texto homérico. Examino os fatos comunicados por Ulisses ao espectro de Aquiles, na cidade dos cimérios, na noite incessante (Odisséia, XI). Trata-se de Neoptólemo, o filho de Aquiles. A versão literal de Buckley é esta: "Mas ao saquearmos a alta cidade de Príamo, tendo sua porção e prêmio excelente, incólume embarcou numa nau, nem maltratado pelo bronze afiado nem ferido ao combater corpo a corpo, como é tão comum na guerra; porque Marte confusamente delira". A dos também literais mas arcaizantes Butcher e Lang: "Mas, uma vez saqueada a escarpada cidade de Príamo, embarcou ileso com sua parte do despojo e com um nobre prêmio; não foi destruído pelas lanças agudas nem teve ferimentos no cerrado combate: e muitos tais riscos há na guerra, porque Ares enlouquece confusamente". A de Cowper, de 1791: "Por fim, depois que saqueamos a sublevada vila de Príamo, carregado de abundantes despojos seguro embarcou, nem por lança ou venábulo em nada ofendido, nem na refrega pelo fio dos alfanjes, como na guerra costuma acontecer, em que os ferimentos são repartidos promiscuamente, segundo a vontade do fogoso Marte". A que em 1725 Pope dirigiu: "Quando os deuses coroaram de conquista as armas, quando os soberbos muros de Tróia fumegaram por terra, a Grécia, para recompensar as galhardas fadigas de seu soldado, cumulou sua armada de incontáveis despojos. Assim, grande de glória, voltou seguro do estrondo marcial, sem uma cicatriz hostil, e embora as lanças se fechassem à sua volta em tormentas de ferro, seu jogo inútil foi inocente de ferimentos". A de George Chapman, de 1614: "Despovoada Tróia, a alta, ascendeu a seu belo navio, com grande provisão de presa e de tesouro, seguro e sem levar nem um rastro de lança que se atira de

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longe ou de perigosa espada, cujos ferimentos são favores que a guerra concede, que ele (embora solicitado) não encontrou. Nas cerradas batalhas, Marte não costuma contender: enlouquece". A de Butler, que é de 19OO: "Uma vez ocupada a cidade, ele258AS VERSÕES HOMÉRICASpôde apanhar e embarcar sua parte de benefícios havidos, que era uma forte soma. Saiu sem um arranhão de toda essa perigosa campanha. Já se sabe: tudo está em ter sorte".As duas versões do início - as literais - podem comover por uma série de motivos: a menção reverencia) do saque, o ingênuo esclarecimento de que as pessoas costumam machucar-se na guerra, a súbita reunião das infinitas desordens da batalha num único deus, o fato da loucura no deus. Outros elementos subalternos também colaboram: num dos textos que transcrevo, o bom pleonasmo de embarcar num barco; noutro, o uso da conjunção aditiva pela causal," em e muitos tais riscos há na guerra. A terceira versão - a de Cowper - é a mais inócua de todas: é literal, até onde os deveres da inflexão miltoniana o permitem. A de Pope é extraordinária. Seu luxuoso dialeto (como o de Góngora) deixa-se definir pelo uso desconsiderado e mecânico dos superlativos. Por exemplo: a solitária nave negra do herói se multiplica em esquadra. Sempre subordinadas a essa. amplificação geral, todas as linhas de seu texto1 Outro hábito de Homero é o bom abuso das conjunções adversativas. Dou alguns exemplos:Morre, mas eu receberei meu destino onde aprouver a Zeus e aos demnís deuses imortais. Ilíada, XXII.Astfoque, filha de Actor: uma virgem modesta quando ascendeu à parte superior damorada de seu pai, mas o deus abraçou-a secretamente. Ilíada, II.(Os mirmídões) eram como lobos carnívoros, em cujos corações há força, que tendo derrubado nas montanhas um grande cervo galhada, dilacerando-o o devoram; mas os focinhosde todos es"tfio vermelhos de sangue. Ilíada, XVI.Rei Zeus, dodoneu, pelnsgo, que preside longe daqui sobre a invernal Dodona; mas aoredor moram teus ministros, que tênt os pés sem Lavar e dormem no chão. Ilíada, XVI. Mulher; alegra-te com nosso amor, e gru+ndo o ano virar darás filhos gloriosos à luz -porque os feitos dos imortais ruïo são em vão -, mas assiste-os. Uai-te agora a tua ursa e não Oreveles, mos sou Poseidon, estremecedor da terra. Odisséia, XI.Depois percebi o vigor de Hércules, umn imagem; mas ele entre os deuses imortais sealegra com banquetes, e tem Hebe, a dos belos tornozelos, filbm do poderoso Zeus e de Hera,a de snndálias que são de ouro. Odisséia, XI.Acrescento a vistosa tradução que George Champman fez desta última passagem:Down evith these zons thrust The ido) of Nre force of Hércules, But Iris fïrrn self did no sudr fate oppress.Hz feasting lives arnongst th"Inurnorial States White-ankled Hebe and himsel f nade mates In heav"nly rruptials. Hebe, Jove"s dear roce Arrd Juno"s whmn the golden sandals graee.259#Dt$C[JS$Aocaem em duas grandes classes: umas, na puramente oratória -Quando os deuses coroaram de conquista as armas -; outras, na visual: Quando os soberbos muros de Tróia fumegaram por terra.Discursos e espetáculos: esse é Pope. Também é espetacular o ardente Chapman, mas seu movimento é lírico, não oratório. Butler, por sua vez, demonstra sua determinação

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de eludir todas as oportunidades visuais e de resolver o texto de Homero numa série de notícias tranqüilas.Qual dessas muitas traduções é fiel? talvez queira saber meu leitor. Repito que nenhuma, ou que todas. Se a fidelidade deve ser prestada às imaginações de Homero, aos irrecuperáveis homens e dias que ele imaginou, nenhuma pode sê-lo para nós; todas, para um grego do século X. Se aos propósitos que ele teve, qualquer uma das muitas que transcrevi, salvo as literais, que extraem toda sua virtude do contraste com hábitos presentes. Não é impossível que a versão morna de Butler seja a mais fiel.

1932A PERPÉTUA CORRIDA DE AQUILES

E DA TARTARUGAAs implicações da palavra jóia - valiosa pequenez, delicadeza que não está sujeita à fragilidade, facilidade máxima de translação, limpidez que não exclui o impenetrável, flor para os anos - tornam seu uso legítimo aqui. Não conheço melhor qualificação para o paradoxo de Aquiles, tão indiferente às decisivas refutações que há mais de vinte e três séculos o derrogam, que já podemos saudá-lo como imortal. As reiteradas visitas do mistério que essa perduração postula, as sutis ignorâncias a que a humanidade foi por ela convidada, são generosidades que não podemos deixar de agradecerlhe. Vamos vivê-la outra vez, ao menos para convencer-nos de perplexidade e arcano íntimo. Penso dedicar algumas páginas - alguns minutos compartilhados - a sua apresentação e à de suas mais famosas ressalvas. Sabe-se que seu inventor foi Zenão de Eléia, discípulo de Parmênides, pegador de que algo pudesse acontecer no universo.A biblioteca me oferece um par de versões do glorioso paradoxo. A primeira é a do hispaníssimo Diccionario Hispanoamericano, em seu vigésimo terceiro volume, e se limita a esta cautelosa notícia: "O movimento não existe: Aquiles não poderia alcançar a preguiçosa tartaruga". Declino essa reserva e busco a menos apressada exposição de G. H. Lewes, cuja Biographical History of Philosophy foi a primeira leitura especulativa que abordei, por vaidade, talvez, ou por curiosidade. Escrevo assim sua exposição: Aquiles, símbolo de rapidez, tem de alcançar a tartaruga, símbolo de morosidade. Aquiles corre dez vezes mais rápido que a tartaruga e lhe dá dez metros de vantagem. Aquiles corre esses dez metros, a tartaruga corre um; Aquiles corre esse metro, a tartaruga corre26O261#DISCUSSÃOum decímetro; Aquiles corre esse decímetro, a tartaruga corre um centímetro; Aquiles corre esse centímetro, a tartaruga um milímetro; Aquiles o milímetro, a tartaruga um décimo de milímetro, e assim infinitamente, de modo que Aquiles pode correr para sempre sem alcançá-la. Tal é o paradoxo imortal.Passo às chamadas refutações. As mais antigas - a de Aristóteles e a de Hobbes - estão implícitas na formulada por Stuart Mill. O problema, para ele, não passa de um exemplo, entre tantos outros, da falácia de confusão. Acredita, com esta distinção, suprimi-lo:Na conclusão do sofisma, para sempre quer dizer qualquer lapso de tempo imaginável; nas premissas, qualquer número de subdivisões de tempo. Significa que podemos dividir dez unidades por dez, e o quociente outra vez por dez, quantas vezes quisermos, e que as subdivisões do percurso não têm fim, nem, por conseguinte, as do

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tempo em que se realiza. Mas um número ilimitado de subdivisões pode se efetuar com o que é limitado. O argumento não prova outra infinitude de duração que a contida em cinco minutos. Enquanto os cinco minutos não tiverem passado, o que falta pode ser dividido por dez, e outra vez por dez, e quantas vezes desejarmos, o que é compatível com o fato de que a duração total seja cinco minutos. Prova, em suma, de que atravessar esse espaço finito requer um tempo infinitamente divisível, mas não infinito. (Mill, Sistema de Lógica, livro quinto, capítulo sete.)Não posso prever a opinião do leitor, mas estou sentindo que a refutação elaborada por Stuart Mill não passa de uma exposição do paradoxo. Basta fixar a velocidade de Aquiles a um segundo por metro, para estabelecer o tempo de que necessita.1 1 1 11O + 1 + + + + 1O 1OO 1.OOO 1O.OOOO limite da soma desta infinita progressão geométrica é doze (mais exatamente, onze e um quinto; mais exatamente, onze e três vinte e cinco avos), mas não é alcançado nunca. Ou seja, o trajeto do herói será infinito e este correrá para sempre, mas sua rota se extenuará antes de doze metros, e sua eternidade não verá o término de doze segundos. Essa dis262A PERPÉTUA CORRIDA DE AQUILES E DA TARTARUGAsolução metódica, essa ilimitada queda em precipícios cada vez mais minúsculos, não é realmente hostil ao problema: é imaginá-lo bem. Não esqueçamos tampouco de comprovar que os corredores decrescem, não só pela diminuição visual da perspectiva, mas pela diminuição admirável a que os obriga a ocupação de lugares microscópicos. Notemos também que esses precipícios encadeados corrompem o espaço, e com maior vertigem o tempo vivo, em sua dupla perseguição desesperada da imobilidade e do êxtase.Outra tentativa de refutação foi a comunicada em mil novecentos e dez por Henri Bergson, com o notório Ensaio sobre os Dados Imediatos da Consciência: o próprio nome já é uma petição de princípios. Aqui está sua página:"Por um lado, atribuímos ao movimento a própria divisibilidade do espaço que percorre, esquecendo que pode dividir-se bem um objeto, mas não um ato; por outro, habituamo-nos a projetar esse mesmo ato no espaço, a aplicá-lo à linha que percorre o móvel, a solidificá-lo, numa palavra. Desta confusão entre o movimento e o espaço percorrido nascem, em nossa opinião, os sofismas da escola de Eléia; porque o intervalo que separa dois pontos é infinitamente divisível, e se o movimento se compusesse de partes como as do intervalo, jamais o intervalo seria transposto. Mas a verdade é que cada um dos passos de Aquiles é um indivisível ato simples, e que, depois de determinado número desses atos, Aquiles teria ultrapassado a tartaruga. A ilusão dos eleatas provinha da identificação dessa série de atos individuais sui generis com o espaço homogêneo que os apóia. Como esse espaço pode ser dividido e recomposto segundo uma lei qualquer, acreditaram-se autorizados a refazer o movimento total de Aquiles, não mais com passos de Aquiles, mas com passos de tartaruga. Substituíram Aquiles perseguindo uma tartaruga, na realidade, por duas tartarugas dispostas uma sobre a outra, duas tartarugas de acordo em dar o mesmo tipo de passos ou de atos simultâneos, para jamais se alcançarem. Por que Aquiles ultrapassa a tartaruga? Porque cada um dos passos de Aquiles e cada um dos passos da tartaruga são indivisíveis enquanto movimentos, e magnitudes distintas enquanto espaço: de sorte que não tardará em dar-se a soma, para o espaço percorrido por Aquiles, como uma longitude263#Discussào

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superior à soma do espaço percorrido pela tartaruga e da vantagem que tinha em relação a ele. É o que Zenão desconsidera quando recompõe o movimento de Aquiles, segundo a mesma lei que rege o movimento da tartaruga, esquecendo que só Oespaço se presta a um modo decomposição e decomposição arbitrárias, e confundindo-o, assim, com o movimento." (Dados Imediatos, versão espanhola de Barnés, págs. 89, 9O. Corrijo, de passagem, alguma distração evidente do tradutor.) O argumento é concessivo. Bergson admite que o espaço é infinitamente divisível, mas nega que o tempo o seja. Exibe duas tartarugas em lugar de uma para distrair o leitor. Atrela um tempo e um espaço que são incompatíveis: o brusco tempo descontínuo de James, com sua perfeita efervescência de novidade, e o espaço divisível até o infinito da crença comum.Aporto, por eliminação, à única refutação que conheço, à única de inspiração condigna do original, virtude que a estética da inteligencia está reclamando. E a formulada por Russell. Encontrei-a na obra nobilíssima de William James, Some Problems of Philosophy, e a concepção total que postula pode ser estudada nos livros ulteriores de seu inventor - Introduction to Mathematieal Philosophy, 1919; Our Knowledge of the External Wortd, 1926 - livros de uma lucidez desumana, insatisfatórios e intensos. Para Russell, a operação de contar é (intrinsecamente) a de equiparar duas séries. Por exemplo, se os primogênitos de todas as casas do Egito foram mortos pelo Anjo, salvo os que moravam em casa com um sinal vermelho na porta, é evidente que se salvaram tantos quantos sinais vermelhos havia, sem que isso implique enumerar quantos foram. Aqui a quantidade é indefinida; há outras operações em que também é infinita. A série natural dos números é infinita, mas podemos demonstrar que são tantos os ímpares quanto os pares.Ao 1 corresponde o 2- 3 4- 5 " 6, etcétera.

A prova é tão irrefutável quanto supérflua, mas não difere da que demonstra que há tantos múltiplos de três mil e dezoito quantos números há.A PERPÉTUA COKRIDA DE AQUILES E DA TARTARLGAAo 1 corresponde o 3.O18" 2 6.O36" 3 9.O54" 4 " 12.O72, etcétera.Pode-se afirmar o mesmo de suas potências, por mais que estas se rarefaçam à medida que progredimos.

Ao 1 corresponde o 3.O18- 2 3.O18 ~, O9.1O8.324- 3.... etcétera.

Uma genial aceitação desses fatos inspirou a fórmula de que uma coleção infinita - verbi grada, a série dos números naturais - é uma coleção cujos membros podem desdobrarse por sua vez em séries infinitas. A parte, nessas elevadas latitudes de numeração, não é menos copiosa que o todo; a quantidade precisa de pontos que há no universo é a que há num metro de universo, ou num decímetro, ou na mais profunda trajetória estelar. O problema de Aquiles cabe nessa heróica resposta. Cada lugar ocupado pela tartaruga guarda proporção com outro ocupado por Aquiles, e a minuciosa correspondência, ponto por ponto, de ambas as séries simétricas, basta

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para declará-las iguais. Não há nenhum remanescente periódico da vantagem inicial dada à tartaruga; o ponto final de seu trajeto, o último no trajeto de Aquiles e o último no tempo de corrida, são termos que matematicamente coincidem. Tal é a solução de Russell. James, sem recusar a superioridade técnica do adversário, prefere dissentir. As explicações de Russell (escreve) eludem a verdadeira dificuldade, que diz respeito à categoria crescente do infinito, não à categoria estável, que é a única que ele considera, quando pressupõe que a corrida foi realizada e o problema é o de equilibrar os trajetos. Por outro lado, não são necessários dois: o trajeto de cada um dos corredores ou o mero lapso de tempo vazio implica a dificuldade, que é a de alcançar uma meta quando um intervalo prévio continua se apresentando a cada instante, obstruindo o caminho (Some Problems of Philosophy, 1911, pág. 181).264265#IiISCUSSÃOCheguei ao final de minha notícia, não de nossa cavilação. O paradoxo de Zenão de Eléia, segundo indicou James, é atentatório não apenas da realidade do espaço, mas da mais invulnerável e sutil do tempo. Acrescento que a existência de um corpo físico, a permanência imóvel, a fluência de uma tarde na vida, colocam-na em estado de alerta. Essa decomposição se dá simplesmente pela palavra infinito, palavra (e depois conceito) angustiante que engendramos com temeridade e que, uma vez consentida num pensamento, explode e o mata. (Há outros escarmentos antigos contra o comércio de tão aleivosa palavra: há a lenda chinesa do cetro dos reis de Liang, que a cada novo rei era reduzido à metade; o cetro, mutilado durante várias dinastias, ainda existe.) Minha opinião, depois das qualificadíssimas que apresentei, corre o duplo risco de parecer impertinente e trivial. Vou formulá-la, no entanto: Zenão é incontestável, a menos que confessemos a idealidade do espaço e do tempo. Aceitemos o idealismo, aceitemos o crescimento concreto do que percebemos, e eludiremos a pululação de abismos do paradoxo.E tocarem nosso conceito do universo por esse pedacinho de treva grega?, perguntará meu leitor.NOTA SOBRE WALT WHITMANO exercício das letras pode promover a ambição de se construir um livro absoluto, um livro dos livros que inclua todos os outros como um arquétipo platônico, um objeto cuja virtude não diminua com os anos. Os que alimentaram essa ambição elegeram elevados assuntos: Apolônio de Rodes, a primeira nau que cruzou os perigos do mar; Lucano, a luta de César e Pompeu, quando as águias guerrearam contra as águias; Camões, as armas lusitanas no Oriente; Donne, o círculo das transmigrações de uma alma, segundo o dogma pitagórico; Milton, a mais antiga das culpas e o Paraíso; Firdusi, os tronos dos sassânidas. Góngora, creio, foi o primeiro a julgar que um livro importante pode prescindir de um tema importante; a vaga história que referem as Soledades é deliberadamente fútil, conforme assinalaram e reprovaram Cascales e Gracián (Cartas Filológicas, VIII; El Criticón, II, 4). A Mallarmé não bastaram temas triviais; ele buscou os negativos: a ausência de uma flor ou de uma mulher, a brancura da folha de papel antes do poema. Como Pater, ele sentiu que todas as artes se inclinam para a música, a arte em que a forma é o fundo; sua decorosa profissão de fé Tout aboutit à un livre parece sintetizar a sentença homérica de que os deuses tecem as desventuras para que às futuras gerações não falte o que cantar (Odisséia, VIII, in fine). Yeats, por volta do ano mil e novecentos, buscou o absoluto na utilização de símbolos que despertassem a memória genérica, ou grande Memória, que pulsa sob as mentes individuais; caberia comparar esses símbolos com os ulteriores arquétipos de Jung. Barbusse, em L"Enfer, livro injustamente

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esquecido, evitou (tentou evitar) as limitações do tempo mediante o relato poético dos atos fundamentais do homem; Joyce, em Finnegans Wake, mediante a266267#DtscussAoapresentação simultânea de traços de diferentes épocas. O uso deliberado de anacronismos, para forjar uma aparência de eternidade, também foi adotado por Pound e por T. S. Eliot.Lembrei alguns procedimentos; nenhum mais curioso que o exercido, em 1855, por Whitman. Antes de considerá-lo, quero transcrever algumas opiniões que mais ou menos prefiguram o que direi. A primeira é do poeta inglês Lascelles Abercrombie. "Whitman - lemos - extraiu de sua nobre experiência essa figura vívida e pessoal que é uma das poucas coisas grandiosas da literatura moderna: a figura dele mesmo." A segunda é de Sir Edmund Gosse: "Não há um Walt Whitman verdadeiro... Whitman é a literatura em estado de protoplasma: um organismo intelectual tão simples que se limita a refletir todos os que se aproximam dele". A terceira é minha." "Quase tudo o que se escreveu sobre Whitman está falseado por dois erros intermináveis. Um é a sumária identificação de Whitman, homem de letras, com Whitman, herói semidivino de Leaves of Grass como Dom Quixote o é do Quixote; outro, a insensata adoção do estilo e vocabulário de seus poemas, vale dizer, do próprio fenômeno surpreendente que se quer explicar."Imaginemos que uma biografia de Ulisses (baseada em testemunhos de Agamenon, de Laertes, de Polifemo, de Calipso, de Penélope, de Telêmaco, do guardador de borcos, de Cila e Caríbdis) indicasse que este nunca saiu de Itaca. A decepção que esse livro nos causaria, felizmente hipotético, é a que causam todas as biografias de Whitman. Passar do orbe paradisíaco de seus versos à insípida crônica de seus dias é uma transição melancólica. Paradoxalmente, essa melancolia inevitável se agrava quando o biógrafo quer dissimular que há dois Whitman: o "amistoso e eloqüente selvagem" de Leaves of Grass e o pobre literato que o inventou. Este jamais esteve na Califórnia ou no Platte Canyon; aquele improvisa uma apóstrofe no segundo desses lugares ("Spirit that formed this scené") e foi mineiro no outro ("Starting from Paumanok", 1). Este, em 1859, estava em Nova York; aquele, em dois de1 Nesta edição, pág. 218.2 Henry Seidel Canby (Wnft W{rihnan, 1943) e Mark Van Doren na antologia da Viking Preás (1945) reconhecem muito bem essa diferença. Ninguém mais, Gue eu saiba.NOTA SOBRE WALT WHITMANdezembro desse ano, assistiu em Virgínia à execução do velho abolicionista John Brown ("Year of meteors""). Este nasceu em Long Island; aquele também ("Starting from Paumanok"), mas também num dos estados do Sul ("Longings for honre"). Este foi casto, reservado e mais para taciturno; aquele, efusivo e orgiástico. Multiplicar essas discórdias é fácil; mais importante é compreender que o mero vagabundo feliz que propõem os versos de Leaves of Grass teria sido incapaz de escrevê-los.Byron e Baudelaire dramatizaram, em ilustres volumes, suas infelicidades; Whitman, sua felicidade. (Trinta anos depois, em Sils-Maria, Nietzsche descobriria Zaratustra; esse pedagogo é feliz, ou, em todo caso, recomenda a felicidade, mas tem o defeito de não existir.) Outros heróis românticos - Vathek é o primeiro da série, Edmond Teste não é o último -acentuam prolixamente suas diferenças; Whitman, com impetuosa humildade, quer se parecer com todos os homens. Leaves of Grass, adverte, "é o canto de um grande indivíduo coletivo, popular, homem ou mulher" (Complete Writings, V, 192). Ou, imortalmente (Song of Mysel f, 17):

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Estes são na verdade os pensamentos de todos osHomens em todos os lugares e épocas; não são originais meus. Se são menos teus que meus, são nada ou quase nada. Se não são o enigma e a solução do enigma, são nada. Se não estão perto e longe, são nada.

Este é o pasto que cresce onde hlí terra e água, Este é o ar comum que banha o planeta.

O panteísmo divulgou um tipo de frases nas quais se declara que Deus é diversas coisas contraditórias ou (melhor ainda) miscelâneas. Seu protótipo é este: "Sou o rito, sou a oferenda, sou a libação de manteiga, sou o fogó" (Bhagavad Gita, IX, 16). Anterior, mas ambíguo, é o fragmento 67 de Heráclito: "Deus é dia e é noite, inverno e verão, guerra e paz, fartura e fomé". Plotino descreve a seus alunos um céu inconcebível, no qual "tudo está em todo lugar, qualquer coisa é todas as coisas, o sol é todas as estrelas, e cada estrela é todas as estrelas e o sol" (Enneadas, V, 8, 4). Attar, persa do século XII, canta a dura peregrinação dos pássaros em busca de seu268269#DiscussAorei, o Simurg; muitos perecem nos mares, mas os sobreviventes descobrem que eles são o Simurg e que o Simurg é cada um deles e todos. As possibilidades retóricas dessa extensão do princípio de identidade parecem infinitas. Emerson, leitor dos hindus e de Attar, deixou-nos o poema "Brahma"; dos dezesseis versos que o compõem, talvez o mais memorável seja este: "When me they fly, I am the wings" (Se elas me fogem, eu sou as asas). Análogo, mas de voz mais elementar, é "Ich bin der Eine und bin Beide", de Stefan George (Der Stern des Bundes). Walt Whitman renovou esse procedimento. Não o exerceu, como outros, para definir a divindade ou para brincar com as "simpatias e diferenças" das palavras; quis se identificar, numa espécie de ternura feroz, com todos os homens. Disse (Crossing Brooklyn Ferry, 7):Fui obstinado, vaidoso, ávido, superficial, esperto, covarde, maligno;O lobo, a serpente, e o porco não faltavam em mim...Também (Song of Myself, 33):Eu sou o homem. Eu sofri. Estava lá.O desdém e a tranqüilidade dos mártires;A mãe, condenada como bruxa, queimada diante dos filhos, comlenha seca;O escravo acuado que vacila, se apóia contra a sebe, ofegante, coberto de suor;As pontadas que lhe atravessam as pernas e o pescoço, as cruéis munições e balas;Tudo isso eu sinto, eu sou.Tudo isso sentiu e foi Whitman, mas fundamentalmente ele foi - não na mera história, no mito - o que denotam estes dois versos (Song of Myself, 24):Walt Whitman, um cosmos, filho de Manhattan,Turbulento, carnal, sensual, comendo, bebendo, engendrando.

Também foi o que seria no futuro, em nossa nostalgia vindoura, criada por estas profecias que a anunciaram ("Full of life, now"):Nora SOBRE Watir WHITMAIVCheio de vida, hoje, compacto, visível,Eu, com quarenta anos de idade no ano oitenta e três dos

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Estados,A ti, dentro de um século ou de muitos séculos, A ti, que não nascestes, procuro. Estás lendo-me. Agora o invisível sou eu,Agora és tu, compacto visível, quem intui os versos e me procura, Pensando em como seria feliz se eu pudesse ser teu companheiro. Sê feliz como se eu estivesse contigo. (Não tenhas muita certezade que não estou contigo.)

Ou (Songs of Parting, 4, 5):

Camarada! Este não é um livro;O que me toca, toca um homem.(E noite? Estamos sozinhos aqui?...) Te amo, me despojo deste invólucro.Sou como algo incorpóreo, triunfante, morto.3

Walt Whitman, homem, foi diretor do Brooklyn Eagle, e leu suas idéias fundamentais nas páginas de Emerson, de Hegel e de Volney; Walt Whitman, personagem poético, derivou-as do contato com a América, ilustrado por experiências imaginárias nas alcovas de New Orleans e nos campos de batalha da Geór~ia. Um fato falso pode ser essencialmente verdadeiro. E fama que Henrique I da Inglaterra não voltou a sorrir depois da morte de seu filho; o fato, talvez falso, pode ser verdadeiro como símbolo do abatimento do rei. Dizia-se, em 1914, que os alemães haviam torturado e mutilado alguns reféns belgas; a notícia, sem dúvida, era falsa, mas sintetizava utilmente os infinitos e confusos horrores da invasão. Ainda mais perdoável é o caso dos que atribuem uma doutrina a experiências vitais e não a tal biblioteca ou a tal epítome.3 O mecanismo dessas apóstrofes é complicado. Ficamos emocionados com o fato de o poeta se emocionar ao prever nossa emoção. Cf. estas linhas de Flecker, dirigidas ao poeta que o lerá, mil anos depois:O friend unseen, unborn, unknown, Shident of our sweet English tongue Read out my eoords at night, alone: I was a poet, l Boas young.27O271#DtscussAoNietzsche, em 1874, zombou da tese pitagórica de que a história se repete ciclicamente (Vom Nutzen und Nachteil der Historie, 2); em 1881, numa trilha dos bosques de Silvaplana, subitamente concebeu essa tese (Ecce Homo, 9). O grosseiro, o ordinariamente policial, é falar de plágio; Nietzsche, questionado, replicaria que o importante é a transformação que uma idéia pode operar em nós, não o mero fato de expô-la." Uma coisa é a abstrata proposição da unidade divina; outra, a rajada que arrancou do deserto alguns pastores árabes e os impeliu a uma batalha que não cessou e cujos limites foram a Aquitânia e o Ganges. Whitman se propôs exibir um democrata ideal, não formular uma teoria.Desde que Horácio, com imagem platônica ou pitagórica, predisse sua celeste metamorfose, é clássico nas letras o tema da imortalidade do poeta. Os que o freqüentaram o fizeramem função da vanglória ("Not marble, not the gilded monuments"), quando não do suborno e da vingança; Whitman deriva de seu uso uma relação pessoal com cada futuro leitor. Confunde-se com ele e dialoga com o outro, com Whitman(Salut au Monde, 3):

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O que ouves, Walt Whitman?

Assim se desdobrou no Whitman eterno, nesse amigo que é um velho poeta americano de mil oitocentos e tantos e também sua lenda e também cada um de nós e também a felicidade. Vasta e quase inumana foi a tarefa, mas não menor foi a vitória.4 A razão e a convicção diferem tanto que as mais graves objeções a qualquer doutrina filosófica costumam preexistir na obra que a proclama. Platão, no Pnrrnënídes, antecipa o argumento do terceiro homem que irá opor-lhe Aristóteles; Berkeley(Dialogues, 3), as refutações de Hume.AVATARES DA TARTARUGAHá um conceito que corrompe e transtorna os outros. Não falo do Mal cujo limitado império é a ética; falo do infinito. Pensei em compilar algum dia sua movediça história. A numerosa Hidra (monstro palustre que vem a ser prefiguração ou emblema das progressões geométricas) daria conveniente horror a seu pórtico; seria coroada pelos sórdidos pesadelos de Kafka e seus capítulos centrais não desconheceriam as conjeturas desse remoto cardeal alemão - Nicolau de Krebs, Nicolau de Cusa - que viu na circunferência um polígono com um número infinito de ângulos e deixou escrito que uma linha infinita seria uma reta, seria um triângulo, seria um círculo e seria uma esfera (De Docta Ignorantia, I, 13). Cinco, sete anos de aprendizado metafísico, teológico, matemático, me capacitariam (talvez) para planejar decorosamente esse livro. Inútil acrescentar que a vida me proíbe essa esperança, e mesmo esse advérbio.A essa ilusória Biografia do infinito pertencem de algum modo estas páginas. Seu propósito é registrar certos avatares do segundo paradoxo de Zenão.Lembremos, agora, esse paradoxo.Aquiles corre dez vezes mais rápido que a tartaruga e lhe dá uma vantagem de dez metros. Aquiles corre esses dez metros, a tartaruga corre um; Aquiles corre esse metro, a tartaruga corre um decímetro; Aquiles corre esse decímetro, a tartaruga corre um centímetro; Aquiles corre esse centímetro, a tartaruga um milímetro; Aquiles Pés-ligeiros o milímetro, a tartaruga um décimo de milímetro e assim infinitamente, sem alcançá-la... Esta é a versão habitual. Wilhelm Capelle (Die Vorsokratiker, 1935, pág. 178) traduz o texto original de Aristóteles: "O segundo argumento de Zenão é o que se272273#DISCUSSÃOdenomina Aquiles. Alega que o mais lento não será alcançado pelo mais veloz, pois o perseguidor tem de passar pelo lugar que o perseguido acaba de deixar livre, de sorte que o mais lento sempre leva uma determinada vantagem". O problema não muda, como se vê; mas eu gostaria de conhecer o nome do poeta que o dotou de um herói e de uma tartaruga. A esses competidores mágicos e à série

1 1 1 11O + 1 + + + +1O 1OO 1.OOO 1O.OOO

o argumento deve sua difusão. Quase ninguém se lembra do que o antecede - o da pista -, embora seu mecanismo seja idêntico. O movimento é impossível (considera Zenão), pois o móvel deve atravessar o meio para chegar ao fim, e antes o meio do meio, e antes o meio do meio do meio, e antes..."Devemos à pena de Aristóteles a comunicação e a primeira refutação desses argumentos. Ele os refuta com brevidade talvez desdenhosa, mas sua lembrança lhe inspira

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o famoso argumento do terceiro homem contra a doutrina platônica. Essa doutrina quer demonstrar que dois indivíduos que têm atributos comuns (por exemplo, dois homens) são meras aparências temporais de um arquétipo eterno. Aristóteles pergunta se os muitos homens e o Homem - os indivíduos temporais e o Arquétipo - têm atributos comuns. É evidente que sim; têm os atributos gerais da humanidade. Nesse caso, afirma Aristóteles, será preciso postular outro arquétipo que contenha todos e depois um quarto... Patrício de Azcárate, numa nota a sua tradução da Metafi"sica, atribui a um discípulo de Aristóteles esta apresentação: "Se o que se afirma de muitas coisas ao mesmo tempo é um ser à parte, diferente das coisas de que se afirma (e isto é o que pretendem os platônicos), é preciso que haja um terceiro homem. E uma denominação que se aplica aos indivíduos e à idéia. Há, pois, um terceiro homem diferente dos homens particulares e da idéia. Há ao mesmo tempo um quarto, que estará na mesma relação com este e com1 Um século depois, o sofista chinës Hui Tzu argumentou que um bastão, cortado pela metade a cada dia, é interminável (H. A. Giles: Chuang Tzu, 1889, pág. 453).AVATARES DA TARTARUGAa idéia dos homens particulares; depois um quinto, e assim infinitamenté". Postulamos dois indivíduos, a e b, que integram o gênero c. Teremos entãoa+b=cMas também, segundo Aristóteles:a+b+c=d a+b+c+d=e a+b+c+d+e=f...A rigor não são necessários dois indivíduos: bastam o indivíduo e o gênero para determinar o terceiro homem que Aristóteles denuncia. Zenão de Eléia recorre à infinita regressão contra o movimento e o número; seu refutador, contra as formas universais.2O próximo avatar de Zenão que minhas desordenadas notas registram é Agripa, o Cético. Este nega que algo possa ser provado, pois toda prova requer uma prova anterior (Hypotyposes, I,166). Sexto Empírico argumenta analogamente que as definições são inúteis, pois seria preciso definir cada uma das palavras utilizadas e, depois, definir a definição (Hypotyposes, II, 2O7). Mil e seiscentos anos depois, Byron, na dedicatória de Don Juan, escreverá de Coleridge: "I wish hewould explain His Explanation".2 No Parmënides - cujo caráter zenoniano é irrecusável - Platão expõe um argumento muito parecido para demonstrar que o um é realmente muitos. Se o um existe, participa do ser; por conseguinte, há nele duas partes, que são o ser e o um, mas cada uma dessas partes é uma e é, de modo que encerra outras duas, que também encerram outras duas: infinitamente. Russell (Introductíon to Mathematical Philosophy, 1919, pág. 138) substitui a progressão geométrica de Platão por uma progressão aritmética. Se o um existe, o um participa do ser, mas como são diferentes o ser e o um, existe o dois, mas como são diferentes o ser e o dois, existe o três, etc. Chuang Tzu (Waley: Three Ways of Thought ín Ancient China, pág. 25) recorre ao mesmo interminável regressos contra os monistas que declaravam que as Dez Mil Coisas (o Universo) são uma só. Em todo caso - alega - a unidade cósmica e a declaração dessa unidade já são duas coisas: essas duas e a declaração de sua dualidade já são três; essas três e a declaração de sua trindade já são quatro... Russell opina que a imprecisão do termo ser basta para invalidar o raciocínio. Acrescenta que os números não existem, que são meras ficções lógicas.274275#DISCUSSÀO

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Até aqui, o regressus irt infinitum serviu para negar; Santo Tomás de Aquülo recorre a ele (Suma Teológica, 1, 2, 3) para afirmar que Deus existe. Adverte que não há coisa no universo que não tenha uma causa eficiente e que essa causa, evidentemente, é o efeito de outra causa anterior. O mundo é um interminável encadeamento de causas e cada causa é um efeito. Cada estado provém do anterior e determina o subseqüente, mas a série geral pode não ter sido, pois os termos que a formam são condicionais, ou seja, aleatórios. No entanto, o mundo é; deles podemos inferir uma não contingente causa primeira que será a divindade. Tal é a prova cosmológica; Aristóteles e Platão a prefiguram; Leibniz a redescobre."Hermann Lotze apela ao regressus por não compreender que uma alteração do objeto A possa produzir uma alteração do objeto B. Argumenta que se A e B são independentes, postular um influxo de A sobre B é postular um terceiro elemento C, um elemento que para operar sobre B vai necessitar de um quarto elemento D, que não poderá operar sem E, que não poderá operar sem F...Para eludir essa multiplicação de quimeras, resolve que no mundo há um único objeto: uma infinita e absoluta substância, equiparável ao Deus de Spinoza. As causas transitivas se reduzem a causas imanentes; os fatos, a manifestações ou modos da substância cósmica.4Análogo, mas ainda mais alarmante, é o caso de F. H. Bradey. Este argumentador (Appearanee and Reality,1897, págs. 19-34) não se limita a combater a relação causal; nega todas as relações. Pergunta se uma relação está relacionada com seus termos. Respondem-lhe que sim e infere que isso é admitir a existência de outras duas relações, e depois de outras duas. No axioma a parte é menor que o todo, ele não percebe dois termos e a relação menor que; percebe três (parte, menor que, todo), cuja vinculação implica outras duas relações, e assim até o infinito. No juízo João é mortal, percebe três conceitos inconjugáveis (o terceiro é a cópula) que nunca conseguiremos unir.3 Um eco dessa prova, agora morta, retumba no primeiro verso do Paradiso: "La gloria de Calui Che tutto mové".4 Sigo a exposição de James (A Pluralistic llniverse, 19O9, págs. 55-6O). Cf. Wentscher: Fechner und Lotze, 1924, págs. 166-771.AVATARES DA TARTARUGATransforma todos os conceitos em objetos incomunicados, duríssimos. Refutá-lo é contaminar-se de irrealidade.Lotze interpõe os abismos periódicos de Zenão entre a causa e o efeito; Bradey, entre o sujeito e o predicado, quando não entre o sujeito e os atributos; Lewis Carroll (Mind, volume quarto, pág. 278) entre a segunda premissa do silogismo e a conclusão. Refere um diálogo sem fim, cujos interlocutores são Aquiles e a tartaruga. Ao termo de sua interminável corrida, os dois atletas conversam amigavelmente sobre geometria. Estudam este claro arrazoado:a) Duas coisas iguais a uma terceira são iguais entre si.b) Os dois lados deste triângulo são iguais a MN.z) Os dois lados deste triângulo são iguais entre si.A tartaruga aceita as premissas a e b, mas nega que justifiquem a conclusão. Faz com que Aquiles interpole uma proposição hipotética.a) Duas coisas iguais a uma terceira são iguais entre si.b) Os dois lados deste triângulo são iguais a MN.c) Se a e b são válidas, z é válida.z) Os dois lados deste triângulo são iguais entre si.

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Feito este breve esclarecimento, a tartaruga aceita a validade de a, b, c, mas não de z. Aquiles, indignado, interpola:d) Se a, b e c são válidas, z é válida.E acrescenta, com certa resignação daqui em diante:e) Se a, b, c e d são válidas, z é válida.Carroll observa que o paradoxo do grego comporta uma infinita série de distâncias que diminuem, e que no proposto por ele as distâncias aumentam.Um exemplo final, talvez o mais elegante de todos, mas também o que menos difere de Zenão. William James (Some Problems of Philosophy, 1911, pág. 182) nega que possam transcorrer catorze minutos, porque antes é forçoso que tenham se passado sete, e antes de sete, três minutos e meio, e antes de três e meio, um minuto e três quartos, e assim até o fim, até o invisível fim, por tênues labirintos de tempo.Descartes, Hobbes, Leibniz, Mill, Renouvier, Georg Cantor, Gomperz, Russell e Bergson formularam explicações - nem sempre inexplicáveis e inúteis - do paradoxo da tartaruga. (Eu registrei algumas.) Também são muitas, como o leitor pôde ver, suas aplicações. As históricas não a esgotam: o ver276277#DISCUSSÃOtiginoso regressus in infinitum talvez seja aplicável a todos os temas. A estética: tal verso nos comove por tal motivo, tal motivo por tal outro motivo... Ao problema do conhecimento: conhecer é reconhecer, mas é preciso ter conhecido para reconhecer, mas conhecer é reconhecer... Como julgar essa dialética? É um legítimo instrumento de indagação ou apenas um mau hábito?E arriscado pensar que uma coordenação de palavras (as filosofias não são outra coisa) possa se assemelhar muito ao universo. Também é arriscado pensar que dessas coordenações ilustres, alguma - ao menos de modo infinitesimal - não se assemelhe um pouco mais do que outras. Examinei as que gozam de certo crédito; atrevo-me a assegurar que só na formulada por Schopenhauer reconheci algum traço do universo. Segundo essa doutrina, o mundo é uma fábrica da vontade. A arte - sempre - requer irrealidades visíveis. Limito-me a citar uma: a dicção metafórica ou numerosa ou cuidadosamente casual dos interlocutores de um drama... Admitamos o que todos os idealistas admitem: o caráter alucinatório do mundo. Façamos o que nenhum idealista fez: busquemos irrealidades que confirmem esse caráter. Nós as encontraremos, creio, nas antinomias de Kant e na dialética de Zenão."O maior feiticeiro" (escreve memoravelmente Novalis) "seria o que se enfeitiçasse até o ponto de ver suas próprias fantasmagorias como aparições autônomas. Não seria esse o nosso caso?" Presumo que sim. Nós (a indivisa divindade que opera em nós) sonhamos o mundo. Nós o sonhamos resistente, misterioso, visível, ubíquo no espaço e firme no tempo; mas aceitamos em sua arquitetura tênues e eternos interstícios de desrazão para saber que é falso.VINDICAÇÃO DE BOUUARD ET PÉCUCHETA história de Bouvard e de Pécuchet é enganosamente simples. Dois copistas (cuja idade, como a de Alonso Quijano, beira os cinqüenta anos) travam estreita amizade: uma herança lhes permite deixar o emprego e fixarem-se no campo, onde ensaiam agronomia, jardinagem, fabricação de conservas, anatomia, arqueologia, história, mnemônica, literatura, hidroterapia, espiritismo, ginástica, pedagogia, veterinária, filosofia e religião; cada uma dessas disciplinas heterogêneas lhes depara um fracasso ao cabo de vinte ou trinta anos. Desencantados (já veremos que a "ação" não ocorre no tempo, mas na eternidade), encomendam a um carpinteiro uma carteira escolar

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dupla e se põem a copiar, como antes."Seis anos de sua vida, os últimos, foram dedicados por Flaubert ao projeto e à execução desse livro, que afinal ficou inconcluso, e que Gosse, tão devoto de Madame Bovary, julgaria uma aberração, e Remy de Gourmont, a obra capital da literatura francesa, e quase de toda a literatura.Émile Faguet ("o cinzento Faguet", chamou-o certa vez Gerchunoff) publicou em 1899 uma monografia que tem a virtude de esgotar os argumentos contra Bouvard et Pécuchet, o que é uma comodidade para o exame crítico da obra. Flaubert, segundo Faguet, sonhou uma epopéia da idiotice humana e superfluamente lhe deu (movido por lembranças de Pangloss e Candide e, talvez, de Sancho e Quixote) dois protagonistas que não se complementam e não se opõem e cuja dualidade não passa de artifício verbal. Criados ou postulados esses fantoches, Flaubert faz com que leiam uma biblioteca, para que não a entendam. Faguet denuncia o caráter pueril desse jogo, e1 Creio perceber aqui uma referência irônica ao próprio destino de Flaubert.2%8279#DISCUSSÀOo perigoso, já que Flaubert, para idear as ações de seus dois imbecis, leu mil e quinhentos tratados de agronomia, pedagogia, medicina, física, metafísica, etc., com o propósito de não compreendê-los. Observa Faguet: "Se alguém se obstina em ler do ponto de vista de um homem que lê sem entender, em muito pouco tempo consegue não entender absolutamente nada e ser obtuso por conta própria". O fato é que cinco anos de convivência foram transformando Flaubert em Pécuchet e Bouvard ou (mais precisamente) Pécuchet e Bouvard em Flaubert. Aqueles, no início, são dois idiotas, menosprezados e humilhados pelo autor, mas no oitavo capítulo ocorrem as famosas palavras: "Então uma faculdade lamentável surgiu em seu espírito, a de ver a estupidez e já não poder tolerá-la". E depois: "Entristeciam-se com coisas insignificantes: os anúncios dos jornais, o perfil de um burguês, uma bobagem ouvida ao acaso". Flaubert, neste ponto, se reconcilia com Bouvard e com Pécuchet, Deus com suas criaturas. Isso talvez aconteça em toda obra extensa, ou simplesmente viva (Sócrates chega a ser Platão; Peer Gynt a ser Ibsen), mas aqui surpreendemos o instante em que o sonhador, para dizê-lo com uma metáfora afim, percebe que está sonhando a si mesmo e que as formas de seu sonho são ele.A primeira edição de Bouvard et Pécuchet é de março de 1881. Em abril, Henry Céard ensaiou esta definição: "uma espécie de Fausto em duas pessoas". Na edição da Pléiade, Dumesnil confirma: "As primeiras palavras do monólogo de Fausto, no início da primeira parte, são todo o plano de Bouvard et Pécuchet". Aquelas palavras em que Fausto deplora ter estudado inutilmente filosofia, jurisprudência, medicina e, ai!, teologia. Faguet, além disso, já havia escrito: "Bouvard et Pécuchet é a história de um Fausto que foi também um idiota". Guardemos este epigrama, no qual de algum modo está cifrada toda a intrincada polêmica.Flaubert declarou que um de seus propósitos era a revisão de todas as idéias modernas; seus detratores argumentam que o fato de que a revisão esteja a cargo de dois imbecis basta, com razão, para invalidá-la. Inferir dos percalços destes palhaços a vaidade das religiões, das ciências e das artes, não passa de um sofisma insolente ou de uma falácia grosseira. Os fracassos de Pécuchet não implicam um fracasso de Newton.VINDICAÇÃO DE BOLIVARD ET PÉCUCHETPara refutar essa conclusão, o comum é negar a premissa. Digeon e Dumesnil invocam, assim, uma passagem de Maupassant, confidente e discípulo de Flaubert, na qual

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se lê que Bouvard e Pécuchet são "dois espíritos bastante lúcidos, medíocres e simplórios". Dumesnil sublinha o epíteto "lúcidos", mas o testemunho de Maupassant - ou do próprio Flaubert, se isso fosse possível - nunca será tão convincente quanto Opróprio texto da obra, que parece impor a palavra "imbecis".A justificativa de Bouvard et Pécuchet, atrevo-me a sugerir, é de ordem estética, e pouco ou nada tem a ver com as quatro figuras e os dezenove modos do silogismo. Uma coisa é o rigor lógico, outra a tradição quase instintiva de pôr as palavras fundamentais na boca dos simples e dos loucos. Lembremos a reverência que o Islã tributa aos idiotas, porque se entende que suas almas foram arrebatadas pelo céu; lembremos aquelas passagens da Escritura em que se lê que Deus escolheu o néscio do mundo para envergonhar os sábios. Ou, se preferirmos os exemplos concretos, pensemos em Manalive de Chesterton, que é uma visível montanha de simplicidade e um abismo de divina sabedoria, ou em João Escoto, que argumentou que o melhor nome de Deus é Nihilum (Nada) e que "ele mesmo não sabe o que é, porque não é um que...". O imperador Montezuma disse que os bufões ensinam mais que os sábios, porque se atrevem a dizer a verdade; Flaubert (que, no fim das contas, não estava elaborando uma demonstração rigorosa, uma Destructio philosophorum, mas uma sátira) pode muito bem ter tomado o cuidado de confiar suas últimas dúvidas e seus medos mais secretos a dois irresponsáveis.Cabe entrever uma justificativa mais profunda. Flaubert era devoto de Spencer; nos First Principies do mestre lemos que o universo é incognoscível, pela suficiente e clara razão de que explicar um fato é referi-lo a outro mais geral e de que esse processo não tem fim,Z ou nos conduz a uma verdade tão geral que não podemos referi-la a nenhuma outra; ou seja, explicá-la. A ciência é uma esfera finita que cresce no espaço infinito; cada nova expansão lhe permite compreender uma zona maior do desconhecido, mas o desconhecido é ines2 Agripa, o Cético argumentou que toda prova exige, por sua vez, outra prova, e assim infinitamente.28O281#DiscussAogotável. Escreve Flaubert: "Ainda não sabemos quase nada e gostaríamos de adivinhar essa última palavra que nunca nos será revelada. O frenesi de se chegar a uma conclusão é a mais funesta e estéril das manias". A arte opera necessariamente com símbolos; a maior esfera é um ponto no infinito; dois absurdos copistas podem representar Flaubert e também Schopenhauer ou Newton.Taine repetiu a Flaubert que o sujeito de seu romance exigia uma pena do século XVIII, a concisão e a mordacidade (le mordant) de um Jonathan Swift. Talvez ele tenha falado de Swift porque sentiu de algum modo a afinidade entre os dois grandes e tristes escritores. Ambos odiaram com ferocidade minuciosa a estupidez humana; ambos documentaram esse ódio, compilando, ao longo dos anos, frases triviais e opiniões idiotas; ambos quiseram abater as ambições da ciência. Na terceira parte de Gulliver, Swift descreve uma venerada e vasta academia, cujos indivíduos propõem que a humanidade prescinda da linguagem oral para não gastar os pulmões. Outros amolecem o mármore para a fabricação de travesseiros e almofadas; outros querem propagar uma variedade de ovelhas sem lã; outros acreditam resolver os enigmas do universo mediante uma armação de madeira com manivelas de ferro, que combina palavras ao acaso. Essa invenção vai contra a Arte Magna de Llull...René Descharmes examinou, e reprovou, a cronologia de Bouvard et Pécuchet. A ação requer cerca de quarenta anos; os protagonistas têm sessenta e oito quando se entregam

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à ginástica, no mesmo ano em que Pécuchet descobre o amor. Num livro tão povoado de circunstâncias, o tempo, no entanto, está imóvel; além dos ensaios e fracassos dos dois Faustos (ou do Fausto bicéfalo), nada acontece; faltam as vicissitudes comuns e a fatalidade e o acaso. "Os figurantes do desenlace são os do preâmbulo; ninguém viaja, ninguém morre", observa Claude Digeon. Em outra página, conclui: "A honestidade intelectual de Flaubert lhe pregou uma peça terrível: levou-o a sobrecarregar seu conto filosófico, a conservar sua pena de romancista para escrevê-lo°.As negligências ou desdéns ou liberdades do último Flaubert desconcertaram os críticos; acredito ver nelas um símbolo. O homem que com Madame Bovary forjou o romanceVINDICAÇÃO DE BOUVARD ET PÉCUCHErrealista foi também o primeiro a romper com ele. Chesterton, ainda ontem, escrevia: "O romance bem pode morrer conoscó". O instinto de Flaubert pressentiu essa morte, que já está ocorrendo - o Ulisses, com seus planos e horários e precisões, não é a esplêndida agonia de um gênero? -, e no quinto capítulo da obra condenou os romances "estatísticos ou etnográficos" de Balzac e, por extensão, os de Zola. Por isso, o tempo de Bouvard et Pécuchet se inclina para a eternidade; por isso, os protagonistas não morrem e continuarão copiando, perto de Caen, seu anacrônico Sottisier, tão ignorantes de 1914 quanto de 187O; por isso, a obra mira, no passado, as parábolas de Voltaire e de Swift e, adiante, as de Kafka.Há, talvez, outra chave. Para zombar dos anseios da humanidade, Swift os atribuiu a pigmeus ou a símios; Flaubert, a dois sujeitos grotescos. Evidentemente, se a história universal é a história de Bouvard e de Pécuchet, tudo o que a integra é ridículo e inconsistente.282283#FLAUBERT E SEU DESTINO EXEMPLARNum artigo destinado a abolir ou a arrefecer o culto de Flaubert na Inglaterra, John Middeton Murry observa que há dois Flaubert: um, o homenzarrão ossudo, amável, mais para simples, com o ar e o riso de um camponês, que passou a vida agonizando sobre a cultura intensiva de meia dúzia de volumes desiguais; outro, um gigante incorpóreo, um símbolo, um grito de guerra, uma bandeira. Declaro que não entendo essa oposição; o Flaubert que agonizou para produzir uma obra avara e preciosa é, exatamente, o da lenda e (se os quatro volumes de sua correspondência não nos enganam) também o da história. Mais importante que a importante literatura premeditada e realizada por ele é este Flaubert, que foi o primeiro Adão de uma nova espécie: a do homem de letras como sacerdote, como asceta e quase como mártir.A Antiguidade, pelas razões que já veremos, não conseguiu produzir esse tipo. No Ion lemos que o poeta "é uma coisa leve, alada e sagrada, que nada pode compor até estar inspirado, que é quase, diríamos, um possesso". Semelhante doutrina do espírito que sopra onde bem entende (João 3, 8) era hostil a uma valoração pessoal do poeta, rebaixado a instrumento momentâneo da divindade. Nas cidades gregas ou em Roma é inconcebível um Flaubert; talvez o homem que mais se aproximou dele tenha sido Píndaro, o poeta sacerdotal, que comparou suas odes a caminhos pavimentados, à maré, a talhas de ouro e de marfim e a edifícios, e que sentia e encarnava a dignidade da profissão das letras.A doutrina "romântica" da inspiração que os clássicos professaram," cabe acrescentar um fato: o sentimento geral de1 Seu oposto é a doutrina "clássica" do romântico Poe, que faz do trabalho do poeta um exercício intelectual.

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284FLAUBERT E SEU DESTINO EXEMPLARque Homero já havia esgotado a poesia ou, pelo menos, havia descoberto a forma cabal da poesia, o poema heróico. Alexandre da Macedônia punha todas as noites sob o travesseiro seu punhal e sua Ilíada, e Thomas de Quincey refere que um pastor inglês jurou do púlpito "pela grandeza dos padecimentos humanos, pela grandeza das aspirações humanas, pela imortalidade das criações humanas, pela Ilíada, pela Odisséia!". A cólera de Aquiles e os rigores da volta de Ulisses não são temas universais; nessa limitação, a posteridade fundou uma esperança. Impor a outras fábulas, invocação por invocação, batalha por batalha, máquina sobrenatural por máquina sobrenatural, o curso e a configuração da Ilíada, foi o propósito máximo dos poetas, durante vinte séculos. Zombar dele é muito fácil, mas não da Eneida, que foi sua feliz conseqüência. (Lemprière discretamente inclui Virgílio entre os benefícios de Homero.) No século XIV, Petrarca, devoto da glória romana, pensou ter descoberto nas guerras púnicas a matéria perdurável da epopéia; Tasso, no século XVI, optou pela primeira cruzada. Dedicou-lhe duas obras, ou duas versões de uma obra; uma delas é famosa, a Gerusalemme Liberata; outra, a Conquistata, que quer ajustar-se mais à Ilíada, é apenas curiosidade literária. Nela se atenua a ênfase do texto original, operação que, executada sobre uma obra essencialmente enfática, pode equivaler a sua destruição. Assim, na Liberata (VIII, 23), lemos sobre um homem gravemente ferido e valente que não se decide a morrer:

La vita no, ma la virtú sostenta quel eadavere indomito e feroce

Na revisão, hipérbole e eficácia desaparecem:

La vita no, ma la z~irtú sostenta il cavaliere indomito e feroce.

Milton, depois, vive para construir um poema heróico. Desde a infância, talvez antes de ter escrito uma linha, sabe-se devotado às letras. Teme ter nascido tarde demais para a épica (longe demais de Homero, longe demais de Adão) e numa latitude fria demais, mas se exercita na arte de versificar, durante285#DiscussãoFLAUBERT E SEU DESTINO EXEMPLARmuitos anos. Estuda hebraico, aramaico, italiano, francês, grego e, naturalmente, latim. Compõe hexâmetros latinos e gregos e hendecassílabos toscanos. E continente, porque sente que a incontinência pode consumir sua faculdade poética. Escreve, aos trinta e três anos, que o poeta deve ser um poema, "ou seja, uma composição e arquétipo das coisas melhores", e que ninguém indigno de elogio deve se atrever a celebrar "homens heróicos ou cidades famosas". Sabe que um livro que os homens não deixarão morrer sairá de sua pena, mas o sujeito ainda não lhe foi revelado e ele o procura na Matière de Bretagne e nos dois Testamentos. Num papel casual (que hoje é o Manuscrito de Cambridge) anota uma centena de temas possíveis. Escolhe, por fim, a queda dos anjos e do homem, tema histórico naquele século, ainda que agora o julguemos simbólico ou mitológico.ZMilton, Tasso e Virgílio se consagraram à execução de poemas; Flaubert foi o primeiro a se consagrar (dou a esta palavra seu rigor etimológico) à criação de uma

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obra puramente estética em prosa. Na história das literaturas, a prosa é posterior ao verso; este paradoxo incitou a ambição de Flaubert. "A prosa nasceu ontem", escreveu. "O verso é por excelência a forma das literaturas antigas. As combinações da métrica se esgotaram; mas não as da prosa." E em outro lugar: "O romance espera seu Homero".O poema de Milton abarca o céu, o inferno, o mundo e o caos, mas ainda é uma Ilíada, uma Ilíada do tamanho do universo; Flaubert, por sua vez, não quis repetir ou superar um modelo anterior. Pensou que cada coisa só pode ser dita de um modo e que é obrigação do escritor encontrar esse modo. Clássicos e românticos discutiam clamorosamente e Flaubert disse que seus fracassos podiam diferir, mas que seus acertos eram iguais, porque o belo sempre é o preciso, o justo, e um bom verso de Boileau é um bom verso de Hugo. Acreditou

2 Sigamos as variações de um traço homérico, ao longo do tempo. Helena de Tróia, na Ilíada, tece um tapete, e o que tece são batalhas e desventuras da guerra de Tróia. Na Eneida, o herói, prófugo da guerra de Tróia, chega a Cartago e vê figuradas numtemplo cenas dessa guerra, e, entre tantas imagens de guerreiros, também a sua. Na segunda "Jerusalém", Godofredo recebe os embaixadores egípcios num pavilhão historiado cujas pinturas representam suas próprias guerras. Das três versões, a última é a menos feliz.numa harmonia preestabelecida do eufônico e do exato e se maravilhou com a "relação necessária entre a palavra justa e a palavra musical". Esta superstição da linguagem teria levado outro escritor a tramar um pequeno dialeto de maus hábitos sintáticos e prosódicos; não Flaubert, cuja decência fundamental o salvou dos riscos de sua doutrina. Com muita probidade perseguiu o mot juste, que certamente não exclui o lugar-comum e que degeneraria, depois, no fátuo mot rate dos cenáculos simbolistas.A história conta que o famoso Lao-tsé quis viver secretamente e não ter nome; semelhante vontade de ser ignorado e semelhante celebridade marcam o destino de Flaubert. Este queria não estar em seus livros, ou queria estar- apenas de modo invisível, como Deus em suas obras; o fato é que se não soubéssemos previamente que uma mesma pena escreveu Salammbô e Madame Bovary não poderíamos adivinhá-lo. Não menos inegável é que pensar na obra de Flaubert é pensar em Flaubert, no ansioso e laborioso trabalhador das muitas consultas e dos rascunhos inextricáveis. Quixote e Sancho são mais reais que o soldado espanhol que os inventou, mas nenhuma criatura de Flaubert é real como Flaubert. Os que dizem que sua obra capital é a Correspondência podem argumentar que nesses volumes varonis está a face de seu destino.Esse destino continua sendo exemplar, como o de Byron para os românticos. À imitação da técnica de Flaubert devemos The Oid Wives" Tale e O Primo Basalio; seu destino se repetiu, com misteriosas magnificações e variações, no de Mallarmé (cujo epigrama O mundo existe para acabar num livro exprime uma convicção de Flaubert), no de Moore, no de Henry James e no do intrincado e quase infinito irlandês que teceu o Ulisses.286287#O ESCRITOR ARGENTINO E A TRADIÇÃO"Quero formular e justificar algumas proposições céticas sobre o problema do escritor argentino e a tradição. Meu ceticismo não se refere à dificuldade ou impossibilidade de resolvê-lo, mas à própria existência do problema. Creio que se nos depara um tema retórico, apto para desenvolvimentos patéticos; mais que de uma verdadeira dificuldade mental, entendo que se trata de uma aparência, de um simulacro, de um pseudoproblema.Antes de examiná-lo, quero considerar as propostas e soluções mais correntes. Começarei por uma solução que se tornou quase instintiva, que se apresenta sem o concurso

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de argumentações: a que afirma que a tradição literária argentina já existe na poesia gauchesca. Segundo ela, o léxico, os procedimentos, os temas da poesia gauchesca devem ilustrar o escritor contemporâneo, são um ponto de partida e talvez um arquétipo. É a solução mais comum, e por isso pretendo demorar-me em seu exame.Foi proposta por Lugones em El Payador; aí lemos que nós, argentinos, possuímos um poema clássico, o Martín Fierro, e que esse poema deve ser para nós o que os poemas homéricos foram para os gregos. Parece difícil contradizer essa opinião sem depreciar o Martín Fierro. Creio que o Martín Fierro é a obra mais perdurável que nós, argentinos, escrevemos; e creio com a mesma intensidade que não podemos supor que o Martín Fierro é, como algumas vezes já se disse, nossa Bíblia, nosso livro canônico.Ricardo Rojas, que também recomendou a canonização do Martín Fierro, tem uma página, em sua Historia de la Literatura Argentina, que parece quase lugar-comum, e que é uma astúcia.1 Versão taquigráfica de uma aula proferida no Colegio Libre de Estudios Superiores (1953).O ESCRITOR ARGENTINO E A TRADIÇÃORojas estuda a poesia dos gauchescos, ou seja, a poesia de Hidalgo, Ascasubi, Estanislao del Campo e José Hernández, e a faz derivar da poesia dos cantadores, da espontânea poesia dos gaúchos. Faz notar que o metro da poesia popular é o octossílabo e que os autores da poesia gauchesca utilizam esse metro, e acaba por considerar a poesia dos gauchescos continuação ou magnificação da poesia dos cantadores.Desconfio que há um erro grave nessa afirmação; um erro hábil, diríamos, porque se percebe que Rojas, para dar raiz popular à poesia dos gauchescos, que começa em Hidalgo e culmina em Hernández, apresenta-a como continuação ou derivação da dos gaúchos, e assim Bartolomé Hidalgo é, não OHomero dessa poesia, como disse Mitre, mas um elo da cadeia.Ricardo Rojas faz de Hidalgo um repentista gaúcho; no entanto, segundo a mesma Historia de la Literatura Argentina, esse suposto cantador começou compondo versos hendecassílabos, metro naturalmente proibido aos cantadores, que não percebiam sua harmonia, como não perceberam a harmonia do hendecassílabo os leitores espanhóis quando Garcilaso o importou da Itália.Entendo que há uma diferença fundamental entre a poesia dos gaúchos e a poesia gauchesca. Basta comparar qualquer coleção de poesias populares com o Martín Fierro, com o Paulino Lucero, com o Fausto, para perceber essa diferença, que está não tanto no léxico como no propósito dos poetas. Os poetas populares do campo e do subúrbio fazem versos sobre temas gerais: os sofrimentos do amor e da ausência, a dor do amor, e o fazem num léxico também muito geral; por outro lado, os poetas gauchescos cultivam uma linguagem deliberadamente popular, que os poetas populares não praticam. Não quero dizer que o idioma dos poetas populares seja um espanhol correto; quero dizer que se há incorreções são obra da ignorância. Em compensação, há nos poetas gauchescos uma procura por palavras nativas, uma profusão de cor local. A prova é esta: um colombiano, um mexicano ou um espanhol podem compreender imediatamente os poemas dos cantadores, dos gaúchos, mas precisam de um glossário para compreender, ainda que aproximadamente, Estanislao del Campo ou Ascasubi.Tudo isso pode ser resumido assim: a poesia gauchesca, que produziu - apresso-me a repeti-lo - obras admiráveis, é288289#DISCUSSÀOum gênero literário tão artificial quanto qualquer outro. Nas primeiras composições gauchescas, nas trovas de Bartolomé Hidalgo, já há um propósito de apresentá-las

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em função do gaúcho, como se fossem ditas por gaúchos, para que o leitor as leia com entonação gauchesca. Nada mais distante da poesia popular. O povo - e observei isto não só nos cantadores do campo, mas também nos dos subúrbios de Buenos Aires -, quando versifica, tem a convicção de executar algo importante, evita instintivamente as vozes populares e busca termos e expressões altissonantes. É provável que agora a poesia gauchesca tenha influído nos cantadores gaúchos e que estes também utilizem profusamente os crioulismos, mas no princípio isso não ocorreu, e temos prova disso (que ninguém assinalou) no Martín Fierro.O Martín Fierro está escrito num espanhol de entonação gauchesca e não nos deixa esquecer durante muito tempo que é um gaúcho que está cantando; é pródigo em comparações tomadas da vida pastoril; no entanto, há uma famosa passagem em que o autor deixa de lado essa preocupação com a cor local e escreve num espanhol geral, e não fala de temas vernáculos, mas de grandes temas abstratos, do tempo, do espaço, do mar, da noite. Refiro-me ao desafio entre Martín Fierro e o Moreno, que ocupa o fim da segunda parte. É como se o próprio Hernández tivesse desejado indicar a diferença entre sua poesia gauchesca e a genuína poesia dos gaúchos. Quando esses dois gaúchos, Fierro e o Moreno, põem-se a cantar, esquecem toda afetação gauchesca e abordam temas filosóficos. Pude comprovar o mesmo ouvindo cantadores dos subúrbios; estes evitam fazer versos com sotaque arrabaldeiro ou em lunfardo e tentam se expressar corretamente. Fracassam, naturalmente, mas seu propósito é fazer da poesia algo elevado; algo distinto, poderíamos dizer com um sorriso.A idéia de que a poesia argentina deve ser rica em traços diferenciais argentinos e em cor local argentina me parece um equívoco. Se nos perguntam que livro é mais argentino, o Martín Fierro ou os sonetos de La Urna de Enrique Banchs, não há nenhuma razão para dizer que o primeiro é mais argentino. Talvez digam que em La Urna de Banchs faltam a paisagem argentina, a topografia argentina, a botânica argentina, a zoologia argentina; no entanto, há outras condições argentinas em La Urna.~ ESC2ITOR ARGENTINO E A TRADIÇÃOLembro-me agora de uns versos de La Urna que parecem escritos para que não se possa dizer que é um livro argentino; são os que dizem: "... O sol nos telhados / e nas janelas brilha. Rouxinóis / querem dizer que estão apaixonados".Aqui parece inevitável condenar: "o sol nos telhados e nas janelas brilha". Enrique Banchs escreveu estes versos num subúrbio de Buenos Aires, e nos subúrbios de Buenos Aires não há telhados, mas terraços; "rouxinóis querem dizer que estão apaixonados"; o rouxinol é menos um pássaro da realidade que da literatura, da tradição grega e germânica. No entanto, eu diria. que no uso dessas imagens convencionais, nesses telhados e nesses rouxinóis anômalos, não estarão, naturalmente, a arquitetura nem a ornitologia argentinas, mas estão o pudor argentino, a reticência argentina; a circunstância de que Banchs, ao falar dessa grande dor que o afligia, ao falar dessa mulher que o deixara e deixara o mundo vazio para ele, recorra a imagens estrangeiras e convencionais, como os telhados e os rouxinóis, é significativa: significativa do pudor, da desconfiança, das reticências argentinas; da dificuldade que temos para as confidências, para a intimidade.Além do mais, não sei se é preciso dizer que a idéia de que uma literatura deva se definir pelos traços diferenciais do país que a produz é relativamente nova; também é nova e arbitrária a idéia de que os escritores devam buscar temas de seus países. Sem ir além, creio que Racine nem sequer teria entendido uma pessoa que lhe houvesse negado o direito ao título de poeta francês por ter buscado temas gregos e latinos. Creio que Shakespeare se teria assombrado se tivessem pretendido limitá-lo a

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temas ingleses, e se lhe tivessem dito que, como inglês, não tinha o direito de escrever Hamlet, de tema escandinavo, ou Macbeth, de tema escocês. O culto argentino da cor local é um recente culto europeu que os nacionalistas deveriam rejeitar por ser forâneo.Encontrei dias atrás uma curiosa confirmação de que o verdadeiramente nativo costuma e pode prescindir da cor local; encontrei esta confirmação na História do Declínio e Queda do Império Romano, de Gibbon. Gibbon observa que no Alcorão, livro árabe por excelência, não há camelos; creio que se houvesse alguma dúvida sobre a autenticidade do Alcorão, bastaria essa ausência de camelos para provar que ele é árabe.29O291#DISCUSSÃOFoi escrito por Maomé, e Maomé, como árabe, não tinha por que saber que os camelos eram especialmente árabes; para ele eram parte da realidade, não tinha por que distingui-los; em compensação, a primeira coisa que um falsário, um turista, um nacionalista árabe teriam feito seria povoar de camelos, de caravanas de camelos, cada página; mas Maomé, como árabe, estava tranqüilo: sabia que podia ser árabe sem camelos. Creio que nós, argentinos, podemos nos parecer a Maomé, podemos acreditar na possibilidade de sermos argentinos sem profusão de cor local.Permitam-me aqui uma confidência, uma mínima confidência. Durante muitos anos, em livros agora felizmente esquecidos, tentei descrever o sabor, a essência dos bairros extremos de Buenos Aires; naturalmente utilizei muitas palavras locais, não prescindi de palavras como cuchilleros, milonga, tapia, e outras, e assim escrevi aqueles esquecíveis e esquecidos livros; depois, há quase um ano, escrevi uma história que se chama "A morte e a bússola", que é uma espécie de pesadelo, um pesadelo em que figuram elementos de Buenos Aires deformados pelo horror do pesadelo; penso ali no Paseo Colón e o chamo rue de Toulon, penso nas chácaras de Adrogué e as chamo Triste-le-Roy; publicada essa história, meus amigos me disseram que finalmente tinham encontrado no que eu escrevia o sabor dos arredores de Buenos Aires. Precisamente porque eu não me propusera a encontrar esse sabor, porque me abandonara ao sonho, pude conseguir, ao fim de tantos anos, o que antes busquei em vão.Agora quero falar de uma obra justamente ilustre que os nacionalistas costumam invocar. Refiro-me a Don Segundo Sombra, de Güiraldes. Os nacionalistas nos dizem que Don Segundo Sombra é um exemplo de livro nacional; mas se comparamos Don Segundo Sombra com as obras da tradição gauchesca, a primeira coisa que notamos são as diferenças. Don Segundo Sombra é pródigo em metáforas de uma espécie que nada tem a ver com a fala do campo, e sim com as metáforas dos cenáculos contemporâneos de Montmartre. Quanto à fábula, à história, é fácil comprovar nela a influência do Kim, de Kipling, cuja ação se situa na Índia e que foi escrito, por sua vez, sob a influência do Huckleberry Finn de Mark Twain, epopéia do Mississipi. Ao fazer essa observação não quero diminuir o valor de Don Segundo Sombra; ao contrário, quero292O ESCRITOR ARGENTINO E A TRADIÇ6~Oressaltar que para que nós tivéssemos esse livro foi necessário que Güiraldes recordasse a técnica poética dos cenáculos franceses de seu tempo, e a obra de Kipling que lera há muitos anos; ou seja, Kipling, e Mark Twain, e as metáforas dos poetas franceses foram necessários para esse livro argentino, para esse livro que não é menos argentino, repito, por ter aceitado essas influências.Quero apontar outra contradição: os nacionalistas fingem venerar as capacidades da mente argentina, mas querem limitar o exercício poético dessa mente a alguns pobres

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temas locais, como se nós, argentinos, só pudéssemos falar de arrabaldes e estâncias e não do universo.Passemos a outra solução. Dizem que há uma tradição na qual nós, escritores argentinos, devemos nos refugiar, e que essa tradição é a literatura espanhola. Este segundo conselho é, naturalmente, um pouco menos estreito que o primeiro, mas também tende a nos fechar; muitas objeções lhe poderiam ser feitas, mas duas são suficientes. A primeira é esta: a história argentina pode ser definida sem equívoco como um querer afastar-se da Espanha, como um voluntário distanciamento da Espanha. A segunda objeção é esta: entre nós o prazer da literatura espanhola, um prazer que eu pessoalmente compartilho, costuma ser um gosto adquirido; muitas vezes emprestei, a pessoas sem formação literária especial, obras francesas e inglesas, e estes livros agradaram imediatamente, sem esforço. Em compensação, quando propus a meus amigos a leitura de livros espanhóis, comprovei que esses livros lhes eram dificilmente desfrutáveis sem aprendizagem especial; por isso creio que o fato de que alguns ilustres escritores argentinos escrevam como espanhóis é menos o testemunho de uma capacidade herdada que uma prova da versatilidade argentina.Chego a uma terceira opinião que li recentemente sobre os escritores argentinos e a tradição, e que me surpreendeu muito. Diz que nós, os argentinos, estamos desvinculados do passado; que houve uma espécie de solução de continuidade entre nós e a Europa. Segundo este singular parecer, nós, argentinos, estamos como que nos primeiros dias da criação; o fato de buscar temas e procedimentos europeus é uma ilusão, um erro; devemos compreender que estamos essencialmente sozinhos, e não podemos brincar de ser europeus.293#DISCUSSÃOEssa opinião me parece infundada. Compreendo que muitos a aceitem, porque essa declaração de nossa solidão, de nossa perdição, de nosso caráter primitivo tem, como O existencialismo, os encantos do patético. Muitas pessoas podem aceitar essa opinião, porque uma vez aceita vão se sentir sozinhas, desconsoladas e, de algum modo, interessantes. No entanto, observei que em nosso país, precisamente por ser um país novo, há um grande sentido do tempo. Tudo o que aconteceu na Europa, os dramáticos acontecimentos dos últimos anos na Europa, ecoaram profundamente entre nós. O fato de que uma pessoa fosse partidária dos franquistas ou dos republicamos durante a Guerra Civil espanhola, ou fosse partidária dos nazistas ou dos aliados, determinou em muitos casos lutas e distanciamentos muito graves. Isso não aconteceria se estivéssemos desvinculados da Europa. No que se refere à história argentina, creio que todos nós a sentimos profundamente; e é natural que a sintamos, porque ela está, pela cronologia e pelo sangue, muito próxima de nós; os nomes, as batalhas das guerras civis, a guerra da Independência, tudo está, no tempo e na tradição familiar, muito próximo de nós.Qual é a tradição argentina? Creio que podemos responder facilmente e que não há problema nessa pergunta. Creio que nossa tradição é toda a cultura ocidental, e creio também que temos direito a essa tradição, maior que o que podem ter os habitantes de qualquer outra nação ocidental. Lembro aqui um ensaio de Thorstein Veblen, sociólogo norte-americano, sobre a primazia dos judeus na cultura ocidental. Ele se pergunta se essa primazia permite supor uma superioridade inata dos judeus, e responde que não; diz que eles sobressaem na cultura ocidental porque agem dentro dessa cultura e ao mesmo tempo não se sentem ligados a ela por uma devoção especial; "por isso - diz - sempre será mais fácil para um judeu do que para um ocidental não judeu inovar na cultura ocidental"; e podemos dizer o mesmo dos irlandeses na

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cultura da Inglaterra. Tratando-se dos irlandeses, não temos por que supor que a profusão de nomes irlandeses na literatura e na filosofia britânicas se deva a uma primazia racial, porque muitos desses irlandeses ilustres (Shaw, Berkeley, Swift) foram descendentes deO ESCRITOR ARGENTINO E A TRADIÇÃOingleses, foram pessoas que não tinham sangue celta; no entanto, bastou-lhes o fato de se sentirem irlandeses, diferentes, para inovarem na cultura inglesa. Creio que os argentinos, os sul-americanos em geral, estamos numa situação análoga; podemos lançar mão de todos os temas europeus, utilizá-los sem superstições, com uma irreverência que pode ter, e já tem, conseqüências afortunadas.Isso não quer dizer que todos os experimentos argentinos sejam igualmente felizes; creio que esse problema da tradição e do argentino é simplesmente uma forma contemporânea, e fugaz, do eterno problema do determinismo. Se vou tocar a mesa com uma de minhas mãos, e me pergunto: toco-a com a mão esquerda ou com a mão direita?; e depois a toco com a mão direita, os deterministas dirão que eu não podia agir de outro modo e que toda a história anterior do universo me obrigava a tocá-la com a mão direita, e que tocála com a mão esquerda teria sido um milagre. No entanto, se a tivesse tocado com a mão esquerda teriam dito a mesma coisa: que eu fora obrigado a tocá-la com essa mão. O mesmo acontece com os temas e procedimentos literários. Tudo o que nós, escritores argentinos, fizermos com felicidade pertencerá à tradição argentina, do mesmo modo que tratar de temas italianos pertence à tradição da Inglaterra por obra de Chaucer e de Shakespeare.Creio, além do mais, que todas essas discussões prévias sobre propósitos de elaboração literária baseiam-se no erro de supor que as intenções e os projetos têm muita importância. Vejamos o caso de Kipling: Kipling dedicou sua vida a escrever em função de determinados ideais políticos, quis fazer de sua obra um instrumento de propaganda e, no entanto, no final de sua vida teve que confessar que a verdadeira essência da obra de um escritor costuma ser ignorada por este; e lembrou o caso de Swift, que ao escrever As Viagens de Gulliver quis levantar um testemunho contra a humanidade e deixou, no entanto, um livro para crianças. Platão disse que os poetas são amanuenses de um deus, que os anima contra sua vontade, contra seus propósitos, como o ímã anima uma série de anéis de ferro.Por isso repito que não devemos temer e que devemos pensar que nosso patrimônio é o universo; experimentar todos294295#DISCUSSÃOos temas, e não nos limitarmos ao argentino para sermos argentinos: pois ou ser argentino é uma fatalidade, e nesse caso o seremos de qualquer modo, ou ser argentino é mera afetação, uma máscara.Creio que, se nos abandonarmos a esse sonho voluntário que se chama criação artística, seremos argentinos e seremos, também, bons ou toleráveis escritores.H. G. WELLS E AS PARÁBOLAS:

The Croquet Player. Star Begotten

Este ano, Wells publicou dois livros. O primeiro - The Croquet Player - descreve uma região pestilenta de confusos pântanos na qual começam a ocorrer coisas abomináveis; no fim compreendemos que essa região é todo o planeta. O outro - Star Begotten - apresenta uma amistosa conspiração dos habitantes de Marte para regenerar a humanidade

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por meio de emissões de raios cósmicos. O primeiro quer mostrar que nossa cultura está ameaçada por um renascimento monstruoso da estupidez e da crueldade; nossa cultura pode ser renovada por uma geração um pouco diferente, murmura o outro. Os dois livros são duas parábolas, os dois livros colocam o velho debate das alegorias e dos símbolos.Todos nós tendemos a acreditar que a interpretação esgota os símbolos. Nada mais falso. Busco um exemplo básico: o de uma adivinhação. Ninguém ignora que Édipo foi interrogado pela Esfinge tebana: "Qual é o animal que tem quatro pés ao amanhecer, dois ao meio-dia e três à tarde?". Ninguém ignora, tampouco, que Édipo respondeu que era o homem. Quem de nós não percebe imediatamente que o despojado conceito de homem é inferior ao mágico animal que a pergunta deixa entrever, e à comparação do homem comum a esse monstro variável e de setenta anos a um dia, e da bengala dos anciãos a um terceiro pé? Essa natureza plural é própria de todos os símbolos. As alegorias, por exemplo, propõem ao leitor uma dupla ou tripla intuição, não umas figuras que podem ser permutadas por nomes substantivos abstratos. "Os caracteres alegóricos", adverte acertadamente De Quincey (Writings, undécimo tomo,296297#DISCUS5.4Opág. 199), "ocupam um lugar intermediário entre as realidades absolutas da vida humana e as puras abstrações do entendimento lógico". A faminta e magra loba do primeiro canto da Divina Comédia não é um emblema ou letra da avareza: é uma loba e é também a avareza, como nos sonhos. Não desconfiemos demais dessa duplicidade; para os místicos o mundo concreto não passa de um sistema de símbolos...Atrevo-me a inferir do que foi dito que é absurdo reduzir uma história a sua moralidade, uma parábola a mera intenção, uma "forma" a seu "fundo". (Schopenhauer já observara que raramente o público percebe a forma, e sempre o fundo.) Em The Croquet Player há uma forma que podemos condenar ou aprovar, mas não negar; já o conto Star Begotten é totalmente amorfo. Uma série de discussões inúteis esgota o volume. O argumento - a inexorável variação do gênero humano por obra dos raios cósmicos - não se realizou; os protagonistas apenas discutem sua possibilidade. O efeito é muito pouco estimulante. Que pena que Wells não tenha tido a idéia deste livro!, pensa com nostalgia o leitor. Seu desejo é razoável: o Wells que o argumento exigia não era o conversador enérgico e vago do World of William Clissold e das imprudentes enciclopédias. Era o outro, o antigo narrador de milagres atrozes: o da história do viajante que traz do futuro uma flor murcha, o da história dos homens bestiais que de noite rezam, roufenhos, um credo servil, o da história do traidor que fugiu da lua.

EDWARD KASNER AND JAMES NEWMAN:

Mathematics and the Imagination(Simon and Schuster)

Revisando a biblioteca, vejo admirado que as obras que mais reli e adensei de notas manuscritas são o Diccionario de la Filosofiá, de Mauthner, a Historia Biográfica de la Filosofia, de Lewes, a Historia de la Guerra de 1914-1918, de Liddell Hart, a Vida de Samuel Johnson, de Boswell, e a psicologia de Gustav Spiller: The Mind of Man, 19O2. A esse heterogêneo catálogo (que não exclui obras que talvez sejam meros hábitos, como a de G. H. Lewes) prevejo que os anos acrescentarão este livro

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ameníssimo.NOTASSuas quatrocentas páginas registram com clareza os imediatos e acessíveis encantos das matemáticas, que até um mero homem de letras pode entender, ou imaginar que entende: o incessante mapa de Brouwer, a quarta dimensão que More entreviu e que Howard Hinton declara intuir, a levemente obscena fita de Moebius, os rudimentos da teoria dos números transfinitos, os oito paradoxos de Zenão, as linhas paralelas de Desargues que se cortam no infinito, a notação binária que Leibniz descobriu nos diagramas do I Ching, a bela demonstração euclidiana da infinitude estelar dos números primos, o problema da torre de Hanoi, o silogismo dilemático ou bicornuto.Deste último, com o qual os gregos brincaram (Demócrito jura que os abderitas são mentirosos; mas Demócrito é abderita; logo, Demócrito mente; logo, não é verdade que os abderitas são mentirosos; logo, Demócrito não mente; logo, é verdade que os abderitas são mentirosos; logo, Demócrito mente; logo...), há versões quase inumeráveis que não variam de método, mas de protagonistas e de fábula. Aulo Gélio (Noites Áticas, livro quinto, capítulo X) recorre a um orador e a seu aluno; Luis Barahona de Soto (Angélica, undécimo canto), a dois escravos; Miguel de Cervantes (Quixote, segunda parte, capítulo LI), a um rio, a uma ponte e a uma forca; Jeremy Taylor, em alguns de seus sermões, a um homem que sonhou com uma voz que lhe revela que todos os sonhos são inúteis; Bertrand Russell (Introduction to Mathematical Philosophy, pág. 136), ao conjunto de todos os conjuntos que não se incluem a si mesmos.A essas perplexidades ilustres, atrevo-me a acrescentar esta:Em Sumatra, alguém quer doutorar-se em adivinhação. O bruxo examinador lhe pergunta se será reprovado ou se passará. O candidato responde que será reprovado... Podemos imaginar a infinita continuação.

GERALD HEARD: Pain, Sex and Time(Cassell)

No início de 1896, Bernard Shaw percebeu que em Friedrich Nietzsche havia um acadêmico inepto, coibido pelo culto supersticioso do Renascimento e dos clássicos (Our Theatres in the298299#Dtscussno

Nineties, tomo segundo, pág. 94). O inegável é que Nietzsche, para comunicar ao século de Darwin sua hipótese evolucionista do Super-Homem, o fez num livro carcomido, que é uma desairosa paródia de todos os Sacred Books of the East. Não arriscou uma única palavra sobre a anatomia ou a psicologia da futura espécie biológica; limitou-se a sua moralidade, que identificou (temeroso do presente e do futuro) com a de César Bórgia e a dos vikings."Heard corrige, a seu modo, as negligências e omissões de Zaratustra. Linearmente, o estilo de que dispõe é bem inferior; para uma leitura corrida, é mais tolerável. Não acredita numa super-humanidade, mas anuncia uma vasta evolução das faculdades humanas. Essa evolução mental não requer séculos; há nos homens uma incansável reserva de energia nervosa, que lhes permite ser incessantemente sexuais, à diferença das outras espécies, cuja sexualidade é periódica. "A história", escreve Heard,

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"é parte da história natural. A história humana é biologia, acelerada psicologicamente".1 Certa vez ("História da eternidadé") procurei enumerar ou recopilar todos os testemunhos da doutrina do Eterno Retorno anteriores a Nietzsche. Esse propósito inútil excede a brevidade de minha erudição e a da vida humana. Aos testemunhos já registrados, acrescento apenas, por ora, o do Padre Feijoo (Teatro Crítico Universal, tomo quarto, discurso doze). Este, como Sir Thomas Browne, atribui a doutrina a Platão. Formula-a do seguinte modo: "Um dos delírios de Platão foi que, uma vez completado o ciclo do ano magno (como ele chamava aquele espaço de tempo em que todos os astros, depois de inumeráveis giros, vão retornar à mesma posição e ordem que antes tiveram entre si), todas as coisas se renovarão, isto é, voltarão a aparecer sobre o teatro do mundo os mesmos atores para representar os mesmos sucessos, adquirindo uma nova existência homens, bestas, plantas, pedras, enfim, tudo o que já foi animado e inanimado nos séculos anteriores, para se repetirem neles os mesmos exercícios, os mesmos acontecimentos, os mesmos jogos da fortuna que tiveram em sua primeira existênciá". São palavras de 173O; o volume LVI da Biblioteca de Autores Espanoles as repete. Deixam evidente a justificativa astrológica do Retorno.No Timeu, Platão afirma que os sete planetas, equilibradas suas diversas velocidades, voltarão ao ponto de partida inicial, mas não deduz desse vasto circuito uma repetição pontual da história. No entanto, Lucflio Vanini declara: "Aquiles irá novamente a Tróia; renascerão as cerimônias e religiões; a história humana se repete; não existe nada agora que não tenha sido; o que foi será; mas tudo isso em geral, não (como determina Platão) em particular". Ele escreveu isso em 1616; Burton o cita na quarta seção da terceira parte do livro The Anatomy of Melancholy. Francis Bacon (Essay, LVIII, 1625) admite que, completado o ano platônico, os astros causarão os mesmos efeitos genéricos, mas nega sua virtude para repetir os mesmos indivíduos.3OONOTASA possibilidade de uma evolução ulterior de nossa consciência do tempo talvez seja o tema básico deste livro. Heard opina que os animais carecem totalmente dessa consciência e que sua vida descontínua e orgânica é pura atualidade. Essa conjetura é antiga; Sêneca já a expusera na última das epístolas a Lucílio: "Animalibus tantum, quod brevissimum, est in transcursu, datum, proesens..." Também é freqüente na literaturateosófica. Rudolf Steiner compara o estado inerte dos minerais ao dos cadáveres; a vida silenciosa das plantas à dos homens que dormem; as atenções momentâneas do animal às do negligente sonhador que sonha incoerências. No terceiro volume de seu admirável Woerterbueh der Philosophie, Fritz Mauthner observa: "Parece que os animais não têm senão obscuros pressentimentos da sucessão temporal e da duração. Já o homem, quando além do mais é um psicólogo da nova escola, pode diferenciar no tempo duas imprecisões que só estejam separadas por 1 /5OO de segundo". Num livro póstumo de Guyau - La Genèse de 1"Idée de Temps, 189O - há duas ou três passagens análogas. Ouspenski (Tertium Organum, capítulo IX) enfrenta, não sem eloqüência, o problema; afirma que o mundo dos animais é bidimensional e que são incapazes de conceber uma esfera ou um cubo. Para eles todo ângulo é uma moção, um acontecimento no tempo... Como Edward Carpenter, como Leadbeater, como Dunne, Ouspenski profetiza que nossas mentes prescindirão do tempo linear, sucessivo, e que intuirão o universo de modoangelical: sub speeie aeternitatis.Heard chega à mesma conclusão, numa linguagem às vezes contaminada de patois psiquiátrico e sociológico. Chega, ou acredito que chega. No primeiro capítulo de seu

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livro afirma a existência de um tempo imóvel que nós homens atravessamos. Ignoro se esse memorável juízo é mera negação metafórica do tempo cósmico, uniforme, de Newton, ou se afirma literalmente a coexistência do passado, do presente e do futuro. No último caso (diria Dunne), o tempo imóvel degenera em espaço e nosso movimento de translação exige outro tempo...Que de algum modo a percepção do tempo evolua não me parece inverossímil, e talvez seja inevitável. Que essa evolução possa ser muito brusca me parece uma gratuidade do autor, um estímulo artificial.3O1#DISCUSSÃOGILBERT WATERHOUSE:

A Short History of German Literature

(Methuen, London, 1943)

Eqüidistantes do marquês de Laplace (que declarou a possibilidade de cifrar numa única fórmula todos os fatos que serão, que são e que foram) e do inversamente paradoxal doutor Rojas (cuja história da literatura argentina é mais extensa que a literatura argentina), o senhor Gilbert Waterhouse redigiu em cento e quarenta páginas uma história nem sempre inadequada da literatura alemã. O exame deste manual não incita à injúria nem ao ditirambo; seu defeito mais evidente, e talvez inevitável, é o que De Quincey reprova nos juízos críticos alemães: a omissão de exemplos ilustrativos. Tampouco é generoso conceder exatamente uma linha ao múltiplo Novalis e abusar dessa linha para situá-lo num catálogo subalterno de romancistas cujo modelo foi o Wilhelm Meister. (Novalis condenou o Wilhelm Meister; são célebres as palavras de Novalis sobre Goethe: "É um poeta prático. É nas obras o que são na mercadoria os ingleses: pulcro, simples, cômodo, resistente".) A tradicional exclusão de Schopenhauer e de Fritz Mauthner me indigna, mas já não me surpreende: o horror da palavra filosofia impede que os críticos reconheçam, no Woerterbuch de um e nos Parerga und Paralipomena do outro, os mais inesgotáveis e agradáveis livros de ensaios da literatura alemã.Os alemães parecem incapazes de agir sem algum aprendizado alucinatório: podem travar felizes batalhas ou redigir lânguidos e infinitos romances, mas só com a condição de se acreditarem "arianos puros", ou vikings maltratados pelos judeus, ou atores da Germania de Tácito. (Sobre esta singular esperança retrospectiva Friedrich Nietzsche opinou: "Todos os germanos autênticos emigraram; a Alemanha de hoje é um posto avançado dos eslavos e prepara o caminho para a russificação da Europa". Uma resposta análoga merecem os espanhóis, que se proclamam netos dos conquistadores da América: os netos somos nós, os sul-americanos; eles são sobrinhos..) Notoriamente, os deuses negaram aos alemães a beleza espontânea. Essa privação define o trágico do culto shakespeariano alemão, que de algum modo se parece a um amor infeliz. O alemão (Lessing, Herder, Goethe, Novalis, Schiller, Schopenhauer, Nietzsche, Stefan

3O2NorasGeorge...) sente com misteriosa intimidade o mundo de Shakespeare, ao mesmo tempo que se sabe incapaz de criar com esse ímpeto e com essa inocência, com essa delicada felicidade e com esse negligente esplendor. Unser Shakespeare - "nosso Shakespeare", dizem, ou disseram, os alemães, mas sabem-se destinados a uma arte de natureza

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diferente: arte de símbolos premeditados ou de teses polêmicas. Não se pode percorrer um livro como o de Gundolf - Shakespeare und der deutsche Geist - ou como o de Pascal - William Shakespeare in Germany - sem notar essa nostalgia ou discórdia da inteligência alemã, essa tragédia secular cujo ator não é um homem, mas muitas gerações humanas.Os homens de outras terras podem ser distraidamente atrozes, eventualmente heróicos; os alemães precisam de seminários de abnegação, éticas da infâmia.Das histórias breves da literatura alemã, a melhor, que eu saiba, é a de Karl Heinemann, publicada por Kroener; a mais evitável e penosa, a do doutor Max Koch, invalidada por superstições patrióticas e temerariamente imposta ao idioma espanhol por uma editora catalã.

LESLIE D. WEATHERHEAD:

After Death

(The Epworth Press, London, 1942)

Compilei certa vez uma antologia da literatura fantástica. Admito que essa obra é uma das pouquíssimas que um segundo Noé deveria salvar de um segundo dilúvio, mas confesso a condenável omissão dos insuspeitos e maiores mestres do gênero: Parmênides, Platão, João Escoto Erígena, Alberto Magno, Spinoza, Leibniz, Kant, Francis Bradey. De fato, o que são os prodígios de Wells ou de Edgar Allan Poe - uma flor que nos chega do futuro, um morto submetido à hipnose - confrontados com a invenção de Deus, com a teoria laboriosa de um ser que de algum modo é três e que solitariamente perdura fora do tempo? O que é a pedra bezoar diante da harmonia preestabelecida, quem é o unicórnio diante da Trindade, quem é Lúcio Apuleio diante dos multiplicadores de Budas do Grande Veículo, o que são todas as noites de Scherazade perto3O3#D~scusswode um argumento de Berkeley? Venerei a gradual invenção de Deus; também o Inferno e o Céu (uma recompensa imortal, um castigo imortal) são admiráveis e curiosos desígnios da imaginação dos homens.Os teólogos definem o Céu como um lugar de sempiterna glória e ventura e advertem que esse lugar não é o dedicado a tormentos infernais. O quarto capítulo deste livro muito razoavelmente nega essa divisão. Argumenta que o Inferno e o Céu não são localidades topográficas, mas estados extremos da alma. Concorda plenamente com André Gide (Journal, pág. 677), que fala de um Inferno imanente, já declarado pelo verso de Milton: "Which way I fly is Hell; mysel f am Hell"; parcialmente com Swedenborg, cujas irremediáveis almas perdidas preferem as cavernas e os pântanos ao esplendor insuportável do Céu. Weatherhead propõe a tese de um único heterogêneo ultramundo, alternativamente infernal e paradisíaco, segundo a capacidade das almas.Para quase todos os homens, os conceitos de Céu e de felicidade são inseparáveis. Na década final do século XIX, Butler projetou, no entanto, um Céu no qual todas as coisas se frustrassem ligeiramente (pois ninguém pode tolerar uma felicidade total) e um Inferno correlativo, no qual faltasse todo estímulo desagradável, salvo os que proíbem o sonho. Bernard Shaw, por volta de 19O2, instalou no Inferno as ilusões da erótica, da abnegação, da glória e do puro amor imorredouro; no Céu, a compreensão da realidade (Man and Superman, terceiro ato). Weatherhead é um medíocre e quase inexistente escritor, estimulado por leituras piedosas, mas intui que

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a direta perseguição de uma pura e perpétua felicidade não será menos irrisória do outro lado da morte do que deste. Escreve: "A concepção mais alta das experiências gozosas que denominamos Céu é a de servir: é a de uma plena e livre participação na obra de Cristo. Isto poderá ocorrer entre outros espíritos, talvez em outros mundos; talvez possamos ajudar a salvar o nosso". Noutro capítulo, afirma: "A dor do Céu é intensa. Pois quanto mais evoluirmos neste mundo, mais poderemos compartilhar no outro a vida de Deus. E a vida de Deus é dolorosa. Em seu coração estão os pecados, as penas, todo o sofrimento do mundo. Enquanto houver um único pecador no universo, não haverá felicidade no Céu". (Orígenes, que afirmava umaNoTwsreconciliação final do Criador com todas as criaturas, inclusive o diabo, já sonhou esse sonho.)Não sei o que o leitor vai pensar de tais conjeturas semiteosóficas. Os católicos (leia-se os católicos argentinos) acreditam num mundo ultraterreno, mas notei que não se interessam por ele. Comigo ocorre o contrário; me interessa e não acredito.

M. DAVIDSON:

The Free Will Controversy

(Watts, London, 1943)

Este volume pretende ser uma história da vasta polêmica secular entre deterministas e partidários do arbítrio. Não o é, ou o é imperfeitamente, em razão do método errôneo adotado pelo autor. Este se limita a expor os diversos sistemas filosóficos e a definir a doutrina de cada um no que concerne ao problema. O método é errôneo ou insuficiente, porque se trata de um problema especial cujas melhores discussões devem ser buscadas em textos especiais, não num parágrafo das obras canônicas. Que eu saiba, esses textos são o ensaio The Dilemma of Determinism, de James, o quinto livro da obra De Consolatione Philosophiae, de Boécio, e os tratados De Divinatione e De Fato, de Cícero.A mais antiga forma de determinismo é a astrologia judiciária. Assim o entende Davidson, e lhe dedica os primeiros capítulos de seu livro. Declara os influxos dos planetas, mas não expõe com clareza suficiente a doutrina estóica dos presságios, segundo a qual, o universo formando um todo, cada uma de suas partes prefigura (ao menos de modo secreto) a história das outras. "Tudo o que ocorre é um signo de algo que ocorrerá", disse Sêneca (Naturales Quaestiones, II, 32). Cícero já havia explicado: "Não admitem os estóicos que os deuses intervenham em cada cissura do fígado ou em cada canto das aves, coisa indigna, dizem, da majestade divina e totalmente inadmissível; sustentam, ao contrário, que de tal maneira está ordenado o mundo desde o princípio, que a determinados acontecimentos precedem determinados sinais fornecidos pelas entranhas das aves, pelos raios, pelos prodígios, pelos astros, pelos sonhos e pelos furores proféticos... Como tudo acontece por obra do destino, se existisse um mor3O43O5#DISCUSSÀONOTAStal cujo espírito pudesse abarcar o encadeamento geral das causas, ele seria infalível; pois quem conhece as causas de todos os acontecimentos futuros prevê necessariamente

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o futuro". Quase dois mil anos depois, o marquês de Laplace jogou com a possibilidade de cifrar numa única fórmula matemática todos os fatos que compõem um instante do mundo, para depois extrair dessa fórmula todo o futuro e todo o passado.Davidson omite Cícero; também omite o decapitado Boécio. A este os teólogos devem, no entanto, a mais elegante das reconciliações do arbítrio humano com a Providência Divina. Que arbítrio é o nosso, se Deus, antes de acender as estrelas, conhecia todos os nossos atos e nossos mais recônditos pensamentos? Boécio anota com perspicácia que nossa servidão deve-se à circunstância de que Deus saiba de antemão como vamos agir. Se o conhecimento divino fosse contemporâneo dos fatos e não anterior, não sentiríamos que nosso arbítrio fica anulado. Abate-nos a idéia de que nosso futuro já esteja, com minuciosa prioridade, na mente de Alguém. Esclarecido esse ponto, Boécio nos lembra que, para Deus, cujo puro elemento é a eternidade, não há antes nem depois, já que a diversidade dos lugares e a sucessão dos tempos é una e simultânea para Ele. Deus não prevê meu futuro; meu futuro é uma das partes do único tempo de Deus, que é o imutável presente. (Boécio, neste argumento, dá à palavra providência o valor etimológico de previsão; aí está a falácia, pois a providência, como os dicionários já divulgaram, não se limita a prever os fatos; também os ordena.)Mencionei James, misteriosamente ignorado por Davidson, que dedica um misterioso capítulo a discutir com Haeckel. Os deterministas negam que haja no cosmos um único fato possível, id est, um fato que poderia acontecer ou não acontecer; James conjetura que o universo tem um plano geral, mas que as minúcias da execução desse plano ficam a cargo dos atores.z Quais são as minúcias para Deus?, cabe perguntar. A dor física, os destinos individuais, a ética? É verossímil que assim seja.2 O princípio de Heisenberg - falo com temor e com ignorância - não parece hostil a essa conjetura.SOBRE A DUBLAGEM

As possibilidades da arte de combinar não são infinitas, mas costumam ser espantosas. Os gregos engendraram a quimera, monstro com cabeça de leão, com cabeça de dragão, com cabeça de cabra; os teólogos do século II, a Trindade, na qual inextricavelmente se articulam o Pai, o Filho e o Espírito; os zoólogos chineses, o ti-yian~, pássaro sobrenatural e vermelho, dotado de seis patas e quatro asas, mas sem cara nem olhos; os geômetras do século XIX, o hipercubo, figura de quatro dimensões, que encerra um número infinito de cubos e que está limitada por oito cubos e por vinte e quatro quadrados. Hollywood acaba de enriquecer esse inútil museu teratológico; por obra de um maligno artifício que se chama dublagem, propõe monstros que combinam as ilustres feijões de Greta Garbo com a voz de Aldonza Lorenzo. Como não tornar pública nossa admiração diante desse prodígio penoso, diante dessas industriosas anomalias fonético-visuais?Os que defendem a dublagem argumentarão (talvez) que as objeções que lhe podem ser opostas podem também se opor a qualquer outro exemplo de tradução. Esse argumento desconhece, ou elude, o defeito central: o arbitrário enxerto de outra voz e de outra linguagem. A voz de Hepburn ou de Garbo não é contingente; é, para o mundo, um dos atributos que as definem. Também cabe lembrar que a mímica do inglês não é a do espanhol."Ouço dizer que nas províncias a dublagem agradou. Trata-se de um simples argumento de autoridade; enquanto não forem publicados os silogismos dos conrtaisseurs de Chilecito ou de Chivilcoy, eu, pelo menos, não me deixarei intimidar. Também ouço dizer que a dublagem é agradável, ou tolerável, para os que não sabem inglês. Meu conhecimento do inglês é menos perfeito que meu desconhecimento do russo; contudo, eu não me conformaria em rever Alexander Nevsky em outra língua que não fosse

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a primitiva e o veria3 Mais de um espectador se pergunta: Já que há usurpação de vozes, por que não usurpar também figuras? Quando será perfeito o sistema? Quando veremos diretamente Juana González no papel de Greta Garbo, no papel da RainhaCristina da Suécia?3O63O7#Discussàocom fervor, pela nona ou décima vez, se dessem a versão original, ou uma que eu acreditasse ser a original. Este último ponto é importante; pior que a dublagem, pior que a substituição que implica a dublagem, é a consciência geral de uma substituição, de uma farsa.Não há partidário da dublagem que não acabe por invocar a predestinação e o determinismo. Juram que esse expediente é fruto de uma evolução implacável e que logo poderemos escolher entre ver filmes dublados e não ver filmes. Considerando a decadência mundial do cinema (atenuada apenas por alguma exceção solitária, como A máscara de Dimitrios), a segunda dessas alternativas não é dolorosa. Bombas recentes - penso no Diário de um nazista, de Moscou, em Pelo vale das sombras, de Hollywood - nos levam a julgá-lo uma espécie de paraíso negativo. "Sight-seeing is the art of disappointment", deixou anotado Stevenson; essa definição convém ao cinema e, com triste freqüência, ao contínuo exercício inadiável que se chama viver.O DR. JEKYLL E EDWARD HYDE, TRANSFORMADOS

Hollywood, pela terceira vez, difamou Robert Louis Stevenson. Esta difamação se intitula O médico e o monstro: foi perpetrada por Victor Fleming, que repete com nefasta fidelidade os erros estéticos e morais da versão (da perversão) de Mamoulian. Começo pelos últimos, os morais. No romance de 1886, o doutor Jekyll é moralmente dual, como o são todos os homens, enquanto sua hipóstase - Edward Hyde - é perversa sem trégua e sem descanso; no filme de 1941, o doutor Jekyll é um jovem patologista que exerce a castidade, enquanto sua hipóstase - Hyde - é um doidivanas, com traços de sádico e de acrobata. O Bem, para os pensadores de Hollywood, é o noivado com a pudenda e opulenta Miss Lana Turner; o Mal (que tanto preocupou David Hume e os heresiarcas de Alexandria), a coabitação ilegal com Frõken Ingrid Bergman ou Miriam Hopkins. Inútil advertir que Stevenson é totalmente inocente dessa limitação ou deformação do problema. No capítulo final da obra, expõe os defeitos de Jekyll: a sensualidade e a hipocrisia; num dos Ethical Studies - ano de3O8[voTAs1888 - procura enumerar todas as "manifestações do verdadeiramente diabólico" e propõe esta lista: "a inveja, a malignidade, a mentira, o silêncio mesquinho, a verdade caluniosa, o difamador, o pequeno tirano, o queixoso envenenador da vida doméstica". (Eu afirmaria que a ética não comporta os fatos sexuais, se estes não estiverem contaminados pela traição, pela cobiça ou pela vaidade.)A estrutura do filme é mais rudimentar ainda do que sua teologia. No livro, a identidade de Jekyll e de Hyde é uma surpresa: o autor a reserva para o final do nono capítulo. O relato alegórico finge ser um conto policial; não há leitor que adivinhe que Hyde e Jekyll são a mesma pessoa; o próprio título nos faz postular que são dois. Nada mais fácil do que transpor ao cinema esse procedimento. Imaginemos qualquer problema policial: dois atores que o público reconhece figuram na trama

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(George Raft e Spencer Tracy, digamos); podem usar palavras análogas, podem mencionar fatos que pressupõem um passado comum; quando o problema é indecifrável, um deles absorve a droga mágica e se transforma no outro. (Naturalmente, a boa execução deste plano comportaria dois ou três reajustes fonéticos: a modificação dos nomes dos protagonistas). Mais civilizado do que eu, Victor Fleming elude todo assombro e todo mistério: nas cenas iniciais do filme, Spencer Tracy apura sem medo a versátil poção e se transforma num Spencer Tracy com uma peruca diferente e traços negróides.Distante da parábola dualista de Stevenson e próximo da Assembléia dos Pássaros composta (no século XII de nossa era) por Farid ud-din Attar, podemos conceber um filme panteísta cujos numerosos personagens, no fim, se resolvem em Um, que é perdurável.3O9HISTÓRIA UNIVERSALDA INFAMIA1935PRÓLOGO À PRIMEIRA EDIÇÃOOs exercícios de prosa narrativa que integram este livro foram elaborados de 1933 a 1934. Derivam, creio, de minhas releituras de Stevenson e Chesterton e também dos primeiros filmes de Von Sternberg e talvez de certa biografia de Evaristo Carriego. Abusam de alguns procedimentos: as enumerações díspares, a brusca solução de continuidade, a redução da vida inteira de um homem a duas ou três cenas. (Esse propósito visual rege também o conto "Homem da esquina rosada"J Não são, não tratam de ser, psicológicos.Quanto aos exemplos de magia que encerram o volume, não tenho outro direito sobre eles que os de tradutor e leitor. Às vezes creio que os bons leitores são cisnes ainda mais tenebrosos e singulares que os bons autores. Ninguém me negará que as obras atribuídas por Ualéry a seu mais-que-perfeito Edmond Teste valem notoriamente menos que as de sua esposa e amigos.Ler, entretanto, é uma atividade posterior à de escrever: mais resignada, mais civil, mais intelectual.

]. L. B.

Buenos Aires, 27 de maio de 1935.313PRÓLOGO À EDIÇÃO DE 1954Eu diria que barroco é aquele estilo que deliberadamente esgota (ou pretende esgotar) suas possibilidades, e que confina com a própria caricatura. Ern vão quis arremedar Andrew Lang, por volta de mil oitocentos e tantos, a Odisséia de Pope; a obra já era sua paródia e o parodista não pôde exagerar a tensão. Barroco (Batuco) é o nome de um dos modos do silogismo; o século XVIII aplicou-o a determinados abusos da arquitetura e da pintura do XVII; eu diria que é barroca a etapa final de toda arte, quando esta exibe e dilapida seus meios. O barroquismo é intelectual e Bernard Shaw declarou que todo trabalho intelectual é humorístico. Este humorismo é involuntário na obra de Baltasar Gracián; voluntário ou consentido, na obra de John Donue.Já o excessivo título destas páginas proclama sua natureza barroca. Atenuá-las teria equivalido a destruí-las; por isto prefiro, desta vez, invocar a sentença quod scripsi, seripsi (João 19, 22) e reimprimi-las, ao cabo de vinte anos, tal e qual. São a irresponsável brincadeira de um tímido que não se animou a escrever contos e que se distraiu em falsear e tergiversar (sem justificativa estética, vez ou outra) alheias histórias. Desses ambíguos exercícios passou à trabalhosa composição

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de um conto direto - "Homem da esquina rosada" - que assinou com o nome de um avô de seus avós, Francisco Bustos, e que conseguiu êxito singular e um pouco misterioso.Em seu texto, gtle é de entonação suburbana, vai-se notar que intercalei algumas palavras cultas: vísceras, conversões, etc. Assim o fiz porque o compadre aspira n finura, ou (esta razão exclui a outra, mas é quiçá a verdadeira) porque os compadres são indivíduos e não falam sempre como o Compadre, que é figura platônica.Os doutores do Grão-Veículo ensinam que o essencial do universo é o vazio. Têm plena razão no que se refere à parte mínima do universo que é este livro. Patíbulos e piratas o povoam e a palavra315#HISTÓRIA UNIVERSAL DA INFÃMIAinfâmia aturde no título, mas sob o tumulto não há nada. Não é mais que aparência, que su~erfíeie de imagens; por isso mesmo possa talvez agradar. O homem que o elaborou era assaz infeliz, mas se entreteve escrevendo-o; oxalá algum reflexo daquele prazer chegue aos leitores.Na seção "Etcétera" incorporei três obras novas.

]. z. B.316L inscribe this book to 5. D.: English, innumerable and ari Angel. Also: 1 offer her that kernel of myself thnt I have sgved, somehow- the central heart that deals not in words, traffics not with dreams and is untouehed by time, by joy, by adversities.O ATROZ REDENTOR LAZARUS MORELLA CAUSA REMOTAEm 1517, o padre Bartolomé de las Casas compadeceu-se dos índios que se extenuavam nos laboriosos infernos das minas de ouro antilhanas, e propôs ao imperador Carlos V a importação de negros, que se extenuassem nos laboriosos infernos das minas de ouro antilhanas. A essa curiosa variação de um filantropo devemos infinitos fatos: os blues de Handy, o sucesso alcançado em Paris pelo pintor-doutor uruguaio D. Pedro Figari, a boa prosa agreste do também oriental D. Vicente Rossi, a dimensão mitológica de Abraham Lincoln, os quinhentos mil mortos da Guerra da Secessão, os três mil e trezentos milhões gastos em pensões militares, a estátua do imaginário Falucho, a admissão do verbo linchar na décima terceira edição do Dicionário da Academia Espanhola, o impetuoso filme Aleluya, a fornida carga de baionetas levada por Soler à frente de seus Pardos y Morenos em Cerrito, a graça da senhorita de Tal, o negro que assassinou Martín Fierro, a deplorável rumba El Manisero, o napoleonismo embargado e encarcerado de Toussaint Louverture, a cruz e a serpente no Haiti, o sangue das cabras degoladas pelo machado dos papaloi, a habanera mãe do tango, o candombe.Além disso: a culpável e magnífica existência do atroz redentor Lazarus Morell.

O LUGAR

O Pai das Águas, o Mississipi, o rio mais extenso do mundo, foi o digno teatro desse incomparável canalha. (Álvarez de319#HISTÓRIA ÜNIVERSAL DA INFÃMIAPineda o descobriu e seu primeiro explorador foi o capitão Hernando de Soto, antigo conquistador do Peru, que distraiu os meses de prisão do finca Ataualpa ensinando-lhe

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o jogo de xadrez. Morreu, e lhe deram como sepultura as suas águas.)O Mississípi é rio de peito largo; é um infinito e obscuro irmão do Paraná, do Uruguai, do Amazonas e do Orinoco. É um rio de águas mulatas; mais de quatrocentos milhões de toneladas de lama insultam anualmente o golfo do México, descarregadas por ele. Tanto lixo venerável e antigo construiu um delta, onde os gigantescos ciprestes dos pântanos crescem sobre os despojos de um continente em perpétua dissolução, e onde labirintos de barro, de peixes mortos, de juncos, dilatam as fronteiras e a paz de seu fétido império. Mais acima, na altura do Arkansas e do Ohio, também se alongam as terras baixas. Habita-as uma estirpe amarelenta de homens esquálidos, propensos à febre, que olham com avidez as pedras e o ferro, porque entre eles não há outra coisa senão areia e madeira e água turva.OS HOMENS

Em princípios do século XIX (a data que nos interessa), as vastas plantações de algodão que havia nas margens eram trabalhadas por negros, de sol a sol. Dormiam em cabanas de madeira, sobre o chão de terra. Fora da relação mãe-filho, os parentescos eram convencionais e obscuros. Nomes tinham, mas podiam prescindir dos sobrenomes. Não sabiam ler. Sua enternecida voz de falsete cantava num inglês de vogais lentas. Trabalhavam em filas, curvados sob o rebenque do capataz. Fugiam, e homens de barba saltavam sobre cavalos de raça, e fortes cães de caça os rastreavam.A um sedimento de esperanças bestiais e medos africanos haviam agregado as palavras da Escritura: sua fé por conseguinte era a de Cristo. Cantavam concentrados e em grupos: Go dozvn Moses. O Mississípi servia-lhes de magnífica imagem do sórdido Jordão.Os proprietários dessa terra trabalhadora e dessas levas de negros eram ociosos e ávidos senhores de melena. Habitavam imensos casarões voltados para o rio - sempreO ATROZ REDENTOR LAZARUS MORELLcom um pórtico pseudogrego de pinho branca Um bom escravo custava-lhes mil dólares e não durava muito. Alguns cometiam a ingratidão de adoecer e morrer. Devia-se tirar dessas incertas criaturas o maior rendimento. Por isso conservavam-nos nos campos desde o primeiro sol até o último; por isso exigiam das terras colheita anual de algodão, ou fumo, ou açúcar. A terra, fatigada e manuseada por essa cultura impaciente, ficava em poucos anos exausta: o deserto confuso e enlodaçado enfiava-se pelas plantações. Nas chácaras abandonadas, nos subúrbios, nos canaviais estreitos e nos abjetos lodaçais, viviam os poor whites, a canalha branca. Eram pescadores, vagos caçadores, ladrões de cavalo. Costumavam mendigar pedaços de comida roubada aos negros e mantinham em sua prostração um orgulho: o do sangue sem tisne, sem mescla. Lazarus Morell foi um deles.

O HOMEM

Os daguerreótipos de Morell, que costumam publicar as revistas americanas, não são autênticos. Essa carência de genuínas efígies de homem tão memorável e famoso não deve ser casual. E verossímil supor que Morell se tenha negado à placa polida; essencialmente para não deixar inúteis rastros e, de passagem, para alimentar seu mistério... Sabemos contudo que não foi favorecido quando jovem e os olhos demasiado próximos e os lábios finos não predispunham a seu favor. Os anos, porém, conferiram-lhe essa peculiar majestade que têm os canalhas encanecidos, os facínoras venturosos e impunes. Era um antigo cavalheiro do Sul, apesar da infância miserável

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e da vida afrontosa. Não desconhecia as Escrituras e pregava com singular convicção. "Eu vi Lazarus Morell no púlpitó " - anota o dono de uma casa de jogo em Baton Rouge, Louisiana - "e escutei suas palavras edificantes e vi lágrimas acudirem a seus olhos. Sabia que era adúltero, ladrão de negros e assassino perante o Senhor, mas também meus olhos choraram."Outro bom testemunho dessas efusões sagradas é o que subministra o próprio Morell. "Abri ao acaso a Bíblia, dei com um conveniente versículo de São Paulo e preguei uma hora e vinte minutos. Tampouco desperdiçaram esse tempo Crenshaw32O321#~IISTÓRIA ÜNIVERSAL DA INFr1MIAe os companheiros, porque levaram com eles todos os cavalos do auditório. Nós os vendemos no Estado de Arkansas, a não ser um baio muito brioso que reservei para meu uso particular. Agradava também a Crenshaw, mas eu fiz ver a ele quenão lhe servia."O MÉTODO

Os cavalos roubados em um Estado e vendidos emoutro foram apenas uma digressão na carreira delinqüentede Morell, porém prefiguraram o método que agora lheassegura seu lugar privilegiado em uma História Universalda Infâmia. Esse método é único, não só pelas circunstâncias sui generis que o determinaram, como também pelaabjeção que requer, pelo fatal manejo da esperança e pelo desenvolvimento gradual, semelhante à atroz evolução de um pesadelo. A1 Capone e Bugs Moran operam com ilustres capitais e com metralhadoras servis numa grande cidade, porém seu negócio é vulgar. Disputam-se um monopólio, e isso é tudo... Quanto a número de homens, Morell chegou a comandar uns mil, todos juramentados. Duzentos integravam o Alto Conselho, e este promulgava as ordens que os restantes oitocentos cumpriam. O risco recaía nos subalternos. Em caso de rebelião, eram entregues à Justiça ou arrojados à correnteza do rio de águas pesadas, com uma pedra presa nos pés. Eram, com freqüência, mulatos. Sua facinorosa missão era a seguinte:Percorriam - com algum momentâneo luxo de anéis, para inspirar respeito - as vastas plantações do Sul. Escolhiam um negro infeliz e propunham-lhe a liberdade. Diziam-lhe que fugisse de seu senhor, para ser vendido por eles uma segunda vez, em alguma propriedade distante. Dar-lhe-iam então uma percentagem do preço de sua venda e lhe facultariam a próxima evasão. Iriam conduzi-lo, afinal, a um Estado abolicionista. Dinheiro e liberdade, dólares de prata bem sonantes e liberdade, que maior tentação podiam oferecer-lhes? O escravo atrevia-se a sua primeira fuga.O caminho natural era o rio. Uma canoa, o porão de um vapor, uma barcaça, uma balsa grande como o céu, tendo naO ATROZ REllENTOR LAZARLS MORELLextremidade uma cabana ou tendas de lona muito altas; o lugar não importava, importava apenas saber-se em movimento e seguro sobre o infatigável rio... Vendiam-no em outra plantação. Fugia outra vez para os canaviais ou barrancos. Então, os terríveis benfeitores (dos quais já começava a desconfiar) aduziam gastos obscuros e declaravam que tinham de vendê-lo uma última vez. Ao regressar dariam a ele a percentagem das duas vendas e a liberdade. O homem deixava-se vender, trabalhava algum tempo e desafiava na última fuga o risco dos cães de caça e dos açoites. Regressava com sangue, com suor, com desespero e com sono.

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A LIBERDADE FINAL

Falta considerar o aspecto jurídico desses fatos. O negro não era posto à venda pelos sicários de Morell antes que o dono primitivo houvesse denunciado sua fuga e oferecido uma recompensa a quem o encontrasse. Quem quer que fosse podia então retê-lo, de modo que sua venda posterior era abuso de confiança, não roubo. Recorrer à justiça civil era gasto inútil, porque os danos não eram pagos nunca.Tudo isso era muito tranqüilizador, mas não para sempre. O negro podia falar; o negro, de puro agradecimento ou infelicidade, era capaz de falar. Umas rodadas de uísque de centeio no prostíbulo de El Cairo, Illinois, onde o filho de uma cadela nascido escravo iria malgastar o dinheiro que eles não lhe tinham de dar, e transpirava o segredo. Nesses anos um Partido Abolicionista agitava o Norte, uma turba de loucos perigosos que negavam a propriedade e pregavam a liberdade dos negros, incitando-os a fugir. Morell não ia deixar-se confundir por tais anarquistas. Não era um yankee, era um homem branco do Sul, filho e neto de brancos, e esperava retirar-se dos negócios e ser um cavalheiro, com léguas de algodoal e as curvadas filas de escravos. Com sua experiência, não estava para riscos inúteis.O trânsfuga esperava a liberdade. Então os mulatos nebulosos de Lazarus Morell transmitiam entre si uma ordem que podia não passar de uma senha e o livravam da vista, do ouvido, do tato, do dia, da infâmia, do tempo, dos benfeitores, da322323HISTÓRIA UNIVERSAL DA INFÂMIAmisericórdia, do ar, dos cachorros, do universo, da esperança, do súor e dele mesmo. Um balaço, uma punhalada baixa ou um golpe, e as tartarugas e pargos do Mississípi recebiam a última informação.A CATÁSTROFE

Servido por homens de confiança, o negócio tinha de prosperar. Em princípios de 1834, uns setenta negros já tinham sido "emancipados" por Morell, e outros dispunhamse a seguir esses precursores ditosos. A zona de operações sendo maior, era necessário admitir afiliados. Entre os que prestaram juramento havia um rapaz, Virgil Stewart, de Arkansas, que se destacou desde logo pela crueldade. Era ele sobrinhò de um fazendeiro que perdera muitos escravos. Em agosto de 1834, rompeu seu juramento e delatou Morell e os outros. A casa de Morell em Nova Orleans foi cercada pela Justiça. Morell, por imprevisão ou suborno, pôde escapar.Três dias passaram. Morell esteve escondido esse tempo numa casa antiga, de pátios com trepadeiras e estátuas, na rua Toulouse. Parece que se alimentava pouco e ficava a passear descalço pelos grandes dormitórios escuros, fumando pensativos cigarros. Por um escravo da casa remeteu duas cartas à cidade de Natchez e outra a Red River. No quarto dia entraram na casa três homens que com ele ficaram discutindo até amanhecer. No quinto, Morell levantou-se quando escurecia e pediu uma navalha e fez cuidadosamente a barba. Vestiu-se e saiu. Atravessou com lenta serenidade os bairros do Norte. Já em pleno campo, costeando as terras baixas do Mississípi, andou mais depressa.Seu plano era de uma coragem bêbada. Pensava aproveitar os últimos homens que ainda lhe prestavam reverência: os serviçais negros do Sul. Estes haviam visto fugir

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seus companheiros e não os haviam visto voltar. Acreditavam, portanto, em sua liberdade. O plano de Morell era o de uma sublevação total dos negros, a tomada e o saque de Nova Orleans e a ocupação de seu território. Morell, caído e quase desfeito pela traição, meditava uma resposta continental: uma respos324O ATROZ REDENTOR LAZARUS MORELLta em que o criminoso se exaltava até a redenção e a história. Dirigiu-se com esse fim a Natchez, onde estava mais enraizada sua força. Copio sua narração dessa viagem:"Caminhei quatro dias antes de conseguir um cavalo. No quinto, descansei próximo a um riacho para abastecer-me de água e sestear. Estava sentado num tronco, olhando o caminho percorrido até então, quando vi aproximar-se um cavaleiro numa montaria escura de bom aspecto. Assim que o vi, determinei tomar-lhe o cavalo. Pus-me de pé, apontei em sua direção uma bela pistola de tambor e dei-lhe ordem para apear. Assim o fez, e tomando na canhota as rédeas, mostreilhe o riacho e ordenei que caminhasse adiante. Andou umas duzentas varas e se deteve. Ordenei que se despisse. Então me disse: "Já que está resolvido a me matar, deixe-me rezar antes de morrer". Respondi que não tinha tempo dé ouvir suas orações. Caiu de joelhos e lhe disparei um balaço na nuca. Abri-lhe o ventre com um talho, arranquei-lhe as vísceras e afundei-o no riacho. Em seguida, revistei-lhe os bolsos e encontrei quatrocentos dólares e trinta e sete centavos e uma quantidade de papéis que não me demorei lendo. As botas eram novas em folha e me serviam. As minhas, que estavam muito gastas, joguei-as no riacho."Assim obtive o cavalo de que precisava para entrar em Natchez."

AINTERRUPÇÃO

Morell capitaneando bandos de negros que sonhavam enforcá-lo, Morell enforcado por exércitos negros que sonhava capitanear - sinto confessar que a história do Mississípi não aproveitou essas oportunidades suntuosas. Contrariamente a toda justiça poética (ou simetria poética), tampouco o rio de seus crimes foi sua tumba. A dois de janeiro de 1835, Lazarus Morell faleceu de congestão pulmonar no hospital de Natchez, onde se fizera internar com o nome de Silas Buckley. Um companheiro da enfermaria geral reconheceu-o. A dois e a quatro quiseram sublevar-se os escravos de certas plantações, mas foram reprimidos sem maior efusão de sangue.325 Este livro foi digitalizado por Raimundo do Vale Lucas, com aintenção de dar aos cegos a oportunidade de apreciarem mais umamanifestação do pensamento humano..

O IMPOSTOR INVEROSSÍMIL TOM CASTRODou-lhe esse nome porque com esse nome o conheceram pelas ruas e casas de Talcahuano, de Santiago do Chile e de Valparaíso, por volta de 185O, e é justo que o assumaoutra vez, agora que retorna a estas terras - ainda que na qualidade de mero fantasma e de passatempo de sábado." O registro civil de Wapping chama-o Arthur Ortone o inscreve na data de 7 de junho de 1834. Sabemos que era filho de um açougueiro, que sua infância conheceu a miséria insípida dos bairros pobres de Londres eque sentiu o chamado do mar. O fato não é insólito. Run away to sea, fugir para o mar, é a tradicional e britânica ruptura da autoridade paterna, a iniciação heróica.

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A geografia recomenda-a, e também a Escritura (Salmos, 1O6): "Os que descem em barcos ao mar, os que comerciam nas grandes íguas, esses vêem as obras de Deus e suas maravilhas no abismo". Orton fugiu de seu deplorável subúrbio de fuliginoso rosa e foi ao mar num navio e contemplou com habitual decepção o Cruzeiro do Sul, e desertou no porto de Valparaíso. Era uma pessoa de sossegada idiotia. Logicamente poderia (e deveria) ter morrido de fome, mas sua confusa jovialidade, seu permanente sorriso e sua mansidão infinita conciliaram-lhe o favor de certa família Castro, cujo nome adotou. Desse episódio sul-americano não restam pegadas, mas sua gratidão não decaiu, posto que em 1861 reaparece na Austrália sempre com esse nome, Tom Castro. Em Sidney conheceu um tal Bogle, criado negro. Bogle, sem ser bonito, tinha esse ar repousado c: monumental, essa solidez meio de obra de engenharia, própria1 Esta metáfora serve-me para lembrar ao leitor que as presentes biografias infames apareceram no suplemento de sábado de um vespertino.32t-)O IMPOSTOR INVEROSSÍMIL Tom CASTROdo homem de cor entrado em anos, em carnes e em autoridade. Tinha uma segunda condição, que determinados manuais de etnologia negam a sua raça: a ocorrência genial. Logo veremos a prova. Era um varão morigerado e decente, com os antigos apetites africanos muito corrigidos pelo uso e abuso do calvinismo. Excetuando-se a visita do deus (que descreveremos depois), era absolutamente normal, sem outra irregularidade que um pudico e vasto terror que o detinha nas esquinas, receando a leste, oeste, sul e norte, o violento veículo que daria fim a seus dias.Orton viu-o um entardecer numa desmantelada esquina de Sidney criando coragem para sortear a imaginária morte. Depois de fixá-lo longamente, ofereceu-lhe o braço e ambos atravessaram assombrados a rua inofensiva. Desde esse instante de um entardecer já defunto, estabeleceu-se um protetorado: o do negro inseguro e monumental sobre o obeso imbecil de Wapping. Em setembro de 1865, ambos leram num jornal local um desconsolado anúncio.

O IDOLATRADO HOMEM MORTO

Nos últimos dias de abril de 1854 (no tempo em que Orton provocava as efusões da hospitalidade chilena, ampla como seus pátios), naufragou nas costas do Atlântico o vapor Mermaid, procedente do Rio de Janeiro, rumo a Liverpool. Entre os que pereceram estava Roger Charles Tichborne, militar inglês criado na França, morgado de uma das principais famílias católicas cia Inglaterra. Parece inverossímil, mas a morte desse jovem afrancesado, que falava inglês com o mais fino sotaque de Paris e despertava esse incomparável rancor que só causam a inteligência, a graça e a pedanteria francesas, foi um acontecimento transcendental no destino de Orton, que jamais o vira. Lady Tichborne, a horrorizada mãe de Roger, recusou-se a acreditar na morte dele e publicou desconsolados anúncios nos periódicos de mais ampla circulação. Um desses anúncios caiu nas macias mãos funerárias do negro Bogle, que concebeu um projeto genial.R".327HISTÓRIA UNIVERSAL DA INFÂMIAO IMPOSTOR INVEROSSÍMIL TOM CASTROAS VIRTUDES DA DISPARIDADE

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Tichborne era um esbelto cavalheiro de ar retraído, traços agudos, tez morena, cabelo negro muito liso, os olhos vivos e a palavra de uma precisão já incômoda. Orton era um exuberante tosco, de vasto abdômen, traços de infinita vagueia, cútis puxando para o sardento, cabelo encaracolado castanho, olhos entorpecidos, e conversação ausente e apagada. Bogle inventou que o dever de Orton era embarcar no primeiro vapor para a Europa e satisfazer a esperança de Lady Tichborne, declarando ser seu filho. O projeto era de insensata perspicácia. Proponho um fácil exemplo. Se algum impostor em 1914 tivesse pretendido passar-se pelo Imperador da Alemanha, as primeiras coisas que pensaria falsificar teriam sido os bigodes ascendentes, o braço morto, o cenho autoritário, a capa cinza, o ilustre peito condecorado e o alto elmo. Bogle era mais sutil: teria apresentado um kaiser glabro, alheio a atributos militares e águias honrosas, o braço esquerdo em indubitável estado de saúde. Não necessitamos de metáfora; consta-nos que apresentou um Tichborne balofo, com sorriso amável de imbecil, cabelo castanho e uma inalterável ignorância do idioma francês. Bogle sabia que um fac-símile perfeito do desejado Roger Charles Tichborne era de impossível obtenção. Sabia também que todas as similitudes conseguidas não fariam outra coisa senão destacar certas diferenças inevitáveis. Renunciou, pois, a toda semelhança. Intuiu que a enorme inépcia da pretensão seria uma convincente prova de que não se tratava de uma fraude, que jamais alguém ousaria descobrir desse modo flagrante os mais simples traços convincentes. Não se pode esquecer também a colaboração todo-poderosa do tempo: catorze anos de hemisfério austral e de acaso podem mudar um homem.Outra razão fundamental: os repetidos e insensatos anúncios de Lady Tichborne demonstravam sua absoluta segurança de que Roger Charles não havia morrido, sua vontade de reconhecê-lo.O ENCONTROTom Castro, sempre serviçal, escreveu a Lady Tichborne- Para fundamentar sua identidade invocou a prova fidedigna deduas pintas, situadas no mamilo esquerdo, e aquele episódio de sua infância, tão aflitivo mas por isso mesmo tão memorável, quando foi atacado por um enxame de abelhas. A comunicação era breve e, à maneira de Tom Castro e de Bogle, prescindia de escrúpulos ortográficos. Na imponente solidão de um hotel de Paris, a dama leu-a e releu-a com lágrimas felizes, e em poucos dias encontrou as recordações que lhe pedia o filho.Aos dezesseis de janeiro de 1867, Roger Charles Tichborne anunciou-se nesse hotel. Precedeu-o seu respeitoso criado, Ebenezer Bogle. O dia de inverno era de muito sol; os olhos fatigados de Lady Tichborne estavam velados pelo pranto. O negro abriu de par a par as janelas. A luz compôs a máscara: a mãe reconheceu o filho pródigo e franqueou-lhe seu abraço. Agora que deveras o possuía, podia prescindir do diário e das cartas que ele lhe mandara do Brasil: meros reflexos adorados que alimentaram sua solidão de catorze anos soturnos. Devolveu-as com orgulho: nem uma faltava.Bogle sorriu discretamente: já tinha onde se documentar, o plácido fantasma de Roger Charles.

AD MAJOREM DEI GLORIAM

O reconhecimento ditoso - que parece cumprir uma tradição das tragédias clássicas - devia coroar esta história, deixando três felicidades asseguradas ou, pelo menos, prováveis: a da mãe verdadeira, a do filho apócrifo e tolerante, a do conspirador recompensado pela apoteose providencial de seu esforço. O Destino (tal é o nome que aplicamos à infinita operação incessante de milhares de causas entrelaçadas) não resolveu assim. Lady Tichborne morreu em 187O e os parentes iniciaram uma questão

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litigiosa contra Arthur Orton por usurpação de estado civil. Desprovidos de lágrimas e de pesar, mas não de cobiça, jamais acreditaram no obeso e quase analfabeto filho pródigo que tão intempestivamente ressurgia da Austrália. Orton contava com o apoio dos inumeráveis credores, que tinham decidido que ele era de fato Tichborne, para que pudesse pagar-lhes.Contava ainda com a amizade do advogado da família, Edward Hopkins, e com a do antiquário Francis J. Baigent. Isso329328HISTÓRIA UNIVERSAL DA INFÂMIAO IMPOSTOR INVEROSSÍMIL TOM CASTROnão bastava, contudo. Bogle pensou que para ganhar a partida era imprescindível o favor de uma forte corrente popular. Pediu a cartola e o distinto guarda-chuva e foi buscar inspiração nas circunspectas ruas de Londres. Era ao entardecer: Bogle vagou até que uma lua cor de mel se duplicou na água retangular das fontes públicas. O deus visitou-o. Bogle chamou uma carruagem e fez-se conduzir ao apartamento do antiquário Baigent. Este mandou uma longa carta ao Times, na qual assegurava ser o suposto Tichborne um descarado impostor. Assinava-a o padre Goudron, da Sociedade de Jesus. Outras denúncias igualmente papistas se sucederam. O efeito foi imediato: as boas almas não deixaram de adivinhar que Sir Roger Charles era alvo de um complô abominável dos jesuítas.

A CARRUAGEM

Cento e noventa dias durou o processo. Cerca de cem testemunhas declararam que o acusado era Tichborne - entre eles, quatro companheiros de armas do 6° Regimento de Dragões. Seus partidários não deixavam de repetir que não era um impostor, pois, se o fosse, teria procurado arremedar os retratos juvenis de seu modelo. Além disso, Lady Tichborne o havia reconhecido, e é evidente que mãe não se engana. Tudo corria bem, ou mais ou menos bem, até que uma antiga amada de Orton compareceu ante o tribunal para depor. Bogle não se alterou com essa pérfida manobra dos "parentes"; pediu chapéu e guarda-chuva e foi implorar uma terceira iluminação pelas circunspectas ruas de Londres. Não saberemos nunca se a encontrou. Pouco antes de chegar a Primrose Hill, atingiu-o o terrível veículo que do fundo das idades o perseguia. Bogle viu-o chegar, deixou escapar um grito, porém não atinou com a salvação. Foi projetado com violência contra as pedras. Os traiçoeiros cascos do pangaré partiram-lhe o crânio.

O ESPECTRO

Tom Castro era o fantasma de Tichborne, mas um pobre fantasma habitado pelo gênio de Bogle. Quando lhe disseramque este havia morrido, aniquilou-se. Continuou mentindo, porém com escasso entusiasmo e com disparatadas contradições. Era fácil prever o fim.Aos 27 de fevereiro de 1874, Arthur Orton, também conhecido como Tom Castro, foi condenado a catorze anos de trabalhos forçados. No cárcere, soube fazer-se querer; era seu ofício. O comportamento exemplar valeu-lhe uma redução de pena de quatro anos. Quando essa hospitalidade final (a da prisão) lhe permitiu, excursionou pelas

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aldeias e pelos centros populosos do Reino Unido, a pronunciar pequenas conferências nas quais declarava sua inocência ou afirmava sua culpa. Nele, a modéstia e o desejo de agradar eram tão duradouros que muitas noites começou pela defesa e acabou pela confissão, sempre a serviço das inclinações do público.Aos 2 de abril de 1898, morreu.33O331A VIÚVA CHING, PIRATAA palavra corsárias corre o risco de despertar uma lembrança que é vagamente incômoda: a de uma já descolorida zarzuela, com suas teorias de ostensivas mucamas a representarem piratas coreográficas em mares de notório papelão. Contudo, houve corsárias: mulheres hábeis nas manobras marinheiras, no governo de tripulações bestiais e na perseguição e saque de naves de bordo alto. Uma delas foi Mary Read, que declarou certa vez não ser a profissão de pirata para qualquer um, e para exercê-la com dignidade precisava-se ser homem de coragem, como ela. Nos rústicos princípios de sua carreira, quando ainda era capitã, um de seus amantes foi injuriado pelo espadachim de bordo. Mary desafiou-o para um duelo, e se bateu com ele com as duas mãos, segundo o antigo uso das ilhas do mar do Caribe: a profunda e precária garrucha na mão esquerda, o sabre fiel na direita. A garrucha falhou, mas a espada se portou bem... Por volta de 172O, a arriscada carreira de Mary Read foi interrompida por uma forca espanhola, em Santiago de Ia Vega (Jamaica).Outra pirata desses mares foi Anne Bonney, irlandesa resplandecente, de seios altos e cabelo fogoso, que mais de uma vez arriscou seu corpo na abordagem de embarcações. Foi companheira de armas de Mary Read, e, finalmente, de forca. Seu amante, o capitão John Rackam, teve também seu nó corrediço nessa função. Anne, despeitada, deu-lhe esta áspera variante de recriminação de Aixa a seu filho, o rei Boabdil: "Se houvesses combatido como um homem, não te enforcariam como um cão".Outra, mais venturosa e longeva, foi uma pirata que operou nas águas da Ásia, do Mar Amarelo até os rios da fronteira do Annam. Falo da aguerrida viúva Ching.A VIÚVA CHING, PIRATA OS ANOS DE APRENDIZAGEM

Por volta de 1797, os acionistas das muitas esquadras piráticas desse mar fundaram um consórcio e nomearam almirante um tal Ching, homem justiceiro e experimentado. Este foi tão severo e exemplar na pilhagem às costas que os habitantes espavoridos imploraram com dádivas e lágrimas o socorro imperial. Sua lastimosa petição não foi desatendida: receberam ordens de pôr fogo em suas aldeias, de esquecer os afazeres da pescaria, de emigrar terra adentro e aprender uma ciência desconhecida chamada agricultura. Assim o fizeram, e os frustrados invasores não encontraram senão um litoral deserto. Tiveram de se entregar, por conseguinte, ao assalto de navios: depredação ainda mais nociva do que a anterior, pois prejudicava seriamente o comércio. O governo imperial não vacilou e ordenou aos antigos pescadores o abandono do arado e dos bois, para que se restaurassem os remos e as redes. Eles se amotinaram, fiéis ao antigo temor, e as autoridades decidiram-se por outra conduta: nomear o almirante Ching chefe dos Estábulos Imperiais. Ele pretendia aceitar o suborno. Os acionistas souberam-no a tempo, e sua virtuosa indignação manifestou-se num prato de urtigas envenenadas, cozidas com arroz. A guloseima foi fatal: o antigo almirante e chefe novel dos Estábulos Imperiais entregou sua alma às divindades do mar. A viúva, transfigurada pela ,dupla traição, congregou os piratas, revelou-lhes o enredado caso e instou-os a recusar a clemência falaz do imperador e o ingrato

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serviço dos acionistas, de inclinação envenenadora. Propôs-lhes abordagem por conta própria e a votação de um novo almirante. Foi ela a eleita. Era uma mulher sarmentosa, de olhos entorpecidos e sorriso cariado. O cabelo, que enegrecia e azeitava, resplandecia mais do que os olhos.Sob suas tranqüilas ordens, os navios lançaram-se ao perigo e ao alto-mar.

O COMANDO

Treze anos de metódica aventura se sucederam. Seis pequenas esquadras integravam a armada sob bandeiras de diversas cores: a vermelha, a amarela, a verde, a cor de amora e a da serk332333HISTóRIA UNIVERSAL DA INFÂMIApente, que era a nave capitânia. Os chefes chamavam-se Pássaroe-Pedra, Castigo-da-Agua-Matutina, Jóia-da-Tripulação, Ondacom-Muitos-Peixes e Sol-Alto. O regulamento, redigido pela viúva Ching em pessoa, é de inapelável severidade, e seu estilo justo e lacônico prescinde das desfalecidas flores retóricas que emprestam majestade bem mais irrisória à maneira oficial chinesa, da qual oferecemos em seguida alguns alarmantes exemplos. Copio alguns artigos:"Todos os bens transportados de navios inimigos irão ter ao depósito e ali devem ser registrados. Uma quinta parte do saque de cada pirata ser-lhe-á entregue mais tarde; o restante continuará no depósito. A violação desta ordem é a morte."A pena para o pirata que abandonar seu lugar sem autorização especial será a perfuração pública de suas orelhas. A reincidência nesta falta é a morte."O comércio com as mulheres arrebatadas nas aldeias fica proibido sobre a coberta; deverá limitar-se ao porão e nunca sem a licença do oficial que se ocupa dos carregamentos. A violação desta ordem é a morte."Relatos de prisioneiros asseguram que o rancho desses piratas consistia principalmente de bolachas, de obesos ratos cevados e arroz cozido; nos dias de combate, costumavam misturar pólvora com o álcool. Naipes e dados fraudulentos, o copo e o retângulo do baralho do fantan, o visionário cachimbo do ópio e a lamparina distraíam as horas. Duas espadas de emprego simultâneo eram as armas preferidas. Antes da abordagem, esfregavam os pômulos e o corpo com uma infusão de alho; seguro talismã contra as bocas de fogo.A tripulação viajava com as mulheres, o capitão com seu harém, composto de cinco ou seis delas, que costumava renovar nas vitórias.

FALA KIA-KLNIG, O JOVEM IMPERADOR

Em meados de 18O9, promulgou-se um édito imperial do qual copio a primeira parte e a última. Muitos criticaram seu estilo:"Homens desventurados e daninhos, homens que pisam o pão, homens que desatendem o clamor dos cobradores deA VIÚVA CHING, PIRATAimpostos e dos órfãos, homens em cuja roupa íntima estão desenhados a fênix e o dragão, homens que negam a verdade dos livros impressos, homens que deixam as lágrimas

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correrem fixando o Norte, molestam a ventura de nossos rios e a antiga confiança de nossos mares. Em barcos avariados e desprezíveis, enfrentam noite e dia a tempestade. Seu objetivo não é benévolo: não são nem foram nunca os verdadeiros amigos do navegante. Longe de prestar-lhe ajuda, acometemno com ferocíssimo impulso e o convidam à ruína, à mutilação ou à morte. Violam, assim, as leis naturais do Universo, de sorte que os rios transbordam, as ribeiras inundam-se, os filhos se voltam contra os pais e os princípios da umidade e da seca são alterados..."...Por conseguinte, encomendo-te o castigo, Almirante Kvo-Lang. Não te esqueças de que a clemência é um atributo imperial e seria presunção em um impulsivo pretender assumi-la. Sê cruel, sê justo, sê obedecido, sê vitorioso."A referência inicial às embarcações avariadas era, naturalmente, falsa. Seu fim era levantar a coragem da expedição de Kvo-Lang. Noventa dias depois, as forças da viúva Ching enfrentaram as do Império Central. Quase mil navios combateram de sol a sol. Um coro misto de sinos, de tambores, de canhonaços, de imprecações, de gongos e de profecias acompanhou a ação. As forças do Império foram desfeitas. Nem o proibido perdão nem a recomendada crueldade tiveram ocasião de exercerem-se. Kvo-Lang observou um rito que nossos generais derrotados optam por declinar: o suicídio.

AS RIBEIRAS ESPAVORIDAS

Então, os seiscentos juncos de guerra e os quarenta mil piratas vitoriosos da Viúva soberba remontaram ao estuário do Si-Kiang, multiplicando incêndios e festas espantosas e órfãos, a bombordo e a estibordo. Houve aldeias inteiras arrasadas. Em só uma delas o número de prisioneiros passou do milhar. Cento e vinte mulheres, que solicitaram o confuso amparo dos juncais e arrozais vizinhos, foram denunciadas pelo incontido choro de uma criança e logo vendidas em Macau. Embora longínquas, as miseráveis lágrimas e lutos334335HISTÓRIA UNIVERSAL DA INFÂMIAA VIÚVA CHING, PIRATAdessa depredação chegaram aos ouvidos de Kia-King, Filho do Céu. Certos historiadores pretendem que lhe doeram menos que o desastre de sua expedição primitiva. O certo é que organizou uma segunda, terrível em estandartes, em marinheiros, em soldados, em petrechos de guerra, em provisões, em áugures e astrólogos. O comando recaiu desta vez em Ting-Kvei. Essa pesada multidão de navios remontou ao delta do Si-Kiang e fechou a passagem da esquadra pirática. A viúva aprestou-se para a batalha. Sabia-a difícil, muito difícil, quase desesperada; noites e meses de saque e ócio haviam relaxado seus homens. A batalha não começava nunca. Sem pressa, o sol se levantava e se punha sobre os bambus trêmulos. Os homens e as armas velavam. Os meios-dias eram mais poderosos, as sestas infinitas.

O DRAGÃO E A RAPOSA

Contudo, altos bandos preguiçosos de leves dragões surgiam a cada entardecer das naves da esquadra imperial e pousavam com delicadeza na água e nas cobertas inimigas. Eram aéreas construções de papel e taquara, semelhantes a cometas, e sua prateada ou vermelha superfície repetia idênticos caracteres. A Viúva examinou com ansiedade

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esses regulares meteoros e leu neles a lenta e confusa fábula de um dragão que sempre havia protegido uma raposa, apesar de suas muitas ingratidões e constantes delitos. A lua adelgaçou-se no céu, e as figuras de papel e bambu traziam cada tarde a mesma história, com quase imperceptíveis variantes. A Viúva afligia-se e pensava. Quando a lua estava plena no céu e na água avermelhada, a história pareceu chegar a seu fim. Ninguém podia predizer se um ilimitado perdão ou se um ilimitado castigo abater-se-ia sobre a raposa, porém o inevitável fim se aproximava. A Viúva compreendeu. Jogou suas duas espadas no rio, ajoelhou-se num bote e ordenou que a conduzissem até a nave do comando imperial.Era ao entardecer; o céu estava cheio de dragões, desta vez amarelos. A Viúva murmurava uma frase. "A raposa procura a asa do dragão", disse ao subir a bordo.A APOTEOSE

Os cronistas narram que a raposa obteve seu perdão e dedicou a lenta velhice ao contrabando de ópio. Deixou de ser a Viúva; assumiu um nome cuja tradução vernácula é Brilhoda-Verdadeira-lnstrução."Desde aquele dia (escreve um historiador) os navios recuperaram a paz. Os quatro mares e os rios inumeráveis tornaram-se seguros e felizes caminhos."Os lavradores puderam vender as espadas e comprar bois para o arado de seus campos. Fizeram sacrifícios, ofereceram orações nos cimos das montanhas e se regozijaram durante o dia cantando atrás de biombos."336337O PROVEDOR DE INIQÜIDADES MONK EASTMANO PROVEDOR DE INIQÜIDADES

MONK EASTMANOS DESTA AMÉRICA

Bem perfilados num fundo de paredes celestes ou de céu alto, dois compadritos, empertigados em séria roupa negra, dançam sobre sapatos de mulher uma dança gravíssima, que é a dos idênticos punhais, até que de uma orelha salte um cravo, porque o punhal penetrou em um homem, que encerra, com sua morte horizontal, a dança sem música. Resignado, o outro ajeita o chapéu e consagra a velhice à narração desse duelo tão limpo. Esta é a história detalhada e total de nossa má vida. A dos homens de briga de Nova York é mais vertiginosa e mais desastrada.

OS DA OUTRA

A história das quadrilhas de Nova York (revelada em 1928 por Herbert Asbury em um circunspecto volume de quatrocentas páginas em oitavo) possui a confusão e crueldade das cosmogonias bárbaras e muito de sua inépcia gigantesca: porões de antigas cervejarias habilitados para cortiços de negros, uma raquítica Nova York de três pavimentos; bandos de foragidos como os Anjos do Pântano (Swamp Angels) que perambulavam entre labirintos de cloacas; bandos de foragidos como os Daybreak Boys (Rapazes da Madrugada) que recrutavam assassinos precoces de dez e onze anos; gigantes solitários e descarados como os Ferozes Insolentes (Plug Ughes) que procuravam o inverossímil riso do próximo com uma firme cartola peluda e as vastas fraldas da camisa ondeadas pelo vento do subúrbio, mas com um garrote na direita e um revólver profundo; bandos

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de foragidos como os Coelhos Mortos (Dead Rabbits) que entravam

338na briga com a insígnia de um coelho morto num pau; homens como Johnny Dolan, o Dândi, famoso pelo topete azeitado sobre a fronte, pelas bengalas com cabeça de macaco e pelo fino instrumento de cobre que costumava calçar no polegar para esvaziar os olhos dos adversários; homens como Kit Burns, capaz de decapitar com uma única mordida um rato vivo; homens como Blind Danny Lyons, rapaz louro de imensos olhos mortos, rufião de três rameiras que circulavam com orgulho por ele, filas de casas de luz encarnadas como as dirigidas por sete irmãs de New England, que destinavam os lucros da noite de Natal à caridade; rinhas de ratos famélicos e de cães; casas de jogo chinesas; mulheres como a várias vezes viúva Red Norah, amada e ostentada por todos os homens que dirigiam o bando dos Gophers; mulheres como Lizzie the Dove, que pôs luto quando executaram Danny Lyons e morreu degolada por Gentle Maggie, que discutiu com ela a antiga paixão do homem morto e cego; motins, como o de uma semana selvagem de 1863, que incendiaram cem edifícios e por pouco não se assenhorearam da cidade; combates de rua nos quais o homem se perdia como no mar porque o pisoteavam até a morte; ladrões e envenenadores de cavalos como Yoske Nigger - tecem essa caótica história. Seu herói mais famoso é Edward Delaney, apelidado William Delaney, apelidado Joseph Marvin, apelidado Joseph Morris, também conhecido por Monk Eastman, chefe de mil e duzentos homens.

O HERÓI

Esses disfarces graduais (penosos como um baile de máscaras em que não se sabe bem quem é quem) omitem seu nome verdadeiro - se é que nos atrevemos a pensar que existe tal coisa no mundo. O certo é que no Registro Civil de Williamsburg, Brooklyn, o nome é Edward Ostermann, americanizado como Eastman depois. Coisa estranha, esse malfeitor tormentoso era hebreu. Filho de um dono de restaurante dos que anunciam Kosher, onde homens de rabínicas barbas podem assimilar sem perigo a carne dessangrada, três vezes limpa, de reses degoladas com retidão. Aos dezenove anos, por volta de 1892, abriu, com auxílio de seu pai, uma casa de pássaros. Perscrutar a vida dos animais, contemplar suas pequenas decisões e sua inescrutá339HISTóRIA UNIVERSAL DA INFÂMIAO PROVEDOR DE INIQÜIDADES MONK EASTMANvel inocência foi uma paixão que o acompanhou até o fim. Em ulteriores épocas de esplendor, quando recusava com desdém os charutos de folha dos sardentos sachems de Tammany ou visitava os melhores prostíbulos em um coche, antecipação de automóvel, que parecia o filho natural de uma gôndola, abriu um segundo e falso comércio, hospedando cem gatos finos e mais de quatrocentas pombas - que não estavam à venda para ninguém. Gostava deles individualmente e costumava passear a pé em seu distrito com um gato feliz no braço, e outros que o seguiam com ambição.Ele era uma ruína monumental. O pescoço curto, como de touro, o peito inexpugnável, os braços pelejadores e compridos, o nariz quebrado, a cara, ainda que historiada com cicatrizes, menos importante que o corpo, as pernas arqueadas como de ginete ou de marinheiro. Podia prescindir de camisa como também de paletó, não de um chapéu

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de grandes abas sobre a cabeça ciclópica. Os homens cuidam de sua memória. Fisicamente, o pistoleiro convencional dos filmes é um arremedo seu, não do epiceno e balofo Capone. De Wolheim, dizem que o empregaram em Hollywood porque seus traços aludiam diretamente aos do deplorado Monk Eastman... Este costumava percorrer seu império foragido com uma pomba de plumagem azul no ombro, igual a um touro com um bem-te-vi no dorso.Por volta de 1894, eram abundantes os salões de dança populares na cidade de Nova York. Eastman foi o encarregado de um deles, para manter a ordem. A lenda conta que o empresário não o quis atender e que Monk demonstrou sua capacidade demolindo com fragor o par de gigantes que detinha o emprego. Exerceu-o até 1899, temido e só.Para cada pendenciador que serenava, fazia com a faca uma marca na maça brutal. Certa noite, uma calva resplandecente que reclinava sobre um bock de cerveja chamou-lhe a atenção, e a fez desmaiar com uma pancada. "Faltava-me uma marca para cinqüenta!", exclamou depois.

O MANDO

Desde 1899, Eastman não era apenas famoso. Era o chefe eleitoral de uma zona importante, e cobrava fortes subsídiosdas casas de luz encarnada, das casas de jogo clandestinas, das mulheres de calçada, e dos ladrões desse feudo sórdido. Os comitês consultavam-no para organizar diretórios, e os particulares também. Eis aqui seus honorários: 15 dólares uma orelha arrancada, 19 uma perna quebrada, 25 um balaço na perna, 1OO o negócio completo. As vezes, para não perder o costume, Eastman executava pessoalmente uma encomenda.Certa questão de limites (sutil e mal-humorada como as outras que posterga o direito internacional) colocou-o diante de Paul Kelly, famoso capitão de outro bando. Balaços e entreveres das patrulhas haviam determinado uma fronteira. Eastman atravessou-a num amanhecer e acometeram-no cinco homens. Com aqueles braços vertiginosos de macaco e com o cacetete fez rodar três, mas lhe acertaram duas balas no abdômen e abandonaram-no como se estivesse morto. Eastman segurou a ferida cálida com o polegar e o indicador e caminhou com andar bêbado até o hospital. A vida, a febre alta e a morte disputaram-no várias semanas, mas seus lábios não se rebaixaram a delatar pessoa alguma. Quando saiu, a guerra era um fato e floresceu em contínuos tiroteios até o dia dezenove de agosto de novecentos e três.

A BATALHA DE RIVINGTON

Uns cem heróis vagamente diferentes das fotografias que estarão desbotando nos prontuários, uns cem heróis saturados de fumaça de tabaco e de álcool, uns cem heróis de palheta com faixa colorida, uns cem heróis afetados, este mais do que aquele, por doenças vergonhosas, cáries, males das vias respiratórias ou dos rins, uns cem heróis tão insignificantes ou esplêndidos quanto os de Tróia ou de Junín deram-se a esse denegrido feito de armas, à sombra dos arcos do Elevated. A causa foi o tributo exigido pelos pistoleiros de Kelly ao empresário de uma casa de jogo, compadre de Monk Eastman. Um dos pistoleiros foi morto, e o tiroteio conseguinte aumentou a batalha de inúmeros revólveres. Protegidos pelos altos pilares, homens de queixo raspado disparavam silenciosos e eram o centro de um espavorido horizonte de automóveis

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de aluguel tripulados por impacientes reforços, com ameaçadora34O341O PROVEDOR DE INIQÜIDADES MONK EASTMANartilharia Colt à mão. O que teriam sentido os protagonistas dessa batalha? Primeiro (creio) a brutal convicção de que o estrépito insensato de cem revólveres iria aniquilá-los de imediato; segundo (creio) a não menos errônea certeza de que, se a descarga inicial não os derrubara, eram invulneráveis. O certo é que pelejaram com furor, protegidos pelas estruturas metálicas e pela noite. Duas vezes interveio a polícia e duas foi rechaçada. Ao primeiro vislumbre do amanhecer, o combate morreu, como se fora obsceno ou espectral. Sob os grandes arcos de engenharia ficaram sete feridos graves, quatro cadáveres e uma pomba morta.

OS RANGIDOS

Os políticos paroquiais, a cujo serviço estava Monk Eastman, sempre desmentiram publicamente que houvesse tais bandos ou explicavam que se tratavam de meras sociedades recreativas. A indiscreta batalha de Rivington alarmou-os. Tiveram entrevistas com os dois capitães para intimá-los à necessidade de uma trégua. Kelly (bom sabedor de que os políticos eram mais aptos que todos os revólveres Colt para entorpecer a ação policial) disse imediatamente que sim; Eastman (com a soberba de seu grande corpo de bruto) ansiava por mais detonações e mais refregas. Começou por recusar e tiveram de ameaçá-lo com a prisão. Afinal, os dois ilustres malfeitores conferenciaram num bar, cada um com um cigarro de palha na boca, a mão no revólver, e sua nuvem vigilante de pistoleiros ao redor. Chegaram a uma decisão muito americana: confiar a uma luta de boxe a disputa. Kelly era boxeador habilíssimo. O duelo realizou-se num galpão e foi excêntrico. Cento e quarenta espectadores viram-no entre sujeitos de chapéus torcidos e mulheres de frágil penteado monumental. Durou duas horas e terminou por completa extenuação. Na outra semana recomeçaram os tiroteios. Monk foi preso pela enésima vez. Os protetores se desinteressaram dele com alívio, o juiz vaticinou-lhe, com toda aparência de verdade, dez anos de cárcere.342EASTMAN CONTRA A ALEMANHA

Quando o ainda perplexo Monk saiu de Sing-Sing, os mil e duzentos foragidos de seu comando estavam debandados. Não soube juntá-los outra vez, e se resignou a operar por conta própria. No dia oito de setembro de 1917, promoveu uma desordem na via pública. Dia nove, resolveu participar de outra desordem, e se alistou em um Regimento de Infantaria.Sabemos de vários aspectos de sua campanha. Sabemos que desaprovou com fervor a captura de prisioneiros e que certa vez (apenas com a culatra do fuzil) impediu essa prática deplorável. Sabemos que conseguiu fugir do hospital para voltar às trincheiras. Sabemos que se distinguiu nos combates próximos de Montfaucon. Sabemos que depois opinou que muitos bailaricos populares de Bowery eram mais terríveis que a guerra européia.

O MISTERIOSO, LÓGICO FIM

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No dia vinte e cinco de dezembro de 192O, o corpo de Monk Eastman amanheceu em uma das ruas centrais de Nova York. Havia recebido cinco balaços. Desconhecedor feliz da morte, um gato dos mais ordinários rondava-o com certa perplexidade.343O ASSASSINO DESINTERESSADO

BILL HARRIGANA imagem das terras do Arizona, antes de qualquer outra imagem: a imagem das terras do Arizona e do Novo México, terras com ilustre fundamento de ouro e de prata, terras vertiginosas e aéreas, terras da meseta monumental e das delicadas cores, terras com o esplendor branco de esqueleto descarnado pelos pássaros. Nessas terras, outra imagem, a de Billy the Kid: o cavaleiro fixo sobre a montaria, o jovem dos duros tiroteios que aturdem o deserto, o emissor de balas invisíveis que matam à distância, como um feitiço.O deserto encordoado de metais, árido e reluzente. O quase menino que, ao morrer aos vinte e um anos, devia à justiça vinte e uma mortes - "sem contar mexicanos".

O ESTADO LARVAR

Por volta de 1859, o homem que, para o terror e a glória, seria Billy the Kid, nasceu num cortiço subterrâneo de Nova York. Dizem que o pariu um fatigado ventre irlandês, mas que se criou entre negros. Nesse caos de catinga e carapinhas, gozou do primado que concedem as sardas e uma melena avermelhada. Praticava o orgulho de ser branco; também era mirrado, bravio, soez. Aos doze anos, militou na quadrilha dos Swamp Angels (Anjos do Pântano), divindades que operavam nas cloacas. Em noites cheirando a névoa queimada, emergiam daquele fétido labirinto, seguiam o rumo de algum marinheiro alemão, desmoronavam-no com uma bordoada, despojavam-no até da roupa de baixo e se entregavam em seguida à outra imundície. Comandava-osO ASSASSINO DESINTERESSADO BILL HARRIGANum negro encanecido, Gas Houser Jonas, também famoso como envenenados de cavalos.Às vezes, da janela da água-furtada de alguma casa corcunda perto da água, uma mulher virava sobre a cabeça de um transeunte um balde de cinza. O homem se agitava e se afogava. Em seguida, os Anjos do Pântano pululavam sobre ele, arrebatavam-no pela boca de um porão e saqueavam-no.Tais foram os anos de aprendizagem de Bill Harrigan, o futuro Billy the Kid. Não desdenhava as ficções teatrais: gostava de assistir (talvez sem nenhum pressentimento de que eram símbolos e letras de seu destino) aos melodramasde cowboys.

GO WEST!

Se os populosos teatros de Bowery (cujos freqüentadores vociferavam "Levantem o trapo!" à menor falta de pontualidade da cortina) eram abundantes nesses melodramas de cavaleiros e balaços, a facílima razão disso é que a América então sofria a atração do Oeste. Além do poente estava o ouro de Nevada e da Califórnia. Além dos poentes estavam o machado demolidor de cedros, a enorme cara babilônica do bisão, a cartola e o numeroso leito do Brigham Young, as cerimônias e a ira do homem vermelho,

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o ar limpo dos desertos, a desmedida pradaria, a terra fundamental, cuja proximidade acelera o bater do coração como a proximidade do mar. O Oeste chamava. Um contínuo rumor compassado povoou esses anos: o de milhares de homens americanos ocupando o Oeste. Nessa progressão, por volta de 1872, estava o sempre serpejante Bill Harrigan fugindo de uma cela retangular.

DEMOLIÇÃO DE UM MEXICANO

A História (que, à maneira de certo diretor cinematográfico, procede por imagens descontínuas) propõe agora a de uma arriscada taberna, isolada no todo-poderoso deserto como em altomar. O tempo, uma desordenada noite do ano de 1873; o exato344345pr, a planície Parada (Novo México). A terra é quase sobrenaturalmente lisa, porém o céu de nuvens em desnível, com intervalos de tormenta e lua, está cheio de poços que se fissuram e de montanhas. Na terra há o crânio de uma vaca, ladridos e olhos de coiote na sombra, finos cavalos e a luz prolongada da taberna. Dentro, acotovelados no mesmo balcão, homens cansados e fornidos bebem um álcool pendenciador e fazem ostentação de grandes moedas de prata com uma serpente e uma águia. Um bêbado canta impassivelmente. Há quem fale um idioma com muitos esses, que tem de ser espanhol, pois os que o falam são desprezados. Bill Harrigan, rato avermelhado de cortiço, está entre os que bebem. Concluiu duas doses de aguardente e pensa pedir outra mais, talvez porque não lhe reste um centavo. Aniquilam-no, os homens daquele deserto. Vê-os tremendos, tempestuosos, felizes, odiosamente sábios no manejo do gado selvagem e de altos cavalos. De repente, faz-se um silêncio total, apenas ignorado pela desatinada voz do bêbado. Entrou um mexicano mais do que fornido, com cara de índia velha. Transborda num excessivo sombreiro e em duas pistolas laterais. Em duro inglês deseja as boas-noites a todos os gringos filhos de cadela que estão bebendo. Ninguém aceita o desafio. Bill pergunta quem é, e lhe sussurram temerosamente que é o Dago - o Díego -, Belisário Villagrán, de Chihuahua. Uma detonação reboa em seguida. Parapeitado por aquele cordão de homens altos, Bill disparou sobre o intruso. O copo cai da mão de Villagrán, depois todo o homem. Não precisa de outra bala. Sem dignar-se olhar para o luxuoso morto, Bill retoma a conversa: "Deveras? - diz." - Pois eu sou Bill Harrigan, de Nova York". O bêbado continua cantando, insignificante.Já se adivinha a apoteose. Bill concede apertos de mão e aceita adulações, hurras e uísques. Alguém observa que não há marcas em seu revólver e lhe propõe gravar uma para significar a morte de Villagrán. Billy the Kid fica com a navalha desse alguém, mas diz "que não vale a pena anotar mexicanos". Só isto, contudo, não basta. Bill, essa noite, estende sua manta ao lado do cadáver e dorme até a aurora - ostentosamente.1 "Is that so?, he drawled."O ASSASSINO DESINTERESSADO BILL HARRIGAN

MORTES PORQUE SIM

Dessa feliz detonação (aos catorze anos de idade) nasceu Billy the Kid, o Herói, e morreu o furtivo Bill Harrigan. O meninote da cloaca e das pedradas ascendeu a homem da fronteira. Fez-se cavaleiro, aprendeu a montar ereto no cavalo, à maneira de Wyoming ou do Texas, não com o corpo jogado para trás, ao modo do Oregon e

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da Califórnia. Não chegou nunca a se parecer, de todo, com sua lenda, porém, dela se aproximou bastante. Algo do cafajeste de Nova York perdurou no cowboy; dedicou aos mexicanos o ódio que antes lhe inspiravam os negros, porém as últimas palavras que disse foram em espanhol (palavrões). Aprendeu a arte vagabunda dos tropeiros. Aprendeu a outra, mais difícil, de comandar homens; ambas ajudaram-no a ser um ladrão eficaz de gado. Às vezes, as guitarras e os bordéis do México empolgavam-no.Com a lucidez atroz da insônia, organizava populosas orgias que duravam quatro dias e quatro noites. Afinal, com asco, pagava a conta com balaços. Enquanto o dedo no gatilho não lhe falhou, foi o homem mais temido (e quiçá ninguém mais sozinho) dessa fronteira. Garrett, seu amigo, o xerife que o matou, disse-lhe certa vez: "Eu exercitei muito a pontaria matando búfalos". "Eu ainda mais, matando homens", replicou suavemente. Os pormenores são irrecuperáveis, porém sabemos que deveu até vinte e uma mortes - "sem contar mexicanos". Durante sete arriscadíssimos anos praticou esse luxo: a coragem.Na noite de vinte e cinco de julho de 188O, Billy the Kid atravessou no galope de seu malhado a rua principal ou única, de Fort Sumner. O calor apertava e não haviam acendido os lampiões; o comissário Garrett, sentado em certa cadeira de balanço de um corredor, empunhou o revólver e disparou-lhe um balaço no ventre. O cavalo seguiu; o cavaleiro desaprumou-se na rua de terra. Garrett encaixou-lhe um segundo balaço. O lugarejo (sabendo que o ferido era Billy the Kid) fechou bem as janelas. A agonia foi longa e blasfematória. Já com o sol bem alto, acercaram-se dele e o desarmaram; o homem estava morto. Notaram-lhe o ar de objeto fora de uso que têm os defuntos.HISTÓRIA UNIVERSAL DA INFÂMIA346347HISTóRIA UNIVERSAL DA INFÂMIABarbearam-no, embainharam-no em roupa feita e exibiram-no ao espanto e aos remoques na vitrina do melhor armazém.Homens a cavalo ou em tílburi acudiram de léguas ao redor. No terceiro dia, tiveram de maquiá-lo. No quarto dia, enterraram-no com júbilo.O INCIVIL MESTRE-DE-CERIMÔNIAS

KOTSUKÉ NO SUKÉO infame deste capítulo é o incivil mestre-de-cerimônias Kotsuké no Suké, aziago funcionário que motivou a degradação e morte do senhor da Torre de Ako e não se quis eliminar como um cavaleiro, quando a apropriada vingança o cominou. É homem que merece a gratidão de todos os homens, porque despertou preciosas lealdades e foi a negra e necessária ocasião de uma tarefa imortal. Uma centena de romances, de monografias, de teses doutorais e de óperas comemoram o fato - para não falar nas efusões em porcelana, lápis-lazúli venulado, e em laca. Até o versátil celulóide serve-o, uma vez que a História Doutrinal dos Quarenta e Sete Capitães - tal é seu nome - é a mais repetida inspiração do cinema japonês. A minuciosa glória que essas ardentes atenções afirmam é algo mais que justificável: é imediatamente justa para quem quer que seja.Sigo o relato de A. B. Mitford, que omite as contínuas distrações que opera a cor local e prefere atender ao movimento do glorioso episódio. Essa boa ausência de "orientalismo" dá margem a se suspeitar de que se trata de uma versão direta do japonês.

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O CORDÃO DESATADO

Na desvanecida primavera de 17O2, o ilustre senhor da Torre de Ako teve de receber e hospedar um enviado imperial. Dois mil e trezentos anos de cortesia (alguns mitológicos) haviam complicado angustiosamente o cerimonial da recepção. O enviado representava o imperador, mas à maneira de alusão ou de símbolo: matiz que não era menos improcedente348349HISTÓRIA UNIVERSAL DA INFÂMIAsublinhar do que atenuar. Para impedir os equívocos muito facilmente fatais, um funcionário da corte de Yedo precedia-o, na qualidade de mestre-de-cerimônias. Longe da comodidade cortesã e condenado a uma villégiature montanhesa que lhe deve ter parecido um desterro, Kira Kotsuké no Suké dava sem jeito as instruções. Às vezes, dilatava até a insolência o tom magistral. Seu discípulo, o senhor da Torre, procurava dissimular esse escárnio. Não sabia replicar, a disciplina vedava-lhe toda a violência. Uma manhã, contudo, o cordão do sapato do mestre desatou-se e este lhe pediu que o reatasse. O cavaleiro fê-lo com humildade, porém com indignação interior. O incivil mestre-decerimônias disse-lhe que na realidade era incorrigível, e que somente um campônio seria capaz de amarrar um nó tão torpe. O senhor da Torre puxou da espada e deu-lhe um golpe. O outro fugiu, apenas rubricada a fronte por um fio tênue de sangue... Dias depois, proferia sentença o tribunal militar contra o agressor e o condenava ao suicídio. No pátio central da Torre de Alço, elevaram um estrado de feltro vermelho e nele se mostrou o condenado e lhe entregaram um punhal de ouro e pedras, e confessou publicamente sua culpa e se foi despindo até a cintura e abriu o ventre com as duas feridas rituais, e morreu como um samurai, e os espectadores mais afastados não viram sangue porque o feltro era vermelho. Um homem encanecido e cuidadoso decapitou-o com a espada: o conselheiro Kuranosuké, seu padrinho.

O SIMULADOR DA INFÂMIA

A Torre de Takumi no Kami foi confiscada; seus capitães, debandados; sua família, arruinada e obscurecida; seu nome, vinculado à execração. Um rumor quer que, na idêntica noite em que ele se matou, quarenta e sete de seus capitães deliberaram no cume de um monte e planejaram, com toda a precisão, o que se produziu um ano mais tarde. O certo é que devem ter procedido de justificadas demoras e que algum de seus concílios teve lugar, não no cume difícil de uma montanha, mas numa capela em um bosque, medíocre pavilhão de madeira branca, sem outro adorno que a caixa retangular que contém um espelho. Apetecia-lhes a vingança, e a vingança lhes deve ter parecido inalcançável.35OO INCIVIL MESTRE-DE-CERIMÓNIAS KOTSUKÉ NO SUKÉKira Kotsuké no Suké, o odiado mestre-de-cerimônias, havia fortificado sua casa, e uma nuvem de arqueiros e esgrimistas custodiava seu palanquim. Contava com espias incorruptíveis, pontuais e secretos. Mais do que ninguém, zelavam e vigiavam o presumido capitão dos vingadores: Kuranosuké, o conselheiro. Este percebeu-o por acaso e fundou seu projeto vindicativo sobre esse fato.Mudou-se para Kioto, cidade insuperável em todo o império pela cor de seus outonos. Deixou-se arrebatar pelos lupanares, pelas casas de jogo e pelas tabernas. Apesar

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de suas cãs, conviveu com rameiras e com poetas, e gente ainda pior. Uma vez expulsaram-no da taberna e amanheceu adormecido no umbral, a cabeça tombada sobre um vômito.Um homem de Satsuma reconheceu-o e disse, com tristeza e com ira: "Não é este, porventura, aquele conselheiro de Asano Takumi no Kami, que o ajudou a morrer e que, em vez de vingar seu senhor, entrega-se aos deleites e à vergonha? Oh, tu, indigno do nome de Samurai!"Pisou-lhe o rosto adormecido e cuspiu nele. Quando os espiões denunciaram sua passividade, Kotsuké no Suké sentiu grande alívio.Os fatos não pararam aí. O conselheiro despediu a esposa e o mais jovem de seus filhos, e comprou uma mulher num lupanar, famosa infâmia que lhe alegrou o coração e relaxou a temerosa prudência do inimigo. Este acabou por dispensar a metade de seus guardas.Numa das noites atrozes do inverno de 17O3, os quarenta e sete capitães marcaram encontro num desmantelado jardim dos arredores de Yedo, perto da ponte e da fábrica de baralhos. Iam com as bandeiras de seu senhor. Antes de empreenderem o assalto, advertiram os vizinhos de que não se tratava de violação às leis, mas de operação militar de estrita justiça.

A CICATRIZ

Os dois bandos atacaram o palácio de Kira Kotsuké no Suké. O conselheiro comandou o primeiro, que atacou a porta da frente; o segundo, seu filho mais velho, que completaria dezesseis anos nessa noite. A história sabe os diver

351HISTÓRIA UNIVERSAL DA INFÂMIAO INCIVIL MESTRE-DE-CERIMÔNIAS KOTSUKÉ NO SUKÉsos momentos desse pesadelo tão lúcido: a descida arriscada e pendular pelas escadas de corda, o tambor do ataque, a precipitação dos defensores, os arqueiros postados na açotéia, o direto destino das flechas aos órgãos vitais do homem, as porcelanas infamadas de sangue, a morte ardente, que depois é glacial; os impudores e desordens da morte. Nove capitães morreram; os defensores não eram menos valentes e não se quiseram render. Pouco depois da meia-noite, toda a resistência cessou.Kira Kotsuké no Suké, razão ignominiosa dessas lealdades, não aparecia. Procuraram-no por todos os cantos desse inquieto palácio, e já desesperavam de o encontrar quando o conselheiro notou que os lençóis de seu leito estavam ainda mornos. Voltaram a procurar e descobriram uma estreita janela dissimulada por um espelho de bronze. Em baixo, de um pequeno pátio sombrio, olhava-os um homem de branco. Uma tênue espada estava em sua mão direita. Quando desceram, o homem entregou-se sem luta. Raiava-lhe a fronte uma cicatriz: velho desenho do aço de Takumi no Kami.Então os sangrentos capitães arrojaram-se aos pés do odioso e lhe disseram que eram os oficiais do senhor da Torre, de cuja perdição e fim era culpado, e lhe rogaram que se suicidasse, como o deve fazer um samurai.Em vão propuseram esse decoro a seu ânimo servil. Era um varão inacessível à honra; de madrugada tiveram de degolá-lo.

O TESTEMUNHO

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Já satisfeita sua vingança (mas sem ira, e sem agitação, e sem lástima), os capitães dirigiram-se ao templo que guarda as relíquias de seu senhor.Em uma caldeira levam a incrível cabeça de Kira Kotsuké no Suké e se revezam para cuidar dela. Atravessam os campos e as províncias, à luz sincera do dia. Os homens os bendizem e choram. O príncipe de Sendai quer hospedálos, mas respondem que há quase dois anos que os aguarda seu senhor. Chegam ao escuro sepulcro e oferecem a cabeça do inimigo.A Suprema Corte emite a sentença. É o que esperam: se lhes outorga o privilégio do suicídio. Todos o cumprem, alguns com ardente serenidade, e repousam ao lado de seu senhor. Homens e crianças vêm rezar no sepulcro desses homens tão fiéis.

O HOMEM DE SATSUMA

Entre os peregrinos que acodem, há um rapaz empoeirado e exausto que deve ter vindo de longe. Prosterna-se diante do monumento de Oishi Kuranosuké, o conselheiro, e diz em voz alta: "Eu te vi jogado à porta de um lupanar de Kioto e não pensei que estava premeditando a vingança de teu senhor, e te julguei um soldado sem fé e cuspi em teu rosto. Vim te dar satisfações". Disse isto e cometeu haraquiri.O prior condoeu-se de sua valentia e lhe deu sepultura no lugar em que os capitães repousam.Este é o final da história dos quarenta e sete homens leais - salvo que não tem fim, porque os outros homens que não somos leais talvez, mas nunca perderemos de todo a esperança de sê-lo, continuaremos a honrá-los com palavras.352353O TINTUREIRO MASCARADO HAKIM DE MERVO TINTUREIRO MASCARADO

HAKIM DE MERVA Angélica Ocampo

Se não me engano, ás fontes originais de informação acerca de Al Moganna, o Profeta Velado (ou mais estritamente, Mascarado) do Kurassan, reduzem-se a quatro: a) os excertos da História dos Califas, conservados por Baladhuri; b) o Manual do Gigante ou Livro da Precisão e da Revisão, do historiador oficial dos abássidas, Ibn abi Tair Tarfur; c) o códice árabe intitulado A Aniquilação da Rosa, em que se refutaram as heresias abomináveis da Rosa Obscura ou Rosa Escondida, que era o livro canônico do Profeta; d) umas moedas sem efígie desenterradas pelo engenheiro Andrusov, num desmonte da Estrada de Ferro Transcaspiana. Essas moedas foram depositadas no Gabinete Numismático de Teerã e contêm dísticos persas que resumem ou corrigem certas passagens da Aniquilação. A Rosa original foi perdida, uma vez que o manuscrito encontrado em 1889 e publicado não sem leviandade pelo Morgenlãndisches Archiv foi declarado apócrifo por Horn e em seguida por Sir Percy Sykes.A fama ocidental do Profeta deve-se a um loquaz poema de Moore, sobrecarregado de saudades e suspiros de conspirador irlandês.A PÚRPURA ESCARLATE

Aos 12O anos da Hégira e 736 da Cruz, o homem Hakim, que os homens daquele tempo e daquele espaço apelidaram logo de O Velado, nasceu no Turquestão. Sua pátria foi

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a antiga cidade de Merv, cujos jardins e vinhedose prados olham tristemente o deserto. O meio-dia é branco e deslumbrante, quando não o obscurecem nuvens de pó que sufocam os homens e deixam uma lâmina esbranquiçada nas cepas escuras.Hakim criou-se nessa fatigada cidade. Sabemos que um irmão de seu pai adestrou-o no ofício de tintureiro: arte de ímpios, de falsários e de inconstantes, que inspirou os primeiros anátemas de sua carreira pródiga. "Meu rosto é de ouro (revela em uma página famosa da Aniquilação), porém macerei a púrpura e submergi na segunda noite a lã sem cardar e saturei na terceira a lã preparada, e os imperadores das ilhas ainda se disputam essa roupa sangrenta. Assim pequei nos anos da juventude e transtornei as verdadeiras cores das criaturas. O Anjo dizia-me que os carneiros não eram da cor dos tigres, Satã dizia-me que o Poderoso queria que o fossem e se valia de minha astúcia e de minha púrpura. Agora sei que o Anjo e Satã erravam a verdade e que toda cor é abominável."No ano 146 da Hégira, Hakim desapareceu de sua pátria. Encontraram destruídas as caldeiras e cubas de imersão, assim como um alfanje de Xiraz e um espelho de bronze.

O TOURO

Ao final da lua de xabã no ano de 158, o ar do deserto estava muito claro e os homens olhavam o poente em busca da lua de ramadã, que promove a mortificação e o jejum. Eram escravos, esmoleres, vendilhões, ladrões de camelo e açougueiros. Gravemente sentados na terra, aguardavam o sinal do portão de uma pousada de caravanas no caminho de Merv. Olhavam o ocaso, e a cor do ocaso era a da areia.Do fundo do deserto vertiginoso (cujo sol produz a febre, assim como a lua produz o pasmo), viram adiantaram-se três figuras, que lhe pareciam altíssimas. Eram humanas as três, mas a do meio tinha cabeça de touro. Quando chegaram mais perto, viram que este usava máscara e os outros dois eram cegos.Alguém (como nos contos das Mil e Uma Noites) indagou a razão dessa maravilha. "Estão cegos" - declarou o homem da máscara - "porque viram meu rosto".354355HISTóRIA UNIVERSAL DA INFÂMIAO LEOPARDO

O cronista dos abássidas conta que o homem do deserto (cuja voz era singularmente doce, ou assim lhes pareceu por diferir da brutalidade de sua máscara) disse-lhes que estavam aguardando o signo de um mês de penitência, mas que ele pregava um signo superior: o de toda uma vida penitencia) e uma noite injuriada. Disse-lhes que era Hakim, filho de Osmã, e que no ano de 146 da Hégira havia penetrado um homem em sua casa e logo que se purificara, feitas as orações, havia cortado a cabeça dele, com um alfanje, e a levara até o céu. Sobre a mão direita do homem (que era o Anjo Gabriel) sua cabeça tinha estado ante o Senhor, que lhe deu a missão de profetizar, e lhe inculcou palavras tão antigas que sua repetição queimava as bocas, e lhe infundiu um glorioso esplendor, que os olhos mortais não toleravam. Tal era a justificativa da Máscara. Quando todos os homens da terra professassem a nova lei, o Rosto lhes seria descoberto, e eles poderiam adorá-lo sem risco - como os anjos já o adoravam. Proclamada sua comissão, Hakim exortou-os a uma guerra santa - um djehad - e a seu conveniente martírio.

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Os escravos, mendigos, pequenos negociantes, ladrões de camelos e açougueiros negaram-lhe sua fé: uma voz gritou bruxo e outra, impostor.Alguém havia trazido um leopardo - talvez um exemplar dessa raça esbelta e sangrenta que os monteiros persas amestram. O certo é que rompeu sua prisão. Salvos o profeta mascarado e os dois acólitos, as pessoas atropelaram-se para fugir. Quando voltaram, a fera havia cegado. Ante os olhos luminosos e mortos, os homens adoraram Hakim e confessaram sua virtude sobrenatural.

O PROFETA VELADO

O historiador oficial dos abássidas narra sem maior entusiasmo os progressos de Hakim, o Velado, no Kurassan. Essa província - muito comovida pela desventura e crucificação de seu mais famoso chefe - abraçou com desesperado fervor a doutrina do Rosto Resplandecente e lhe tributava seu sangue eO TINTUREIRO MASCARADO HAKIM DE MERVseu ouro. (Hakim, já então, descartou sua efígie brutal por um quádruplo véu de seda branca, recamado de pedras. A cor emblemática dos Banu Abbás era o negro; Hakim escolheu a cor branca - a mais contraditória - para o Véu Resguardados, os pendões e os turbantes.) A campanha iniciou-se bem. É verdade que no Livro da Precisão as bandeiras do Califa são em todo lugar vitoriosas, mas como o resultado mais freqüente dessas vitórias é a destituição de generais e o abandono de castelos inexpugnáveis, o avisado leitor sabe a que se ater. Ao final da lua de rejeb do ano 161, a famosa cidade de Nixapur abriu suas portas de metal ao Mascarado; em princípios de 162, a de Astarabad. A atuação militar de Hakim (como a de outro mais venturoso Profeta) reduziu-se à prece em voz de tenor, mas elevada à divindade do alto dorso de um camelo avermelhado, no coração agitado das batalhas. A seu redor silvavam as flechas, sem que jamais o ferissem. Parecia procurar o perigo: na noite que uns detestáveis leprosos rondaram seu palácio, ordenou-lhes comparecer a sua presença, beijou-os e lhes ofereceu prata e ouro.Delegava as fadigas do governo a seis ou sete adeptos. Era estudioso da meditação e da paz: um harém de 114 mulheres cegas tratava de aplacar as necessidades de seu corpo divino.

OS ESPELHOS ABOMINÁVEIS

Sempre que suas palavras não invalidem a fé ortodoxa, o Islã tolera a aparição de amigos confidenciais de Deus, por indiscretos ou ameaçadores que sejam. O Profeta, talvez, não tivesse desprezado os favores desse desdém, mas seus partidários, suas vitórias e a cólera pública do Califa - que era Mohamed Al Mahdi - obrigaram-no à heresia. Essa dissensão o arruinou, mas antes o fez definir os artigos de uma religião pessoal, se bem que com evidentes infiltrações das préhistórias gnósticas.No princípio da cosmogonia de Hakim, há um Deus espectral. Essa divindade carece majestosamente de origem, assim como de nome e rosto. É um Deus imutável, mas sua imagem projetou nove sombras que, condescendendo à ação, dotaram e presidiram um primeiro céu. Dessa primeira coroa356357HISTÓRIA UNIVERSAL DA INFÂMIA

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gica procedeu uma segunda, também com anjos,Ades e tronos, e estes fundaram outro céu mais baixo,Ia a réplica exata do inicial. Esse segundo conclave viuse reproduzido em um terceiro, e esse em outro inferior, e assim até 999. O senhor do céu do fundo é o que nos rege - sombra de sombras de outras sombras - e sua fração de divindade tende a zero.A terra em que habitamos é um erro, uma incompetente paródia. Os espelhos e a paternidade são abomináveis, porque a multiplicam e afirmam. O asco é a virtude fundamental. Duas disciplinas (cuja escolha deixava livre o profeta) podem conduzir-nos a ela: a abstinência e o excesso, a luxúria ou a castidade.O paraíso e o inferno de Hakim não eram menos desesperados. "Aos que negam a Palavra, aos que negam o Véu Incrustado e o Rosto (diz uma imprecação que se conserva da Rosa Escondida) prometo um Inferno maravilhoso, porque cada um deles reinará sobre 999 impérios de fogo, e em cada império 999 montes de fogo, e em cada monte 999 torres de fogo, e em cada torre 999 soalhos de fogo, e em cada andar 999 leitos de fogo, e em cada leito estará ele e 999 formas de fogo (que terão seu rosto e sua voz) o torturarão para sempre." Em outro lugar corrobora: "Aqui na vida padeceis em um corpo; na morte e na Retribuição, em inumeráveis". O paraíso é menos concreto. "Sempre é noite e há pilares de pedra, e a felicidade desse paraíso é a felicidade peculiar das despedidas, da renúncia e dos que sabem que dormem."

O ROSTO

No ano 163 da Hégira e quinto do Rosto Resplandecente, Hakim foi cercado em Sanã pelo exército do Califa. Provisões e mártires não faltavam, e se aguardava o iminente socorro de uma caterva de anjos da luz. Nisso estavam, quando um espantoso rumor atravessou o castelo. Contava-se que uma mulher adúltera do harém, ao ser estrangulada pelos eunucos, havia gritado que à mão direita do Profeta faltava o dedo anular e que careciam de unhas os outros. O rumor espalhou-se entre os fiéis. Em pleno sol, de um elevado terraço, Hakimpedia uma vitória ou um sinal à divindade familiar. Com a cabeça baixa, servil - como se corressem contra a chuva -, dois capitães lhe arrancaram o Véu recamado de pedras.Primeiro houve um calafrio. O prometido rosto do Apóstolo, o rosto que havia estado nos céus, era de fato branco, mas da brancura peculiar à lepra manchada. Era tão volumoso ou inacreditável que parecia uma máscara. Não tinha sobrancèlhas; a pálpebra inferior do olho direito pendia sobre a bochecha senil; uma pesada cepa de tubérculos comia-lhe os lábios; o nariz inumano e achatado como de um leão.A voz de Hakim ensaiou uma mentira final. "Vosso pecado abominável vos proíbe de perceber meu esplendor...", começou a dizer.Não o escutaram e atravessaram-no com as lanças.358359HOMEM DA EsQu1NA ROSADAHOMEM DA ESQUINA ROSADA"

Para Enriciue AmoricoLogo para mim, falar do finado Francisco Real. Cheguei a conhecê-lo, embora não fosse deste bairro - seus domínios eram mais para o Norte, pelos lados da laguna

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de Guadalupe e da Bateria. Estive com ele não mais de três vezes, e todas numa única noite, mas é noite que não esquecerei: foi quando a Lujanera veio, sem mais, dormir em meu rancho, e Rosendo Juárez deixou o Arrogo para não voltar. Claro que lhes falta a devida experiência para reconhecer esse nome, mas Rosendo Juárez, o Batedor, era dos que falavam mais alto em Villa Santa Rita. Rapaz afamado por ser bom na faca, era um dos homens de Dom Nicolás Paredes, que era homem de Morel. Costumava aparecer muito alinhado nos bordéis, num cavalo escuro enfeitado de prata. Homens e cachorros o respeitavam e também as chinas; ninguém ignorava que matara dois; usava chapéu alto, de aba estreita, sobre a cabeleira oleosa. Como se costuma dizer, a sorte o tratava bem. Nós, os rapazes da Villa, o imitávamos até no modo de cuspir. Entretanto, uma noite revelou para nós a verdadeira condição de Rosendo.Parece fantasia, mas a história dessa estranha noite começou com uma soberba jardineira de rodas vermelhas, carregada de homens, aos trancos por esses becos de barro duro, entre fornos de tijolos e buracos, com dois deles de preto tocando guitarra e fazendo barulho, e o outro na boléia a fustigar os cachorros soltos que atrapalhavam o tordilho, e mais um sujeito de poncho, silencioso no meio, e esse era o tão famoso Curraleiro, que ia brigar e matar. A noite era uma1 Texto traduzido por Flávio José Cardozo.bênção de tão fresca. Dois deles iam sobre a capota arriada, como se a solidão fosse um corso. Esse foi o primeiro acontecimento dos tantos que houve, mas só depois ficamos sabendo. Nós, os rapazes, estávamos desde cedo no salão de Júlia, um galpão com telhas de zinco, entre a estrada de Gauna e o arroio Maldanado. Era um lugar que se podia ver de longe, graças à luz que o desavergonhado lampião espalhava ao redor e também pelo barulho. Júlia, embora de cor humilde, era consciente e formal, tanto que não faltavam músicos nem boa bebida nem companheiras resistentes para o baile. Mas a Lujanera, que era a mulher de Rosendo, ganhava longe de todas. Ela morreu, senhor, e digo que passo anos sem pensar nela, mas precisava vê-la naqueles bons tempos. Ninguém se cansava de olhar para a Lujanera.A bebida, a milonga, o mulherio, um palavrão condescendente da boca de Rosendo, uma palmada dele em meu queixo, que eu tentava interpretar como amizade - a verdade e que me sentia feliz. Arrumei uma parceira que me acompanhava muito bem, como se adivinhasse minhas intenções. O tango fazia o que bem entendia conosco; estimulava-nos e perdia-nos e nos botava em ordem e nos fazia reencontrar. Nessa diversão, os homens estavam como num sonho, quando de repente a música pareceu crescer: é que a ela já se misturava a música dos guitarristas do carro, cada vez mais próximo. Depois, a brisa que a trouxe levou-a para outro rumo, e voltei a dar atenção a meu corpo e ao de minha companheira e às conversas do baile. Mais tarde, bateram à porta com autoridade, uma batida e uma voz. Em seguida, um silêncio geral, um empurrão muito forte na porta e o homem já estava dentro. O homem se parecia com a voz.Para nós, não era ainda Francisco Real, mas sim um sujeito alto, robusto, todo vestido de preto, com uma manta brancoamarelada jogada sobre o ombro. Lembro que tinha cara de índio, angulosa.Ao abrir-se, a porta bateu em mim. Não mais que por atordoamento, atirei-me sobre o homem e apliquei-lhe na facha um murro com a esquerda, enquanto com a direita puxava a faca afiada que sempre trazia na cava do colete, junto ao sovaco esquerdo. Ia durar pouco minha precipitação. O homem, para se firmar, esticou os braços e me afastou, como que se36O361JNIVERSAL DA INFÂMIA

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HOMEM DA ESQUINA ROSADADeixou-me escondido atrás, aindaJetó, sobre a arma inútil. Continuoutempre mais alto que qualquer umano se não visse nada. Os primeiros- abriram-se em leque, apressados.grupo seguinte o Inglês já o espeombro a mão do forasteiro, deitoupida. Foi acontecer aquela pranchau.u am. O salão tinha muitas varas de fundo, e o carregaram como um cristo, quase duma ponta a outra, com empurrões, vaias e cusparadas. Primeiro deramlhe socos, depois, vendo que não se defendia dos golpes, só tapas com a mão aberta ou com a franja inofensiva da manta, como se estivessem rindo dele ou o reservando para Rosendo, que não se mexera da parede do fundo, onde estava encostado, quieto. Fumava com pressa seu cigarro, como se entendesse o que depois fomos ver claramente. O Curraleiro foi empurrado até ele, firme e ensangüentado, envolvido na assuada da ralé estúpida. Vaiado, chicoteado, cuspido, só abriu a boca quando se defrontou com Rosendo. Então olhou para ele, limpou o rosto com o antebraço e disse o seguinte:- Eu sou Francisco Real, um homem do Norte. Eu sou Francisco Real, que chamam de Curraleiro. Permiti a esses infelizes que me botassem a mão porque o que estou procurando é um homem. Andam por aí uns boateiros dizendo que por estes descampados existe um sujeito com fama de ser bom na faca e de ser durão, um tal Batedor. Quero me encontrar com ele para que me ensine, a mim que não sou ninguém, o que é um homem corajoso.Disse isso e não tirou os olhos do outro. Na mão direita agora já reluzia uma faca que com certeza tinha trazido na manga. Em volta, os que o haviam empurrado foram abrindo caminho e todos nós olhávamos para os dois, num grande silêncio. Até os beiços do mulato cego que tocava violino também se abriram.Nisso, ouço que se mexem lá atrás e vejo na soleira da porta seis ou sete homens, que deviam ser capangas do Curraleiro. O mais velho, um homem com ar de camponês, curtido, de bigode grisalho, adiantou-se e, deslumbrado com tantomulherio e tanta luz, descobriu-se com respeito. Os outros vigiavam, prontos para entrar em ação se o jogo não fosse limpo.Que é que acontecia com Rosendo que não expulsava a pontapés aquele fanfarrão? Continuava calado, sem levantar os olhos. Não sei se cuspiu o cigarro ou se o deixou cair da boca. Por fim, conseguiu balbuciar algumas palavras, mas tão baixo que nada escutamos na outra ponta do salão. Francisco Real tornou a desafiá-lo e ele continuou a negar-se. Então, o mais jovem dos forasteiros assobiou. A Lujanera olhou para ele com desprezo e foi andando, com a cabeleira solta nas costas, entre homens e chinas. Chegou-se a seu homem, pôslhe a mão no peito, tirou a faca desembainhada e deu-a a ele com estas palavras:- Rosendo, acho que estás precisando disto.Na altura do teto havia uma espécie de janela comprida que dava para o arroio. Com as duas mãos, Rosendo recebeu a faca e a encarou como se não a reconhecesse. Jogou-se de repente para trás e a faca voou direto e perdeu-se lá fora, no Maldonado. Senti uma espécie de frio.- Não te meto a faca de nojo - disse o outro, e levantou a mão para castigá-lo.Então a Lujanera agarrou-se nele, passou-lhe os braços pelo pescoço, olhou-o com aqueles olhos e disse com raiva:- Deixa esse aí que fez a gente pensar que era homem.

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Francisco Real ficou confuso por um momento e depois abraçou a mulher, como se fosse para sempre, e ordenou aos músicos que tocassem tango e milonga e aos outros da festa que dançássemos. A milonga correu como incêndio de ponta a ponta. Real dançava muito grave, mas sem nenhum brilho, já dono daquela mulher. Chegaram até a porta e ele gritou:- Abram cancha, gente, que eu a levo meio dormindo.Disse isso e saíram de rostos colados, no rodopio do tango, como se os deixasse perdidos o tango.Devo ter ficado vermelho de vergonha. Dei umas voltinhas com uma das mulheres e larguei-a de repente. Disse que era por causa do calor e do aperto e fui ladeando a parede até sair. Noite linda - para quem? Na curva do beco estava a jardineira, e as duas guitarras empertigadas no assento, como cristãos. Fiquei chateado de ver que descuidavam delas dessa forma, como se a gente não servisse nem para tomar conta das362363HISTÓRIA UNIVERSAL DA INFÂMIAHOMEM DA ESQUINA ROSADAguitarras mais ordinárias. Fiquei com raiva ao perceber que não éramos ninguém. Atirei numa poça o cravo que tinha na orelha e fiquei algum tempo olhando para ele, para não pensar em mais nada. Quisera estar duma vez no dia seguinte, queria sair dessa noite. Nisso me deram uma cotovelada que foi quase um alívio. Era Rosendo, escapulindo do bairro, sozinho.- Você está sempre atrapalhando, idiota - resmungou ao passar, não sei se querendo desabafar ou se alheio a tudo. Tomou o lado mais escuro, o do Maldonado; não tornei mais a vê-lo.Fiquei olhando para coisas da vida inteira - céu de nunca acabar, o arroio teimoso lá embaixo, um cavalo adormecido,- beco de terra batida, os fornos - e pensei que eu era não mais que qualquer capim daquelas bandas, criado entre flores de brejo e ossadas. Que poderia sair daquele lixo além de nós, gritalhões mas covardes para o castigo, conversadores e impulsivos, não mais que isso? Senti depois que não; quanto mais apanha, mais o bairro tem obrigação de ser valentão. Lixo? A milonga continuava endoidecendo e aturdindo pelas casas, e trazia cheiro de madressilvas o vento. Noite inutilmente linda. Era tanta estrela que a gente ficava zonzo só de olhar, umas sobre as outras. Eu me esforçava em pensar que- assunto não me dizia respeito, mas a covardia de Rosendo- a coragem insuportável do forasteiro não me deixavam sossegado. Até uma mulher o homem alto tinha arrumado para aquela noite. Para essa e para muitas outras, pensei, e talvez para todas, porque a Lujanera era coisa séria. Sabe Deus que lado tomaram. Mas muito longe não deviam estar. Talvez os dois já estivessem até se amassando por aí em qualquer sarjeta.Quando consegui voltar, o baile continuava como se nada tivesse ocorrido.Disfarçadamente me enfiei no meio do pessoal e vi que alguns dos nossos tinham debandado e que os do Norte tangueavam junto com os outros. Cotovelaços e empurrões não havia, mas sim receio e decência. A música parecia sonolenta, as mulheres que tangueavam com os do Norte não abriam a boca.Eu esperava alguma coisa, mas não o que aconteceu.Lá fora, ouvimos uma mulher que chorava e depois a voz que já conhecíamos, mas serena, quase serena demais, como se já não fosse a voz de ninguém, dizendo para ela:- Entra, filha. - E o choro continuou. Depois, como se começasse a desesperar-se, a voz prosseguiu:

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- Abre, estou dizendo, abre, sua nojenta, abre, sua cadela! - Aí a trêmula porta se abriu e a Lujanera entrou, sozinha. Entrou mandada, como se alguém a viesse empurrando.- Está sendo mandada por uma assombração - disse o inglês.- Por um morto, amigo - disse então o Curraleiro. O rosto parecia o de um bêbado. Entrou e na cancha que lhe abrimos todos nós deu, como antes, alguns passos titubeantes - erguido, sem ver - e desabou feito poste. Um dos que tinham vindo com ele deitou-o de costas e ajeitou o pequeno poncho como travesseiro. Essas ajudas encheram o homem de sangue. Vimos então que tinha uma enorme ferida no peito; o sangue o encharcava e enegrecia um lenço vermelho que antes eu não havia notado porque estava coberto pela manta. Para um primeiro curativo, uma das mulheres trouxe aguardente e uns panos queimados. O homem não estava para dar explicações. A Lujanera o olhava como se estivesse perdida, com os braços caídos. Todos a interrogavam em silêncio e, por fim, ela conseguiu falar. Disse que depois de sair com o Curraleiro foram a um pequeno campo e nisso surge um desconhecido que o desafia como um desesperado a brigar e lhe dá aquela punhalada, e ela jura que não sabe quem é e que não é o Rosendo. Quem ia acreditar nela?O homem morria a nossos pés. Pensei que o pulso de quem o liquidou não tinha tremido. Mas o homem era duro. Quando caiu, Júlia estava cevando mate e a cuia deu uma volta inteira e chegou a minha mão antes que ele morresse. "Cubram meu rosto", disse devagar, quando não pôde mais. Só lhe restava o orgulho e não podia permitir que bisbilhotassem as marcas da agonia. Alguém pôs em cima dele o chapéu preto, de copa altíssima. Morreu debaixo do chapéu, sem nenhuma queixa. Quando o peito estendido deixou de subir e descer, o pessoal se animou a descobri-lo. Tinha aquele ar cansado dos defuntos; era um dos homens de maior coragem que houve naquele tempo, da Bateria até o Sul; quando o vi morto e sem fala, perdi meu ódio.- Para morrer não se precisa mais que estar vivo - disse uma das mulheres do grupo.- Tanta soberba e agora só serve para juntar moscas - falou outra, pensativa.364365HISTÓRIA UNIVERSAL DA INFÂMIAEntão os do Norte começaram a conversar baixinho entre eles e depois dois repetiram alto, ao mesmo tempo: - Foi a mulher que o matou.Um dos homens perguntou, cara a cara, se não tinha sido ela, e todos a cercaram. Eu me esqueci de que devia ser prudente e fui para junto deles como um raio. De afobado, quase desembainhei a faca. Senti que muitos me olhavam, para não dizer todos eles. Zombando, falei:- Olhem as mãos desta mulher: que pulso ou que coração pode ter ela para cravar uma punhalada?Acrescentei, com jeito aparentemente entediado do valentão:- Quem podia imaginar que o falecido, que dizem ter sido bravo em sua terra, fosse acabar dum jeito tão bruto e num lugar totalmente morto como este, onde nada acontece, a não ser quando aparece por aqui algum sujeito de fora para distrair a gente e que depois serve apenas para a gente cuspir em cima?O corpo não pediu surra a ninguém.Nisso começou a crescer na solidão um barulho de cavalos. Era a polícia. Uns mais e outros menos, todos teriam suas razões para não querer nada com ela, pois decidiram que o melhor era jogar o morto no arroio. Vocês devem estar lembrados da janela comprida pela qual passou o punhal, brilhando. Foi por aí que passou depois o homem de preto. Ergueram-no, e de quantos centavos e miudezas tinha o aliviaram essas mãos, e alguém lhe decepou um dedo para deslizar o anel. Aproveitadores, senhores,

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que assim criavam coragem diante de um pobre defunto indefeso, depois que alguém mais homem o liquidou. Um empurrão e a água rápida e teimosa o levou. Para que não boiasse, não sei se lhe arrancaram as vísceras, pois preferi não olhar. O sujeito de bigode grisalho não me tirava os olhos. A Lujanera aproveitou a confusão para sair.Quando os da lei fizeram o serviço, o baile andava meio animado. O cego do violino sabia tocar umas habaneras das que já não se ouvem mais. Lá fora estava querendo clarear. Umas estacas de nandubay sobre uma colina pareciam soltas, pois o arame fininho da cerca não podia ser visto assim tão cedo.Voltei tranqüilo para meu rancho, distante dali umas três quadras. Na janela brilhava uma luzinha, que se apagou logo366HOMEM DA ESQUINA ROSADAem seguida. É claro que tive pressa em chegar, quando me dei conta daquilo. Então, Borges, tornei a sacar a faca curta e afiada que eu sempre trazia aqui, no colete, perto do sovaco esquerdo, e examinei-a mais uma vez, devagarinho, e ela estava como nova, inocente, e não restava nenhum pingo de sangue.367ETCÉTERAETCÉTERAA Néstor Ibarra

UM TEÓLOGO NA MORTE

Os anjos comunicaram-me que, quando faleceu Melanchton, foi-lhe fornecida no outro mundo uma casa ilusoriamente igual à que havia ocupado na terra. (A quase todos recém-vindos à Eternidade sucede o mesmo e por isso acreditam não terem morrido.) Os objetos domésticos eram iguais; a mesa, a escrivaninha com suas gavetas, a biblioteca. Quando Melanchton despertou nesse domicílio, retornou a suas tarefas literárias como se não fosse um cadáver, e escreveu durante alguns dias sobre a justificativa pela fé. Como era seu costume, não disse palavra sobre a caridade. Os anjos notaram essa omissão e mandaram algumas pessoas interrogarem-no. Melanchton declarou: "já demonstrei irrefutavelmente que a alma pode prescindir da caridade e que para ingressar no céu basta ter fé". Essas coisas dizia-lhes com soberba e não sabia que já estava morto e que seu lugar não era o céu. Quando os anjos ouviram esse discurso, abandonaram-no.Poucas semanas depois, os móveis começaram a afantasmar-se até se tornarem invisíveis, salvo a poltrona, a mesa, as folhas de papel e o tinteiro. Além disso, as paredes do aposento mancharam-se de cal e o assoalho de um verniz amarelo. Sua própria roupa já estava muito mais ordinária. Contudo, ele continuava escrevendo, mas, como persistia na negação da caridade, transladaram-no para uma oficina subterrânea onde havia outros teólogos como ele. Aí esteve alguns dias encarcerado e começou a duvidar de sua tese; permitiram-lhe voltar. Sua roupa era de couro sem curtir, mas tentou imaginarque os fatos anteriores haviam sido mera alucinação e continuou elevando a fé e denegrindo a caridade. Num entardecer sentiu frio. Então percorreu a casa e percebeu que os demais aposentos já não correspondiam aos de sua moradia na terra. Um estava repleto de instrumentos desconhecidos; outro tinha diminuído tanto que era impossível

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entrar nele; outro não tinha mudado, mas as janelas e portas davam para grandes dunas. O cômodo dos fundos estava cheio de pessoas que o adoravam e que lhe repetiam que nenhum teólogo era tão sapiente como ele. Essa adoração agradou-lhe, mas como algumas dessas pessoas não tinham rosto e outras pareciam mortas, acabou se aborrecendo e desconfiando delas. Então determinou-se escrever um elogio da caridade, mas as páginas escritas hoje apareciam amanhã apagadas. Isso lhe aconteceu porque as compunha sem convicção.Recebia muitas visitas de gente recém-morta, porém tinha vergonha de se mostrar num alojamento tão sórdido. Para fazê-las crer que estava no céu, combinou com um bruxo do cômodo dos fundos, e este as enganava com simulacros de esplendor e serenidade. Apenas as visitas se retiravam, reapareciam a pobreza e a cal, e às vezes um pouco antes.As últimas notícias de Melanchton dizem que o mago e um dos homens sem rosto levaram-no até as dunas e que agora é como se fosse criado dos demônios.(Do livro Arcana Coelestia, de Emanuel Swedenborg.) A CÂMARA DAS ESTÁTUAS

Nos primeiros dias, havia no reino dos andaluzes uma cidade na qual residiam seus reis e que tinha por nome Lebtit ou Ceuta, ou Jaén. Existia um forte castelo nessa cidade, cuja porta de dois batentes não era para se entrar nem sair, mas para se manter fechada. Cada vez que um rei falecia e outro rei herdava seu trono altíssimo, este adicionava com suas próprias mãos uma fechadura nova à porta, até que foram vinte e quatro fechaduras, uma para cada rei. Então aconteceu que um homem malvado, que não era da casa real, tomou o poder e, em lugar de adicionar uma fechadura a mais, quis que as vinte368369HISTÓRIA UNIVERSAL DA INFÂMIAe quatro anteriores fossem abertas para ver o que continha aquele castelo. O vizir e os emires suplicaram-lhe que não fizesse tal coisa, e esconderam-lhe o chaveiro, e lhe disseram que adicionar uma fechadura era mais fácil do que forçar vinte e quatro, mas ele repetia com astúcia maravilhosa: "Quero examinar o conteúdo desse castelo". Então lhe ofereceram quantas riquezas puderam acumular em rebanhos, em ídolos cristãos, em prata e ouro, porém ele não quis desistir e abriu a porta com sua mão direita (que arderá para sempre). Dentro estavam desenhados os árabes em metal e madeira, sobre seus rápidos camelos e potros, com turbantes que ondeavam sobre as espáduas e os alfanjes suspensos por talabartes e a direita lança na destra. Todas essas figuras eram em relevo e projetavam sombras no soalho, e um cego as podia reconhecer apenas pelo tato, e as patas dianteiras dos cavalos não tocavam o solo e não caíam como se houvessem empinado. Grande espanto causaram ao rei essas primorosas figuras, e ainda mais a ordem e o silêncio excelentes que se observavam nelas, porque olhavam para um só lado, que era o poente, e não se ouvia nem uma voz nem um clarim. Isso havia na primeira sala do castelo. Na segunda, estava a mesa de Solimã, filho de Davi - seja a salvação para ambos! -, talhada numa única pedra-esmeralda, cuja cor, como se sabe, é o verde, e cujas propriedades escondidas são indescritíveis e autênticas, porque serena as tempestades, mantém a castidade de seu portador, afugenta a disenteria e os maus espíritos, decide favoravelmente um litígio e é de grande socorro nos partos.Na terceira, encontraram dois livros: um era negro e ensinava as virtudes dos metais, dos talismãs e dos dias, assim como a preparação de venenos e contravenenos;

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outro era branco e não se pôde decifrar seus ensinamentos, embora a escrita fosse clara. Na quarta, encontraram um mapamúndi, onde estavam os reinos, as cidades, os mares, os castelos e os perigos, cada qual com seu nome verdadeiro e com sua precisa figura.Na quinta, encontraram um espelho de forma circular, obra de Solimã, filho de Davi - seja a salvação para ambos! -, cujo preço era muito elevado, pois era feito de diversos metais e aquele que olhasse em seu cristal via o rosto de seus pais e de seus filhos, desde o primeiro Adão até os que ouvirão aETCÉTERATrombeta. A sexta estava cheia de elixir do qual bastava um único adarme para transmutar três mil onças de prata em três mil onças de ouro. A sétima lhe pareceu vazia e era tão vasta que o mais hábil dos arqueiros teria disparado uma flecha da porta sem conseguir cravá-la no fundo. Na parede final, viram gravada uma inscrição terrível. O rei examinou-a e a compreendeu, e dizia desta forma: "Se alguma mão abrir a porta deste castelo, os guerreiros de carne que se parecem aos guerreiros de metal da entrada tomarão o Reino".Essas coisas aconteceram no ano oitenta e nove da Hégira. Antes do final desse ano, Táric apoderou-se dessa fortaleza e derrotou esse rei e vendeu suas mulheres e seus filhos e assolou suas terras. Assim foram se expandindo os árabes pelo reino da Andaluzia, com suas figueiras e seus campos regados em que não se sofre de sede. Quanto aos tesouros, conta-se que Táric, filho de Zaíde, remeteu-os ao califa seu senhor, que os guardou em uma pirâmide.

(Do Livro das Mil e Uma Noites, noite 272) HISTÓRIA DOS DOIS QUE SONHARAM

O historiador arábico El Ixaqui narra este acontecimento:

"Contam os homens dignos de fé (porém só Alá é onis

ciente e poderoso e misericordioso e não dorme) que houve no

Cairo um homem possuidor de riquezas, porém tão magnão

nimo e liberal que as perdeu todas, menos a casa de seu pai, e

que se viu forçado a trabalhar para ganhar o pão. Trabalhou

tanto que o sono o rendeu certa noite debaixo de uma figueira

de seu jardim, e viu no sono um homem encharcado que tirou

uma moeda de ouro da boca e disse: "Tua fortuna está na Pér

sia, em Isfarrã; vai buscá-la". De madrugada, acordou,

empreendeu a longa viagem e enfrentou os perigos dos deser

tos, das naus, dos piratas, dos idólatras, dos rios, das feras e

dos homens. Chegou por fim a Isfarrã, mas no recinto dessa

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cidade a noite o surpreendeu, e ele parou para dormir no pátio

de uma mesquita. Havia, junto à mesquita, uma casa, e por

decreto de Deus Todo-Poderoso, uma quadrilha de ladrões

atravessou a mesquita e se meteu na casa, e as pessoas que37O371HISTÓRIA UNIVERSAL DA INFÂMIAETCÉTERAdormiam acordaram com o barulho dos ladrões e pediram socorro. Os vizinhos também gritaram, até que o capitão dos vigias daquele distrito acudiu com seus homens, e os bandidos fugiram pelo terraço. O capitão fez revistar a mesquita, e nela deram com o homem do Cairo e lhe infringiram tantos e tais açoites com varas de bambu que ele esteve perto da morte. No segundo dia, recobrou os sentidos no cárcere. O capitão mandou buscá-lo e disse: "Quem és, e qual a tua pátria?" O outro declarou: "Sou da cidade famosa do Cairo e meu nome é Mohamed El Magrebi". O capitão perguntou: "O que te trouxe à Pérsia?" O outro optou pela verdade e lhe disse: "Um homem ordenou-me, em sonho, que viesse a Isfarrã, porque aí estava minha fortuna. Já estou em Isfarrã e vejo que essa fortuna prometida devem ser os açoites que tão generosamente me deste"."Ante semelhantes palavras, o capitão riu até mostrar os dentes do siso e acabou por lhe dizer: "Homem desatinado e crédulo, três vezes sonhei eu com uma casa na cidade do Cairo, em cujo fundo há um jardim, e no jardim um relógio de sol e depois do relógio de sol, uma figueira, e após a figueira uma fonte, e sob a fonte um tesouro. Não dei o menor crédito a essa mentira. Tu, no entanto, produto de mula com qualquer demônio, tens errado de cidade em cidade, na fé única de teu sonho. Que eu não volte a te ver em Isfarrã. Toma estas moedas e vai-te"."O homem pegou-as e regressou à pátria. Debaixo da fonte de seu jardim (que era a do sonho do capitão) desenterrou o tesouro. Assim Deus lhe deu bênçãos e o recompensou e o exaltou. Deus é o Generoso, o Oculto."(Do Livro das Mil e Uma Noites, noite 351) O BRUXO PRETERIDO

Em Santiago, havia um deão que cobiçava aprender a arte da magia. Ouviu dizer que Dom Illán, de Toledo, conhecia-a mais do que ninguém, e foi a Toledo procurá-lo.No mesmo dia em que chegou, dirigiu-se à casa de Dom Illán e o encontrou lendo em um cômodo afastado. Este ojrecebeu com bondade e lhe pediu que adiasse o motivo de sua visita até depois de comerem. Mostrou-lhe o alojamento fresco e disse que sua vinda o alegrava muito. Depois de comer, o deão contou a razão daquela visita e rogou que lhe ensinasse a ciência mágica. Dom Illán disse que adivinhava ser ele deão, homem de boa situação e belo futuro, por quem temia ser logo esquecido. O deão prometeu e assegurou que amais esqueceria aquela mercê, e estaria sempre às suas ordens. Resolvido o assunto, explicou Dom Illán que as artes mágicas não se podiam aprender senão em lugar apartado, e tomando-o pela mão levou-o a um quarto contíguo, em cujo soalho havia uma grande argola de ferro. Disse antes à criada que preparasse perdizes para o jantar, porém que não as pusesse para assar senão quando lhe ordenassem. Juntos levantaram a argola e desceram por uma escada de pedra bem lavrada, até que ao deão pareceu terem descido tanto que o leito do Tejo estava sobre eles. Ao pé da escada havia

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uma cela e depois uma biblioteca e depois uma espécie de gabinete com instrumentos mágicos. Examinavam os livros, e nisso estavam quando entraram dois homens com uma carta para o deão, escrita pelo bispo seu tio, na qual lhe fazia saber que estava muito doente e que, se quisesse encontrá-lo vivo, não demorasse. Ao deão contrariaram muito essas novas, primeiro pela enfermidade do tio, depois por ser obrigado a interromper os estudos. Optou por escrever uma desculpa e mandou-a ao bispo. Três dias depois, chegaram alguns homens de luto com outras cartas para o deão, nas quais se lia ter o bispo falecido, que estavam elegendo o sucessor e esperavam, com a graça de Deus, que fosse ele o eleito. Diziam também que não se incomodasse em voltar, posto que parecia muito melhor que o elegessem em sua ausência.Passados dez dias, vieram dois escudeiros muito bem vestidos, que se atiraram a seus pés, beijaram-lhe as mãos e o saudaram como bispo. Quando Dom Illán viu essas coisas, dirigiu-se com muita alegria ao novo prelado e lhe disse que agradecia ao Senhor que tão boas novas chegassem a sua casa. Depois pediu-lhe o decanato vacante para um de seus filhos. O bispo fez-lhe saber que havia reservado o decanato para seu próprio irmão, mas que sempre havia determinado favorecêlo, e que partissem juntos para Santiago.372373HISTÓRIA UNIVERSAL DA INFÂMIAForam para Santiago os três, onde os receberam com honrarias. Seis meses depois, recebeu o bispo enviados do Papa que lhe oferecia o Arcebispado de Tolosa, deixando em suas mãos a nomeação do sucessor. Quando Dom Illán soube disso, recordou-lhe a antiga promessa e pediu-lhe o título para seu filho. O arcebispo fez-lhe saber que o havia reservado para seu próprio tio, irmão de seu pai, mas que havia determinado favorecê-lo, e que partissem juntos para Tolosa. Dom Illán não teve outro remédio senão concordar.Foram para Tolosa os três, onde os receberam com honrarias e missas. Dois anos depois, recebeu o arcebispo enviados do Papa que lhe oferecia o capelo de Cardeal, deixando em suas mãos a nomeação do sucessor. Quando Dom Illán soube disso, recordou-lhe a antiga promessa e pediu-lhe esse título para seu filho. O Cardeal fez-lhe saber que havia reservado o arcebispado para seu próprio tio, irmão de sua mãe, mas que havia determinado favorece-lo, e que partissem juntos para Roma. Dom Elán não teve outro remédio senão concordar. Foram para Roma os três, onde os receberam com honrarias, missas e procissões. Quatro anos depois, morria o Papa e nosso Cardeal foi eleito para o papado pelos demais. Quando Dom Illán soube disso, beijou os pés de Sua Santidade, recordou-lhe a antiga promessa e pediu-lhe o cardinalato para seu filho. O Papa ameaçou-o com o cárcere, dizendo-lhe que bem sabia ele que não era mais do que um bruxo e que em Toledo tinha sido professor de artes mágicas. O miserável Dom Illán disse que voltaria à Espanha e lhe pediu alguma coisa para comer no caminho. O Papa não acedeu. Foi quando Dom Illán (cujo rosto havia remoçado de modo estranho) disse com uma voz sem tremor:- Pois terei que comer sozinho as perdizes que para esta noite encomendei.A criada apresentou-se a Dom Illán e este deu ordem para que as assasse. A essas palavras, o Papa se encontrou na cela subterrânea em Toledo, apenas deão de Santiago, e tão envergonhado de sua ingratidão que não atinava como desculparse. Dom Illán disse que bastava essa prova, negou-lhe sua parte nas perdizes e o acompanhou até a rua, onde lhe desejou feliz viagem e se despediu com grande cortesia.(Do Livro de Patrônio do infante Dom Juan Manuel, que o derivou de um livro árabe: As Quarenta Manhãs e As Quarenta Noites.)

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ETCÉTERA

O ESPELHO DE TINTA

A história sabe que o mais cruel dos governadores doSudão foi Iácub, o Doente, que entregou seu país à iniqüidadedos arrecadadores egípcios e morreu em um aposento do palácio no décimo quarto dia da lua de barmarrat, no ano de 1842.Alguns insinuam que o feiticeiro Abderramen El Masmudi(cujo nome se pode traduzir por Servidor-do-Misericordioso)acabou com ele a punhal ou veneno, mas uma morte natural émais verossímil - já que o chamavam o Doente. Contudo, ocapitão Richard Francis Burton, que conversou com esse feiticeiro no ano de 1853, conta o que lhe narrou, e eu transcrevo:"É verdade que padeci cativeiro no alcáçar de Iácub, oDoente, por causa da conspiração que arquitetou meu irmãoIbraim, com o fementido e vão socorro dos chefes negros do Cordofão, que o denunciaram. Meu irmão pereceu pela espada, sobre a pele de sangue da justiça, porém eu me atirei aos detestáveis pés do Doente e lhe disse que era feiticeiro e que, se me concedesse a vida, mostrar-lhe-ia formas e aparências ainda mais maravilhosas que as do Fanussi khayal (a lanterna mágica). O opressor exigiu-me uma prova imediata. Pedi-lhe uma pena de vime, uma tesoura, uma grande folha de papel veneziano, um chifre de tinta, um braseiro, algumas sementes de coentro e uma onça de benjoim. Recortei a folha em seis tiras, escrevi talismãs e invocações nas cinco primeiras e, na restante, as seguintes palavras que estão no glorioso Quran: "Retiramos teu véu, e a visão de teus olhos é penetrante". Depois desenhei um quadro mágico na mão direita de Iácub e pedi-lhe que a fizesse funda e verti um círculo de tinta no meio. Perguntei-lhe se percebia com clareza seu reflexo no círculo, e respondeu que sim. Disse que não levantasse os olhos. Acendi o benjoim e o coentro, e queimei as invocações no braseiro. Pedi-lhe que declinasse a figura que desejava ver. Pensou e disse que um cavalo selvagem, o mais formoso que pastasse nos prados que bordejam o deserto. Olhou e viu o campo verde e tranqüilo e depois um cavalo que se aproximava, ágil como um leopardo, com uma estrela branca na testa. Pediu-me uma tropilha de cavalos tão perfeitos como o primeiro, e viu no horizonte uma alongada nuvem de poeira e em seguida a tropilha. Compreendi que minha vida estava segura.374375HISTÓRIA UNIVERSAL DA INFÂMIAETCÉTERA"Apenas despontava a luz do dia, dois soldados entravam no cárcere e me conduziam ao aposento do Doente, onde já me esperavam o incenso, o braseiro e a tinta. Assim me foi exigido e fui mostrando a ele todas as aparências do mundo. Esse homem morto, que detesto, teve em suas mãos quanto os homens têm visto e vêem os que estão vivos: as cidades, climas e reinos em que se divide a terra, os tesouros ocultos no centro, as naves que atravessam o mar, os instrumentos de guerra, da música e da cirurgia, as graciosas mulheres, as estrelas fixas e os planetas, as cores que empregam os infiéis para pintar seus quadros detestáveis, os minerais e as plantas com os segredos e virtudes que encerram, os anjos de prata cujo alimento é o elogio e a justificativa do Senhor, a distribuição dos prêmios nas escolas, as estátuas

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de pássaros e de reis que existem no coração das pirâmides, a sombra projetada pelo touro que sustenta a terra e pelo peixe que está debaixo do touro, os desertos de Deus o Misericordioso. Viu coisas impossíveis de descrever, como as ruas iluminadas a gás e a baleia que morre quando escuta o grito do homem. Uma vez me ordenou que lhe mostrasse a cidade que se chama Europa. Mostrei-lhe a principal de suas ruas e creio que foi nesse caudaloso rio de homens, todos vestidos de negro e muitos de óculos, que viu pela primeira vez o Mascarado."Essa figura, às vezes com o traje sudanês, às vezes de uniforme, mas sempre com um pano sobre o rosto, penetrou a partir daí nas visões. Não faltava nunca e jamais conjeturamos quem fosse. No entanto, as aparências do espelho de tinta, momentâneas ou imóveis a princípio, eram mais complexas agora; executavam sem demora minhas ordens e o tirano as obedecia com clareza. É certo que os dois costumávamos ficar extenuados. O caráter atroz das cenas era outra fonte de cansaço. Não eram senão castigos, cordas, mutilações, deleites de verdugo e de crueldade."Assim chegamos ao amanhecer do décimo quarto dia da lua de barmarrat. O círculo de tinta havia sido marcado na mão, o benjoim jogado no braseiro, as invocações queimadas. Estávamos a sós, os dois. O Doente disse-me que lhe mostrasse um inapelável e justo castigo, porque a seu coração, esse dia, apetecia ver uma morte. Mostrei-lhe os soldados com ostambores, a pele de bezerro esticada, as pessoas felizes por estarem olhando, o verdugo com a espada da justiça. Maravilhou-se ao ver isso e disse-me: "É Abu Kir o que justiçou teu irmão lbraim: aquele que encerrará teu destino, quando me seja concedida a ciência de convocar essas figuras sem tua ajuda". Pediu-me que trouxessem o condenado. Quando o trouxeram, perturbou-se, porque era o homem inexplicável do pano branco. Ordenou que, antes de matá-lo, tirassem-lhe a máscara. Atirei-me a seus pés e disse: Ú rei do tempo e da substância, suma do século, essa figura não é como as demais, porque não sabemos seu nome nem o de seus pais nem o da cidade que é sua pátria, de modo que não me atrevo a tocá-la para não incorrer em uma culpa da qual terei de prestar contas". Riu-se o Doente e acabou por jurar que ele assumiria a culpa, se culpa houvesse. Jurou-o pela espada e pelo Quran. Então, ordenei que desnudassem o condenado e que o prendessem sobre a esticada pele de bezerro e que lhe arrancassem a máscara. Essas coisas foram feitas. Os espantados olhos de lácub puderam ver por fim esse rosto - que era o seu próprio. Cobriu-se de medo e de loucura. Segurei-lhe a destra tremente com a minha, que estava firme, e lhe ordenei que continuasse olhando a cerimônia de sua morte. Estava possuído pelo espelho: nem sequer tentou alçar os olhos ou derramar a tinta. Quando a espada abateu-se, na visão, sobre a cabeça culpada, gemeu com uma voz que não me apiedou, e caiu no chão, morto."A glória esteja com Aquele que não morre e que tem em sua mão as duas chaves do ilimitado Perdão e do infinito Castigo."

(Do livro The Lake Regions of Equatorial Africa, de R. E Burton.)UM DUPLO DE MAOMÉ

Já que na mente dos muçulmanos as idéias de Maomé e de religião estão indissoluvelmente ligadas, o Senhor ordenou que no Céu sempre os presida um espírito que faz o papel de Maomé. Esse delegado nem sempre é o mesmo. Um cidadão376377HISTÓRIA UNIVERSAL DA INFf1MIA

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da Saxônia, a quem em vida aprisionaram os argelinos e que se converteu ao Islã, ocupou uma vez esse cargo. Como havia sido cristão, falou-lhes de Jesus e lhes disse que não era o filho de José, mas o filho de Deus; foi conveniente substituí-lo. A situação desse Maomé representativo está indicada por uma tocha, somente visível aos muçulmanos.O verdadeiro Maomé que redigiu o Quran já não é visível a seus adeptos. Disseram-me que a princípio os presidia, mas que pretendeu dominó-los e foi exilado para o Sul. Uma comunidade de muçulmanos foi instigada pelos demônios a reconhecer Maomé como Deus. Para aplacar o distúrbio, Maomé foi trazido dos infernos e o exibiram. Nessa ocasião eu o vi. Parecia-se aos espíritos corpóreos que não têm percepção interior, e seu rosto era muito escuro. Pôde articular as palavras "Eu sou o vosso Maomé", e imediatamente desapareceu.

(De Uera Christiana Religio, 1771, de Emanuel SwedenborgJ378HISTÓRIA UNIVERSAL DA INFÂMIAÍNDICE DAS FONTESO Atroz Redentor Lazarus MorellLi fe on the Mississippi, by Mark Twain. New York, 1883. Mark Tzuain"s America, by Bernard Devoto. Boston, 1932.O Impostor Inverossímil Tom CastroThe History of Piracy, by Philip Gosse. London, Cambridge, 1911.A Viúva Ching, PirataThe History of Piracy, by Philip Gosse. London, 1932.O Provedor de Iniqüidades Monk EastmanThe Gangs of Nezu York, by Herbert Asbury. New York, 1927.O Assassino Desinteressado Bill HarriganA Century of Gunmen, by Frederick Watson. London, 1931.The Saga of Billy the Kid, by Walter Noble Burns. New York,1925.O Incivil Mestre-de-Cerimônias Kotsuké no Suké Tales of Old Japan, by A. B. Mitford. London, 1912.O Tintureiro Mascarado Hakim de MervA History of Persia, by Sir Percy Sykes. London, 1915.Die Uernichtung der Rose. Nach dem arabischen Urtext übertragen von Alexander Schulz. Leipzig, 1927.379HISTÓRIA DA ETERNIDADE1936...Supplementum Lfvü; Historia infinita temporis atque aeternitatis...QuEVEDO: Perinola, 1632....nor promise that they wouldbeeome in general, by learning criticism, more useful, happier, or wiser.JoxNSOty: Preface to Shakespeare, 1765.PRÓLOGOPouco direi da singular "história da eternidade" que dá nome a estas páginas. No início, falo da filosofia platônica; num trabalho que aspirava ao rigor cronológico, teria sido mais razoável partir dos hexâmetros de Parmênides ("nunca foi nem será, porque agora é"). Não sei como pude comparar a "imóveis peças de museu" as formas de Platão e como não entendi, lendo Schopenhauer e Erígena, que estas são vivas, poderosas e orgânicas. O movimento, ocupação de diferentes lugares em diferentes

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momentos, é inconcebível sem tempo; também o é a imobilidade, ocupação de um mesmo lugar em diferentes momentos do tempo. Como pude não sentir que a eternidade, almejada com amor por tantos poetas, é um artifício esplêndido que nos livra, mesmo que de maneira fugaz, da intolerável opressão da sucessividade?Acrescentei dois artigos que complementam ou retificam o texto.- "A metáfora", de 1952; "O tempo circular", de 1943.O improvável ou talvez inexistente leitor de "As kenningar" pode consultar o manual Literaturas Germánicas Medievales, que escrevi com María Esther Vázquez. Quero não omitir a menção de duas aplicadas monogra fias: Die Kenningar der Skalden (Leipzig, 1921), de Rudolf Meissner, e Die Altenglischen Kenningar (Hale, 1938), de Herta Marquardt."Aaproximação a Almotásim" é de 1935; li há pouco The Sacred Fount (19O1), cujo argumento geral é talvez análogo. O narrador, no delicado romance de James, indaga se em B influem A ou C; em "A aproximação a Almotásim", pressente ou adivinha por intermédio de B a remotíssima existência de Z, que B não conhece.O mérito ou a culpa da ressurreição destas páginas não caberá por certo a meu karma, mas ao de meu generoso e obstinado amigo José Edmundo Clemente.

J.L.B.

385HISTÓRIA DA ETERNIDADEINaquela passagem das Enéadas que pretende interrogar e definir a natureza do tempo, afirma-se que é indispensável conhecer previamente a eternidade, que - como todos sabem - é o modelo e arquétipo dele. Essa advertência preliminar, tanto mais grave se a considerarmos sincera, parece aniquilar toda esperança de nos entendermos com o homem que a escreveu. O tempo é um problema para nós, um terrível e exigente problema, talvez o mais vital da metafísica; a eternidade, um jogo ou uma fatigada esperança. Lemos no Timeu de Platão que o tempo é uma imagem móvel da eternidade; e isso é apenas um acorde que a ninguém distrai da convicção de ser a eternidade imagem feita de substância de tempo. Essa imagem, essa tosca palavra enriquecida pelas discórdias humanas, é o que me proponho historiar.Invertendo o método de Plotino (única maneira de aproveitá-lo), começarei por lembrar as obscuridades inerentes ao tempn~~~istério metafísico, natural, que deve preceder a eternidade, filha dos homens. Uma dessas obscuridades, não a mais árdua nem a menos bela, é a que nos impede de precisar a direção do tempo. Que flui do passado para o futuro é a crença comum, mas não mais ilógica é a contrária, aquela que Miguel de Unamuno gravou em verso espanhol:Noturno, o rio das horas fluide seu manancial, que é o amanhã eterno..."1 O conceito escolástico do tempo como a fluëncia do potencial no atual tem afinidade com essa idéia. Cf. os objetos eternos de Whitehead, que constituem "o reino da possibilidade" e ingressam no tempo.387HISTÓRIA DA ETERNIDADEAmbas são igualmente verossímeis - e igualmente inverificáveis. Bradey nega as duas e adianta uma hipótese pessoal: excluir o futuro, que é uma simples construção de nossa

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esperança, e reduzir o "atual" à agonia do momento presentedesintegrando-se no passado. Essa regressão temporal costuma corresponder aos estados de declínio ou insipidez, ao passo que qualquer intensidade nos parece avançar sobre o futuro... Bradey nega o futuro; uma das escolas filosóficas da Índia nega o presente, por considerá-lo inapreensível. "Ou a laranja está prestes a cair do galho, ou já está no chão", afirmam esses simplificadores estranhos. "Ninguém a vê cair."O tempo propõe outras dificuldades. Uma, talvez a maior, a de sincronizar o tempo individual de cada pessoa com o tempo geral das matemáticas, foi fartamente apregoada pelo recente alarme relativista, e todos a recordam - ou lembram tê-la recordado até bem pouco tempo. (Eu a retomo assim, deformando-a: Se o tempo é um processo mental, como podem milhares de homens, ou mesmo dois homens diferentes, compartilhá-lo?) Outra é a destinada pelos eleatas a refutar o movimento. Pode ser compreendida nestas palavras: E impossível que em oitocentos anos de tempo transcorra um prazo de catorze minutos, porque é obrigatório que antes tenham passado sete, e antes de sete, três minutos e meio, e antes de três e meio, um minuto e três quartos, e assim infinitamente, de modo que os catorze minutos nunca se completam". Russell rebate esse argumento, afirmando a realidade e mesmo a vulgaridade dos números infinitos que, entretanto, se dão de uma só vez, por definição, não como termo "final" de um processo enumerativo sem fim. Esses algarismos anormais de Russell são boa antecipação da eternidade, que tampouco se deixa definir pela enumeração de suas partes.Nenhuma das várias eternidades que os homens planejaram - a do nominalismo, a de Ireneu, a de Platão - é agregação mecânica do passado, do presente e do futuro. E algo mais simples e mais mágico: é a simultaneidade desses tempos. A linguagem comum e aquele dicionário admirável dont chague édítion fait regretter la précédente parecem ignorá-la, mas os metafísicos a pensaram assim. "Os objetos da alma são sucessivos, agora Sócrates e depois um cavalo" - leio no quinHISTÓRIA DA ETERNIDADEto livro das Enéadas -, "sempre uma coisa isolada que se concebe e milhares que se perdem; mas a Inteligência Divina abarca todas as coisas em conjunto. O passado está em seu presente, assim como também o futuro. Nada transcorre neste mundo, no qual persistem todas as coisas, quietas na felicidade de sua condição".Passo a considerar essa eternidade, da qual derivaram as subseqüentes. É verdade que Platão não a inaugura - num livro especial, fala dos "antigos e sagrados filósofos" que o precederam -, mas amplia e resume com brilhantismo tudo Oque imaginaram os anteriores. Deussen o compara ao ocaso: luz apaixonada e final. Todas as concepções gregas de eternidade convergem em seus livros, ora refutadas, ora tragicamente adornadas. Por isso faço-o preceder a Ireneu, que ordena a segunda eternidade: a coroada pelas três pessoas, distintas mas inextricáveis.Diz Plotino com notório fervor: "Toda coisa no céu inteligível também é céu, e ali a terra é céu, como também os animais, as plantas, os varões e o mar. Têm por espetáculo um mundo que não foi gerado. Cada um se vê nos outros. Não há nesse reino coisa que não seja diáfana. Nada é impenetrável, nada é opaco e a luz encontra a luz. Todos estão em toda parte, e tudo é tudo. Cada coisa é todas as coisas. O sol é todas as estrelas, e cada estrela é todas as estrelas e o sol. Ninguém caminha ali como sobre uma terra estranha". Esse universo unãonime, essa apoteose da assimilação e do intercâmbio, não é contudo a eternidade; é um céu limítrofe, não inteiramente emancipado do número e do espaço. Esta passagem , doo quinto livro quer exortar à contemplação da eternidáde, ao mundo das formas universais: "Que os homens a quem

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maravilha este mundo - sua capacidade, sua beleza, a ordem de seu movimento contínuo, os deuses manifestos ou invisíveis que o percorrem, os demônios, árvores e animais - elevem o pensamento a essa Realidade, da qual tudo isto é cópia. Verão aí as formas inteligíveis, não de eternidade emprestada mas eternas, e verão também seu capitão, a Inteligência pura, e a Sabedoria inalcançável, e a idade genuína de Cronos, cujo nome é a Plenitude. Todas as coisas imortais estão nele. Cada intelecto, cada deus e cada alma. Todos os lugares lhe são presentes; aonde irá? Está feliz, para que388389HISTÓRIA DA ETERNIDADEexperimentar mudança e vicissitude? Não necessitou desse estado no início e o atingiu depois. Numa só eternidade as coisas são suas: essa eternidade que o tempo arremeda ao girar em torno da alma, sempre desertor de um passado, sempre cobiçoso de um futuro".As repetidas afirmações de pluralidade dispensadas pelos parágrafos anteriores podem induzir-nos a erro. O universo ideal a que nos convida Plotino tem menos afinidade com a variedade que a plenitude; é um repertório seleto, que não tolera a repetição e o pleonasmo. É o imóvel e terrível museu dos arquétipos platônicos. Não sei se foi visto por olhos mortais (fora da intuição visionária ou do pesadelo) ou se o grego remoto que o concebeu chegou a representá-lo alguma vez, mas pressinto nele algo de museu: quieto, monstruoso e classificado... Trata-se de imaginação pessoal da qual pode prescindir o leitor; do que não convém que prescinda é de alguma informação geral sobre esses arquétipos platônicos, ou causas primordiais ou idéias, que povoam e compõem a eternidade.É impossível aqui uma discussão detalhada do sistema platônico, mas não certas advertências de intenção propedêutica. Para nós, a última e firme realidade das coisas é a matéria - os elétrons giratórios que percorrem distâncias estelares na solidão dos átomos -; para os capazes de platonizar, a espécie, a forma. No terceiro livro das Enéadas, lemos que a matéria é irreal: simples e oca passividade que recebe as formas universais como um espelho as receberia; estas a agitam e povoam sem alterá-la. Sua plenitude é precisamente a de um espelho, que aparenta estar cheio e está vazio; é um fantasma que nem sequer desaparece, porque não tem nem ao menos a capacidade de cessar. O fundamental são as formas. Repetindo Plotino, disse delas Pedro Malón de Chaide, muito depois: "Deus faz como se tivésseis um sinete oitavado, de ouro, tendo numa parte um leão esculpido; na outra, um cavalo; noutra uma águia, e assim nas demais; e num pedaço de cera imprimísseis o leão; noutro, a águia; noutro, o cavalo; é claro que tudo o que está na cera está no ouro, e só podeis imprimir o que ali tendes esculpido. Mas há uma diferença, que, no final, o que está na cera é cera, e vale pouco; mas o que está no ouro é ouro e vale muito. Nas criaturas estão estas perfeições finitas e deHISTÓRIA DA ETERNIDADEpouco valor; em Deus são de ouro, são o próprio Deus". Daí podemos inferir que a matéria é nada.Consideramos esse critério mau e até inconcebível, e não obstante o aplicamos continuamente. Um capítulo de Schopenhauer não é o papel nas gráficas de Leipzig nem a impressão, nem as delicadezas e perfis da escrita gótica, nem a enumeração dos sons que o compõem nem sequer a opinião que temos dele; Miriam Hopkins é feita de Miriam Hopkins, não dos princípios nitrogenados ou minerais, hidratos de carbono, alcalóides e gorduras neutras que formam a substância transitória desse fino espectro de prata ou essência inteligível de Hollywood. Essas ilustrações ou sofismas podem exortar-nos a tolerar de boa vontade a tese platônica. Vamos formulá-la assim:

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Os indivíduos e as coisas existem na medida em que participam da espécie que os inclui, que é sua realidade permanente. Procuro o exemplo mais conveniente: o de um pássaro. O hábito de andar em bandos, a pequenez, a identidade de traços, a antiga ligação com os dois crepúsculos, o do princípio dos dias e o de seu término, a circunstância de serem mais freqüentes ao ouvido do que à visão - tudo isso nos incita a admitir a primazia da espécie e a quase perfeita nulidade dos indivíduos."- Sem erro, Keats pode pensar que o rouxinol que o encanta é o mesmo que Rute ouviu nos trigais de Belém de Judá; Stevenson erige um só pássaro que consome os séculos: o rouxinol devorador do tempo. Schopenhauer, o apaixonado e lúcido Schopenhauer, contribui com uma razão: a pura atualidade corporal em que vivem os animais, seu desconhecimento da morte e das lembrança~,_,Logo acrescenta, não sem um sorriso: "Quem me ouvir afirmar que o gato cinzento a brincar no pátio agora é o mesmo que brincava e fazia travessuras há quinhentos anos pensará de mim o que quiser, mas loucura mais estranha é imaginar que fundamentalmente seja outro". E depois: "Destino e vida de leões exige a leonidade que, considerada no tempo, é um leão imortal que se mantém mediante a infinita reposição dos indivíduos, cuja geração e cuja morte formam a2 Vivo, Filho de Desperto, o improvável Robinson metafísico do romance de Abubeker Abentofail, resigna-se a comer as frutas e os peixes que são abundantes em sua ilha, sempre cuidando para que nenhuma espécie se perca e, por sua culpa, o universo se empobreça.39O391HtsróRtw ~a ETettrvtnA~Eforça dessa figura imperecível". E antes: "Uma infinita duração precedeu meu nascimento; o que fui eu enquanto isso? Metafisicamente, poderia talvez responder-me: "Eu sempre fui eu; ou seja, quantos disseram eu durante esse tempo não eram outros senão eu" ".Presumo que a eterna Leonidade possa ser aprovada por meu leitor, que sentirá grandioso alívio ante esse único Leão, multiplicado nos espelhos do tempo. Não espero o mesmo do conceito de eterna Humanidade: sei que nosso eu o repele, e que sem medo prefere derramá-lo sobre o eu dos outros. Mau sinal; formas universais muito mais árduas nos propõe Platão. Por exemplo, a Mesidade ou Mesa Inteligível que está nos céus: arquétipo quadrúpede que perseguem, condenados ao sonho e à frustração, todos os marceneiros do mundo. (Não posso negá-la totalmente: sem uma mesa ideal, não teríamos chegado a mesas concretas.) Por exemplo, a Triangularidade: eminente polígono de três lados que não está no espaço e que não quer rebaixar-se a eqüilátero, escaleno ou isósceles. (Tampouco o repudio; é o das cartilhas de geometria.) Por exemplo: a Necessidade, a Razão, a Postergação, a Relação, a Consideração, o Tamanho, a Ordem, a Lentidão, a Posição, a Declaração, a Desordem. Já não sei o que opinar sobre essas comodidades do pensamento elevadas a formas; penso que homem algum as poderá intuir sem o auxílio da morte, da febre ou da loucura. Esquecia-me de outro arquétipo que abrange a todos e os exalta: a eternidade, cuja cópia despedaçada é o tempo.Ignoro se meu leitor precisa de argumentos para descrer da doutrina platônica. Posso fornecer-lhe muitos: um, a incompatível agregação de vozes genéricas e de vozes abstratas que coabitam sans gêne na dotação do mundo arquetípico; outro, a reserva de seu inventor sobre o procedimento que as coisas utilizam para participar das formas universais; outro, a conjetura de que esses mesmos arquétipos assépticos padecem de mistura e variedade. Não são insolúveis: são tão confusos como as criaturas do tempo. Fabricados à imagem das criaturas, repetem essas mesmas anomalias que querem resolver. A Leonidade, digamos, como prescindiria da Soberba e da Ruividade,

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da Jubidade e da Garrdade? A essa pergunta não há resposta e não pode haver: não esperemos do termoHISTÓRIA DA ETERNIDADELeonidade uma virtude muito superior à que tem essa palavra sem o sufixo."Volto à eternidade de Plotino. O quinto livro das Enéadas inclui um inventário muito geral das partes que a compõem. Está ali a Justiça, assim como os Números (até qual?) e as Virtudes e os Atos e o Movimento, mas não os erros e as injúrias, que são enfermidades de uma matéria em que se moldou uma Forma. A Música está ali, não como melodia, mas sim como Harmonia e Ritmo. Da patologia e da agricultura não há arquétipos, porque não são necessários. Ficam excluídas igualmente a fazenda, a estratégia, a retórica e a arte de governar - ainda que, ao longo do tempo, retirem algo da Beleza e do Número. Não há indivíduos, não há uma forma primordial de Sócrates nem sequer de Homem Alto ou de Imperador; há, de modo geral, o Homem. Entretanto, estão ali todas as figuras geométricas. Das cores, apenas as primárias: não há Cinzento nem Purpúreo nem Verde nessa eternidade. Em ordem ascendente, seus mais antigos arquétipos são estes: a Diferença, a Igualdade, o Movimento, a Quietude e o Ser.Examinamos uma eternidade que é mais pobre que o mundo. Resta-nos ver como nossa igreja a adotou e lhe confiou um caudal superior a tudo o que os anos transportam.3 Não quero me despedir do platonismo (que parece glacial) sem transmitir esta observação, na esperança de que lhe dêem prosseguimento e a justifiquem: "O genéri~r7~de ser mais intenso que o concreto". Casos ilustrativos não faltam. Quando menino, veraneando no norte da província, a planície arredondada e os homens que tomavam mate na cozinha me interessaram, mas minha felicidade foi incrível quando soube que esse arredondado era o "pampá" e esses homens, "gaúchos". O mesmo ocorre com o imaginoso que se apaixona. O genérico (o nome repetido, o tipo, a pátria, o destino admirável que lhe atribui) prevalece sobre os traços individuais, que são toleraiios graças no que foí dito anteriormente.O exemplo extremo, o de quem se apaixona por ouvir falar, é muito comum nas literaturas persa e árabe. Ouvir a descrição de uma rainha - a cabeleira semelhante às noites da separação e da emigração, mas o rosto como o dia da delícia, os seios como esferas de marfim que dão luz às luas, o andar que envergonha os antílopes e provoca o desespero dos salgueiros, os pesados quadris que a impedem de ficar de pé, os pés estreitos como ponta de lança - e apaixonar-se por ela, até a placidez e a morte, é um dos temas tradicionais nas Mil e Uma Noites. Leia-se a história de Badrbasim, filho de Sharimã, ou a de Ibrahim e Yamila.392393HISTORIA DA ETERNIDADE

IIO melhor documento da primeira eternidade é o quinto

livro das Enéadas; o da segunda, ou cristã, o décimo primeirolivro das Confissões de Santo Agostinho. A primeira não seconcebe fora da tese platônica; a segunda, sem o mistério professional da Trindade e sem as discussões levantadas por predestinação e reprovação. Quinhentas páginas in-fólio nãoesgotariam o tema; espero que estas duas ou três in-oitavo

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não venham a parecer excessivas.Pode-se afirmar, com suficiente margem de erro, que"nossa" eternidade foi decretada poucos anos depois dadoença crônica intestinal que matou Marco Aurélio, e que o lugar desse vertiginoso mandato foi a barranca de Fourvière, que antes se chamou Forum vetus, célebre hoje em dia pelo funicular e pela basílica. Apesar da autoridade de quem a ordenou - o bispo Ireneu -, essa eternidade coercitiva foi muito mais que inútil paramento sacerdotal ou luxo eclesiástico: foi uma resolução e foi uma arma. O Verbo é engendrado pelo Pai, o Espírito Santo é gerado pelo Pai e pelo Verbo, os gnósticos costumavam inferir dessas duas inegáveis operações que o Pai era anterior ao Verbo, e os dois ao Espírito. Essa inferência dissolvia a Trindade. Ireneu explicou que o duplo processo - geração do Filho pelo Pai, emissão do Espírito pelos dois - não aconteceu no tempo, mas que esgota de uma só vez o passado, o presente e o futuro. A explicação prevaleceu e agora é dogma. Assim foi promulgada a eternidade, antes apenas tolerada na sombra de algum desautorizado texto platônico. A correta conexão e distinção das três hipóstases do Senhor é um problema hoje inverossímil, e essa futilidade parece contaminar a resposta; mas não há dúvida da grandeza do resultado, ao menos para alimentar a esperança: Aeternitas est merum hodie, est immediata et lucida fruitio rerum infinitarum.~ Tampouco, da importância emocional e polêmica da Trindade.Atualmente, os católicos laicos a consideram um corpo colegiado infinitamente correto, mas também infinitamente4 "A eternidade é um mero hoje, é o fruir imediato e lúcido das coisas infinitas." (N. da T.)HISTÓRIA DA ETERNIDADEaborrecido; os liberais, um inútil Cérbero teológico, uma superstição que os muitos progressos da República logo se encarregarão de abolir. A trindade, é claro, excede essas fórmulas. Imaginada precipitadamente, sua concepção de um pai, um filho e um espectro, articulados num único organismo, parece caso de teratologia intelectual, deformação que só o horror de um pesadelo pôde produzir. O inferno é mera violência física, mas as três inextricáveis Pessoas implicam horror intelectual, infinidade asfixiada, ilusória, como a de espelhos opostos. Dante quis designá-las com o signo de uma superposição de círculos diáfanos, de cores diferentes; Donne, com o de complicadas serpentes, magníficas e indissolúveis. "Toto coruscat trinitas mysterio", escreveu São Paulino; "Fulge em pleno mistério a Trindade".Desligada do conceito de redenção, a distinção das três pessoas em uma tem que parecer arbitrária. Considerada necessidade da fé, seu mistério fundamental não diminui, mas sua intenção e sua utilidade despontam. Entendemos que renunciar à Trindade - à Dualidade, pelo menos - é fazer de Jesus um delegado ocasional do Senhor, um incidente da história, não Oouvinte imperecível, contínuo, de nossa devoção. Se o Filho não é também o Pai, a redenção não é obra divina direta; se não é eterno, tampouco o será o sacrifício de ter-se degradado a homem e ter morrido na cruz. "Nada menos que uma excelência infinita pôde resgatar uma alma perdida para idades infinitas", insistiu Jeremy Taylor. Assim, pode-se justificar o dogma, ainda que os conceitos da geração do Filho pelo Pai e da procedência do Espírikc~-a partir dos dois continuem insinuando uma prioridade, sem mencionar sua culpável condição de simples metáforas. A teologia, empenhada em diferenciá-las, resolve que não há motivo para confusão, uma vez que o resultado de uma é o Filho, o da outra, o Espírito. Geração eterna do Filho, proveniência eterna do Espírito, é a soberba decisão de Ireneu: criação de um ato sem tempo, de um zeitloses Zeitwort mutilado, que podemos descartar ou venerar, mas não discutir. Assim Ireneu se propôs salvar

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o monstro, e o conseguiu. Sabemos que era inimigo dos filósofos; apoderar-se de uma de suas armas e voltá-la contra eles deve ter-lhe causado um prazer belicoso.394395kimeiro segundo do tempo coincide I da Criação - fato que nos poupa o onstruído por Valéry) de um Deuséculos ermos na eternidade "ante~g (Vera Christiana Religio, 1771) viuual uma estátua alucinatória pelados todos aqueles "que deliberam_~"~umente sobre a condição do Senhor antes derazer o mundo".Desde que Ireneu a inaugurou, a eternidade cristã começou a diferir da alexandrina. Ao invés de um mundo à parte, conformou-se em ser um dos dezenove atributos da mente de Deus. Entregues à veneração popular, os arquétipos ofereciam o perigo de se converter em divindades ou em anjos; não se negou por conseguinte sua realidade - sempre maior que a das simples criaturas -, mas foram reduzidos a idéias eternas no Verbo criador. A esse conceito dos universalia ante res chega Alberto Magno: considera-os eternos e anteriores às coisas da Criação, mas só como inspirações ou formas. Trata muito bem de separá-los dos universalia in rebus, que são as mesmas concepções divinas já concretizadas de várias maneiras no tempo, e - sobretudo - dos universalia post res,ç que são as concepções redescobertas pelo pensamento indutivo. As temporais se distinguem das divinas em que carecem de eficácia criadora, mas não em outra coisa; a suspeita de que as categorias de Deus podem não ser precisamente as do latim não se admite na escolástica... Mas percebo que estou me adiantando.Os manuais de teologia não se detêm na eternidade com dedicação especial. Limitam-se a prevenir que é a intuição contemporânea e total de todas as frações do tempo, e a esmiuçar as Escrituras hebraicas em busca de fraudulentas confirmações, em que parece ter o Espírito Santo dito muito mal o que o comentador diz bem. Com esse propósito, costumam agitar esta declaração de ilustre desdém ou de simples longevidade: "Um dia diante do Senhor é como mil anos, e mil anos são como um dia", ou as grandes palavras que Moisés ouviu e que são o nome de Deus: Sou O que Sou, ou as que escutou São João5 Uniz~ersalia grete res; universalia in rebus; universalia post res: os universais anterioresás causas, durante e posteriores às causas. (N. da R.)o Teólogo, em Patmos, antes e depois do mar de cristal e da besta escarlate e dos pássaros que comem carne de capitães: Eu sou o A e o Z, o princípio e o fim.e Costumam copiar também esta definição de Boécio (concebida na prisão, talvez às vésperas de ser executado): "Aeternitas est interminabilis vitae tota et perfecta possessio"," e que me agrada mais na quase voluptuosa repetição de Hans Lassen Martensen: "Aeternitas est merum hodie, est immediata et lueida fruitio rerum infinitarum". Em lugar disso, parecem desprezar aquele obscuro juramento do anjo que estava de pé sobre o mar e sobre a terra (Revelação, X, 6): "e jurou por Aquele que viverá para sempre, o qual criou o céu e as coisas que nele há, e a terra e as coisas que nela há, e o mar e as coisas que nele há, que não haveria mais tempo". É vérdade que tempo, neste versículo, deve equivaler a demora.A eternidade permaneceu como atributo da ilimitada mente de Deus, e sabe-se muito bem que gerações de teólogos têm trabalhado essa mente a sua imagem e semelhança. Nenhum estímulo tão vivo como o debate da predestinação ab aeterno. Quatrocentos anos depois da paixão e morte de Cristo, o monge inglês Pelágio incorreu no escândalo

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de pensar que os inocentes que morrem sem o batismo alcançam a glória.R Agostinho, bispo de Hipona, refutou-o com uma indignação que seus editores aclamam. Observou as heresias dessa doutrina, abominada pelos justos e pelos mártires: a negação de que no homem Adão todos nós homens já pecamos e perecemos, o esquecimento abominável de que essa morte se transmite de pai a filho pela geração carnal, o menosprezo pelo suor sanguinolento, pela agonia sobrenatural e pelo grito de_~ -~ 6 A noção de que o tempo dos homens não é comensurável ao de Deus destaca-se numa das tradições islâmicas do ciclo do miraj. Sabe-se que o Profeta foi arrebatado até o sétimo céu pela resplandecente égua Alburak e que conversou, em cada céu, com os patricarcas e anjos que o habitam e que atravessou a Unidade e sentiu um frio que lhe gelou o coração, quando a mão do Senhor lhe deu uma palmada no ombro. O casco de Alburak, ao deixar a terra, derrubou uma jarra cheia d"água; ao voltar, o Profeta levantou-a e dela não se havia derramado uma única gota.

7 "A eternidade é a possessão total e perfeita da vida interminável" (N. da TJ

8 Jesus Cristo havia dito: "Deixai vir a mim os pequeninos"; Pelágio foi acusado, naturalmente, de se interpor entre as crianças e Jesus Cristo, livrando-as assim do inferno. Seu nome, como o de Atanásio (Satanásio), permitia o trocadilho; todos disseram que Pelágio (Pelagius) tinha de ser um pélago (pelagus) de maldades.396397HISTÓRIA DA ETERNIDADECn~ meia ~ gires secretos do~, d~ ° ~ ? !nhor. O bretão~ ~ CD ° janto - sempre~ o~ ~ ° ° t justiça, todos~ ~ ~ nas que Deus`D iel arbítrio, ou,Q- ~~ ~ ~ "ddade: porque ~ ~ ° P ~. ~ .~ ~,- oocrisia ou ojazer o mune ~ ~~, ~ ~° ~ ~ ~;, ~ para os preDesdF_~ ~c ° ~ ~ ~ ~ N m~ P- ~ ~ ~ "áo suplicio:çou a d~ ¢- _ ~ ~ ~ t" ~- ~ ~ - Vn, ~ p. ~ ~ ~ Rterno, masconfor m ~ ~. ~ ~ ~ P ~~ o ~ ó ° ! especial...Deu ~; ~ ~ ,° p a terra,kle Deus;~u~uo salvar-se sem___sons de seus varões, de notável__ ~xctuídos da glória. (Zwingli, 1523, mani~.~u sua esperança pessoal de partilhar o céu com Hércules,

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Teseu, Sócrates, Aristides, Aristóteles e SênecaJ Uma amplificação do nono atributo do Senhor (o da onisciência) bastou para afastar a dificuldade. Promulgou-se que essa implicava o conhecimento de todas as coisas: quer dizer, não só das reais, como também das possíveis. Procurou-se uma passagem nas Escrituras que permitisse esse complemento infinito, e se encontraram duas: uma, aquela do primeiro Livro dos Reis, em que o Senhor diz a Davi que os homens de Kenlah vão entrega-lo se não for embora da cidade, e ele vai; outra, aquela do Evangelho segundo Mateus, que impreca a duas cidades: "Ai de ti, Corozaim! Ai de ti, Betsaida! Porque, se em Tiro e em Sídon se tivessem feito os prodígios que em vós se fizeram, há muito que se teriam arrependido, com cilício e com cinza". Com esse repetido amparo, os modos potenciais do verbo puderam entrar na eternidade: Hércules convive no céu com Ulrich Zwingli, porque Deus sabe que se tivesse observado o ano eclesiástico, a Hidra de Lerna ficaria relegada às trevas exteriores, pois consta que teria repelido Obatismo. Percebemos os fatos reais e imaginamos os possíveis (e os futuros); no Senhor não cabe essa distinção, que pertence ao desconhecimento e ao tempo. Sua eternidade registra de uma só vez (uno intelligendi acto) não apenas todos os instantes deste repleto mundo, como os que teriam seu lugar se o mais evanescente deles mudasse - e os impossíveis também. Sua eternidade combinatória e pontual é muito mais abundante que o universo.Ao contrário das eternidades platônicas, cujo maior risco é a insipidez, esta corre perigo de assemelhar-se às últimas páginas de Ulisses, e ainda ao capítulo anterior, ao do enorme interrogatório. Um grandioso escrúpulo de Agostinho moderou esse detalhamento. Sua doutrina, ao menos verbalmente, refuta a condenação; o Senhor observa os eleitos e passa por alto em relação aos réprobos. Tudo sabe, mas prefere deter sua atenção nas vidas virtuosas. João Escoto Erígena, mestre palatino de Carlos o Calvo, deformou gloriosamente essa idéia. Pregou um Deus indeterminável; ensinou um mundo de arquétipos platônicos; ensinou um Deus que não percebe o pecado nem as formas do mal, ensinou a deificação, a reversão final das criaturas (inclusive o tempo e o demônio) à unidade primeira de Deus. "Divina bonitas consummabit malitiam, aeterna vita absorbebit montem, beatitudo miseriam."9 Essa eternidade heterogênea (que, ao contrário das eternidades platônicas, inclui os destinos individuais; que, ao contrário da instituição ortodoxa, repele toda imperfeição e miséria) foi condenada pelo sínodo de Valência e pelo de Langres. De Divisione Naturae, libri V, a obra controversa que a pregava, ardeu na fogueira pública. Medida acertada que despertou o favor dos bibliófilos e permitiu que o livro de Erígena chegasse a nossos dias.Cá.a~u~iverso requer a eternidade. Os teólogos não ignoram que se a atenção do Senhor se desviasse um único segundo de minha mão direita que escreve, esta recairia no nada, como se fulminada por um fogo sem luz. Por isso afirmam que a conservação deste mundo é uma perpétua criação e que os verbos conservar e criar, tão inimizados aqui, são sinônimos no Céu.9 "A bondade divina destruirá a maldade, a vida eterna absorverá a morte, a felicidade, o infortúnio." (N. da T.)398399HISTÓRIA DA ETERNIDADEHISTÓRIA DA ETERNIDADEIII

Até aqui, em sua ordem cronológica, a história geral da

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eternidade. Ou melhor, das eternidades, já que o desejohumano sonhou dois sonhos sucessivos e hostis com essenome: um, o realista, que anseia com estranho amor pelosquietos arquétipos das criaturas; outro, o nominalista, quenega a verdade dos arquétipos e quer congregarem um segundo os pormenores do universo. Aquele se baseia no realismo,doutrina tão afastada de nosso ser que descreio de todas asinterpretações, até da minha; este, em seu adversário, o nominalismo, que afirma a verdade dos indivíduos e o convencional dos gêneros. Atualmente, semelhantes ao espontâneo e tolo prosador da comédia, todos praticamos nominalismo sansle savoir: é como uma premissa geral de nosso pensamento, um axioma adquirido. Daí a inutilidade de comentá-lo.Até aqui, em sua ordem cronológica, o desenvolvimento debatido e curial da eternidade. Homens remotos, homens barbados e mitrados a conceberam, publicamente, para confundir heresias e para justificar a distinção das três pessoas em uma, secretamente, para estancar de algum modo o curso das horas. "Viver é perder tempo: nada podemos recuperar ou guardar a não ser sob a forma de eternidadé", leio no espanhol emersonizado Jorge Santayana. Ao qual basta justapor aquela terrível passagem de Lucrécio, sobre a falácia do coito: "Como o sedento que em sonhos quer beber e esvazia formas de água que não o saciam e perece abrasado pela sede no meio de um rio: assim Vênus engana os amantes com simulacros, e a visão de um corpo não os farta, e nada podem desprender ou guardar, ainda que as mãos indecisas e mútuas percorram todo o corpo. No final, quando há nos corpos presságios de venturas e Vênus está prestes a semear os campos da mulher, os amantes se abraçam com ansiedade, dente amoroso contra dente; totalmente em vão, pois não conseguem perder-se no outro nem ser um mesmo ser". Os arquétipos e a eternidade - duas palavras - prometem possessões mais firmes. O certo é que a sucessão é uma miséria intolerável e os apetites magnãonimos cobiçam todos os minutos do tempo e toda a variedade do espaço.Sabe-se que a identidade pessoal reside na memória e que a anulação dessa faculdade comporta a idiotice. Cabepensar o mesmo do universo. Sem uma eternidade, sem um espelho delicado e secreto do que passou pelas almas, a história universal é tempo perdido, e nela nossa história pessoal - o que incomodamente nos torna fantasmas. Não bastam o disco gramofônico de Berliner ou o perspícuo cinematógrafo, simples imagens de imagens, ídolos de outros ídolos. A eternidade é uma invenção mais abundante. É verdade que nãoo é concebível, mas tampouco o é o humilde tempo sucessivo. Negar a eternidade, supor a vasta aniquilação dos anos carregados de cidades, de rios e de júbilos, não é menos incrível que imaginar sua salvação total.Como teve início a eternidade? Santo Agostinho ignora o problema, mas assinala um fato que parece permitir uma solução: os elementos de passado e de futuro que há em todo presente. Alega um caso específico: a rememoração de um poema. "Antes de começar, o poema está em minha antecipação; mal o termino, em minha memória; mas enquanto Odeclamo está estendendo-se na memória, pelo que já disse; na antecipação, pelo que me falta dizer. O que acontece com a totalidade do poema acontece com cada verso e com cada sílaba. Digo o mesmo da ação mais ampla de que faz parte o poema, e do destino individual, que se compõe de uma série de ações, e da humanidade, que é uma série de destinos individuais." Essa evidência de íntima ligação dos diversos tempos do tempo inclui, não obstante, a sucessão, fato que não condiz com um modelo da eternidade unãonime.

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Penso que a nostalgia foi esse modelo. O homem enternecido e desterrado que relembra possibilidades felizes as vê s~~specie aeternitatis, totalmente esquecido de que a execução de uma delas exclui ou posterga as outras. Na paixão, a lembrança se inclina ao intemporal. Juntamos as aventuras de um passado numa só imagem; os poentes de diferentes vermelhos que vejo a cada entardecer serão na lembrança um só poente. Passa-se o mesmo com a previsão: as esperanças mais incompatíveis podem conviver sem problema. Digamos com outras palavras: o estilo do desejo é a eternidade. (E provável que na insinuação do eterno - da immediata et lucida fruitio rerum infinitarum - esteja a causa da satisfação especial que buscam as enumerações.)4OO4O1HISTÓRIA DA ETERNIDADEHISTÓRIA DA ETERNIDADEw

fme apenas assinalar ao leitor minha teoria pessoalfade. E uma pobre eternidade já sem Deus e ainda sem outro possuidor e sem arquétipos. Formulei-a no livro El Idioma de los Argentinos, em 1928. Transcrevo o que publiquei então; o texto se intitulava "Sentirse en muerte"."Quero registrar aqui uma experiência que tive noites atrás: ninharia demasiado evanescente e enlevada para que a chame aventura; demasiado irracional e sentimental para pensamento. Trata-se de uma cena e de sua palavra: palavra já antedita por mim, mas não vivida até então com inteira dedicação de meu eu. Passo a historiá-la, com os acidentes de tempo e de lugar que a declararam."Lembro-me dela assim. Na tarde que precedeu a essanoite, estive em Barracas: localidade que não costumo visitar ecuja distância das que percorri depois já deu estranho sabor aesse dia. Sua noite não tinha destino algum; como era calma, após o jantar, saí a caminhar e a recordar. Não quis dar rumo a essa caminhada; procurei uma latitude máxima de probabilidades para não cansar a expectativa com a antevisão obrigatória de só uma delas. Na medida do possível, mal realizei isso que chamam caminhar ao acaso; aceitei, sem outro prejulgamento consciente que o de deixar de lado as avenidas ou ruas largas, os mais obscuros convites da casualidade. Contudo, um tipo de gravitação familiar afastou-me para alguns bairros, de cujo nome quero sempre lembrar e que meu peito reverencia. Não quero significar com isso o meu bairro, o preciso âmbito da infância, mas suas ainda misteriosas imediações: confins que possuí inteiro em palavras e pouco em realidade, vizinhos e mitológicos a um só tempo. O reverso do conhecido, suas costas, são para mim essas ruas penúltimas, quase tão efetivamente ignoradas como o alicerce soterrado de nossa casa ou nosso invisível esqueleto. A caminhada me deixou numa esquina. Aspirei noite, num sereníssimo feriado ao pensamento. A visão, por certo nada complicada, parecia simplificada por meu cansaço. Sua própria tipicidade a tornava irreal. A rua era de casas baixas, e embora sua primeira significação fosse de pobreza, a segunda era certamente de felicidade. Era daquilo que havia de mais pobre e mais bonito. Nenhuma casa atreviase a chegar até a rua; a figueira se ensombrecia sobre a calçada; os portõezinhos - mais altos que as linhas alongadas das paredes - pareciam trabalhados com a mesma substância infinita da noite. A calçada era mais alta que a rua; a rua era de barro elementar, barro da América ainda não conquistado. Ao fundo, o beco, já agreste, desmoronava-se em direção ao [arroio] Maldonado. Sobre a terra turva e caótica, uma taipa rosada parecia não abrigar luz de lua, mas difundir luz íntima. Não haverá

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maneira melhor de denominar a ternura que esse rosado."Fiquei olhando essa simplicidade. Pensei, certamente em voz alta: Isto é o mesmo de trinta anos atrás... Considerei essa data: época recente em outros países, mas já remota neste inconstante lado do mundo. Talvez um pássaro cantasse, e senti por ele um carinho pequeno, e de tamanho de pássaro; mas o mais certo é que nesse já vertiginoso silêncio não houve outro ruído senão o também intemporal dos grilos. O fácil pensamento Estou em mil oitocentos e tantos deixou de ser umas quantas aproximativas palavras e se aprofundou na realidade. Senti-me morto, senti-me conhecedor abstrato do mundo: temor indefinido imbuído de ciência, que é a melhor clareza da metafísica. Não, não acreditei ter remontado às presumíveis águas do Tempo; antes imaginei-me possuidor do sentido reticente ou ausente da inconcebível palavra eternidade. Só depois consegui definir essa suposição."Escrevo-a, agora, assim: Essa pura representação de fatos homogêneos - noite em serenidade, paredezinha límpida, cheiro provinciano de madressilva, barro fundamental - não é apenas idêntica à que houve nessa esquina há tantos anos; é, sem semelhanças nem repetições, a mesma. O tempo, se podemos intaair essa identidade, é uma ilusão: a indiferenciação e a inseparabilidade de um momento de seu aparente ontem e de outro de seu aparente hoje basta para desintegrá-lo."É evidente que o número de tais momentos humanos não é infinito. Os essenciais - os de sofrimento e prazer físico, os de aproximação do sono, os da audição de uma música, os de muita intensidade ou muito fastio - são ainda mais impessoais. Derivo antecipadamente esta conclusão: a vida é pobredemais para não ser também imortal. Mas nem ao menostemos a certeza de nossa pobreza, posto que o tempo, facilmente refutável n6sensível, não o é também no intelectual, de4O24O3HISTÓRIA DA ETERNIDADEcuja essência parece inseparável o conceito de sucessão. Fique, então, no episódio emocional a idéia vislumbrada e na confessa irresolução desta página o momento verdadeiro de êxtase e a insinuação possível de eternidade de que essa noite não mefoi avara."O propósito de dar interesse dramático a esta biografia da eternidade obrigoume a certas deformações: por exemplo, a resumir em cinco ou seis nomes uma gestação secular.Trabalhei ao sabor de minha biblioteca. Entre as obras que mais serviços me prestaram, devo mencionar as seguintes:

Die Philosophie der Griechen, von Dr. Paul Deussen. Leipzig, 1919.Works of Plotinus. Translated by Thomas Taylor. London, 1817.Passages Illustrating Neoplatonism. Translated with an introduction by E. R.Dodds. London, 1932.Ln Philosophie de Platon, par Alfred Fouillée. Paris, 1869.Die Welt als Wille und Uorstellunq, von Arthur Schopenhauer. Herausgegeben von Eduard Grisebach. Leipzig, 1892.Die Philosophie des Mittelalters, von Dr. Paul Deussen. Leipzig, 192O.Las Confesiones de Smz Agustín. Versión literal por el P Ángel C Vega. Madrid, 1932. AMonument to Saint Augustine. London, 193O. Dogmatik, von Dr. R. Rothe. Heidelberg, 187O. Ensayos de Crítica Filosófica, de Menéndez y Pelayo. Madrid, 1892.AS KENNINGAR

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Uma das mais frias aberrações que as histórias literárias registram são as menções enigmáticas ou kenningar da poesia da Islândia. Propagaram-se até o ano 1OO, época em que os thulir ou rapsodos repetidores anônimos foram destituídos pelos escaldos, poetas de intenção pessoal. É comum atribuí-las à decadência; mas essa sentença deprimente, válida ou não, corresponde a solucionar o problema, não a apresentá-lo. Basta-nos reconhecer, por enquanto, que foram o primeiro prazer verbal deliberado de uma literatura instintiva.Começo pelo mais insidioso dos exemplos: um verso dos muitos intercalados na Saga de Grettir.O herói matou o filho de Mak;Houve tempestade de espadas e alimento de corvos.

Em linha tão ilustre, a adequada contraposição das duas metáforas - uma tumultuosa, outra cruel e contida - engana com vantagem o leitor, deixando-o supor que se trata apenas de forte intuição de um combate e do que restou. É outra a desaiwsá verdade. Alimento de corvos - confessemo-lo de uma vez - é um dos preestabelecidos sinônimos de cadáver, assim como tempestade de espadas o é de batalha. Essas equivalências eram precisamente as kenningar. Conservá-las e aplicá-las sem repetição era o ansioso ideal desses primitivos homens de letras. Bastante numerosas, permitiam salvar as dificuldades de uma métrica rígida, que exigia muita aliteração e rima interna. Pode-se observar seu emprego livre, incoerente, nestas linhas:4O44O5HISTÓRIA DA ETERNIDADEO aniquilados da prole dos gigantesQuebrou o forte bisão da pradaria da gaivota.Assim os deuses, enquanto o guardião do sino se lamentava, Destroçaram o falcão da margem. De pouco valeu o rei dos gregos Ao cavalo que corre por recifes.O aniquilados das crias dos gigantes é o ruivo Thor. O guardião do sino é um ministro da nova fé, segundo seu atributo. O rei dos gregos é Jesus Cristo, pela vaga razão de ser esse um dos nomes do imperador de Constantinopla e de Jesus Cristo não lhe ser inferior. O bisão da pradaria da gaivota, o falcão da margem e o cavalo que corre por recifes não são três animais anômalos, mas uma só nave maltratada. Dessas penosas equações sintáticas a primeira é de segundo grau, uma vez que a pradaria da gaivota já é um nome do mar... Desatados esses nós parciais, deixo ao leitor a elucidação total das linhas, certamente um pouco décevante. A saga de Njal as coloca na boca platônica de Steinvora, mãe de Ref o Skald, que narra, logo após, em lúcida prosa, como o terrível Thor quis lutar com Jesus, e este não se animou. Niedner, o germanista, venera o "humano-contraditórió " dessas figuras e as propõe ao interesse "de nossa moderna poesia, ansiosa por valores de realidadé".Outro exemplo, uns versos de Egil Skalagrimsson:Os que tingem os dentes do lobo Esbanjaram a carne do cisne vermelho. O falcão do orvalho da espada Alimentou-se de heróis na planície. Serpentes da lua dos piratasCumpriram a vontade dos Ferros.Versos como o terceiro e o quinto proporcionam satisfação quase orgânica. O que procuram transmitir é indiferente, o que sugerem é nulo. Não convidam a sonhar, não provocam imagens ou paixões; não são ponto de partida, são conclusões. O prazer - o suficiente e mínimo prazer - está emsua variedade, no contato heterogêneo de suas palavras." É possível que os inventores entendessem assim e que sua condição de símbolos fosse mero suborno a inteligência.

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Os Ferros são os deuses; a lua dos piratas, o escudo; sua serpente, a lança; orvalho da espada, o sangue; seu falcão, o corvo; cisne vermelho, todo pássaro ensangüentado; carne do cisne vermelho, os mortos; os que tingem os dentes do lobo, os guerreiros afortunados. A reflexão repudia essas conversões. Lua dos piratas não é a definição mais precisa que o escudo exige. Isso é indiscutível, mas não o é menos o fato de lua dos piratas ser uma fórmula que não se deixa substituir por escudo, sem. perda total. Reduzir cada kenning a uma palavra não é esclarecer incógnitas: é anular o poema.Baltasar Gracián y Morales, da Companhia de Jesus, temem seu desfavor algumas laboriosas perífrases, de mecanismosemelhante ou idêntico ao das kenningar. O tema era o verãoou a aurora. Em vez de propô-las diretamente, ele as foi justificando e coordenando com receio condenável. Eis aqui o produto melancólico desse esforço:Depois que no celeste Anfiteatro O ginete do diaSobre Flegetonte toureou valente O luminoso TouroVibrando como aguilhões raios de ouro, Aplaudindo suas sortes D belo espetáculo de Estrelas - Turba de damas belas Que a gozar de seu talhe, alegre mora N~.~dto das sacadas da Aurora -;1 Busco o equivalente clássico desse prazer, o equivalente que nem o mais incorruptível de meus leitores vai querer invalidar. Deparo com o insigne soneto de Quevedo ao duque de Osuna, "horrendo em galeras e naves e infantaria armada".É fácil comprovar que em tal soneto a espléndida eficácia do dísticoSua Turnba são de Flanrlres as Campa~ihas E seu Epitáfio a sangrenta Luaé anterior a toda interpretação e não depende dela. Digo o mesmo da expressão subseqüente: o pranto militar, cujo "sentido" não é discutível, mas sim trivial: o pranto dos militares. Quanto à sangrenta Lua, melhor é ignorar que se trata do símbolo dos turcos, eclipsado por não sei que piratarias de Pedro Téllez Girón.4O64O7HISTÓRIA DA ETEKNIDADEDepois que em singular metamorfose Com calcanhares de pena E com crista de fogoÀ grande multidão de astros luminosos (Galinhas dos campos celestiais) Presidiu Galo o boquirroto Febo Entre os frangos do tindário Ovo, Pois a grande Leda por traição divina Se incubou choca, concebeu galinha...

O frenesi taurino-galináceo do reverendo Padre não é o maior pecado de sua rapsódia. Pior é o aparato lógico: a aposição de cada substantivo e de sua metáfora atroz, a defesa impossível dos disparates. A passagem de Egil Skalagrimsson é um problema, ou ao menos uma adivinhação; a do inverossímil espanhol, uma miscelânea. O espantoso é que Gracián era bom prosador; escritor infinitamente capaz de artifícios hábeis. Testemunho disso é o desenvolvimento desta frase, que é de sua lavra: "Pequeno corpo de Crisólogo, encerra espírito gigante; breve panegírico de Plínio se mede com a eternidade".O caráter funcional predomina nas kenningar. Definem os objetos menos por sua figura que por seu uso. Costumam dar vida ao que tocam, sem prejuízo de inverter o procedimento quando seu tema é vivo. Constituíram legião e estão suficientemente esquecidas: fato que me induziu a recolher essas desfalecidas flores retóricas. Aproveitei a primeira compilação, a de Snorri Sturluson - famoso como historiador, arqueólogo, construtor de umas termas, genealogista, presidente de uma assembléia,

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poeta, duplo traidor, decapitado e fantasma.z Empreendeu-a nos anos de 123O, com finalidades preceptivas. Queria satisfazer duas paixões de ordem diversa: a moderação e o culto dos antepassados. Gostava das kenningar, sempre que não fossem muito intrincadas e que as confirmasse um exemplo clássico. Transcrevo sua declaração preliminar: "Esta explicação se dirige aos principiantes que desejam adquirir destreza poética e melhorar sua provisão de figuras com metáforas tradicionais, ou aos que procuram a virtude de entender o que foi escrito com 2 Dura palavra é traidor. Sturluson era - talvez - um mero fanático disponível,homem dilacerado até o escândalo por sucessivas e contrárias lealdades. Na ordem intelectual, sei de dois exemplos: o de Francisco Luis Bernárdez e o meu.AS KENNINGARmistério. Convém respeitar essas histórias que bastaram aos antepassados, mas convém que os homens cristãos lhes retirem sua fë". A sete séculos de distância a discriminação não é inútil: há tradutores alemães desse indolente Gradus ad Parnassttim boreal que o propõem como Ersatz da Bíblia e juram ser n uso repetido de casos noruegueses o instrumento mais eficaz para alemanizar a Alemanha. O doutor Karl Konrad - autor de uma versão mutiladíssima do tratado de Snorri e de um folheto pessoal de 52 "extratos dominicais" que constituem outras tantas "devoções germânicas", muito corrigidas numa segunda edição - talvez seja o exemplo mais lúgubre.O tratado de Snorri se intitula Edda Prosaica. Consta de duas partes em prosa e uma terceira em verso - a que inspirou sem dúvida o epíteto. A segunda narra a aventura de Aegir ou Hler, versadíssimo em artes de feitiçaria, que visitou os deuses na fortaleza de Asgard, chamada Tróia pelos mortais. Perto do anoitecer, Odin mandou trazer umas espadas de tão polido aço que não se precisava de outra luz. Hler tornou-se amigo de seu vizinho, o deus Bragi, exercitado na eloqüência e na métrica. Um enorme comode hidromel passava de mão em mão, e falaram de poesia o homem e o deus. Este foi dizendo as metáforas que se devem empregar. Esse catálogo divino está me assessorando agora.No í dice, ão excluo as kenningar que já havia registrado. Ao com a-lo, conheci um prazer quase filatélico.casa dos pássaros casa dos ventoso arflechas de mar: os arenques porco do marulho: a baleia árvca~+e de assento: o banco bosque da queixada: a barbaassembléia de espadas tempestade de espadas encontro das fontes vôo de lanças canção de lanças festa de águiaschuva dos escudos vermelhos festa de vikingsa batalha4O84O9HISTÓRIA DA ETERNIDADEAs KE~rNtn.enaforça do arco perna da omoplata

cisne sangrento galo dos mortos

sacudidor do freio: o cavaloposte do elmo penhasco dos ombros castelo do corpoforja do canto: a cabeça do skaldonda do chifre maré do copo

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elmo do arterra das estrelas do céu caminho da lua chávena dos ventosmaçã do peitodura bolota do pensamentogaivota do ódio gaivota das feridas cavalo da bruxa primo do corvo"3 Definitum in definitione ingredi non debet ~O definido não deve entrar na definição, N. da T.] é a segunda regra menor da definição. Infrações engraçadas como esta (e aquela que vem abaixo, dragão da espada: a espada) lembram o artifício daquele personagem de Poe que, na ânsia de esconder uma carta ã curiosidade policial, exibea com descuido numa carteira.41Ogelo da lutavara da ira fogo de elmos dragão da espada roedor de elmos espinha da batalha peixe da batalha remo do sangue lobo das feridas ramo das feridas

granizo das cordas dos arcos gansos da batalha

sol das casas perdição das árvores lobo dos templos

delícia dos corvos avermelhador do bico do corvo alegrador da águia árvore do elmo árvore da espada tingidor de espadas

ogro do elmoquerido alimentador dos lobos

negro orvalho do lar: a fuligem

árvt~+e de lobos cavalo de madeira

orvalho da dor: as lágrimas

dragão dos cadáveres serpente do escudo4 Ir em cavalo de madeira ao inferno, leio no capítulo 22 da Ing&nga Saga. Viúva, balanço, borneio e~"ni6i~sterre foram os nomes da forca na gíria; moldura (pich~re frame), o que llre deram antigamente os marginais de Nova York.411o braçoo abutre a cabeçaa espadaa cervejaas flechaso céuo fogoo coraçãoo guerreiroo corvo o escudoo machadopenhascos das palavras: os dentesterra da espada

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lua da nave lua dos piratas teto do combategrande nuvem do combatea forcaa a lançaHISTÓRIA DA ETERNIDADEespada da boca remo da bocaa línguaassento do nebripaís dos anéis de ouroAS KENNINGAR

neve da bolsagelo dos crisóis orvalho da balança

senhor de anéis distribuidor de tesouros distribuidor de espadas

sangue dos penhascos terra das redes

riacho dos lobos maré da matança orvalho do morto suor da guerra cerveja dos corvos água da espada onda da espada

ferreiro das canções: o skald

irmã da luas fogo do ar

mar dos animais piso das tormentas cavalo da nebli asenhor dos currais: o touro

crescimento de homens animação das cobras

irt~ do fogo dano dos bosques lobo dos cordames5 Os idiomas germânicos que têm gënero gramatical dizem a sol e o lua. Segundo Lugones (EI Imperio Jesuítico, 19O4), a cosmogonia das tribos guaranis considerava a lua macho e n sol fêmea. A antiga cosmogonia do Japão registra também uma deusa do sol e um deus da lua.413a prataa maoteto da baleia terra do cisne caminho das velas campo do viking prado da gaivota corrente das ilhaso reio maro rioárvore dos corvos aveia das águias trigo dos loboso mortolobo das marés cavalo do pirata rena dos reis do mar patim de viking garanhão da onda carro arador do mar falcão da margemo sanguea naveo solpedras do rosto luas da fronte

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os olhosa terrafogo do marleito da serpente resplendor da mão bronze das discórdiasO ouroo verãorepouso das lanças: a pazcasa do alentonave do coração base da almaassento das gargalhadaso ventoo peito412HISTÓRIA DA ETERNIDADEOmito as de segundo grau, as obtidas por combinação de um termo simples com uma kenning- por exemplo, a água da vara das feridas, o sangue; o que farta as gaivotas do ódio, o guerreiro; o trigo dos cisnes de corpo vermelho, o cadáver - e as de motivo mitológico: a perdição dos anões, o sol; o filho de nove mnes, o deus Heimdall. Omito também as ocasionais: o suporte do fogo fzo mar, uma mulher com um berloque de ouro qualquer. Das de maior potência, que operam a fusão arbitrária dos enigmas, indicarei só uma: os que detestam a neve do posto do falcão. O posto do falcão é a mão; a neve da mão é a prata; os que detestam a prata são os homens que a afastam de si, os reis dadivosos. O método, o leitor já terá notado, é o tradicional dos esmoladores: o louvor da vagarosa generosidade que se trata de estimular. Daí os vários apelidos da prata e do ouro, daí as ávidas menções ao rei: senhor de anéis, distribuidor de riquezas, custódia de riquezas. Daí também sinceras conversações como esta, do norueguês Eyvind Skaldaspillir:

Quero construir um louvorEstável e firme como uma ponte de pedra. Penso que não é avaro nosso rei Dos carvões acesos do cotovelo.

Essa identificação entre ouro e chama - perigo e resplendor - não deixa de ser eficaz. O metódico Snorri a esclarece: "Dizemos bem que o ouro é fogo dos braços ou das pernas, porque sua cor é o vermelho, mas os nomes da prata são gelo ou neve ou pedra de granizo ou escarcha, porque sua cor é o branco". E depois: "Quando os deuses retribuíram a visita de Aegir, este os hospedou em sua casa (que fica no mar) e os iluminou com lâminas de ouro, que davam luz como as espadas no Walhalla. Desde esse momento, ao ouro chamaram fogo do mar e de todas as águas e dos rios". Moedas de ouro, anéis, escudos cravejados, espadas e machados eram a recompensa do skald; raríssimas vezes, terras e naves.Minha relação de kenningar não é completa. Os cantores tinham o pudor da repetição literal e preferiam esgotar as variantes. Basta verificar as que o item nave registra - e as que6 Se as informações de De Quincey não me enganam (WritinXs, tomo XI, página 269), o modo incidental dessa última é o da perversa Cassandra, no sombrio poema de Licofronte.AS KENNINGARuma evidente permuta, o sutil trabalho do esquecimento ou da arte, pode multiplicar. São também abundantes as de guerreiro. Árvore da espada chamou-o um skald, talvez

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porque árvore e vencedor fossem palavras homônimas. Outro Ochamou carvalho da lança; outro, bastão do ouro; outro, espantoso pinheiro das tempestades de ferro; outro, bosque dos peixes da batalha. Vez que outra a variação acatou uma lei: demonstra-o uma passagem de Markus, na qual um barco parece agigantar-se com a proximidade.

O terrível javali da inundação Saltou sobre os tetos da baleia. O urso do dilúvio fatigou O antigo caminho dos veleiros O touro do marulho quebrouA corrente que amarra nosso castelo.

O culteranismo é um delírio da mente acadêmica; o estilo codificado por Snorri é a exasperação e quase a reductio ad absurdum de uma preferência comum a toda a literatura germânica: a das palavras compostas. Os monumentos mais antigos dessa literatura são os anglo-saxões. No Beowulf - que é dos anos 7OO -, o mar é o caminho das velas, o caminho do cisne,. a poncheira das ondas, a banheira do pelicano, a rota da baleia; o sol é a candeia do mundo, a alegria do céu, a pedra preciosa do céu; a harpa é a madeira do júbilo; a espada é o resíduo dos martelos, o companheiro de luta, a luz da batalha; a batalha é o jogo das espadas, o aguaceiro de ferro; a nave é a cruzadora do mar; o dragão, a ameaça do anoitecer, o guardião do tesouro; o corpo é a morada dos ossos; a rainha é a tecelã da paz; o rei é o senhor dos anéis, o áureo amig dos homens, o chefe de homens, o distribuidor de riquezas. ambém as naves da Ilíada são cruzadoras do mar - quase transatlânticos -, e o rei, rei de homens. Nas hagiografdas oitocentistas, o mar é também a banheira do peixe, o caminho das focas, o tanque da baleia, o reino da baleia; o sol é a candeia dos homens, a candeia do dia; os olhos são as jóias do rosto; a nave é o cavalo das ondas, o cavalo do mar; o lobo é o morador dos bosques; a batalha é o jogo dos escudos, o vôo das lanças; a lança é a serpente da guerra; Deus é a alegria dos guerreiros. No Bestiário, a baleia é o guardião do oceano. Na414415HISTÓRIA DA ETERNIDADEbalada de Brunnaburh - já novecentista -, a batalha é o trato das lanças, o trapejar das bandeiras, a comunhão das espadas, o encontro de homens. Os skald manejam precisamente essas mesmas figuras; sua inovação foi a ordem torrencial em que as esbanjaram e o fato de combiná-las entre si como bases de símbolos mais complexos. É de presumir que o tempo colaborou. Só quando lua de viking foi uma equivalência imediata de escudo, pôde o poeta formular a equação serpente da lua dos vikings. Esse momento teve lugar na Islândia, não na Inglaterra. O prazer de compor palavras perdurou nas letras inglesas, mas de forma diversa. As Odisséias de Chapman (ano de 1614) estão repletas de estranhos exemplos. Alguns são belos (deliciousfingered Morning, through-swum the waves); outros, meramente visuais e tipográficos (Soou as the white-and-red-mixed fingered Dame); outros, curiosamente canhestros, the circularly-witted queen. A tais aventuras podem levar o sangue germânico e a leitura grega. Cabe citar também certo germanizador total do inglês, que num Word-Book of the English Tongue propôs as emendas: lichrest por cemitério, red-craft por lógica, fourwinkled por quadrangular, ourganger por emigrante, fearnought por bonitão, bit-vise por gradualmente, kinlore por genealogia, bask-jaw por réplica, wanhope por desespero. A tais aventuras podem levar o inglês e um conhecimento nostálgico do alemão...Percorrer todo o índice das kenningar é expor-se à incômoda sensação de que muito raras vezes ocorreu tão pouco Omistério - e foi tão inadequado e verboso. Antes

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de condenálas, convém lembrar que sua transposição a um idioma que desconhece as palavras compostas tem que agravar sua inabilidade. Espinha da batalha ou ainda espinha de batalha ou espinha militar é uma perífrase deselegante; Kampfdorn ou battle-thorn o são menos." Assim também, até que as exortações gramaticais de nosso Xul Solar não sejam obedecidas, versos como Ode Rudyard Kipling:In the desert where the dung fed camp-smoke curled7 Traduzir cada kenning por um substantivo espanhol com adjetivo especificador (sol doméstico em lugar de sol de las casas, resplai~dor manual em vez de resplandor de Ia mano) talvez tivesse sido o mais fiel, mas também o menos sensacional e o mais difícil - por falta de adjetivos.AS KENNINGARou aquele outro de Yeats:That dolphin-torn, that gong-tormented sea serão inimitáveis e impensáveis em espanhol...

Outras apologias não faltam. Uma evidente é que essas menções inexatas eram estudadas uma após a outra pelos aprendizes de skald, mas não eram propostas ao auditório desse modo esquemático, e sim entre a agitação dos versos. (Talvez a descarnada fórmulaágua da espada = sanguejá seja uma traição.) Ignoramos suas leis: desconhecemos as precisas objeções que um juiz de kenningar faria a uma boa metáfora de Lugones. Restam-nos apenas algumas palavras. Impossível saber com que inflexão de voz eram ditas, com que expressões faciais, individuais como uma música, com que admirável decisão ou modéstia. O certo é que exerceram um dia sua função de assombrar e que sua gigantesca inépcia cativou os ruivos varões dos desertos vulcânicos e dos fjords, assim como a profunda cerveja e os duelos de garanhões." Não é impossível que uma misteriosa alegria as produzisse. Sua própria rusticidade - peixes da batalha: espadas - pode responder a um antigo humour, a zombarias de homenzarrões setentrionais. Assim, nessa metáfora selvagem que tornei a destacar, os guerreiros e a batalha se fundem num plano invisível, onde se agitam as espadas orgânicas, e mordem e molestam. Essa imaginação também aparece na Saga de Njal, em uma de cujas páginas está escrito: "As espadas sa m das bainhas, e machados e lanças voaram pelo ar e aram. As armas os perseguiram com tal ardor que prec aram proteger-se com os escudos, mas novamente muitos foram feridos e um homem morreuem cada nave". Este signo foi visto nas embarcações do ,;,.,

apóstata Brodir, antes da batalha que o derrotou.8 Falo de um esporte especial dessa ilha de lava e gelo duro: a luta de garanhões. Enlouquecidos pelas éguas no cio e pelo clamor dos homens, os garanhões lutavam a cruentas dentadas - algumas vezes mortais. São numerosas as alusões a esse jogo. Diz o historiador, sobre um capitão que se bateu com denodo diante de sua dama, que como esse potro não iria lutar bem se a égua estava olhando para ele.416417~iISTÓRIA DA ETPRNIDADENa noite 743 do Livro das Mil e Uma Noites, leio esta advertência: "Não digamos que morreu feliz o rei que deixa um herdeiro como este: o comedido, o agraciado, o ímpar, o leão dilacerador e a clara lua". O símile, talvez contemporâneo dos germânicos, não vale muito mais, porém a raiz é diferente. O homem semelhante à luz, o homem semelhante à fera, não são o resultado discutível de um processo mental: são a verdade correta e momentânea de duas intuições. As kenningar ficam em sofismas,

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em exercícios enganadores e lânguidos. Cabe aqui certa memorável exceção, um verso que reflita o incêndio de uma cidade, o fogo delicado e terrível:Ardem os homens; agora se en fureee a Jóia.Uma justificativa final. O signo perna da omoplata é estranho, mas não é menos estranho do que o braço do homem. Concebêlo como simples perna que é projetada pelas cavas dos coletes e se desfia em cinco dedos de doloroso comprimento é intuir sua estranheza fundamental. As kenningar impõem-nos esse espanto, distanciam-nos do mundo. Podem motivar essa lúcida perplexidade que é a única honra da metafísica, sua recompensa e sua fonte.Buenos Aires, 1933.Post-Scriptum. Morris, o minucioso e forte poeta inglês, intercalou muitas kenningar em sua última epopéia, Sigurd the Volsung. Transcrevo algumas, desconheço se adaptadas ou pessoais ou dos dois tipos. Chama da guerra, a bandeira; maré da matança, vento da guerra, o ataque; mundo de penhascos, a montanha; bosque da guerra, bosque de lanças, bosque da batalha, o exército; tecido da espada, a morte; perdição de Fafnir, tição da batalha; ira de Sigfrid, sua espada."Pai do perfume, ó jasmim!", apregoam os vendedores no Cairo. Mauthner observa que os árabes costumam derivar suas figuras da relação pai-filho. Assim: pai da manhã, o galo; pai da pilhagem, o lobo; filho do arco, a flecha; pai dos passos, uma montanha. Outro exemplo dessa preocupação: no Alcorão, a prova mais comum da existência de Deus é o espanto de que o homem seja gerado por certas gotas de água vil.AS KENNLNGARSabe-se que os nomes primitivos do tanque foram landship, landeruiser, barco de terra, couraçado de terra. Mais tarde chamaram-no tanque para despistar. Akejming original era evidente demais. Outra kenning é leitão comprido, o eufemismo guloso dado pelos canibais ao prato fundamental de sua dieta.O ultraísta morto cujo fantasma continua sempre a me habitar aprecia esses jogos. Dedico-os a uma clara companheira: a Norah Lange, cujo sangue talvez os reconheça.

Post-Scriptum de 1962. Escrevi, certa ocasião, repetindo a outros, que a aliteração e a metáfora eram os elementos fundamentais do antigo verso germânico. Dois anos dedicados ao estudo dos textos anglo-saxônios me levam, hoje, a modificar essa afirmação.Das aliterações, entendo que eram antes um meio que um fim. Seu objetivo era marcar as palavras que deviam ser acentuadas. Prova disso é que as vogais, que eram abertas, quer dizer, muito diferentes uma da outra, aliteravam entre si. Outra é que os textos antigos não registram aliterações exageradas, do tipo a fair field full of folk, que data do século XIV.Quanto à metáfora como elemento indispensável ao verso, entendo que a pompa e a gravidade existentes nas palavras compostas eram o que agradava e que as kenningar, de início, não foram metafóricas. Assim, os dois versos iniciais do Beowul f incluem três kenningar (dinamarqueses de lança, dias de antanho ou dias de anos, reis do povo), que certamente não são metáforas, e é preciso chegar ao décimo verso para deparar com uma expressão como hronrad (rota da baleia, o mar). A metáfora não teria sido, portanto, o fundamental e sim, como a comparação ulterior, uma descoberta tardia das literaturas.418419HISTÓRIA DA ETERNIDADEEntre os livros que mais serviços me prestaram, devo mencionar os seguintes:

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The Prose Edna, by Snorri Sturluson. Translated by Arthur Gilchrist Brodeur. New York, 1929.Die Jüngere Edda mit dem sogennanten ersten grammatischen Traktat. Uebertragen von Gustav Neckel und Felix Niedner. Jena, 1925.Die Edda. Uebersetzt von Hugo Gering. Leipzig, 1892.Eddalieder, mit Grammatik, Uebersetzung und Erlãuterungen. Von Dr. WilhelmRanisch. Leipzig, 192O.V~Isung Saga, with certain songs from the Elder Edda. Translated by Eiríkr Magnússon and William Morris. London, 187O.The Story of Burnt Njal. From the Icelandic of the Njals Saga, by George Webbe Dasent. Edinburgh, 1861.The Grettir Sagn. Translated by G. Ainslie Hight. London, 1913.Die Geschiehte z~on Goden Snorri. Uebertragen von Felix Niedner. Jena, 192O. Islands Kultur zur Wikingerzeit, von Felix Niedner. Jena, 792O.Anglo-Saxon Poetry. Selected and tanslated by R K. Gordon. London, 1931. The Deeds of Beowulf. Done finto modern prose by John Earle. Oxford, 1892.A METÁFORAO historiador Snorri Sturluson, que em sua intrincada vida fez tantas coisas, compilou no início do século XIII um glossário das figuras tradicionais da poesia da Islândia onde se lê, por exemplo, que gaivota do ódio, falcão do sangue, cisne sangrento ou cisne vermelho significam o corvo; e teto da baleia ou corrente das ilhas, o mar; e casa dos dentes, a boca. Entretecidas no verso e por ele conduzidas, essas metáforas proporcionam (ou proporcionaram) agradável deslumbramento; logo sentimos que não há emoção que as justifique e as julgamos laboriosas e inúteis. Comprovei que o mesmo acontece com as figuras do simbolismo e do marinismo.Benedetto Croce pôde acusar os poetas e oradores barrocos do século XVII de "frialdade íntima" e de "engenhosidade pouco engenhosa"; nas perífrases recolhidas por Snorri vejo algo assim como a reductio ad absurdum de qualquer propósito de elaborar metáforas novas. Suspeito que Lugones ou Baudelaire não fracassaram menos que os poetas cortesãos da Islândia.No livro III da Retórica, Aristóteles observou que toda metáfora surge da intuição de uma analogia entre coisas diferentes; Middeton Murry exige que a analogia seja real e que até então não tenha sido observada (Cotantries of the Mind, II, 4). Aristóteles, como se vê, baseia a metáfora nas coisas e não na linguagem; os tropos conservados por Snorri são (ou parecem) resultados de um processo mental, que não percebe analogias mas co bina palavras; a um oú"~o"utro podem impressionar (cisne ermelho, falcão do sangue), mas nada revelam ou comunicam. ão, por assim dizer, objetos verbais, puros e independentes como um cristal ou como um anel de prata. Igualmente, o gramático Licofronte chamou o deus Hércules de leão da tríplice42O421HISTORIA DA ETERNIDADEnoite, porque a noite em que foi gerado por Zeus pareceutrês; a frase é memorável, vai além da interpretação dos glosadores, mas não exerce a função prescrita por Aristóteles."No I Ching, um dos nomes do universo é os Dez Mil Seres.

Há talvez trinta anos, minha geração se surpreendeu com ofato de os poetas terem desprezado as múltiplas combinaçõesque esse elenco possibilita e, de modo maníaco, se limitado a

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uns poucos grupos famosos: as estrelas e os olhos, a mulher ea flor, o tempo e a água, a velhice e o entardecer, o sono e amorte. Assim enunciados ou despojados, esses grupos sãomeras trivialidades, mas vejamos alguns exemplos concretos.Lê-se no Antigo Testamento (I Reis 2, 1O): "E Davi dormiucom seus pais, e foi sepultado na cidade de Davi". Nos naufrágios, ao afundar-se o navio, os marinheiros do Danúbio rezavam: "Durmo, logo voltarei a remar"? Homero, na Ilíada, chamou o Sono de Irmão da Morte; desta irmandade, segundo Lessing, são testemunhos vários monumentos funerários. Macaco da Morte (Afie des Todes) chamou-o Wilhelm Klemm, que escreveu também: "A morte é a primeira noite tranqüila". Antes, Heine escrevera: "A morte é a noite amena; a vida, o dia tormentoso..." Sono da terra foi como Vigny chamou a morte; velha cadeira de balanço (old rocking-chair) a chamam nos blues: ela vem a ser o último sono, a última sesta, dos negros. Schopenhauer repete em sua obra a equação morte-sono; basta-me copiar estas linhas: "O que o sono é para o indivíduo, é a morte para a espécié" (Welt als Wille, II, 41). O leitor já terá lembrado as palavras de Hamlet: "Morrer, dormir, talvez sonhar", e seu temor de que sejam atrozes os sonhos do sono da morte.Igualar mulheres a flores é outra eternidade ou trivialidade; tenho aqui alguns exemplos. "Eu sou a rosa de Saron e o lírio dos vales", diz a sulamita no Cântico dos Cânticos. Na história de Math, que é o quarto "ramó " dos Mabinogion de Gales, certo príncipe exige uma mulher que não seja deste mundo, e um feiticeiro "por meio de conjuros e de ilusão a faz com as flores do carI Digo o mesmo de "águia de três asas", que é nome metafórico da flecha, na literatura persa (Browne: A Líteran~ Hishn"y of Persia, III, 262).2 Também se conserva a ladainha final dos marinheiros fenícios: "Mãe de Cartago, devolvo o remo". A julgar por moedas do século II a.C, por Mãe de Cartago devemos entender Sídon.A METÁFORAvalho e com as flores da giesta e com as flores da olmeira". Na quinta "aventurá " do Nibelungenlied, Sigfrid vê Kriemhild para não mais esquecê-la e a primeira coisa que nos diz é que sua tez brilha com a cor das rosas. Ariosto, inspirado por Catulo, compara a donzela a uma flor secreta (Orlando, I, 42); no jardim de Armida, um pássaro de bico purpúreo exorta os amantes a não deixar que essa flor murche (Gerusalemme, XVI, 13-15). No final do século XVI, Malherbe quer consolar um amigo pela morte de sua filha, e nesse consolo estão as famosas palavras: "Et, rose, elle a vécu ce que vivem les roses". Shakespeare, num jardim, admira o vermelho profundo das rosas e a brancura dos lírios, mas para ele esses esplendores não passam de sombras de seu amor ausente (Sonnets, XCVIII). "Deus, ao fazer as rosas, fez meu rostó", diz a rainha de Samotrácia numa página de Swinburne. Este levantamento poderia não ter fim;" basta lembrar aquela cena de Weir of Hermiston - o último livro de Stevenson - na qual o herói quer saber se há uma alma em Cristina "ou se não é mais que um animal da cor das flores".Juntei dez exemplos do primeiro grupo e nove do segundo; às vezes a unidade essencial é menos aparente que os traços diferenciais. Quem, a priori, suspeitaria que "cadeira de balançó " e "Davi dormiu com seus pais" procedem de mesma raiz?O primeiro monumento das literaturas ocidentais, a Ilíada, foi composto há cerca de três mil anos; é plausível supor que nesse enorme transcurso de tempo todas as afinidades íntimas, necessárias (sonho-vida, sono-morte, rios e vidas que transcorrem, etc.), foram alguma vez percebidas e escritas. Isso não significa, naturalmente,

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que se tenha esgotado o número de metáforas; as maneiras de indicar ou insinuar essas secretas simpatias dos conceitos resultam, de fato, ilimitadas. Sua virtude ou fraqueza estão nas palavras, no curioso verso em que Dante (Purgatório, I, 13), para definir o céu oriental, invoca uma pedra oriental, uma pedra límpida em cujo nome está, por feliz acaso, o Oriente: "bolce color d"oriental zaffiro" é, fora de qualquer dúvi3 A imagem também aparece delicadamente nos famosos versos de Milton P. L. IV, 268-271) Vibre o rapto de Prosérpina,e nestes de Darío:Mas apesar do tempo implacável minha sede de amm não tem fim; com o cahelo grisalho me aproximo das roseiras do jardim.422423HISTORIA DA ETERNIDADEda, admirável; não é o caso de Góngora (Soledad, I, 6): "Em campos de safiras apascenta estrelas", que é, se não me engano, simples imagem grosseira, simples ênfase.Algum dia será escrita a história da metáfora e saberemos a verdade e o erro que estas conjeturas encerram.4 Ambos os versos derivam da Escritura, "E viram o Deus de Israel; e debaixo de seus pés havia como um lajeado de safira, semelhante ao céu quando está sereno". (Êxodo 24, 1OJA DOUTRINA DOS CICLOSI

Essa doutrina (que seu mais recente inventor chama do Eterno Retorno) é formidável assim:"O número de todos os átomos que compõem o mundo é, embora desmedido, finito, e só capaz, como tal, de um número finito (embora também desmedido) de permutações. Num tempo infinito, o número das permutações possíveis deve ser alcançado, e o universo tem de se repetir. Novamente nascerás de um ventre, novamente crescerá teu esqueleto, novamente chegará esta mesma página às tuas mãos iguais, novamente percorrerás todas as horas até a de tua morte inacreditável." Esta é a ordem habitual desse argumento, do prelúdio insípido ao enorme desenlace ameaçador. É comum atribuí-lo a Nietzsche.Antes de refutá-lo - obra que ignoro se sou capaz - convém conceber, ao menos de longe, as sobre-humanas cifras que invoca. Começo pelo átomo. O diâmetro de um átomo de hidrogênio foi calculado, salvo engano, em um centimilionésimo de centímetro. Essa pequenez vertiginosa não quer dizer que seja indivisível: ao contrário, Rutherford o define segundo a imagem de um sistema solar, feito de um núcleo central e de um elétron giratório, cem mil vezes menor que o átomo inteiro. Deixemos esse núcleo e esse elétron e vamos conceber um universo frugal, composto de 1O átomos. (Trata-se, é claro, de um modesto universo experimental: invisível, uma vez que dele não suspeitam os microscópios; imponderável, uma vez que nenhum~,:,balança o avaliaria.) Postulemos também - sempre de acordo com a conjetura de Nietzsche - que o número de mudanças desse universo seja o dos modos emHISTÓRIA DA ETERNIDADEque se podem dispor os dez átomos, variando a ordem em que estiverem colocados. Quantos estados diferentes pode conhecer esse mundo, antes de um eterno retorno? A indagação é fácil: basta multiplicar 1x2x3x4x5x6x7x8x9x1O, excessiva operação que nos dá a cifra de 3.628.8OO. Se uma partícula quase infinitesimal de universo é capaz dessa variedade, devemos depositar pouca ou nenhuma fé numa monotonia do cosmos. Considerei 1O átomos; para obter dois gramas de hidrogênio, precisaríamos

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de bem mais de um bilhão de bilhões. Fazer o cálculo das mudanças possíveis nesse par de gramas - quer dizer, multiplicar um bilhão de bilhões por cada um dos números inteiros que o antecedem - já é uma operação muito superior à minha pàciência humana.Não sei se meu leitor está convencido; eu não estou. O indolor e casto esbanjamento de números enormes causa, sem dúvida, esse prazer peculiar a todos os excessos, mas a Regressão continua mais ou menos Eterna, mesmo a longo prazo. Nietzsche poderia replicar: "Os elétrons giratórios de Rutherford são novidade para mim, assim como a idéia - tão escandalosa para um filólogo - de que se possa dividir um átomo. Todavia, jamais desmenti que as vicissitudes da matéria fossem numerosas; declarei apenas que não eram infinitas". Essa verossímil contestação de Friedrich Zaratustra me faz recorrer a Georg Cantor e a sua heróica teoria dos conjuntos.Cantor destrói o fundamento da tese de Nietzsche. Afirma a perfeita infinidade do número de pontos do universo, e até de um metro de universo, ou de uma fração desse metro. A operação de contar não é para ele outra coisa senão comparar duas séries. Por exemplo, se os primogênitos de todas as casas do Egito foram mortos pelo Anjo, salvo os que moravam em casas com um sinal vermelho na porta, é evidente que se salvaram tantos quantos sinais vermelhos havia, sem que isso importe enumerar quantos foram. Aqui a quantidade é indefinida; há outros agrupamentos em que é infinita. O conjunto dos números naturais é infinito, mas é possível demonstrar que os ímpares são tantos quantos os pares.

Ao 1 corresponde o 2Ao 3 corresponde o 4Ao 5 corresponde o 6, etc.426A DOUTRINA DOS CICLOSA prova é tão irrepreensível quanto fútil, mas não difere da seguinte, de que há tantos múltiplos de três mil e dezoito como há números - sem excluir destes o três mil e dezoito eseus múltiplos.Ao 1 corresponde o 3.O18Ao 2 corresponde o 6.O36 Ao 3 corresponde o 9.O54

Ao 4 corresponde o 12.O72, etc.Cabe afirmar o mesmo de suas potências, por mais que estas se ratifiquem à medida que progredirmos.Ao 1 corresponde o 3.O18

Ao 2 corresponde o 3.O182, ou seja, 9.1O8.324 Ao 3, etc.Uma genial aceitação desses fatos inspirou a fórmula de que uma coleção infinita - por exemplo, a série natural de números inteiros - é uma coleção cujos elementos podem desdobrar-se, por sua vez, em séries infinitas. (Ou melhor, para eludir qualquer ambigüidade: conjunto infinito é aquele conjunto que pode equivaler a um de seus conjuntos parciais.) A parte, nessas elevadas latitudes da numeração, não é menos abundante que o todo: a quantidade precisa de pontos que há no universo é a que existe em um metro, ou em um decímetro, ou na mais profunda trajetória estelar. A série dos números naturais está bem ordenada: quer dizer, os termos que a formam são consecutivos; O28 precede o 29 e segue o 27. A série dos pontos do espaço (ou dos instantes do tempo) não é assim ordenável; nenhum número tem sucessor

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ou predecessor imediato. É como a série dos fracionados segundo a magnitude. Que fração enumeraremos depois de 1 /2? Não 51 / 1OO, porque 1O1 /2OO está mais próxima; não 1O1 /2OO porque mais próxima é 2O1 /4OO; não 2O1 /4OO porque mais próxima... O mesmo acontece com os pontos, segundo Georg Cantor. Podemos sempre intercalar mais outros, em,.~aúmero infinito. Contudo, devemos procurar não,~-~

conceber grandezas decrescentes. Cada ponto " la" é o finade uma infinita subdivisão.427HISTÓRIA DA ETEIZNIDAUEO atrito do belo jogo de Cantor com o belo jogo de Zaratustra é mortal para este último. Se o universo consta de um número infinito de termos, é rigorosamente capaz de um número infinito de combinações - e a necessidade de um Regresso fica vencida. Resta sua mera possibilidade, computável em zero.II

Escreve Nietzsche, por volta do outono de 1883: "Estalenta aranha arrastando-se à luz da lua, e esta mesma luz dalua, e tu e eu cochichando no portão, cochichando sobre coisaseternas, já não coincidimos no passado? E não voltaremos apercorrer o longo caminho, esse longo e terrível caminho, nãovoltaremos a percorrê-lo eternamente? Assim falava eu, esempre com voz mais baixa, porque temia meus pensamentose os que por trás deles se ocultavam". Escreve Eudemo, parafraseador de Aristóteles, uns três séculos antes da paixão e morte de Cristo: "A acreditar nos pitagóricos, as mesmas coisas voltarão pontualmente e estarei comigo outra vez e eu repetirei esta doutrina e minha mão brincará com este bastão, e assim por dianté". Na cosmogonia dos estóicos, Zeus se alimenta do mundo: o universo é consumido ciclicamente pelo fogo que o gerou e ressurge da destruição para repetir uma história idêntica. Novamente se combinam as diferentes partículas seminais, novamente darão forma a pedras, árvores e homens - e até virtudes e dias, já que para os gregos era impossível um nome substantivo sem alguma corporeidade. Novamente cada espada e cada herói, novamente cada minuciosa noite de insônia.Como as outras conjeturas da escola do Pórtico, essa da repetição geral propagou-se pelos tempos, e seu nome técnico, apokatastasis, entrou nos Evangelhos (Atos dos Apóstolos III, 21), embora com intenção indeterminada. O livro XII da G~itas Dei de Santo Agostinho dedica vários capítulos a refutar tão abominável doutrina. Esses capítulos (que tenho à vista) são emaranhados demais para um resumo, mas a fúria episcopal de seu autor parece preferir dois motivos: um, a pomposa inutilidade dessa roda; outro, a irrisão de que o Logos morraA DOUT2INA DOS CICLOSna cruz como um acrobata em sessões intermináveis. As despedidas e o suicídio perdem sua dignidade quando repetidos; Santo Agostinho devia pensar o mesmo da Crucificação. Por isso repelira com escândalo o parecer dos estóicos e pitagóricos. Estes argúiam que a ciência de Deus não pode compreender coisas infinitas e que essa eterna rotação do processo mundial serve para que Deus o vá aprendendo e se familiarize com ele; Santo Agostinho zomba de suas vãs revoluções e afirma que Jesus é o caminho reto que nos permite fugir do labirinto circular de tais enganos.

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Naquele capítulo de sua Lógica que trata da lei da causalidade, John Stuart Mill declara que é concebível - mas não verdadeira - uma repetição periódica da história, e cita a "écloga messiânica" de Virgílio:

Jam redit et virgo, redeunt Saturnia regna..."

Nietzsche, helenista, pôde acaso ignorar esses "precursores"? Nietzsche, o autor dos fragmentos sobre os présocráticos, pôde desconhecer uma doutrina que os discípulos de Pitágoras aprenderam?~ É muito difícil acreditar - e inútil. É verdade que Nietzsche indicou, em página memorável, o lugar exato em que a idéia de um eterno retorno lhe ocorreu: uma vereda nos bosques de Silvaplana, perto de um vasto bloco piramidal, em um meio-dia de agosto de 1881 - "a seis mil pés do homem e do tempo". É verdade que esse instante é uma das glórias de Nietzsche. "Imortal o instanté", deixará escrito, "em que criei o eterno regresso. Por esse instante suporto o Regresso" (Unschuld des Werdens, II, 13O8). Sou de opinião, todavia, de que não devemos postular uma surpreendente ignorância, nem tampouco uma confusão humana demasiado humana, entre a inspiração e a lembrança, nem tampouco um delito de vaidade. Minha chave é de caráter gramatical, direi quase sintático. Nietzsche sabia que o Eterno Retorno é das fábulas ou medos ou diversões que voltam eternamente, mas também sabia que a mais eficaz das

1 "Já volta a çem, e volta o reinado de Saturno..." (N. da TJ2 Esta perplexidade é inúfil. Nietzsche, em 1874, zombou da tese pitagórica de que a história se repete ciclicamente (Vom Nutzen und Nnchteil der Historie). (Nota de 1953.)428429Htsróain DA ETERNIDADEpessoas gramaticais é a primeira. Para um profeta, cabe assegurar que seja a única. Derivar sua revelação de um epítome, ou da Historia Philosophiae Graeco-Romanae dos professores suplentes Ritter e Preller, era impossível para Zaratustra, por questões de palavra e anacronismo - quando não tipográficas. O estilo profético não permite o emprego das aspas nem a erudita citação de livros e autores...Se minha carne humana assimila a carne brutal das ovelhas, quem impedirá que a mente humana assimile estados mentais humanos? De muito repensá-lo e padecê-lo, o eterno regresso das coisas já é de Nietzsche e não de um morto que é apenas um nome grego. Não insistirei: Miguel de Unamuno tem sua página sobre essa perfilhação dos pensamentos.Nietzsche queria homens capazes de agüentar a imortalidade. Digo-o com palavras que estão em seus cadernos pessoais, no Nachlass, onde também gravou estas outras: "Se te afiguras uma longa paz antes de renascer, juro-te que pensas mal. Entre o último instante da consciência e o primeiro resplendor de uma vida nova há "nenhum tempó - o prazo dura o mesmo que um raio, ainda que não bastem para medi-lo bilhões de anos. Se falta um eu, a infinidade pode equivaler à sucessão".Antes de Nietzsche, a imortalidade pessoal era mero equívoco das esperanças, um projeto confuso. Nietzsche a propõe como um dever e lhe confere a lucidez atroz de uma insônia. "O não dormir (leio no antigo tratado de Robert Burton) crucifica demais os melancólicos", e nos consta que Nietzsche padeceu essa cruz e teve de procurar salvação no amargo hidrato de cloral. Nietzsche queria ser Walt Whitman, queria apaixonar-se por seu destino nos mínimos detalhes. Seguiu um método heróico: desenterrou

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a intolerável hipótese grega da eterna repetição e tentou eduzir desse pesadelo mental uma ocasião de júbilo. Procurou a idéia mais horrível do universo e a propôs ao deleite dos homens. O otimista vacilante costuma imaginar que é nietzschiano; Nietzsche o enfrenta com os círculos do eterno regresso e assim o cospe de sua boca.Escreveu Nietzsche: "Não ansiar por distantes venturas, favores e bênçãos, mas viver de modo a que queiramos voltar a viver, e assim por toda a eternidade". Mauthner objeta que atribuir a menor influência moral, isto é, prática, à tese do eterno retorno é negar a tese - pois equivale a imaginar que43OA DOUTRINA DOS CICLOSalgo pode acontecer de outro modo. Nietzsche responderia que a formulação do eterno regresso e sua larga influência moral (isto é, prática) e as cavilações de Mauthner e sua refutação às cavilações de Mauthner são outros tantos momentos necessários da história mundial, obra das agitações atômicas. De direito, poderia repetir o que já deixou escrito: "Basta que a doutrina da repetição circular seja provável ou possível. A imagem de uma simples possibilidade pode nos abalar e nos recompor. Quanto efeito não produziu a possibilidade do castigo eterno!" E em outro lugar: "No instante em que se apresenta essa idéia, variam todas as cores - e há outra história".IITA sensação "de já ter vivido esse momentó" por vezes nos

deixa pensativos. Os partidários do eterno regresso nos juram

que é assim e buscam corroboração de sua fé nesses estados de

perplexidade. Esquecem que a lembrança implicaria uma

novidade que é a negação da tese e que o tempo a iria aper

feiçoando - até o ciclo distante em que o indivíduo já prevê

seu destino e prefere agir de outro modo... Nietzsche, além

disso, nunca falou de confirmação mnemônica do Regresso."

Tampouco falou - e isso também merece destaque - da

finitude dos átomos. Nietzsche nega os átomos; a atomística

não lhe parecia senão um modelo do mundo, feito exclusiva

mente para os olhos e para o entendimento aritmético... Para

fundamentar sua tese, falou de uma força limitada, desenvol

vendo-se no tempo infinito, mas incapaz de um número ilimi

3 Sobre essa aparente confirmação, escreve Néstor Ibarra:

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"Il arrive aussi que quelque perception nouvelle nous frappe comme un souvenir, que nous croyons reconnaïtre des objets ou des accidents que nous sommes pourtant sGrs de rencontrer pour la première fois. J"imagine qú il s"agit ici d"un curieux comportement de notre mémoire. Une perception quelconque s"effectue d"abord, mais soas le scniil du conscient. Un instant après, les excitations agissent, mais cette fois nous les recevons dans le conscient. Notre mémoire est déclanchée, et nous offre bien le sentiment du "déjà vu"; mais elle localise mal ce rappel. Pour en justifier la faiblesse et le trouble, nous lui supposons un considérable recul dans le temps; peut-être le renvoyons-nou~p"lus loin de nous encore, dans le rédoublement de quelque vie antérieure. Il s"agit en réalité d"un passé inmédiat; et 1"abime qui nous en sépare est celui de notre distractioú".431HISTÓRIA DA ETERNIDADEA DOUTRINA DOS CICLOStado de variações. Não agiu sem perfídia: primeiro nos adverte contra a idéia de uma força infinita - "Cuidemo-nos de tais orgias do pensamento!" - e logo, generosamente, admite que o tempo é infinito. Agrada-lhe também recorrer à Eternidade Anterior. Por exemplo: um equilíbrio da força cósmica é impossível, pois se não fosse, já teria ocorrido na Eternidade Anterior. Ou senão: a história universal sucedeuse um número infinito de vezes - na Eternidade Anterior. A invocação parece válida, mas convém repetir que essa Eternidade Anterior (ou aeternitas a parte ante, segundo lhe disseram os teólogos) não é senão a nossa incapacidade natural de conceber princípio ao tempo. Sofremos da mesma incapacidade no que se refere ao espaço, de modo que invocar uma Eternidade Anterior é tão decisivo como invocar uma Infinidade À Mão Direita. Vou dizê-lo com outras palavras: se o tempo é infinito para a intuição, o espaço também o é. Nada tem que ver essa Eternidade Anterior com o tempo real decorrido; retrocedamos ao primeiro segundo e veremos que este requer um predecessor, e esse predecessor mais outro, e assim infinitamente. Para estancar esse regressus in infinitum, Santo Agostinho resolve que o primeiro segundo do tempo coincide com o primeiro segundo da Criação - "non in tempore sed cum tempore incepit creatio".~Nietzsche recorre à energia; a segunda lei da termodinãomica afirma haver processos energéticos que são irreversíveis. O calor e a luz não passam de formas da energia. Basta projetar luz sobre uma superfície negra para que se converta em calor. O calor, por sua vez, já não voltará à forma de luz. Essa comprovação, de aspecto inofensivo ou insípido, anula o "labirinto circular" do Eterno Retorno.A primeira lei da termodinãomica diz que a energia do universo é constante; a segunda, que essa energia tende à incomunicação, à desordem, ainda que a quantidade total não decresça. Essa gradual desintegração das forças que compõem o universo é a entropia. Uma vez igualadas as diversas temperaturas, uma vez excluída (ou compensada) toda ação de um corpo sobre outro, o mundo será um fortuito encontro de átomos. No centro profundo das estrelas, esse difícil e mortal equilbrio foi alcança

4 "Não no tempo mas com o tempo começou a criação." (N. da T)do. À custa de intercâmbios, o universo inteiro o alcançará e estará tépido e morto.A luz se vai perdendo em calor; o universo, minuto por minuto, faz-se invisível. Faz-se mais leve, também. Um dia, já não será senão calor: calor equilibrado, imóvel, igual. Então terá morrido.

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Uma incerteza final, desta vez de ordem metafísica. Aceita a tese de Zaratustra, não chego a entender como dois processos idênticos deixam de se aglomerar em um. Basta a mera sucessão, não verificada por ninguém? À falta de um arcanjo especial que faça o cômputo, o que significa o fato de que atravessamos o ciclo treze mil quinhentos e catorze, e não Oprimeiro da série ou o número trezentos e vinte e dois com o expoente dois mil? Nada, para a prática - o que não causa danos ao pensador. Nada, para a inteligência - o que já é grave.

Salto Oriental, 1934.Entre os livros consultados para o artigo anterior, devo mencionar os seguintes:Die Unschuld des Werdens, von Friedrich Nietzsche. Leipzig, 1931.Also sprach Zarathustra, von Friedrich Nietzsche. Leipzig, 1892. hrtrodttction to Nlathernatical Philosophy, by Bertrand Russell. London, 1919. The A B C of Atorns, by Bertrand Russell. London, 1927.The Nnture of t}re Physicnl World, by A. S. Eddington. London, 1928. Die Philosophie der Griedten, von Dr. Paul Deussen. Leipzig, 1919. Wõrterbuch der Philosophie, von Fritz Mauthner. Leipzig, 1923.La Ciudnd de Dios, por San Agustín. Versión de Díaz de Beyral. Madrid, 1922.432433O TEMPO CIRCULARO TEMPO CIRCULARCostumo regressar eternamente ao Eterno Regresso; procurarei nestas linhas (com o auxílio de algumas ilustrações históricas) definir seus três modos fundamentais.O primeiro foi atribuído a Platão. Este, no trigésimo nono parágrafo do Timeu, afirma que os sete planetas, equilibradas suas diversas velocidades, voltarão ao ponto inicial de partida: revolução que constitui o ano perfeito. Cícero (Da Natureza dos Deuses, livro II) admite que não é fácil o cômputo desse vasto período celestial, mas que certamente não se trata de prazo ilimitado; em uma de suas obras perdidas, atribui-lhe doze mil novecentos e cinqüenta e quatro "dos que nós chamamos anos" (Tácito: Diálogo dos Oradores,ló). Morto Platão, a astrologia judiciária propagou-se em Atenas. Essa ciência, como todos sabem, afirma ser o destino dos homens regido pela posição dos astros. Um astrólogo que não havia examinado em vão o Timeu formulou este argumento irrepreensível: se os períodos planetários são cíclicos, também o será a história universal; ao fim de cada ano platônico renascerão os mesmos indivíduos e cumprirão o mesmo destino. O tempo atribuiu a Platão essa conjetura. Em 1616, escreveu Lucílio Vanini: "Novamente Aquiles irá a Tróia; renascerão as cerimônias e religiões; a história humana se repete; nada há hoje que não tenha sido; o que foi será; mas tudo isso em geral, não (como determina Platão) em particular" (De Admirandis Naturae Arcanis, diálogo 52). Em 1643, Thomas Browne declarou, numa das notas do primeiro livro da Religio Medici: "Ano de Platão - Plató s year - é um curso de séculos depois do qual todas as coisas recuperarão seu estado anterior e Platão, em sua escola, novamente explicará esta doutrina". Neste primeiro modo de conceber o eterno regresso o argumento é astrológico.O segundo está vinculado à glória de Nietzsche, seu mais patético inventor ou divulgador. Um princípio algébrico o justifica: a observação de que um número n de objetos - átomos na hipótese de Le Bon, forças na de Nietzsche, corpos simples na do comunista Blanqui - é incapaz de um número infinito de variações. Das três doutrinas que enumerei, a mais bem fundamentada e a mais complexa é a de Blanqui. Este, como Demócrito (Cícero: Questões Acadêmicas, livro segundo, 4O), abarrota de mundos

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fac-similares e mundos dessemelhantes não só o tempo como também o espaço interminável. Seu livro tem o belo título L"Eternité par les Astres; é de 1872. Muito anterior é uma lacônica mas suficiente passagem de David Hume; consta nos Dialogues Concerning Natural Religion (1779) que Schopenhauer se propôs traduzir; que eu saiba, ninguém lhe deu destaque até agora. Traduzo-a literalmente: "Não imaginemos a matéria infinita, como fez Epicuro; imaginemo-la finita. Um número finito de partículas não é suscetível de transposições infinitas; numa duração eterna, todas as ordens e colocações possíveis ocorrerão um número infinito de vezes. Este mundo, com todos os seus detalhes, até os mais minúsculos, foi elaborado e destruído, e será elaborado e destruído: infinitamente" (Dialogues, VIII).Observa Bertrand Russell sobre esta série contínua de histórias universais idênticas: "Muitos escritores opinam que a história é cíclica, que o estado atual do mundo, com seus pormenores mais ínfimos, cedo ou tarde voltará. Como se formula essa hipótese? Diremos que o estado posterior é numericamente idêntico ao anterior; não podemos dizer que esse estado ocorre duas vezes, pois isso postularia um sistema cronológico - since that would imply a system of dating - que a hipótese nos proíbe. O caso equivaleria ao de um homem que dá a volta ao mundo: não diz que o ponto de partida e o de chegada são dois lugares diferentes mas muito parecidos; diz que são o mesmo lugar. A hipótese de que a história seja cíclica pode ser enunciada desta maneira: formemos o conjunto de todas as circunstâncias contemporâneas de uma circunstância determinada; em certos casos, todo o conjunto precede a si mesmo.~n Inquiry finto Meaning and Truth, 194O, p. 1O2).Chego ao terceiro modo de interpretar as eternas repetições: o menos pavoroso e melodramático, mas também434435HISTORIA DA ETERNIDADEo único imaginável. Quero dizer a concepção de ciclos semelhantes, não idênticos. Impossível formar o catálogo infinito de autoridades: penso nos dias e nas noites de Brahma; nos períodos cujo imóvel relógio é uma pirâmide, desgastada muito lentamente pela asa de um pássaro, que roça nela a cada mil e um anos; nos homens de Hesíodo, que degeneram do ouro ao ferro; no mundo de Heráclito, gerado pelo fogo e que ciclicamente devora o fogo; no mundo de Sêneca e de Crisipo, em sua destruição pelo fogo, em sua renovação pela água; na quarta bucólica de Virgílio e no esplêndido eco de Shelley; no Eclesiastes; nos teósofos; na história decimal que Condorcet idealizou, em Francis Bacon e em Uspenski; em Gerald Heard, em Spengler e em Vico; em Schopenhauer, em Emerson; nos First Principies de Spencer e em Eureka de Poe... Dentre tal profusão de testemunhos basta-me copiar um, de Marco Aurélio: "Ainda que os anos de tua vida sejam três mil ou dez vezes três mil, lembra-te de que ninguém perde outra vida senão a que vive agora, nem vive outra senão a que perde. O prazo mais longo e o mais breve são, portanto, iguais. O presente é de todos; morrer é perder o presente, que é um lapso brevíssimo. Ninguém perde o passado nem o futuro, pois a ninguém podem tirar o que não tem. Lembra-te de que todas as coisas giram e voltam a girar pelas mesmas órbitas e que para o espectador é indiferente vê-ias um século ou dois ou infinitamenté" (Reflexões, 14).Se lermos com um pouco de seriedade as linhas anteriores (id est, se resolvermos não julgá-ias mera exortação ou moralidade), veremos que expõem, ou pressupõem, duas idéias curiosas. A primeira: negar a realidade do passado e do futuro. E enunciada por esta passagem de Schopenhauer: "A forma de aparecimento da vontade é

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só o presente, não o passado nem o futuro: estes só existem para o conceito e pelo encadeamento da consciência, submetida ao princípio da razão. Ninguém viveu no passado, ninguém viverá no futuro; o presente é a forma de toda vida" (O Mundo como Vontade e Representação, primeiro tomo, 54). A segunda: negar, como o Eclesiastes, qualquer novidade. A conjetura de que todas as experiências do homem são (de algum modo) análogas pode, à primeira vista, parecer simples empobrecimento do mundo.436O TE`vIPO CIKCULARSe os destinos de Edgar Allan Poe, dos z~ikings, de Judas Iscariotes e de meu leitor secretamente são o mesmo destino - o único destino possível -, a história universal é a de um único homem. A rigor, Marco Aurélio não nos impõe essa simplificação enigmática. (Imaginei há tempos um conto fantástico, à maneira de Léon Bloy: um teólogo consagra toda a sua vida a confutar um heresiarca; vence-o em complicadas polêmicas, denuncia-o, manda-o à fogueira; no Céu descobre que para Deus o heresiarca e ele formam uma única pessoa) Marco Aurélio atesta a analogia, não a identidade, dos muitos destinos individuais. Afirma que qualquer lapso - um século, um ano, uma única noite, talvez o inapreensível presente - contém integralmente a história. Em sua forma extrema essa conjetura é fácil de ser refutada: um sabor difere de outro sabor, dez minutos de dor física não equivalem a dez minutos de álgebra. Aplicada a grandes períodos, aos setenta anos de idade que o Livro dos Salmos nos atribui, a conjetura é verossímil ou tolerável Limita-se a declarar que o número de percepções, de emoções, de pensamentos, de vicissitudes humanas, é limitado, e que antes da morte o esgotaremos. Repete Marco Aurélio: "Quem viu o presente viu todas as coisas: as que aconteceram no passado insondável, as que acontecerão no futuro" (Reflexões, livro VI, 37).Em épocas de apogeu, a conjetura de que a existência do homem é uma quantidade constante, invariável, pode entristecer ou irritar: em tempos de decadência (como estes), é a promessa de que nenhuma afronta, nenhuma calamidade, nenhum ditador nos poderá empobrecer.437OS TRADUTORES DAS M1L E UMA NOfTFSo úni~ lha~ ~ ~ ~~ES DAS MIL E UMA NOITES1. O CAPITÃO BURTON

Em Trieste, no ano de 1872, num palácio com estátuasúmidas e instalações sanitárias deficientes, um cavalheiro como rosto marcado por uma cicatriz africana - o capitão RichardFrancis Burton, cônsul inglês - começou uma famosa traduçãodo Quitab Alif Laila Ua Laila, livro que também os rumeschamam das Mil e Uma Noites. Um dos objetivos secretos deseu trabalho era aniquilar outro cavalheiro (também de barba tenebrosa de mouro, também de pele curtida) que estava compilando na Inglaterra um vasto dicionário e que morreu muito antes de ser aniquilado por Burton. Esse era Eduardo Lane, o orientalista, autor de uma versão excessivamente escrupulosa das Mil e Uma Noites, que havia suplantado outra de Galland. Lane traduziu contra Galland, Burton contra Lane; para entender Burton é preciso entender essa dinastia inimiga.Começo pelo fundador. Sabe-se que Jean Antoine Galland era um arabista francês que trouxe de Istambul uma paciente coleção de moedas, uma monografia sobre a difusão

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do café, um exemplar arábico das Noites e uma maronita suplementar, de memória não menos inspirada que a de Scherazade. A esse obscuro assessor - de cujo nome não quero esquecer, e dizem que é Hanna - devemos certos contos fundamentais, que o original desconhece: o de Aladim, o dos Quarenta Ladrões, o do príncipe Ahmed e a fada Peri Banu, o de Abulhasan, o adormecido acordado, o da aventura noturna de Harun Al Rashid, o das duas irmãs invejosas da irmã caçula. Basta a simples enumeração desses nomes para deixar claro que Galland estabelece um cânone, incorporando histórias que o tempo tornará indispensáveis e que os tradutores vindouros - seus inimigos - não se atreveriam a omitir.Há outro fato inegável. Os elogios mais oportunos e famosos das Mil e Uma Noites - o de Coleridge, o de Thomas de Quincey, o de Stendhal, o de Tennyson, o de Edgar Allan Poe, o de Newman - são de leitores da tradução de Galland. Duzentos anos e dez traduções melhores se passaram, mas o homem da Europa ou das Américas que pensa nas Mil e Uma Noites pensa invariavelmente nessa primeira tradução. O epíteto [em espanhol] milyunanochesco (milyunanochero padece de crioulismo, milyunanocturno de divergência) nada tem a ver com as eruditas obscenidades de Burton ou de Mardrus, e tudo tem a ver com as preciosidades e as magias de Antoine Galland.Palavra por palavra, a versão de Galland é a mais mal escrita de todas, a mais mentirosa e mais fraca, mas foi a mais bem lida. Quem nela se embebeu conheceu a felicidade e o assombro. Seu orientalismo, que hoje nos parece frugal, deslumbrou a todos quantos aspiravam rapé e tramavam uma tragédia em cinco atos. Doze volumes primorosos apareceram de 17O7 a 1717, doze volumes lidos por incontáveis leitores e que passaram a vários idiomas, inclusive o hindustani e o árabe. Nós, meros leitores anacrônicos do século XX, percebemos neles o gosto adocidado do século XVIII e não o soberbo aroma oriental, que há duzentos anos determinou sua inovação e sua glória. Ninguém tem a culpa do desencontro e, menos que ninguém, Galland. Às vezes, as mudanças da língua o prejudicam. No prefácio de uma tradução alemã das Mil e Uma Noites, o doutor Weil deixou patente que os mercadores do imperdoável Galland se munem de uma "maleta com tâmaras", cada vez que a história os obriga a cruzar o deserto. Poderíamos argumentar que, por volta de 171O, bastava mencionar as tâmaras para apagar a imagem da maleta, mas é desnecessária valise, então, era uma subclasse de alforje.Há outras agressões. Em certo panegírico desastrado que sobrevive nos Morceaux Choisis, de 1921, André Gide vitupera contra as licenciosidades de Antoine Galland, para melhor apagar (com candura totalmente superior a sua reputação) a literalidade de Mardrus, tão fin-de-siècle quanto aquele é século XVIII, e muito ma,~.infiel.- As restrições de Galland são mundanas - inspiradas pelo decoro, não pela moral. Transcrevo umas linhas da terceira438439HISTÓRIA DA ETERNIDADEpágina de suas Noites: "71 alla droit à I"appartement de cetteprineesse, qni, ne s"attendant pas à le revoir, avait reçu dons son lit uneles dernières officiers de sa maison". Burton concretiza esse nebuloso "of ficier": "um negro cozinheiro, rançoso de gordura decozinha e de fuligem". Ambos deformam, de maneiras diferentes: o original é menos cerimonioso que Galland e menosensebado que Burton. (Efeitos do decoro: na prosa comedidadaquele, a circunstância reeevoir dans son lit torna-se brutal.)Noventa anos após a morte de Antoine Galland, nasce um tradutor diferente das Noites: Eduardo Lane. Seus biógrafos não cessam de repetir que é filho do doutor Theophilus

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Lane, prebendado de Hereford. Esse dado genésico (e a terrível Forma que evoca) talvez seja suficiente. Cinco diligentes anos viveu o arabizado Lane no Cairo, "quase exclusivamente entre muçulmanos, falando e escutando sua língua, conformando-se a seus costumes com o mais perfeito cuidado e recebido por todos eles como igual". Contudo, nem as altas noites egípcias, nem o opulento e negro café com semente de cardamomo, nem a freqüente discussão literária com os doutores da lei, nem o venerado turbante de musselina, nem o comer com os dedos, fizeram-no esquecer seu pudor britânico, a delicada solidão central dos senhores do mundo. Daí que sua versão eruditíssima das Noites seja (ou pareça ser) uma simples enciclopédia da evasão. O original não é declaradamente obsceno; Galland corrige as ocasionais baixezas, por considerá-las de mau gosto. Lane as procura com atenção e as persegue como um inquisidor. Sua probidade não pactua com o silêncio: prefere um alarmado coro de notas em letra miúda, que murmura coisas como estas: "Passo por alto um episódio dos mais repreensíveis", "Suprimo uma explicação repugnante", "Aqui uma linha grosseira demais para ser traduzida", "Suprimo necessariamente outro episódio", "Daqui por diante dou curso às omissões", "Aqui a história do escravo Bujait, totalmente incapaz de ser traduzida". A mutilação não exclui a morte: há contos rejeitados na íntegra, "porque não podem ser purificados sem destruição". Esse repúdio responsável e total não me parece ilógico: o que condeno é o subterfúgio puritano. Lane é um virtuoso do subterfúgio, um precursor incontestável dos pudores mais estranhos de Hollywood. Meus apontamentosOS TRADUTORES DAS MIL E UMA NOITE"Sme fornecem um par de exemplos. Na noite 391, um pescador mostra um peixe ao rei dos reis, e este quer saber se é macho ou fêmea e lhe dizem que é hermafrodita. Lane consegue amenizar esse colóquio improcedente, traduzindo que o rei perguntou de que espécie é o animal e que o astuto pescador lhe responde que é de uma espécie mista. Na noite 217, fala-se de um rei com duas mulheres, que dormia uma noite com a primeira e a noite seguinte com a segunda, e assim foram felizes. Lane esclarece a felicidade desse monarca, dizendo que tratava suas mulheres "com imparcialidade..." Uma razão é que destinava sua obra "à mesinha da sala", centro da leitura sem sobressaltos e da conversa recatada.A mais oblíqua e passageira alusão carnal é suficiente para que Lane esqueça sua honra e se torne abundante em contorções e ocultações. Não há outra falta nele. Sem o contato peculiar dessa tentação, Lane é de uma veracidade admirável. Faltam-lhe propósitos, o que é positivamente uma vantagem. Não se propõe destacar o colorido bárbaro das Noites como o capitão Burton, nem tampouco esquecê-lo e atenuá-lo, como Galland. Este domesticava seus árabes, para que não destoassem irremediavelmente em Paris; Lane é minuciosamente agareno. Galland ignorava toda precisão literal; Lane justifica sua interpretação de cada palavra duvidosa. Galland invocava um manuscrito invisível e um maronita morto; Lane fornece a edição e a página. Galland não se preocupava com anotações; Lane acumula um caos de esclarecimentos que, organizados, integram um volume independente. Diferir: tal é a norma imposta a ele por seu precursor. Lane cumprirá essa norma: bastará que não abrevie o original.A bela discussão de Newman e Arnold (1861-1862), mais memorável que seus dois interlocutores, documentou extensamente as duas formas gerais de traduzir. Newman defendeu nela o modo literal, a retenção de todas as singularidades verbais; Arnold, a severa eliminação dos detalhes que distraem ou fazem com que se pare. Esta conduta pode proporcionar os prazeres da uniformidade e da gravidade; aquela, dos contínuos e pequenos assombros. Ambas são menos irsYpórtantes que o tradutor e que seus hábitos literários. Traduzir o espírito é uma intenção tão enorme e tão44O

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441fi1STÓRIA DA ETERNIDADEOS TRADUTORES DAS M11 E UMA NOITE"Squimérica que bem pode acabar sendo inofensiva; traduzirao pé da letra, uma precisão tão extravagante que não háperigo de que tentem fazê-la. Mais grave que esses infinitospropósitos é a conservação ou supressão de certos pormenores; mais grave due essas preferências e esquecimentos é o movimento sintático. O de Lane é ameno, como convém à distinta mesinha. Em seu vocabulário é comum censurar-se um excesso de palavras latinas, não resgatadas por nenhum artifício de brevidade. É distraído: na página inicial de sua tradução põe o adjetivo romântico, o que é uma espécie de futurismo, numa boca muçulmana e barbada do século XII. Por vezes, a falta de sensibilidade lhe é propícia, pois lhe permite a interpolação de palavras muito simples num parágrafo nobre, com involuntário sucesso. O exemplo mais rico dessa cooperação de palavras heterogêneas deve ser este que transcrevo: "And in this palace is the last information respecting lords collected in the dust". Outro pode ser esta invocação: "Pelo Vivente que não morre nem há de morrer, pelo nome d"Aquele a quem pertencem a glória e a permanência". Na obra de Burton - ocasional precursor do sempre fabuloso Mardrus - eu suspeitaria de fórmulas tão satisfatoriamente orientais; em Lane são tão escassas que devo supô-las involuntárias, portanto genuínas.O escandaloso decoro das versões de Galland e de Lane provocou um tipo de fraude que é tradicional repetir. Eu mesmo não faltei a essa tradição. Sabe-se muito bem que não foram fiéis ao desventurado que viu a Noite do Poder, às imprecações de um lixeiro do século XIII enganado por um dervixe e aos hábitos de Sodoma. Sabe-se muito bem que desinfetaram as Noites.Os detratores argumentam que esse processo destrói ou danifica a ingenuidade do original. Cometem um erro: o Livro das Mil Noites e Uma Noite não é (moralmente) ingênuo; é uma adaptação de antigas histórias ao gosto aplebeado, ou grosseiro, das classes médias do Cairo. Salvo nos contos exemplares do Sendebar, os impudores das Mil e Uma Noites nada têm a ver com a liberdade do estado paradisíaco. São especulações do editor: seu objetivo é uma gargalhada, seus heróis nunca passam de malandros, de mendigos ou eunucos. As antigas histórias amorosas do repertório, as que narram casosdo Deserto ou das cidades da Arábia, não são obscenas, como não o é nenhuma produção da literatura pré-islâmica. São apaixonadas e tristes e um dos temas que preferem é a morte por amor, essa morte declarada por um parecer dos ulemás não menos santa que a do mártir que testemunha a fé... Se aprovamos esse argumento, os acanhamentos de Galland e de Lane podem nos parecer a recuperação de uma redação primitiva.Sei de outro argumento melhor. Evitar as situações eróticas do original não é uma culpa das que o Senhor não perdoa, quando o fundamental é destacar o ambiente mágico. Propor aos homens um novo Decameron é uma operação comercial como tantas outras: propor-lhes um Ancient Mariner ou um Bateau Ivre já merece outra recompensa.Littmann observa que as Mil e Uma Noites são, antes de tudo, um repertório de maravilhas. A imposição universal desse parecer em todas as - mentes ocidentais é obra de Galland. Que não haja dúvidas quanto a isso. Menos felizes que nós, os árabes dizem ter em pouca conta o original: já conhecem os homens, os costumes, os talismãs, os desertos e os demônios que essas histórias nos revelam.

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Nalgum ponto de sua obra, Rafael Cansinos-Asséns jura poder saudar as estrelas em catorze idiomas clássicos e modernos. Burton sonhava em dezessete idiomas e conta que dominou trinta e cinco: semitas, dravídicos, indo-europeus, etiópicos... Esse caudal não esgotava sua definição: é um traço que concorda com os demais, igualmente excessivos. Ninguém menos sujeito à repetida zombaria de Hudibras contra os doutores capazes de não dizer absolutamente nada em vários idiomas: Burton era um homem que tinha muitíssimo a dizer, e os setenta e dois volumes de sua obra continuam a dizê-lo. Destaco alguns títulos ao acaso: Goa e as Montanhas Azuis, 1851; Sistema de Exercícios de Baioneta, 1853; Relato Pessoal de uma Peregrinação a Medina, 1855; As Regiões Lacustres da África Equatorial, 186O; A Cidade dos Santos, 1861; Viagem aos Planaltos do Brasil, 1869; Sobre um Hermafrodita das Ilhas de Cabo Verde, 1869; Cartas dos Campos de Batalha do Paraguai, 187O; Última emule ou um Verão na Islândin, 1875; À Costa do Ouro em Busca de Ouro, 1883; O Livro da Espada (primeiro volume), 1884;442443HISTÓRIA llA ETERNIDADEOS TRADUTORES DAS MIL E UMA NOITESO Jardim Perfumado de Nafzauí - obra póstuma, queimada porLady Burton, assim como uma Coletânea de Epigramas Inspirados por Príapo. O escritor se deixa transparecer nesse catálogo: o capitão inglês que tinha a paixão da geografia e das inumeráveis maneiras que os homens conhecem de ser homem. Não difamarei sua memória comparando-o a Morand, cavalheiro bilíngüe e sedentário que sobe e desce infinitamente nos elevadores de um idêntico hotel internacional e que venera o espetáculo de um baú... Burton, disfarçado em afegão, havia peregrinado às cidades santas da Arábia: sua voz tinha pedido ao Senhor que negasse seus ossos e sua pele, sua dolorosa carne e seu sangue, ao Fogo da Ira e da Justiça; sua boca, ressecada pelo simum, deixara um beijo no aerólito que se adora na Caaba. Essa aventura é célebre: o possível rumor de que um incircunciso, um nazrani, estava profanando o santuário teria determinado sua morte. Antes, em vestes de dervixe, exercera a medicina no Cairo - não sem mesclá-la com a prestidigitação e a magia, para obter a confiança dos enfermos. Por volta de 1858, comandara uma expedição às fontes secretas do Nilo: encargo que o levou a descobrir o lago Tanganica. Nessa missão foi acometido de febre alta; em 1855 os somalis atravessaram-lhe os maxilares com uma lança (Burton vinha de Harrar, cidade vedada aos europeus, no interior da Abissínia). Nove anos depois, experimentou a terrível hospitalidade dos cerimoniosos canibais do Daomé; ao voltar, não faltaram boatos (talvez propalados e certamente fomentados por ele) de que tinha "comido estranhas carnes" - como O onívoro procônsul de Shakespeare." Os judeus, a democracia,1 Refiro-me ao Marco Antônio invocado pela apóstrofe de César:.on the AfpsIt c. reportetl, thou dulst ent strnii~c flesh Which some did áie to look mi...Creio entrever nessas linhas algum reflexo invertido do mito zoológico do basilisco, serpente de olhar mortal. Plínio (Fíistória Nnhual, livro VIII, parágrafo 33) nada nos diz das aptidões póstumas desse ofídio, mas a conjunção das duas idéias de olhar e morrer (vedi N~poli e poi mori) tem que haver influído em Shakespeare.O olhar do basilisco era venenoso; a Divindade, por sua vez, pode matar de puro esplendor-ou pura irradiação de nmna. A visão direta de Deus é intolerável Moisés cobre seu rosto no monte Horeb, yorgi~e tee~e medo de z~cr Deus; Hakim, profeta de Kurassan, usou um véu quádruplo de seda branca para não cegar os homens. Cf. também Isaías 6, 5, e I Reis 19, 13.

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o ministro das Relações Exteriores e o cristianismo eram seus ódios preferidos; Lord Byron e o Islã, suas venerações. Do solitário ofício de escrever fizera algo valoroso e plural: acometia-o desde o amanhecer, num vasto salão multiplicado por onze mesas, cada uma com material para um livro - e uma ou outra com um claro jasmim num vaso com água. Inspirou ilustres amizades e amores: das primeiras, basta-me mencionar a de Swinburne, que lhe dedicou a segunda série de Poems and Ballads - in recognition of a friendship which I must alu~ays count among the highest honours of my life - e que lamentou sua morte em muitas estrofes. Homem de palavras e façanhas, bem pôde Burton assumir o alarde do Divã de Almotanabi:

O cavalo, o deserto, a noite me conhecem, D hóspede e a espada, o papel e a pena.

Observa-se-á que, do antropófago amateur ao poliglota adormecido, não evitei as características de Richard Burton que podemos chamar legendárias, sem que nosso entusiasmo diminua. A razão é clara: o Burton da lenda de Burton é o tradutor das Noites. Suspeitei, certa feita, de que a diferença radical entre a poesia e a prosa está na expectativa muito diversa de quem as lê: a primeira pressupõe uma intensidade que não se tolera na última. Algo parecido acontece com a obra de Burton: tem um prestígio prévio com o qual nenhum arabista conseguiu competir. Possui os atrativos do proibido. Trata-se de uma única edição, limitada a mil exemplares para mil subscritores do Burton Club, e que há compromisso judicial de não repetir. (A reedição de Leonard C. Smithers "omite determinadas passagens de péssimo gosto, cuja eliminação não será lamentada por ninguém"; a seleção representativa de Bennet Cerf - que finge ser integral - procede daquele texto purificado.) Arrisco a hipérbole: percorrer as Mil e Lima Noites na tradução de Sir Richard não é menos incrível que percorrê-las "vertidas literalmente do árabe e comentadas" por Simbad o Marujo.Os problemas que Burton resolveu são inumeráveis, mas uma conveniente ficção pode reduzi-los a três: justificar e ampliar súá reputação de arabista; diferir ostensivamente de Lane; interessar cavalheiros britânicos do século XIX pela ver444445HISTÓRIA DA ETERNIDADEsão escrita de contos muçulmanos e orais do século XIII. O primeiro desses propósitos talvez fosse incompatível com o terceiro; o segundo induziu-o a uma falta grave, que passo a expor. Centenas de dísticos e canções figuram nas Noites; Lane (incapaz de mentir, salvo no que se refere à carne) os havia traduzido com precisão, numa prosa fácil. Burton era poeta: em 188O tinha mandado imprimir The Kasidah, rapsódia evolucionista que Lady Burton sempre julgou muito superior às Rubaiyat de FitzGerald... A solução "prosaica" do rival não deixou de indigná-lo, e optou por uma tradução em versos ingleses - procedimento de antemão infeliz, já que transgredia sua própria norma de literalidade total. Além do mais, o ouvido foi quase tão ferido quanto a lógica. Não é impossível que este quarteto seja dos melhores que armou:

A night whose stars refused to run their course, A night of those whieh never seem outworn: Like Resurrection-day, of longsome length To him that watehed and waited for the morna

É muito possível que o pior não seja este:

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A sun on wand in knoll of sand she showed, Clad in her cramoisy-hued chemisette: Of her lips" honey-dew she gave me drink And with her rosy cheeks quencht fite she set.

Mencionei a diferença fundamental entre o primitivo auditório das narrativas e o clube de subscritores de Burton. Aqueles eram pícaros, noveleiros, analfabetos, infinitamente desconfiados do presente e crédulos na maravilha remota; estes eram senhores do West End, capacitados para o desdém e a erudição e não para o espanto ou a gargalhada. Aqueles apreciavam que a baleia morresse ao escutar o grito do homem; estes, que houvesse homens que dessem crédito a2 Também é memorável esta variante dos temas de Abulbeca de Ronda e Jorge Manrique:Where is the u~ight zoho peopled in the pnst Hind-land ~nd Sütd; nnd there the tyrant played?...Os TizAOUTOeES oAS Mis e UMa NoiTesuma capacidade mortal desse grito. Os prodígios do texto - sem dúvida suficientes no Cordofão ou em Bulak, onde os propunham como verdades - corriam o risco de parecer muito pobres na Inglaterra. (Ninguém exige da verdade que seja verossímil ou instantaneamente engenhosa: poucos leitores da Vida e Correspondência de Karl Marx reclamam indignados a simetria das Contrerimes de Toulet ou a severa precisão de um acróstico) Para que os subscritores não fugissem, Burton foi abundante em notas explicativas "dos costumes dos homens islâmicos". Cabe dizer que Lane já havia ocupado antes o terreno. Indumentária, regime cotidiano, práticas religiosas, arquitetura, referências históricas ou do Alcorão, jogos, artes, mitologia - isso já fora elucidado nos três volumes do incômodo precursor. Faltava, previsivelmente, a erótica. Burton (cujo primeiro ensaio estilístico fora um relato demasiado pessoal sobre os prostíbulos de Bengala) era suficientemente atrevido para fazer tal acréscimo. Das deleitações morosas em que se deteve, é bom exemplo certa nota arbitrária do sétimo tomo, graciosamente intitulada no índice capotes mélancoliques. A Edínburgh Review acusou-o de escrever para o esgoto; a Enciclopédia Britânica resolveu que uma transcrição integral seria inadmissível e que a de Eduardo Lane "continuava insuperada para um uso realmente sério . Não nos indignemos demais com essa obscura teoria da superioridade científica e documental do expurgo: Burton cortejava essas cóleras. Além disso, as variantes muito pouco variadas do amor físico não esgotam a atenção de seu comentário. Este é enciclopédico e covarde, e seu interesse está na razão inversa de sua necessidade. Assim o volume 6 (que tenho à vista) inclui umas trezentas notas, das quais cabe destacar as seguintes: uma condenação das prisões e uma defesa dos castigos corporais e das multas; alguns exemplos do respeito islâmico pelo pão; uma lenda sobre a capilaridade das pernas da rainha Belkis; uma declaração das quatro cores emblemáticas da morte; uma teoria e prática oriental da ingratidão; a informação de que a pelagem malhada é a que os anjos preferem, assim como os gênios preferem o douradilho; um resumo da mitologia da secreta Noite do Poder ou Noite das Noites; uma denúncia da superfi~lá7idade de Andrew Lang; uma diatribe contra o regime democrático; um levantamento dos nomes de Maomé,446447HISTÓRIA DA ETERNfDADEna Terra, no Fogo e no Jardim; uma menção do povo amalecita, longevo e de grande estatura; uma informação sobre as partes pudendas do muçulmano, que no homem abarcam do umbigo ao joelho e na mulher dos pés à cabeça; uma ponderação sobre o assado do gaúcho argentino; um aviso dos males da "equitação" quando também a cavalgadura

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é humana; um grandioso projeto de cruzar macacos cinocéfalos com mulheres e obter assim uma sub-raça de bons proletários. Aos cinqüenta anos, o homem já acumulou ternuras, ironias, obscenidades e incontáveis histórias; Burton as descarregou em suas notas.Permanece o problema fundamental. Como divertir os cavalheiros do século XIX com os romances em fascículos do século XIII? É sobejamente conhecida a pobreza estilística das Noites. Burton fala, certa ocasião, do "tom seco e comercial" dos prosadores árabes, em contraposição ao excesso retórico dos persas; Littmann, o novíssimo tradutor, acusa-se de ter intercalado vocábulos como perguntou, pediu, respondeu, em cinco mil páginas que ignoram outra fórmula além de disse - invocada invariavelmente. Burton esbanja amorosamente as substituições dessa ordem. Seu vocabulário não é menos díspar que suas notas. O arcaísmo convive com a gíria, o jargão carcerário ou marinheiro com o termo técnico. Não se envergonha da gloriosa hibridação do inglês: nem o repertório escandinavo de Morris nem o latino de Johnson têm seu beneplácito, mas sim o contato e a repercussão dos dois. O neologismo e os estrangeirismos são abundantes: castrato, inconséquenee, hauteur, in gloria, bagnio, langue fourrée, pundonor, vendetta, Wazir. Cada uma dessas palavras deve ser adequada, mas sua intercalação importa um falseamento. Um bom falseamento, uma vez que essas travessuras verbais - e outras sintáticas - distraem o curso às vezes opressivo das Noites. Burton as comete: no início traduz gravemente Sulayman, Son of David (on the twain be peace!); depois - quando essa majestade nos é familiar - rebaixa-o a Solomon Davidson. Faz de um rei que para os demais tradutores é "rei de Samarcanda, na Pérsia", a King of Samarcand in Barbarian-landa de um comprador que para os demais é "colérico", a man of wrath. Isto não é tudo. Burton reescreve integralmente - com acréscimo de pormenores circunstanciais e traços fisiológicos - a448OS TRADUTORES DAS MfL. E UMA NOITESprimeira e a última história. Inaugura assim, por volta de 1885, um procedimento cuja perfeição (ou cuja reductio ad absurdum) consideraremos depois em Mardrus. Sempre um inglês é mais intemporal que um francês: o estilo heterogêneo de Burton tornou-se menos antiquado que o de Mardrus, de data notória.

2. O DOUTOR MARDRUS

Destino paradoxal o de Mardrus. A ele atribuímos a virtude moral de ser o tradutor mais fiel das Mil e Uma Noites, livro de admirável lascívia, antes escamoteada aos compradores pela boa educação de Galland ou pelos melindres puritanos de Lane. Venera-se sua genial literalidade, bem demonstrada pelo inapelável subtítulo Versão Literal e Completa do Texto Arabe e pela inspiração de escrever Livro das Mil Noites e Uma Noite. A história desse nome é edificante; podemos recordá-la antes de revisar Mardrus.As Pradarias de Ouro e Minas de Pedras Preciosas do Masudi descrevem uma coletânea intitulada Hezar Afsane, palavras persas cujo verdadeiro significado é Mil Aventuras, mas que o povo chama de Mil Noites. Outro documento do século X, o Fihrist, conta a primeira história da série: o juramento desolado do rei que a cada noite desposa uma virgem, que manda decapitar ao amanhecer, e a resolução de Scherazade, distraindo-o com histórias maravilhosas, até que sobre eles tenham passado mil noites e ela lhe mostra seu filho. Dizem que essa ficção - tão superior às vindouras e análogas da piedosa cavalgada de Chaucer ou da epidemia de Giovanni Boccaccio - é

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posterior ao título e que foi tramada com o objetivo de justificá-lo... Seja como for, a primitiva cifra de 1.OOO logo subiu a 1.OO1. Como surgiu essa noite adicional que já é imprescindível, essa maquette da zombaria de Quevedo - e depois de Voltaire - contra Pico de la Mirándola: Livro de Todas as Coisas e Muitas Outras Mais? Littmann sugere uma contaminação da frase turca bin bir, cujo sentido literal é mil e um e é usada como muitos. Lane, no começo de 184O, acrescentou uma razão mais bela: o°émor mágico pelos números pares. O certo é que as aventuras do título não pararam aí. Antoine Galland, desde449~IISTÓRIA DA ETERNIDADE17O4, eliminou a repetição do original e traduziu Mil e Uma Noites - nome hoje conhecido em todas as nações da Europa, salvo a Inglaterra, que prefere o de Noites Árabes. Em 1839, o editor da publicação de Calcutá, W. H. Macnaghten, teve o singular escrúpulo de traduzir Quitab Alif Laila Ua Laila por Livro das Mil Noites e Uma Noite. Esse renovar por soletração não passou despercebido. John Payne, a partir de 1882, começou a publicar seu Book of the Thousand Nights and One Night; o capitão Burton, desde 1885, seu Book of the Thousand Nights and a Night; J. C. Mardrus, desde 1899, seu Livre des Mille Nuits et Une Nuit.Procuro a passagem que me fez duvidar definitivamente da veracidade deste último. Pertence à história doutrinal da Cidade de Latão, que abrange em todas as versões o fim da noite 566 e parte da 578, mas que o doutor Mardrus remeteu (seu Anjo da Guarda saberá por quê) às noites 338-346. Não insisto; essa reforma inconcebível de um calendário ideal não deve causar-nos demasiada estranheza. Conta Scherazade-Mardrus: "A água seguia quatro canais traçados no piso da sala com desvios encantadores, e cada canal tinha um leito de cor especial: o primeiro canal tinha um leito de pórfiro rosado; o segundo, de topázios; o terceiro, de esmeraldas; o quarto, de turquesas; de modo que a água tomava a cor do leito e, ferida pela branda luz que as sedas filtravam do alto, projetava sobre os objetos ambientes e os muros de mármore uma suavidade de paisagem marinhá".Como ensaio de prosa visual, à maneira do Retrato de Dorian Gray, aceito (e até respeito) essa descrição; como versão "literal e completa" de uma passagem composta no século XIII, repito que me alarma infinitamente. As razões são múltiplas. Uma Scherazade sem Mardrus descreve por enumeração das partes, não por reações mútuas, e não cita detalhes circunstanciais como o da água que toma a cor de seu leito, e não define a qualidade da luz filtrada pela seda, e não alude ao Salão dos Aquarelistas na imagem final. Outra pequena rachadura: desvios encantadores não é árabe, é notoriamente francês. Ignoro se as razões anteriores podem satisfazer; a mim não bastaram e tive o indolente prazer de consultar as três versões alemãs de Weil, de Henning e de Littmann, e as duas inglesas de Lane e de Sir Richard Burton. Nelas comprovei que o original das dez linhas de Mardrus era este: "As quatro valas desembocavam num tanque, que era de mármore de várias cores".OS TRADUTORES DAS MIL F UMA NOITESAs interpolações de Mardrus não são uniformes. Às vezes são descaradamente anacrônicas - como se de repente pusesse em discussão a retirada da missão Marchand. Por exemplo: "Descortinavam uma cidade de sonho... Até onde alcançava a visão fixa nos horizontes afogados na noite, cúpulas de palácios, terraços de casas, serenos jardins se escalonavam naquele recinto de bronze, e canais iluminados pelo astro passeavam em mil circuitos claros à sombra das montanhas, enquanto lá ao fundo um mar de metal encerrava em seu frio seio os fogos do céu refletido". Ou esta, cujo galicismo não é menos notório: "Um tapete magnífico, de cores gloriosas, de destra

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lã, abria suas flores sem aroma num prado sem seiva, e vivia toda a vida artificial de suas florestas cheias de pássaros e animais, surpreendidos em sua exata beleza natural e suas linhas precisas". (Aí, rezam as edições árabes: "Dos lados havia tapetes, com inúmeros pássaros e feras, recamados em ouro vermelho e em prata branca, mas com os olhos de pérolas e rubis. Quem os viu não deixou de maravilhar-se".)Mardrus nunca deixa de se maravilhar com a pobreza de "cor oriental" das Mil e Urna Noites. Com persistência não indigna de Cecil B. de Mille, esbanja vizires, beijos, palmeiras e luas. Ocorre-lhe ler na noite 57O: "Chegaram a uma coluna de pedra negra, na qual um homem estava enterrado até as axilas. Tinha duas enormes asas e quatro braços: dois dos quais eram como os braços dos filhos de Adão e dois como as patas dos leões, com as unhas de ferro. O cabelo em sua cabeça era semelhante à cauda dos cavalos e os olhos como brasas, e tinha na testa um terceiro olho que era como Oolho do lincé". Traduz ricamente: "Um entardecer, a caravana chegou diante de uma coluna de pedra negra, à qual estava acorrentado um ser estranho do qual se via sobressair apenas metade do corpo, pois que a outra metade estava enterrada no chão. Aquele busto que surgia da terra parecia alguma criatura monstruosa, encravada ali pela força das potências infernais. Era negro e do tamanho do tronco de uma velha palmeira abatida, despojada de suas palmas. Tinha duas enormes asas negras e quatro mãos, das quais duas, de longas unhas, eram semelhantes às patas dos leões. Uma eriçada cabeleira de crinas ásperas como cauda de onagro se movia selvagemente sobre o horrendo crânio. Sob os arcos orbitais ~ramejavam duas pupilas vermelhas, enquanto a testa,45O451HISTÓRIA DA ETERNIDADEOs TRADUTORES uns Mu. e Utia,a Noi"rFscom dois cornos, era perfurada por um único olho, que se abria, imóvel e fixo, lançando clarões verdes como Oolhar dos tigres e das panteras".Escreve mais adiante: "O bronze das muralhas, as pedrarias acesas das cúpulas, os terraços brancos, os canais e todo o mar, assim como as sombras que se projetavam para o Ocidente, uniam-se sob a brisa noturna e a lua mágica". Mágica, para um homem do século XIII, deve ter sido uma qualificação muito precisa, não o simples epíteto mundano do galante doutor... Suspeito que o árabe não seja capaz de uma versão "literal e completa" do parágrafo de Mardrus, assim como tampouco o é o latim, ou o castelhano de Miguel de Cervantes.O livro das Mil e Uma Noites é farto em dois procedimentos: um, puramente formal, a prosa rimada; outro; as prédicas morais. O primeiro, conservado por Burton e por Littmann, corresponde à exuberância do narrador: pessoas agraciadas, palácios, jardins, operações mágicas, menções à Divindade, poresdo-sol, batalhas, auroras, princípios e finais de contos. Mardrus, talvez misericordiosamente, o omite. O segundo exige duas faculdades: a de combinar com majestade palavras abstratas e a de propor sem rubores um lugar-comum. Das duas carece Mardrus. Daquele versículo que Lane traduziu memoravelmente: "And in this palace is the last information respeeting lords collected in the dust", nosso doutor extrai apenas: "Passaram, todos aqueles! Tiveram apenas tempo de repousar à sombra de minhas torres". A confissão do anjo: "Estou aprisionado pelo Poder, confinado pelo Esplendor e castigado enquanto assim o ordene o Eterno, a quem pertencem a Força e a Glória", é para o leitor de Mardrus: "Aqui estou acorrentado pela Força Invisível até a extinção dos séculos".Tampouco a feitiçaria tem em Mardrus um colaborador de boa vontade. É incapaz de mencionar o sobrenatural sem um sorriso. Finge traduzir, por exemplo: "Um dia em

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que o califa Abdelmelik, ouvindo falar de certas vasilhas de cobre antigo, cujo conteúdo era uma estranha fumaça negra de forma diabólica, muito se maravilhava, e parecia pôr em dúvida a realidade de fatos tão notórios, precisou intervir o viajante Talib ben-Sahl". Nesse parágrafo (que pertence, como os demais que aleguei, à História da Cidade de Latão,que é de imponente Bronze em Mardrus), o candor voluntário de tão notórios e a dúvida bastante inverossímil do califa Abdelmelik são dois obséquios pessoais do tradutor.Continuamente, Mardrus quer completar o trabalho que os lânguidos árabes anônimos descuidaram. Acrescenta paisagens art nouveau, fortes obscenidades, breves interlúdios cômicos, fatos circunstanciais, simetrias, muito orientalismo visual. Um exemplo entre tantos: na noite 573, o guali Mussa Ben Nuseir ordena a seus ferreiros e carpinteiros a construção de uma escada muito forte de madeira e ferro. Mardrus (em sua noite 344) reforma esse episódio insípido, acrescentando que os homens do acampamento apanharam galhos secos, apararam-nos com os alfanjes e os facões e amarraram-nos com os turbantes, os cinturões, as cordas dos camelos, as cilhas e os arreios de couro, até construir uma escada muito alta que encostaram à parede, firmando-a com pedras por todos os lados... De modo geral, cabe dizer que Mardrus não traduz as palavras e sim as representações do livro: liberdade negada aos tradutores, mas tolerada nos desenhistas - a quem permitem acrescentar traços desse tipo... Ignoro se essas risonhas distrações são as que infundem à obra esse ar tão feliz, esse ar de patranha pessoal, não de trabalho de se mexer em dicionários. Consta-me apenas que a "tradução" de Mardrus é a mais legível de todas - depois da incomparável de Burton, que tampouco é fiel. (Nesta, a falsificação é de outra ordem. Está no excessivo emprego de um inglês tosco, carregado de arcaísmos e barbarismos.)

Deploraria (não por Mardrus, mas por mim) que nas comprovações anteriores se entendesse um propósito policial. Mardrus é o único arabista de cuja glória se encarregaram os literatos, com êxito tão fora do comum que os próprios arabistas sabem quem é. André Gide foi dos primeiros a elogiá-lo, em agosto de 1899; não penso que Cancela e Capdevilla serão os últimos. Meu objetivo não é derrubar essa admiração, é documentá-la. Enaltecer a fidelidade de Mardrus é omitir a alma de Mardrus, é não aludir sequer a Mardrus. Sua infidelidade, sua infidelidade criadora e feliz, é o que d importar para nós.452453HISTÓRIA DA ETERNIDADEOS TRADUTORES DAS MIL E UMA NOIT6S3. ENNO LITTMANN

Pátria de uma famosa edição árabe das Mil e Uma Noites, a Alemanha pode-se (vã) gloriar de quatro versões: a do "bibliotecário embora israelita" Gustavo Weil - a adversativa está nas páginas catalãs de certa Enciclopédia -; a de Max Henning, tradutor do Alcorão; a do homem de letras Félix Paul Greve; a de Enno Littmann, decifrador das inscrições etiópicas da fortaleza de Axum. Os quatro volumes da primeira (1839-1842) são os mais agradáveis, já que seu autor - desterrado da África e da Ásia pela disenteria - cuida de manter ou de suprir o estilo oriental. Suas interpolações merecem todo meu respeito. Faz com que alguns intrusos numa reunião digam: "Não queremos parecer a manhã, que dispersa as festas". De um generoso rei assegura: "O fogo que arde para seus hóspedes traz à memória o Inferno, e o orvalho de sua

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mão benigna é como o Dilúvio"; de outro nos diz que suas mãos "eram tão liberais como o mar". Esses bons apócrifos não são indignos de Burton ou Mardrus, e o tradutor os destinou às partes em verso - em que sua bela animação pode ser um Ersatz ou sucedâneo das rimas originais. No que se refere à prosa, entendo que a traduziu tal qual, com certas omissões justificadas, equidistantes da hipocrisia e do impudor. Burton elogiou seu trabalho - "tão fiel quanto pode ser uma tradução de índole popular". Não era em vão judeu o doutor Weil "embora bibliotecário"; creio perceber em sua linguagem certo sabor das Escrituras.A segunda versão (1895-1897) prescinde dos encantos da precisão, mas também dos do estilo. Falo da feita por Henning, arabista de Leipzig, para a Universalbibliothek de Philipp Reclam. Trata-se de uma versão expurgada, embora a editora diga o contrário. O estilo é insípido, repetitivo. Sua virtude mais indiscutível deve ser a extensão. As edições de Bulak e de Breslau estão representadas, assim como os manuscritos de Zotenberg e das Noites Suplementares de Burton. Henning tradutor de Sir Richard é literalmente superior a Henning tradutor do árabe, o que é simples confirmação da primazia de Sir Richard sobre os árabes. No prefácio e na conclusão da obra são abundantes os elogios a Burton - quase desautorizados pela informação de que este empregou "a linguagem de Chaucer, equivalente ao árabe medieval". A indicação de Chaucer como uma das fontes dovocabulário de Burton teria sido mais razoável. (Outra é o tabelais de Sir Thomas Urquhart.)A terceira versão, a de Greve, provém da inglesa de Burton e a repete, com exclusão das notas enciclopédicas. A InselVerlag publicou-a antes da guerra.A quarta (1923-1928) vem a suplantar a anterior. Abrange seis volumes, como aquela, e é assinada por Enno Littmann: decifrador dos monumentos de Axum, enumerador dos 283 manuscritos etiópicos que há em Jerusalém, colaborador da Zeitschrift für Assyriologie. Sem as demoras complacentes de Burton, sua tradução é de uma franqueza total. Não o retraem as obscenidades mais indizíveis: verte-as a seu tranqüilo alemão, rara vez ao latim. Não omite uma palavra, nem sequer as que registram - mil vezes - a passagem de cada noite à seguinte. Menospreza ou rejeita a cor local; foi preciso uma indicação dos editores para que conservasse o nome de Alá e não o substituísse por Deus. A semelhança de Burton e de John Payne, traduz em verso ocidental o verso árabe. Anota ingenuamente que, se depois da advertência ritual "Fulano pronunciou estes versos" viesse um parágrafo de prosa alemã, seus leitores ficariam desconcertados. Fornece as notas necessárias à boa compreensão do texto: umas 2O por volume, todas lacônicas. E sempre lúcido, legível, medíocre. Segue (dizem) a própria respiração do árabe. Se não há erro na Enciclopédia Britânica, sua tradução é a melhor de quantas circulam. Ouço dizer que os arabistas estão de acordo; nada importa que um simples literato - e esse, da República simplesmente Argentina - prefira discordar.Minha razão é esta: as versões de Burton e de Mardrus, e até mesmo a de Galland, só podem ser concebidas depois de uma literatura. Sejam quais forem seus vícios ou seus méritos, essas obras características pressupõem um rico processo anterior. De certo modo, o quase inesgotável processo inglês está simbolizado em Burton - a dura obscenidade de John Donne, o gigantesco vocabulário de Shakespeare e de Cyril Tourneur, a tendência ao arcaico de Swinburne, a crassa erudição dos tratadistas dos 16OO, a energia e a vaguidade, o amor pelas tempestades e pela magia. Nos alegres parágrafos de Mardrus convivem Salammbô e La Fontaine, o Manequim de Vime e o ballet russo. Em Littmann, incapaz como Washington de mentir, não há senão a probidade da Alemanha. É tão pouco, louquíssimo.454

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455HISTÓRIA DA ETERNIDADEAs relações das Noites com a Alemanha deviam ter produzido algo mais.Seja no terreno filosófico, seja no dos romances, a Alemanha tem uma literatura fantástica - ou melhor, só tem uma literatura fantástica. Há maravilhas nas Noites que gostaria de ver repensadas em alemão. Ao formular esse desejo, penso nos prodígios deliberados do repertório - os escravos todo-poderosos de uma lâmpada ou de um anel, a rainha Lab, que transforma os muçulmanos em pássaros, o barqueiro de cobre com talismãs e fórmulas no peito - e naqueles mais gerais, que procedem de sua índole coletiva, da necessidade de completar mil e uma partes. Esgotadas as magias, os copistas precisaram recorrer a notícias históricas ou piedosas, cuja inclusão parece afiançar a boa-fé do restante. Convivem num mesmo tom o rubi que sobe ao céu e a primeira descrição de Sumatra, as características da corte dos abássidas e os anjos de prata cujo alimento é a justificativa do Senhor. Essa mistura torna-se poética; digo o mesmo de certas repetições. Não é assombroso que na noite 6O2 o rei Shahriar ouça da boca da rainha sua própria história? À imitação da moldura geral, um conto costuma conter outros contos, de não menor extensão: cenas dentro da cena, como na tragédia de Hamlet, o sonho elevado à potência. Um árduo e claro verso de Tennyson parece defini-los:

Laborious orient ivory, sphere in sphere.

Para maior espanto, essas cabeças adventícias da Hidra podem ser mais concretas que o corpo: Shahriar, fabuloso rei "das ilhas da China e do Industão", recebe notícias de Tárik Benzeyad, governador de Tânger e vencedor da batalha do Guadalete... As ante-salas se confundem com os espelhos, a máscara está por trás do rosto, já ninguém sabe qual é o homem verdadeiro e quais seus ídolos. E nada disso importa; essa desordem é trivial e aceitável como as invenções do devaneio.O acaso brincou de simetrias, de contraste, de digressão. O que não faria um homem, um Kafka, que organizasse e acentuasse esses jogos, que os refizesse segundo a deformação alemã, segundo a Linheimlichkeit da Alemanha?Adrogué, 1935.nsuEntre os livros cc ~iltados, devo enumerar os seguintes:rlt+It~`Les Mille et Un` ~n;s, contes arabes traduits par Galland. Paris, s.d.The Thoneand AP~ n fr,Oe Ni hts, commonl called The Arabian Ni hts" Entertain~"s. A new transl2 Thousv1rom the Arabic, by E. W. Lane. London, 1839.The Book of th+" den "§and Nights and a Night. A plain and literal translation by a-9rd E Burton. LO~is ~(~) s.d. Vols. VI, VII, VIII.The:Arabian Ní4 F B~ complete (sic) and unabridged selection fmm the famous h translation of ~"~s Np`urton. New York, 1932.Le Livre des Mt~~d~uits et Une Nuit. Traduction littérale et complète du texte bem-, par le Dr. J. C. Nas rus. Paris, 19O6.Taus"end und eitje -{tt. Aus dem Arabischen übertragen von Max Henning. p~"~ig, 1897. t+-dGv Die ErzühLungettOE Jak\en Tausendundein Niichten. Naeh dem arabischen Urtext derttaer Ausgabe ~ %re 1839 übertragen von Enno Littmann. Leipzig, 1928.Os T~PD~~uTOaas Dns Mti e UMA NorTes456

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457HISTÓRIA DA~roach to~.nbaim, "é. ucner uncomfortable_.`us do Islã que raras vezes..adutor, e daqueles romances poli. emente superam John H. Watson e aperJ horror da vida humana nas mais irrepreensíveis..~~sões de Brighton". Antes, Mr. Cecil Roberts denunciara no livro de Bahadur "a dúplice, inverossímil tutela de Wilkie Collins e do ilustre persa do século XII, Farid Eddin Attar" - pacífica observação que Guedalla repete sem novidade, mas num dialeto colérico. Essencialmente, ambos os escritores concordam: os dois indicam o mecanismo policial da obra e seu undercurrent místico. Essa hibridação pode levar-nos a imaginar certa semelhança com Chesterton; logo comprovaremos que não há tal coisa.A editio princeps da Aproximação a Almotásim apareceu em Bombaim, em fins de 1932. O papel era quase papel-jornal; a capa anunciava ao comprador que se tratava do primeiro romance policial escrito por um nativo de Bombay City. Em poucos meses, o público esgotou quatro edições de mil exemplares cada. uma. A Bombay Quarterly Review, a Bombay Gazette, a Calcutta Review, a Hindustan Review (de Alahabad) e o Calcutta Englishman dispensaram-lhe seu ditirambo. Então Bahadur publicou uma edição ilustrada que intitulou The Conversation with the Man Called Al-Mu"tasim e que subtitulou magnifica1 Texto traduzido por Carlos Nejar.mente: A Game with Shifting Mirrors (Um jogo com espelhos que se deslocam). Essa edição é a que Victor Gollancz acaba de reproduzir em Londres, com prólogo de Dorothy L. Sayers e com omissão - quiçá misericordiosa - das ilustrações. Tenho-a à vista; não consegui obter a primeira, que pressinto muito superior. Autoriza-me a isso um apêndice, que resume a diferença fundamental entre a versão primitiva de 1932 e a de 1934. Antes de examiná-la - e de discuti-la - convém que eu indique rapidamente o curso geral da obra.Seu protagonista visível - nunca se nos diz seu nome - é estudante de direito em Bombaim. Blasfematoriamente, descrê da fé islâmica de seus pais, mas, ao declinar a décima noite da lua de muharram, encontra-se no centro de um tumulto civil entre muçulmanos e hindus. É noite de tambores e invocações: entre a multidão adversa, os grandes pálios de papel da procissão muçulmana abrem caminho. Um ladrilho hindu voa de um terraço; alguém afunda um punhal num ventre; alguém - muçulmano, hindu? - morre e é pisoteado. Três mil homens lutam: bastão contra revólver, obscenidade contra imprecação. Deus, o Indivisível, contra os Deuses. Atônito, o estudante livre-pensador entra no motim. Com as desesperadas mãos, mata (ou pensa ter matado) um hindu. Atroadora, eqüestre, semi-adormecida, a polícia do Sirkar intervém com chibatadas imparciais. Foge o estudante, quase sob as patas dos cavalos. Procura os arrabaldes últimos. Atravessa duas vias ferroviárias ou duas vezes a mesma via. Escala o muro de um descuidado jardim, com uma torre circular no fundo. Uma chusma de cães cor de lua (a lean and evil mob of mooncoloured hounds) emerge dos rosais negros. Acossado, procura amparo na torre. Sobe por uma escada de ferro - faltam alguns lances - e, no terraço, que tem um poço enegrecido no centro, dá com um homem esquálido, que está urinando vigorosamente, agachado, à luz da lua. Esse homem lhe confia que sua profissão é roubar os dentes de ouro dos cadáveres trajados

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de branco que os partes deixam nessa torre. Diz outras coisas vis e menciona que faz catorze noites que não se purifica com bosta de búfalo. Fala com evidente rancor de certos ladrões de cavalos de Guzerat,"comedores de cães e lagartos, homens enfim tão infames como nós dois". Está clareando: no ar há um vôo pesado deabutres gordos. O estudante, aniquilado, adormece; quando459As relações das Noites com R algo mais. ° Seja no terreno filos~ ¿-, ~°~

tem uma literatura far ~ ~K~y~ ~,

fantástica. Há mara; ~ ~~~o-.,~sadas em alemão. ~ _~ ~ ~,deliberados do rõ ~, ~ ~ =~lâmpada ou - á ~~ ~°~~ °" N_

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notí- ~ ~ ~ `° baz c458HISTÓRIA DA ETERNIDADEdesperta, já com o sol bem alto, desapareceu o ladrão. Desapareceram também um par de charutos de Trichinópoli e umas rupias de prata. Diante das ameaças projetadas pela noite anterior, o estudante resolve perder-se na India. Pensa que se mostrou capaz de matar um idólatra, mas não de saber com segurança se o muçulmano tem mais razão que o idólatra. O nome de Guzerat não o deixa, e o de uma malka-sansi (mulher da casta dos ladrões) de Palampur preferida pelas imprecações e pelo ódio do despojador de cadáveres. Deduz que o rancor de um homem tão minuciosamente vil importa em elogio. Decide - sem maior esperança - procurá-la. Reza e empreende com lentidão firme o longo caminho. Assim acaba o segundo capítulo da obra.Impossível traçar as peripécias dos dezenove restantes.Há uma vertiginosa pululação de dramatis personae - para não falar de uma biografia que parece esgotar os movimentos do espírito humano (desde a infâmia até a especulação matemática) e de uma peregrinação que compreende a vasta geografia do Industão. A história começada em Bombaim continua nas terras baixas de Palampur, demora-se uma tarde e uma noite à porta de pedra de Bikanir, narra a morte de um astrólogo cego numa cloaca de Benares, conspira no palácio multiforme de Katmandu, reza e fornica no fedor pestilencial de Calcutá, no Machua Bazar, contempla nascer os dias no mar, de um cartório de Madras, vê morrer as tardes no mar, de uma sacada no

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estado de Travancor, vacila e mata em Indapur e conclui sua órbita de léguas e de anos na mesma Bombaim, a poucos passos do jardim dos cães cor de lua. O argumento é este: um homem, o estudante incrédulo e fugitivo que conhecemos, cai entre pessoas da classe mais vil e se acomoda a elas, numa espécie de certame de infâmias. Subitamente - como o milagroso espanto de Robinson ante a pegada de um pé humano na areia - percebe certa mitigação dessa infâmia: uma ternura, uma exaltação, um silêncio, num dos homens detestáveis. "Foi como se tivesse cruzado armas no diálogo um interlocutor mais complexo." Sabe que o homem vil que está conversando com ele é incapaz desse momentâneo decoro; daí postula que este refletiu um amigo, ou amigo de um amigo. Repensando o problema, chega a uma convicção misteriosa: "Em algum ponto da terra há um homem de quem procedeDuas Norasessa claridade; em algum ponto da terra está o homem que é igual a essa claridadé". O estudante resolve dedicar sua vida a encontrá-lo.Já o argumento geral se entrevê: a insaciável procura de uma alma através dos tênues reflexos que esta deixou em outras: no princípio, o leve rastro de um sorriso ou de uma palavra; no fim, esplendores diversos e crescentes da razão, da imaginação e do bem. À medida que os homens interrogados conheceram mais de perto Almotásim, sua porção divina é maior, mas se acredita que são simples espelhos. O tecnicismo matemático é aplicável: o pesado romance de Bahadur é uma progressão ascendente, cujo termo final é o pressentido "homem que se chama Almotásim". O imediato antecessor de Almotásim é um livreiro persa de suma cortesia e felicidade; o que precede esse livreiro é um santo... Depois de anos, o estudante chega a uma galeria "em cujo fundo há uma porta e uma esteira barata com muitas contas e atrás um resplendor". O estudante bate palmas uma e duas vezes e pergunta por Almotásim. Uma voz de homem - a incrível voz de Almotásim - convida-o a passar. O estudante abre a cortina e avança. Nesse ponto o romance acaba.Se não me engano, a boa elaboração de tal argumento impõe ao escritor duas obrigações: uma, a variada invenção de traços proféticos; outra, a de que o herói prefigurado por esses traços não seja mera convenção ou fantasma. Bahadur satisfaz a primeira; não sei até que ponto a segunda. Em outras palavras: o inaudito e não contemplado Almotásim deveria deixar-nos a impressão de um caráter real, não de uma desordem de superlativos insípidos. Na versão de 1932, as notas sobrenaturais rareiam: "o homem chamado Almotásim" tem seu bocado de símbolo, mas não carece de traços idiossincrásicos, pessoais. Infelizmente, essa boa conduta literária não persistiu. Na versão de 1934 - a que tenho à vista -, o romance decai em alegoria: Almotásim é emblema de Deus e os pontuais itinerários do herói são, de alguma forma, os progressos da alma na ascensão mística. Há pormenores aflitivos: um judeu negro de Kochin, ao falar de Almotásim, diz que sua pele é escura; um cristão Odescreve sobre uma torre com os braços abertos; um lama vermelho recorda-o sentado "como essa imagem de manteiga de iaque que modelei e adorei no mosteiro de Tashilhunpo". Essas46O461HISTÓRIA DA ETERNIDADEdeclarações querem insinuar um Deus unitário que se acomoda às desigualdades humanas. A meu ver, a idéia é pouco estimulante. Não direi o mesmo desta outra: a conjetura de que também o Todo-Poderoso está à procura de Alguém, e esse Alguém de Alguém superior (ou simplesmente imprescindível e igual) e assim até o Fim - ou melhor, o Sem-Fim - do Tempo, ou em forma cíclica. Almotásim (o nome daquele oitavo abássida, que foi vencedor em oito batalhas, gerou oito varões e oito mulheres, deixou

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oito mil escravos e reinou durante o espaço de oito anos, de oito luas e de oito dias) quer dizer etimologicamente O procurador de amparo. Na versão de 1932, o fato de que Oobjeto da peregrinação fosse um romeiro justificava, de maneira oportuna, a dificuldade de encontrá-1o; na de 1934, dá margem à teologia extravagante que mencionei. Mir Bahadur Ali, vimo-lo, é incapaz de passar por alto na mais comum das tentações da arte: a de ser um gênio.Releio o que se expôs antes e temo não ter destacado suficientemente as virtudes do livro. Há traços muito civilizados: por exemplo, certa disputa do capítulo 19 na qual se pressente que é amigo de Almotásim um contendor que não rebate os sofismas do outro, "para não ter razão de forma triunfal".

Entende-se ser honroso que um livro atual derive de um antigo; já que ninguém gosta (como disse Johnson) de dever algo a seus contemporâneos. Os repetidos mas insignificantes contatos do Ulisses de Joyce com a Odisséia homérica continuam escutando - nunca saberei por quê - a atordoada admiração da crítica; os do romance de Bahadur com o venerado Colóquio dos Pássaros de Farid ud-Din Attar conhecem o não menos misterioso aplauso de Londres, e ainda de Alahabad e Calcutá. Outras derivações não faltam. Certo pesquisador enumerou algumas analogias da primeira cena do romance com a narrativa de Kipling On the City Wall; Bahadur as admite, mas alega que seria muito anormal que duas pinturas da décima noite de muharram não coincidissem... Eliot, com mais justiça, recorda os setenta cantos da incompleta alegoria The Faërie Queene, nos quais não aparece uma única vez a heroína, Gloriana - como salienta uma censura de Richard William Church. Eu, com toda a humildade, assinalo um precursor distante e possível: o cabalista deDUAS NOTASJerusalém Isaac Luria, que no século XVI propagou que a alma de um antepassado ou mestre pode entrar na alma de um infeliz, para confortá-lo ou instruí-lo. Chama-se Ibbür essa variedade da metempsicose.ARTE DE INJURIARUm estudo preciso e fervoroso de outros gêneros literários fez-me crer que a injúria e a zombaria valeriam necessariamente algo mais. O agressor (disse a mim mesmo) sabe que o agredido será ele e que "qualquer palavra que, pronuncie poderá ser invocada contra si", como na honesta advertência dos policiais da Scottland Yard. Esse temor o obrigará a cuidados especiais, dos que costuma prescindir em outras ocasiões mais cômodas. Desejar-se-á invulnerável e em determinadas páginas o será. O cotejo das boas indignações de Paul Groussac e seus confusos panegíricos - para não citar os casos análogos de Swift, Johnson e Voltaire - inspirou ou auxiliou essa2 No decurso desta notícia, referi-me a Mantiq al-Tayr (Colóquio dos Pdssaros), do místico persa Farid al-Din Abu Talib Muhammad ben Ibrahim Attar, a quem os soldados de Tule mataram, filho de Zingis Jan, quando Nishapur foi espoliada. Talvez não consiga resumir o poema. O remoto rei dos pássaros, o Simurg, deixa cair no centro da China uma pluma esplêndida; os pássaros resolvem procurá-lo, cansados de sua antiga anarquia. Sabem que o nome de seu rei quer dizer trinta pássaros; sabem que sua fortaleza está no Kaf, a montanha circular que rodeia a terra. Empreendem a quase infinita aventura; superam sete vales, ou mares; o nome do penúltimo é Vertigem; o último se chama Aniquilação. Muitos peregrinos desertam; outros perecem. Trinta, purificados pelos trabalhos, pisam a montanha do Simurg. Enfim o contemplam: percebem

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que eles são o Simurg e que o Simurg é cada um deles e todos. (Também Plotino - Enéadas, V, 8, 4 - descreve uma extensão paradisíaca do princípio de identidade: "Tudo, no céu inteligível, está em todas as partes. Qualquer coisa é todas as coisas. O Sol é todas as estrelas, e cada estrela é todas as estrelas e o Sol".) O Mantiq alTayr foi vertido ao francês por Garcin de Tassy; ao inglês, por Edward FitzGerald; para esta nota, consultei o 1O° volume das Mil e Uma Noites de Burton e a monografia The Persían Mystics: Attar (1932), de Margaret Smith.O pontos de contato desse poema com o romance de Mir Bahadur Ali não são excessivos. No 2O`-" capítulo, certas palavras atribuídas por um livreiro persa a Almotásim são, talvez, a magnificação de outras que disse o herói; essa e outras ambíguas analogias podem significar a identidade do procurado e de quem procura; também podem significar que este influi naquele. Outro capítulo insinua que Almotásim é o "hindú" que o estudante crê ter matado.462463HISTÓRIA DA ETERNIDADEfantasia. Ela se dissipou quando abandonei a leitura complacente desses escárnios pela pesquisa de seu método.Logo observei uma coisa: a justiça fundamental e o erro delicado de minha conjetura. O burlador age com cuidado, efetivamente, mas com cuidado de trapaceiro que admite as ficções do baralho, seu corruptível céu constelado de pessoas bicéfalas. Três reis mandam no pôquer e não significam nada no troco. O polemista não é menos convencional. Ademais, já as fórmulas de afronta da rua oferecem uma ilustrativa maquette do que pode ser a polêmica. O homem de Corrientes e Esmeralda adivinha a mesma profissão nas mães de todos, ou quer que se mudem em seguida para uma localidade muito geral que tem vários nomes, ou arremeda um ruído grosseiro - e uma insensata convenção resolveu que o afrontado por essas aventuras não é ele, mas o atento e silencioso auditório. Não se necessita sequer de uma linguagem. Morder o próprio polegar ou tomar o lado da parede (Sampson: "I will take the wall of any man or maid of Montague"s". Abram: "Do you bite your thumb at us, sir?") foram, por volta de 1592, a moeda legal do provocador, na Verona fraudulenta de Shakespeare e nas cervejarias e lupanares e renhideiros de ursos em Londres. Nas escolas públicas, o gesto de caçoada pito catalán - polegar no nariz, a mão espalmada à frente - e a exibição da língua fazem esse papel.Outra difamação muito freqüente é o termo cão. Na noite 146 do Livro das Mil Noites e Uma, os discretos podem aprender que o filho do leão foi encerrado num cofre sem saída pelo filho de Adão, que o repreendeu deste modo: "O destino te derrubou e a astúcia não te porá de pé, ó cão do deserto".Um alfabeto convencional da afronta define também os polemistas. O título senhor, de omissão imprudente ou irregular nas comunicações orais dos homens, é ofensivo quando Oimprimem. Doutor é outra forma de aniquilação. Mencionar os sonetos cometidos pelo doutor Lugones equivale a medi-los mal para sempre, a refutar cada uma de suas metáforas. À primeira aplicação de doutor, morre o semideus e resta um simples cavalheiro argentino que usa colarinhos postiços de papel e se faz barbear dia sim, dia não, e pode falecer de um bloqueio nas vias respiratórias. Resta a central e incurável futilidade de todo ser humano. Mas ficam também os sonetos, com música que espera. (Um italiano, para livrar-se de Goethe, emitiu um464Duns Noras

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breve artigo em que não se cansava de alcunhá-lo il signore Wolfgang. Isso era quase uma adulação, pois equivalia a desconhecer que não faltam argumentos autênticos contra Goethe.)Cometer um soneto, emitir artigos. A linguagem é um repertório dessas convenientes afrontas, que são o principal sustento das controvérsias. Dizer que um literato expeliu, cozinhou ou grunhiu um livro é uma tentação fácil demais; caem melhor os verbos burocráticos ou comerciais: despachar, dar curso, expender. Essas palavras áridas combinam-se com outras efusivas, e a vergonha do adversário é eterna. A uma pergunta sobre um leiloeiro que era, não obstante, declamador, alguém inevitavelmente comunicou que estava leiloando com energia a Divina Comédia. O epigrama não é esmagadoramente engenhoso, mas seu mecanismo é típico. Trata-se (como em todos os epigramas) de mera falácia de confusão. O verbo leiloar (reduplicado pelo adverbial com energia) dá a entender que o incriminado senhor é um irreparável e sórdido leiloeiro e que seu esforço dantesco é um disparate. O ouvinte aceita o argumento sem vacilar, porque não lhe é proposto como argumento. Bem formulado, teria de não lhe dar fé. Primeiro, declamar e leiloar são atividades afins. Segundo, a antiga vocação de declamador pôde orientar as tarefas do leiloeiro, pelo bom exercício de falar em público.Uma das tradições satíricas (não desprezada nem por Macedonio Fernández nem por Quevedo nem por George Bernard Shaw) é a inversão incondicional dos termos. Segundo essa fórmula famosa, o médico é inevitavelmente acusado de exercer a contaminação e a morte; o escrivão, de roubar; o verdugo, de fomentar a longevidade; os livros de ficção, de adormecer ou petrificar o leitor; os judeus errantes, de paralisia; o alfaiate, de nudismo; o tigre e o canibal, de não passar sem o ruibarbo. Uma variante dessa tradição é o ditado inocente. Por exemplo: "O festejado catre de campanha sob o qual o general ganhou a batalha". Ou: "Um encanto o último filme do engenhoso diretor René Clair. Quando nos acordaram..."Outro método útil é a mudança brusca. Por exemplo: "Um jovem sacerdote da Beleza, uma mente embebida em luz helênica, um refinado, um verdadeiro homem de gosto (de rato)". Também esta quadra da Andaluzia, que num segundo passa da informação ao assalto:465HISTÓRIA DA ETERNIDADEVinte e cinco pauzinhos Tem uma cadeira. Queres que a quebre Nas tuas costelas?

Repito o formalismo desse jogo, seu contrabando obstinado de argumentos necessariamente confusos. Defender de fato uma causa e esbanjar os exageros trocistas, as falsas cardades, as concessões traiçoeiras e o paciente desdém não são atividades incompatíveis, mas sim tão diferentes que ninguém as associou até agora. Procuro exemplos ilustres. Empenhado em arrasar com Ricardo Rojas, o que faz Groussac? Isto que transcrevo e que todos os literatos de Buenos Aires saborearam. "Assim é que, por exemplo, depois de ouvidos com resignação dois ou três fragmentos em prosa pedante de certo calhamaço, publicamente aplaudido pelos que mal o abriram, considero-me autorizado a não prosseguir, atendo-me, por ora, aos sumários ou índices daquela copiosa história do que organicamente nunca existiu. Refiro-me em especial à primeira e mais indigesta parte da mole (ocupa três dos quatro volumes): balbucios de indígenas ou mestiços..." Groussac, nesse exuberante mau humor, cumpre com o mais fervoroso ritual do jogo satírico. Simula piedade pelos erros do adversário ("depois de ouvidos com resignação"); deixa entrever o espetáculo de uma cólera brusca (primeiro a palavra calhamaço, depois a mole); vale-se de expressões laudatórias para agredir (essa história copiosa); enfim, joga bem a seu modo. Não comete pecados na sintaxe,

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que é eficiente, mas sim no argumento que indica. Reprovar um livro pelo tamanho, insinuar que ninguém vai se animar a ler esse tijolo e acabar professando indiferença pelas bobagens de uns índios e mulatos parece resposta de compadrito, não de Groussac.Transcrevo outra festejada severidade do mesmo escritor: "Sentiríamos que a circunstância de ter sido posto à venda o arrazoado do doutor Pinero fosse um obstáculo sério para sua difusão, e que este amadurecido fruto de um ano e meio de andanças diplomáticas se limitasse a causar "impressãó na casa de Coni. Tal não acontecerá, se Deus quiser, e, ao menos enquanto depender de nós, não se cumprirá tão melancólico466DUAS NOTASdestino". Novamente o aparato da piedade; novamente a diabrura da sintaxe. Novamente, também, a banalidade portentosa da censura: rir-se dos poucos interessados que pode reunir um escrito e de sua vagarosa elaboração.Uma justificativa elegante dessas misérias pode invocar a tenebrosa raiz da sátira. Esta (segundo a certeza mais recente) derivou-se das maldições mágicas da ira, não de raciocínios. É a relíquia de um estado inverossímil, em que os danos causados ao nome recaem sobre quem o possui. Cortaram do anjo Satanail, rebelde primogênito do Deus que os bogomilos adoraram, a partícula il, que lhe assegurava a coroa, o esplendor e a previsão. Sua morada atual é o fogo, e seu hóspede, a ira do Poderoso. Os cabalistas narram o inverso, que a semente do remoto Abraão era estéril até que intercalaram em seu nome a letra he, que o fez capaz de procriar.Swift, homem de amargura essencial, propôs-se, na crônica das viagens do capitão Lemuel Gulliver, a difamação do gênero humano. As primeiras - viagem à diminuta república de Liliput e à desmedida de Brobdingnag - são o que Leslie Stephen admite: um sonho antropométrico, que em nada se assemelha às complexidades de nosso ser, seu fogo e sua álgebra. A terceira, a mais divertida, zomba da ciência experimental mediante o processo já mencionado da inversão: os desmantelados laboratórios de Swift querem disseminar ovelhas sem lã, usar gelo para fabricar pólvora, amolecer mármore para almofadas, martelar o fogo em lâminas finas e aproveitar a parte nutritiva contida na matéria fecal. (Esse livro inclui também uma página importante sobre os inconvenientes da decrepitude.) A quarta viagem, a última, pretende demonstrar que as bestas valem mais que os homens. Mostra uma virtuosa república de cavalos falantes, monógamos, isto é, humanos, com um proletariado de homens quadrúpedes, que vivem em bando, escarvam a terra, agarram-se ao ubre das vacas para roubar o leite, descarregam seu excremento sobre os outros, devoram carne podre e cheiram mal. A fábula é contraproducente, como se vê. O resto é literatura, sintaxe. Diz na conclusão: "Não me cansa o espetáculo de um advogado, de um ladrão, de um coronel, de um bobo, de um lorde, de um trapaceiro, de um político, de um rufião". Certas palavras, nessa variada enumeração, estão contaminadas pelas vizinhas.467HISTC)RIA DA ETERNIDADEDois exemplos finais. Um é a célebre paródia de insulto que nos contam ter sido improvisada pelo doutor Johnson: "Sua esposa, cavalheiro, com o pretexto de trabalhar num lupanar, vende artigos de contrabando". Outro é a injúria mais esplêndida que conheço: injúria tanto mais singular se considerarmos que é o único contato de seu autor com a literatura: "Os deuses não consentiram que Santos Chocano desonrasse o patíbulo, nele morrendo. Aí está vivo, depois de haver fatigado a infâmia". Desonrar o patíbulo. Fatigar a infâmia. À força de abstrações ilustres, a ofensa desfechada por Vargas Vila rejeita qualquer trato com o paciente e deixao ileso,

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inverossímil, muito secundário e possivelmente imoral. Basta a mais leve referência ao nome de Chocano para que alguém evoque a imprecação, obscurecendo com maligno esplendor tudo quanto se refere a ele - até os pormenores e os sintomas dessa infâmia.Procuro resumir o que escrevi anteriormente. A sátira não é menos convencional que um diálogo entre namorados, ou que um soneto distinguido com a flor natural por José María Monner Sans. Seu método é a intromissão de sofismas, sua única lei a invenção simultânea de boas travessuras. Ia esquecendo: tem, além disso, a obrigação de ser memorável.Cabe aqui certa réplica varonil a que alude De Quincey (Writings, tomo XI, p. 226). Numa discussão teológica ou literária, lançaram um copo de vinho ao rosto de um cavalheiro. O agredido não se alterou e disse ao ofensor: "Isto, senhor, é uma digressão; aguardo seu argumento". (O protagonista dessa réplica, um tal doutor Henderson, faleceu em Oxford por volta de 1787, sem deixar-nos nenhuma lembrança a não ser essas exatas palavras: suficiente e bela imortalidade.)Uma tradição oral que recolhi em Genebra durante os últimos anos da Primeira Guerra Mundial conta que Miguel Servet disse aos juízes que o haviam condenado à fogueira: "Arderei, mas isso não passa de um fato. Logo continuaremos a discutir na eternidadé".

Adrogué, 1933.FIC~ÕES1944A Esther Zemborain de Torres468O JARDIM DE VEREDAS

QUE SE BIFURCAM1941PRÓLOGOAs sete obras deste livro não requerem maior elucidação. A sétima ("O jardim de veredas que se bifurcam") é policial; seus leitores assistirão à execução e a todos os preliminares de um-crime cujo propósito não ignoram, mas que não compreenderão, parece-me, até o último parágrafo. As outras são fantásticas; uma - "A loteria em Babilônia" - não é totalmente isenta de simbolismo. Não sou o primeiro autor da narrativa "A biblioteca de Babel"; os curiosos de sua história e de sua pré-história podem examinar certa página do número 59 da revista Sur, que registra os nomes heterogêneos de Leucipo e de Lasswitz, de Lewis Carroll e de Aristóteles. Em "As ruínas circulares" tudo é irreal; em "Pierre Menard, autor do Quixote", irreal é o destino que seu protagonista se impõe. O rol de escritos que lhe atribuo não é muito divertido, mas não é arbitrário; é um diagrama de sua história mental...Desvario laborioso e empobrecedor o de compor extensos livros; o de espraiar em quinhentas páginas uma idéia cuja perfeita exposição oral cabe em poucos minutos. Melhor procedimento é simular que esses livros já existem e oferecer um resumo, um comentário. Assim procedeu Carlyle em Sartor Resartus; assim Butler em The Fair Haven; obras que têm a imperfeição de serem também livros, não menos tautológicos que os outros. Mais razoável, mais inepto, mais preguiçoso, preferi a escrita de notas sobre livros imaginários. Estas são "Tlõn, Ligbar, Orbis Tertius"; e o "Exame da obra de Herbert Quain".

J. L. B.473

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TLÕN, UQBAR, ORBIS TERTIUS

rDevo à conjunção de um espelho e de uma enciclopédia o descobrimento de Uqbar. O espelho inquietava o fundo de um corredor numa chácara da rua Gaona, em Ramos Mejía; a enciclopédia falazmente se chama The Anglo-American Cyclopaedia (New York, 1917) e é uma reimpressão literal, mas também tardia, da Encyclopaedia Britannica de 19O2. O fato ocorreu faz uns cinco anos. Bioy Casares jantara comigo naquela noite e deteve-nos uma extensa polêmica sobre a elaboração de um romance em primeira pessoa, cujo narrador omitisse ou desfigurasse os fatos e incorresse em diversas contradições, que permitissem a poucos leitores - a muito poucos leitores - a adivinhação de uma realidade atroz ou banal. Do fundo remoto do corredor, o espelho nos espreitava. Descobrimos (na alta noite essa descoberta é inevitável) que os espelhos têm algo de monstruoso. Então Bioy Casares lembrou que um dos heresiarcas de Uqbar declarara que os espelhos e a cópula são abomináveis, porque multiplicam o número dos homens. Perguntei-lhe a origem dessa memorável sentença e ele me respondeu que The Anglo-American Cyclopaedia a registrava, em seu artigo sobre Uqbar. A chácara (que havíamos alugado mobiliada) possuía um exemplar dessa obra. Nas últimas páginas do volume XLVI demos com um artigo sobre Upsala; nas primeiras do XLVII, com um sobre Ural-Altaic Languages, mas nem uma palavra a respeito de Ugbar. Bioy, um pouco perturbado, consultou os volumes do índice. Esgotou em vão todos os verbetes imagináveis: Ukbar, Ucbar, Ookbar, Oukbahr... Antes de ir embora, disse-me que era uma região do Iraque ou da Ásia Menor. Confesso que assenti com certa incomodidade. Conjeturei que esse país indocumentado e475FicçõesTLON, UQBAR, oRBIS TERTIUSesse heresiarca anônimo eram uma ficção improvisada pela modéstia de Bioy para justificar uma frase. O exame estéril de um dos atlas de Justus Perthes fortaleceu minha dúvida.No dia seguinte, Bioy me telefonou de Buenos Aires. Disseme que tinha à vista o artigo sobre Ugbar, no volume XXVI da Enciclopédia. Não constava o nome do heresiarca, mas sim a informação de sua doutrina, formulada em palavras quase idênticas às repetidas por ele, ainda que - talvez - literariamente inferiores. Ele tinha recordado: "Copulation and mirrors are abominable". O texto da Enciclopédia dizia: "Para um desses gnósticos, o visível universo era uma ilusáo ou (mais precisamente) um sofisma. Os espelhos e a paternidade são abomináveis (mirrors and fatherhood are hateful) porque o multiplicam e o divulgam". Eu lhe disse, sem faltar à verdade, que gostaria de ver esse artigo. Em poucos dias ele o trouxe. O que me surpreendeu, porque os escrupulosos índices cartográficos da Erdkunde de Ritter ignoravam completamente o nome de Uqbar.O volume que Bioy trouxe era efetivamente o XXVI da Anglo-American Cyclopaedia. No ante-rosto e na lombada, a indicação alfabética (Tor-Ups) era a de nosso exemplar, mas em vez de 917 páginas constava de 921. Essas quatro páginas adicionais compreendiam o artigo sobre Uqbar; não previsto (como terá observado o leitor") pela indicação alfabética. Comprovamos depois que não havia outra diferença entre os volumes. Os dois (conforme creio haver indicado) são reimpressões da décima Encyclopaedia Britannica. Bioy adquirira seu exemplar num de tantos leilões.Lemos com certo cuidado o artigo. A passagem recordada por Bioy era talvez a única surpreendente. O restante parecia muito verossímil, muito ajustado ao tom geral

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da obra e (como é natural) um pouco maçante. Relendo-o, descobrimos sob sua rigorosa escrita uma fundamental vaguidade. Dos catorze nomes que figuravam na parte geográfica, apenas reconhecemos três - Kurassan, Armênia, Erzerum -, interpolados no texto de modo ambíguo. Dos nomes históricos, um só: o impostor Esmerdis, o mago, invocado mais como metáfora. A nota parecia precisar as fronteiras de Ugbar, mas seus nebulosos pontos de referência eram rios e crateras e cadeias dessa mesma região. Lemos, verbi grada, que as terras baixas de Tsai Jaldun e o delta do Axa definem a fronteira do Sul e476que nas ilhas desse delta procriam os cavalos selvagens. Isso, no começo da página 918. Na seção histórica (página 92O) soubemos que, por causa das perseguições religiosas do século XIII, os ortodoxos procuraram refúgio nas ilhas, onde ainda perduram seus obeliscos e onde não é raro exumar seus espelhos de pedra. A seção idioma e literatura era breve. Um único traço memorável: anotava que a literatura de Uqbar era de caráter fantástico e que suas epopéias e suas lendas não se referiam nunca à realidade mas às duas regiões imaginárias de Mlejnas e de Tlõn... A bibliografia enumerava quatro volumes que não encontramos até agora, embora o terceiro - Silas Haslam: History of the Land Called Uqbar, 1874 - figure nos catálogos da livraria de Bernard Quaritch." O primeiro, Lesbareund lesenswerthe Bemerkungen über das Land Ukkbar in KleinAsien, data de 1641 e é obra de Johannes Valentinus Andreâ. O fato é significativo; alguns anos depois, deparei com esse nome nas inesperadas páginas de De Quincey (Writings, décimo terceiro volume) e soube que era o de um teólogo alemão que, em princípios do século XVII, descreveu a imaginária comunidade da Rosa Cruz - que outros depois fundaram, à imitação do prefigurado por ele.Nessa noite visitamos a Biblioteca Nacional. Em vão esgotamos atlas, catálogos, anuários de sociedades geográficas, memórias de viajantes e historiadores: ninguém estivera jamais em Ugbar. O índice geral da enciclopédia de Bioy tampouco registrava esse nome. No dia seguinte, Carlos Mastronardi (a quem eu relatara o assunto) reparou numa livraria de Corrientes e Talcahuano as pretas e douradas lombadas da Anglo-American Cyclopaedia... Entrou e consultou o volume XXVI. Naturalmente, não deu com o menor indício de Uqbar.

II

Alguma lembrança limitada e diluída de Herbert Ashe, engenheiro das ferrovias do Sul, persiste no hotel de Adrogué, entre as efusivas madressilvas e no fundo ilusório dos espelhos. Em vida padeceu de irrealidade, como tantos ingleses;

l Haslam publicou também A General History of Labyrinths.477esse heresiarca anôn- modéstia de Bioy po,~o um dos atlas de L~ ~- ~,No dia sege Nme que tinha ~ ~~N %~,. ~ Enciclopédias ~~ ~ o~ `~~, informação ,~ ~ ~~_, Ny ~ " Nticas às N ó ~~ °",~ o `~ ~o óinferio;~ ~ ~,~ ~ ~~ ~~ ó J nable~ ~~, wo ~~ ~ NS~ ~N"cTLÕN, UQBAR, ORBIS TERTIUS

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~ era então. Era alto e

alar fora ruiva. Acho

~s em tempos ia à

tografias que nos

os. Meu pai tinha

dessas amizades

cia e que muito

ter intercâmbio

~ xadrez, taci

~,om um livro

.tezes, as cores

.mos do sistema duode

~¿ se escreve 1O). Ashe disse

Trasladando não sei que tabelas

o~simais (nas quais sessenta se escreve 1O).

~ae esse trabalho lhe fora encomendado por um

Paes: no Rio Grande do Sul. Há oito anos que o conhe

_~amos e nunca mencionara sua estada nessa região...

Falamos de vida pastoril, de capangas, da etimologia

brasileira da palavra gaucho (que alguns velhos orientais ainda

pronunciam gaúcho) e nada mais se disse - Deus me perdoe -

de funções duodecimais. Em setembro de 1937 (nós não está

vamos no hotel), Herbert Ashe morreu da ruptura de um

aneurisma. Dias antes, recebera do Brasil um pacote selado e

registrado. Era um livro em oitavo maior. Ashe deixou-o no

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bar, onde - meses depois - o encontrei. Pus-me a folheá-lo e

senti uma ligeira vertigem de assombro que não descreverei,

porque esta não é a história de minhas emoções, mas de Ugbar

e Tlõn e Orbis Tertius. Numa noite do Islã, que se chama a

"Noite das Noites", abrem-se de par em par as secretas portas

do céu e é mais doce a água nos cântaros; se essas portas se

abrissem, não sentiria o que nessa tarde senti. O livro estava

redigido em inglês e o compunham 1OO1 páginas. Na amarela

lombada de couro li estas curiosas palavras que o ante-rosto

repetia: AFirst Encyclopaedia of Tlõn. Vol. XI. Hlaer to Jangr. Não

havia indicação de data nem de lugar. Na primeira página e

numa folha de papel de seda que cobria uma das lâminas co

loridas, estava impresso um óvalo azul com esta inscrição:

Orbis Tertius. Fazia dois anos que eu descobrira num tomo de

certa enciclopédia pirática uma sumária descrição de um falsopaís; agora me proporcionava o acaso algo mais precioso e mais árduo. Agora tinha nas mãos um vasto fragmento metódico da história total de um planeta desconhecido, com suas arquiteturas e seus naipes, com o pavor de suas mitologias e o rumor de suas línguas, com seus imperadores e seus mares, com seus minerais e seus pássaros e seus peixes, com sua álgebra e seu fogo, com sua controvérsia teológica e metafísica. Tudo isso articulado, coerente, sem visível propósito doutrinal ou tom paródico.No "décimo primeiro tomo" de que falo, há alusões a tomos ulteriores e precedentes. Néstor Ibarra, num artigo já clássico da N.R.F., negou a existência de tais tomos; Ezequiel Martínez Estrada e Drieu La Rochelle refutaram, quiçá vitoriosamente, essa dúvida. O fato é que até agora as investigações mais diligentes têm sido estéreis. Em vão desordenamos as bibliotecas das Américas e da Europa. Alfonso Reyes, saturado dessas fadigas subalternas de índole policial, propõe que todos empreendamos a obra de reconstruir os muitos e maciços tomos que faltam: ex ungue leonem. Calcula, entre sério e jocoso, que uma geração de tlônistas pode bastar. Esse arriscado cômputo nos faz voltar ao problema .fundamental: quem são os inventores de Tlõn? O plural é inevitável, porque a hipótese de um único inventor - de um infinito Leibniz trabalhando na treva e na modéstia - fora descartada unanimemente. Conjetura-se que este brave new world é obra de uma sociedade secreta de astrônomos, de biólogos, de engenheiros, de metafísicos, de poetas, de químicos, de algebristas, de moralistas, de pintores, de geômetras... dirigidos por um obscuro homem de gênio. Muitos

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são os indivíduos que dominam essas disciplinas diversas, mas não os capazes de invenção e menos os capazes de subordinar a invenção a um rigoroso plano sistemático. Esse plano é tão vasto que a contribuição de cada escritor é infinitesimal. A princípio, acreditou-se que Tlõn era um mero caos, uma irresponsável licença da imaginação; agora se sabe que é um cosmos e as íntimas leis que o regem foram formuladas, ainda que de modo provisório. Basta-me recordar que as contradições aparentes do Décimo Primeiro Tomo são a pedra fundamental da prova de que existem os outros: tão lúcida e tão justa é a ordem que nele se observou. As revistas populares divulgaram, com perdoá478479Facçõesvel excesso, a zoologia e a topografia de Tlôn; penso que seus tigres transparentes e suas torres de sangue não merecem, talvez, a contínua atenção de todos os homens. Atrevo-me a pedir alguns minutos para seu conceito do universo.Hume observou em definitivo que os argumentos de Berkeley não admitem a menor réplica e não causam a menor convicção. Esse parecer é totalmente verídico em sua aplicação à terra; totalmente falso em Tlõn. As nações desse planeta são - congenitamente - idealistas. Sua linguagem e as derivações de sua linguagem - a religião, as letras, a metafísica - pressupõem o idealismo. O mundo para eles não é um concurso de objetos no espaço; é uma série heterogênea de atos independentes. É sucessivo, temporal, não espacial. Não há substantivos na conjetural Ursprache de Tlõn, da qual procedem os idiomas "atuais" e os dialetos: há verbos impessoais, qualificados por sufixos (ou prefixos) monossilábicos de valor adverbial. Por exemplo: não há palavra que corresponda à palavra lua, mas há um verbo que seria em espanhol lunecerou lunar. Surgiu a lua sobre o rio diz-se hlôr u fang axaxaxas mló ou seja em sua ordem: para cima (upward) atrás duradourofluir luneceu. (Xul Solar traduz sinteticamente: upa tras perfluyue lunó. Upward, behind the onstreaming it moonedJO que antes foi dito se refere aos idiomas do hemisfério austral. Nos do hemisfério boreal (sobre cuja Ursprache há bem poucos dados no Décimo Primeiro Tomo) a célula primordial não é o verbo, mas o adjetivo monossilábico. O substantivo se forma por acumulação de adjetivos. Não se diz lua: diz-seaéreo-claro sobre escuro-redondo ou alaranjado-tênue-do-céu ouqualquer outro acréscimo. No caso escolhido, a massa de adjetivos corresponde a um objeto real; o fato é puramente fortuito. Na literatura deste hemisfério (como no mundo subsistente de Meinong), são muitos os objetos ideais, convocados e dissolvidos num momento, conforme as necessidades poéticas. Determina-os, às vezes, a mera simultaneidade. Há objetos compostos de dois termos, um de caráter visual e outro auditivo: a cor do nascente e o remoto grito de um pássaro. Há alguns de múltiplos: o sol e a água contra o peito do nadador, o vago rosa trêmulo que se vê com os olhos fechados, a sensação de quem se deixa levar por um rio e também pelo sonho. Esses objetos de segundo grau podem combinar-secom outros; o processo, mediante certas abreviaturas, é praticamente infinito. Há poemas famosos compostos de uma única enorme palavra. Essa palavra integra um objeto poético criado pelo autor. O fato de que ninguém acredite na realidade dos substantivos faz, paradoxalmente, com que seja interminável seu número. Os idiomas do hemisfério boreal de Tlõn possuem todos os nomes das línguas indo-européias - e muitos outros mais.Não é exagero afirmar que a cultura clássica de Tlõn compreende uma única disciplina: a psicologia. As outras estão subordinadas a ela. Disse que os homens desse

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planeta concebem o universo como uma série de processos mentais, que não se desenvolvem no espaço, mas de modo sucessivo no tempo. Spinoza atribui a sua inesgotável divindade os atributos da extensão e do pensamento; ninguém compreenderia em Tlôn a justaposição do primeiro (que apenas é típico de certos estados) e do segundo - que é sinônimo perfeito do cosmos. Antes, com outras palavras: não concebem que o espacial perdure no tempo. A percepção de uma fumaceira no horizonte e depois do campo incendiado e depois do charuto meio apagado que produziu a queimada é considerada exemplo de associação de idéias.Esse monismo ou idealismo total invalida a ciência. Explicar (ou julgar) um fato é uni-lo a outro; essa vinculação, em Tlôn, é um estado posterior do sujeito, que não pode afetar ou iluminar o estado anterior. Todo estado mental é irredutível: o simples fato de nomeá-lo - id est, de classificá-lo - implica falseio. Disso caberia deduzir que não há ciências em Tlôn - nem sequer raciocínios. Mas a paradoxal verdade é que existem, em quase inumerável número. Com as filosofias acontece o que acontece com os substantivos no hemisfério boreal. O fato de que toda filosofia seja de antemão um jogo dialético, uma Philosophie des Als Ob, contribuiu para multiplicá-las. Sobram os sistemas inacreditáveis, mas de arquitetura agradável ou de tipo sensacional. Os metafísicos de Tlôn não procuram a verdade nem sequer a verossimilhança: procuram o assombro. Julgam que a metafísica é um ramo da literatura fantástica. Sabem que um sistema não é outra coisa que a subordinação de todos os aspectos do universo a qualquer um deles. Até a frase "todos os aspectos" é inaceitável,48O481Frcçõssporque supõe a impossível adição do instante presente e dos pretéritos. Nem é lícito o plural "os pretéritos", porque supõe outra operação impossível... Uma das escolas de Tlõn chega a negar o tempo: argumenta que o presente é indefinido, que o futuro não tem realidade senão como esperança presente, que o passado não tem realidade senão como lembrança presente.z Outra escola declara que transcorreu já todo o tempo e que nossa vida é apenas a lembrança ou reflexo crepuscular, e sem dúvida falseado e mutilado, de um processo irrecuperável. Outra, que a história do universo - e nela nossas vidas e o mais tênue detalhe de nossas vidas - é a escrita que produz um deus subalterno para entender-se com um demônio. Outra, que o universo é comparável a essas criptografias nas quais não valem todos os símbolos e que só é verdade o que acontece a cada trezentas noites. Outra, que enquanto dormimos aqui, estamos despertos em outro lado e que assim cada homém é dois homens.Entre as doutrinas de Tlõn, nenhuma mereceu tanto escândalo como o materialismo. Alguns pensadores o formularam,com menos clareza que fervor, como quem antecipa um paradoxo. Para facilitar o entendimento dessa tese inconcebível, um heresiarca do décimo primeiro século3 ideou o sofisma das nove moedas de cobre, cujo renome escandaloso equivale em Tlõn ao das aporias eleáticas. Desse "raciocínio especioso" há muitas versões, variam o número de moedas e o número de achados; eis aqui a mais comum:"Terça-feira, X atravessa um caminho deserto e perde nove moedas de cobre. Quinta-feira, Y encontra no caminho quatro moedas, um pouco enferrujadas pela chuva de quarta-feira. Sexta-feira, Z descobre três moedas no caminho. Sexta-feira de manhã, X encontra duas moedas no corredor de sua casa." O heresiarca queria deduzir dessa história a realidade - id est, a continuidade - das nove moedas recuperadas. "É absurdo (afirmava) imaginar que quatro das moedas não existiram entre terça e quinta-feira, três entre terça-feira e a tarde de

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2 Russel (The Analysis of Mind, 1921, página 159) supõe que o planeta foi criado há poucos minutos, provido de uma humanidade que "recorda" um passado ilusório.3 Século, de acordo com o sistema duodecimal, significa um período de cento e quarenta e quatro anos.TLON, UQBAR, ORBIS TERTIUSsexta-feira, duas entre terça-feira e a madrugada de sextafeira. E lógico pensar que existiram - ainda que de algum modo secreto, de compreensão vedada aos homens - em todos os momentos desses três prazos."A linguagem de Tlõn se opunha a formular esse paradoxo; os demais não o entenderam. Os defensores do sentido comum limitaram-se, no início, a negar a veracidade do episódio. Repetiram que era uma falácia verbal, baseada no emprego temerário de duas palavras neológicas, não autorizadas pelo uso e alheias a todo pensamento severo: os verbos encontrar e perder, que comportam uma petição de princípio, porque pressupõem a identidade das nove primeiras moedas e das últimas. Recordaram que todo substantivo (homem, moeda, quinta-feira, quarta-feira, chuva) somente tem valor metafórico. Denunciaram a pérfida circunstância um pouco enferrujadas pela chuva de quarta feira, que pressupõe o que se procura demonstrar: a persistência das quatro moedas, entre quinta e terça-feira. Explicaram que uma coisa é igualdade e outra, identidade e formularam uma espécie de reductio ad absurdum, ou seja, o caso hipotético de nove homens que em nove sucessivas noites padecem de uma viva dor. Não seria ridículo - perguntaram - pretender que essa dor fosse a mesma?" Disseram que ao heresiarca não o movia senão Oblasfematório propósito de atribuir a divina categoria de ser a umas simples moedas e que, às vezes, negava a pluralidade e outras, não. Argumentaram: se a igualdade abrangesse a identidade, seria necessário admitir, do mesmo modo, que as nove moedas eram uma só.Inacreditavelmente, essas refutações não resultaram definitivas. Cem anos depois de ser enunciado o problema, um pensador não menos brilhante que o heresiarca, mas de tradição ortodoxa, formulou uma hipótese muito audaz. Essa conjetura feliz afirma que há um único sujeito, que esse sujeito indivisível é cada um dos seres do universo e que estes são os órgãos e máscaras da divindade. X é Y e é Z. Z descobre três moedas, porque se lembra de que X as perdeu; X encontra4 Hoje em dia, uma das igrejas de Tlõn sustenta, platonicamente, que tal dor, que tal matiz verdoso do amarelo, que tal temperatura, que tal som, são a única realidade. Todos os homens, no vertiginoso instante do coito, são o mesmo homem.Todos os homens que repetem uma linha de Shakespeare são Wílliam Shakespeare.482483FrcçòssTLÓN, UQBAR, ORBIS TERTIUSduas no corredor, porque se lembra de que foram recuperadas as outras... O décimo primeiro tomo deixa entender que três razões capitais determinaram a vitória total desse panteísmo idealista. A primeira, o repúdio do solipsismo; a segunda, a possibilidade de conservar a base psicológica das ciências; a terceira, a possibilidade de conservar o culto aos deuses. Schopenhauer (o apaixonado e lúcido Schopenhauer) formula uma doutrina muito semelhante no primeiro volume deParerga und Paralipomena.A geometria de Tlôn compreende duas disciplinas um pouco diferentes: a visual e a tátil. A última corresponde à nossa e a subordinam à primeira. A base da geometria visual é a superfície, não o ponto. Essa geometria desconhece as paralelas e declara que o homem que se desloca modifica as formas que o circundam. A base de sua

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aritmética é a noção de números indefinidos. Acentuam a importância dos conceitos de maior e menor, que nossos matemáticos simbolizam por e por <. Afirmam que a operação de contar modifica as quantidades e as converte de indefinidas em definidas. O fato de que vários indivíduos que contam uma mesma quantidade obtenham resultado igual é, para os psicólogos, um exemplo de associação de idéias ou de bom exercício da memória. Já sabemos que em Tlõn o sujeito do conhecimento é uno e eterno.Nos hábitos literários é também todo-poderosa a idéia de um sujeito único. É raro que os livros estejam assinados. Não existe o conceito do plágio: estabeleceu-se que todas as obras são obra de um único autor, que é intemporal e é anônimo. A crítica costuma inventar autores: escolhe duas obras dissimiles - o Tao Te King e as Mil e Uma Noites, digamos -, atribui-as a um mesmo escritor e logo determina com probidade a psicologia desse interessante homme de lettres...Também são diferentes os livros. Os de ficção abarcam um único argumento, com todas as permutações imagináveis. Os de natureza filosófica invariavelmente contêm a tese e a antítese, o rigoroso pró e o contra de uma doutrina. Um livro que não encerre seu contralivro é considerado incompleto.Séculos e séculos de idealismo não deixaram de influir na realidade. Não é infreqüente, nas regiões mais antigas de Tlõn, a duplicação de objetos perdidos. Duas pessoas procuram um lápis; a primeira o encontra e não diz nada; a segunda encontra um segundo lápis não menos real, contudo mais ajustado a sua expectativa. Esses objetos secundários se chamam hrónir e são, embora de forma desairosa, um pouco mais longos. Até há pouco os hrónir eram filhos fortuitos da distração e do esquecimento. Parece mentira que sua metódica produção conte apenas cem anos, mas assim está referido no Décimo Primeiro Tomo. Os primeiros intentos foram estéreis. O modus operandi, no entanto, merece ser recordado. O diretor de um dos cárceres do Estado comunicou aos presos que no antigo leito de um rio havia certos sepulcros e prometeu a liberdade aos que trouxessem um achado importante. Durante os meses que precederam a escavação, apresentaram-lhes lâminas fotográficas do que iam descobrir. Essa primeira tentativa provou que a esperança e a avidez podem inibir; uma semana de trabalho com a pá e a picareta não conseguiu exumar outro hrón, salvo uma roda enferrujada, de data posterior ao experimento. Essa foi mantida em segredo e depois repetida em quatro escolas. Em três, foi quase total o fracasso; no quarto (cujo diretor morreu casualmente durante as primeiras escavações), os discípulos exumaram - ou produziram - uma máscara de ouro, uma espada arcaica, duas ou três ânforas de barro e o limoso e mutilado torso de um rei com uma inscrição no peito que ainda não se conseguiu decifrar. Descobriu-se, assim, a improcedência de testemunhas que conhecessem a natureza experimental da busca... As pesquisas em massa produzem objetos contraditórios; agora se preferem os trabalhos individuais e quase improvisados. A metódica elaboração de hrónir (diz o Décimo Primeiro Tomo) prestou serviços prodigiosos aos arqueólogos. Permitiu examinar e até modificar o passado, que agora não é menos plástico e menos dócil que o futuro. Fato curioso: os hrónír de segundo e de terceiro grau - os hrónir derivados de outro hrón, os hrónir derivados do hrón de um hrón -exageram as aberrações do inicial; os de quinto são quase uniformes; os de nono confundem-se com os de segundo; nos de décimoprimeiro, há uma pureza de linhas que os originais não têm.O processo é periódico: o hrón de décimo segundo grau jácomeça a decair. Mais estranho e mais puro que todo hrón é, àsvezes, o ur: a coisa produzida por sugestão, o objeto eduzido

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484485FICÇêESTLON, UQBAR, OREIS TERTIUSpela esperança. A grande máscara de ouro que mencionei é um ilustre exemplo.As coisas duplicam-se em Tlõn; propendem simultaneamente a apagar-se e a perder os detalhes, quando as pessoas os esquecem. E clássico o exemplo de um umbral que perdurou enquanto o visitava um mendigo e que se perdeu de vista com sua morte. Às vezes, alguns pássaros, um cavalo, salvaram as ruínas de um anfiteatro.

Snlto Oriental, 194O.Pós-escrito de 1947. Reproduzo o artigo anterior tal como apareceu na Antologia de la Literatura Fantástica, 194O, sem outro corte senão o de algumas metáforas e de uma espécie de resumo zombeteiro que agora se tornou frívolo. Ocorreram tantas coisas desde essa data... Limitar-me-ei a recordá-las.Em março de 1941, descobriu-se uma carta manuscrita de Gunnar Erfjord num livro de Hinton que fora de Herbert Ashe. O envelope tinha o carimbo postal de Ouro Preto; a carta elucidava completamente o mistério de Tlõn. Seu texto corrobora as hipóteses de Martínez Estrada. Em princípios do século XVII, numa noite de Lucerna ou de Londres, começou a esplêndida história. Uma sociedade secreta e benévola (que entre seus afiliados teve Dalgarno e depois George Berkeley) surgiu para inventar um país. No vago programa inicial figuravam os "estudos herméticos", a filantropia e a cabala. Dessa primeira época data o curioso livro de Andreã. Ao fim de alguns anos de conciliábulos e de sínteses prematuras, compreenderam que uma geração não bastava para articular um país. Resolveram que cada um dos mestres que a integravam escolhesse um discípulo para a continuação da obra. Essa disposição hereditária prevaleceu; depois de um hiato de dois séculos, a perseguida fraternidade ressurge na América. Por volta de 1824, em Memphis (Tennessee), um dos afiliados conversa com o ascético milionário Ezra Buckley. Este o deixa falar com certo desdém - e ri da modéstia do projeto. Diz-lhe que na América é absurdo inventar um país e propõe-lhe a invenção de um planeta. A essa gigantesca idéia acrescentaoutra, filha de seu nülismos a de manter em sigilo o enorme empreendimento. Circulavam, então, os vinte tomos da Encyclopaedia Britannica; Buckley sugere uma enciclopédia metódica do planeta ilusório. Deixar-lhes-á suas cordilheiras auríferas, seus rios navegáveis, suas pradarias pisadas pelo touro e pelo bisão, seus negros, seus prostíbulos e seus dólares, sob uma condição: "A obra não pactuará com o impostor Jesus Cristo". Buckley descrê de Deus, mas quer demonstrar ao Deus não existente que os homens mortais são capazes de conceber um mundo. Buckley é envenenado em Baton Rouge, em 1828; em 1914 a sociedade remete a seus colaboradores, que são trezentos, o volume final da Primeira Enciclopédia de Tlõn. A edição é secreta: os quarenta volumes que compreende (a obra mais vasta que empreenderam os homens) seriam a base de outra mais minuciosa, não mais redigida em inglês, mas em algumas das línguas de Tlõn. Essa revisão de um mundo ilusório se denomina provisoriamente Orbis Tertius e um de seus modestos demiurgos foi Herbert Ashe, não sei se como agente de Gunnar Erfjord ou como afiliado. O fato de ter recebido um exemplar do Décimo Primeiro Tomo parece favorecer a segunda hipótese. Mas, e os outros? Por volta de 1942, recrudesceram os fatos. Lembro-me com singular nitidez de um dos primeiros e me parece que vislumbrei algo de seu caráter premonitório. Ocorreu num apartamento da rua Laprida, diante de uma clara e alta sacada, voltada para o ocaso. A princesa de Faucigny

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Lucinge recebera de Poitiers sua baixela de prata. Do vasto interior de um caixote rubricado de carimbos internacionais, iam saindo finas coisas imóveis: prataria de Utrecht e de Paris com dura fauna heráldica, um samovar. Entre elas - com perceptível e tênue tremor de pássaro adormecido - latejava misteriosamente uma bússola. A princesa não a reconheceu. A agulha azul indicava o norte magnético; a caixa de metal era côncava; as letras da esfera correspondiam a um dos alfabetos de Tlõn. Tal foi a primeira intrusão do mundo fantástico no mundo real. Um acaso que me inquieta fez com que eu também fosse testemunha da segunda. Ocorreu uns meses depois, no armazém de um brasileiro, na Cuchilla Negra. Amorim e eu regressávamos de

5 Buckley era livre-pensador, fatalista e defensor da escravidão.486487FtCçõEsSant"Anna. Uma enchente do rio Tacuarembó nos obrigou a provar (e a suportar) essa rudimentar hospitalidade. O dono do armazém acomodou-nos em catres rangestes num quarto amplo, abarrotado de barris e couros. Deitamo-nos, mas não nos deixou dormir até o amanhecer a bebedeira de um vizinho invisível, que alternava injúrias inextricáveis com rajadas de milongas - melhor, com rajadas de uma única milonga. Como é de supor, atribuímos à fogosa cachaça do proprietário essa gritaria insistente... De madrugada, o homem estava morto no corredor. A aspereza da voz nos enganara: era um rapaz jovem. Durante o delírio caíram-lhe do cinturão algumas moedas e um cone de metal reluzente, do diâmetro de um dado. Em vão um menino tentou pegar esse cone. Apenas um homem mal conseguiu levantá-lo. Eu o tive na palma da mão por alguns minutos: lembro-me de que seu peso era intolerável e que, depois de retirado o cone, a opressão perdurou. Também me lembro do círculo preciso que me gravou na carne. Essa evidência de um objeto muito pequeno e, ao mesmo tempo, pesadíssimo deixava uma impressão desagradável de asco e de medo. Um lavrador propôs que o jogassem na correnteza do rio: Amorim o adquiriu por alguns pesos. Ninguém sabia nada sobre o morto, exceto "que vinha da fronteira". Esses cones pequenos e muito pesados (feitos de um metal que não é deste mundo) são imagem da divindade, em certas religiões de Tlõn.Aqui termino a parte pessoal de minha narrativa. O restante está na memória (quando não na esperança ou no temor) de todos os meus leitores. Basta-me recordar ou mencionar os fatos subseqüentes, com mera brevidade de palavras que a côncava lembrança geral enriquecerá ou ampliará. Por volta de 1944, um pesquisador do jornal The American (de Nashville, Tennessee) exumou numa biblioteca de Memphis os quarenta volumes da Primeira Enciclopédia de Tlõn. Até o dia de hoje se discute se essa descoberta foi casual ou se a consentiram os diretores do ainda nebuloso Orbis Tertius. É verossímil a segunda hipótese. Alguns traços inacreditáveis do Décimo Primeiro Tomo (verbi grada, a multiplicação dos hrónir) foram eliminados ou atenuados no exemplar de Memphis; é razoável imaginar que essas rasuras obedecem ao plano de exibir um mundo que não seja demasiadamente incompatível com o mundo real. A disseminação de objetos de488TLON, UQBAR, ORBIS TGRTIUSTlón em diversos países complementaria esse plano... O fato é que a imprensa internacional divulgou infinitamente o "achado". Manuais, antologias, resumos, versões literais, reimpressões autorizadas e reimpressões piráticas da Obra Maior dos Homens abarrotaram e continuam abarrotando a terra. Quase imediatamente, a realidade

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cedeu em mais de um ponto. O certo é que desejava ceder. Há dez anos, bastava qualquer simetria com aparência de ordem - o materialismo dialético, o anti-semitismo, o nazismo - para encantar os homens. Como não se submeter a Tlõn, à minuciosa e vasta evidência de um planeta ordenado? Inútil responder que a realidade também está ordenada. Quem sabe o esteja, mas conforme leis divinas - traduzo: leis desumanas - que nunca percebemos completamente. Tlõn será um labirinto, mas um labirinto urdido por homens, um labirinto destinado a ser decifrado pelos homens.O contato e o hábito de Tlõn desintegraram este mundo. Encantada por seu rigor, a humanidade esquece e torna a esquecer que é um rigor de enxadristas, não de anjos. Já penetrou nas escolas o (conjetural) "idioma primitivo" de Tlõn; já o ensino de sua história harmoniosa (e cheia de episódios comovedores) obliterou o que presidiu minha infância; já nas memórias um passado fictício ocupa o lugar de outro, do qual nada sabemos com certeza - nem, ao menos, que é falso. Foram reformadas a numismática, a farmacologia e a arqueologia. Entendo que a biologia e a matemática aguardam também seu avatar... Uma dispersa dinastia de solitários mudou a face do mundo. Sua tarefa prossegue. Se nossas previsões não errarem, daqui a cem anos alguém descobrirá os cem tomos da Segunda Enciclopédia de Tlõn.Com isso, desaparecerão do planeta o inglês e o francês e o simples espanhol. O mundo será Tlõn. Não me importo, continuo revisando, nos plácidos dias do hotel de Adrogué, uma indecisa tradução quevediana (que não tenciono publicar) do Llrn Burial, de Browne.6 Permanece, naturalmente, o problema da matéria de alguns objetos.489PIERRE MENARD, AUTOR DO QUIXOT6PIExKÉ MENARD, AUTOR DO QUIXOTEA Silvina OcampoA obra visível que deixou este romancista é de fácil e breve enumeração. São, portanto, imperdoáveis as omissões e adições perpetradas por Madame Henri Bachelier num catálogo falaz que certo jornal, cuja tendência protestante não é segredo, teve a desconsideração de infligir a seus deploráveis leitores - embora estes sejam poucos e calvinistas, quando não maçons e circuncisos. Os amigos autênticos de Menard viram com alarme esse catálogo e ainda com certa tristeza. Dir-se-ia que ontem nos reunimos diante do mármore final e entre os ciprestes infaustos e já o Erro trata de empanar sua Memória... Decididamente, uma breve retificação é inevitável.Consta-me que é muito fácil refutar minha pobre autoridade. Espero, no entanto, que não me proíbam de mencionar dois valiosos testemunhos. A baronesa de Bacourt (em cujos vendredis inesquecíveis tive a honra de conhecer o pranteado poeta) houve por bem aprovar as linhas que seguem. A condessa de Bagnoregio, um dos espíritos mais finos do principado de Mônaco (e agora de Pittsburg, Pensilvânia, depois de suas recentes bodas com o filantropo internacional Simón Kautzsch, tão caluniado - ai! - pelas vítimas de suas desinteressadas manobras), sacrificou "à veracidade e à morte" (tais são suas palavras) a senhoril reserva que a distingue e, numa carta aberta publicada na revista Luxe, concede-me também seu beneplácito. Esses títulos, creio, não são insuficientes.Disse que a obra visível de Menard é facilmente enumerável. Examinando com esmero seu arquivo particular, verifiquei que se constitui dos seguintes trabalhos:a) Um soneto simbolista que apareceu duas vezes (com variantes) na revista La Conque (números de março e outubro de 1899).b) Uma monografia sobre a possibilidade de construir um vocabulário poético de conceitos que não fossem sinônimos ou perífrases dos que formam a linguagem comum,

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"mas objetos ideais criados por uma convenção e essencialmente destinados às necessidades poéticas" (Nimes, 19O1).c) Uma monografia sobre "certas conexões ou afinidades" do pensamento de Descartes, de Leibniz e de John Wilkins (Nimes, 19O3).d) Uma monografia sobre a Characteristica Universalis de Leibniz (Nimes, 19O4).e) Um artigo técnico sobre a possibilidade de enriquecer o xadrez eliminando um dos peões de torre. Menard propõe, recomenda, polemiza e acaba por rejeitar essa inóvação.f )Uma monografia sobre a Ars Magna Generalis de Ramón Llull (Nimes, 19O6).g) Uma tradução com prólogo e notas do Livro da Invenção Liberal e Arte do Jogo de Xadrez de Ruy López de Segura (Paris,19O~.h) Os rascunhos de uma monografia sobre a lógica simbólica de George Boole.i) Um exame das leis métricas essenciais da prosa francesa, ilustrado com exemplos de Saint-Simon (Revue des Langues Romanes, Montpellier, outubro de 19O9).j) Uma réplica a Luc Durtain (que negara a existência de tais leis) ilustrada com exemplos de Luc Durtain (Revue des Langues Romanes, Montpellier, dezembro de 19O9).k) Uma tradução manuscrita da Aguja de Navegar Cultos, de Quevedo, intitulada La Boussole des Précieux.1) Um prefácio ao catálogo da exposição de litografias de Carolus Hourcade (Nimes, 1914).m) A obra Les Problèmes d"un Problème (Paris, 1917) que discute em ordem cronológica as soluções do ilustre problema de Aquiles e a tartaruga. Duas edições desse livro apareceram até agora; a segunda traz como epígrafe o conselho de Leibniz "Ne craignez point, monsieur, la tortue", e renova os capítulos dedicados a Russell e a Descartes.n) Uma obstinada análise dos "usos sintáticos" de Toulet (N. R. F., março de 1921). Menard - lembro-me - declarava que49O491f~ ó horegio, no "vitoborador, Gabriele Í dama para retiP apresentar "ao !sua pessoa, tão ~ sua atuação) a- °-Y"-oaaud5.r) Um ciclo de admiráveis sonetos para a baronesa de Bacourt (1934).s) Uma lista manuscrita de versos que devem sua eficácia à pontuação."Até aqui (sem outra omissão que alguns vagos sonetos circunstanciais para o hospitaleiro, ou ávido, álbum de Madame Henri Bachelier) a obra visível de Menard, em sua ordem cronológica. Passo agora à outra: a subterrânea, a interminavelmente heróica, a ímpar. Também - ai das possibilidades do homem! - a inconclusa. Essa obra, talvez a mais significativa de nosso tempo, compõe-se dos capítulos nono e trigésimo oitavo da primeira parte do Dom Quixote e de um fragmento do capítulo vinte e dois. Sei que tal afirmação parece disparate; justificar esse "disparate" é o objeto primordial desta nota.z1 Madame Henri Bachelier enumera também uma versão literal da versão literal que fez Quevedo da Introduction à la Vie Dévote de São Francisco de Sales. Na biblioteca de Pierre Menard não há vestígios de tal obra. Deve tratar-se de uma brincadeira de nosso amigo, mal-ouvida.

2 Tive também o propósito secundário de esboçar a imagem de Pierre Menard. Mas, como atrever-me a competir com as páginas áureas que, dizem-me, prepara a baronesa de Bacourt ou com o lápis delicado e pontual de Carolus Hourcade?

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PIERRE MENARD, AUTOR DO QUIXOTEDois textos de valor desigual inspiraram a idéia. Um é aquele fragmento filológico de Novalis - o que leva o número 2OO5 na edição de Dresden - que esboça o tema da total identiJícação com um autor determinado. Outro é um desses livros parasitários que situam Cristo num bulevar, Hamlet na Cannebière ou Dom Quixote em Wall Street. Como todo homem de bom gosto, Menard abominava esses carnavais inúteis, somente aptos - dizia - para produzir o plebeu prazer do anacronismo ou (o que é pior) para atrair-nos com a idéia primária de que todas as épocas são iguais ou de que são diferentes. Mais interessante, embora de execução contraditória e superficial, parecia-lhe o famoso propósito de Daudet: conjugar em uma figura, que é Tartarim, o Engenhoso Fidalgo e seu escudeiro... Aqueles que insinuaram que Menard dedicou sua vida a escrever um Quixote contemporâneo caluniam sua límpida memória.Não queria compor outro Quixote - o que é fácil - mas o Quixote. Inútil acrescentar que nunca enfrentou uma transcrição mecânica do original; não se propunha copiá-lo. Sua admirável ambição era produzir algumas páginas que coincidissem - palavra por palavra e linha por linha - com as de Miguel de Cervantes."Meu propósito é simplesmente assombroso", escreveume em 3O de setembro de 1934, de Bayonne. "O termo final de uma demonstração teológica ou metafísica - o mundo externo, Deus, a causalidade, as formas universais - não é menos anterior e comum que meu divulgado romance. A única diferença é que os filósofos publicam em agradáveis volumes as etapas intemediárias de seu trabalho e eu resolvi perdê-las." De fato, não resta um único rascunho que ateste esse trabalho de anos.O método inicial que imaginou era relativamente simples. Conhecer bem o espanhol, recuperar a fé católica, guerrear contra os mouros ou contra o turco, esquecer a história da Europa entre os anos de 16O2 e de 1918, ser Miguel de Cervantes. Pierre Menard estudou esse procedimento (sei que conseguiu um manejo bastante fiel do espanhol do século XVII), mas o afastou por considerá-lo fácil. Na realidade, impossível! - dirá o leitor. De acordo, porém o projeto era de antemão impossível e de todos os meios impossíveis para ievá-la a cabo, este era o menos interessante. Ser no século XXais que nada têm a do Cimetière Marinunas Folhas para a asa invectiva, entre eira opinião sobre miga entre os doisó ~492493FtcçòEsum romancista popular do século XVII pareceu-lhe uma diminuição. Ser, de alguma maneira, Cervantes e chegar ao Quixote pareceu-lhe menos árduo - por conseguinte, menos interessante - que continuar sendo Pierre Menard e chegar ao Quixote mediante as experiências de Pierre Menard. (Essa convicção, diga-se de passagem, o fez excluir o prólogo autobiográfico da segunda parte do Dom Quixote. Incluir esse prólogo teria sido criar outro personagem - Cervantes -, mas também teria significado apresentar o Quixote em função desse personagem e não de Menard. Este, naturalmente, negou-se a essa concessão.) "Meu projeto não é essencialmente difícil", leio em outro lugar da carta. "Bastar-me-ia ser imortal para realizá-la." Confessarei que costumo imaginar que a concluiu e que leio o Quixote - todo o Quixote - como se o tivesse pensado Menard? Noites atrás, ao folhear o capítulo XXVI - nunca por ele esboçado -, reconheci o estilo de nosso amigo e como que sua voz nesta frase excepcional: "as ninfas dos rios, a dolorosa e úmida Ecó". Essa conjunção eficaz de um adjetivo moral e outro físico trouxe-me à lembrança um verso de Shakespeare,

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que discutimos uma tarde:

1Nhere a malignant and a turbaned Turk...

Por que precisamente o Quixote? - dirá nosso leitor. Essa preferência, num espanhol, não seria inexplicável; mas o é, sem dúvida, num simbolista de Nimes, essencialmente devoto de Poe, que gerou Baudelaire, que gerou Mallarmé, que gerou Valéry, que gerou Edmond Teste. A carta acima mencionada elucida a questão. "O Quixote", esclarece Menard, "interessa-me profundamente, mas não me parece - como direi? - inevitável. Não posso imaginar o universo sem a interjeição de Poe:

Ah, bear in mind this garden was enchanted!

ou sem o Bateau Ivre ou o Ancient Mariner, sei-me contudo capaz de imaginá-lo sem o Quixote. (Falo, naturalmente, de minha capacidade pessoal, não da ressonãoncia histórica das obras.) O Quixote é um livro contingente, o Quixote é desnecessário. Posso premeditar sua escrita, posso escrevê-lo, sem incorrer numa tautologia. Aos doze ou treze anos o li,PIERRE MENARD, AUTOR DO QUIXOTEtalvez integralmente. Depois reli com atenção alguns capítulos, aqueles que não tentarei por ora. Freqüentei também os entremezes, as comédias, a Galatéia, os romances exemplares, os trabalhos sem dúvida laboriosos de Pergiles e Sigismunda- a Viagem do Parnaso... Minha lembrança geral do Quixote, simplificada pelo esquecimento e pela indiferença, pode muito bem equivaler à imprecisa imagem anterior de um livro não escrito. Postulada essa imagem (que ninguém por direito me pode negar) é indiscutível que meu problema é bastante mais difícil que o de Cervantes. Meu complacente precursor não recusou a colaboração do acaso: ia compondo a obra imortal um pouco á la duble, levado por inércias da linguagem- da invenção. Contraí o misterioso dever de reconstruir literalmente sua obra espontânea. Meu solitário jogo está governado por duas leis polares. A primeira permite-me ensaiar variantes de tipo formal ou psicológico; a segunda obriga-me a sacrificá-las ao texto "original" e a raciocinar de modo irrefutável sobre essa aniquilação... A esses obstáculos artificiais convém somar outro, congênito. Compor o Quixote em princípios do século XVII era um empreendimento razoável, necessário, quem sabe fatal; em princípios do XX, é quase impossível. Não transcorreram em vão trezentos anos, carregados de complexíssimos fatos. Entre eles, para mencionar um apenas: o próprio Quixote."Apesar desses três obstáculos, o fragmentário Quixote de Menard é mais sutil que o de Cervantes. Este, de modo grosseiro, opõe às ficções cavaleirescas a pobre realidade provinciana de seu país; Menard elege como "realidade" a terra de Carmen durante o século de Lepanto e de Lope. Que espanholadas não teria sugerido essa escolha a Maurice Barrès ou ao doutor Rodríguez Larreta! Menard, com toda naturalidade, evita-as. Em sua obra não há ciganices, nem conquistadores, nem místicos, nem Filipe Segundo, nem autos-de-fé. Desatende ou proscreve a cor local. Esse desdém revela. um sentido novo do romance histórico. Esse desdém condena Salammbô inapelavelmente.Não menos assombroso é considerar capítulos isolados. Por exemplo, examinemos o XXXVIII da primeira parte, "que trata do curioso discurso que fez Dom Quixote sobre as armas- as letras". É sabido que Dom Quixote (como Quevedo na passagem análoga, e posterior, de A Hora de Todos) julga o

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494495FicçõEspleito contra as letras e a favor das armas. Cervantes era um velho militar: sua decisão se explica. Mas que o Dom Quixote de Pierre Menard - homem contemporâneo de La Trahison des Clercs e de Bertrand Russell - reincida nessas nebulosas sofistarias! Madame Bachelier viu nelas admirável e típica subordinação do autor à psicologia do herói; outros (nada perspicazmente) uma transcrição do Quixote; a baronesa de Bacourt, a influência de Nietzsche. A essa terceira interpretação (que acho irrefutável) não sei se me atreverei a adicionar uma quarta, que condiz muito bem com a quase divina modéstia de Pierre Menard: seu hábito resignado ou irônico de propagar idéias que eram o estrito reverso das preferidas por ele. (Rememoremos outra vez sua diatribe contra Paul Valéry na efêmera página surrealista de jacques Reboul.) O texto de Cervantes e o de Menard são verbalmente idênticos, mas o segundo é quase infinitamente mais rico. (Mais ambíguo, dirão seus detratores; mas a ambigüidade é uma riqueza.)Constitui uma revelação cotejar o Dom Quixote de Menard com o de Cervantes. Este, por exemplo, escreveu (Dom Quixote, primeira parte, nono capítulo):

...a verdade, cuja mãe é a história, êmula do tempo, depósito das ações, testemunha do passado, exemplo e aviso do presente, advertência do futuro.

Redigida no século XVII, redigida pelo "engenho leigo" Cervantes, essa enumeração é mero elogio retórico da história. Menard, em compensação, escreve:

...a verdade, cuja mãe é a história, êmula do tempo, depósito das ações, testemunha do passado, exemplo e aviso do presente, advertência do futuro.

A história, mãe da verdade; a idéia é assombrosa. Menard, contemporâneo de William James, não define a história como indagação da realidade, mas como sua origem. A verdade histórica, para ele, não é o que aconteceu; é o que julgamos que aconteceu. As cláusulas finais - exemplo e aviso do presente, advertência do futuro - são descaradamente pragmáticas.496PIERRE MENARD, AUTOR DO QUfXOTETambém é vívido o contraste dos estilos. O estilo arcaizante de Menard - no fundo estrangeiro - padece de alguma afetação. Não assim o do precursor, que emprega com desenvoltura o espanhol corrente de sua época.Não há exercício intelectual que não resulte ao fim inútil. Uma doutrina filosófica é no início uma descrição verossímil do universo; passam os anos e é um simples capítulo - quando não um parágrafo ou um nome - da história da filosofia. Na literatura, essa caducidade final é ainda mais evidente. O Quixote - disse-me Menard - foi antes de tudo um livro agradável; agora é uma ocasião de brindes patrióticos, de soberba gramatical, de obscenas edições de luxo. A glória é uma incompreensão e talvez a pior.Nada têm de novo essas comprovações niilistas; o singular é a decisão que delas derivou Pierre Menard. Resolveu adiantar-se à vaidade que aguarda todas as fadigas do homem; empreendeu uma tarefa complexíssima e de antemão fútil. Dedicou seus escrúpulos e vigílias a repetir num idioma alheio um livro preexistente. Multiplicou

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os rascunhos; corrigiu tenazmente e rasgou milhares de páginas manuscritas." Não permitiu que fossem examinadas por ninguém e cuidou que não lhe sobrevivessem. Em vão, procurei reconstruí-las.Refleti que é lícito ver no Quixote "final" uma espécie de palimpsesto, no qual devem transluzir-se os rastos - tênues, mas não indecifráveis - da "prévia" escrita de nosso amigo. Infelizmente, apenas um segundo Pierre Menard, invertendo o trabalho do anterior, poderia exumar e ressuscitar essas Tróias..."Pensar, analisar, inventar" (escreveu-me também) "não são atos anômalos, são a normal respiração da inteligência. Glorificar o ocasional cumprimento dessa função, entesourar antigos e alheios pensamentos, recordar com incrédulo estupor o que o doctor universalis pensou, é confessar nossa languidez ou nossa barbárie. Todo homem deve ser capaz de todas as idéias e suponho que no futuro o será."3 Recordo seus cadernos quadriculados; suas negras rasuras, seus peculiares símbolos tipográficos e sua letra de inseto. Nos entardeceres gostava de caminharpelos arrabaldes de Nimes; costumava levar consigo um caderno e fazer uma alegre fogueira.497FicçòesMenard (talvez sem querê-lo) enriqueceu, mediante uma técnica nova, a arte fixa e rudimentar da leitura: a técnica do anacronismo deliberado e das atribuições errôneas. Essa técnica de aplicação infinita nos leva a percorrer a Odisséia como se fosse posterior à Eneida e o livro Le Jardin du Centaure de Madame Henri Bachelier como se fosse de Madame Henri Bachelier. Essa técnica povoa de aventura os livros mais pacíficos. Atribuir a Louis Ferdinand Céline ou a James Joyce a Imitação de Cristo não é suficiente renovação dessas tênues advertências espirituais?

Nimes,1939.AS RUÍNAS CIRCULARES

And if he left off dreaming about you... Through the Looking-Glass, VI.Ninguém o viu desembarcar na unãonime noite, ninguém viu a canoa de bambu sumindo-se no lodo sagrado, mas em poucos dias ninguém ignorava que o homem taciturno vinha do Sul e que sua pátria era uma das infinitas aldeias que estão águas acima, no flanco violento da montanha, onde o idioma zenda não está contaminado de grego e onde é infreqüente a lepra. O certo é que o homem cinza beijou o lodo, subiu as encostas da margem sem afastar (provavelmente, sem sentir) os arbustos cortantes que lhe dilaceravam as carnes e se arrastou, aturdido e ensangüentado, até o recinto circular que coroa um tigre ou cavalo de pedra, que teve certa vez a cor do fogo e agora a da cinza. Essa arena é um templo que os devoraram incêndios antigos, que a selva palúdica profanou e cujo deus não recebe honra dos homens. O forasteiro estendeu-se sob o pedestal. Despertou-o o sol alto. Comprovou sem assombro que as feridas tinham cicatrizado; fechou os olhos pálidos e dormiu, não por fraqueza da carne, mas por determinação da vontade. Sabia que esse templo era o lugar que requeria seu invencível propósito; sabia que as árvores incessantes não tinham conseguido estrangular, rio abaixo, as ruínas de outro templo propício, também de deuses incendiados e mortos; sabia que sua imediata obrigação era o sonho. Por volta da meia-noite, despertou-o o grito inconsolável de um pássaro. Rastros de pés descalços, alguns figos e um cântaro advertiram-no de que os homens da região haviam espiado com respeito seu sono e solicitavam seu amparo ou temiam sua magia. Sentiu o frio do medo e procurou na muralha dilapidada um nicho sepulcral e se cobriu com folhas desconhecidas.

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498499FccçõasO propósito que o guiava não era impossível, ainda que sobrenatural. Queria sonhar um homem: queria sonhá-lo com integridade minuciosa e impô-lo à realidade. Esse projeto mágico esgotara o espaço inteiro de sua alma; se alguém lhe tivesse perguntado o próprio nome ou qualquer aspecto de sua vida anterior, não teria acertado na resposta. Convinha-lhe o templo inabitado e despedaçado, porque era um mínimo de mundo visível; a proximidade dos lenhadores também, porque estes se encarregavam de suprir suas necessidades frugais. O arroz e as frutas de seu tributo eram pábulo suficiente para seu corpo, consagrado à única tarefa de dormir e sonhar.No começo, os sonhos eram caóticos; pouco depois, foram de natureza dialética. O forasteiro sonhava-se no centro de um anfiteatro circular que era de certo modo o templo incendiado: nuvens de alunos taciturnos esgotavam os degraus; os rostos dos últimos pendiam a muitos séculos de distância e a uma altura estelar, mas eram absolutamente precisos. O homem ditava-lhes lições de anatomia, de cosmografia, de magia: as fisionomias escutavam com ansiedade e tentavam responder com entendimento, como se adivinhassem a importância daquele exame, que redimiria um deles de sua condição de vã aparência e o interpolaria no mundo real. O homem, no sonho e na vigília, considerava as respostas de seus fantasmas, não se deixava iludir pelos impostores, adivinhava em certas perplexidades uma inteligência crescente. Procurava uma alma que merecesse participar do universo.Depois de nove ou dez noites, compreendeu, com alguma amargura, que não podia esperar nada daqueles alunos que aceitavam passivamente sua doutrina e sim daqueles que arriscavam, às vezes, uma contradição razoável. Os primeiros, embora dignos de amor e afeição, não podiam ascender a indivíduos; os últimos preexistiam um pouco mais. Uma tarde (agora também as tardes eram tributárias do sonho, agora velava apenas algumas horas no amanhecer) diplomou para sempre o vasto colégio ilusório e ficou com um único aluno. Era um rapaz taciturno, citrino, indócil às vezes, de feições afiladas que repetiam as de seu sonhador. Não o desconcertou por muito tempo a repentina eliminação dos co-discípulos; seu progresso, ao fim de poucas lições particulares, pôde maravilhar o mestre. Não obstante, a catástrofe sobreveio.5OOO homem, um dia, emergiu do sonho como de um deserto viscoso, olhou a vã luz da tarde que, à primeira vista, confundiu com a aurora e compreendeu que não sonhara. Toda essa noite e todo o dia, a intolerável lucidez da insônia se abateu contra ele. Quis explorar a selva, extenuar-se; somente entre a cicuta conseguiu algumas rajadas de sonho débil, venuladas fugazmente de visões de tipo rudimentar: inaproveitáveis. Quis congregar o colégio e apenas havia articulado algumas breves palavras de exortação, este se deformou, se apagou. Na quase perpétua vigília, lágrimas de ira queimavam-lhe os velhos olhos.Compreendeu que o empenho de modelar a matéria incoerente e vertiginosa de que se compõem os sonhos é o mais árduo que pode empreender um varão, ainda que penetre em todos os enigmas da ordem superior e da inferior: muito mais árduo que tecer uma corda de areia ou amoedar o vento sem rosto. Compreendeu que um fracasso inicial era inevitável. Jurou esquecer a enorme alucinação que o desviara no começo e procurou outro método de trabalho. Antes de exercitá-lo, dedicou um mês à reposição das forças que o delírio havia desperdiçado. Abandonou toda premeditação de sonhar e quase imediatamente conseguiu dormir uma parte razoável do dia. As raras vezes

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que sonhou, durante esse período, não reparou nos sonhos. Para retomar a tarefa, esperou que o disco da lua fosse perfeito. Depois, à tarde, purificou-se nas águas do rio, adorou os deuses planetários, pronunciou as sílabas lícitas de um nome poderoso e dormiu. Quase de imediato, sonhou com um coração que pulsava.Sonhou-o ativo, caloroso, secreto, do tamanho de um punho fechado, cor grená na penumbra de um corpo humano, ainda sem rosto ou sexo; com minucioso amor sonhou-o, durante catorze lúcidas noites. Cada noite, percebia-o com maior evidência. Não o tocava: limitava-se a testemunhá-lo, observá-lo, talvez corrigi-lo com o olhar. Percebia-o, vivia-o, de muitas distâncias e muitos ângulos. Na décima quarta noite, roçou a artéria pulmonar com o indicador e depois todo Ocoração, por fora e por dentro. O exame o satisfez. Deliberadamente não sonhou durante uma noite: depois retomou o coração, invocou o nome de um planeta e empreendeu a visão de outro dos órgãos principais. Antes de um ano chegou ao esqueleto, às pálpebras. O cabelo inumerável foi talvez a tarefaAS RUÍNAS CIRCULARES5O1Ficçoesmais difícil. Sonhou um homem inteiro, um moço, mas este não se incorporava nem falava, nem podia abrir os olhos. Noite após noite, o homem sonhava-o adormecido.Nas cosmogonias gnósticas, os demiurgos amassam um vermelho Adão que não consegue pôr-se de pé; tão inábil e rude e elementar como esse Adão de pó era o Adão de sonho que as noites do mago tinham fabricado. Uma tarde, o homem quase destruiu toda a sua obra, mas se arrependeu. (Mais lhe teria valido destruí-la.) Esgotados os votos aos numes da terra e do rio, arrojou-se aos pés da efígie que talvez fosse um tigre e talvez um potro, e implorou seu desconhecido socorro. Nesse crepúsculo, sonhou com a estátua. Sonhou-a viva, trêmula: não era um atroz bastardo de tigre e potro, mas simultaneamente essas duas criaturas veementes e também um touro, uma rosa, uma tempestade. Esse múltiplo deus revelou-lhe que seu nome terrenal era Fogo, que nesse templo circular (e em outros iguais) rendiam-lhe sacrifícios e culto e que magicamente animaria o fantasma sonhado, de tal sorte que todas as criaturas, exceto o próprio Fogo e o sonhador, julgassem-no um homem de carne e osso. Ordenou-lhe que uma vez instruído nos ritos, remetesse-o ao outro templo despedaçado, cujas pirâmides persistem águas abaixo, para que alguma voz o glorificasse naquele edifício deserto. No sonho do homem que sonhava, o sonhado despertou.O mago executou essas ordens. Consagrou um prazo (que finalmente abrangeu dois anos) para descobrir-lhe os arcanos do universo e do culto do fogo. Intimamente, doía-lhe separar-se dele. Com o pretexto da necessidade pedagógica, dilatava a cada dia as horas dedicadas ao sonho. Também refez o ombro direito, talvez deficiente. Às vezes, inquietavao uma impressão de que tudo isso havia acontecido... Em geral, seus dias eram felizes; ao fechar os olhos pensava: "Agora estarei com meu filho". Ou, mais raramente: "O filho que gerei me espera e não existirá se eu não for".Gradualmente, foi acostumando-o à realidade. Certa vez, ordenou-lhe que embandeirasse um cume longínquo. No outro dia, flamejava a bandeira no cume. Ensaiou outras experiências análogas, cada vez mais audazes. Compreendeu com certa amargura que seu filho estava pronto para nascer - e talvez impaciente. Nessa noite beijou-o pela primeira vez eenviou-o ao outro templo cujos despojos branqueavam rio abaixo, a muitas léguas de inextricável selva e pântano. Antes (para que nunca soubesse que era um fantasma, para que se acreditasse um homem como os outros) infundiu-lhe o esquecimento total de seus anos de aprendizagem.

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Sua vitória e sua paz ficaram embaçadas de fastio. Nos crepúsculos da tarde e da alvorada, prostrava-se diante da figura de pedra, talvez imaginando que seu filho irreal executasse idênticos ritos, em outras ruínas circulares, águas abaixo; de noite, não sonhava, ou sonhava como o fazem todos os homens. Percebia com certa palidez os sons e formas do universo: o filho ausente se nutria dessas diminuições de sua alma. O propósito de sua vida fora atingido; o homem persistiu numa espécie de êxtase. No fim de um tempo que certos narradores de sua história preferem computar em anos e outros em lustros, despertaram-no dois remadores, à meianoite: não pôde ver seus rostos, mas lhe falaram de um homem mágico, num templo do Norte, capaz de pisar o fogo e não queimar-se. O mago lembrou-se bruscamente das palavras do deus. Recordou que de todas as criaturas que compõem o orbe, o fogo era a única que sabia ser seu filho um fantasma. Essa lembrança, apaziguadora no princípio, acabou por atormentá-lo. Temeu que seu filho meditasse nesse privilégio anormal e descobrisse de algum modo sua condição de mero simulacro. Não ser um homem, ser a projeção do sonho de outro homem, que humilhação incomparável, que vertigem! A todo pai interessam os filhos que procriou (que permitiu) numa simples confusão ou felicidade; é natural que o mago temesse pelo futuro daquele filho, pensado entranha por entranha e traço por traço, em mil e uma noites secretas.O final de suas cavilações foi brusco, mas o anunciaram alguns sinais. Primeiro (no término de uma longa seca) uma remota nuvem numa colina, leve como um pássaro; depois, para o Sul, o céu que tinha a cor rosada da gengiva dos leopardos; depois a fumaceira que enferrujou o metal das noites; depois a fuga pânica das bestas. Porque se repetiu o acontecido faz muitos séculos. As ruínas do santuário do deus do fogo foram destruídas pelo fogo. Numa alvorada sem pássaros, o mago viu cingir-se contra os muros o incêndio concêntrico. Por um instante, pensou refugiar-se nas águas, mas depois5O25O3Facçõescompreendeu que a morte vinha coroar sua velhice e absolvêlo de seus trabalhos. Caminhou contra as línguas de fogo. Estas não morderam sua carne, estas o acariciaram e o inundaram sem calor e sem combustão. Com alívio, com humilhação, com terror, compreendeu que ele também era uma aparência, que outro o estava sonhando.A LOTERIA EM BABILÔNIAComo todos os homens de Babilônia, fui procônsul; como todos, escravo; também conhecia a onipotência, o opróbrio, os cárceres. Olhem: à minha mão direita falta-lhe o indicador. Olhem: por este rasgão da capa vê-se em meu estômago uma tatuagem vermelha: é o segundo símbolo, Beth. Esta letra, nas noites de lua cheia, confere-me poder sobre os homens cuja marca é Ghimel, mas me subordina aos de Aleph, que nas noites sem lua devem obediência aos Ghimel. No crepúsculo do amanhecer, num porão, degolei diante de uma pedra negra touros sagrados. Durante um ano da lua, fui declarado invisível: gritava e não me respondiam, roubava o pão e não me decapitavam. Conheci o que ignoram os gregos: a incerteza. Num aposento de bronze, diante do lenço silencioso do estrangulador, a esperança me foi fiel; no rio dos deleites, o pânico. Heraclides Pôntico narra com admiração que Pitágoras lembrava-se de ter sido Pirro e antes Euforbo e antes ainda algum outro mortal; para recordar vicissitudes análogas não preciso recorrer à morte, nem mesmo à impostura.Devo essa variedade quase atroz a uma instituição que outras repúblicas ignoram ou que nelas trabalha de modo imperfeito e secreto: a loteria. Não indaguei sua história; sei que os magos não conseguem chegar a um acordo; sei de seus poderosos propósitos o que pode saber da lua o homem não versado em astrologia. Sou de um país vertiginoso

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onde a loteria é parte principal da realidade: até o dia de hoje, pensei tão pouco nela como na conduta dos deuses indecifráveis ou de meu coração. Agora, longe de Babilônia e de seus queridos costumes, penso com certo assombro na loteria e nas conjeturas blasfemas que no crepúsculo murmuram os homens velados.Meu pai contava que antigamente - questão de séculos, de anos? - a loteria em Babilônia era um jogo de caráter ple5O45O5FicçoEsA LOTERIA EM BABILÔNIAbeu. Contava (ignoro se com verdade) que os barbeiros vendiam, por moedas de cobre, retângulos de osso ou de pergaminho adornados de símbolos. Em pleno dia verificava-se um sorteio: os contemplados recebiam, sem outra corroboração da sorte, moedas cunhadas de prata. O procedimento era elementar, como vêem os senhores.Naturalmente, essas "loterias" fracassaram. Sua virtude moral era nula. Não se dirigiam a todas as faculdades do homem: unicamente à sua esperança. Diante da indiferença pública, os mercadores que fundaram essas loterias venais começaram a perder dinheiro. Alguém ensaiou uma reforma: a interpolação de uns poucos números adversos no censo de números favoráveis. Mediante essa reforma, os compradores de retângulos numerados corriam o duplo risco de ganhar uma soma e de pagar uma multa, às vezes vultosa. Esse leve perigo (em cada trinta números favoráveis havia um número aziago) despertou, como é natural, o interesse do público. Os babilônios entregaram-se ao jogo. O que não tentava a sorte era considerado um pusilânime, um apoucado. Com o tempo, esse desdém justificado duplicou-se. Era desprezado o que não jogava, mas também eram desprezados os perdedores que abonavam a multa. A Companhia (assim começou então a ser chamada) teve que velar pelos ganhadores, que não podiam cobrar os prêmios se faltasse nas caixas a importância quase total das multas. Deu início a uma demanda contra os perdedores: o juiz condenou-os a pagar a multa original e as custas ou a uns dias de prisão. Todos optaram pelo cárcere, para defraudar a Companhia. Dessa bravata de uns poucos nasce todo o poder da Companhia: seu valor eclesiástico, metafísico.Pouco depois, os relatórios dos sorteios omitiram as enumerações de multas e limitaram-se a publicar os dias de prisão que designava cada número adverso. Esse laconismo, quase desapercebido em seu tempo, foi de importância capital. Foi o primeiro aparecimento na loteria de elementos não peeurziários. O êxito foi grande. Instada pelos jogadores, a Companhia viuse obrigada a aumentar os números adversos.Ninguém ignora que o povo de Babilônia é muito devotado à lógica, e ainda à simetria. Era incoerente que os números de sorte se computassem em redondas moedas e os infaustosem dias e noites de cárcere. Alguns moralistas raciocinaram que a posse de moedas nem sempre determina a felicidade e que outras formas de ventura são talvez mais diretas.Outra inquietação propagava-se nos bairros mais humildes. Os membros do colégio sacerdotal multiplicavam as apostas e gozavam de todas as vicissitudes do terror e da esperança; os pobres (com inveja razoável ou inevitável) sabiam-se excluídos desse vaivém, notoriamente delicioso. O justo desejo de que todos, pobres e ricos, participassem por igual da loteria inspirou uma indignada agitação, cuja memória não apagaram os anos. Alguns obstinados não compreenderam (ou simularam não compreender) que se tratava de uma ordem nova, de uma etapa histórica necessária... Um escravo roubou um bilhete carmesim, que no sorteio o fez credor a que lhe queimassem a

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língua. O código fixava essa mesma pena para quem roubasse um bilhete. Alguns babilônios argumentavam que merecia o ferro candente, em sua qualidade de ladrão; outros, magnãonimos, que se devia condená-lo ao carrasco porque assim o havia determinado o acaso... Houve distúrbios, houve efusões lamentáveis de sangue; mas a gente babilônica impôs finalmente sua vontade, contra a oposição dos ricos. O povo conseguiu plenamente seus fins generosos. Em primeiro lugar, obteve que a Companhia aceitasse a soma do poder público. (Essa unificação era necessária, dada a vastidão e complexidade das novas operações.) Em segundo lugar, conseguiu que a loteria fosse secreta, gratuita e geral. Ficou abolida a venda mercenária de sortes. Iniciado nos mistérios de Bel, todo homem livre automaticamente participava dos sorteios sagrados, que se efetuavam nos labirintos do deus a cada sessenta noites e que determinavam seu destino até o próximo exercício. As conseqüências eram incalculáveis. Uma jogada feliz podia motivar-lhe a elevação ao concílio de magos ou a detenção de um inimigo (notório ou íntimo) ou o encontrar, na pacífica treva do quarto, a mulher que começa a inquietar-nos ou que não esperávamos rever; uma jogada adversa: a mutilação, a variada infâmia, a morte. Às vezes, um único fato - o grosseiro assassinato de C, a apoteose misteriosa de B - era a solução genial de trinta ou quarenta sorteios. Combinar as jogadas era difícil; mas convém lembrar que os indivíduos da Companhia eram (e são) todo-poderosos e astu5O65O7FicçõEsA LOTERIA EM BABILÕNIAtos. Em muitos casos, o conhecimento de que certas felicidades eram simples obra do acaso teria diminuído sua virtude; para evitar esse inconveniente, os agentes da Companhia usavam das sugestões e da magia. Seus passos, seus manejos, eram secretos. Para indagar as íntimas esperanças e os íntimos terrores de cada um, dispunham de astrólogos e de espiões. Havia certos leões de pedra, havia uma latrina sagrada chamada Qaphga, havia algumas fendas no poeirento aqueduto que, segundo opinião geral, levavam à Companhia; as pessoas malignas ou benévolas depositavam delações nesses lugares. Um arquivo alfabético recolhia essas informações de variável veracidade.Inacreditavelmente, não faltaram murmúrios. A Companhia, com sua discrição habitual, não respondeu diretamente. Preferiu rabiscar nos escombros de uma fábrica de máscaras um argumento breve, que agora figura nas escrituras sagradas. Essa obra doutrinal observava que a loteria é uma interpolação do acaso na ordem do mundo e que aceitar erros não é contradizer o acaso: é corroborá-lo. Observava, da mesma maneira, que esses leões e esse recipiente sagrado, ainda que não desautorizados pela Companhia (que não renunciava ao direito de consultá-los), funcionavam sem garantia oficial.Essa declaração apaziguou as inquietações públicas. Também produziu outros efeitos, talvez não previstos pelo autor. Modificou profundamente o espírito e as operações da Companhia. Pouco tempo me resta; avisam-nas de que a nave está por zarpar; mas tratarei de explicá-lo.Por inverossímil que pareça, ninguém ensaiara até então uma teoria geral dos jogos. O babilônio não é especulativo. Acata os ditames do acaso, entrega-lhes sua vida, sua esperança, seu terror pânico, mas não lhe ocorre investigar suas leis labirínticas, nem as esferas giratórias que o revelam. Não obstante, a declaração oficiosa que mencionei inspirou muitas discussões de caráter jurídico-matemático. De alguma delas nasceu a conjetura seguinte: Se a loteria é uma intensificação do acaso, uma periódica infusão do caos no cosmos, não conviria que o acaso interviesse em todas as etapas do sorteio e não apenas em uma? Não é irrisório que o acaso dite

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a morte de alguém e que as circunstâncias dessa morte - a reserva, a publicidade, o prazo de uma hora ou de um século - não estejam subordinadas ao acaso? Esses escrúpulos tão justos provocaram, por fim, uma considerável reforma, cujas complexidades (agravadas por um exercício de séculos) só as entendem alguns especialistas, mas que tentarei resumir, embora de modo simbólico.Imaginemos um primeiro sorteio, que decreta a morte de um homem. Para seu cumprimento procede-se a outro sorteio, que propõe (digamos) nove executores possíveis. Desses executores, quatro podem iniciar um terceiro sorteio que dirá o nome do verdugo, dois podem substituir a ordem adversa por uma ordem feliz (o encontro de um tesouro, digamos), outro exacerbará a morte (isto é, torná-la-á infame ou a enriquecerá de torturas), outros podem negar-se a cumpri-la... Tal é o esquema simbólico. Na realidade, o número de sorteios é infinito. Nenhuma decisão é final, todas se ramificam em outras. Os ignorantes supõem que infinitos sorteios requerem um tempo infinito; na realidade, basta que o tempo seja infinitamente subdivisível, como o ensina a famosa parábola do Certame com a tartaruga. Essa infinitude condiz de maneira admirável com os sinuosos números do Acaso e com o Arquétipo Celestial da Loteria, que adoram os platônicos... Algum eco disforme de nossos ritos parece ter retumbado no Tibre: Elio Lamprídio, na Vida de Antonino Heliogábalo, conta que esse imperador escrevia em conchas as sortes que destinava aos convidados, de maneira que um recebia dez libras de ouro e outro, dez moscas, dez marmotas, dez ossos. É lícito lembrar que Heliogábalo educou-se na Ásia Menor, entre os sacerdotes do deus epônimo.Também há sorteios impessoais, de propósito indefinido; um decreta que se lance às águas do Eufrates uma safira de Taprobana; outro, que do alto de uma torre se solte um pássaro; outro, que a cada século se retire (ou se acrescente) um grão de areia dos inumeráveis que há na praia. As conseqüências são, às vezes, terríveis.Sob o influxo benfeitor da Companhia, nossos costumes estão saturados de acaso. O comprador de uma dúzia de ânforas de vinho damasceno não se assombrará se uma delas contiver um talismã ou uma víbora; o escrivão que redige um contrato não deixa quase nunca de introduzir algum dado errôneo; eu próprio, nesta apressada exposição, falseei certo5O85O9F~cçõEsesplendor, certa atrocidade. Talvez, também, alguma misteriosa monotonia... Nossos historiadores, que são os mais perspicazes do orbe, inventaram um método para corrigir o acaso; diz-se que as operações desse método são (em geral) fidedignas; embora, naturalmente, não se divulguem sem certa dose de engano. Além disso, nada tão contaminado de ficção como a história da Companhia... Um documento paleográfico, exumado num templo, pode ser obra de um sorteio de ontem ou de um sorteio secular. Não se publica um livro sem alguma divergência em cada um dos exemplares. Os escribas prestam juramento secreto de omitir, de interpolar, de alterar. Também se exerce a mentira indireta.A Companhia, com modéstia divina, elude toda publicidade. Seus agentes, como é óbvio, são secretos; as ordens que dá continuamente (quiçá incessantemente) não diferem das que prodigalizam os impostores. Ademais, quem poderá gabar-se de ser um simples impostor? O bêbado que improvisa um mandato absurdo, o sonhador que desperta de repente- estrangula a mulher que dorme a seu lado, não executam, porventura, uma secreta decisão da Companhia? Esse funcionamento silencioso, comparável ao de Deus, provoca

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toda espécie de conjeturas. Uma insinua abominavelmente que faz já séculos que não existe a Companhia e que a sacra desordem de nossas vidas é puramente hereditária, tradicional; outra a julga eterna e ensina que perdurará até a última noite, quando- último deus aniquile o mundo. Outra declara que a Companhia é onipotente, mas que influi somente em coisas minúsculas: no grito de um pássaro, nos matizes da ferrugem- do pó, nos entressonhos da alvorada. Outra, por boca de heresiarcas mascarados, que nunca existiu nem existirá. Outra, não menos vil, argumenta que é indiferente afirmar ou negar a realidade da tenebrosa corporação, porque Babilônia não é outra coisa senão um infinito jogo de acasos.EXAME DA OBRA DE HERBERT QUAINHerbert Quain morreu em Roscommon; comprovei sem assombro que o Suplemento Literário do Times apenas lhe concede meia coluna de piedade necrológica, na qual não há epíteto laudatório que não esteja corrigido (ou seriamente admoestado) por um advérbio. O Spectator, em seu número a respeito, é sem dúvida menos lacônico e talvez mais cordial, contudo equipara o primeiro livro de Quain - The God of the Labyrinth - a um de Mrs. Agatha Christie e outros aos de Gertrude Stein: evocações que ninguém julgará inevitáveis e que não teriam alegrado o defunto. Este, de resto, nunca se acreditou genial; nem sequer nas noites peripatéticas de conversa literária, nas quais o homem que já esgotou os jornais brinca invariavelmente de ser Monsieur Teste ou o doutor Samuel Johnson... Percebia, com toda lucidez, a condição experimental de seus livros: admiráveis talvez pela novidade e por certa lacônica probidade, mas não pelas virtudes da paixão. "Sou como as odes de Cowley", escreveu-me de Longford em seis de março de 1939. "Não pertenço à arte, senão à mera história da arte." Não havia, para ele, disciplina inferior à história.Repeti uma modéstia de Herbert Quain; naturalmente, essa modéstia não esgota seu pensamento. Flaubert e Henry James acostumaram-nos a supor que as obras de arte são infreqüentes e de realização penosa; o século XVI (recordemos a Viagem do Parnaso, recordemos o destino de Shakespeare) não compartilhava dessa desconsolada opinião. Herbert Quain, tampouco. Parecia-lhe que a boa literatura era bastante comum e que são poucos os diálogos de rua que não a atingem. Parecia-lhe também que o fato estético não pode51O511Ficçòesprescindir de certo elemento de assombro e que assombrar-se de memória é difícil. Deplorava com sorridente sinceridade "a servil e obstinada conservação" de livros pretéritos... Ignoro se sua vaga teoria é justificável; sei que seus livros desejam em demasia o assombro.Lamento ter emprestado a uma dama, irreversivelmente, o primeiro que publicou. Declarei que se trata de um romance policial: The God of the Labyrinth; posso agradecer que o editor colocou-o à venda nos últimos dias de novembro de 1933. Em princípios de dezembro, as agradáveis e árduas involuções do Siamese Twin Mystery atarefaram Londres e Nova York; prefiro atribuir a essa coincidência arruinada o fracasso do romance de nosso amigo. Do mesmo modo (quero ser totalmente sincero) à sua elaboração deficiente e à vã e frígida pompa de certas descrições do mar. Depois de sete anos, para mim torna-se impossível recuperar os pormenores da ação; eis aqui seu plano; tal como agora o empobrece (tal como agora o purifica) meu esquecimento. Há um indecifrável assassinato nas páginas iniciais, uma lenta discussão nas intermediárias, uma solução nas últimas. Já esclarecido o enigma, há um parágrafo longo e retrospectivo que contém esta frase: "Todos acreditaram que o encontro dos jogadores de

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xadrez fora casual". Essa frase deixa entender que a solução é errônea. O leitor, inquieto, revê os capítulos pertinentes e descobre outra solução, que é a verdadeira. O leitor desse livro singular é mais perspicaz que o detetive.Ainda mais heterodoxo é o "romance regressivo, ramificado" April March, cuja terceira (e única) parte é de 1936. Ninguém, ao julgar esse romance, nega-se a descobrir que é um jogo; é lícito recordar que o autor nunca o considerou outra coisa. "Reivindico para essa obra", escutei-o dizer, "os aspectos essenciais de todo jogo: a simetria, as leis arbitrárias, o tédio." Até o nome é um débil calembour: não significa Marcha de Abril, mas literalmente Abril Março. Alguém percebeu em suas páginas um eco das doutrinas de Dunne; o prólogo de Quain prefere evocar aquele inverso mundo de Bradey, no qual a morte precede ao nascimento e a cicatriz à ferida e a ferida ao golpe (Appearance and Reality, 1897, página512FXAME DA OBRA DE HERBERT QUAIN215)." Os mundos que propõe April March não são regressivos; mas sim a maneira de historiá-los. Regressiva e ramificada, como já disse. Treze capítulos integram a obra. O primeiro relata o ambíguo diálogo de alguns desconhecidos numa estação. O segundo conta os acontecimentos da véspera do primeiro. O terceiro, também retrógrado, conta os acontecimentos de outra possível véspera do primeiro; o quarto, os de outra. Cada uma dessas três vésperas (que rigorosamente se excluem) ramifica-se em outras três vésperas, de índole muito diversa. A obra total compõe-se, pois, de nove romances; cada romance, de três longos capítulos. (O primeiro é comum a todos eles, naturalmente.) Desses romances, um é de caráter simbólico; outro, sobrenatural; outro, policial; outro, psicológico; outro, comunista; outro, anticomunista, etc. Talvez um esquema ajude a compreender a estruturaDessa estrutura cabe repetir o que declarou Schopenhauer das doze categorias kantianas: sacrifica tudo a um furor1 Ai da erudição de Herbert Quain, ai da página 215 de um livro de 1897. Um interlocutor do Político, de Platão, já havia descrito regressão semelhante: a dos Filhos da Terra ou Autóctones que, submetidos ao influxo de uma rotação inversa do cosmos, passaram da velhice à maturidade, da maturidade à infância, da infância ao desaparecimento e ao nada. Também Teopompo, em sua Filípica, tala de certas frutas boreais que originam em quem as come o mesmo processo retrógrado... Mais interessante é imaginar uma inversão do Tempo: um estado no qual recordássemos o futuro e ignorássemos, ou apenas pressentíssemos, o passado. Cf. n canto décimo do Infenso, versos 97-1O2, em que se comparam a visão profética e a presbitia.513zylx1 x2 x3y2y3x4 x5 x6x7 x8 x9FicçõEssimétrico. Previsivelmente, uma das nove narrativas é indigna de Quain; o melhor não é o que originariamente ideou, o x 4; é o de natureza fantástica, o .x 9. Outros estão deformados por brincadeiras lânguidas e por pseudoprecisões inúteis. Quem os lê em ordem cronológica (verhi grada: x 3, y 1, z) perde o sabor peculiar do estranho

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livro. Duas narrativas - o x 7, o x 8 - carecem de valor individual; a justaposição dá-lhes eficácia... Não sei se devo lembrar que já publicado April March, Quain arrependeu-se da ordem ternária e predisse que os homens que o imitassem optariam pela bináriae os demiurgos e os deuses pela infinita: infinitas histórias, infinitamente ramificadas.Muito diversa, mas também retrospectiva, é a comédia heróica em dois atos The Secret Mirror. Nas obras já resenhadas, a complexidade formal havia entorpecido a imaginação do autor; aqui, sua evolução é mais livre. O primeiro ato (o mais extenso) ocorre na casa de campo do general Thrale, C.LE., perto de Melton Mowbray. O invisível centro da trama é Miss Ulrica Thrale, a primogênita do general. Por meio de certo diálogo a entrevemos, amazona e altiva; suspeitamos que não costume visitar a literatura; os jornais anunciam seu noivado com o duque de Rutland; os jornais desmentem o noivado. Adora-a um autor dramático, Wilfred Quarles; certa vez, ela lhe concedeu um distraído beijo. Os personagens são de vasta fortuna e ascendências tradicionais; os afetos, nobres, ainda que veementes; o diálogo parece vacilar entre a mera vaniloqüência de Bulwer-Lytton e os epigramas de Wilde ou de Mr. Philip Guedalla. Há um rouxinol e uma noite; há um duelo secreto num terraço. (Quase totalmente imperceptíveis, há certa curiosa contradição, há pormenores sórdidos.) Os514EXAME DA OBRA DE HERBERT QUAINpersonagens do primeiro ato reaparecem no segundo - com outros nomes. O "autor dramático" Wilfred Quarles é um corretor de Liverpool; seu verdadeiro nome, John William Quigley. Miss Thrale existe; Quigley jamais a viu, porém, morbidamente, coleciona suas fotografias do Tatler ou do Sketch. Quigley é autor do primeiro ato. A inverossímil ou improvável "casa de campó" é a pensão judaico-irlandesa em que vive, transfigurada e magnificada por ele... A trama dos atos é paralela, mas no segundo tudo é ligeiramente horrível, tudo se posterga ou se frustra. Quando The Secret Mirror estreou, a crítica pronunciou os nomes de Freud e de Julien Green. A menção do primeiro parece-me totalmente injustificada.A fama divulgou que The Secret Mirror era uma comédia freudiana; essa interpretação propícia (e falaz) determinou seu êxito. Infelizmente, Quain já completara os quarenta anos; estava aclimatado ao fracasso e não se resignava docemente a uma mudança de regime. Resolveu desforrar-se. Em fins de 1939, publicou Statements, quem sabe o mais original de seus livros, sem dúvida o menos elogiado e o mais secreto. Quain costumava argumentar que os leitores eram espécie já extinta. "Não há europeu (raciocinava) que não seja escritor, em potência ou em ato." Também afirmava que das diversas felicidades que pode ministrar a literatura, a mais alta era a invenção. Já que nem todos são capazes dessa felicidade, muitos terão de contentar-se com simulacros. Para esses "imperfeitos escritores", cujo nome é legião, Quain redigiu as oito narrativas do livro Statements. Cada uma delas prefigura ou promete um bom argumento, voluntariamente frustrado pelo autor. Uma - não a melhor - insinua dois argumentos. O leitor, distraído pela vaidade, acredita tê-las inventado. Da terceira, The Rose of Yesterday, cometi a ingenuidade de extrair "As ruínas circulares", que é um dos contos do livro O Jardim de Veredas que se Bifurcam.

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515A BIBLIOTECA DE BABELA BIBLIOTECA DE BABELBy this art you may contemplate the varintion of the 23 letters...The Anatamy of Melancholy, part. 2, sect. II, mem. 1V.O universo (que outros chamam a Biblioteca) compõe-se de um número indefinido, e talvez infinito, de galerias hexagonais, com vastos poços de ventilação no centro, cercados por balaustradas baixíssimas. De qualquer hexágono, vêem-se os andares inferiores e superiores: interminavelmente. A distribuição das galerias é invariável. Vinte prateleiras, em cinco longas estantes de cada lado, cobrem todos os lados menos dois; sua altura, que é a dos andares, excede apenas a de um bibliotecário normal. Uma das faces livres dá para um estreito vestíbulo, que desemboca em outra galeria, idênticá à primeira e a todas. A esquerda e à direita do vestbulo, há dois sanitários minúsculos. Um permite dormir em pé; outro, satisfazer as necessidades físicas. Por aí passa a escada espiral, que se abisma e se eleva ao infinito. No vestíbulo há um espelho, que fielmente duplica as aparências. Os homens costumam inferir desse espelho que a Biblioteca não é infinita (se o fosse realmente, para que essa duplicação ilusória?), prefiro sonhar que as superfícies polidas representam e prometem o infinito... A luz procede de algumas frutas esféricas que levam o nome de lâmpadas. Há duas em cada hexágono: transversais. A luz que emitem é insuficiente, incessante.Como todos os homens da Biblioteca, viajei na minha juventude; peregrinei em busca de um livro, talvez do catálogo de catálogos; agora que meus olhos quase não podem decifrar o que escrevo, preparo-me para morrer, a poucas léguas do hexágono em que nasci. Morto, não faltarão mãos piedosas que me joguem pela balaustrada; minha sepultura será o ar insondável;meu corpo cairá demoradamente e se corromperá e dissolverá no vento gerado pela queda, que é infinita. Afirmo que a Biblioteca é interminável. Os idealistas argúem que as salas hexagonais são uma forma necessária do espaço absoluto ou, pelo menos, de nossa intuição do espaço. Alegam que é inconcebíveluma sala triangular ou pentagonal. (Os místicos pretendem que o êxtase lhes revele uma câmara circular com um grande livro circular de lombada contínua, que siga toda a volta das paredes; mas seu testemunho é suspeïto; suas palavras, obscuras. Esse livro cíclico-é Deus.) Basta-me, por ora, repetir o preceito clássico: "A Biblioteca é uma esfera cujo centro cabal é qualquer hexágono, cuja circunferência é inacessível".A cada um dos muros de cada hexágono correspondem cinco estantes; cada estante encerra trinta e dois livros de formato uniforme; cada livro é de quatrocentas e dez páginas; cada página, de quarenta linhas; cada linha, de umas oitenta letras de cor preta. Também há letras no dorso de cada livro; essas letras não indicam ou prefiguram o que dirão as páginas. Sei que essa inconexão, certa vez, pareceu misteriosa. Antes de resumir a solução (cuja descoberta, apesar de suas trágicas projeções, é talvez o fato capital da história); quero rememorar alguns axiomas.O primeiro: A Biblioteca existe ab aeterno. Dessa verdade cujo corolário imediato é a eternidade futura do mundo, nenhuma mente razoável pode duvidar. O homem, o imperfeito bibliotecário, pode ser obra do acaso ou dos demiurgos malévolos; o universo, com seu elegante provimento de prateleiras, de tomos enigmáticos, de infatigáveis escadas para o viajante e de latrinas para o bibliotecário sentado, somente pode ser obra de um deus. Para perceber a distância que há entre o divino e o humano, basta comparar esses rudes símbolos trêmulos que minha falível mão garatuja na capa de um livro, com as letras orgânicas do interior: pontuais, delicadas, negríssimas,

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inimitavelmente simétricas.O segundo: O número de símbolos ortográficos é vinte ecinco." Essa comprovação permitiu, depois de trezentos anos, formular uma teoria geral da Biblioteca e resolver satisfatoria1 O manuscrito original não contém algarismos ou maiúsculas. A pontuação foi limitada à vírgula e ao ponto. Esses dois signos, o espaço e as vinte e duas letras do alfabeto são os vinte e cinco símbolos suficientes que enumera o desconhecido. (Nota do Editor.)516517FtcçõEsA BIBLIOTECA DE BABELmente o problema que nenhuma conjetura decifrara: anatureza disforme e caótica de quase todos os livros. Um, quemeu pai viu em um hexágono do circuito quinze noventa equatro, constava das letras M C V perversamente repetidas daprimeira linha até a última. Outro (muito consultado nestaárea) é um simples labirinto de letras, mas a página penúltimadiz Oh, tempo tuas pirâmides. Já se sabe: para uma linha razoável ou uma correta informação, há léguas de insensatas cacofonias, de confusões verbais e de incoerências. (Sei de uma região montanhosa cujos bibliotecários repudiam o supersticioso e vão costume de procurar sentido nos livros e o equiparam ao de procurá-lo nos sonhos ou nas linhas caóticas da mão... Admitem que os inventores da escrita imitaram os vinte e cinco símbolos naturais, mas sustentam que essa aplicação é casual, e que os livros em si nada significam. Esse ditame, já veremos, não é completamente falaz.)Durante muito tempo, acreditou-se que esses livros impenetráveis correspondiam a línguas pretéritas ou remotas. É verdade que os homens mais antigos, os primeiros bibliotecários, usavam uma linguagem assaz diferente da que falamos agora; é verdade que algumas milhas à direita a língua é dialetal e que noventa andares mais acima é incompreensível. Tudo isso, repito-o, é verdade, mas quatrocentas e dez páginas de inalteráveis M C V não podem corresponder a nenhum idioma, por dialetal ou rudimentar que seja. Uns insinuaram que cada letra podia influir na subseqüente e que o valor de M C V na terceira linha da página 71 não era o que pode ter a mesma série noutra posição de outra página, mas essa vaga tese não prosperou. Outros pensaram em criptografias; universalmente essa conjetura foi aceita, ainda que não no sentido em que a formularam seus inventores.Há quinhentos anos, o chefe de um hexágono superior" deparou com um livro tão confuso como os outros, porém que possuía quase duas folhas de linhas homogêneas. Mostrou seu achado a um decifrador ambulante, que lhe disse que estavam redigidas em português; outros lhe afirmaram que2 Antes, em cada três hexágonos havia um homem. O suicídio e as enfermidades pulmonares destruíram essa proporção. Lembrança de indizível melancolia: às vezes, viajei muitas noites por corredores e escadas polidas sem encontrar um único bibliotecário.em iídiche. Antes de um século pôde ser estabelecido o idioma: um dialeto samoiedo-lituano do guarani, com inflexões de árabe clássico. Também decifrou-se o conteúdo: noções de análise combinatória, ilustradas por exemplos de variantes com repetição ilimitada. Esses exemplos permitiram que um bibliotecário de gênio descobrisse a lei fundamental da Biblioteca. Esse pensador observou que todos os livros, por diversos que sejam, constam de elementos iguais: o espaço, o ponto, a vírgula, as

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vinte e duas letras do alfabeto. Também alegou um fato que todos os viajantes confirmaram: "Não há, na vasta Biblioteca, dois livros idênticos". Dessas premissas incontrovertíveis deduziu que a Biblioteca é total e que suas prateleiras registram todas as possíveis combinações dos vinte e tantos símbolos ortográficos (número, ainda que vastíssimo, não infinito), ou seja, tudo o que é dado expressar: em todos os idiomas. Tudo: a história minuciosa do futuro, as autobiografias dos arcanjos, o catálogo fiel da Biblioteca, milhares e milhares de catálogos falsos, a demonstração da falácia desses catálogos, a demonstração da falácia do catálogo verdadeiro, o evangelho gnóstico de Basilides, o comentário desse evangelho, o comentário do comentário desse evangelho, o relato verídico de tua morte, a versão de cada livro em todas as línguas, as interpolações de cada livro em todos os livros; o tratado que Beda pôde escrever (e não escreveu) sobre a mitologia dos saxões, os livros perdidos de Tácito.Quando se proclamou que a Biblioteca abarcava todos os livros, a primeira impressão foi de extravagante felicidade. Todos os homens sentiram-se senhores de um tesouro intacto e secreto. Não havia problema pessoal ou mundial cuja eloqüente solução não existisse: em algum hexágono. O universo estava justificado, o universo bruscamente usurpou as dimensões ilimitadas da esperança. Naquele tempo falou-se muito das Vindicações: livros de apologia e de profecia, que para sempre vindicavam os atos de cada homem do universo e guardavam arcanos prodigiosos para seu futuro. Milhares de cobiçosos abandonaram o doce hexágono natal e precipitaram-se escadas acima, premidos pelo vão propósito de encontrar sua Vindicação. Esses peregrinos disputavam nos corredores estreitos, proferiam obscuras maldições, estrangulavam-se nas escadas divinas, jogavam os livros enganosos518519F~cçõEsno fundo dos túneis, morriam despenhados pelos homens de regiões remotas. Outros enlouqueceram... As Vindicações existem (vi duas que se referem a pessoas do futuro, a pessoas talvez não imaginárias), mas os que procuravam não recordavam que a possibilidade de que um homem encontre a sua, ou alguma pérfida variante da sua, é computável em zero.Também se esperou então o esclarecimento dos mistérios básicos da humanidade: a origem da Biblioteca e do tempo. É verossímil que esses graves mistérios possam explicar-se em palavras: se não bastar a linguagem dos filósofos, a multiforme Biblioteca produzirá o idioma inaudito que se requer e os vocabulários e gramáticas desse idioma. Faz já quatro séculos que os homens esgotam os hexágonos... Existem investigadores oficiais, inquisidores. Eu os vi no desempenho de sua função: chegam sempre estafados; falam de uma escada sem degraus que quase os matou; falam de galerias e de escadas com o bibliotecário; às vezes, pegam o livro mais próximo e o folheiam, à procura de palavras infames. Visivelmente, ninguém espera descobrir nada.À desmedida esperança, sucedeu, como é natural, uma depressão excessiva. A certeza de que alguma prateleira em algum hexágono encerrava livros preciosos e de que esses livros preciosos eram inacessíveis afigurou-se quase intolerável. Uma seita blasfema sugeriu que cessassem as buscas e que todos os homens misturassem letras e símbolos, até construir, mediante um improvável dom do acaso, esses livros canônicos. As autoridades viram-se obrigadas a promulgar ordens severas. A seita desapareceu, mas na minha infância vi homens velhos que demoradamente se ocultavam nas latrinas, com alguns discos de metal num fritilo proibido, e debilmente arremedavam a divina desordem.

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Outros, inversamente, acreditaram que o primordial era eliminar as obras inúteis. Invadiam os hexágonos, exibiam credenciais nem sempre falsas, folheavam com fastio um volume e condenavam prateleiras inteiras: a seu furor higiênico, ascético, deve-se a insensata perda de milhões de livros. Seu nome é execrado, mas aqueles que deploram os "tesouros" destruídos por seu frenesi negligenciam dois fatos notórios. Um: a Biblioteca é tão imensa que toda redução de origem humana resulta infinitesimal. Outro: cada exemplar é52OA BIBLIOTECA DE BAL3ELúnico, insubstituível, mas (como a Biblioteca é total) há sempre várias centenas de milhares de fac-símiles imperfeitos: de obras que apenas diferem por uma letra ou por uma vírgula. Contra a opinião geral, atrevo-me a supor que as conseqüências das depredações cometidas pelos Purificadores foram exageradas graças ao horror que esses fanáticos provocaram. Urgia-lhes o delírio de conquistar os livros do Hexágono Carmesim: livros de formato menor que os naturais; onipotentes, ilustrados e mágicos.Também sabemos de outra superstição daquele tempo: a do Homem do Livro. Em alguma estante de algum hexágono (raciocinaram os homens) deve existir um livro que seja a cifra e o compêndio perfeito de todos os demais: algum-bibliotecário o consultou e é análogo a um deus. Na linguagem desta área persistem ainda vestígios do culto desse funcionário remoto. Muitos peregrinaram à procura d"Ele. Durante um século trilharam em vão os mais diversos rumos. Como localizar o venerado hexágono secreto que o hospedava? Alguém propôs um método regressivo: Para localizar o livro A, consultar previamente um livro B, que indique o lugar de A; para localizar o livro B, consultar previamente um livro C, e assim até o infinito... Em aventuras como essas, prodigalizei e consumi meus anos. Não me parece inverossímil que em alguma prateleira do universo haja um livro total;" rogo aos deuses ignorados que um homem - um só, ainda que seja há mil anos! - o tenha examinado e lido. Se a honra e a sabedoria e a felicidade não estão para mim, que sejam para outros. Que o céu exista, embora meu lugar seja o inferno. Que eu seja ultrajado e aniquilado, mas que num instante, num ser, Tua enorme Biblioteca se justifique.Afirmam os ímpios que o disparate é normal na Biblioteca e que o razoável (e mesmo a humilde e pura coerência) é quase milagrosa exceção. Falam (eu o sei) de "a Biblioteca febril, cujos fortuitos volumes correm o incessante risco de transformar-se em outros e que tudo afirmam, negam e confundem como uma divindade que delira". Essas palavras, que não apenas denun3 Repito-o: basta que um livro seja possível para que exista. Somente está excluído o impossível. Por exemplo: nenhum livro é também uma escada, ainda que, semdúvida, haja livros que discutem e neguem e demonstrem essa possibilidade e outros cuja estrutura corresponde à de uma escada.521FtcçõssA BIBLIOTECA DE BABEI.ciam a desordem mas que também a exemplificam, provam, evidentemente, seu gosto péssimo e sua desesperada ignorância. De fato, a Biblioteca inclui todas as estruturas verbais, todas as variantes que permitem os vinte e cinco símbolos ortográficos, porém nem um único disparate absoluto. Inútil observar que o melhor volume dos muitos hexágonos que administro intitula-se Trovão Penteado, e outro A Cãibra de Gesso e outro Axaxaxas mlô. Essas proposições, à primeira vista incoerentes, sem dúvida

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são passíveis de uma justificativa criptográfica ou alegórica; essa justificativa é verbal e, ex hypothesi, já figura na Biblioteca. Não posso combinar certos caracteres

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que a divina Biblioteca não tenha previsto e que em alguma de suas línguas secretas não contenham um terrível sentido. Ninguém pode articular uma sílaba que não esteja cheia de ternuras e de temores; que não seja em alguma dessas linguagens o nome poderoso de um deus. Falar é incorrer em tautologias. Esta epístola inútil e palavrosa já existe num dos trinta volumes das cinco prateleiras de um dos incontáveis hexágonos - e também sua refutação. (Um número n de linguagens possíveis usa o mesmo vocabulário; em alguns, o símbolo biblioteca admite a correta definição ubíquo e perdurável sistema de galerias hexagonais, mas biblioteca é pão ou pirâmide ou qualquer outra coisa, e as sete palavras que a definem têm outro valor. Você, que melê, tem certeza de entender minha linguagem?)A escrita metódica distrai-me da presente condição dos homens. A certeza de que tudo está escrito nos anula ou nos fantasmagoriza. Conheço distritos em que os jovens se prostram diante dos livros e beijam com barbárie as páginas, mas não sabem decifrar uma única letra. As epidemias, as discórdias heréticas, as peregrinações que inevitavelmente degeneram em bandoleirismo, dizimaram a população. Acredito ter mencionado os suicídios, cada ano mais freqüentes. Talvez me enganem a velhice e o temor, mas suspeito que a espécie humana - a única - está por extinguir-se e que a Biblioteca perdurará: iluminada, solitária, infinita, perfeitamente imóvel, armada de volumes preciosos, inútil, incorruptível, secreta.Acabo de escrever infinita. Não interpolei esse adjetivo por costume retórico; digo que não é ilógico pensar que o mundo é infinito. Aqueles que o julgam limitado postulam que em lugares remotos os corredores e escadas e hexágonos podem inconcebivelmente cessar - o que é absurdo. Aqueles que o imaginam sem limites esquecem que os abrange o número possível de livros. Atrevo-me a insinuar esta solução do antigo problema: A Biblioteca é ilimitada e periódica. Se um eterno viajante a atravessasse em qualquer direção, comprovaria ao fim dos séculos que os mesmos volumes se repetem na mesma desordem (que, reiterada, seria uma ordem: a Ordem). Minha solidão alegra-se com essa elegante esperança.

Mar del Alata,1941.4 Letizia Álvarez de Toledo observou que a vasta Biblioteca é inútil; a rigor, bastaria um único volume, de formato comum, impresso em corpo nove ou em corpo dez, composto de um número infinito de folhas infinitamente delgadas. (Cavalieri,em princípios do século XVII, disse que todo corpo sólido é superposição de um número infinito de planos) O manuseio desse nade meci~m sedoso não seria cômodo: cada folha aparente se desdobraria em outras análogas; a inconcebível folhacentral não teria reverso.522523O JARDIM DE VEREDAS QUE SE BIFURCAMA Victoria OcampoNa página 242 da História da Guerra Européia, de Liddell Hart, lê-se que uma ofensiva de treze divisões britânicas (apoiadas por mil e quatrocentas peças de artilharia) contra a linha Serre-Montauban tinha sido planejada para o dia vinte e quatro de julho de 1916 e teve de ser postergada até a manhã do dia vinte e nove. As chuvas

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torrenciais (anota o capitão Liddell Hart) provocaram essa delonga - nada significativa, por certo. A seguinte declaração, ditada, relida e assinada pelo doutor Yu Tsun, antigo catedrático de inglês na Hochschule de Tsingtao, lança insuspeitada luz sobre o caso. Faltam as duas páginas iniciais."...e pendurei o fone. Imediatamente após, reconheci a voz que havia respondido em alemão. Era a do capitão Richard Madden. Madden, no apartamento de Viktor Runeberg, significava o fim de nossos afãs e - mas isso parecia muito secundário, ou assim devia parecer-me - também de nossas vidas. Queria dizer que Runeberg tinha sido detido, ou assassinado." Antes que declinasse o sol desse dia, eu sofreria a mesma sorte. Madden era implacável. Ou melhor, estava obrigado a ser implacável. Irlandês ãs ordens da Inglaterra, homem acusado de tibieza e talvez de traição, como não ia abraçar e agradecer esse milagroso favor: a descoberta, a captura, quem sabe a morte, de dois agentes do Império Alemão?1 Hipótese odiosa e ridícula. O espiào prussiano Hans Rabener, codinome Viktor Runeberg, agrediu com uma pistola automática n portador da ordem de prisão,capitão Richard Madden. Este, em defesa própria, causou-lhe ferimentos que determinaram sua morte. (Nota do Editor)524O IARD[M DE VEREDAS QUE SE BIFURCAMSubi a meu quarto; absurdamente fechei a porta à chave e atirei-me de costas na estreita cama de ferro. Na janela mostravam-se os telhados de sempre e o sol nublado das seis. Pareceu-me inacreditável que esse dia sem premonições ou símbolos fosse o de minha morte implacável. Apesar de meu pai estar morto, apesar de ter sido um menino num simétrico jardim de Hai Feng, eu, agora, ia morrer? Depois refleti que todas as coisas nos acontecem precisamente, precisamente agora. Séculos de séculos e apenas no presente ocorrem os fatos; inumeráveis homens no ar, na terra e no mar, e tudo Oque realmente acontece acontece a mim... A quase intolerável lembrança do rosto acavalado de Madden aboliu essas divagações. Em meio a meu ódio e meu terror (no momento não me .importa falar de terror: agora que enganei Richard Madden, agora que minha. garganta anseia pela. corda), pensei que esse guerreiro tumultuoso e sem dúvida feliz não suspeitava que eu possuísse o Segredo. O nome do exato lugar do novo parque britânico de artilharia sobre o Ancre. Um pássaro riscou o céu cinza e cegamente o traduzi em um aeroplano e esse aeroplano em muitos (no céu francês) aniquilando o parque de artilharia com bombas verticais. Se minha boca, antes que a desfizesse um balaço, pudesse gritar esse nome de modo que o escutassem na Alemanha... Minha voz humana era muito pobre. Como fazê-la chegar ao ouvido do Chefe? Ao ouvido daquele homem doente e odioso, que nada sabia de Runeberg e de mim a não ser que estávamos em Staffordshire e que em vão esperava notícias nossas em seu árido escritório de Berlim, examinando infinitamente jornais... Disse em voz alta: "Devo fugir". Levantei-me sem ruído, numa inútil perfeição de silêncio, como se Madden já me estivesse espreitando. Algo - talvez a mera ostentação de provar que meus recursos eram nulos - fez-me revistar meus bolsos. Encontrei o que sabia que ia encontrar. O relógio norte-americano, a corrente de níquel e a moeda quadrangular, o chaveiro com as comprometedoras chaves inúteis do apartamento de Runeberg, a caderneta, uma carta que resolvi destruir imediatamente (e que não destruí), o falso passaporte, uma coroa, dois xelins e alguns pennies, o lápis vermelho-azul, o lenço, o revólver com uma bala. Absurdamente o empunhei e sopesei para dar-me coragem. Pensei vagamente que um tiro de pistola pode ser525FtcçòEs

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ouvido bem longe. Em dez minutos meu plano estava maduro. A lista telefônica forneceu-me o nome da única pessoa capaz de transmitir a notícia: vivia num subúrbio de Fenton, a menos de meia hora de trem."Sou um homem covarde. Agora o digo, agora que levei a termo um plano que ninguém deixará de qualificar de arriscado. Sei que foi terrível sua execução. Não o fiz pela Alemanha, não. Pouco me importa um país bárbaro, que me obrigou à abjeção de ser um espião. Ademais, sei de um homem da Inglaterra - um homem modesto - que- para mim não representa menos que Goethe... Não falei com ele mais de uma hora, mas durante uma hora foi Goethe... Fiz isso porque sentia que o Chefe menosprezava os de minha raça - os inumeráveis antepassados que em mim confluem. Eu queria provar-lhe que um amarelo podia salvar seus exércitos. De resto, eu devia fugir do capitão. Suas mãos e sua voz podiam bater-me à porta a qualquer momento. Vesti-me sem ruído, disse-me adeus no espelho, desci, esquadrinhei a rua tranqüila e saí. A estação não distava muito da casa, mas julguei preferível pegar um carro. Deduzi que assim corria menos perigo de ser reconhecido; o fato é que na rua deserta eu me sentia visível e vulnerável, infinitamente. Lembro-me de ter dito ao condutor que se detivesse um pouco antes da entrada principal. Desci com lentidão voluntária e quase penosa; ia à aldeia de Ashgrove, mas tirei uma passagem para uma estação mais distante. O trem saía dentro de pouquíssimos minutos, às oito e cinqüenta. Apressei-me; o próximo partia às nove e meia. Não havia quase ninguém na plataforma. Percorri os vagões: recordo uns lavradores, uma mulher de luto, um jovem que lia com fervor os Anais de Tácito, um soldado ferido e feliz. Os vagões, por fim, arrancaram. Um homem que reconheci correú em vão até o limite da plataforma. Era o capitão Richard Madden. Aniquilado, trêmulo, encolhi-me em outra ponta da poltrona, longe da temida janela."Dessa aniquilação passei a uma felicidade quase abjeta. Disse a mim mesmo que já estava marcado meu duelo e que eu ganhara o primeiro assalto, ao iludir, ainda que por quarenta minutos, ainda que por um favor do acaso, o ataque de meu adversário. Deduzi que essa vitória mínima prefigurava a vitória total. Deduzi que não era mínima, já que sem526~ JARDIM DE VEREDAS QUE SE BIFURCAMessa diferença preciosa que o horário de trens me oferecia, eu estaria no cárcere ou morto. Deduzi (não menos sofisticamente) que minha felicidade covarde provava que eu era homem capaz de levar a bom termo a aventura. Dessa fraqueza tirei forças que não me abandonaram. Prevejo que o homem se resignará a cada dia a tarefas mais atrozes; breve só haverá guerreiros e bandidos; dou-lhes este conselho: "O executor de uma tarefa atroz deve imaginar que já a cumpriu, deve impor-se um futuro que seja irrevogável como o passado". Assim procedi, enquanto meus olhos de homem já morto registravam o fluir daquele dia que era talvez o último, e a difusão da noite. O trem corria com docura, entre freixos. Deteve-se, quase ao meio do campo. Ninguém gritou o nome da estação. Ashgrove?" - perguntei a uns meninos na plataforma. Ashgrove ; responderam. Desci."Uma lâmpada iluminava a plataforma, mas os rostos dos meninos ficavam na zona de sombra. Um me perguntou: "O senhor vai à casa do doutor Stephen Albert?" Sem aguardar resposta, outro disse: "A casa fica longe daqui, mas o senhor não se perderá se tornar esse caminho à esquerda e se em cada encruzilhada do caminho dobrar à esquerda". Atirei-lhes uma moeda (a última), desci uns degraus de pedra e entrei no solitário caminho. Este, lentamente, descia. Era de terra elementar, no alto confundiam-se os ramos, a lua baixa e circular parecia acompanhar-me.

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"Por um instante, pensei que Richard Madden havia de algum modo penetrado em minhas desesperadas intenções. Logo compreendi que isso era impossível. O conselho de sempre dobrar à esquerda lembrou-me que tal era o procedimento comum para descobrir o pátio central de certos labirintos. Alguma coisa entendo de labirintos: não é em vão que sou bisneto daquele Ts"ui Pen, que foi governador de Yunnan e que renunciou ao poder temporal para escrever um romance que fosse ainda mais populoso que o Hung Lu Meng e para edificar um labirinto em que se perdessem todos os homens. Treze anos dedicou a esses heterogêneos trabalhos, porém a mão de um forasteiro o assassinou e seu romance era insensato e ninguém encontrou o labirinto. Sob árvores inglesas meditei sobre esse labirinto perdido: imaginei-o inviolado e perfeito no cume secreto de uma montanha, imaginei-o apagado por527FicçõEsarrozais ou debaixo da água, imaginei-o infinito, não somente de quiosques oitavados e de sendas que voltam, mas sim de rios e províncias e reinos... Pensei num labirinto de labirintos, num sinuoso labirinto crescente que abarcasse o passado e o futuro e que envolvesse, de algum modo, os astros. Absorto nessas ilusórias imagens, esqueci meu destino de perseguido. Senti-me, por tempo indeterminado, com percepção abstrata do mundo. O vago e vivo campo, a lua, os restos da tarde, agiram sobre mim; também o declive que eliminava qualquer possibilidade de cansaço. A tarde era íntima, infinita. O caminho descia e se bifurcava, entre as já confusas pradarias. Uma música aguda e como que silábica aproximava-se e afastavase no vaivém do vento, turvada de folhas e de distância. Pensei que um homem pode ser inimigo de outros homens, de outros momentos de outros homens, mas não de um país: não de vaga-lumes, palavras, jardins, cursos de água, poentes. Cheguei, assim, a um alto portão enferrujado. Entre as grades decifrei uma alameda e uma espécie de pavilhão. Compreendi, de repente, duas coisas, a primeira trivial, a segunda quase inacreditável: a música vinha do pavilhão, a música era chinesa. Por isso eu a aceitara com plenitude, sem prestar-lhe atenção. Não recordo se havia uma sineta ou uma campainha ou se chamei batendo palmas. A contínua crepitação da música prosseguiu."Mas do fundo da íntima casa uma lanterna se aproximava: uma lanterna que os troncos riscavam e por instantes anulavam, uma lanterna de papel, que tinha a forma dos tambores e a cor da lua. Um homem alto a trazia. Não vi seu rosto, porque a luz me cegava. Abriu o portão e disse lentamente em meu idioma:"- Vejo que o piedoso Hsi P"eng se empenha em corrigir minha solidão. O senhor sem dúvida desejará ver o jardim?"Reconheci o nome de um de nossos cônsules e repeti desconcertado:"- O jardim?"- O jardim de veredas que se bifurcam."Alguma coisa se agitou em minha lembrança e pronunciei com incompreensível segurança:"- O jardim de meu antepassado Ts"ui Pen."- Seu antepassado? Seu ilustre antepassado? Entre.528O JARDIM DE VEREDAS QUE SE BIFURCAM"A úmida vereda ziguezagueava como os de minha infância. Chegamos a uma biblioteca de livros orientais e ocidentais. Reconheci, encadernados em seda amarela, alguns tomos manuscritos da Enciclopédia Perdida que dirigiu o Terceiro Imperador da Dinastia Luminosa e que nunca chegou a ser publicada. O disco do gramofone girava perto

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de uma fênix de bronze. Lembro-me também de um vaso rosa da família e outro, anterior de muitos séculos, dessa cor azul que nossos artífices copiaram dos oleiros da Pérsia..."Stephen Albert observava-me, sorridente. Era (já o disse) muito alto, de feições afiladas, de olhos cinzentos e barba cinzenta. Algo de sacerdote havia nele e também de marítimo; depois me contou que fora missionário em Tientsin "antes de aspirar a sinólogo"."Sentamo-nos; eu num comprido e baixo divã; ele de costas para a janela e para um alto relógio circular. Calculei que antes de uma hora não chegaria meu perseguidor, Richard Madden. Minha determinação irrevogável podia esperar."- Assombroso destino o de Ts"ui Pen - disse Stephen Albert. - Governador de sua província natal, douto em astronomia, em astrologia e na interpretação infatigável dos livros canônicos, enxadrista, famoso poeta e calígrafo: abandonou tudo para compor um livro e um labirinto. Renunciou aos prazeres da opressão, da justiça, do numeroso leito, dos banquetes e ainda da erudição e enclausurou-se durante treze anos no Pavilhão da Límpida Solidão. Ao morrer, os herdeiros só encontraram manuscritos caóticos. A famlia, como talvez o senhor não ignore, quis adjudicá-los ao fogo; mas seu testamenteiro um monge taoísta ou budista - insistiu na publicação."- Os do sangue de Ts"ui Pen - respondi - continuamos execrando esse monge. Essa publicação foi insensata. O livro é um acervo indeciso de rascunhos contraditórios. Examineio certa vez: no terceiro capítulo morre o herói, no quarto está vivo. Quanto ao outro projeto de Ts"ui Pen, seu Labirinto..."- Aqui está o Labirinto - disse indicando-me uma alta escrivaninha laqueada."- Um labirinto de marfim! - exclamei. - Um labirinto mínimo..."- Um labirinto de símbolos - corrigiu. - Um invisível labirinto de tempo. A mim, bárbaro inglês, foi-me oferecido re529F[cçõEsvelar esse mistério diáfano. Ao fim de mais de cem anos, os pormenores são irrecuperáveis, mas não é difícil conjeturar o que sucedeu. Ts"ui Pen teria dito uma vez: "Retiro-me para escrever um livro". E outra: "Retiro-me para construir um labirinto". Todos imaginaram duas obras; ninguém pensou que livro e labirinto eram um único objeto. O Pavilhão da Límpida Solidão erguia-se no centro de um jardim talvez intrincado; o fato pode ter sugerido aos homens um labirinto físico. Ts"ui Pen morreu; ninguém, nas dilatadas terras que foram suas, deu com o labirinto; a confusão do romance sugeriu-me que esse era o labirinto. Duas circunstâncias deram-me a exata solução do problema. Uma: a curiosa lenda de que Ts"ui Pen se propusera um labirinto que fosse- estritamente infinito. Outra: um fragmento de uma carta que descobri."Albert levantou-se. Deu-me, por uns instantes, as costas; abriu a gaveta da áurea e enegrecida escrivaninha. Voltou com um papel antes carmesim; agora rosado e tênue e quadriculado. Era justo o renome caligráfico de Ts"ui Pen. Li com incompreensão e fervor estas palavras que com minucioso pincel redigira um homem de meu sangue: "Deixo aos vários futuros (não a todos) meu jardim de veredas que se bifurcam". Devolvi em silêncio a folha. Albert prosseguiu:"-Antes de exumar esta carta, eu tinha me perguntado de que maneira um livro pode ser infinito. Não conjeturei outro procedimento que o de um volume cíclico, circular. Um volume cuja última página fosse idêntica à primeira, com possibilidade de continuar indefinidamente. Recordei também aquela noite que está no centro das Mil e Uma Noites, quando a rainha Scherazade (por uma mágica distração do copista) põe-se a contar textualmente a história das 1OO1 Noites, com risco de chegar outra vez

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à noite na qual está fazendo o relato, e assim até o infinito. Imaginei também uma obra platônica, hereditária, transmitida de pai a filho, à qual cada novo indivíduo adicionasse um capítulo ou nela corrigisse com piedoso cuidado a página dos ascendentes. Essas conjeturas distraíram-me; mas nenhuma parecia corresponder, ainda que de modo distante, aos contraditórios capítulos de Ts"ui Pen. Nessa perplexidade, remeteram-me de Oxford o manuscrito que o senhor examinou. Detive-me, como é natural, na frase:53OO JARDIM DE VEREDAS QUE SE BIFURCAM"Deixo aos vários futuros (não a todos) meu jardim de veredas que se bifurcam". Quase de imediato compreendi; o jardim de veredas que se bifurcam era o romance caótico; a frase vários futuros (não a todos) sugeriu-me a imagem da bifurcação no tempo, não no espaço. A releitura geral da obra confirmou essa teoria. Em todas as ficções, cada vez que um homem se defronta com diversas alternativas, opta por uma e elimina as outras; na do quase inextricável Ts"ui Pen, opta - simultaneamente - por todas. Cria, assim, diversos futuros, diversos tempos, que também proliferam e se bifurcam. Daí as contradições do romance. Fang, digamos, tem um segredo; um desconhecido chama à sua porta; Fang decide matá-lo. Naturalmente, há vários desenlaces possíveis: Fang pode matar o intruso, o intruso pode matar Fang, ambos podem salvar-se, ambos podem morrer, etc. Na obra de Ts"ui Pen, todos os desfechos ocorrem; cada um é o ponto de partida de outras bifurcações. Às vezes, as veredas desse labirinto convergem: por exemplo, o senhor chega a esta casa, mas num dos passados possíveis o senhor é meu inimigo, em outro meu amigo. Se o senhor se resignar à minha pronúncia incurável, leremos algumas páginas."Seu rosto, no vívido círculo da lâmpada, era sem dúvida o de um ancião, mas com algo inquebrantável e ainda imortal. Leu com lenta precisão duas versões de um mesmo capítulo épico. Na primeira, um exército marcha para uma batalha através de uma montanha deserta; o horror das pedras e da sombra o faz menosprezar a vida e consegue facilmente a vitória; na segunda, o mesmo exército atravessa um palácio onde há uma festa; a resplandecente batalha se lhes parece uma continuação da festa e obtêm a vitória. Eu escutava com digna veneração essas velhas ficções, talvez menos admiráveis que o fato de terem sido ideadas pelo meu sangue e que um homem de um império remoto as restituísse a mim, no curso de uma desesperada aventura, numa ilha ocidental. Lembro-me das palavras finais, repetidas em cada versão como um mandamento secreto: "Assim combateram os heróis, tranqüilo o admirável coração, violenta a espada, resignados a matar e a morrer"."A partir desse instante, senti a meu redor e na escuridão de meu corpo uma invisível, intangível pululação. Não a pululação dos divergentes, paralelos e finalmente coalescentes exércitos,531F~cçõEsporém uma agitação mais inacessível, mais íntima e que eles de certo modo prefiguravam. Stephen Albert continuou:"- Não acredito que seu ilustre antepassado brincasse ociosamente com as variantes. Não julgo verossímil que sacrificasse treze anos à infinita execução de um experimento retórico. Em seu país, o romance é gênero subalterno; naquele tempo era gênero desprezível. Ts"ui Pen foi um romancista genial, mas também foi um homem de letras que sem dúvida não se considerou um simples romancista. O testemunho de seus contemporâneos proclama - e fartamente o confirma sua vida - suas inclinações metafísicas,

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místicas. A controvérsia filosófica usurpa boa parte de seu romance. Sei que, de todos os problemas, nenhum o inquietou e ocupou como o abismal problema do tempo. Póis bem, esse é o único problema que não figura nas páginas do Jardim. Nem sequer emprega a palavra que significa tempo. Como explica o senhor essa voluntária omissão?"Propus várias soluções: todas, insuficientes. Discutimolas; por fim, Stephen Albert disse-me:"- Numa charada cujo tema é o xadrez, qual é a únicapalavra proibida? - Refleti um momento e respondi: "- A palavra xadrez."- Exatamente - disse Albert. - O jardim de veredas que se bifurcam é uma enorme charada, ou parábola, cujo tema é o tempo; essa causa recôndita proíbe-lhe a menção de seu nome. Omitir sempre uma palavra, recorrer a metáforas ineptas e a perífrases evidentes, é quiçá o modo mais enfático de indicála. E o modo tortuoso que preferiu, em cada um dos meandros de seu infatigável romance, o oblíquo Ts"ui Pen. Confrontei centenas de manuscritos, corrigi os erros que a negligência dos copistas introduziu, conjeturei o plano desse caos, restabeleci, acreditei restabelecer, a ordem primordial, traduzi a obra toda: consta-me que não usa uma única vez a palavra tempo. A explicação é óbvia: O jardim de veredas que se bifurcam é uma imagem incompleta, mas não falsa, do universo tal como o concebia Ts"ui Pen. Diferentemente de Newton e de Schopenhauer, seu antepassado não acreditava num tempo uniforme, absoluto. Acreditava em infinitas séries de tempos, numa rede crescente e vertiginosa de tempos divergentes, convergentes e paralelos. Essa trama de tempos que se aproO JARDIM DE VEREDAS QUE SE BIFURCAMximam, se bifurcam, se cortam ou que secularmente se ignoram, abrange todas as possibilidades. Não existimos na maioria desses tempos; em alguns existe o senhor e não eu; em outros, eu, não o senhor; em outros, os dois. Neste, em que me deparo com favorável acaso, o senhor chegou à minha moradia; em outro, o senhor, ao atravessar o jardim, encontrou-me morto; em outro, digo estas mesmas palavras, mas sou um erro, um fantasma."- Em todos - articulei não sem certo tremor - agradeço e venero sua recriação do jardim de Ts"ui Pen." - Não em todos - murmurou com um sorriso. - O tempo se bifurca perpetuamente para inumeráveis futuros. Num deles sou seu inimigo."Voltei a sentir aquela pululação de que falei. Pareceu-me que o úmido jardim que rodeava a casa estava saturado até o infinito de invisíveis pessoas. Essas pessoas eram Albert e eu, secretos, atarefados e multiformes em outras dimensões de tempo. Alcei os olhos e o tênue pesadelo se dissipou. No amarelo e negro jardim havia um único homem; mas esse homem era forte como uma estátua, mas esse homem avançava pela vereda e era o capitão Richard Madden."- O futuro já existe - respondi -, mas eu sou seu amigo. Posso examinar de novo a carta?"Albert levantou-se. Alto, abriu a gaveta da alta escrivaninha; deu-me por um momento as costas. Eu havia preparado o revólver. Disparei com o máximo cuidado: Albert caiu, sem uma queixa, imediatamente. Juro que sua morte foi instantânea: fulminante."O resto é irreal, insignificante. Madden irrompeu, prendeu-me. Fui condenado à forca. Abominavelmente venci: comuniquei a Berlim o secreto nome da cidade que devem atacar. Ontem a bombardearam; li isso nos mesmos jornais em que apresentaram à Inglaterra o enigma de que o sábio sinólogo Stephen Albert morrera assassinado por um desconhecido, Yu Tsun. O Chefe decifrou esse enigma. Sabe que meu problema era indicar (por intermédio do estrépito da guerra) a cidade que se chama Albert e que não achei outro meio a não ser matar uma pessoa com esse nome. Não sabe (ninguém pode saber) minha imensa contrição e cansaço."

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i"a:532533PRÓLOGOEmbora de elaboração menos tosca, os coretos deste livro não diferem dos que formam o anterior. Dois, talvez, permitam uma menção atenta: "A morte e a bússola", °Funes, o memorioso". O segundo é uma vasta metáfora da insônia. O primeiro, em que pese os nomes alemães ou escandinavos, ocorre em uma Buenos Aires de sonhos: a sinuosa rue de Toulon é o Paseo de Julio; Triste-le-Roy, o hotel onde Herbert Ashe recebeu, e talvez não leu, o décimo primeiro tomo de uma enciclopédia ilusória. Já redigida essa ficção, pensei na conveniência de ampliar o tempo e o espaço que abarca: a vingança poderia ser herdada; os prazos poderiam computar-se em anos, quem sabe em séculos; a primeira letra do Nome poderia ser articulada na Islândia; a segunda, no México; a terceira, no hldustão. Acrescentarei que os Hassidim incluíram santos e que o sacrifício de quatro vidas para obter as quatro letras que impuseram o Norne é uma fantasia que me ditou a forma de meu conto?

Pós-escrito de 1956. - Três contos adicionei à série: "O Sul", "A seita da Fênix", "O fim". Com exceção de um personagem - Recabarrerr - cuja imobilidade e passividade servem de contraste, nada ou quase nada é invenção minha no decurso breve do iíltimo; tudo o que há nele estrí implícito num livro famoso e fui o primeiro a desentranhá-lo ou, pelo menos, a declará-lo. Na alegoria da Fênix impas a mim mesmo o problema de sugerir um fato comum - o Segredo -, de modo vacilante e gradual, que resultasse, ao final, inequívoco; não sei até onde a sorte rne acompanhou. De "O Sul", que é talvez meu melhor conto, basta-me prevenir que é possível lê-lo como direta narrativa de fatos novelescos e também de outra maneira.

537Fic~oEsSeho~~enhauer, De Quincey, Ste~enson, Mauthner, Shazu, Chesterton, Léon Blol~ formam o consefiso heterogêneo cios autores que continuamente releio. Na fantasia cristológica intitulada "Três versões de Judas", creio perceber o remoto influxo do último.

J. L. B.

Buenos Aires, 29 de ngosto de 1944.FUNES, O MEMORIOSORecordo-o (não tenho direito de pronunciar esse verbo sagrado, somente um homem na terra teve direito e esse homem morreu) com uma escura flor-da-paixão na mãa, vendo-o como ninguém o viu, embora o avistasse do crepúsculo do dia até o da noite, toda uma vida. Recordo-o, o rosto taciturno e indiático e singularmente distante, por trás do cigarro. Recordo (creio) suas mãos afiladas de trançador. Recordo perto dessas mãos um chimarrão, com as armas da Banda Oriental; recordo na janela da casa uma esteira amarela, com uma vaga paisagem lacustre. Recordo claramente sua voz; a voz pausada, ressentida e nasal do antigo homem dos subúrbios, sem os silvos italianos de agora. Mais de três vezes não o vi; a última, em 1887... Parece-me muito feliz o projeto de que todos aqueles que o conheceram sobre ele escrevam; meu

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testemunho será talvez o mais breve e sem dúvida o mais pobre, mas não o menos imparcial do volume que os senhores editarão. Minha deplorável condição de argentino me impedirá de incorrer no ditirambo - gênero obrigatório no Uruguai, quando o tema é um uruguaio. Literato, cá{ajeste, portenho; Funes não disse essas injuriosas palavras, mas estou bastante consciente de que eu representava para ele essas desventuras. Pedro Leandro Ipuche escreveu que Funes era precursor dos super-homens, "um Zaratustra xucro e vernáculo"; não discuto isso, contudo não convém esquecer que era também um compadrito de Fray Bentos, com certas incuráveis limitações.Minha primeira lembrança de Funes é muito perspícua. Vejo-o num entardecer de março ou fevereiro do ano oitenta e quatro. Meu pai, esse ano, levara-me a veranear em Fray Bentos. Voltava eu com meu primo Bernardo Haedo da estân538539Fic~õe5FUNES, o MEMORIOSOcia de São Francisco. Voltávamos cantando, a cavalo, e essa não era a única circunstância de minha felicidade. Depois de um dia bochornoso, uma enorme tormenta cor de ardósia escondera o céu. Animava-a o vento do Sul, já enlouqueciam as árvores; eu tinha o temor (a esperança) de que nos surpreendesse num descampado a água elementar. Fizemos uma espécie de corrida com a tormenta. Entramos num beco que se aprofundava entre duas calçadas altíssimas de tijolo. Escurecera, de chofre; ouvi rápidos e quase secretos passos no alto; alcei os olhos e vi um rapaz que corria pela estreita e quebrada calçada como por uma estreita e quebrada parede. Lembro-me da bombacha, das alpargatas, lembro-me do cigarro no duro rosto, contra o nuvarrão já sem limites. Bernardo gritou-lhe imprevisivelmente: "Que horas são, Irineu?" Sem consultar o céu, sem deter-se, o outro respondeu: "Faltam quatro minutos para as oito, jovem Bernardo Juan Francisco". A voz era aguda, zombeteira.Sou tão distraído que o diálogo que acabo de contar não me teria chamado a atenção se não o houvesse repetido meu primo, a quem estimulavam (acredito) certo orgulho local e o desejo de mostrar-se indiferente à resposta tripartida do outro.Disse-me que o rapaz do beco era um tal Irineu Funes, mencionado por algumas excentricidades como a de não darse com ninguém e a de saber sempre a hora, como um relógio. Acrescentou que era filho de uma lavadeira do povoado, Maria Clementina Funes, e que alguns diziam que seu pai era um médico da charqueada, um inglês O"Connor, e outros, um domador ou rastreador do distrito de Salto. Vivia com sua mãe, depois da chácara dos Laureies.Nos anos oitenta e cinco e oitenta e seis, veraneamos na cidade de Montevidéu. Em oitenta e sete retornei a Fray Bentos. Perguntei, como é natural, por todos os conhecidos e, finalmente, pelo "cronométrico Funes". Responderam-me que o derrubara um redomão na estância de São Francisco, e que ficara aleijado, sem esperança. Lembro-me da impressão de incômoda magia que a notícia me produziu: a única vez que o vi, vínhamos a cavalo de São Francisco e ele andava num lugar alto; o fato, na boca de meu primo Bernardo, tinha muito de sonho elaborado com elementos anteriores. Disseram-me que não se movia do catre, postos os olhos na figueira dofundo ou numa teia de aranha. Nos entardeceres, permitia que o levassem à janela. Portava a soberba até o ponto de simular que fora benéfico o golpe que o tinha fulminado... Duas vezes o vi atrás da grade, que relembrava toscamente sua condição de eterno prisioneiro: uma, imóvel, com os olhos fechados; outra, também imóvel, absorto na contemplação de um oloroso galho de santonina.

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Não sem alguma vanglória eu iniciara naquele tempo Oestudo metódico do latim. Minha mala incluía o De Viris Illustribus de Lhomond, o Thesaurus de Quicherat, os comentários de Júlio César e um volume ímpar da Nnturalis Historia de Plínio, que excedia (e continua excedendo) minhas módicas virtudes de latinista. Tudo se propala num povoado pequeno; Irineu, em seu rancho dos arrabaldes, não tardou a inteirar-se da chegada desses livros anômalos. Dirigiu-me uma carta florida e cerimoniosa, na qual recordava nosso encontro, infelizmente fugaz, "do dia sete de fevereiro do ano oitenta e quatro", ponderava os gloriosos serviços que Dom Gregório Haedo, meu tio, falecido nesse mesmo ano, "prestara às duas pátrias na valorosa jornada de Ituzaingó", e solicitava-me o empréstimo de alguns dos volumes, acompanhado de um dicionário "para a boa inteligência do texto original, porque ainda ignoro o latim". Prometia devolvê-los em bom estado, quase imediatamente. A letra era perfeita, muito perfilada; a ortografia, do tipo que Andrés Bello preconizou: i por y, j por g. A princípio, temi naturalmente uma brincadeira. Meus primos asseguraram-me que não, que eram coisas de Irineu. Não soube se atribuir a descaramento, a ignorância ou a estupidez a idéia de que o árduo latim não requeria mais instrumento que um dicionário; para desiludilo completamente mandei-lhe o Gradus ad Parnassum de Quicherat e a obra de Plínio.Em catorze de fevereiro telegrafaram-me de Buenos Aires que voltasse imediatamente, porque meu pai não estava "nada bem". Deus me perdoe; o prestígio de ser o destinatário de um telegrama urgente, o desejo de comunicar a toda Fray Bentos a contradição entre a forma negativa da notícia e o peremptório advérbio, a tentação de dramatizar minha dor, fingindo um viril estoicismo, talvez me distraíssem de toda possibilidade de sofrimento. Ao fazer a mala, observei que me54O541F~ccoesfaltavam o Gradus e o primeiro volume da Naturalis Historia. O "Saturno" zarpava no dia seguinte, pela manhã; nessa noite, depois de jantar, encaminhei-me à casa de Funes. Surpreendeume muito que a noite fosse não menos pesada que o dia.No asseado rancho, a mãe de Funes me recebeu.Disse-me que Irineu estava no quarto do fundo e que não estranhasse encontrá-lo às escuras, porque Irineu costumava passar as horas mortas sem acender a vela. Atravessei o pátio de lajota, o pequeno corredor; cheguei ao segundo pátio. Havia uma parreira; a escuridão pôde parecer-me completa. Ouvi de repente a alta e zombeteira voz de Irineu. Essa voz falava em latim; essa voz (que vinha da treva) articulava com moroso deleite um discurso ou prece ou encantação. Ressoaram as sílabas romanas no pátio de terra; meu temor as acreditava indecifráveis, intermináveis; depois, no enorme diálogo dessa noite, soube que formavam o primeiro parágrafo do vigésimo quarto capítulo do livro sétimo da Naturalis Historia. A matéria desse capítulo é a memória; as palavras últimas foram ut nihil non üsdem verbis redderetur auditum.Sem a menor mudança de voz, Irineu disse-me que passasse. Estava no catre, fumando. Parece-me que não vi seu rosto até o amanhecer; creio rememorar a faísca momentânea do cigarro. O quarto cheirava vagamente a umidade. Sentei-me; repeti a história do telegrama e da enfermidade de meu pai.Chego, agora, ao mais difícil ponto de minha narrativa. Esta (bom é que já o saiba o leitor) não tem outro argumento que esse diálogo de há já meio século. Não tentarei reproduzir suas palavras, irrecuperáveis agora. Prefiro resumir com veracidade as muitas coisas que me disse Irineu. O estilo indireto é remoto e fraco; sei que

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sacrifico a eficácia de meu relato; que meus leitores imaginem os entrecortados períodos que me angustiaram nessa noite.Irineu começou por enumerar, em latim e espanhol, os casos de memória prodigiosa registrados pela Naturalis Historia: Ciro, rei dos persas, que sabia chamar pelo nome todos os soldados de seus exércitos; Mitridates Eupator, que administrava a justiça nos 22 idiomas de seu império; Simônides, inventor da mnemotécnica; Metrodoro, que professava a arte de repetir com fidelidade o escutado uma única vez. Com evidente boa-fé maravilhou-se de que tais casos542maravilhassem. Disse-me que antes daquela tarde chuvosa em que o derrubou o azulego ele fora o que são todos os cristãos: um cego, um surdo, um abobado, um desmemoriado. (Tentei lembrar-lhe sua percepçào exata do tempo, sua memória de nomes próprios; não me fez caso.) Dezenove anos havia vivido como quem sonha: olhava sem ver, ouvia sem ouvir, esquecia-se de tudo, de quase tudo. Ao cair, perdeu o conhecimento; quando o recobrou, o presente era quase intolerável de tão rico e tão nítido, e também as memórias mais antigas e mais triviais. Pouco depois, constatou que estava aleijado. O fato apenas lhe interessou. Pensou (sentiu) que a imobilidade era um preço mínimo. Agora sua percepção e sua memória eram infalíveis.Nós, de uma olhadela, percebemos três taçàs em uma mesa; Funes, todos os rebentos e cachos e frutos que compreende uma parreira. Sabia as formas das nuvens austrais do amanhecer do trinta de abril de mil oitocentos e oitenta e dois e podia compará-las na lembrança aos veios de um livro encadernado em couro que vira somente uma vez e às linhas da espuma que um remo levantou no rio Negro na véspera da batalha do Quebracho. Essas lembranças não eram simples; cada imagem visual estava ligada às sensações musculares, térmicas, etc. Podia reconstruir todos os sonhos, todos os entressonhos. Duas ou três vezes havia reconstruído um dia inteiro; nunca havia duvidado, cada reconstrução, porém, já tinha requerido um dia inteiro. Disse-me: "Mais recordações tenho eu sozinho que as que tiveram todos os homens desde que o mundo é mundo". E também: "Meus sonhos são como a vigília de vocês". E, igualmente, próximo do amanhecer: "Minha memória, senhor, é como despejadouro de lixos". Uma circunferência num quadro-negro, um triângulo retângulo, um losango são formas que podemos intuir plenamente; o mesmo acontecia a Irineu com as emaranhadas crinas de um potro, com uma ponta de gado numa coxilha, com o fogo mutável e com a inumerável cinza, com os muitos rostos de um morto num longo velório. Não sei quantas estrelas via no céu.Essas coisas me falou; nem então nem depois as coloquei em dúvida.. Naquele tempo não havia cinemas ou fonógrafos; é, não obstante, inverossímil e até inacreditável que ninguém543Ficçòesfizesse uma experiência com Funes. O certo é que vivemos postergando todo o postergável; talvez todos saibamos profundamente que somos imortais e que, cedo ou tarde, todo homem realizará todas as coisas e saberá tudo.A voz de Funes, da escuridão, prosseguia falando.Disse-me que por volta de 1886 projetara um sistema original de numeração e que em pouquíssimos dias excedera o vinte e quatro mil. Não o tinha escrito, porque o pensado uma única vez já não se lhe podia apagar. Seu primeiro estímulo, acredito, foi o desagrado de que os trinta e três orientais requereram dois signos e três palavras, em vez de uma única palavra e um único signo. Aplicou depois esse disparatado princípio aos demais números. Em lugar de sete mil e treze, dizia (por exemplo)

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Máximo Pérez; em lugar de sete mil e catorze, A Ferrovia; outros números eram Luis Melián Lafinur, Olimar, enxofre, os bastos, a baleia, o gás, a caldeira, Napoleão, Agustín de Vedia. Em lugar de quinhentos, dizia nove. Cada palavra tinha um sinal particular, uma espécie de marca; as últimas eram muito complicadas... Tentei explicar-lhe que essa rapsódia de vozes inconexas era exatamente o contrário de um sistema de numeração. Disse-lhe que dizer 365 era dizer três centenas, seis dezenas, cinco unidades; análise que não existe nos "números" O Negro Timóteo ou manta de carne. Funes não me entendeu ou não quis entender-me.Locke, no século XVII, postulou (e reprovou) um idioma impossível no qual cada coisa individual, cada pedra, cada pássaro e cada ramo tivesse um nome próprio; Funes projetou certa vez um idioma análogo, mas o rejeitou por parecer-lhe demasiado geral, demasiado ambíguo. De fato, Funes não só recordava cada folha de cada árvore de cada monte, como também cada uma das vezes que a tinha percebido ou imaginado. Resolveu reduzir cada uma de suas jornadas pretéritas a umas setenta mil lembranças, que definiria depois por cifras. Dissuadiram-no duas considerações: a consciência de que a tarefa era interminável, a consciência de que era inútil. Pensou que na hora da morte não teria acabado ainda de classificar todas as recordações da infância.Os dois projetos que indiquei (um vocabulário infinito para a série natural dos números, um inútil catálogo mental de todas as imagens da lembrança) são insensatos, mas reveFunes, o MEMORI(~5Olam certa balbuciante grandeza. Deixam-nos vislumbrar ou interir o vertiginoso mundo de Funes. Este, não o esqueçamos, era quase incapaz de idéias gerais, platônicas. Não só lhe custava compreender que o símbolo genérico cão abrangesse tantos indivíduos díspares de diversos tamanhos e diversa forma; aborrecia-o que o cão das três e catorze (visto de perfil) tivesse o mesmo nome que o cão das três e quarto (visto de frente). Seu próprio rosto no espelho, suas próprias mãos, surpreendiam-no todas as vezes. Menciona Swift que o imperador de Lilliput discernia o movimento do ponteiro dos minutos; Funes discernia continuamente os tranqüilos avanços da corrupção, das cáries, da fadiga. Notava os progressos da morte, da umidade. Era o solitário e lúcido espectador de um mundo multiforme, instantâneo e quase intoleravelmente exato. Babilônia, Londres e Nova York sufocavam com feroz esplendor a imaginação dos homens; ninguém, em suas torres populosas ou em suas avenidas urgentes, sentiu o calor e a pressão de uma realidade tão infatigável como a que dia e noite convergia sobre o infeliz Irineu, em seu pobre arrabalde sul-americano. Era-lhe muito difícil dormir. Dormir é distrairse do mundo; Funes, de costas no catre, na sombra, imaginava cada fenda e cada moldura das casas certas que o rodeavam. (Repito que a menos importante de suas lembranças era mais minuciosa e mais viva que nossa percepção de um prazer físico ou de um tormento físico.) A leste, num trecho não demarcado, havia casas novas, desconhecidas. Funes as imaginava pretas, compactas, feitas de treva homogênea; nessa direção voltava o rosto para dormir. Também costumava imaginar-se no fundo do rio, embalado e anulado pela corrente.Tinha aprendido sem esforço o inglês, o francês, o português, o latim. Suspeito, entretanto, que não era muito capaz de pensar. Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair. No abarrotado mundo de Funes não havia senão pormenores, quase imediatos.A receosa claridade da madrugada entrou pelo pátio de terra.Então vi o rosto da voz que toda a noite falara. Irineu tinha dezenove anos; nascera em 1868; pareceu-me monumental como o bronze, mais antigo que o Egito, anterior às544

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profecias e às pirâmides. Pensei que cada uma de minhas palavras (que cada um de meus gestos) perduraria em sua implacável memória; entorpeceu-me o temor de multiplicar gestos inúteis.Irineu Funes morreu em 1889, de uma congestão pulmonar.1942A FORMA DA ESPADACruzava-lhe o rosto uma cicatriz vingativa: um arco cinzento e quase perfeito que de um lado maltratava a têmpora e do outro o pômulo. Seu nome verdadeiro não importa; todos em Tacuarembó chamavam-no o Inglês de La Colorada. O proprietário desses campos, Cardoso, não desejava vendê-los; ouvi que o Inglês recorreu a um imprevisível argumento: confiou-lhe a história secreta da cicatriz. O Inglês vinha da fronteira, do Rio Grande do Sul; não faltou quem dissesse que no Brasil fora contrabandista. Os campos estavam empastados; as aguadas, amargas; o Inglês, para corrigir essas deficiências, trabalhou ao lado de seus peões. Dizem que era severo até a crueldade, mas escrupulosamente justo. Dizem também que era beberrão: algumas vezes ao ano encerrava-se no quarto do terraço e emergia após dois ou três dias, como de uma batalha ou de uma vertigem, pálido, trêmulo, sobressaltado e tão autoritário como antes. Recordo os olhos glaciais, a enérgica magreza, o bigode cinzento. Não se dava com ninguém; é verdade que seu espanhol era rudimentar, abrasileirado. Fora de alguma carta comercial ou de algum folheto, não recebia correspondência.A última vez que percorri os distritos do Norte, uma enchente do arroio Caraguatá obrigou-me a pernoitar em La Colorada. Em poucos minutos acreditei perceber que minha aparição era inoportuna; tentei congraçar-me com o Inglês; recorri à menos perspicaz das paixões: o patriotismo. Falei que era invencível um país com o espírito da Inglaterra. Meu interlocutor assentiu, acrescentou, porém, com um sorriso que ele não era inglês. Era irlandês, de Dungarvan. Dito isto se deteve, como se houvesse revelado um segredo.Saímos, depois de comer, a contemplar o céu. Tinha desanuviado, mas, detrás das coxilhas, o Sul, fendido e risca546547Ficçoesdo de relâmpagos, tramava outra tormenta. No desmantelado refeitório, o peão que tinha servido o jantar trouxe uma garrafa de rum. Bebemos demoradamente, em silêncio.Não sei que horas seriam quando percebi que eu estava bêbado; não sei que inspiração ou que exultação ou que tédio fez-me mencionar a cicatriz. O rosto do Inglês se desfigurou; durante alguns segundos pensei que ia expulsar-me da casa. Por fim, disse-me com sua voz habitual:- Contar-lhe-ei a história de minha ferida sob uma condição: a de não mitigar nenhum opróbrio, nenhuma circunstância de infâmia.Assenti. Esta é a história que narrou, alternando o inglês com o espanhol, e ainda com o português:"Por volta de 1922, numa das cidades de Connaught, eu era um dos muitos que conspiravam pela independência da Irlanda. De meus companheiros, alguns sobrevivem dedicados a tarefas pacíficas; outros, paradoxalmente, batem-se nos mares ou no deserto, sob as cores inglesas; outro, o que mais valia, morreu no pátio de um quartel, ao

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amanhecer, fuzilado por homens sonolentos; outros (não os mais infelizes) deram com seu destino nas anônimas e quase secretas batalhas da guerra civil. Éramos republicanos, católicos; éramos, suspeitoo, românticos. A Irlanda não somente significava para nós o futuro utópico e o intolerável presente; era uma amarga e carinhosa mitologia, era as torres circulares e os lodaçais vermelhos, era o repúdio de Parnell e as imensas epopéias que cantam o roubo de touros que em outra encarnação foram heróis e em outras peixes e montanhas... Num entardecer que não esquecerei, chegou-nos um afiliado de Munster: um tal John Vincent Moon."Tinha apenas vinte anos. Era ao mesmo tempo magro e flácido; dava a incômoda impressão de ser invertebrado. Percorrera com fervor e vaidade quase todas as páginas de não sei que manual comunista; o materialismo dialético servia-lhe para fechar qualquer discussão. As razões que pode ter um homem para abominar outro ou para estimá-lo são infinitas: Moon reduzia a história universal a um sórdido conflito econômico. Afirmava que a revolução está predestinada a triunfar. Disse-lhe que a um gentleman apenas podem interessar causas perdidas... Já era noite; continuamos desenten548A FORMA ~n ESi~a~~lendo-nos no corredor, nas escadas, depois nas vazias ruas. Os juízos emitidos por Moon me impressionaram menos que seu inapelável tom apodíctico. O novo camarada não discutia: lançava seus ditames com desdém e com certa cólera."Quando alcançamos as últimas casas, um repentino tiroteio nos aturdiu. (Antes ou depois, margeamos o sombrio paredão de uma fábrica ou de um quartel.) Internamo-nos numa rua de terra; um soldado, enorme no resplendor, surgiu de uma cabana incendiada. Aos gritos mandou que nos detivéssemos. Apressei o passo; meu camarada não me seguiu. Virei-me: John Vincent Moon estava imóvel, fascinado e como eternizado pelo terror. Então voltei, derrubei de um golpe o soldado, sacudi Vincent Moon, insultei-o e ordenei-lhe que me seguisse. Tive de pegá-lo pelo braço; a paixão do medo Oinvalidava. Fugimos, entre a noite perfurada de incêndios. Uma descarga de fuzis alcançou-nos; uma bala roçou o ombro direito de Moon; este, enquanto fugíamos entre pinheiros, prorrompeu num débil soluço."Naquele outono de 1922, refugiara-me na chácara do general Berkeley. Este (a quem eu nunca havia visto) desempenhava então não sei que cargo administrativo em Bengala; o edifício tinha menos de um século, mas era deteriorado e opaco e se excedia em perplexos corredores e vãs antecâmaras. O museu e a enorme biblioteca usurpavam o andar térreo: livros controversos e incompatíveis que de algum modo são a história do século XIX; cimitarras de Nishapur, em cujos suspensos arcos de círculo pareciam perdurar o vento e a violência da batalha. Entramos (creio recordar) pelos fundos. Moon, trêmula e ressequida a boca, murmurou que os episódios da noite eram interessantes; fiz-lhe um curativo, trouxelhe uma xícara de chá; pude comprovar que seu "ferimento" era superficial. De repente, balbuciou com perplexidade:- Mas você se arriscou em demasia."Disse-lhe que não se preocupasse. (O hábito da guerra civil impelira-me a agir como agi; além do que a prisão de um único afiliado podia comprometer nossa causa.)"No outro dia, Moon havia recuperado o equilíbrio. Aceitou um cigarro e me submeteu a um severo interrogatório sobre os "recursos econômicos de nosso partido revolucionário". Suas perguntas eram muito lúcidas; disse-lhe (com549FICÇêrSverdade) que a situação era grave. Cerradas descargas de fuzilaria sacudiram o Sul. Disse a Moon que nos esperavam os companheiros. Meu sobretudo e meu revólver

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estavam em meu quarto; quando voltei, encontrei Moon estendido no sofá, com os olhos fechados. Conjeturou que tinha febre; invocou um doloroso espasmo no ombro."Entào compreendi que sua covardia era irreparável. Roguei-lhe desajeitadamente que se cuidasse e me despedi. Envergonhava-me esse homem com medo, como se eu fosse o covarde, não Vincent Moon. O que faz um homem é como se o fizessem todos os homens. Por isso não é injusto que uma desobediência num jardim contamine o gênero 1lumano; por isso, não é injusto que a crucifixão de um só judeu baste para salvá-lo. Talvez Schopenhauer tenha razão: eu sou os outros, qualquer homem é todos os homens, Shakespeare é de alguma maneira o miserável John Vincent Moon."Nove dias passamos na enorme casa do general. Das agonias e luzes da guerra não direi nada: meu propósito é contar a história desta cicatriz que me ultraja. Esses nove dias, em minha lembrança, formam um único dia, salvo o penúltimo, quando os nossos irromperam num quartel e pudemos vingar exatamente os dezesseis camaradas que foram metralhados em Elphin. Eu escapava da casa pela aurora, na confusão do crepúsculo. Ao anoitecer estava de volta. Meu companheiro aguardava-me no primeiro andar: o ferimento não lhe permitia descer ao térreo. Rememoro-o com algum livro de estratégia. na mão: R N. Maude ou Clausewitz. `A arma que prefiro é a artilharia", confessou-me uma noite. Inquiria nossos planos; gostava de censurá-los ou reformá-los. Também costumava denunciar "nossa deplorável base econômica"; profetizava, dogmático e sombrio, o ruinoso fim. "C"est une affi~ire flamhée", murmurava. Para mostrar que lhe era indiferente ser um covarde físico, magnificava sua soberba mental. Assim passaram, bem ou mal, nove dias."No décimo, a cidade caiu definitivamente em poder dos Black and Tans. Altos cavaleiros silenciosos patrulhavam as rotas; havia cinzas e fumaça no vento; numa esquina vi estirado um cadáver, menos tenaz em minha lembrança que um manequim no qual os soldados exercitavam interminavelmente a pontaria, no centro da praça... Eu havia saído quando55OA FORMA DA ESPADAo amanhecer estava no céu; antes do meio-dia voltei. Moon, na biblioteca, falava com alguém; o tom da voz fez-me compreender que falava pelo telefone. Depois ouvi meu nome; depois que eu regressaria às sete, depois a indicação de que me prendessem quando atravessasse o jardim. Meu razoável amigo estava razoavelmente vendendo-me. Ouvi-o exigir algumas garantias de segurança pessoal."Aqui minha história se confunde e se perde. Sei que persegui o delator através de negros corredores de pesadelo e de fundas escadas de vertigem. Moon conhecia a casa muito bem, bastante melhor que eu. Uma ou duas vezes o perdi. Encurralei-o antes que os soldados me detivessem. De uma das panóplias do general arranquei um alfanje; com essa meia-lua de aço rubriquei-lhe na cara, para sempre, uma meia-lua de sangue. Borges: a você que é um desconhecido, fiz-lhe esta confissão. Não me dói tanto seu menosprezo."Aqui o narrador deteve-se. Notei que lhe tremiam as mãos.- E Moon? - perguntei-lhe.- Cobrou os dinheiros de Judas e fugiu para o Brasil. Nessa tarde, na praça, viu fuzilar um manequim por alguns bêbados.Aguardei em vão a continuação da história. Disse-lhe por fim que prosseguisse.Então um gemido o atravessou; então me mostrou com débil doçura a curva cicatriz esbranquiçada.- Você não me acredita? - balbuciou. - Não vê que levo escrita no rosto a marca de minha infâmia? Narrei-lhe a história desta forma para que você a ouvisse até o fim. Denunciei o homem que me amparou: eu sou Vincent Moon. Despreze-me agora.

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1942551TEMA DO TRAIDOR E DO HERÓITEMA DO TRAIDOR E DO HERÓISo the Platonic YenrWhirls out new right and wrorig, Whirls ín the old ir~stend;All rnen nre dancers nnd their tread Goes to the b~rbrrrous clangoi~r of a gonQ.W. B. YEATS: The Tower.Sob o notório influxo de Chesterton (que narra e adorna elegantes mistérios) e do conselheiro áulico Leibniz (que inventou a harmonia preestabelecida), imaginei este argumento, que escreverei talvez e que já de algum modo me justifica, nas tardes inúteis. Faltam pormenores, retificações, ajustes; há áreas da história que não me foram reveladas ainda; hoje, 3 de janeiro de 1944, assim a vislumbro.A ação transcorre num país oprimido e tenaz: Polônia, Irlanda, a república de Veneza, algum Estado sul-americano ou balcânico... Ou melhor, transcorreu, pois embora o narrador seja contemporâneo, a história contada por ele ocorreu em meados ou nos princípios do século XIX. Digamos (para comodidade narrativa) Irlanda; digamos 1824. O narrador chama-se Ryan; é bisneto do jovem, do heróico, do belo, do assassinado Fergus Kilpatrick, cujo sepulcro foi misteriosamente violado, cujo nome ilustra os versos de Browning e de Hugo, cuja estátua preside um morro cinzento entre lodaçais vermelhos.Kilpatrick foi um conspirador, um secreto e glorioso capitão de conspiradores; à semelhança de Moisés que, da terra de Moab, divisou e não pôde pisar a terra prometida, Kilpatrick pereceu na véspera da rebelião vitoriosa que havia premeditado e sonhado. Aproxima-se a data do primeiro centenário de sua morte; as circunstâncias do crime são enigmáticas; Ryan, dedicado à redação de uma biografia do herói, descobre que o enigma ultrapassa o puramente policial.Kilpatrick foi assassinado num teatro; a polícia britânica não descobriu nunca o assassino; os historiadores declaram que esse fracasso não empana seu bom crédito, já que, talvez, o tenha mandado matar a própria polícia. Outras facetas do enigma inquietam Ryan. São de caráter cíclico: parecem repetir ou combinar fatos de remotas regiões, de remotas idades. Assim, ninguém ignora que os esbirros que examinaram o cadáver do herói acharam uma carta fechada que lhe avisava do risco de comparecer ao teatro, nessa noite; também Júlio César, ao se encaminhar ao lugar onde o aguardavam os punhais de seus amigos, recebeu uma carta que não chegou a ler, na qual ia declarada a traição, com os nomes dos traidores. A mulher de César, Calpúrnia, viu em sonhos derrubada uma torre que lhe tinha erigido por decreto o Senado; falsos e anônimos rumores, na véspera da morte de Kilpatrick, divulgaram em todo o país o incêndio da torre circular de Kilgarvan, fato que pôde parecer um presságio, pois ele havia nascido em Kilgarvan. Esses paralelismos (e outros) da história de César e da história de um conspirador irlandês induzem Ryan a supor uma secreta forma do tempo, um desenho de linhas que se repetem. Pensa na história decimal que ideou Condorcet; nas morfologias que propuseram Hegel, Spengler e Vico; nos homens de Hesíodo, que degeneram do ouro até o ferro. Pensa na transmigração das almas, doutrina que causa horror às letras célticas e que o próprio César atribuiu aos druidas britânicos; pensa que antes de ser Fergus Kilpatrick, Fergus Kilpatrick foi Júlio César. Desses labirintos circulares, salva-o uma curiosa comprovação que depois o abisma em outros labirintos mais inextricáveis e heterogêneos: certas palavras de um mendigo que conversou com Fergus Kilpatrick no dia de sua morte foram prefiguradas

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por Shakespeare na tragédia de Macbeth. Que a história tivesse copiado a história já era suficientemente assombroso; que a história copie a literatura é inconcebível... Ryan averigua que em 1814 James Alexander Nolan, o mais antigo dos companheiros do herói, tinha traduzido ao gaélico os principais dramas de Shakespeare; entre eles, Júlio César. Também descobre nos arquivos um artigo manuscrito de Nolan sobre os Festspiele da Suíça; vastas e errantes representações teatrais, que requerem milhares de atores e que reiteram episódios552553FicçõssTEMA DO TRAIDOR E DO HERÓIhistóricos nas mesmas cidades e montanhas onde ocorreram. Outro documento inédito lhe revela que, poucos dias antes do fim, Kilpatrick, presidindo o último conclave, havia firmado a sentença de morte de um traidor, cujo nome foi apagado. Essa sentença não condiz com os piedosos hábitos de Kilpatrick. Ryan investiga o assunto (essa investigação é um dos hiatos do argumento) e consegue decifrar o enigma.Kilpatrick foi morto num teatro, mas de teatro fez também a inteira cidade, e os atores foram legião, e o drama coroado por sua morte abarcou muitos dias e muitas noites. Eis o que aconteceu:Em 2 de agosto de 1824, reuniram-se os conspiradores. O país estava maduro para a rebelião; algo, não obstante, falhava sempre: algum traidor havia no conclave. Fergus Kilpatrick havia encomendado a james Nolan a descoberta desse traidor. Nolan executou sua tarefa: anunciou em pleno conclave que o traidor era o próprio Kilpatrick. Demonstrou com provas irrefutáveis a verdade da acusação; os conjurados condenaram à morte seu presidente. Este assinou sua própria sentença, mas implorou que seu castigo não prejudicasse a pátria.Então Nolan concebeu um estranho projeto. A Irlanda idolatrava Kilpatrick; a mais tênue suspeita de sua vileza teria comprometido a rebelião; Nolan propôs um plano que fez da execução do traidor o instrumento para a emancipação da pátria. Sugeriu que o condenado morresse pelas mãos de um assassino desconhecido, em circunstâncias deliberadamente dramáticas, que se gravassem na imaginação popular e que apressassem a rebelião. Kilpatrick jurou colaborar nesse projeto, que lhe dava ocasião de redimir-se e que sua morte rubricaria.Nolan, premido pelo tempo, não soube inventar inteiramente as circunstâncias da múltipla execução; teve de plagiar outro dramaturgo, o inimigo inglês William Shakespeare. Repetiu cenas de Macbeth, de Júlio César. A pública e secreta representação compreendeu vários dias. O condenado entrou em Dublin, discutiu, agiu, rezou, reprovou, pronunciou palavras patéticas, e cada um desses atos que refletiria a glória fora prefixado por Nolan. Centenas de atores colaboraram com o protagonista; o papel de alguns foi complexo; o de outros, momentâneo. As coisas que disseram e fizeram perduram nos livros históricos, na memória apaixonada da Irlanda.554Kilpatrick, arrebatado por esse minucioso destino que o redimia e que o perdia, mais de uma vez enriqueceu com atos e palavras improvisadas o texto de seu juiz. Assim foi desdobrando-se no tempo o populoso drama, até que em 6 de agosto de 1824, num palco de funerárias cortinas que prefigurava o de Lincoln, um balaço almejado entrou no peito do traidor e do herói, que mal pôde articular, entre duas efusões de repentino sangue, algumas palavras previstas.Na obra de Nolan, as passagens imitadas de Shakespeare são as menos dramáticas; Ryan suspeita que o autor as tenha intercalado para que uma pessoa, no futuro, desse

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com a verdade. Compreende que ele também participa da trama de Nolan... Ao fim de tenazes cavilações, decide silenciar a descoberta. Publica um livro dedicado à glória do herói; também isso, talvez, estivesse previsto.555 Este livro foi digitalizado por Raimundo do Vale Lucas, com aintenção de dar aos cegos a oportunidade de apreciarem mais umamanifestação do pensamento humano..

Fic("o 1:"- Como o cristianismo - atreveu-se a completar o redator da Yidisehe Zaitung. Era míope, ateu e muito tímido.Ninguém lhe respondeu. Um dos agentes tinha encontrado na pequena máquina de escrever uma folha de papel com esta sentença inconclusa:

A primeira letra do Nome foi articulada.

Lõnnrot absteve-se de sorrir. Repentinamente bibliófiloou hebraísta, determinou que lhe fizessem um pacote com oslivros do morto e os levou a seu departamento. Indiferente àinvestigação policial, dedicou-se a estudá-los. Um livro emoitavo maior revelou-lhe os ensinamentos de Israel Baal Shem1" Tobh, fundador da seita dos Piedosos, outro, as virtudes e terrores do Tetragramaton, que e o inefável Njome de Deus; outro, a tese de que Deus tem um nome oculto, no qual está compendiado (como na esfera de cristal que os persas atribuem a Alexandre da Macedônia) seu nono atributo, a eternidade - isto é, o conhecimento imediato - de todas as coisas que serão, que são e que foram no universo. A tradição enumera noventa e nove nomes de Deus; os hebraístas atribuem esse imperfeito número ao mágico temor às cifras pares; os Hassidim argumentam que esse hiato assinala um centésimo nome - o Nome Absoluto.Dessa erudição distraiu-o, dias depois, o aparecimento do redator da Yidische Zaitung. Este queria falar do assassinato; Lõnnrot preferiu falar dos diversos nomes de Deus; o jornalista declarou em três colunas que o investigador Erik L<innmt tinha-se dedicado a estudar os nomes de Deus para dar com o;1, nome do assassino. Lõnnrot, habituado às simplificações dojornalismo, não se indignou. Um desses vendedores de livrosque descobriram que qualquer homem se resigna a comprarqualquer livro publicou uma edição popular da história daSeita dos Hassidim.O segundo crime ocorreu na noite de três de janeiro, nomais desamparado e deserto dos vazios subúrbios ocidentaisda capital. Por volta do amanhecer, um dos gendarmes quevigiam a cavalo essas solidões viu no umbral de uma antigaloja de tintas um homem com poncho, deitado. O duro rostoestava como que mascarado de sangue; uma punhalada pro558A MORTE E A BÚSSOLAfunda rachara-lhe o peito. Na parede, sobre os losangos amarelos e vermelhos, havia algumas palavras em giz. O gendarme soletrou-as... Nessa tarde, Treviranus e Lõnnrot dirigiram-se à remota cena do crime. À esquerda e à direita do automóvel, a cidade se desintegrava; crescia o firmamento e diminuíam de importância as casas

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e aumentava a de um forno de tijolos ou a de um álamo. Chegaram a seu pobre destino: um beco final de taipas rosadas que pareciam refletir de algum modo o desmedido pôr-de-sol. O morto já tinha sido identificado. Era Daniel Simón Azevedo, homem de certa fama nos antigos arrabaldes do Norte, que fora promovido de carreteiro a cabo eleitoral, para degenerar depois em ladrão e até em delator. (O singular estilo de sua morte pareceu-lhes adequado: Azevedo era o último representante de uma geração de bandidos que conhecia o manejo do punhal, mas não do revólver.) As palavras em giz eram as seguintes:

A segunda letra do Nome foi articulada.

O terceiro crime ocorreu na noite de três de fevereiro. Pouco antes da uma hora, o telefone ressoou no escritório do comissário Treviranus. Com ávido sigilo, falou um homem de voz gutural; disse que se chamava Ginzberg (ou Ginsburg) e que estava disposto a comunicar, por uma remuneração razoável, os fatos dos dois sacrifícios de Azevedo e de Yarmolinsky. Uma discórdia de zumbidos e de cornetas abafou a voz do delator. Depois, a comunicação foi cortada. Sem descartar aind, a possibilidade de uma brincadeira (afinal, estavam no carnaval), Treviranus averiguou que lhe haviam telefonado de Liverpool House, taberna da rue de Toulon - essa rua salobre, na qual convivem o cosmorama e a leiteria, o bordel e os vendedores de bíblias. Treviranus falou com o patrão. Este (Black Finnegan, velho criminoso irlandês, abatido e quase anulado pela decência) disse-lhe que a última pessoa que tinha utilizado o telefone da casa era um inquilino, um tal Gryphius, que acabava de sair com alguns amigos. Treviranus foi em seguida a Liverpool House. O patrão comunicou-lhe o seguinte: há oito dias, Gryphius havia alugado um quarto em cima do bar. Era um homem de feições afiladas, de nebulosa barba cinzenta, trajado pobremente de preto;i559FicçòEsFinnegan (que destinava esse quarto a um uso que Treviranus adivinhou) pediu-lhe um aluguel sem dúvida excessivo; Gryphius imediatamente pagou a soma estipulada. Quase nunca saía; jantava e almoçava em seu quarto; só o conheciam de vista no bar. Nessa noite, desceu para telefonar no escritório de Finnegan. Um cupê fechado deteve-se diante da taberna. O cocheiro não se moveu do pescante; alguns fregueses lembraram-se de que tinha máscara de urso. Do cupê desceram dois arlequins; eram de reduzida estatura e ninguém deixou de observar que estavam muito bêbados. Entre balidos de cornetas, irromperam no escritório de Finnegan; abraçaram Gryphius, que pareceu reconhecê-los, mas que lhes respondeu com frieza; trocaram algumas palavras em iídiche - ele em voz baixa, gutural, eles com vozes falsas, agudas - e subiram ao quarto do fundo. Em quinze minutos desceram os três, muito felizes; Gryphius, cambaleante, parecia tão bêbado como os outros. Ia, alto e vertiginoso, no meio, entre os arlequins mascarados. (Uma das mulheres do bar recordou os losangos amarelos, vermelhos e verdes.) Duas vezes tropeçou; duas vezes o seguraram os arlequins. Rumo à doca próxima, de água retangular, os três subiram no cupê e desapareceram. Já no estribo do cupê, o último arlequim garatujou uma figura obscena e uma sentença sobre as ardósias do beiral.Treviranus viu a sentença. Era quase previsível, dizia:

A última das letras do Nome foi articulada.

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Examinou, a seguir, o quartinho de Gryphius-Ginzberg. Havia no chão uma brusca estrela de sangue; nos cantos, restos de cigarros de marca húngara; num armário, um livro em latim - o Philologus Hebraeograecus (1739) de Leusden - com várias notas manuscritas. Treviranus olhou-o com indignação e mandou procurar Lónnrot. Este, sem tirar o chapéu, pôs-se a ler, enquanto o comissário interrogava as contraditórias testemunhas do possível seqüestro. As quatro saíram. Na sinuosa rue de Toulon, quando pisavam as serpentinas mortas da aurora, Treviranus disse:- E se a história desta noite fosse um simulacro?Erik Lõnnrot sorriu e leu-lhe com toda gravidade uma passagem (que estava sublinhada) da dissertação trigésimaterceira do Philologus: "Dies Judaeorum incipit a soles occasu usque ad soles occasum diei sequentes". Isto quer dizer - acrescentou - "O dia hebreu começa ao anoitecer e dura até o anoitecer seguinte".O outro esboçou uma ironia.- Esse dado é o mais valioso que o senhor recolheu esta noite?- Não. Mais valiosa é uma palavra que disse Ginzberg.Os jornais da tarde não descuidaram desses desaparecimentos periódicos. A Cruz da Espada contrastou-os com a admirável disciplina e a ordem do último Congresso Eremítico; Ernst Palast, em O Mdrtir, reprovou "as demoras intoleráveis de um pogrom clandestino e frugal, que necessitou de três meses para liquidar três judeus"; a Yidische Zaitung repeliu a hipótese horrorosa de um complô ante-semita, "ainda que muitos espíritos penetrantes não admitam outra solução para o tríplice mistério"; o mais ilustre dos pistoleiros do Sul, Dândi Red Scharlach, jurou que, em seu distrito, nunca seriam cometidos crimes como esses e acusou de culpável negligência o comissário Franz Treviranus.Este recebeu, na noite de primeiro de março, um imponente envelope lacrado. Abriu-o: o envelope continha uma carta assinada Baruch Spinoza e um minucioso mapa da cidade, arrancado evidentemente de um guia Baedeker. A carta profetizava que o dia três de março não teria um quarto crime, pois a loja de tintas do Oeste, a taberna da rue de Toulon e o Hôtel du Nord eram "os vértices perfeitos de um triângulo eqüilátero e místico"; o mapa demonstrava em tinta vermelha a regularidade desse triângulo. Treviranus leu com resignação esse argumento more geometrico e enviou a carta e o mapa à casa de Lónnrot - indiscutível merecedor de tais loucuras.Erik Lõnnrot estudou-as. Os três lugares, de fato, eram eqüidistantes. Simetria no tempo (3 de dezembro, 3 de janeiro, 3 de fevereiro); simetria no espaço, também... Sentiu, de repente, que estava por decifrar o mistério. Um compasso e uma bússola completaram essa repentina intuição. Sorriu, pronunciou a palavra Tetragrdmaton (de aquisição recente) e telefonou ao comissário. Disse-lhe:- Obrigado por esse triângulo eqüilátero que o senhor, à noite passada, me remeteu. Permitiu-me resolver o problema.56O561FicçóESAmanhã, sexta-feira, os criminosos estarão na prisão; podemos ficar muito tranqüilos.- Então, não planejam um quarto crime?- Exatamente porque planejam um quarto crime, podemos ficar muito tranqüilos. - Lõnnrot colocou o fone no gancho. Uma hora depois, viajava num trem das Ferrocarriles Australes, rumo à chácara abandonada de Triste-le-Roy. Ao sul da cidade de meu conto, flui um turvo riacho de águas barrentas, infestado de curtumes e de imundície.

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Do outro lado, há um subúrbio fabril onde, sob a proteção de um chefe barcelonês, medram os pistoleiros. Lõnnrot sorriu ao pensar que o mais afamado - Red Scharlach - teria oferecido qualquer coisa para saber dessa clandestina visita. Azevedo foi companheiro de Scharlach; Lõnnrot considerou a remota possibilidade de que a quarta vítima fosse Scharlach. Depois a descartou... Virtualmente, havia decifrado o problema; as simples circunstâncias, a realidade (nomes, prisões, rostos, trâmites judiciais e carcerários), apenas agora lhe interessavam. Desejava passear, desejava descansar de três meses de sedentária investigação. Refletiu que a explicação dos crimes estava num triângulo anônimo e numa poeirenta palavra grega. O mistério quase lhe pareceu cristalino; envergonhouse de ter-lhe dedicado cem dias.O trem parou numa silenciosa estação de cargas. Lõnnrot desceu. Era uma dessas tardes desertas que parecem amanheceres. O ar da turva planície era úmido e frio. Lõnnrot pôsse a andar pelo campo. Viu cães, viu um vagão num trilho morto, viu o horizonte, viu um cavalo prateado que bebia a água crapulosa de um charco. Escurecia quando viu o mirante retangular da chácara de Triste-le-Roy, quase tão alto como os negros eucaliptos que o rodeavam. Pensou que somente um amanhecer e um ocaso (um velho resplendor no oriente e outro no ocidente) separavam-no da hora desejada por aqueles que procuravam o Nome.Uma enferrujada grade definia o perímetro irregular da chácara. O portão principal estava fechado. Lõnnrot, sem muita esperança de entrar, fez toda a volta. De novo diante do portão infranqueável, meteu a mão entre os barrotes, quase maquinalmente, e deparou com o ferrolho. O ranger do ferro o surpreendeu. Com passividade laboriosa, o portão inteiro cedeu.562A MORTE E A BÚSSOLALõnnrot avançou entre os eucaliptos, pisando confundidas gerações de rotas folhas rígidas. Vista de perto, a casa da chácara de Triste-le-Roy possuía muitas inúteis simetrias e repetições maníacas: a uma Diana glacial em nicho lôbrego correspondia em outro segundo nicho outra Diana; uma sacada refletia-se em outra sacada; duplas escalinatas abriam-se em dupla balaustrada. Um Hermes de duas caras projetava uma sombra monstruosa. Lõnnrot rodeou a casa como rodeara a chácara. Tudo examinou; sob o nível do terraço viu uma estreita persiana.Empurrou-a: uns poucos degraus de mármore desciam a um porão. Lõnnrot, que já intuía as preferências do arquiteto, adivinhou que no oposto muro ao porão havia outros degraus. Encontrou-os, subiu, alçou as mãos e abriu o alçapão de saída.Um resplendor guiou-o a uma janela. Abriu-a: uma lua amarela e circular definia no triste jardim duas fontes obstruídas. Lõnnrot explorou a casa. Por ante-salas e galerias saiu a pátios iguais e repetidas vezes ao mesmo pátio. Subiu por escadas poeirentas a antecâmaras circulares; infinitamente multiplicou-se em espelhos opostos; cansou-se de abrir ou entreabrir janelas que lhe revelavam, fora, o mesmo desolado jardim de várias alturas e vários ângulos; dentro, móveis com capas amarelas e lustres embalados em tarlatana. Um aposento o deteve; nesse aposento, uma única flor num copo de porcelana; ao primeiro toque, as pétalas antigas desprenderam-se. No segundo andar, no último, a casa pareceu-lhe infinita e crescente. "A casa não é tão grande", pensou. "Aumentam-na a penumbra, a simetria, os espelhos, os muitos anos, meu desconhecimento, a solidão."Por uma escada espiral chegou ao mirante. A lua dessa tarde atravessava os losangos das janelas; eram amarelos, vermelhos e verdes. Deteve-o uma lembrança assombrada e vertiginosa.

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Dois homens de pequena estatura, ferozes e fornidos, arremessaram-se sobre ele e o desarmaram; outro, muito alto, saudou-o com gravidade e disse-lhe:- Você é muito amável. Economizou-nos uma noite e um dia.Era Red Scharlach. Os homens manietaram Lõnnrot. Este, por fim, recuperou a voz.563FicçòEsA MORTE E A BÚSSOLA- Scharlach, você procura o Nome Secreto?Scharlach continuava de pé, indiferente. Não havia participado da breve luta, apenas estendeu a mão para receber o revólver de Lõnnrot. Falou; Lõnnrot ouviu em sua voz uma fatigada vitória, um ódio do tamanho do universo, uma tristeza não menor que aquele ódio.- Não - disse Scharlach. - Procuro algo mais efêmero e detestável, procuro Erik Lõnnrot. Faz três anos, numa tavolagem da rue de Toulon, você mesmo prendeu e mandou encarcerar meu irmão. Num cupê, meus homens tiraram-me do tiroteio com uma bala policial no ventre. Nove dias e nove noites agonizei nesta desolada chácara simétrica; arrasava-me a febre, o odioso Jano bifronte, que olha os poentes e as auroras, causava horror a meu sonho e a minha vigília. Cheguei a abominar meu corpo, cheguei a sentir que dois olhos, duas mãos, dois pulmões são tão monstruosos como duas caras. Um irlandês tentou converter-me à fé de Jesus; repetia a sentença dos goim: Todos os caminhos levam a Roma. De noite, meu delírio nutria-se dessa metáfora: eu sentia que o mundo é um labirinto, do qual era impossível fugir, pois todos os caminhos, ainda que fingissem ir ao norte ou ao sul, iam realmente a Roma, que era também o cárcere quadrangular onde agonizava meu irmão e a chácara de Triste-le-Roy. Nessas noites jurei pelo deus que vê com duas caras e por todos os deuses da febre e dos espelhos tecer um labirinto em torno do homem que tinha aprisionado meu irmão. Tramei-o e é firme: os materiais são um heresiólogo morto, uma bússola, uma seita do século XVIII, uma palavra grega, um punhal, os losangos de uma loja de tintas.O primeiro termo da série foi-me dado pelo acaso. Eu tramara com alguns colegas - entre eles, Daniel Azevedo - o roubo das safiras do Tetrarca. Azevedo traiu-nos: embriagouse com o dinheiro que lhe adiantáramos e tomou a iniciativa um dia antes. No enorme hotel se perdeu; por volta das duas da manhã irrompeu no quarto de Yarmolinsky. Este, acossado pela insônia, pusera-se a escrever. De forma verossímil, redigia algumas notas ou um artigo sobre o Nome de Deus; escrevera já as palavras A primeira letra do Nome foi articulada. Azevedo exigiu-lhe silêncio; Yarmolinsky estendeu a mão para a campainha que despertaria toda a vigilância do hotel;Azevedo deu-lhe uma única punhalada no peito. Foi quase um movimento reflexo; meio século de violência ensinara-lhe que o mais fácil e seguro é matar... Dez dias após, soube eu, pela Yidische Zaitung, que você procurava nos escritos de Yarmolinsky a chave da morte de Yarmolinsky. Li a História da Seita dos Hassidim; soube que o medo reverente de pronunciar o Nome de Deus originara a doutrina de que esse Nome é todo-poderoso e recôndito. Soube que alguns Hassidim, à procura desse Nome secreto, chegaram a cometer sacrifícios humanos... Compreendi que você conjeturava que os Hassidim tinham sacrificado o rabino; dediquei-me a justificar essa conjetura.Marcelo Yarmolinsky morreu na noite de três de dezembro; para o segundo "sacrifício" escolhi a de três de janeiro. Morreu no Norte; para o segundo "sacrifício" convinha-nos um lugar do Oeste. Daniel Azevedo foi a vítima necessária. Merecia a morte: era um impulsivo, um traidor; sua captura podia aniquilar todo o plano. Um dos nossos

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apunhalou-o; para vincular seu cadáver ao anterior, escrevi em cima dos losangos da loja de tintas A segunda letra do Nome foi articulada.O terceiro "crime" aconteceu em três de fevereiro. Foi, como Treviranus adivinhou, um mero simulacro. GryphiusGinzberg-Ginsburg sou eu; uma semana interminável suportei (suplementado por uma rala barba postiça) esse perverso cubículo da rue de Toulon, até que os amigos me seqüestraram. Do estribo do cupê, um deles escreveu num pilar A última das letras do Nome foi articulada. Essa escrita divulgou que a série de crimes era tríplice. Assim o entendeu o público; eu, não obstante, intercalei repetidos indícios para que você, o raciocinados Erik Lõnnrot, compreendesse que é quádrupla. Um prodígio no Norte, outros no Leste e no Oeste, reclamam um quarto prodígio no Sul; o Tetragrámaton - o Nome de Deus, JHVH - consta de quatro letras; os arlequins e a amostra do dono da loja de tintas sugerem quatro termos. Sublinhei certa passagem no manual de Leusden; essa passagem manifesta que os hebreus calculavam o dia de ocaso a ocaso; essa passagem dá a entender que as mortes ocorreram no quarto dia de cada mês. Remeti o triângulo eqüilátero a Treviranus. Pressenti que você acrescentaria o ponto que falta. O ponto que determina um losango perfeito, o ponto que prefixa o564565FICçõEslugar onde uma exata morte o espera. Tudo premeditei, Erik Lõnnrot, para atraí-lo às solidões de Triste-le-Roy.Lõnnrot evitou os olhos de Scharlach. Contemplou as árvores e o céu subdivididos em losangos turvamente amarelos, verdes e vermelhos. Sentiu um pouco de frio e uma tristeza impessoal, quase anônima. Já era noite; do poeirento jardim subiu o grito inútil de um pássaro. Lõnnrot considerou pela última vez o problema das mortes simétricas e periódicas.- Em seu labirinto sobram três linhas a mais - disse por fim. - Eu sei de um labirinto grego que é uma linha única, reta. Nessa linha perderam-se tantos filósofos que bem pode perder-se um mero detetive. Scharlach, quando em outro avatar você me der caça, finja (ou cometa) um crime em A, depois um segundo crime em B, a 8 quilômetros de A, depois um terceiro crime em C, a 4 quilômetros de A e de B, no meio do caminho entre os dois. Aguarde-me depois em D, a 2 quilômetros de A e de C, de novo no meio do caminho. Mateme em D, como agora vai matar-me em Triste-le-Roy.- Para a outra vez que o matar - replicou Scharlach - prometo-lhe esse labirinto, que se compõe de uma única linha reta e que é invisível, incessante.Retrocedeu alguns passos. Depois, muito cuidadosamente, fez fogo.

1942O MILAGRE SECRETOE Deus o fez morrer durante cem anos e depois o animou e lhe disse: - Quanto tempo estiveste aqui?- Um dia ou parte de um dia, respondeu.Alcorão, 11, 261.Na noite de catorze de março de 1939, num apartamento da Zeltnergasse de Praga, Jaromir Hladik, autor da inconclusa tragédia Os Inimigos, de uma Vindicação da Eternidade e de uma interpretação das indiretas fontes judaicas de Jakob Boehme, sonhou com um extenso xadrez. Não o disputavam dois indivíduos, senão duas famílias ilustres; a partida fora entabulada faz muitos séculos; ninguém era capaz de nomear o esquecido prêmio, mas se murmurava que era enorme e quem sabe infinito; as peças e o

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tabuleiro estavam em uma torre secreta; Jaromir (no sonho) era o primogênito de uma das famílias hostis; nos relógios ressoava a hora da impostergável jogada; o sonhador corria pelas areias de um deserto chuvoso e não conseguia recordar as figuras nem as leis do xadrez. Nesse momento, despertou. Cessaram os estrondos da chuva e dos terríveis relógios. Um ruído compassado e unãonime, cortado por algumas vozes de comando, subia da Zeltnergasse. Era o amanhecer; as blindadas vanguardas do Terceiro Reich entravam em Praga.No dia dezenove, as autoridades receberam uma denúncia; no mesmo dia dezenove, ao entardecer, Jaromir Hladik foi detido. Conduziram-no a um quartel asséptico e branco, na margem oposta do Moldava. Não pôde desfazer uma só das acusações da Gestapo: seu sobrenome materno era Jaroslavski, seu sangue era judeu, seu estudo sobre Boehme era judaizante, sua assinatura delatava o censo final de um protesto contra o Anschluss. Em 1928, traduzira o Sepher566567FICçõESO MILAGRE SECRETOYezirah para a editora Hermann Barsdorf; o efusivo catálogo dessa editora havia exagerado comercialmente o renome do tradutor; esse catálogo foi folheado por Julius Rothe, um dos chefes em cujas mãos estava o destino de Hladik. Não existe homem que, fora de sua especialidade, não seja crédulo; dois ou três adjetivos em letra gótica bastaram para que Julius Rothe admitisse a proeminência de Hladik e dispusesse que o condenassem à morte, pour encourager les autres. Fixou-se o dia vinte e nove de março, às nove a.m. Essa demora (cuja importância considerará depois o leitor) devia-se ao desejo administrativo de agir impessoal e pausadamente, como os vegetais e os planetas.O primeiro sentimento de Hladik foi de simples terror. Pensou que não o teriam amedrontado a forca, a decapitação ou a degola, mas que morrer fuzilado era intolerável. Em vão repetiu a si mesmo que o ato puro e geral de morrer era o temível, não as circunstâncias concretas. Não se cansava de imaginar essas circunstâncias: tentava esgotar absurdamente todas as variantes. Antecipava infinitamente o processo, do insone amanhecer até o misterioso disparo. Antes do dia prefixado por Julius Rothe, morreu centenas de mortes, em pátios cujas formas e cujos ângulos esgotavam a geometria, metralhado por soldados variáveis, em número mutável, que às vezes o fuzilavam de longe; outras, de muito perto. Enfrentava com verdadeiro temor (talvez com verdadeira coragem) essas execuções imaginárias; cada simulacro durava uns poucos segundos; fechado o círculo, Jaromir voltava interminavelmente às trêmulas vésperas de sua morte. Depois refletiu que a realidade não costuma coincidir com as previsões; com lógica perversa inferiu que prever um detalhe circunstancial é impedir que este suceda. Fiel a essa débil magia, inventava, para que não acontecessem, ações atrozes; naturalmente, acabou por temer que essas ações fossem proféticas. Mísero na noite, tentava afirmar-se de algum modo na substância fugidia do tempo. Sabia que este se precipitava para o amanhecer do dia vinte e nove; raciocinava em voz alta: "Agora estou na noite do dia vinte e dois; enquanto dure esta noite (e seis noites mais) sou invulnerável, imortal". Pensava que as noites de sonho eram piscinas fundas e escuras nas quais podia submergir. Às vezes, desejava com impaciência odefinitivo disparo, que o redimiria, mal ou bem, de sua vã tarefa de imaginar. No dia vinte e oito, quando* o último poente reverberava nas altas barras de ferro, desviou-o dessas considerações abjetas a imagem de seu drama Os Inimigos.

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Hladik tinha ultrapassado os quarenta anos. Fora de algumas amizades e de muitos hábitos, o problemático exercício da literatura constituía sua vida; como todo escritor, media as virtudes dos outros pelo realizado por eles e pedia que os outros o medissem pelo que vislumbrava ou planejava. Todos os livros que fizera imprimir infundiam-lhe um complexo arrependimento. Em suas análises da obra de Boehme, de Ibn Ezra e de Fludd, interviera especialmente a simples aplicação; em sua tradução do Sepher Yezirah, a negligência, o cansaço e a conjetura. Julgava menos deficiente, talvez, a Vindicação da Eternidade: o primeiro volume historia as diversas eternidades que os homens idearam, do imóvel Ser de Parmênides até o passado modificável de Hinton; o segundo nega (com Francis Bradey) que todos os fatos do universo integram uma série temporal. Deduz que não é infinita a cifra das possíveis experiências do homem e que basta uma única "repetição" para demonstrar que o tempo é uma falácia... Infelizmente, não são menos falazes os argumentos que demonstram essa falácia; Hladik costumava percorrê-los com certa desdenhosa perplexidade. Também escrevera uma série de poemas expressionistas; estes, para confusão do poeta, figuraram em uma antologia de 1924 e não houve antologia posterior que não os herdasse. De todo esse passado equívoco e lânguido queria redimir-se Hladik com o drama em verso Os Inimigos. (Hladik preconizava o verso, porque impede que os espectadores esqueçam a irrealidade, que é condição da arte.)Esse drama respeitava as unidades de tempo, de lugar e de ação; transcorria em Hradeany, na biblioteca do barão de Roemerstadt, numa das últimas tardes do século XIX. Na primeira cena do primeiro ato, um desconhecido visita Roemerstadt. (Um relógio bate as sete, uma veemência de último sol exalta as vidraças, o ar traz uma apaixonada e reconhecível música húngara.) A esta visita seguem outras. Roemerstadt não conhece as pessoas que o importunam, mas tem a incômoda impressão de já tê-las visto, talvez num sonho. Todos o adulam exageradamente, mas é evidente -568569FICçOESprimeiro para os espectadores do drama, depois para o próprio barão - que são inimigos secretos, conjurados para eliminá-lo. Roemerstadt consegue deter ou frustrar suas complexas intrigas; no diálogo, aludem a sua noiva, Júlia de Weidenau, e a um tal Jaroslav Kubin, que certa vez a importunou com seu amor. Este, agora, enlouqueceu e acredita ser Roemerstadt... Os perigos aumentavam; Roemerstadt, no fim do segundo ato, vê-se na obrigação de matar um conspirador. Começa o terceiro ato, o último. Crescem gradualmente as incoerências: voltam atores que pareciam descartados já da trama; torna, por um instante, o homem morto por Roemerstadt. Alguém faz notar que não entardeceu: o relógio bate as sete, nas altas vidraças reverbera o sol ocidental, o ar traz uma apaixonada música húngara. Aparece o primeiro interlocutor e repete as palavras que pronunciou na primeira cena do primeiro ato. Roemerstadt falalhe sem surpresa; o espectador compreende que Roemerstadt é o miserável Jaroslav Kubin. O drama não aconteceu: é o delírio circular que interminavelmente vive e revive Kubin.Nunca se perguntou Hladik se essa tragicomédia de erros era frívola ou admirável, rigorosa ou casual. No argumento que esbocei, intuía a invenção mais apta para dissimular seus defeitos e para exercitar suas felicidades, a possibilidade de resgatar (de maneira simbólica) o fundamental de sua vida. Terminara já o primeiro ato e uma que outra cena do terceiro; o caráter métrico da obra permitia-lhe examiná-la continuamente, retificando os hexâmetros, sem o manuscrito à vista. Pensou que ainda lhe faltavam dois atos e que em breve ia morrer. Falou com Deus na escuridão. "Se de algum modo existo, se não sou uma de tuas repetições e erratas, existo

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como autor de Os Inimigos. Para levar a termo esse drama, que pode justificar-me e justificarte, requeiro mais um ano. Outorga-me esses dias, Tu de Quem são os séculos e o tempo." Era a última noite, a mais atroz, mas dez minutos depois o sono o inundou como água escura.Perto do amanhecer, sonhou que se ocultara numa das naves da biblioteca do Clementinum. Um bibliotecário de óculos pretos perguntou-lhe: "Que procura?" Hladik respondeu-lhe: "Procuro Deus". O bibliotecário disse-lhe: "Deus está em uma das letras de uma das páginas de um dos quatrocentos mil tomos do Clementinum. Meus pais e os pais de meus pais procuraram essa letra; eu me tornei cego procurando-a".O MILAGRE SECRETOTirou os óculos e Hladik viu os olhos, que estavam mortos. Um leitor entrou para devolver um atlas. "Este atlas é inútil", disse, e deu-o a Hladik. Este o abriu ao acaso. Viu um mapa da índia, vertiginoso. Bruscamente seguro, tocou uma das mínimas letras. Uma voz ubíqua disse-lhe: "O tempo de teu trabalho foi outorgado". Aqui Hladik despertou.Recordou que os sonhos dos homens pertencem a Deus e que Maimônides escreveu que são divinas as palavras de um sonho, quando são distintas e claras e não se pode ver quem as disse. Vestiu-se; dois soldados entraram na cela e ordenaram-lhe que os acompanhasse.Do outro lado da porta, Hladik havia previsto um labirinto de galerias, escadas e pavilhões. A realidade foi menos rica: desceram a um pátio interno por uma só escada de ferro. Vários soldados - um que outro de uniforme desabotoado - revisavam uma motocicleta e sobre ela discutiam. O sargento olhou o relógio: eram oito horas e quarenta e quatro minutos. Tinha que esperar que dessem as nove. Hladik, mais insignificante que infeliz, sentou-se num montão de lenha. Percebeu que os olhos dos soldados esquivavam-se dos seus. Para aliviar a espera, o sargento entregou-lhe um cigarro. Hladik não fumava; aceitouo por cortesia ou por humildade. Ao acendê-lo, viu que lhe tremiam as mãos. O dia nublou-se; os soldados falavam em voz baixa como se ele já estivesse morto. Em vão, tentou recordar a mulher cujo símbolo era Júlia de Weidenau...O pelotão formou-se, perfilou-se. Hladik, de pé contra a parede do quartel, esperou o disparo. Alguém temeu que a parede ficasse manchada de sangue; então ordenaram ao réu que avançasse alguns passos. Hladik, absurdamente, recordou as vacilações preliminares dos fotógrafos. Uma pesada gota de chuva roçou uma das têmporas de Hladik e deslizou lentamente por sua face; o sargento vociferou a ordem final.O universo físico se deteve.As armas convergiam sobre Hladik, mas os homens que iam matá-lo estavam imóveis. O braço do sargento eternizava um gesto inconcluso. Numa laje do pátio uma abelha projetava uma sombra fixa. O vento havia cessado, como num quadro. Hladik ensaiou um grito, uma sílaba, o movimento da mão. Compreendeu que estava paralisado. Não lhe chegava nem o mais tênue rumor do impedido mundo. Pensou "estou no infer57O571FicçõEsno, estou morto". Pensou "estou louco". Pensou o "tempo se deteve". Depois refletiu que em tal caso também se detivera seu pensamento. Quis pô-lo à prova: repetiu (sem mover os lábios) a misteriosa quarta écloga de Virgílio. Imaginou que os já remotos soldados compartilhavam de sua angústia; desejou comunicar-se com eles. Surpreendeu-lhe não sentir nenhuma fadiga, nem sequer a vertigem de sua demorada imobilidade. Dormiu, ao cabo de um prazo indeterminado. Ao despertar, o mundo continuava

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imóvel e surdo. Em sua face perdurava a gota de água; no pátio, a sombra da abelha; a fumaça do cigarro que havia jogado não acabava nunca de dispersar-se. Outro "dia" passou, antes que Hladik compreendesse.Um ano inteiro solicitara a Deus para terminar seu trabalho: um ano lhe outorgava sua onipotência. Deus laborava para ele um milagre secreto: matá-lo-ia o chumbo alemão, na hora determinada, mas em sua mente um ano transcorria entre a ordem e a execução da ordem. Da perplexidade passou ao estupor, do estupor à resignação, da resignação à súbita gratidão.Não dispunha de outro documento senão da memória; a aprendizagem de cada hexâmetro que adicionava impôs-lhe um afortunado rigor que não suspeitam os que aventuram e esquecem parágrafos interinos e vagos. Não trabalhou para a posteridade, nem ainda para Deus, de cujas preferências literárias pouco sabia. Minucioso, imóvel, secreto, urdiu no tempo seu alto labirinto invisível. Refez o terceiro ato duas vezes. Eliminou algum símbolo demasiado evidente: as repetidas badaladas, a música. Nenhuma circunstância o importunava. Omitiu, abreviou, amplificou; em certos casos, optou pela versão primitiva. Chegou a querer o pátio, o quartel; um dos rostos diante dele modificou sua concepção do caráter de Roemerstadt. Descobriu que as árduas cacofonias que tanto alarmaram Flaubert são meras superstições visuais: debilidades e moléstias da palavraescrita, não da palavra sonora... Pôs fim a seu drama: não lhefaltava já resolver senão um único epíteto. Encontrou-o; a gota deágua resvalou em sua face. Iniciou um grito enlouquecido, moveu o rosto, o quádruplo disparo o derrubou.Jaromir Hladik morreu a vinte e nove de março, às novehoras e dois minutos da manhã.

1943TRES VERSÕES DE JUDASThere seemed a certainty in degradation.T. E. LAWRENCE : Seven Pillars of Wisdom. CIII.Na Ásia Menor ou em Alexandria, no segundo século de nossa fé, quando Basilides publicava que o cosmos era uma temerária ou perversa improvisação de anjos deficientes, Nils Runeberg dirigira, com singular paixão intelectual, um dos conventículos gnósticos. Dante lhe teria destinado, talvez, um sepulcro de fogo; seu nome aumentaria os catálogos de heresiarcas menores, entre Satornilo e Carpócrates; algum fragmento de suas prédicas, adornado de injúrias, perduraria no apócrifo Liber Adversus ~es Haereses ou teria perecido quando o incêndio de uma biblioteca monástica devorou o último exemplar do Syntagma. Em troca, Deus lhe ofereceu o século XX e a cidade universitária de Lund. Aí, em 19O4, publicou a primeira edição de Kristus och Judas; aí, em 19O9, seu livro capital Den Hemlige Frálsaren. (Do último existe versão alemã, realizada em 1912 por Emil Schering; chama-se Der Heimliche Heiland.)Antes de tentar uma análise dos precitados trabalhos, urge repetir que Nils Runeberg, membro da União Evangélica Nacional, era profundamente religioso. Num cenáculo de Paris ou ainda de Buenos Aires, um literato poderia muito bem redescobrir as teses de Runeberg; essas teses, propostas num cenáculo, serão rápidos exercícios inúteis da negligência ou da blasfêmia. Para Runeberg, foram a chave que decifra um mistério central da teologia; foram matéria de meditação e de análise, de controvérsia histórica e filológica, de soberba, de júbilo e de terror. justificaram e desbarataram sua vida. Aqueles que recorrem a este artigo devem igualmente considerar que

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não registra senão as conclusões de Runeberg, não sua dialética e suas provas. Alguém observará que a conclusão precedeu sem572573FtcçõESTRÊS VERSêES DE JUDASdúvida às "provas". Quem se resigna a procurar provas de algo em que não acredita ou cuja prédica não lhe importa?A primeira edição de Kristus och judas leva esta categórica epígrafe, cujo sentido, anos depois, monstruosamente dilataria o próprio Nils Runeberg: "Não uma coisa, todas as coisas que a tradição atribui a Judas Iscariotes são falsas" (De Quincey, 1857). Precedido por algum alemão, De Quincey especulou que Judas entregou Jesus Cristo para forçá-lo a declarar sua divindade e a deflagrar uma vasta rebelião contra o jugo de Roma; Runeberg sugere uma vindicação de índole metafísica. Habilmente, começa por destacar a superficialidade do ato de judas. Observa (como Robertson) que para identificar um mestre que predicava diariamente na sinagoga e que operava milagres diante do concurso de milhares de homens, não se requer a traição de um apóstolo. Isso, não obstante, ocorreu. Supor um erro na Escritura é intolerável; não menos intolerável é admitir um fato casual no mais precioso acontecimento da história do mundo. Ergo, a traição de Judas não foi casual; foi um fato predeterminado que tem seu lugar misterioso na economia da redenção. Prossegue Runeberg: O Verbo, quando foi feito carne, passou da ubiqüidade ao espaço, da eternidade à história, da felicidade sem limites à mutação e à morte; para corresponder a tal sacrifício, era necessário que um homem, em representação de todos os homens, fizesse um sacrifício condigno. Judas Iscariotes foi esse homem. Judas, único entre os apóstolos, intuiu a secreta divindade e o terrível propósito de Jesus. O Verbo rebaixara-se a mortal; Judas, discípulo do Verbo, podia rebaixar-se a delator (o pior delito que a infâmia suporta) e a ser hóspede do fogo que não se apaga. A ordem inferior é um espelho da ordem superior; as formas da terra correspondem às formas do céu; as manchas da pele são um mapa das incorruptíveis constelações; Judas reflete, de algum modo, Jesus. Daí os trinta dinheiros e o beijo; daí a morte voluntária, para merecer ainda mais a Reprovação. Assim elucidou Nils Runeberg o enigma de Judas.Os teólogos de todos os credos o refutaram. Lars Peter Engstrõm acusou-o de ignorar, ou de preterir, a união hipostática; Axel Borelius, de renovar a heresia dos docetas que negaram a humanidade de Jesus; o robusto bispo de Lund, de contradizer o terceiro versículo do capítulo vinte e dois do evangelho de São Lucas.Estes variados anátemas influíram em Runeberg, que parcialmente reescreveu o reprovado livro e modificou sua doutrina. Abandonou a seus adversários o terreno teológico e propôs oblíquas razões de ordem moral. Admitiu que Jesus, que dispunha dos consideráveis recursos que a Onipotência pode oferecer", não necessitava de um homem para redimir todos os homens. Rebateu, depois, aqueles que afirmam que nada sabemos do inexplicável traidor; sabemos, disse, que foi um dos apóstolos, um dos eleitos para anunciar o reino dos céus, para sanar enfermos, para limpar leprosos, para ressuscitar mortos e para expulsar demônios (Mateus 1O, 7-8; Lucas 9, 1). Um varão a quem o Redentor assim distinguiu merece de nós a melhor interpretação de seus atos. Imputar seu crime à cobiça (como o fizeram alguns, citando João 12, 6) é resignar-se à iniciativa mais torpe. Nils Runeberg propõe a iniciativa contrária: um hiperbólico e até ilimitado ascetismo. O asceta, para maior glória de Deus, envilece e mortifica a carne; Judas fez o mesmo com o espírito. Renunciou à honra, ao bem, à paz, ao reino dos céus, como outros, menos heroicamente, ao prazer." Premeditou com lucidez

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terrível suas culpas. No adultério, costumam participar a ternura e a abnegação; no homicídio, a coragem; nas profanações e na blasfêmia, certo fulgor satânico. Judas escolheu aquelas culpas não visitadas por nenhuma virtude: o abuso de confiança (João 12, 6) e a delação. Agiu com gigantesca humildade, acreditou-se indigno de ser bom. Paulo escreveu: "O que se gloria, glorie-se no Senhor" (1 Coríntios 1, 31); Judas procurou o Inferno, porque a felicidade do Senhor lhe bastava. Pensou que a felicidade, como o bem, é um atributo divino e que não devem usurpá-lo os homens."1 Borelius pergunta com zombaria: "Por que não renunciou a renunciar? Por que não a renunciar a renunciar?"2 Euclides da Cunha, num livro ignorado por Runeberg, anota que para o heresiarca de Canudos, Antônio Conselheiro, a virtude "era uma quase impiedade". O leitor argentino recordará passagens análogas na obra de Almafuerte. Runebergpublicou na página simbolista Sju Insegel um assíduo poema descritivo, A Água Secreta; as primeiras estrofes narram os acontecimentos de um tumultuoso dia; as últimas, a descoberta de um açude glacial; o poeta sugere que a perduração dessaágua silenciosa corrige nossa inútil violência e de algum modo a permite e a absolve. O poema conclui assim: "A água da selva é feliz; podemos ser maldosos e dolorosos".574575FtcçõESdúvida` ¡aro, post facturo, que nos justificáveisem a k está seu extravagante fim e que Deun iples perversão ou exasperação de Kristus9O7, Runeberg terminou e revisou o texto6 anos transcorreram sem que o publicasM9, o livro apareceu com um prólogo¡o) do hebraísta dinamarquês Erik Erfjordgrafe: "No mundo estava e o mundo foi feito por Ele, e o mundo não o conheceu" (João 1, 1O). O argumento geral não é complexo, embora a conclusão seja monstruosa. Deus, argúi Nils Runeberg, rebaixou-se a ser homem para a redenção do gênero humano; cabe conjeturar que foi perfeito o sacrifício realizado por ele, não invalidado ou atenuado por omissões. Limitar o que padeceu à agonia de uma tarde na cruz é blasfematório.; Afirmar que foi homem e que foi incapaz de pecado encerra contradição; os atributos de impeccabilitas e de humanitas não são compatíveis. Kemnitz admite que o Redentor pôde sentir fadiga, frio, turbação, fome e sede; também cabe admitir que pôde pecar e perder-se. O famoso texto: "Brotará como raiz da terra sedenta; não há bom parecer nele, nem formosura; desprezado e o último dos homens; varão de dores, experimentado em quebrantos" (Isaías 53, 2-3), é para muitos uma previsão do crucificado, na hora de sua morte; para alguns (verbi gratia, Hans Lassen Martensen), uma refutação da formosura que o consenso popular atribui a Cristo; para Runeberg, a pontual profecia não de um momento senão de todo o atroz futuro, no tempo e na eternidade, do Verbo feito carne. Deus se fez totalmente homem porém homem até a infâmia, homem até a reprovação e o abismo. Para nos salvar, pôde escolher qualquer dos destinos que tramam a perplexa rede da história; pôde ser3 Mauriee Abramowicz observa: "Jesus, d"après ce scandinave, a toujours le beau rôle; ses déboires, grâce à Ia scienee des typographes, jouissent d"une réputation polyglotte; sa résidence de trente-trois ans parmi les humains ne fut, en somme, qu"une villégiature".Erfjord, no terceiro apêndice da Christelige Dogmatik refuta essa passagem. Observa que a crucifixão de Deus não cessou, porque o sucedido uma única vez no tempo

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repete-se sem trégua na eternidade. Judas, agora, continua cobrando asmoedas de prata; continua beijando Jesus Cristo; continua jogando as moedas de prata no templo; continua atando o laço da corda no campo de sangue. (Erfjord, para justificar essa afirmação, invoca o último capítulo do primeiro tomo da Vindicação da Eternidade, de Jaromir Hladik.)TRÊS VERSOES DE JUDASAlexandre ou Pitágoras ou Rurik ou Jesus; escolheu um ínfimo destino: foi Judas.Em vão propuseram essa revelação as livrarias de Estocolmo e de Lund. Os incrédulos a consideraram, a priori, um insípido e laborioso jogo teológico; os teólogos a desdenharam. Runeberg intuiu nessa indiferença ecumênica uma quase milagrosa confirmação. Deus ordenava essa indiferença; Deus não queria que se propagasse na terra Seu terrível segredo. Runeberg compreendeu que não era chegada a hora. Sentiu que estavam convergindo sobre ele antigas maldições divinas; lembrou-se de Elias e de Moisés, que na montanha cobriram o rosto para não ver Deus; Isaías, que se assustou quando seus olhos viram Aquele cuja glória enche a terra; Saulo, cujos olhos ficaram cegos no caminho de Damasco; o rabino Simeão ben Azaí, que viu o Paraíso e morreu; o famoso feiticeiro João de Viterbo, que enlouqueceu quando pôde ver a Trindade; os Midrashim, que abominam os ímpios que pronunciam o Shem Hamephorash, o Secreto Nome de Deus. Não era ele, por acaso, culpado desse crime obscuro? Não seria essa a blasfêmia contra o Espírito, a que não será perdoada (Mateus 12, 31)? Valério Sorano morreu por ter divulgado o oculto nome de Roma; que infinito castigo seria o seu, por ter descoberto e divulgado o horrível nome de Deus?Ébrio de insônia e de vertiginosa dialética, Nils Runeberg errou pelas ruas de Malmõ, suplicando em gritos que lhe fosse oferecida a graça de compartilhar com o Redentor o Inferno.Morreu da ruptura de um aneurisma, a primeiro de março de 1912. Os heresiólogos talvez haverão de lembrá-lo; acrescentou ao conceito do Filho, que parecia exaurido, as complexidades do mal e do infortúnio.

1944576577Recabarren, deitado, entreabriu os olhos e viu o oblíquo forro de junco. Do outro quarto chegava-lhe um rasqueado de guitarra, uma espécie de paupérrimo labirinto que se enredava e desatava infinitamente... Recobrou, pouco a pouco, a realidade, as coisas cotidianas que já nunca mais trocaria por outras. Olhou sem lástima seu grande corpo inútil, o poncho de lã ordinária que lhe cobria as pernas. Fora, além das grades da janela, dilatavam-se a planície e a tarde; dormira, mas ainda ficara muita luz no céu. Com o braço esquerdo tateou, até dar com a sineta de bronze que estava ao pé do catre. Uma ou duas vezes a agitou; do outro lado da porta, continuavam chegando até ele os modestos acordes. O tocador era um negro que aparecera uma noite com pretensões de cantor e que provocara outro forasteiro a um longo e improvisado desafio. Vencido, continuava freqüentando o armazém, como à espera de alguém. Passava as horas com a guitarra, mas não voltara a cantar; talvez a derrota o tivesse desgostado. As pessoas já se haviam acostumado a esse homem inofensivo. Recabarren, dono do armazém, não se esqueceria desse desafio; no dia seguinte, ao acomodar alguns fardos de erva, seu lado direito se imobilizara bruscamente e perdera a fala. À força de apiedar-nos das desventuras dos heróis dos romances, terminamos apiedando-nos excessivamente das próprias desventuras; não assim o sofrido Recabarren, que aceitou a paralisia como antes aceitara o rigor e as solidões da América. Habituado_a

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viver no presente, como os animais, agora olhava o céu e pensava que o halo vermelho da lua era sinal de chuva.Um menino de feições indiáticas (filho seu, talvez) entreabriu a porta. Recabarren perguntou-lhe com os olhos seO Fimhavia algum freguês. O menino, taciturno, disse-lhe por sinais que não; o negro não contava. O homem prostrado ficou só; sua mão esquerda brincou um instante com a sineta, como se exercitasse um poder.A planície, sob o último sol, era quase abstrata, como vista num sonho. Um ponto moveu-se no horizonte e cresceu até ser um cavaleiro que vinha, ou parecia vir, para casa. Recabarren viu o chapéu de abas largas, o longo poncho escuro, o cavalo mouro, mas não o rosto do homem, que, por fim, segurou o galope e veio aproximando-se a trote lento. A umas duzentas varas de distância virou. Recabarren não o viu mais, porém o escutou vozear, apearse, amarrar o cavalo ao palanque e entrar com passo firme no armazém.Sem alçar os olhos do instrumento, no qual parecia procurar alguma coisa, o negro disse com doçura:- Já sabia eu que podia contar com o senhor.O outro, com voz áspera, replicou:- E eu contigo, moreno. Uma porção de dias te fiz esperar, mas aqui vim.Houve um silêncio. Por fim, o negro respondeu:- Estou me acostumando a esperar. Esperei sete anos.O outro explicou sem pressa:- Mais de sete anos passei sem ver meus filhos. Encontrei-os naquele dia e não quis mostrar-me como um homem que vive às punhaladas.- Já compreendi - disse o negro. - Espero que os tenha deixado com saúde.O forasteiro, que se sentara no balcão, riu com vontade. Pediu uma cachaça e a degustou sem concluí-la.- Dei-lhes bons conselhos - declarou -, que nunca são demais e nada custam. Disse-lhes, entre outras coisas, que o homem não deve derramar o sangue do homem.Um lento acorde precedeu a resposta do negro:- Fez bem. Assim não se parecerão a nós.- Pelo menos a mim - disse o forasteiro e acrescentou como se pensasse em voz alta: - Meu destino quis que eu matasse e agora, outra vez, põe-me a faca na mão.O negro, como se não o ouvisse, observou:- Com o outono se vão encurtando os dias.578579Àante do negro e falou-lhe com ar cansado: paz a guitarra, que hoje te espera outra espé

aminharam-se à porta. O negro, ao sair, mur- Talvez neste me saia tão mal como no primeiro.O outro respondeu com seriedade:- No primeiro não te saíste mal. O que se deu é que tinhas vontade de chegar ao segundo.Afastaram-se um pouco das casas, caminhando a par. Um lugar da planície era igual a outro e a lua resplandecia. De repente olharam-se, detiveram-se e o forasteiro tirou as esporas. Já estavam com o poncho no antebraço, quando o negro disse:- Uma coisa quero pedir-lhe antes da briga. Que nesta briga ponha toda a sua coragem e toda a sua manha, como naquela outra de há sete anos, quando matou meu irmão.

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Talvez pela primeira vez em seu diálogo, Martín Fierro tenha ouvido o ódio. Seu sangue o sentiu como um acicate. Entreveraram-se e o aço afiado luziu e marcou a cara do negro.Há uma hora da tarde em que a planície está por dizer alguma coisa, nunca o diz ou talvez o diga infinitamente e não a compreendemos, ou a compreendemos mas é intraduzível como uma música... De seu catre, Recabarren viu o fim. Uma investida e o negro recuou, perdeu pé, ameaçou um talho no rosto e caiu com uma punhalada profunda, que penetrou no ventre. Depois veio outra que o dono do armazém não conseguiu precisar, e Fierro não se levantou. Imóvel, o negro parecia vigiar sua laboriosa agonia. Limpou o facão ensangüentado no pasto e voltou às casas com lentidão, sem olhar para trás. Cumprida sua tarefa de justiceiro, agora era ninguém. Ou melhor, era o outro: não tinha destino sobre a terra e matara um homem.A SEITA DA FÊNIXAqueles que escrevem que a seita da Fênix teve sua origem em Heliópolis e a derivam da restauração religiosa que sucedeu à morte do reformador Amenófis IV alegam textos de Heródoto, de Tácito e dos monumentos egípcios, mas ignoram, ou querem ignorar, que a denominação da Fênix não é anterior a Hrabano Mauro e que as fontes mais antigas (as Saturnais ou Flávio Josefo, digamos) só falam da Gente do Costume ou da Gente do Segredo. Já Gregorovius observou, nos conventículos de Ferrara, que a menção à Fênix era raríssima na linguagem oral; em Genebra, tratei com artesãos que não me compreenderam quando perguntei se eram homens da Fênix, mas que admitiram, imediatamente, ser homens do Segredo. Se não me engano, semelhante coisa acontece com os budistas; o nome pelo qual os conhece o mundo não é o que eles pronunciam.Miklosich, numa página bastante famosa, equiparou os sectários da Fênix aos ciganos. No Chile e na Hungria há ciganos e também há sectários; fora dessa espécie de ubiqüidade, muito pouco têm em comum, uns e outros. Os ciganos são negociantes, caldeireiros, ferreiros e ledores da sorte; os sectários costumam exercer felizmente as profissões liberais. Os ciganos configuram um tipo físico e falam, ou falavam, um idioma secreto; os sectários confundem-se com os demais e a prova é que não têm sofrido perseguições. Os ciganos são pitorescos e inspiram os maus poetas; os romances, os cromos e os boleros omitem os sectários... Martim Buber declara que os judeus são essencialmente patéticos; nem todos os sectários o são e alguns abominam o patético; esta pública e notória verdade basta para refutar o erro vulgar (absurdamente defendido por Urmann) que vê na Fênix uma derivação de Israel.58O581FicçõEsDiscorre-se mais ou menos assim: Urmann era um homem sensível; Urmann era judeu; Urmann freqüentou os sectários nos guetos de Praga; a afinidade que Urmann sentiu comprova um fato real. Sinceramente, não posso concordar com essa opinião. Que os sectários num meio judaico pareçam-se aos judeus não comprova nada; o inegável é que se parecem, como o infinito Shakespeare de Hazlitt, a todos os homens do mundo. São tudo para todos, como o Apóstolo; dias atrás, o doutor Juan Francisco Amaro, de Paysandú, ponderou a facilidade com que se acrioulavam.Disse que a história da seita não registra perseguições. Isso é verdade, mas como não há grupo humano em que não figurem partidários da Fênix, também é certo que não há perseguição ou rigor que estes não hajam padecido ou exercido. Nas guerras ocidentais e nas remotas guerras da Ásia verteram-lhes o sangue secularmente, sob bandeiras inimigas; muito pouco lhes vale identificar-se com todas as nações do orbe.

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Sem um livro sagrado que os congregue como a Escritura a Israel, sem uma memória comum, sem essa outra memória que é um idioma, espalhados pela face da terra, diversos em cor e em traços, uma única coisa - o Segredo - os une e os unirá até o fim dos dias. Certa vez, além do Segredo, houve uma lenda (e quiçá um mito cosmogônico), mas os superficiais homens da Fênix esqueceram-na e hoje apenas guardam a obscura tradição de um castigo. De um castigo, de um pacto ou de um privilégio, porque as versões diferem e somente deixam entrever a sentença de um Deus que assegura a uma estirpe a eternidade, se os homens dela, geração após geração, praticarem um rito. Consultei os relatos dos viajantes, conversei com patriarcas e teólogos; posso dar fé de que o cumprimento do rito é a única prática religiosa que observam os sectários. O rito constitui o Segredo. Este, como já indiquei, transmite-se de geração a geração, mas o uso não quer que as mães o ensinem aos filhos, nem tampouco os sacerdotes; a iniciação no mistério é tarefa dos indivíduos mais desprezíveis. Um escravo, um leproso ou um mendigo servem de mistagogos. Também um menino pode doutrinar outro menino. O ato em si é trivial, momentâneo e não requer descrição. Os materiais são a cortiça, a cera ou a goma-arábica. (Na liturgia, fala-se de lodo; este se costuma usar também.) Não há templos dedicaA SEITA DA FÊNIXdos especialmente à celebração desse culto, mas uma ruína, um porão ou um vestíbulo são considerados lugares propícios. O Segredo é sagrado mas não deixa de ser um pouco ridículo; seu exercício é furtivo e ainda clandestino e os adeptos não falam dele. Não há palavras decentes para denominálo, mas se entende que todas as palavras o denominam, ou antes, que inevitavelmente o aludem, e assim, no diálogo eu disse uma coisa qualquer e os adeptos sorriram ou se incomodaram, porque sentiram que eu tinha tocado o Segredo. Nas literaturas germânicas há poemas escritos por sectários, cujo sujeito nominal é o mar ou o crepúsculo da noite; são, de algum modo, símbolos do Segredo, ouço repetir. "Orbis terrarum est speculum Ludi" reza um adágio apócrifo que Du Cange registrou em seu Glossário. Uma espécie de horror sagrado impede a alguns fiéis a realização do simplicíssimo rito; os outros os desprezam, mas eles se desprezam ainda mais. Gozam de forte crédito, em troca, os que deliberadamente renunciam ao Costume e obtêm um comércio direto com a divindade; estes, para manifestar esse comércio, fazemno com figuras da liturgia, e assim John of the Rood escreveu:

Saibam os Nove Firmamentos que o Deus É deleitável como a Cortiça e o Lodo.

Tenho merecido em três continentes a amizade de muitos devotos da Fênix; consta-me que o Segredo, a princípio, pareceu-lhes frívolo, penoso, vulgar e (o que é mais estranho) inacreditável. Não concordavam em admitir que seus pais se houvessem rebaixado a tais práticas. O estranho é que o Segredo não se tenha perdido, há muito; a despeito das vicissitudes do orbe, a despeito das guerras e dos êxodos, chega, surpreendentemente, a todos os fiéis. Alguém não vacilou em afirmar que já é instintivo.582583O SULO homem que desembarcou em Buenos Aires em 1871 chamava-se Johannes Dahlmann e era pastor da igreja evangélica; em 1939, um de seus netos, Juan Dahlmann, era secretário de uma biblioteca municipal, à rua Córdoba, e sentia-se profundamente argentino. Seu avô materno fora aquele Francisco Flores, do 2 de infantaria de linha, que morreu

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na fronteira de Buenos Aires, lanceado pelos índios de Catriel; na discórdia de suas duas linhagens, Juan Dahlmann (talvez por impulso do sangue germânico) elegeu a desse antepassado romântico, ou de morte romântica. Um estojo com o daguerreótipo de um homem inexpressivo e barbudo, uma velha espada, a felicidade e a coragem de certas músicas, o hábito de estrofes do Martín Fierro, os anos, o fastio e a solidão fomentaram esse crioulismo algo voluntário, mas nunca ostensivo. À custa de algumas privações, Dahlmann havia conseguido salvar a sede de uma estância no Sul, que foi dos Flores; um dos hábitos de sua memória era a imagem dos eucaliptos balsâmicos e da ampla casa rosada que certa vez havia sido carmesim. As tarefas e talvez a indolência o retinham na cidade. Verão após verão, contentava-se com a idéia abstrata de posse e com a certeza de que sua casa o estava esperando, em um lugar preciso da planície. Nos últimos dias de fevereiro de 1939, alguma coisa lhe aconteceu.Cego às culpas, o destino pode ser desapiedado com as mínimas distrações. Dahlmann tinha obtido, essa tarde, um exemplar incompleto das Mil e Uma Noites de Weil; ávido para examinar esse achado, não esperou que descesse o elevador e subiu apressado as escadas; algo na escuridão roçou-lhe a fronte; um morcego, um pássaro? Na fisionomia da mulher que lhe abriu a porta, viu gravado o horror, e a mão que pasO Sussou na testa saiu vermelha de sangue. A aresta de um batente recém-pintado que alguém se esqueceu de fechar tinha-lhe feito essa ferida. Dahlmann conseguiu dormir, mas de madrugada acordara e desde aquela hora o sabor de todas as coisas foi atroz. A febre o desgastou e as ilustrações das Mil e Uma Noites serviram para decorar pesadelos. Amigos e parentes o visitavam e com exagerado sorriso lhe repetiam que o achavam muito bem. Dahlmann ouvia-os com uma espécie de fraco estupor e surpreendia-lhe que não soubessem que estava no inferno. Oito dias passaram, como oito séculos. Uma tarde, o médico habitual apresentou-se com um novo médico e conduziram-no a um clínica da rua Equador, porque era indispensável tirar-lhe uma radiografia. Dahlmann, no carro de praça que os levou, pensou que num quarto que não fosse o seu poderia, afinal, dormir. Sentiu-se feliz e conversador, logo que chegou, despiram-no, rasparam-lhe a cabeça, prenderam-no a uma maca, iluminaram-no até a cegueira e a vertigem, auscultaram-no e um homem mascarado cravou-lhe uma agulha no braço. Despertou com náuseas, vendado, numa cela que tinha alguma coisa de poço e, nos dias e noites que seguiram à operação, pôde entender que apenas tinha estado, até então, num arrabalde do inferno. O gelo não deixava em sua boca o menor rasto de frescor. Nesses dias, Dahlmann odiou-se minuciosamente; odiou sua identidade, suas necessidades corporais, sua humilhação, a barba que lhe eriçava o rosto. Sofreu com estoicismo os curativos, que eram muito dolorosos, porém, quando o cirurgião lhe disse que estivera a ponto de morrer de uma septicemia, Dahlmann pôs-se a chorar, condoído de seu destino. As misérias físicas e a incessante previsão das noites ruins não lhe haviam deixado pensar em algo tão abstrato como a morte. No dia seguinte, o cirurgião disse-lhe que estava se recuperando e que, brevemente, poderia ir convalescer na estância. Por incrível que pareça, o dia prometido chegou.A realidade gosta das simetrias e dos leves anacronismos; Dahlmann havia chegado à clínica num carro de praça e agora um carro de praça o levava à estação Constitución. O primeiro frescor do outono, depois da opressão do verão, era como um símbolo natural de seu destino resgatado da morte e da febre. A cidade, às sete da manhã, não tinha perdido esse aspecto de casa velha que lhe infunde a noite; as ruas eram como amplos saguões, as praças como pátios. Dahlmann a reconhecia com584

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585FicçõEsfelicidade e com um princípio de vertigem; segundos antes que registrassem seus olhos, recordava as esquinas, os cartazes, as modestas diferenças de Buenos Aires. Na luz amarela do novo dia, todas as coisas regressavam a ele.Ninguém ignora que o Sul começa do outro lado da rua Rivadavia. Dahlmann costumava repetir que isso não é uma convenção e que quem atravessa essa rua entra num mundo mais antigo e mais duro. Do carro procurava, entre a nova edificação, a janela de grades, a aldrava, o arco da porta, o vestíbulo, o íntimo pátio.No hall da estação percebeu que faltavam trinta minutos. Lembrou-se bruscamente de que num café da rua Brasil (a poucos metros da casa de Yrigoyen) havia um enorme gato que se deixava acarinhar pelas pessoas, como uma divindade desdenhosa. Entrou. Aí estava o gato, adormecido. Pediu uma xícara de café, adoçou-o lentamente, experimentou-o (esse prazer lhe tinha sido proibido na clínica) e pensou, enquanto alisava a negra pelagem, que aquele contato era ilusório e que estavam como separados por uma vidraça, porque o homem vive no tempo, na sucessão, e o mágico animal, na atualidade, na eternidade do instante.Ao longo da penúltima plataforma o trem esperava. Dahlmann percorreu os vagões e deparou com um quase vazio. Acomodou na rede a mala; quando o trem arrancou, abriu-a e tirou, depois de certa vacilação, o primeiro tomo das Mil e Uma Noites. Viajar com esse livro, tão vinculado à história de sua desventura, era uma afirmação de que essa desdita havia sido anulada e um desafio alegre e secreto às frustradas forças do mal.Nas laterais do trem, a cidade desgarrava-se em subúrbios; essa visão e depois a de jardins e chácaras retardaram o princípio da leitura. A verdade é que Dahlmann leu pouco; a montanha de pedra-ímã e o gênio que tinha jurado matar seu benfeitor eram, quem o nega, maravilhosos, não muito mais, contudo, que a manhã e que o fato de ser. A felicidade o distraía de Scherazade e de seus milagres supérfluos; Dahlmann fechava o livro e deixava-se simplesmente viver.O almoço (com a sopa servida em tigelas de metal reluzente, como nos já remotos veraneios da infância) foi outro prazer tranqüilo e agradecido.586O SUL"Amanhã acordarei na estância", pensava, e era como se a um tempo fosse dois homens: o que avançava pelo dia outonal e pela geografia da pátria, e o outro, enclausurado numa clínica e dependente de metódicas criadagens. Viu casas de tijolos sem reboco, esquinadas e amplas, infinitamente encarando passar os trens; viu cavalos nos terrosos caminhos; viu sangas e lagoas e fazenda; viu grandes nuvens luminosas que pareciam de mármore, e todas essas coisas eram casuais, como sonhos da planície. Também acreditou reconhecer árvores e sementeiras que não pudera nomear, porque seu direto conhecimento do campo era bastante inferior a seu conhecimento nostálgico e literário.Em dado momento, dormiu e em seus sonhos estava o ímpeto do trem. já o branco sol intolerável das doze do dia era o sol amarelo que precede o anoitecer e não tardaria a ser vermelho. Também o vagão era diferente; não era o que tinha sido em Constitución, ao deixar a plataforma: a planície e as horas o haviam atravessado e transfigurado. Fora, a móvel sombra do vagão alongava-se em direção ao horizonte. Não turbavam a terra elementar nem povoações, nem outros sinais humanos. Tudo era vasto, mas ao mesmo tempo era íntimo e, de alguma maneira, secreto. No campo desmedido, às vezes não havia nada a não ser um touro. A solidão era perfeita e talvez hostil, e Dahlmann

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pôde suspeitar que viajava ao passado e não só ao Sul. Dessa conjetura fantástica distraiu-o o inspetor, que, ao ver sua passagem, avisou-lhe que o trem não o deixaria na estação de sempre, senão em outra, um pouco anterior e quase desconhecida por Dahlmann. (O homem acrescentou uma explicação que Dahlmann não tentou entender, nem sequer ouvir, porque o mecanismo dos fatos não lhe importava.)O trem parou com dificuldade, quase no meio do campo. Do outro lado dos trilhos, ficava a estação, que era pouco mais que uma plataforma com cobertura. De nenhum veículo dispunham, mas o chefe opinou que talvez pudesse conseguir um na casa de comércio que lhe indicou a umas dez, doze quadras.Dahlmann aceitou a caminhada como uma pequena aventura. já se havia posto o sol, mas um esplendor final exaltava a viva e silenciosa planície, antes que a apagasse a noite. Menos para não se cansar do que para fazer durar essas587FicçõEsO Suscoisas, Dahlmann caminhava devagar, aspirando com grave felicidade o olor do trevo.O armazém já tinha sido vermelho-vivo, mas os anos mitigaram para seu bem essa cor violenta. Algo em sua pobre arquitetura recordou-lhe uma gravura em aço, talvez de uma velha edição de Paulo e Virgínia. Atados ao palanque havia alguns cavalos. Dahlmann, dentro, acreditou reconhecer o proprietário; depois compreendeu que o enganara sua semelhança com um dos empregados da clínica. O homem, ouvido o caso, disse que faria com que lhe atrelassem a jardineira; para acrescentar outro fato àquele dia e para preencher esse tempo, Dahlmann resolveu comer no armazém.Numa mesa comiam e bebiam ruidosamente alguns rapagões, nos quais Dahlmann, de início, não prestou atenção. No chão, encostado ao balcão, acocorava-se, imóvel como uma coisa, um homem bastante velho. Os muitos anos haviamno reduzido e polido como as águas a uma pedra ou as gerações dos homens a um refrão. Era escuro, pequeno e ressequido, e estava como fora do tempo, numa eternidade. Dahlmann registrou com satisfação a faixa de pano na testa, o poncho de baeta, o amplo chiripá e a bota de potro, e disse a si mesmo, rememorando inúteis discussões com pessoas dos partidos do Norte ou com entrerrianos, que gaúchos desses só restam no Sul.Dahlmann acomodou-se perto da janela. A escuridão foi se apoderando do campo, mas seu olor e seus rumores ainda lhe chegavam entre as grades. O proprietário trouxe-lhe sardinhas e depois carne assada; Dahlmann as engoliu com alguns copos de vinho tinto. Ocioso, degustava o áspero sabor e deixava vagar o olhar, já um pouco sonolento, pelo local. A lâmpada de querosene pendia de uma das vigas; os fregueses da outra mesa eram três: dois pareciam peões de chácara; outro, de traços mestiços e desajeitados, bebia com o chapelão na cabeça. Dahlmann, logo, sentiu um leve roçar no rosto. Perto do copo ordinário de vidro turvo, sobre uma das listras da toalha, havia uma bolinha de miolo de pão. Isso era tudo, mas alguém lha atirara.Os da outra mesa pareciam alheios a ele. Dahlmann, perplexo, decidiu que nada tinha acontecido e abriu o volume das Mil e Uma Noites, como para esconder a realidade. Outrabolinha o atingiu poucos minutos depois, e desta vez os peões riram. Dahlmann disse a si mesmo que não estava assustado, mas que seria um disparate para ele, um convalescente, deixar-se arrastar por desconhecidos a uma briga confusa. Resolveu sair; já estava de pé quando o proprietário se aproximou dele e o exortou com voz alarmada:- Senhor Dahlmann, não faça caso desses moços, que estão meio alegres.

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Dahlmann não estranhou que o outro, agora, o conhecesse, porém sentiu que essas palavras conciliadoras agravavam, de fato, a situação. Antes, a provocação dos peões era a um rosto acidental, quase a ninguém; agora ia contra ele e contra seu nome e o saberiam os vizinhos. Dahlmann afastou para um lado o proprietário, enfrentou os peões e perguntou-lhes o que andavam procurando.O compadrito da cara mestiça ergueu-se cambaleando. A um passo de Juan Dahlmann injuriou-o a gritos, como se estivesse muito longe. Brincava de exagerar sua bebedeira e esse exagero era uma ferocidade e uma zombaria. Entre palavras ofensivas e obscenidades, atirou para o ar um facão, seguiu-o com os olhos, aparou-o, e convidou Dahlmann a brigar. O proprietário objetou com trêmula voz que Dahlmann estava desarmado. Nesse instante, algo imprevisível ocorreu.De um canto, o velho gaúcho estático, no qual Dahlmann viu um signo do Sul (do Sul que era seu), atirou-lhe uma adaga desembainhada que veio cair a seus pés. Era como se o Sul tivesse resolvido que Dahlmann aceitasse o duelo. Dahlmann inclinou-se para recolher a adaga e sentiu duas coisas. A primeira, que esse ato quase instintivo o comprometia a lutar. A segunda, que a arma, em sua mão inábil, não serviria para defendê-lo, mas para justificar que o matassem. Certa vez havia brincado com um punhal, como todos os homens, porém sua esgrima não passava de uma noção de que os golpes devem ir para cima e com o fio para dentro. "Não teriam permitido na clínica que me acontecessem essas coisas", pensou.- Vamos saindo - disse o outro.Saíram, e se em Dahlmann não havia esperança, tampouco havia temor. Sentiu, ao transpor o umbral, que morrer em uma briga à faca, a céu aberto e atacando, teria sido uma588589FICÇõESlibertação para ele, uma felicidade e uma festa, na primeira noite da clínica, quando lhe cravaram a agulha. Sentiu que se ele, então, tivesse podido escolher ou sonhar sua morte, esta é a morte que teria escolhido ou sonhado.Dahlmann empunha com firmeza a faca, que provavelmente não saberá manejar, e sai à planície.59OO IMORTAL

Solomon saith: "There is no neto thing upon the earth". So that as Plato had an imagination, "that a11 knowledge was but remembrance"; so Solomon giveth hissentence, "that a11 novelty is but oblivion".FRANcis BACON: Essays LVIII.

Em Londres, em princípios do mês de junho de 1929, o antiquário Joseph Cartaphilus, de Esmima, ofereceu à princesa de Lucinge os seis volumes em quarto-menor (1715-172O) da Ilíada de Pope. A princesa adquiriu-os; ao recebê-los, trocou algumas palavras com ele. Era; diz-nos, um homem muito magro e terroso, de olhos apagados e barba cinzenta, de traços singularmente vagos. Empregava com fluidez e ignorância as diversas línguas; em poucos minutos, passou do francês ao inglês e do inglês a uma conjunção enigmática de espanhol de Salonica e de português de Macau. Em outubro, a princesa ouviu de um passageiro do Zeus que Cartaphilus havia morrido no mar, ao regressar a Esmirna, e que o haviam enterrado na ilha de Ios. No último tomo da Ilíada encontrou este manuscrito.

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O original está escrito em inglês e é abundante em latinismos. A versão que oferecemos é literal.I

Que eu me lembre, meus trabalhos começaram em um jardim de Tebas Hekatómpylos, quando Diocleciano era imperador. Militei (sem glória) nas recentes guerras egípcias, sendo tribuno de uma legião que esteve aquartelada em Berenice, diante do mar Vermelho: a febre e a magia consumiram muitos homens que cobiçavam com magnanimidade o aço. Os mauri593O ALEPHtanos foram vencidos; a terra, antes ocupada pelas cidades rebeldes, foi dedicada eternamente aos deuses plutônicos; Alexandria, debelada, implorou em vão a misericórdia de César; antes de um ano, as legiões alcançaram o triunfo, mas eu mal consegui divisar a face de Marte. Essa privação me doeu e foi talvez a causa de eu ter me lançado, por temerosos e extensos desertos, a descobrir a secreta Cidade dos Imortais.Meus trabalhos, como disse, começaram em um jardim de Tebas. Toda essa noite não dormi, pois algo estava combatendo em meu coração. Levantei-me pouco antes do amanhecer; meus escravos dormiam, a lua tinha a mesma cor da infinita areia. Um cavaleiro vencido e ensangüentado vinha do oriente. A uns passos de mim, caiu do cavalo. Com tênue voz insaciável, perguntou-me em latim o nome do rio que banhava os muros da cidade. Respondi-lhe que era o Egito, que as chuvas alimentam. "Outro é o rio que persigo", replicou com tristeza, "o rio secreto que purifica da morte os homens". Escuro sangue brotava de seu peito. Disse-me que sua pátria era uma montanha que está do outro lado do Ganges e que nessa montanha se falava que, se alguém caminhasse até o ocidente, onde o mundo se acaba, chegaria ao rio cujas águas dão a imortalidade. Acrescentou que na margem ulterior se ergue a Cidade dos Imortais, rica em baluartes e anfiteatros e templos. Antes do amanhecer, morreu, mas determinei descobrir a cidade e seu rio. Interrogados pelo verdugo, alguns prisioneiros mauritanos confirmaram a informação do viajante; alguém lembrou a planície elísia, no fim da terra, onde a vida dos homens é perdurável; outro, os cumes onde nasce o Pactolo, cujos moradores vivem um século. Em Roma, conversei com filósofos que sentiram que prolongar a vida do homem era prolongar sua agonia e multiplicar o número de suas mortes. Ignoro se acreditei alguma vez na Cidade dos Imortais: penso que então me bastou o trabalho de procurá-la. Flávio, procônsul de Getúlia, entregou-me duzentos soldados para a tarefa. Também recrutei mercenários, que se disseram conhecedores dos caminhos e foram os primeiros a desertar.Os fatos posteriores deformaram até o inextricável a lembrança de nossas primeiras jornadas. Partimos de Arsinoe e entramos no abrasado deserto. Atravessamos o país dos trogloditas, que devoram serpentes e carecem do comércio da palavra; o dos garamantes da Líbia, que têm as mulheres em comum e se594O IMORTALnutrem de leões; o da tribo dos augilas, que só veneram o Tártaro. Fatigamos outros desertos, onde é negra a areia, onde o viajante deve roubar as horas da noite, pois o fervor do dia é intolerável. De longe divisei a montanha que deu nome ao Oceano: em suas ladeiras cresce o eufórbio, que anula os venenos; no cume, vivem os sátiros, nação de homens cruéis e rústicos, inclinados à luxúria. Que essas regiões bárbaras, onde a terra é mãe de monstros, pudessem abrigar em seu seio uma cidade famosa, a todos nos pareceu inconcebível. Prosseguimos na marcha, pois teria sido uma desonra retroceder. Alguns temerários dormiram com o rosto exposto à

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lua; a febre os queimou; na água corrompida das cisternas outros beberam a loucura e a morte. Então, começaram as deserções; muito pouco depois, os motins. Para reprimi-los, não vacilei no exercício da severidade. Procedi corretamente, mas um centurião me advertiu que os sediciosos (ávidos-por vingar a crucificação de um deles) tramavam minha morte. Fugi do acampamento, com os poucos soldados que me eram fiéis. No deserto, perdi-os entre os redemoinhos de areia e a vasta noite. Uma flecha cretense me lacerou. Por vários dias, errei sem encontrar água, ou por um só enorme dia multiplicado pelo sol, pela sede e pelo temor da sede. Deixei o caminho ao arbítrio de meu cavalo. Na aurora, a distância encrespou-se de pirâmides e de torres. Insuportavelmente, sonhei com um exíguo e nítido labirinto: no centro havia um cântaro; minhas mãos quase o tocavam, meus olhos o viam, mas tão intrincadas e confusas eram as curvas que eu sabia que ia morrer antes de alcançá-lo.

II

Ao desenredar-me por fim desse pesadelo, vi-me atirado e manietado a um oblongo nicho de pedra, não maior que uma sepultura comum, superficialmente escavado no áspero declive de uma montanha. Os lados eram úmidos, antes polidos pelo tempo que por labor. Senti no peito um doloroso latejo, senti que a sede me abrasava. Ergui-me e gritei debilmente. Ao pé da montanha, estendia-se sem rumor um arroio impuro, entorpecido por escombros e areia; na oposta margem, resplandecia (sob o último sol ou sob o primeiro) a evidente Cidade dos Imortais. Vi muros, arcos, frontispícios e595O ALEPHforos: o alicerce era uma meseta de pedra. Uma centena de nichos irregulares, análogos ao meu, sulcavam a montanha e o vale. Na areia havia poços de pouca profundidade; desses mesquinhos buracos (e dos nichos) emergiam homens de pele cinzenta, de barba desleixada, nus. Pensei reconhecê-los: pertenciam à estirpe bestial dos trogloditas, que infestam as margens do golfo Arábico e as grutas etíopes; não me surpreendi que não falassem e que devorassem serpentes.A urgência da sede me fez temerário. Considerei que estava a uns trinta pés da areia: de olhos fechados, com as mãos atadas às costas, atirei-me montanha abaixo. Afundei o rosto ensangüentado na água escura. Bebi como abeberam os animais. Antes de perder-me outra vez no sonho e nos delírios, inexplicavelmente repeti algumas palavras gregas: "Os ricos teucros de Zeléia que bebem a água negra do Esepo..."Não sei quantos dias e noites rodopiaram sobre mim. Dolorido, incapaz de recuperar o abrigo das cavernas, despido na ignorada areia, deixei que a lua e o sol brincassem com meu aziago destino. Os trogloditas, infantis na barbárie, não me ajudaram a sobreviver ou a morrer. Em vão, roguei-lhes que me dessem a morte. Um dia, com o fio de um pedernal, parti minhas ligaduras. Em outro, levantei-me e pude mendigar ou roubar - eu, Marco Flamínio Rufo, tribuno militar de uma das legiões de Roma - minha primeira detestada ração de carne de serpente.A ânsia de ver os Imortais, de tocar a sobre-humana Cidade, quase me impedia de dormir. Como se penetrassem em meu propósito, não dormiam também os trogloditas: a princípio, inferi que me vigiavam; depois, que se haviam contagiado por minha inquietude, como poderiam contagiar-se os cães. Para afastar-me da bárbara aldeia, escolhi a mais pública das horas, o cair da tarde, quando todos os homens emergem das gretas e dos poços e olham o poente, sem vê-lo. Orei em voz alta, menos para

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suplicar o favor divino que para intimidar a tribo com palavras articuladas. Atravessei o arroio que os bancos de areia entorpecem e dirigi-me à Cidade. Confusamente, seguiram-me dois ou três homens. Eram (como os demais dessa linhagem) de minguada estatura; não inspiravam temor, mas repulsa. Tive de contornar algumas ribanceiras irregulares que me pareceram pedreiras; ofuscado pela596O IMORTALpedreiras; ofuscado pela grandeza da Cidade, eu a supusera próxima. Por volta da meia-noite, pisei, eriçada de formas idolátricas na areia amarela, a negra sombra de seus muros. Deteve-me uma espécie de horror sagrado. Tão abominados pelo homem são a novidade e o deserto que me alegrei que um dos trogloditas me tivesse acompanhado até o fim. Fechei os olhos e aguardei (sem dormir) que rebrilhasse o dia.Disse que a Cidade estava construída sobre uma meseta de pedra. Essa meseta, comparável a um alcantilado, não era menos árdua que os muros. Em vão esgotei meus passos; o negro embasamento não registrava a menor irregularidade, os muros invariáveis não pareciam consentir uma única porta. A força do dia fez com que me refugiasse numa caverna; no fundo havia um poço, no poço uma escada que se abismava até a treva inferior. Desci; por um caos de sórdidas galerias cheguei a uma vasta câmara circular, a muito custo visível. Havia nove portas naquele porão; oito davam para um labirinto que falazmente desembocava na mesma câmara; a nona (através de outro labirinto) dava para uma segunda câmara circular, igual à primeira. Ignoro o número total de câmaras; minha desventura e minha ansiedade as multiplicaram. O silêncio era hostil e quase perfeito; outro rumor não havia nessas profundas redes de pedra além de um vento subterrâneo, cuja causa não descobri; sem ruído, perdiam-se entre as gretas fios de água enferrujada. Habituei-me com horror a esse duvidoso mundo; considerei inacreditável que pudesse existir outra coisa além de porões providos de nove portas e além de longos porões que se bifurcavam. Ignoro o tempo que tive de caminhar sob a terra; sei que certa vez confundi, na mesma nostalgia, a atroz aldeia dos bárbaros e minha cidade natal, entre as videiras.No fundo de um corredor, um não previsto muro me barrou os passos, uma remota luz caiu sobre mim. Ergui os ofuscados olhos: no vertiginoso, no mais alto, vi um círculo de céu tão azul que chegou a parecer-me de púrpura. Alguns degraus de metal escalavam o muro. O cansaço me relaxava, mas subi, só me detendo às vezes para pesadamente soluçar de felicidade. Fui divisando capitéis e astrágalos, frontões triangulares e abóbadas, confusas pompas do granito e do mármore. Foime assim concedido ascender da cega região de negros labirintos entretecidos à resplandecente Cidade.597O ALEPHO IMORTALEmergi numa espécie de pequena praça, ou melhor, de pátio. Circundava-o um só edifício de forma irregular e altura variável; a esse edifício heterogêneo pertenciam as diversas cúpulas e colunas. Mais que qualquer outro traço desse monumento inacreditável, causou-me admiração o antigüíssimo de sua construção. Senti que era anterior aos homens, anterior à terra. Essa evidente antiguidade (embora, de algum modo, terrível para os olhos) pareceu-me adequada ao trabalho de operários imortais. Cautelosamente a princípio, com indiferença depois, com desespero por fim, errei por escadas e pavimentos do inextricável palácio. (Depois averigüei que eram inconstantes a extensão e a altura dos degraus, fato que me fez compreender a singular fadiga que me infundiram.) "Este palácio é obra dos deuses", pensei primeiramente. Explorei os inabitados

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recintos e corrigi: "Os deuses que o edificaram morreram". Notei suas peculiaridades e disse: "Os deuses que o edificaram estavam loucos". Disse isso, bem sei, com incompreensível reprovação que era quase remorso, com mais horror intelectual que medo sensível. A impressão de enorme antiguidade juntaram-se outras: a do interminável, a do atroz, a do complexamente insensato. Eu havia cruzado um labirinto, mas a nítida Cidade dos Imortais me atemorizou e repugnou. Um labirinto é uma casa edificada para confundir os homens; sua arquitetura, pródiga em simetrias, está subordinada a esse fim. No palácio que imperfeitamente explorei, a arquitetura carecia de fim. Abundavam o corredor sem saída, a alta janela inalcançável, a aparatosa porta que dava para uma cela ou para um poço, as inacreditáveis escadas inversas, com os degraus e a balaustrada para baixo. Outras, aderidas aereamente ao costado de um muro monumental, morriam sem chegar a nenhuma parte, no fim de dois ou três giros, na treva superior das cúpulas. Ignoro se todos os exemplos que enumerei são literais; sei que durante muitos anos infestaram meus pesadelos; já não posso saber se esse ou aquele traço é transcrição da realidade ou das formas que desatinaram minhas noites. "Esta Cidade", pensei, "é tão horrível que sua mera existência e perduração, embora no centro de um deserto secreto, contamina o passado e o futuro e, de algum modo, compromete os astros. Enquanto perdurar, ninguém no mundo poderá ser valoroso ou feliz". Não quero descrevê-la;um caos de palavras heterogêneas, um corpo de tigre ou de touro, em que pululassem monstruosamente, conjugados e odiando-se, dentes, órgãos e cabeças, podem (talvez) ser imagens aproximadas.Não recordo as etapas de meu regresso, entre os poeirentos e úmidos hipogeus. Sei apenas que não me abandonava o temor de que, ao sair do último labirinto, me rodeasse outra vez a nefanda Cidade dos Imortais. Nada mais posso lembrar. Esse esquecimento, agora insuperável, foi talvez voluntário; talvez as circunstâncias de minha evasão tenham sido tão ingratas que, em algum dia não menos esquecido também, jurei esquecê-las.

III

Os que tiverem lido com atenção o relato de meus trabalhos lembrarão que um homem da tribo me seguiu, como um cão poderia seguir-me, até a sombra irregular dos muros. Quando saí do último porão, encontrei-o na boca da caverna. Estava atirado na areia, onde desenhava grosseiramente e apagava uma fileira de sinais que eram como as letras dos sonhos, que se está a ponto de entender e logo se juntam. A princípio, pensei que se tratava de alguma escrita bárbara; depois vi que é absurdo imaginar que homens que não chegaram à palavra cheguem à escrita. Além disso, nenhuma das formas era igual a outra, o que excluía ou afastava a possibilidade de serem simbólicas. O homem as traçava, olhava para elas e as corrigia. Subitamente, como se esse jogo o enfastiasse, apagou-as com a palma e o antebraço. Olhou-me, não pareceu reconhecer-me. Entretanto, tão grande era o alívio que me inundava (ou tão grande e medrosa minha solidão) que me pus a pensar que esse rudimentar troglodita, que me olhava do chão da caverna, estivera me esperando. O sol escaldava a planície; quando empreendemos o regresso à aldeia, sob as primeiras estrelas, a areia era ardente sob os pés. O troglodita me precedeu; essa noite concebi o propósito de ensiná-lo a reconhecer, e talvez a repetir, algumas palavras. O cachorro e o cavalo (refleti) são capazes do primeiro; muitas aves, como o rouxinol dos Césares, do último. Por muito gros598

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599O ALEPHO IMORTALBeiro que fosse o entendimento de um homem, sempre seria superior ao de irracionais.A humildade e a miséria do troglodita trouxeram-me à memória a imagem de Argos, o velho cão moribundo da Odisséia, e assim lhe pus o nome de Argos e tentei ensiná-lo. Fracassei e tornei a fracassar. Os arbítrios, o rigor e a obstinação foram de todo inúteis. Imóvel, com os olhos inertes, não parecia perceber os sons que eu procurava inculcar-lhe. A alguns passos de mim, era como se estivesse muito longe. Deitado na areia, como uma pequena e arruinada esfinge de lava, deixava que sobre si girassem os céus, desde o crepúsculo do dia até o da noite. Julguei impossível que não se apercebesse de meu propósito. Lembrei-me de que se diz entre os etíopes que os macacos deliberadamente não falam para que não os obriguem a trabalhar e atribuí a suspicácia ou a temor o silêncio de Argos. Dessa fantasia passei a outras ainda mais extravagantes. Pensei que Argos e eu participávamos de universos diferentes; pensei que nossas percepções eram iguais, mas que Argos as combinava de outra maneira e construía com elas outros objetos; pensei que talvez não houvesse objetos para ele, mas um vertiginoso e contínuo jogo de impressões brevíssimas. Pensei em um mundo sem memória, sem tempo; considerei a possibilidade de uma linguagem que ignorasse os substantivos, uma linguagem de verbos impessoais ou de indeclináveis epítetos. Assim foram morrendo os dias e com os dias os anos, mas algo parecido com a felicidade ocorreu uma manhã. Choveu, com lentidão poderosa.As noites do deserto podem ser frias, mas aquela tinha sido um fogo. Sonhei que um rio da Tessália (a cujas águas eu restituíra um peixe de ouro) vinha resgatar-me; sobre a vermelha areia e a negra pedra eu o ouvia aproximar-se; o frescor do ar e o rumor atarefado da chuva me despertaram. Corri para recebê-la, despido. Declinava a noite; sob as nuvens amarelas, a tribo, não menos feliz que eu, oferecia-se aos vívidos aguaceiros numa espécie de êxtase. Pareciam coribantes possuídos pela divindade. Argos, olhos postos na abóbada celeste, gemia; torrentes rolavam-lhe pelo rosto, não só de água, mas (soube-o depois) de lágrimas. Argos, gritei, Argos.Então, com mansa admiração, como se descobrisse uma coisa perdida e esquecida há muito tempo, Argos balbuciouestas palavras: "Argos, cão de Ulisses". E depois, também sem olhar-me: "Este cão atirado no esterco".Facilmente aceitamos a realidade, talvez por intuirmos que nada é real. Perguntei-lhe o que sabia da Odisséia. A prática do grego lhe era penosa; tive de repetir a pergunta."Muito pouco", disse. "Menos que o rapsodo mais pobre. Já terão passado mil e cem anos desde que a inventei."

Iv

Tudo me foi dilucidado naquele dia. Os trogloditas eram os Imortais; o riacho de águas arenosas, o Rio que o cavaleiro procurava. Quanto à cidade cujo renome se havia espalhado até o Ganges, nove séculos fazia que os Imortais a haviam assolado. Com as relíquias de sua ruína ergueram, no mesmo lugar, a desatinada cidade que eu percorri: espécie de paródia ou reverso e também templo dos deuses irracionais que manejam o mundo e dos quais nada sabemos, salvo que não se parecem com o homem.

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Aquela fundação foi o último símbolo a que condescenderam os Imortais; marca uma etapa em que, julgando vã qualquer obra, determinaram viver no pensamento, na pura especulação. Erigiram a obra, esqueceramna e foram morar nas covas. Absortos, quase não percebiam o mundo físico.Homero narrou essas coisas como quem fala com uma criança. Também me falou de sua velhice e da derradeira viagem que empreendeu, movido, como Ulisses, pelo propósito de chegar aos homens que não conhecem o mar, nem comem carne temperada com sal, nem suspeitam o que seja um remo. Viveu um século na Cidade dos Imortais. Quando a derrubaram, aconselhou a fundação da outra. Isto não nos deve surpreender; diz-se que, depois de cantar a guerra de Ílion, cantou a guerra das rãs e dos ratos. Foi como um deus que criara o cosmos e em seguida o caos.Ser imortal é insignificante; com exceção do homem, todas as criaturas o são, pois ignoram a morte; o divino, o terrível, o incompreensível é saber-se imortal. Tenho notado que, apesar das religiões, essa convicção é raríssima. Israelitas, cristãos e muçulmanos professam a imortalidade, mas a vene6OO6O1o ALEPHração que tributam ao primeiro século prova que só crêem nele, já que destinam todos os demais, em número infinito, a premiá-lo ou a castigá-lo. Mais razoável me parece a roda de certas religiões do Industão; nessa roda, que não tem princípio nem fim, cada vida é efeito da anterior e gera a seguinte, mas nenhuma determina o conjunto... Doutrinada num exercício de séculos, a república de homens imortais atingira a perfeição da tolerância e quase do desdém. Sabia que em um prazo infinito ocorrem a todo homem todas as coisas. Por suas passadas ou futuras virtudes, todo homem é credor de toda bondade, mas também de toda traição, por suas infâmias do passado ou do futuro. Assim como nos jogos de azar, os números pares e os números ímpares tendem ao equilíbrio, assim também se anulam e se corrigem o talento e a estupidez, e talvez o rústico poema de Cid seja o contrapeso exigido por um único epíteto das Éclogas ou por uma sentença de Heráclito. O pensamento mais fugaz obedece a um desenho invisível e pode coroar, ou inaugurar, uma forma secreta. Sei dos que praticavam o mal para que nos séculos futuros resultasse o bem, ou tivesse resultado nos já pretéritos... Encarados assim, todos os nossos atos são justos, mas também são indiferentes. Não há méritos morais ou intelectuais. Homero compôs a Odisséia; postulado um prazo infinito, com infinitas circunstâncias e mudanças, o impossível seria não compor, sequer uma vez, a Odisséia. Ninguém é alguém, um só homem imortal é todos os homens. Como Cornélio Agripa, sou deus, sou herói, sou filósofo, sou demônio e sou mundo, o que é uma fatigante maneira de dizer que não sou.O conceito do mundo como sistema de precisas compensações influiu enormemente nos Imortais. Em primeiro lugar, tornou-os invulneráveis à piedade. Mencionei as antigas pedreiras que sulcavam os campos da outra margem; um homem despenhou-se na mais funda; não podia lastimar-se nem morrer, mas a sede o abrasava; antes que lhe atirassem uma corda, passaram setenta anos. Tampouco interessava o próprio destino. O corpo era um submisso animal doméstico e bastava-lhe, cada mês, a esmola de umas horas de sono, de um pouco de água e de restos de carne. Que ninguém nos queira rebaixar a ascetas. Não há prazer mais complexo que o pensamento e a ele nos entregávamos. Às vezes, um estímuloo IMORTAL,

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extraordinário nos restituía ao mundo físico. Por exemplo, naquela manhã, o velho prazer elementar da chuva. Esses lapsos eram raríssimos; todos os Imortais eram capazes de perfeita quietude; lembro-me de um que jamais vi de pé: um pássaro se aninhava em seu peito.Entre os corolários da doutrina de que não existe coisa que não esteja compensada por outra, há um de muito pouca importância teórica, mas que nos induziu, em fins ou em princípios do século X, a dispersar-nos pela face da terra. Cabe nestas palavras: "Existe um rio cujas águas dão a imortalidade; em alguma região haverá outro rio cujas águas a apaguem". O número de rios não é infinito; um viajante imortal que percorra o mundo acabará, algum dia, tendo bebido de todos. Propusemo-nos descobrir esse rio.A morte (ou sua alusão) torna preciosos e patéticos os homens. Estes comovem por sua condição de fantasmas; cada ato que executam pode ser o último; não há rosto que não esteja por dissolver-se como o rosto de um sonho. Tudo, entre os mortais, tem o valor do irrecuperável e do inditoso. Entre os Imortais, ao contrário, cada ato (e cada pensamento) é o eco de outros que no passado o antecederam, sem princípio visível, ou o fiel presságio de outros que no futuro o repetirão até a vertigem. Não há coisa que não esteja como que perdida entre infatigáveis espelhos. Nada pode ocorrer uma só vez, nada é preciosamente precário. O elegíaco, o grave, o cerimonioso não vigoram para os Imortais. Homero e eu nos separamos nas portas de Tânger; creio que não nos dissemos adeus.

v

Percorri novos reinos, novos impérios. No outono de 1O66, militei na ponte de Stamford, já não lembro se nas fileiras de Harold, que não tardou em encontrar seu destino, ou se nas daquele infausto Harald Hardrada, que conquistou seis pés de terra inglesa, ou um pouco mais. No sétimo século da Hégira, no arrabalde de Bulaq, transcrevi com pausada caligrafia, em um idioma que esqueci, em um alfabeto que ignoro, as sete viagens de Simbad e a história da Cidade de Bronze. Num pátio do cárcere de Samarcanda joguei muitíssi6O26O3O ALEPHO IMORTALmo o xadrez. Em Bikanir, professei a astrologia, e também na Boêmia. Em 1638, estive em Kolozsvar e depois em Leipzig. Em Aberdeen, em 1714, assinei os seis volumes da Ilíada de Pope; sei que os freqüentei com deleite. Por volta de 1729, discuti a origem desse poema com um professor de retórica, chamado, creio, Giambattista; suas razões me pareceram irrefutáveis. No dia 4 de outubro de 1921, o Patna, que me conduzia a Bombaim, teve que fundear em um porto da costa eritréia." Desci; lembrei-me de outras manhãs muito antigas, também diante do mar Vermelho, quando era tribuno de Roma e a febre e a magia e a inação consumiam os soldados. Nos arredores, vi um caudal de água clara; provei-a, levado pelo costume. Ao subir à margem, uma árvore espinhosa me lacerou o dorso da mão. A inusitada dor me pareceu muito viva. Incrédulo, silencioso e feliz, contemplei a preciosa formação de uma lenta gota de sangue. De novo sou mortal, repeti a mim mesmo, de novo me pareço com todos os homens. Nessa noite, dormi até o amanhecer.

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...Revisei estas páginas, passado um ano. Parece-me que elas se ajustam à verdade, mas nos primeiros capítulos, e ainda em certos parágrafos dos outros, creio perceber algo falso. Isso é efeito, talvez, do abuso de traços circunstanciais, procedimento que aprendi com os poetas e que tudo contamina de falsidade, já que esses traços podem ser freqüentes nos fatos, mas não na memória deles... Creio, contudo, ter descoberto uma razão mais íntima. Vou escrevê-la; não importa que me julguem fantástico.A história que narrei parece irreal porque nela se mesclam os sucessos de dois homens diferentes. No primeiro capítulo, o cavaleiro quer saber o nome do rio que banha as muralhas de Tebas; Flamínio Rufo, que antes dera à cidade o epíteto de Hekatómpylos, diz que o rio é o Egito; nenhuma dessas locuções é adequada a ele, mas a Homero, que faz menção expressa, na Ilíada, a Tebas Hekatómpylos, e na Odisséia, pela boca de Proteu e de Ulisses, diz invariavelmente Egito por Nilo. No capítulo segundo, o romano, ao beber a água imortal, pro1 Há uma rasura no manuscrito; talvez o nome do porto tenha sido apagado.nuncia algumas palavras em grego; essas palavras são homéricas e podem ser encontradas no fim do famoso catálogo das naves. Depois, no vertiginoso palácio, fala de "reprovação que era quase remorso"; essas palavras correspondem a Homero, que havia projetado esse horror. Tais anomalias me inquietaram; outras, de ordem estética, permitiram-me descobrir a verdade. O último capítulo as inclui; aí está escrito que militei na ponte de Stamford, que transcrevi, em Bulaq, as viagens de Simbad, o Marinheiro, e que assinei, em Aberdeen, a Ilíada inglesa de Pope. Lê-se, inter alia: "Em Bikanir, professei a astrologia, e também na Boêmia". Nenhum desses testemunhos é falso; significativo é o fato de havê-los destacado. O primeiro de todos parece convir a um homem de guerra, mas logo se percebe que o narrador não repara no bélico e sim no destino dos homens. Os que seguem são mais curiosos. Uma obscura razão elementar me obrigou a registrá-los; fiz isso porque sabia que eram patéticos. Não o são, ditos pelo romano Flamínio Rufo. São, ditos por Homero; é estranho que este copie, no século XIII, as aventuras de Simbad, de outro Ulisses, e descubra, muitos séculos depois, em um reino boreal e em um idioma bárbaro, as formas de sua Ilíada. Quanto à frase que reúne o nome de Bikanir, vê-se que foi construída por um homem de letras, desejoso (como o autor do catálogo das naves) de mostrar vocábulos esplêndidos."Quando se aproxima o fim, já não restam imagens da lembrança; só restam palavras. Não é estranho que o tempo tenha confundido as que alguma vez me representaram com as que foram símbolos do destino de quem me acompanhou, por tantos séculos. Eu fui Homero; em breve, serei Ninguém, como Ulisses; em breve, serei todos: estarei morto.

Pós-escrito de 195O. Entre os comentários que a publicação anterior despertou, o mais curioso, já que não o mais urbano, biblicamente se intitula A Coat of Many Colours (Manchester,1948) e é obra da pena tenacíssima do doutor Nahum Cordovero.2 Ernesto Sábato sugere que o "Giambattista" que discutiu a formação da Ilíada com o antiquário Cartaphilus seja Giambattista Vico; esse italiano sustentava que Homero é um personagem simbólico, à maneira de Plutão ou de Aquiles.6O46O5o ALEPHCompreende umas cem páginas. Fala dos centões gregos, dos centões da baixa latinidade, de Ben Jonson, que definiu seus contemporâneos com trechos de Sêneca, do Virgüius

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Evangelizaras de Alexander Ross, dos artifícios de George Moore e de Eliot e, finalmente, da "narração atribuída ao antiquário Joseph Cartaphilus". Denuncia, no primeiro capítulo, breves interpolações de Plínio (Historia Naturalis, V, 8); no segundo, de Thomas de Quincey (Writings,111, 439); no terceiro, de uma epístola de Descartes ao embaixador Pierre Chanut; no quarto, de Bernard Shaw (Back to Methuselah, V). Infere dessas intrusões, ou furtos, que todo o documento é apócrifo.No meu entender, a conclusão é inadmissível. "Quando se aproxima o fim", escreveu Cartaphilus, "já não restam imagens da lembrança; só restam palavras". Palavras, palavras deslocadas e mutiladas, palavras de outros, foi a pobre esmola que lhe deixaram as horas e os séculos.Para Cecília Ingenieros.O MORTOQue um homem do subúrbio de Buenos Aires, que um triste compadrito sem mais virtude que a enfatuação da coragem, se interne nos desertos eqüestres da fronteira com o Brasil e chegue a capitão de contrabandistas, parece de antemão impossível. Aos que assim o entendem, quero contar o destino de Benjamín Otálora, de quem talvez não reste nenhuma lembrança no bairro de Balvanera e que morreu, a seu modo, de um balaço, nos confins do Rio Grande do Sul. Ignoro pormenores de sua aventura; quando me forem revelados, hei de retificar e ampliar estas páginas. Por ora este resumo pode ser útil.Benjamín Otálora conta, por volta de 1891, dezenove anos. É um rapagão de fronte pequena, de sinceros olhos claros, com o vigor dos bascos; uma punhalada feliz revelou-lhe que é homem valente; não o inquieta a morte do adversário, tampouco a imediata necessidade de fugir da República. O caudilho da paróquia dá-lhe uma carta para um tal Azevedo Bandeira, do Uruguai. Otálora embarca, a travessia é tormentosa e rangente; no outro dia, vagueia pelas ruas de Montevidéu, com inconfessada e talvez ignorada tristeza. Não encontra Azevedo Bandeira; pela meia-noite, num armazém do Paso del Molino, assiste a uma discussão entre alguns tropeiros. Um punhal rebrilha; Otálora não sabe de que lado está a razão, mas o atrai o puro sabor do perigo, como a outros o baralho ou a música. Segura, no entrevem, uma punhalada baixa que um peão desfere contra um homem de chapéu escuro e de poncho. Este, depois, resulta ser Azevedo Bandeira. (Otálora, ao sabê-lo, rasga a carta, porque prefere dever tudo a si mesmo.) Azevedo Bandeira, embora robusto, dá a injustificável impressão de aleijado; em seu rosto, sempre demasiado próximo, estão o6O66O7O ALEPHO MORTOjudeu, o negro e o índio; em sua afetação, o macaco e o tigre; a cicatriz que lhe atravessa a face é mais um adorno, bem como o negro bigode cerdoso.Projeção ou erro do álcool, a disputa cessa com a mesma rapidez com que se produziu. Otálora bebe com os tropeiros e depois os acompanha a uma farra e depois a um casarão na Cidade Velha, já com o sol bem alto. No último pátio, que é de terra, os homens estendem os arreios para dormir. Obscuramente, Otálora compara essa noite com a anterior; agora já pisa terra firme, entre amigos. Inquieta-o algum remorso, isso sim, de não sentir saudades de Buenos Aires. Dorme até as seis, quando o desperta o paisano que, bêbado, agrediu Bandeira. (Otálora se lembra de que esse homem participou com os outros da noite de tumulto e de alegria e que Bandeira o sentou à sua direita e o obrigou a continuar bebendo.) O homem lhe diz que o patrão o manda buscar. Numa espécie de gabinete que dá para o vestíbulo (Otálora nunca

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viu um vestíbulo com portas laterais), Azevedo Bandeira o está esperando, com uma clara e desdenhosa mulher de cabelo ruivo. Bandeira examina-o, oferece-lhe um copo de aguardente, repete que ele parece um homem corajoso, propõe-lhe ir ao Norte com os demais para trazerem uma tropa. Otálora aceita; de madrugada, estão a caminho, rumo a Tacuarembó.Começa então para Otálora uma vida diferente, uma vida de vastos amanheceres e de jornadas que têm o cheiro do cavalo. Essa vida é nova para ele, e às vezes atroz, mas já está em seu sangue, pois, assim como os homens de outras nações veneram e pressentem o mar, assim nós (também o homem que entretece estes símbolos) ansiamos pela planície interminável que ressoa sob os cascos. Otálora criou-se nos bairros de carreteiros e quarteadores; em menos de um ano se torna gaúcho. Aprende a montar, a entropilhar o gado, a carnear, a manejar o laço que subjuga e as boleadeiras que derrubam, a resistir ao sono, às tormentas, às geadas e ao sol, a tanger com o assobio e o grito. Só uma vez, durante esse tempo de aprendizado, vê Azevedo Bandeira, mas o tem muito presente, porque ser homem de Bandeira é ser considerado e temido, eporque, diante de qualquer gesto valente, os gaúchos dizem que Bandeira o faz melhor. Alguém opina que Bandeira nasceu do outro lado do Quaraí, no Rio Grande do Sul; isso, que deveria rebaixá-lo,obscuramente o enriquece de selvas populosas, de lamaçais, de inextricáveis e quase infinitas distâncias. Aos poucos, Otálora entende que os negócios de Bandeira são múltiplos e que o principal é o contrabando. Ser tropeiro é ser um criado; Otálora propõe-se ascender a contrabandista. Dois dos companheiros, numa noite, cruzarão a fronteira para voltar com algumas partidas de aguardente; Otálora provoca um deles, fere-o e toma seu lugar. Move-o a ambição e também uma obscura fidelidade. "Que o homem", pensa, "acabe por entender que tenho mais valor que todos os seus orientais juntos".Outro ano passa antes que Otálora regresse a Montevidéu. Percorrem os arredores, a cidade (que a Otálora parece muito grande); chegam à casa do patrão; os homens estendem os arreios no último pátio. Passam os dias e Otálora não vê Bandeira. Dizem, com temor, que ele está enfermo; um homem moreno costuma subir a seu dormitório com a chaleira e o mate. Uma tarde, encarregam Otálora dessa tarefa. Ele sente-se vagamente humilhado, mas também satisfeito.O dormitório é desmantelado e escuro. Há uma sacada para o poente, há uma longa mesa com uma resplandecente desordem de chicotes, de relhos, de cintos, de armas de fogo e de armas brancas, há um remoto espelho de cristal embaçado. Bandeira está de boca para cima; sonha e se lamenta; uma veemência de sol último o define. O enorme leito branco parece diminuí-lo e obscurecê-lo; Otálora observa os cabelos brancos, a fadiga, a debilidade, as rugas dos anos. Revolta-o que esse velho os esteja mandando. Pensa que um golpe bastaria para dar conta dele. Nisso, vê no espelho que alguém entrou. E a mulher de cabelo ruivo; está meio vestida e descalça, e o observa com fria curiosidade. Bandeira recompõe-se; enquanto fala de coisas da campanha e bebe um mate atrás do outro, seus dedos brincam com as tranças da mulher. Por fim, dá licença a Otálora para ir embora.Dias depois, chega-lhes a ordem de irem para o Norte. Param em uma estância perdida, situada em qualquer lugar da interminável planície. Nem árvores nem um arroio a alegram, o primeiro sol e o último a golpeiam. Há currais de pedra para o gado, que tem grandes chifres e está necessitado. EI Suspiro é o nome desse pobre estabelecimento.6O86O9O ALEPH

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Otálora ouve na roda de peões que Bandeira não tardará a chegar de Montevidéu. Pergunta por quê; alguém esclarece que há um forasteiro agauchado que está querendo mandar demais. Otálora compreende que é um gracejo, mas lhe agrada que esse gracejo já seja possível. Verifica, depois, que Bandeira se inimizou com um dos chefes políticos e que este lhe retirou seu apoio. Ele gosta dessa notícia.Chegam caixões de armas longas; chegam uma jarra e uma bacia de prata para o aposento da mulher; chegam cortinas de intrincado damasco; chega das coxilhas, numa manhã, um cavaleiro sombrio, de barba cerrada e de poncho. Chamase Ulpiano Suárez e é o capanga ou guarda-costas de Azevedo Bandeira. Fala muito pouco e de maneira abrasileirada. Otálora não sabe se atribui sua reserva a hostilidade, a desdém ou a mera barbárie. Sabe, isso sim, que para o plano que está maquinando tem de ganhar a amizade dele.Entra depois no destino de Benjamín Otálora um alazão de extremidades negras, que Azevedo Bandeira traz do sul e que ostenta arreios chapeados e carona com bordas de pele de tigre. Esse cavalo liberal é símbolo da autoridade do patrão e por isso o cobiça o rapaz, que chega também a desejar, com desejo rancoroso, a mulher de cabelos resplandecentes. A mulher, os arreios e o alazão são atributos ou adjetivos de um homem que ele aspira a destruir.Aqui a história se complica e se afunda. Azevedo Bandeira é hábil na arte da intimidação progressiva, na satânica manobra de humilhar gradativamente o interlocutor, combinando seriedade e brincadeira; Otálora resolve aplicar esse método ambíguo à dura tarefa que se propõe. Resolve suplantar, lentamente, Azevedo Bandeira. Consegue, em jornadas de perigo comum, a amizade de Suárez. Confia-lhe seu plano; Suárez lhe promete sua ajuda. Muitas coisas vão acontecendo depois, das quais sei algumas poucas. Otálora não obedece a Bandeira; dá para esquecer, corrigir, inverter suas ordens. O universo parece conspirar com ele e apressa os fatos. Num meio-dia, ocorre em campos de Tacuarembó um tiroteio com gente rio-grandense; Otálora usurpa o lugar de Bandeira e comanda os orientais. Uma bala atravessa-lhe o ombro, mas nessa tarde regressa a EI Suspiro no alazão do chefe e nessa tarde umas gotas de seu sangue mancham a pele de tigre eO MORTOnessa noite dorme com a mulher de cabelos reluzentes. Outras versões mudam a ordem desses fatos e negam que eles tenham acontecido em um único dia.Bandeira, entretanto, continua sendo nominalmente o chefe. Dá ordens que não se executam; Benjamín Otálora não toca nele, por um misto de rotina e de pena.A última cena da história corresponde à agitação da última noite de 1894. Nessa noite, os homens de EI Suspiro comem cordeiro recém-carneado e bebem um álcool pendenciador. Alguém infinitamente zangarreia uma trabalhosa milonga. Na cabeceira da mesa, Otálora, bêbado, ergue brinde atrás de brinde, em júbilo crescente; essa torre de vertigem é símbolo de seu irresistível destino. Bandeira, taciturno entre os que gritam, deixa que flua clamorosa a noite. Quando soam as doze badaladas, levanta-se como quem se lembra de uma obrigação. Levanta-se e bate com suavidade à porta da mulher. Ela abre em seguida, como se esperasse o chamado. Sai meio vestida e descalça. Com uma voz que se afemina e se arrasta, o chefe lhe ordena:- Já que tu e o portenho se querem tanto, agora mesmo vais dar um beijo nele, à vista de todos.Acresce uma circunstância brutal. A mulher quer resistir, mas dois homens a tomam pelo braço e a lançam sobre Otálora. Arrasada em lágrimas, beija-o no rosto e no peito. Ulpiano Suárez empunha o revólver. Otálora compreende, na iminência da morte, que o traíram desde o princípio, que foi condenado à morte, que lhe permitiram

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o amor, o mando e o triunfo porque já o davam por morto, porque para Bandeira ele já estava morto.Suárez, quase com desdém, abre fogo.61O611OS TEÓLOGOSArrasado o jardim, profanados os cálices e os altares, entraram a cavalo os hunos na biblioteca monástica e rasgaram os livros incompreensíveis e os injuriaram e queimaram, talvez temerosos de que as letras encobrissem blasfêmias contra seu deus, que era uma cimitarra de ferro. Arderam palimpsestos e códices, mas no coração da fogueira, entre as cinzas, permaneceu quase intato o livro duodécimo da Civitas Dei, que narra que Platão ensinou em Atenas e, no fim dos séculos, todas as coisas recuperarão seu estado anterior, e que ele, em Atenas, diante do mesmo auditório, de novo ensinará essa doutrina. O texto que as chamas perdoaram desfrutou de veneração especial e os que o leram e releram nessa remota província esqueceram que o autor só declarou tal doutrina para poder melhor refutá-la. Um século depois, Aureliano, coadjutor de Aquiléia, soube que às margens do Danúbio a novíssima seita dos monótonos (chamados também anulares) professava que a história é um círculo e que nada é que não tenha sido e que não será. Nas montanhas, a Roda e a Serpente tinham deslocado a Cruz. Todos temiam, mas todos se confortavam com o boato de que João de Panonia, que se distinguira com um tratado sobre o sétimo atributo de Deus, ia impugnar tão abominável heresia.Aureliano deplorou essas notícias, sobretudo a última. Sabia que em matéria teológica não há novidade sem perigo; depois refletiu que a tese de um tempo circular era demasiado dissímil, demasiado assombrosa para que o perigo fosse grave. (As heresias que devemos temer são as que podem confundir-se com a ortodoxia.) Mais lhe doeu a intervenção - a intrusão - de João de Panonia. Havia dois anos, ele usurpara com seu palavroso De Septima Affectione Dei Sive de AeternitateOs TEóLOGOSum assunto da especialidade de Aureliano; agora, como se o problema do tempo lhe pertencesse, ia retificar, talvez com argumentos de Procusto, com triagas mais temíveis que a Serpente, os anulares... Nessa noite, Aureliano folheou o antigo diálogo de Plutarco sobre a cessação dos oráculos; no parágrafo vinte e nove, leu uma burla contra os estóicos que defendem um infinito ciclo de mundos, com infinitos sóis, luas, Apolos, Dianas e Poseidons. O achado pareceu-lhe prognóstico favorável; resolveu adiantar-se a João de Panonia e refutar os heréticos da Roda.Há quem procure o amor de uma mulher para esquecerse dela, para não pensar mais nela; Aureliano, da mesma forma, queria superar João de Panonia para curar-se do rancor que ele lhe infundia, não para fazer-lhe mal. Temperado pelo mero trabalho, pela construção de silogismos e pela invenção de injúrias, pelos nego e os autem e os nequaquam, pôde esquecer esse rancor. Erigiu vastos e quase inextricáveis períodos, entrecortados por incisos, em que a negligência e o solecismo pareciam formas de desdém. Da cacofonia fez um instrumento. Previu que João ia fulminar os anulares com gravidade profética; para não coincidir com ele, optou pelo escárnio. Agostinho tinha escrito que Jesus é a via reta que nos salva do labirinto circular em que andam os ímpios; Aureliano, laboriosamente trivial, comparou-os a Ixion, ao fígado de Prometeu, a Sísifo, àquele rei de Tebas que viu dois sóis, à gaguice, a louros, a espelhos, a ecos, a mulas de carga e a silogismos bicornutos. (As fábulas gentílicas perduravam, rebaixadas a adornos.) Como todo possuidor de uma biblioteca, Aureliano se sabia culpado de não conhecê-la até o fim; essa controvérsia permitiu-lhe

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chegar a um acordo com muitos livros que pareciam censurar sua incúria. Assim pôde engastar uma passagem da obra De Principüs de Orígenes, na qual se nega que Judas Iscariotes voltará a vender o Senhor, e Paulo, a presenciar o martírio de Estêvão em Jerusalém, e outra dos Academica Priora de Cícero, em que este zomba dos que sonham que, enquanto ele conversa com Lúculo, outros Lúculos e outros Cáceros, em número infinito, dizem exatamente o mesmo, em infinitos mundos iguais. Além disso, esgrimiu contra os monótonos o texto de Plutarco e denunciou o escândalo de que a um idólatra valesse mais o lumen612613O ALEPHOs TEóLocosnaturae que a eles a palavra de Deus. Nove dias lhe tomou esse trabalho; no décimo, foi-lhe enviada uma cópia da refutação de João de Panonia.Era quase irrisoriamente breve. Aureliano olhou-a com desdém e depois com temor. A primeira parte glosava os versículos finais do nono capítulo da Epístola aos Hebreus, na qual se diz que Jesus não foi sacrificado muitas vezes desde o início do mundo, senão agora uma vez na consumação dos séculos. A segunda alegava o preceito bíblico sobre as vãs repetições dos gentios (Mateus 6, 7) e aquela passagem do sétimo livro de Plínio, que pondera não haver no vasto universo duas faces iguais. João de Panonia declarava que tampouco há duas almas e que o pecador mais vil é precioso como o sangue que por ele verteu Jesus Cristo. O ato de um único homem (afirmou) pesa mais que os nove céus concêntricos, e imaginar que possa perder-se e voltar é uma aparatosa frivolidade. O tempo não refaz o que perdemos; a eternidade guarda-o para a glória e também para o fogo. O tratado era límpido, universal; não parecia redigido por uma pessoa específica, mas por qualquer homem ou, talvez, por todos os homens.Aureliano sentiu uma humilhação quase física. Pensou em destruir ou reformar seu próprio trabalho; em seguida, com rancorosa probidade, mandou-o para Roma sem modificar uma letra. Meses depois, quando se reuniu o Concílio de Pérgamo, o teólogo encarregado de impugnar os erros dos monótonos foi (previsivelmente) João de Panonia; sua douta e comedida refutação bastou para que Euforbo, heresiarca, fosse condenado à fogueira. "Isto ocorreu e voltará a ocorrer", disse Euforbo. "Não acendeis uma pira, acendeis um labirinto de fogo. Se aqui se unissem todas as fogueiras que eu tenho sido, não caberiam na terra e os anjos ficariam cegos. Isto eu falei muitas vezes." Depois gritou, porque as chamas o atingiram.Caiu a Roda diante da Cruz," mas Aureliano e João prosseguiram sua batalha secreta. Militavam os dois no mesmo exército, ansiavam pelo mesmo galardão, guerreavam contra o mesmo Inimigo, mas Aureliano não escreveu uma palavra que inconfessavelmente não pretendesse superar João. Seu duelo foi invisível; se os numerosos índices não me

1 Nas cruzes rúnicas os dois emblemas inimigos convivem entrelaçados.enganam, não figura uma única vez o nome do outro nos muitos volumes de Aureliano que a Patrologia de Migne entesoura. (Das obras de João, só permaneceram vinte palavras.) Os dois desaprovaram os anátemas do segundo Concílio de Constantinopla; os dois perseguiram os arianos, que negavam a geração eterna do Filho; os dois testemunharam a ortodoxia da Topographia Christiana de Cosmas, que ensina ser a terra quadrangular, como o tabernáculo hebreu. Desgraçadamente, pelos quatro ângulos

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da terra difundiu-se outra tempestuosa heresia. Oriunda do Egito ou da Ásia (porque os testemunhos diferem e Bousset não quer admitir as razões de Harnack), infestou as províncias orientais e erigiu santuários na Macedônia, em Cartago e em Tréveris. Parecia estar em todas as partes; foi dito que nas dioceses da Bretanha tinham sido invertidos os crucifixos e que a imagem do Senhor, em Cesaréia, viuse suplantada por um espelho. O espelho e o óbolo eram emblemas dos novos cismáticos.A história os conhece por muitos nomes (especulares, abismais, cainitas), mas de todos o mais aceito é histriões, dado por Aureliano e que eles com atrevimento adotaram. Na Frigia foram chamados de simulacros, e também na Dardânia. João Damasceno chamou-os de formas; é justo advertir que a passagem tem sido repelida por Erfjord. Não há heresiólogo que, com espanto, não aluda a seus desmedidos costumes. Muitos histriões professaram o ascetismo; um que outro se mutilou, como Orígenes; outros moraram debaixo da terra, nas cloacas; outros arrancaram os olhos; outros (os nabucodonosores de Nítria) "pastavam como os bois e seu cabelo crescia como as penas da águia". Da mortificação e do rigor passavam, muitas vezes, ao crime; certas comunidades toleravam o roubo; outras, o homicídio; outras, a sodomia, o incesto e a bestialidade. Todas eram blasfemas; não só maldiziam o Deus cristão como as arcanas divindades de seu próprio panteão. Maquinaram livros sagrados, cujo desaparecimento os doutos deploram. Sir Thomas Browne, por volta de 1658, escreveu: "O tempo aniquilou os ambiciosos Evangelhos Histriônicos, não as Injúrias com que se fustigou sua Impiedade"; Erfjord sugeriu que essas "injúrias" (que um códice grego preserva) são os evangelhos perdidos. Isso é incompreensível, se ignoramos a cosmologia dos histriões.614615o ALEPHNos livros herméticos está escrito que o que existe embaixo é igual ao que existe em cima, e o que existe em cima, igual ao que existe embaixo; no Zohar, que o mundo inferior é reflexo do superior. Os histriões fundaram sua doutrina sobre uma perversão dessa idéia. Invocaram Mateus 6, 12 ("perdoa nossas dívidas, como nós perdoamos a nossos devedores") e 11, 12 ("o reino dos céus adquire-se à força") para demonstrar que a terra influi no céu, e I Coríntios 13,12 ("vemos agora como que por um espelho, em enigma") para demonstrar que tudo o que vemos é falso. Talvez contaminados pelos monótonos, imaginaram que todo homem é dois homens e que o verdadeiro é o outro, o que está no céu. Também imaginaram que nossos atos projetam um reflexo invertido, de maneira que, se velamos, o outro dorme, se fornicamos, o outro é casto, se roubamos, o outro é generoso. Mortos, nos uniremos a ele e seremos ele. (Algum eco dessas doutrinas perdurou em Bloy.) Outros histriões discorreram que o mundo acabaria quando se esgotasse o número de suas possibilidades; já que não pode haver repetições, o justo deve eliminar (cometer) os atos mais infames, para que estes não manchem o futuro e para acelerar a vinda do reino de Jesus. Esse artigo foi negado por outras seitas, que defenderam que a história do mundo deve cumprirse em cada homem. Os demais, como Pitágoras, deverão transmigrar por muitos corpos antes de conseguir sua liberação; alguns, os protéicos, "no termo de uma só vida são leões, são dragões, são javalis, são água e são uma árvore". Demóstenes cita a purificação pela lama a que eram submetidos os iniciados nos mistérios órficos; os protéicos, analogicamente, procuraram a purificação pelo mal. Entenderam, como Carpócrates, que ninguém sairá da prisão até pagar o último óbolo (Lucas 12, 59), e costumavam ludibriar os penitentes com este outro versículo: "Eu vim para que os homens tenham vida e para que a tenham em abundância" (João 1O,1O). Também diziam

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que não ser malvado é soberba satânica... Muitas e divergentes mitologias urdiram os histriões; uns pregaram o ascetismo, outros a licenciosidade, todos a confusão. Teopompo, histrião de Berenice, negou todas as fábulas; disse que cada homem é um órgão que projeta a divindade para sentir o mundo.Os hereges da diocese de Aureliano eram dos que afirmavam que o tempo não tolera repetições, não dos que afircoavam que todo ato se reflete no céu. Essa circunstância era estranha; em um relatório às autoridades romanas, Aureliano mencionou-a. O prelado que receberia o relatório era confessor da imperatriz; ninguém ignorava que esse ministério exigente lhe vedava as íntimas delícias da teologia especulativa. Seu secretário - antigo colaborador de João de Panonia, agora inimizado com ele - gozava do renome de pontualíssimo inquisidor de heterodoxias; Aureliano acrescentou uma exposição da heresia histriônica, tal como esta se dava nos conventículos de Gênova e de Aquiléia. Redigiu alguns parágrafos; quando quis escrever a tese horrível de que não existem dois instantes iguais, sua pena se deteve. Não encontrou a fórmula necessária; as admoestações da nova doutrina ("Queres ver o que não viram os olhos humanos? Olha a lua. Queres ouvir o que os ouvidos não ouviram? Ouve o grito do pássaro. Queres tocar o que não tocaram as mãos? Toca a terra. Digo, verdadeiramente, que Deus está por criar o mundo") eram bastante afetadas e metafóricas para a transcrição. De repente, uma oração de vinte palavras apresentou-se a seu espírito. Escreveu-a, jubiloso; logo depois, inquietou-o a suspeita de que ela fosse de outro. No dia seguinte, lembrou-se de que a lera havia muitos anos no Adversus Annulares composto por João de Panonia. Verificou a citação; ali estava. A incerteza o atormentou. Alterar ou suprimir essas palavras era debilitar a expressão; deixá-las era plagiar um homem que ele abominava; indicar a fonte era denunciá-lo. Implorou o socorro divino. No princípio do segundo crepúsculo, seu anjo da guarda ditou-lhe uma solução intermédia. Aureliano conservou as palavras, mas lhes antepôs este aviso: "O que ladram agora os heresiarcas para confusão da fé disse-o neste século um varão doutíssimo, com mais irreflexão que culpa". Depois, aconteceu o temido, o esperado, o inevitável. Aureliano teve de declarar quem era esse varão; João de Panonia foi acusado de professar opiniões heréticas.Quatro meses depois, um ferreiro de Aventino, alucinado pelos enganos dos histriões, pôs sobre os ombros de seu filhinho uma grande bola de ferro, a fim de que seu outro voasse. O menino morreu; o horror produzido por esse crime impôs uma irrepreensível severidade aos juízes de João. Este não quis retratar-se; repetiu que negar sua proposição era616617O ALEPHOS TEóLOGOSincorrer na pestilencial heresia dos monótonos. Não entendeu (não quis entender) que falar dos monótonos era falar do que já estava esquecido. Com insistência um tanto senil, desperdiçou os períodos mais brilhantes de suas velhas polêmicas; os juízes nem sequer ouviam aquilo que outrora os arrebatara. Em lugar de tratar de purificar-se da mais leve mácula de histrionismo, esforçou-se em demonstrar que a proposição de que o acusavam era rigorosamente ortodoxa. Discutiu com os homens de cuja sentença dependia sua sorte e cometeu a máxima grosseria de fazê-lo com talento e com ironia. No dia 26 de outubro, depois de uma discussão que durou três dias e três noites, sentenciaram-no a morrer na fogueira.

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Aureliano presenciou a execução, porque não o fazer seria confessar-se culpado. O lugar do suplício era uma colina, em cujo verde pico havia uma estaca, fincada profundamente no solo, e em torno dela muitas achas de lenha. Um ministro leu a sentença do tribunal. Sob o sol das doze, João de Panonia jazia com o rosto no pó, lançando uivos bestiais. Arranhava a terra, mas os verdugos o ergueram, o despiram e por fim o amarraram ao pelourinho. Puseram-lhe à cabeça uma coroa de palha untada de enxofre; ao lado, um exemplar do pestilento Adversus Annulares. Chovera na noite anterior e a lenha ardia mal. João de Panonia rezou em grego e depois em um idioma desconhecido. A fogueira ia levá-lo quando Aureliano se atreveu a erguer os olhos. As chamas ardentes se detiveram; Aureliano, pela primeira e última vez, viu o rosto do odiado. Lembrou-lhe o de alguém, mas não pôde precisar de quem. Depois, as chamas o perderam; depois, gritou e foi como se um incêndio gritasse.Plutarco conta que Júlio César chorou a morte de Pompeu; Aureliano não chorou a de João, mas sentiu aquilo que sentiria um homem curado de uma enfermidade incurável que já fosse parte de sua vida. Em Aquiléia, em Éfeso, na Macedônia, deixou que sobre si passassem os anos. Procurou os difíceis limites do Império, os rudes lamaçais e os contemplativos desertos, para que a solidão o ajudasse a entender seu destino. Numa cela mauritana, na noite carregada de leões, repensou a complexa acusação contra João de Panonia e justificou, pela enésima vez, o veredicto. Custou-lhe mais justificar sua tortuosa denúncia.618Em Rusaddir pregou o anacrônico sermão Luz das Luzes Acesa na Carne de Um Réprobo. Em Hibérnia, em uma das cabanas de um monastério cercado pela selva, surpreendeu-o, numa noite até a alvorada, o rumor da chuva. Lembrou-se de uma noite romana em que fora surpreendido, também, por esse minucioso rumor. Um raio, ao meio-dia, incendiou as árvores e Aureliano pôde morrer como morrera João.O final da história só pode ser narrado com metáforas, já que se passa no reino dos céus, onde não há tempo. Talvez fosse oportuno dizer que Aureliano conversou com Deus e que Este se interessa tão pouco por diferenças religiosas que o tomou por João de Panonia. Isso, entretanto, insinuaria uma confusão da mente divina. Mais correto é dizer que no paraíso Aureliano soube que, para a insondável divindade, ele e João de Panonia (o ortodoxo e o herege, o odiado e o que odeia, o acusador e a vítima) formavam uma única pessoa.619HISTÓRIA DO GUERREIRO E DA CATIVANa página 278 do livro La Poesia (Bari, 1942), Croce, resumindo um texto latino do historiador Paulo, o Diácono, narra o destino e cita o epitáfio de Droctulft; estes me comoveram singularmente, depois compreendi por quê. Droctulft foi um guerreiro lombardo que, no assédio de Ravena, abandonou os seus e morreu defendendo a cidade que antes havia atacado. Os ravenenses sepultaram-no num templo e compuseram um epitáfio em que manifestavam sua gratidão ("contempsit caros, dum nos amat ille, parentes") e o peculiar contraste observado entre a aparência cruel daquele bárbaro e sua simplicidade e bondade:

Terribilis visu fades, sed mente benignus, Longaque robusto pectore barba fuit!"Tal é a história do destino de Droctulft, bárbaro que morreu defendendo Roma, ou tal é o fragmento de sua história que Paulo, o Diácono, pôde resgatar. Nem sequer sei em que tempo ocorreu: se em meados do século VI, quando os longobardos desolaram as planícies da Itália; se no VIII, antes da rendição de Ravena. Imaginemos (este não é um trabalho histórico) o primeiro.

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Imaginemos Droctulft, sub specie aeternitatis, não como o indivíduo Droctulft, que sem dúvida foi único e insondável (todos os indivíduos o são), mas como tipo genérico que dele e de muitos outros como ele tem feito a tradição, que é obra do esquecimento e da memória. Através de uma obscura1 Também Gibbon (Decline and Fall, XLV) transcreve estes versos. [Ele tinha um rosto cuja visão provocava o terror, mas tinha um espírito benigno; uma longa barba cobria seu peito robusto. (N. da T)IHISTÓRIA DO GUERREIRO E DA CATIVAgeografia de selvas e lodaçais, as guerras o trouxeram à Itália, desde as margens do Danúbio e do Elba, e talvez não soubesse que ia para o Sul e talvez não soubesse que guerreava contra o nome romano. É possível que professasse o arianismo, que sustenta ser a glória do Filho reflexo da glória do Pai, porém mais congruente é imaginá-lo devoto da terra, de Hertha, cujo ídolo coberto ia de cabana em cabana num carro puxado por vacas, ou dos deuses da guerra e do trovão, que eram toscas figuras de madeira, envoltas em roupa tecida e recobertas de moedas e argolas. Vinha das selvas inextricáveis do javali e do auroque; era branco, corajoso, inocente, cruel, leal a seu capitão e a sua tribo, não ao universo. As guerras o trazem a Ravena e aí vê algo que jamais viu, ou que não viu com plenitude. Vê o dia e os ciprestes e o mármore. Vê um conjunto que é múltiplo sem desordem; vê uma cidade, um organismo feito de estátuas, de templos, de jardins, de habitações, de grades, de jarrões, de capitéis, de espaços regulares e abertos. Nenhuma dessas obras (eu sei) o impressiona por ser bela; tocam-no como agora nos tocaria uma maquinaria complexa, cujo fim ignorássemos mas em cujo desenho fosse adivinhada uma inteligência imortal. Talvez lhe baste ver um único arco, com uma incompreensível inscrição em eternas letras romanas. Bruscamente, cega-o e renova-o essa revelação - a Cidade. Sabe que nela será um cão, ou uma criança, e que não começará sequer a entendê-la, mas sabe também que ela vale mais que seus deuses e que a fé jurada e que todos os lodaçais da Alemanha. Droctulft abandona os seus e peleja por Ravena. Morre, e, na sepultura, gravam palavras que ele não teria entendido:

Contempsit caros, dum nos amai ille, parentes, Hane patriam reputaras esse, Ravenna, suam."

Não foi um traidor (os traidores não costumam inspirar epitáfios piedosos); foi um iluminado, um convertido. No fim de umas quantas gerações, os longobardos que culparam o trânsfuga procederam como ele; fizeram-se italianos, lombardos e talvez alguém de seu sangue - Aldiger - pôde gerar2 Ele desdenhava seus queridos pais, enquanto nos amava, considerando que Ravena era sua pátria. (N. da T.)62O621O ALEPHHISTóRIA DO GUERREIRO E DA CATIVAaqueles que geraram Alighieri... Muitas conjeturas podem ser aplicadas ao ato de Droctulft; a minha é a mais econômica; se não é verdadeira como fato, será como símbolo.Quando li no livro de Croce a história do guerreiro, ela me comoveu de maneira insólita e tive a impressão de recuperar, sob forma diversa, algo que havia sido meu. Fugazmente pensei nos cavaleiros mongóis que queriam fazer da China um infinito campo de pastoreio e depois envelheceram nas cidades que tinham desejado destruir;

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não era essa a lembrança que eu buscava. Encontrei-a, por fim; era um relato que ouvi uma vez de minha avó inglesa, já morta.Em 1872, meu avô Borges era chefe das fronteiras Norte e Oeste de Buenos Aires e Sul de Santa Fé. O comando estava em Junín; mais além, a quatro ou cinco léguas um do outro, a cadeia dos fortins; mais além, o que então se denominava Lã Pampa e também Tierra Adentro. Uma vez, entre maravilhada e brincalhona, minha avó comentou seu destino de inglesa desterrada nesse fim de mundo; disseram-lhe que não era a única e lhe mostraram, meses depois, uma rapariga índia que atravessava lentamente a praça. Vestia duas mantas vermelhas e ia descalça; suas tranças eram loiras. Um soldado disselhe que outra inglesa queria falar com ela. A mulher assentiu; entrou no comando sem temor, mas não sem receio. Na face acobreada, borrada de cores ferozes, os olhos eram desse azul entediado que os ingleses chamam cinzento. O corpo era ligeiro, como de corça; as mãos, fortes e ossudas. Vinha do deserto, de Tierra Adentro, e tudo parecia ficar-lhe pequeno: as portas, as paredes, os móveis.Talvez as duas mulheres, por um instante, se sentissem irmãs; estavam longe de sua ilha querida e num inacreditável país. Minha avó enunciou qualquer pergunta; a outra respondeu com dificuldade, procurando as palavras e repetindo-as, como que assombrada por algum antigo sabor. Faria quinze anos que não falava o idioma natal e não era fácil recuperá-lo. Disse que era de Yorkshire, que seus pais emigraram para Buenos Aires, que os perdera num ataque, que os índios a levaram e que agora era mulher de um capitãozinho a quem já tinha dado dois filhos e que era muito valente. Foi dizendo isso num inglês rústico, intercalado de araucano ou pampa, e por trás do relato se vislumbrava uma vida cruel: os toldos decouro de cavalo, as fogueiras de esterco, os festins de carne chamuscada ou de vísceras cruas, as sigilosas marchas ao amanhecer; o assalto aos currais, o alarido e o saque, a guerra, a caudalosa boiada tangida por cavaleiros desnudos, a poligamia, a hediondez e a magia. A tal barbárie se rebaixara uma inglesa. Movida pela lástima e pelo escândalo, minha avó exortou-a a não voltar. Jurou ampará-la, jurou resgatar seus filhos. A outra lhe respondeu que era feliz e voltou, nessa noite, para o deserto. Francisco Borges morreria pouco depois, na revolução de 74; minha avó, então, pôde talvez perceber na outra mulher, também arrebatada e transformada por este continente implacável, um espelho monstruoso de seu destino...Todos os anos, a índia loira costumava chegar às tabernas de Junín, ou do Forte Lavalle, à procura de miudezas e vidos; não apareceu desde a conversa com minha avó. Entretanto, viram-se outra vez. Minha avó tinha saído para caçar; num rancho, perto dos banhados, um homem degolava uma ovelha. Como num sonho, a índia passou a cavalo. Atirou-se ao solo e bebeu o sangue quente. Não sei se o fez porque já não podia agir de outro modo ou como um desafio e um sinal.Mil e trezentos anos e o mar punham-se entre o destino da cativa e o destino de Droctulft. Os dois, agora, são igualmente irrecuperáveis. A figura do bárbaro que abraça a causa de Ravena, a figura da mulher européia que opta pelo deserto podem parecer antagônicas. No entanto, um ímpeto secreto arrebatou os dois, um ímpeto mais fundo que a razão, e os dois acataram esse ímpeto que não souberam justificar. Talvez as histórias que contei sejam uma única história. Para Deus, o anverso e o reverso desta moeda são iguais.

Para Ulrike von Kühlmann.622623BIOGRAFIA DE TADEO ISIDORO CRUZ

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(1829-1874)1"m looking for the face I had Before the world was made.YEATS: The Winding Stair.No dia 6 de fevereiro de 1829, os guerrilheiros que, fustigados por Lavalle, marchavam do Sul para incorporar-se às divisões de López, pararam em uma estância cujo nome ignoravam, a três ou quatro léguas do Pergamino; ao amanhecer, um dos homens teve um pesadelo tenaz: na penumbra do galpão, o confuso grito despertou a mulher que com ele dormia. Ninguém sabe o que sonhou, pois no outro dia, às quatro, os guerrilheiros foram desbaratados pela cavalaria de Suárez e a perseguição durou nove léguas, até os palhegais já sombrios, e o homem pereceu numa vala, partido o crânio por um sabre das guerras do Peru e do Brasil. A mulher chamava-se Isidora Cruz; o filho que teve recebeu o nome de Tadeo Isidoro.Meu propósito não é repetir sua história. Dos dias e noites que a compõem, só me interessa uma noite; do resto não contarei senão o indispensável para que essa noite seja entendida. A aventura consta de um livro insigne; quer dizer, de um livro cuja matéria pode ser tudo para todos (I Coríntios 9, 22), pois é capaz de quase inesgotáveis repetições, versões, perversões. Os que têm comentado, e são muitos, a história de Tadeo Isidoro destacam a influência da planície em sua formação, mas gaúchos idênticos a ele nasceram e morreram nas selváticas margens do Paraná e nas coxilhas orientais. Viveu, isso sim, num mundo de barbárie monótona. Quando, em 1874, morreu de uma varíola negra, não tinha visto nunca uma montanha nem um bico de gás nem um moinho. Tampouco uma cidade. Em 1849, foi a Buenos Aires com uma tropa doBIOGRAFIA DE TADEO ISIDORO CRUZestabelecimento de Francisco Xavier Acevedo; os tropeiros entraram na cidade para esvaziar o cinto; Cruz, receoso, não saiu de uma hospedaria na vizinhança dos currais. Passou aí muitos dias, taciturno, dormindo na terra, mateando, levantando-se ao alvorecer e recolhendo-se à hora da prece. Compreendeu (além das palavras e até do entendimento) que a cidade nada tinha a ver com ele. Um dos peões, bêbado, zombou dele. Cruz não lhe respondeu, mas nas noites do regresso, junto à fogueira, o outro amiudava as zombarias, e então Cruz (que antes não demonstrara rancor, nem sequer desgosto) o estendeu com uma punhalada. Fugitivo, teve de refugiar-se num faxinai; noites depois, o grito de uma chajá advertiu-o que a polícia o havia cercado. Experimentou a faca num arbusto; para que não lhe estorvassem a caminhada, tirou as esporas. Preferiu lutar a entregar-se. Foi ferido no antebraço, no ombro, na mão esquerda; feriu gravemente os mais bravos da partida; quando o sangue lhe correu entre os dedos, lutou com mais coragem que nunca; ao amanhecer, tonto pela perda de sangue, desarmaram-no. O exército desempenhava, então, uma função penal; Cruz foi mandado para um fortim da fronteira Norte. Como soldado raso, participou das guerras civis; às vezes combateu por sua província natal, às vezes contra. Em 23 de janeiro de 1856, nas Lagunas de Cardoso, foi um dos trinta cristãos que, a mando do sargento-mor Eusébio Laprida, lutaram contra duzentos índios. Nessa ação, recebeu um ferimento de lança.Em sua obscura e valorosa história são muitos os hiatos. Por volta de 1868, sabemos que estava de novo no Pergamino: casado ou amasiado, pai de um filho, dono de um pedaço de campo. Em 1869, foi nomeado sargento da polícia rural. Corrigira o passado; naquele tempo, deve ter-se considerado feliz, embora no fundo não o fosse. (Esperava-o, secreta no futuro, uma lúcida noite fundamental: a noite em que por fim viu sua própria face, a noite em que por fim escutou seu nome. Bem entendida,

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essa noite esgota sua história; ou melhor, um instante dessa noite, um ato dessa noite, porque os atos são nosso símbolo.) Qualquer destino, por longo e complicado que seja, consta da realidade de um único momento: o momento em que o homem sabe para sempre quem é. Conta-se que Alexandre da Macedônia viu refletido seu futuro de ferro na624625iria de Aquiles; Carlos XII da Suécia, na dek Tadeo Isidoro Cruz, que não sabia ler, esse conão foi revelado por um livro; viu-se a si mesmo;vero e num homem. Os fatos aconteceram assim:últimos dias do mês de junho de 187O, recebeu oru,, de prender um malfeitor que devia duas mortes à Justiça. Era um desertor das forças que o coronel Benito Machado comandava na fronteira Sul; numa bebedeira, assassinara um homem mulato num bordel; noutra, um vizinho do partido de Rojas; o relatório acrescentava que procedia de Laguna Colorada. Nesse lugar, fazia quarenta anos, haviam-se reunido os guerrilheiros para a desventura que entregou suas carnes aos pássaros e aos cães; daí saiu Manuel Mesa, que foi executado na praça da Victoria, enquanto os tambores soavam para que não se ouvisse sua ira; daí, o desconhecido que gerou Cruz e que pereceu numa vala, partido o crânio por um sabre das batalhas do Peru e do Brasil. Cruz esquecera o nome do lugar; com leve mas inexplicável inquietude, reconheceu-o... O criminoso, acossado pelos soldados, armou a cavalo um extenso labirinto de idas e vindas; estes, entretanto, o encurralaram na noite de 12 de julho. Refugiara-se num palhegal. A treva era quase indecifrável; Cruz e os seus, cautelosos e a pé, avançaram em direção das matas em cuja fundura trêmula espreitava ou dormia o homem secreto. Gritou uma chajá; Tadeo Isidoro Cruz teve a impressão de já ter vivido esse momento. O criminoso saiu do abrigo para combatê-los. Cruz o entreviu, terrível; a crescida cabeleira e a barba cinzenta pareciam comer-lhe a face. Um motivo evidente me impede de narrar a luta. Basta-me recordar que o desertor feriu gravemente ou matou vários dos homens de Cruz. Este, enquanto combatia na escuridão (enquanto seu corpo combatia na escuridão), começou a compreender. Compreendeu que um destino não é melhor que outro, mas que todo homem deve acatar aquele que traz consigo. Compreendeu que as divisas e o uniforme já o estorvavam. Compreendeu seu íntimo destino de lobo, não de cachorro gregário; compreendeu que o outro era ele. Amanhecia na imensa planície. Cruz atirou por terra o quepe, gritou que não ia consentir no delito de que se matasse um valente e pôs-se a lutar contra os soldados, junto com o desertor Martín Fierro.EMMA ZUNINo dia 14 de janeiro de 1922, Emma Zunz, ao voltar da fábrica de tecidos Tarbuch e Loewenthal, encontrou no fundo do vestíbulo uma carta, datada do Brasil, pela qual soube que seu pai tinha morrido. Enganaram-na, à primeira vista, o selo e o envelope; depois, inquietou-a a letra desconhecida. Nove ou dez linhas mal traçadas quase enchiam a folha; Emma leu que o senhor Maier tinha ingerido por engano uma forte dose de veronal e tinha falecido a 3 do corrente no hospital de Bagé. Um companheiro de pensão de seu pai assinava a notícia, um tal Fein ou Fain, de Rio Grande, que não podia saber que se dirigia à filha do morto.Emma deixou cair o papel. A primeira sensação foi de mal-estar no ventre e nos joelhos; depois, de cega culpa, de irrealidade, de frio, de temor; depois, quis já estar no dia seguinte. Imediatamente, compreendeu que essa vontade era inútil, porque a morte de seu pai era a única coisa que tinha sucedido no mundo e que continuaria

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sucedendo para sempre. Pegou o papel e foi para o quarto. Furtivamente, guardou-o na gaveta, como se, de alguma forma, já conhecesse os fatos ulteriores. Talvez já começasse a vislumbrá-los; já era a que seria.Na crescente escuridão, Emma chorou até o fim daquele dia o suicídio de Manuel Maier, que nos velhos dias felizes fora Emanuel Zunz. Recordou veraneios numa chácara, perto de Gualeguay, recordou (procurou recordar) sua mãe, recordou a casinha de Lanús que lhes arremataram, recordou os amarelos losangos de uma janela, recordou o auto de prisão, o opróbrio, recordou as cartas anônimas com o comentário sobre "o desfalque do caixa", recordou (mas isso ela nunca esquecia) que seu pai, na última noite, jurara que o ladrão era626627O ALEPHLoewenthal. Loewenthal, Aaron Loewenthal, antes gerente da fábrica e agora um dos donos. Emma, desde 1916, guardava o segredo. A ninguém o revelara, nem sequer a sua melhor amiga, Elsa Urstein. Talvez evitasse a profana incredulidade; talvez acreditasse que o segredo fosse um vínculo entre ela e o ausente. Loewenthal não sabia que ela sabia; Emma Zunz tirava desse fato ínfimo um sentimento de poder.Não dormiu àquela noite, e, quando a primeira luz definiu o retângulo da janela, já estava perfeito seu plano. Procurou fazer com que esse dia, que lhe pareceu interminável, fosse como os outros. Havia na fábrica rumores de greve; Emma, como sempre, declarou-se contra qualquer violência. As seis, concluído o trabalho, foi com Elsa a um clube para mulheres, com ginásio e piscina. Inscreveram-se; teve que repetir e soletrar seu nome e sobrenome, teve que achar graça das brincadeiras vulgares com que é comentado o exame médico. Com Elsa e com a mais moça das Kronfuss discutiu a que cinema iriam no domingo à tarde. Depois, falou-se de namorados e ninguém esperou que Emma falasse. Completaria dezenove anos em abril, mas os homens lhe inspiravam ainda um temor quase patológico... Na volta, preparou uma sopa de tapioca e uns legumes, comeu cedo, deitou-se e obrigou-se a dormir. Assim, laboriosa e trivial, passou a sextafeira, dia 15, a véspera.No sábado, a impaciência despertou-a. A impaciência, não a inquietude, e o singular alívio de estar finalmente naquele dia. Já não tinha que tramar e imaginar; dentro de algumas horas, atingiria a simplicidade dos fatos. Leu em La Prensa que o Nordstjârnan, de Malmõ, zarparia nessa noite do cais 3; telefonou para Loewenthal, insinuou que desejava comunicar, sem que as outras soubessem, algo sobre a greve e prometeu passar pelo escritório, ao anoitecer. Tremia-lhe a voz; o tremor convinha a uma delatora. Nenhum outro fato memorável ocorreu nessa manhã. Emma trabalhou até as doze e marcou com Elsa e com Perla Kronfuss os pormenores do passeio de domingo. Deitou-se depois de almoçar e recapitulou, de olhos fechados, o plano que tramara. Pensou que a etapa final seria menos horrível que a primeira e que lhe proporcionaria, sem dúvida, o sabor da vitória e da justiça. De repente, alarmada, levantou-se e correu à gaveta da cômoda. Abriu-a; debaixo do retrato de Milton Sills, onde a deixara naEMMA ZUNInoite anterior, estava a carta de Fain. Ninguém podia tê-la visto; começou a ler e rasgou-a.Narrar com alguma realidade os fatos dessa tarde seria difícil e talvez improcedente. Um atributo do infernal é a irrealidade, um atributo que parece diminuir seus terrores e que talvez os agrave. Como tornar verossímil uma ação na qual quase não acreditou quem a executava, como recuperar esse breve caos que hoje a memória

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de Emma repudia e confunde? Emma vivia em Almagro, na rua Liniers; consta-nos que nessa tarde foi ao porto. Talvez no infame Paseo de Julio se tenha visto multiplicada em espelhos, anunciada por luzes e despida pelos olhos famintos, porém mais razoável é conjeturar que a princípio errou, inadvertida, pela indiferente galeria... Entrou em dois ou três bares, viu a rotina ou os modos de outras mulheres. Por fim, deu com homens do Nordstjürnan. Temeu que um deles, muito jovem, lhe inspirasse alguma ternura e optou por outro, talvez mais baixo que ela e grosseiro, a fim de que a pureza do horror não fosse diminuída. O homem conduziu-a a uma porta e depois a um turvo saguão e depois a uma escada tortuosa e depois a um vestíbulo (em que havia uma vidraça com losangos idênticos aos da casa em Lanús) e depois a um corredor e depois a uma porta que se fechou. Os fatos graves estão fora do tempo, seja porque neles o passado imediato fica como que separado do futuro, seja porque não parecem consecutivas as partes que os formam.Naquele tempo fora do tempo, naquela desordem caótica de sensações inconexas e atrozes, Emma Zunz pensou uma única vez no morto que motivava o sacrifício? Tenho para mim que pensou uma vez e que nesse momento correu perigo seu desesperado propósito. Pensou (não pôde deixar de pensar) que seu pai tinha feito a sua mãe a coisa horrível que lhe faziam agora. Pensou com débil assombro e se refugiou, em seguida, na vertigem. O homem, sueco ou finlandês, não falava espanhol; foi um instrumento para Emma como esta o foi para ele, mas ela serviu para o gozo e ele para a justiça.Quando ficou sozinha, Emma não abriu em seguida os olhos. Na mesa-de-cabeceira estava o dinheiro deixado pelo homem. Emma sentou-se e o rasgou como antes rasgara a carta. Rasgar dinheiro é uma impiedade, como jogar fora o pão; Emma arrependeu-se, tão logo o fez. Um ato de soberba,628629O ALEPHEMMA ZUNIe naquele dia... O medo perdeu-se na tristeza de seu corpo, no asco. O asco e a tristeza prendiam-na, mas Emma lentamente se levantou e começou a vestir-se. No quarto não restavam cores vivas; o último crepúsculo se adensava. Ela pôde sair sem que a percebessem; na esquina, pegou um Lacroze que ia para o oeste. Escolheu, conforme seu plano, o banco mais da frente para que não lhe vissem o rosto. Talvez a tenha consolado verificar, no insípido movimento das ruas, que o acontecido não contaminara as coisas. Passou por bairros decrescentes e opacos, vendo-os e esquecendo-os no ato, e desceu numa das esquinas de Warnes. Paradoxalmente, seu cansaço vinha a ser uma força, pois a obrigava a concentrar-se nos pormenores da aventura e lhe ocultava o fundo e o fim.Aaron Loewenthal era, para todos, um homem sério; para seus poucos íntimos, um avarento. Vivia nos altos da fábrica, sozinho. Estabelecido no desmantelado arrabalde, temia os ladrões; no pátio da fábrica havia um grande cachorro e na gaveta do escritório, ninguém o ignorava, um revólver. Chorara com decoro, no ano anterior, a inesperada morte da mulher - uma Gauss, que lhe trouxe um bom dote! -, mas o dinheiro era sua verdadeira paixão. Com íntima vergonha, sabia ser menos apto para ganhá-lo que para conservá-lo. Era muito religioso; acreditava ter com o Senhor um pacto secreto, que o eximia de agir bem a troco de orações e devoções. Calvo, corpulento, enlutado, de óculos escuros e barba ruiva, esperava de pé, junto à janela, a informação confidencial da operária Zunz.Viu-a empurrar a grade (que ele deixara entreaberta, de propósito) e cruzar o pátio sombrio. Viu-a dar uma pequena volta quando o cachorro amarrado latiu. Os lábios

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de Emma se atarefavam como os de quem reza em voz baixa; cansados, repetiam a sentença que o senhor Loewenthal ouviria antes de morrer.As coisas não ocorreram como previra Emma Zunz. Desde a madrugada anterior, sonhara, muitas vezes, apontando o firme revólver, forçando o miserável a confessar a miserável culpa e expondo o corajoso estratagema que permitiria à justiça de Deus triunfar sobre a justiça humana. (Não por medo, mas por ser um instrumento da Justiça, ela não queria ser castigada.) Depois, um só balaço no meio dopeito rubricaria a sorte de Loewenthal. Mas as coisas não ocorreram assim.Diante de Aaron Loewenthal, mais que a urgência de vingar o pai, Emma sentiu a de castigar o ultraje sofrido por isso. Não podia deixar de matá-lo, depois dessa minuciosa desonra. Tampouco tinha tempo a perder com teatralidades. Sentada, tímida, pediu desculpas a Loewenthal, invocou (à maneira de delatora) as obrigações da lealdade, pronunciou alguns nomes, deu a entender outros e calou-se como se o medo a vencesse. Conseguiu que Loewenthal saísse para buscar um copo d"água. Quando ele, incrédulo de tal agitação, mas indulgente, voltou da sala de jantar, Emma já tinha tirado da gaveta o pesado revólver. Apertou o gatilho duas vezes. O considerável corpo caiu como se os estampidos e a fumaça o tivessem rompido, o copo se partiu, o rosto olhou-a com assombro e cólera, a boca injuriou-a em espanhol e em iídiche. Os palavrões não cessavam; Emma teve de fazer fogo outra vez. No pátio, o cachorro acorrentado pôs-se a ladrar, e uma efusão de sangue repentino brotou dos lábios obscenos e manchou a barba e a roupa. Emma iniciou a acusação que tinha preparada ("Vinguei meu pai e não me poderão castigar..."), mas não a concluiu, porque o senhor Loewenthal já estava morto. Não soube nunca se ele chegou a compreender.Os tensos latidos lembraram que ela não podia, ainda, descansar. Desordenou o divã, desabotoou o paletó do cadáver, tirou-lhe os óculos salpicados e deixou-os sobre o fichário. Em seguida, pegou o telefone e repetiu o que tantas vezes repetiria, com essas e com outras palavras: "Aconteceu uma coisa inacreditável... O senhor Loewenthal me fez vir com o pretexto da greve... Abusou de mim, eu o matei..."A história era inacreditável, de fato, mas se impôs a todos, pois substancialmente era certa. Verdadeiro era o tom de Emma Zunz, verdadeiro o pudor, verdadeiro o ódio. Verdadeiro também era o ultraje que padecera; só eram falsas as circunstâncias, a hora e um ou dois nomes próprios.63O631A CASA DE ASTÉRIONE a rainha deu à luz um filho que se chamou Astérion.APOLODORO: Biblioteca, III, I.e t Sei que me acusam de soberba, e talvez de misantropia, le Wez de loucura. Tais acusações (que castigarei no devido1 po) são irrisórias. É verdade que não saio de minha casa, xhf,~, também é verdade que suas portas (cujo número é dhi hito)" estão abertas dia e noite aos homens e também aos tçnais. Que entre quem quiser. Não encontrará pompas g4,lheris aqui nem o bizarro aparato dos palácios, mas sim a % ~,tude e a solidão. Por isso mesmo, encontrará uma casa aio não há outra na face da terra. (Mentem os que decladQ~ existir uma parecida no Egito.) Até meus detratores rid fitem que não há um só móvel na casa. Outra afirmação nd Cula é que eu, Astérion, sou um prisioneiro. Repetirei que k ~há uma porta fechada, acrescentarei que não existe uma -,Çjladura? Mesmo porque, num entardecer, pisei a rua; se rosei antes da noite, foi pelo

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temor que me infundiram os ab,os da plebe, rostos descoloridos e iguais, como a mão nle ata. Já se tinha posto o sol, mas o desvalido pranto de umrç,ç ino e as rudes preces da grei disseram que me haviam ce~~?nhecido. O povo orava, fugia, se prosternava; alguns sei14 ~~rapitavam no estilóbato do templo dos Machados, outros vao ovam pedras. Alguém, creio, ocultou-se no mar. Não em vhI foi uma rainha minha mãe; não posso confundir-me com oo, ainda que minha modéstia o queira.esge Figinal diz catorze, mas sobram motivos para inferir que, na boca de Astérion, adjetivo numeral vale por infinitos.A CASA DE ASTÉRIONO fato é que sou único. Não me interessa o que um homem possa transmitir a outros homens; como o filósofo, penso que nada é comunicável pela arte da escrita. As enfadonhas e triviais minúcias não encontram espaço em meu espírito, que está capacitado para o grande; jamais guardei a diferença entre uma letra e outra. Certa impaciência generosa não consentiu que eu aprendesse a ler. Às vezes o deploro, porque as noites e os dias são longos.Claro que não me faltam distrações. Como o carneiro que vai investir, corro pelas galerias de pedra até cair no chão, atordoado. Oculto-me à sombra de uma cisterna ou à volta de um corredor e divirto-me com que me procurem. Há terraços de onde me deixo cair, até me ensangüentar. A qualquer hora posso brincar que estou dormindo, com os olhos fechados e a respiração forte. (Às vezes durmo realmente, às vezes já é outra a cor do dia quando abro os olhos.) Mas, de tantas brincadeiras, a que prefiro é a de outro Astérion. Finjo que ele vem visitar-me e que eu lhe mostro a casa. Com grandes reverências, digo-lhe: "Agora voltamos à encruzilhada anterior" ou "Agora desembocamos em outro pátio" ou "Bem dizia eu que te agradaria o pequeno canal" ou "Agora verás uma cisterna que se encheu de areia" ou " lá verás como o porão se bifurca". As vezes me engano e os dois nos rimos, amavelmente.Não só criei esses jogos; também meditei sobre a casa. Todas as partes da casa existem muitas vezes, qualquer lugar é outro lugar. Não há uma cisterna, um pátio, um bebedouro, um pesebre; são catorze [são infinitos] os pesebres, bebedouros, pátios, cisternas. A casa é do tamanho do mundo; ou melhor, é o mundo. Todavia, à força de andar por pátios com uma cisterna e com poeirentas galerias de pedra cinzenta, alcancei a rua e vi o templo dos Machados e o mar. Não entendi isso até que uma visão da noite me revelou que também são catorze [são infinitos] os mares e os templos. Tudo existe muitas vezes, catorze vezes, mas duas coisas há no mundo que parecem existir uma única vez: em cima, o intincado sol; embaixo, Astérion. Talvez eu tenha criado as estrelas e o sol e a enorme casa, mas já não me lembro.Cada nove anos, entram na casa nove homens para que eu os liberte de todo o mal. Ouço seus passos ou sua voz no fundo das galerias de pedra e corro alegremente para procurá632633 Este livro foi digitalizado por Raimundo do Vale Lucas, com aintenção de dar aos cegos a oportunidade de apreciarem mais umamanifestação do pensamento humano..O A[.rr[tlos. A cerimônia dura poucos minutos. Uni apo, outro, caem, sem que eu ensangüente as mãos. Onde caíram, ficam, e os cadáveres ajudam a distinguir uma galeria das

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outras. Ignoro quem sejam, mas sei que um deles profetizou, na hora da morte, que um dia chegaria meu redentor. Desde esse rnomento a solidão não me magoa, porquesei que eive meu redentor e que por fim se levantará do pó. Se meu ouvido alc An<sasse todos os rumores do mundo, eu perceberia seus passos. OXa1 l me leve paraum lugar com menos galerias e menos portas. Como será meu redentor? - me pergunto. Será um touro ou um homem? Será talvez um touro com cara de homem? Ou será como eu?

O sol da manhã reverberou na espada de bronze. Já nao restava qualquer vestígio de sangue.-Acreditarás, Ariadne? - disse Teseu. - O minotauro mal se defendeu.

Mini Mirtn Vosq(Icrr Errstrunri.634A OUTRA MORTEHá uns dois anos (perdi a carta), Gannon me escreveu de Gualeguaychú, anunciando o envio de uma versão, talvez a primeira espanhola, do poema The Past de Ralph Waldo Emerson e acrescentando num pós-escrito que Dom Pedro Damián, de quem eu guardaria alguma lembrança, tinha morrido, noites atrás, de uma congestão pulmonar. O homem, arrasado pela febre, revivera em seu delírio a sangrenta jornada de Masoller; a notícia pareceu-me previsível e até convencional, porque Dom Pedro, aos dezenove ou vinte anos, seguira as bandeiras de Aparicio Saravia. A revolução de 19O4 encontrou-o em uma estância de Río Negro ou de Paysandú, onde trabalhava como peão; Pedro Damián era entrerriano, de Gualeguay, mas foi para onde foram os amigos, tão corajoso e tão ignorante como eles. Combateu em algum entrevem e na batalha final; repatriado em 19O5, retomou com humilde tenacidade as tarefas do campo. Que eu saiba, não tornou a deixar sua província. Os últimos trinta anos passou-os em um posto muito isolado, a uma ou duas léguas do Nancay; naquele abandono, conversei com ele uma tarde (procurei conversar com ele uma tarde), por volta de 1942. Era homem taciturno, de poucas luzes. O som e a fúria de Masoller esgotavam sua história; não me surpreendeu que os revivesse, na hora da morte... Soube que não veria mais Damián e quis recordá-lo; tão pobre é minha memória visual que só recordei uma fotografia que Gannon lhe tirou. Ofato nada tem de singular, se considerarmos que vi o homem em princípios de 1942, uma vez, e o retrato, muitíssimas. Gannon mandou-me essa fotografia; eu a perdi e já não a procuro. Encontrá-la me daria medo.O segundo episódio ocorreu em Montevidéu, meses depois. A febre e a agonia do entrerriano sugeriram-me um635O AEEPHconto fantástico sobre a derrota de Masoller; Emir Rodríguez Monegal, a quem contei o argumento, deu-me uma carta para o coronel Díonísío Tabares, que havia feito essa campanha. O coronel recebeu-me depois do jantar. De uma cadeira de balanço, num pátio, lembrou-se com desordem e amor dos tempos passados. Falou de munições que não chegaram e de cavalhadas rendidas, de homens sonolentos e terrosos tecendo labirintos de marchas, de Saravia, que podia ter entrado em Montevidéu e se desviou, "porque o gaúcho teme a cidade", de homens degolados até a base da nuca, de uma guerra civil que me pareceu menos o choque de dois exércitos do que o sonho de um foragido. Falou de Illescas, de Tupambaé, de Masoller. Fê-lo com períodos tão cabais e de modo tão vívido que compreendi ter ele muitas vezes já contado essas mesmas coisas, e temi que, por trás de suas palavras, quase não restassem lembranças. Numa pausa, consegui intercalar o nome de Damián.

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- Damián? Pedro Damián? - disse o coronel. - Esse serviu comigo. Um tapezinho que os rapazes chamavam Daymán. - Iniciou uma ruidosa gargalhada e cortou-a de repente, com fingida ou verdadeira incomodidade.Com outra voz, disse que a guerra servia, como a mulher, para que se provassem os homens, e que, antes de entrar em batalha, ninguém sabia quem era. Alguém podia supor-se covarde e ser um valente, e também o contrário, como ocorreu com esse pobre Damián, que andou se exibindo nas tabernas com sua divisa branca e depois fraquejou em Masoller. Num tiroteio com os zumacos, comportou-se como homem, mas outra coisa foi quando os exércitos se enfrentaram e começou o canhoneio, e cada homem sentindo que cinco mil outros se reuniram para matá-lo. Pobre rapaz, passou a vida banhando ovelhas e, assim de repente, arrastou-o essa patriotada...Absurdamente, a versão de Tabares me envergonhou. Teria preferido que os fatos não ocorressem assim. Com o velho Damián, entrevisto numa tarde, há muitos anos, eu criara, sem me propor isso, uma espécie de ídolo; a versão de Tabares o destruía. Subitamente, compreendi a reserva e a obstinada solidão de Damián; não as ditara a modéstia, mas a vergonha. Em vão, tentei me convencer de que um homem acossado por um ato de covardia é mais complexo e mais636A OUTRA MORTEinteressante que um homem meramente corajoso. O gaúcho Martín Fierro, pensei, é menos memorável que Lord Jim ou que Razumov. Sim, mas Damián, como gaúcho, tinha obrigação de ser Martín Fierro - sobretudo diante de gaúchos orientais. No que Tabares disse e não disse percebi o agreste sabor do que se chamava artiguismo: a consciência (talvez irrefutável) de que o Uruguai seja mais elementar que nosso país e, portanto, mais bravo... Lembro-me de que, nessa noite, nos despedimos com exagerada efusão.No inverno, a falta de um ou dois pormenores para meu conto fantástico (que se obstinava, sem jeito, em não encontrar sua forma) fez com que eu voltasse à casa do coronel Tabares. Encontrei-o com outro senhor de idade: o doutor Juan Francisco Amaro, de Paysandú, que também tinha militado na revolução de Saravia. Falou-se, como se podia prever, de Masoller. Amaro contou alguns fatos curiosos e depois acrescentou, com lentidão, como quem está pensando em voz alta:- Acampamos à noite em Santa Irene, lembro-me, e juntaram-se a nós algumas pessoas. Entre elas, um veterinário francês que morreu na véspera da ação, e um moço tosquiados, de Entre Ríos, um tal Pedro Damián.Interrompi-o com aspereza.- já sei - disse-lhe. - O argentino que fraquejou diante das balas.Detive-me; os dois me olhavam perplexos.- O senhor está enganado - disse, por fim, Amaro. - Pedro Damián morreu como qualquer homem desejaria morrer. Deviam ser quatro da tarde. No alto da coxilha se fortalecera a infantaria colorada; os nossos a atacaram, a lança; Damián ia na ponta, gritando, e uma bala o acertou em cheio no peito. Firmou-se nos estribos, completou o grito e caiu por terra e ficou entre as patas dos cavalos. Estava morto e a última carga de Masoller lhe passou por cima. Tão valente e nem tinha completado vinte anos.Sem dúvida, falava de outro Damián, mas algo me fez perguntar o que gritava o rapaz.- Palavrões - disse o coronel -, que é o que se grita nos combates.- Pode ser - disse Amaro -, mas também gritou "Viva Urquiza!"637A OUTRA MORTEFicamos calados. Por fim, o coronel murmurou:

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- Como se não lutasse em Masoller, mas em Cagancha ou India Muerta, há um século...Acrescentou com sincera perplexidade:- Eu comandei essas tropas, e juraria que é a primeira vez que ouço falar de um Damián.Não conseguimos que se lembrasse dele.Em Buenos Aires, o espanto que me causou seu esquecimento se repetiu. Diante dos onze deleitáveis volumes das obras de Emerson, no porão da livraria inglesa de Mitchell, encontrei, numa tarde, Patrício Gannon. Perguntei-lhe por sua tradução de The Past. Disse que não pensava em traduzi-lo e que a literatura espanhola era tão tediosa que tornava Emerson desnecessário. Lembrei-lhe que me havia prometido essa versão na mesma carta em que me escreveu sobre a morte de Damián. Perguntou quem era Damián. Disse-o, inutilmente. Com um princípio de terror, observei que me escutava com estranheza, e procurei amparo numa discussão literária sobre os detratores de Emerson, poeta mais complexo, mais hábil e sem dúvida mais singular que o desditoso Poe.Alguns fatos mais devo registrar. Em abril, recebi carta do coronel Dionísio Tabares; já não estava tão esquecido e agora se lembrava muito bem do pequeno entrerriano que esteve na ponta do ataque de Masoller e que seus homens enterraram naquela noite, ao pé da coxilha. Em julho, passei por Gualeguaychú; não encontrei o rancho de Damián, de quem já ninguém se lembrava. Quis interrogar o posteiro, Diego Abaroa, que o viu morrer; mas este tinha falecido antes do inverno. Quis trazer à memória os traços de Damián, meses depois, folheando alguns álbuns, comprovei que o rosto sombrio que eu conseguira evocar era o do célebre tenor Tamberlick, no papel de Otelo.Passo agora às conjeturas. A mais fácil, mas também a menos satisfatória, requer dois Damianes: o covarde que morreu em Entre Ríos por volta de 1946, o valente que morreu em Masoller em 19O4. Seu defeito reside em não explicar o realmente enigmático: os curiosos vaivéns da memória do coronel Tabares, o esquecimento que anula em tão pouco tempo a imagem e até o nome do que voltou. (Não aceito, não quero aceitar, uma conjetura mais simples: a de eu ter sonhado o638primeiro.) Mais curiosa é a conjetura sobrenatural que Ulrike von Kühlmann imaginou. Pedro Damián, dizia Ulrike, pereceu na batalha, e na hora da morte suplicou a Deus que o fizesse voltar a Entre Ríos. Deus vacilou um segundo antes de outorgar essa graça, e quem a pedira já estava morto e alguns homens viram-no cair. Deus, que não pode mudar o passado, mas sim as imagens do passado, trocou a imagem da morte pela de um desfalecimento, e a sombra do entrerriano voltou a sua terra. Voltou, mas devemos recordar sua condição de sombra. Viveu na solidão, sem uma mulher, sem amigos; amou e possuiu tudo, mas de longe, como do outro lado de um vidro; "morreu", e sua tênue imagem se perdeu, como a água na água. Essa conjetura é errônea, mas me haveria de sugerir a verdadeira (a que hoje creio verdadeira), que, ao mesmo tempo, é mais simples e mais inaudita. De modo quase mágico, descobri-a no tratado De Omnipotentia, de Pier Damiani, a cujo estudo me levaram dois versos do canto XXI do Paradiso, que propõem justamente um problema de identidade. No quinto capítulo daquele tratado, Pier Damiani sustenta, contra Aristóteles e contra Fredegário de Tours, que Deus pode fazer com que não tenha sido o que alguma vez foi. Li essas velhas discussões teológicas e comecei a compreender a trágica história de Dom Pedro Damián.

Adivinho-a assim: Damián portou-se como covarde no campo de Masoller, e dedicou a vida a corrigir essa vergonhosa fraqueza. Voltou a Entre Ríos; não levantou a mão

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contra nenhum homem, não marcou ninguém, não procurou fama de valente, mas nos campos de Nancay fez-se duro, lidando com o monte e o gado xucro. Seguramente sem o saber, foi preparando o milagre. Pensou no fundo de si mesmo: se o destino me traz outra batalha, saberei merecê-la. Durante quarenta anos, esperou-a com obscura esperança, e o destino por fim a trouxe, na hora da morte. Trouxe-a em forma de delírio, e já os gregos sabiam que somos as sombras de um sonho. Na agonia, reviveu sua batalha, e conduziu-se como homem e encabeçou o ataque final e uma bala acertou-o em pleno peito. Assim, em 1946, por obra de uma longa paixão, Pedro Damián morreu na derrota de Masoller, que ocorreu entre o inverno e a primavera de 19O4.639O ALEPHNa Suma Teológica nega-se que Deus possa fazer com que o passado não tenha sido, mas nada se diz da intrincada concatenação de causas e efeitos, tão vasta e tão íntima que talvez não fosse possível anular um único fato remoto, por insignificante que fosse, sem invalidar o presente. Modificar o passado não é modificar um único fato; é anular suas conseqüências, que tendem a ser infinitas. Por outras palavras: é criar duas histórias universais. Na primeira (digamos), Pedro Damián morreu em Entre Rios, em 1946; na segunda, em Masoller, em 19O4. Esta é a que vivemos agora, mas a supressão daquela não foi imediata e motivou as incoerências que narrei. No coronel Dionísio Tabares cumpriram-se as diversas etapas: a princípio, lembrou-se de que Damián agiu como covarde; depois, esqueceu-o por completo; em seguida, recordou sua impetuosa morte. Não menos corroborativo é o caso do posteiro, Abaroa; este morreu, assim penso, porque tinha demasiadas lembranças de Dom Pedro Damián.Quanto a mim, entendo não correr perigo análogo. Adivinhei e registrei um processo não acessível aos homens, uma espécie de escândalo da razão; mas algumas circunstâncias mitigam esse privilégio temível. Por ora, não estou seguro de ter escrito sempre a verdade. Suspeito que em meu relato existam falsas lembranças. Suspeito que Pedro Damián (se existiu) não se chamou Pedro Damián, e que eu me lembre dele com esse nome para crer algum dia que sua história me foi sugerida pelos argumentos de Pier Damiani. Algo parecido acontece com o poema que mencionei no primeiro parágrafo e que versa sobre a irrevogabilidade do passado. Por volta de 1951, acreditarei ter composto um conto fantástico e terei historiado um fato real; também o inocente Virgílio, há dois mil anos, acreditou anunciar o nascimento de um homem e vaticinava o de Deus.Pobre Damián! A morte o levou aos vinte anos numa triste guerra ignorada e numa batalha caseira, mas conseguiu o que seu coração desejava, e tardou muito a consegui-lo, e talvez não exista felicidade maior.64ODEUTSCHES REQUIEM

Ainda que ele me tire a vida, nele confiarei. Jó 13, 15

Meu nome é Otto Dietrich zur Linde. Um de meus antepassados, Christoph zur Linde, morreu no ataque de cavalaria que decidiu a vitória de Zorndorf. Meu bisavô materno, Ulrich Forkel, foi assassinado na floresta de Marchenoir por francoatiradores franceses, nos últimos dias de 187O; o capitão Dietrich zur Linde, meu pai, distinguiu-se no cerco de Namur, em 1914, e, dois anos depois, na travessia do Danúbio." Quanto a mim, serei fuzilado como torturador e assassino. O tribunal procedeu com retidão;

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desde o princípio, eu me declarei culpado. Amanhã, quando o relógio da prisão der as nove, terei entrado na morte; é natural que pense em meus antepassados, já que tão perto estou de sua sombra, já que de algum modo sou eles.Durante o julgamento (que felizmente durou pouco) não falei; justificar-me, então, teria perturbado o veredicto e parecido covardia. Agora as coisas mudaram; nesta noite que precede minha execução, posso falar sem temor. Não pretendo ser perdoado, porque não há culpa em mim, mas quero ser compreendido. Os que souberem ouvir-me compreenderão a história da Alemanha e a futura história do mundo. Eu sei que casos como o meu, excepcionais e assombrosos agora, serão muito em breve triviais. Amanhã morrerei, mas sou um símbolo das gerações do futuro.

Nasci em Marienburg, em 19O8. Duas paixões, agora quase esquecidas, permitiram-me enfrentar com valor e até com feli1 É significativa a omissão do antepassado mais ilustre do narrador, o teólogo e hebrafsta Johannes Forkel (1799-1846), que aplicou a dialética de Hegel à cristologia e cuja versão literal de alguns dos Livros Apócrifos mereceu a censura de Hengstenberg e a aprovação de Thilo e Geseminus. (N. do E.)641O ALEPHcidade muitos anos infaustos: a música e a metafísica. Não posso mencionar todos os meus benfeitores, mas há dois nomes que não me resigno a omitir: o de Brahms e o de Schopenhauer. Também freqüentei a poesia; a esses nomes, quero juntar outro vasto nome germânico, William Shakespeare. Antes, a teologia me interessou, mas dessa fantástica disciplina (e da fé cristã) me desviou para sempre Schopenhauer, com razões diretas; Shakespeare e Brahms, com a infinita variedade de seu mundo. Quem se detiver, maravilhado, trêmulo de ternura e gratidão, ante qualquer parte da obra desses homens felizes, saiba que eu também me detive aí, eu, o abominável.Por volta de 1927, entraram em minha vida Nietzsche e Spengler. Observa um escritor do século XVIII que ninguém quer dever nada a seus contemporâneos; eu, para libertar-me de uma influência que pressenti opressora, escrevi um artigo intitulado Abrechnung mit Spengler, no qual observava que o monumento mais inequívoco dos traços que o autor chama fáusticos não é o misto drama de Goethe; mas um poema escrito há vinte séculos, o De Rerum Natura. Rendi justiça, contudo, à sinceridade do filósofo da história, a seu espírito radicalmente alemão (Kerndeutsch), militar. Em 1929, entrei no Partido.Pouco direi de meus anos de aprendizagem. Foram mais duros para mim que para muitos outros, já que, apesar de não carecer de valor, me falta qualquer vocação para a violência. Compreendi, entretanto, que estávamos à beira de um tempo novo e que esse tempo, comparável às épocas iniciais do Islamismo ou do Cristianismo, exigia homens novos. Individualmente, meus camaradas me eram odiosos; em vão, procurei raciocinar que, para o alto fim que nos congregava, não éramos indivíduos.Asseveram os teólogos que, se a atenção do Senhor se desviasse um só segundo de minha mão direita que escreve, esta recairia no nada, como se a fulminasse um fogo sem luz. Ninguém pode ser, digo, ninguém pode provar um copo d"água ou partir um pedaço de pão sem justificativa. Para cada homem, essa justificativa é diferente; eu esperava a guerra inexorável que2 Outras nações vivem com inocência, em si e para si, como os minerais ou os meteoros; a Alemanha é o espelho universal que a todas recebe, a consciência do mundo (das Weltbe~stsein). Goethe é o protótipo dessa compreensão ecumênica. Não ocensuro, mas não vejo nele o homem fáustico da tese de Spengler.DEUTSCHES REQUIEM

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iria provar nossa fé. Bastava-me saber que eu seria um soldado de suas batalhas. Certa vez, temi que nos defraudassem a covardia da Inglaterra e da Rússia. O acaso, ou o destino, teceu de outra maneira meu futuro: em 1° de março de 1939, ao escurecer, houve distúrbios em Tilsit que os jornais não registraram; na rua detrás da sinagoga, duas balas me atravessaram a perna, que foi necessário amputar? Dias depois, entravam na Boêmia nossos exércitos; quando as sirenas o anunciaram, eu estava no sedentário hospital, tratando de perder-me e esquecer-me nos livros de Schopenhauer. Símbolo de meu vão destino, dormia no rebordo da janela um gato enorme e fofo.No primeiro volume de Parerga und Paralipomena reli que todos os fatos que podem ocorrer a um homem, desde o instante de seu nascimento até o de sua morte, foram prefixados por ele. Assim, toda negligência é deliberada, todo casual encontro, uma hora marcada, toda humilhação, uma penitência, todo fracasso, uma misteriosa vitória, toda morte, um suicídio. Não há consolo mais hábil que o pensamento de que escolhemos nossas desgraças; essa teleologia individual nos revela uma ordem secreta e prodigiosamente nos confunde com a divindade. Que ignorado propósito (meditei) me fez procurar esse entardecer, essas balas e essa mutilação? Não foi o temor da guerra, eu o sabia; algo mais profundo. Por fim, pensei entender. Morrer por uma religião é mais simples que vivê-la com plenitude; lutar em Efeso contra as feras é menos duro (milhares de mártires obscuros o fizeram) que ser Paulo, servo de Jesus Cristo; um ato é menos que todas as horas de um homem. A batalha e a glória são facilidades; mais árdua que a ação de Napoleão foi a de Raskolnikov. Em 7 de fevereiro de 1941, fui nomeado subdiretor do campo de concentração de Tarnowitz.O exercício desse cargo não me foi grato; mas não pequei nunca por negligência. O covarde se prova entre as espadas; o misericordioso, o piedoso, procura o exame dos cárceres e da dor alheia. O nazismo, intrinsecamente, é um fato moral, um despojar-se do velho homem, que está viciado, para vestir o novo. Na batalha, essa mutação é comum, entre o clamor dos capitães e o vozerio; não é assim em um infame calabouço, onde nos tenta com antigas ternuras a insidiosa piedade. Não

3 Murmura-se que as conseqüências dessa ferida foram muito graves. (N. do E.)642643o ALEPHDEUTSCHEs REQUIEMem vão escrevo essa palavra; a piedade pelo homem superior é o último pecado de Zaratustra. Quase o cometi (confesso) quando nos mandaram de Breslau o insigne poeta David Jerusalém.Era um homem de cinqüenta anos. Pobre de bens deste mundo, perseguido, negado, vituperado, consagrara seu gênio a cantar a felicidade. Creio lembrar que Albert Soergel, na obra Dichtung der Zeit, o compara a Whitman. A comparação não é feliz; Whitman celebra o universo de modo prévio, geral, quase indiferente; Jerusalém alegra-se de cada coisa, com minucioso amor. Jamais emprega enumerações, catálogos. Ainda posso repetir muitos hexâmetros daquele profundo poema que se intitula Tse Yang, Pintor de Tigres, que está como que raiado de tigres, que está como que carregado e atravessado de tigres transversais e silenciosos. Tampouco esquecerei o solilóquio Rosencrantz Fala com o Anjo, no qual um prestamista londrino do século XVI inutilmente trata, ao morrer, de vindicar suas culpas, sem suspeitar que a secreta justificativa de sua vida é ter inspirado a um de seus clientes (que o viu uma única vez e de quem não se lembra) o caráter de Shylock. Homem de memoráveis olhos, de pele citrina,

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de barba quase negra, David Jerusalém era o protótipo do judeu sefardim, embora pertencesse aos depravados e enfadonhos Ashkenazim. Fui severo com ele; não permiti que me abrandassem nem a compaixão nem sua glória. Eu havia compreendido há muitos anos que não existe coisa no mundo que não seja germe de um Inferno possível; um rosto, uma palavra, uma bússola, um anúncio de cigarros poderiam enlouquecer uma pessoa, se esta não conseguisse esquecê-los. Não estaria louco um homem que continuamente tivesse em mente o mapa da Hungria? Determinei aplicar esse princípio ao regime disciplinar de nossa casa e..." Em fins de 1942, Jerusalém perdeu a razão; em 1° de março de 1943, conseguiu matar-se."4 Foi inevitável omitir aqui algumas linhas. (N. do E.)5 Nem nos arquivos nem na obra de Soergel figura o nome de Jerusalém. Tampouco o registram as histórias da literatura alemã. Não creio, entretanto, que se trate de personagem falso. Por ordem de Otto Dietrich zur Linde foram torturados em Tarnowitz muitos intelectuais judeus, entre eles a pianista Emma Rosenzweig. "David Jerusalém" é talvez símbolo de vários indivíduos. Dizemnos que morreu em 1 ° de março de 1943; em 1 ° de março de 1939, o narrador foi ferido em Tilsit. (N. do E.)Ignoro se Jerusalém compreendeu que, se eu o destruí, foi para destruir minha piedade. Diante de meus olhos, ele não era um homem, nem sequer um judeu; transformara-se no símbolo de uma detestada área de minha alma. Eu agonizei com ele, eu morri com ele, eu de algum modo me perdi com ele; por essa razão, fui implacável.Enquanto isso, giravam sobre nós os grandes dias e as grandes noites de uma guerra feliz. Havia no ar que respirávamos um sentimento parecido com o amor. Como se bruscamente o mar estivesse perto, havia um assombro e uma exaltação no sangue. Tudo, naqueles anos, era diferente, até o sabor do sonho. (Talvez eu nunca tenha sido inteiramente feliz, mas se sabe que a desventura requer paraísos perdidos.) Não há homem que não aspire à plenitude, quer dizer, à soma de experiências de que um homem é capaz; não há homem que não tema ser defraudado em alguma parte desse patrimônio infinito. Mas minha geração teve tudo, porque primeiro lhe foi proporcionada a glória e depois a derrota.Em outubro ou novembro de 1942, meu irmão Friedrich pereceu na segunda batalha de El Alamein, nos areais egípcios; um bombardeio aéreo, meses depois, destruiu nossa casa natal; outro, em fins de 1943, meu laboratório. Acossado por vastos continentes, morria o Terceiro Reich; sua mão estava contra todos e as mãos de todos contra ele. Então, algo singular ocorreu, que agora creio entender. Eu me acreditava capaz de esgotar o copo de cólera, mas nas fezes me deteve um sabor não esperado, o misterioso e quase terrível sabor da felicidade. Ensaiei diversas explicações; não me bastou nenhuma. Pensei: "A derrota me satisfaz porque secretamente sei que sou culpado e só o castigo pode redimir-me". Pensei: "A derrota me satisfaz porque é um fim e estou muito cansado". Pensei: "A derrota me satisfaz porque ocorreu, porque está inumeravelmente unida a todos os fatos que são, que foram, que serão, porque censurar ou deplorar um único fato real é blasfemar contra o universo". Essas razões ensaiei, até dar com a verdadeira.Tem-se dito que todos os homens nascem aristotélicos ou platônicos. Isso equivale a declarar que não há debate de caráter abstrato que não seja um momento da polêmica de Aristóteles e Platão; através dos séculos e latitudes, mudam os644645o ALEPHnomes, os dialetos, as faces, mas não os eternos antagonistas. Também a história dos povos registra uma continuidade secreta. Armínio, quando decapitou num lamaçal

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as legiões de Varo, não se sabia precursor de um Império Alemão; Lutem, tradutor da Bíblia, não suspeitava que seu fim era forjar um povo que destruísse para sempre a Bíblia; Christoph zur Linde, morto por uma bala moscovita em 1758, preparou de algum modo as vitórias de 1914; Hitler acreditou lutar por um país, mas lutou por todos, até por aqueles que agrediu e detestou. Não importa que seu eu o ignorasse; sabiam-no seu sangue, sua vontade. O mundo morria de judaísmo e dessa enfermidade do judaísmo que é a fé em Jesus; nós lhe ensinamos a violência e a fé na espada. Essa espada nos mata e somos comparáveis ao feiticeiro que tece um labirinto e que se vê forçado a errar nele até o fim de seus dias, ou a Davi, que julga um desconhecido e o condena à morte e ouve depois a revelação: "Tu és aquele homem". Muitas coisas há que destruir para edificar a nova ordem; agora sabemos que a Alemanha era uma dessas coisas. Demos algo mais que nossa vida, demos o destino de nosso querido país. Que outros maldigam e outros chorem; a mim me alegra que nosso dom seja orbicular e perfeito.Ameaça agora o mundo uma época implacável. Nós a forjamos, nós que já somos sua vítima. Que importa que a Inglaterra seja o martelo e nós a bigorna? O importante é que reine a violência, não as servis timidezes cristãs. Se a vitória e a injustiça e a felicidade não são para a Alemanha, que sejam para outras nações. Que o céu exista, mesmo que nosso lugar seja o inferno.Olho meu rosto no espelho para saber quem sou, para saber como me portarei dentro de algumas horas, quando me defrontar com o fim. Minha carne pode ter medo; eu não.A PROCURA DE AVERRÓISS"imaginant que Ia tragédie n"est autre chose que l"art de louer...ERNEST RENAN: Averroès, 48 (1861).Abu al-Walid Mohamed ibn Ahmad Mohamed ibn Ruchd (este longo nome levaria um século para chegar a Averróis, passando por Benraist e por Avenryz, e ainda por AbenRassad e Filius Rosadis) escrevia o undécimo capítulo da obra Tahafut-ul-Tahafut (Destruição da Destruição), no qual se sustenta, contra o asceta persa Ghazali, autor de Tahafut-ulFalasifa (Destruição de Filósofos), que a divindade só conhece as leis gerais do universo, o concernente às espécies, não ao indivíduo. Escrevia com lenta segurança, da direita para a esquerda; o exercício de formar silogismos e de encadear longos parágrafos não o impedia de sentir, como bem-estar, a fresca e ampla casa que o rodeava. No fundo da sesta arrulhavam amorosas pombas; de algum pátio invisível se elevava o rumor de uma fonte; algo na carne de Averróis, cujos antepassados procediam dos desertos árabes, agradecia a constância da água. Embaixo, estavam os jardins, a horta; embaixo, o atarefado Guadalquivir e depois a querida cidade de Córdova, não menos clara que Bagdá ou que o Cairo, como um complexo e delicado instrumento, e ao redor (isto Averróis também sentia) se estendia até os confins a terra da Espanha, na qual existem poucas coisas, mas onde cada uma parece estar de modo substantivo e eterno.A pena corria sobre a folha, os argumentos se enlaçavam, irrefutáveis, mas uma leve preocupação empanou a felicidade de Averróis. Não a causava o Tahafut, trabalho fortuito, mas um problema de índole filológica vinculado à obra monumental que o justificaria ante os povos: o comentário sobre646647O ALEPHAristóteles. Esse grego, manancial de toda a filosofia, fora outorgado aos homens para ensinar-lhes tudo o que se pode saber; interpretar seus livros como os ulemás

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interpretam o Alcorão era o árduo propósito de Averróis. Poucas coisas mais belas e mais patéticas registrará a história além dessa consagração de um médico árabe aos pensamentos de um homem de quem o separavam catorze séculos; às dificuldades intrínsecas devemos acrescentar que Averróis, ignorando o siríaco e o grego, trabalhava sobre a tradução de uma tradução. Na véspera, duas palavras duvidosas o detiveram no princípio da Poética. Essas palavras eram tragédia e comédia. Encontrara-as anos atrás no livro terceiro da Retórica; ninguém, no âmbito do Islã, atinava com o que queriam dizer. Inutilmente fatigara-se nas páginas de Alexandre de Afrodísia, inutilmente compulsara as versões do nestoriano Hunain ibnIshaq e de Abu-Bashar Mata. Essas duas palavras arcanas pululavam no texto da Poética; impossível evitá-las.Averróis largou a pena. Disse a si mesmo (sem demasiada fé) que costuma estar muito perto aquilo que procuramos, guardou o manuscrito do Tahafut e dirigiu-se à prateleira onde se alinhavam, copiados por calígrafos persas, os muitos volumes do Mohkam do cego Abensida. Era irrisório imaginar que não os tinha consultado, mas tentou-o o ocioso prazer de virar suas páginas. Dessa estudiosa distração o desviou uma espécie de melodia. Olhou pela sacada gradeada; embaixo, no estreito pátio de terra, brincavam alguns meninos seminus. Um, de pé nos ombros do outro, fazia-se evidentemente de almuadem; com os olhos bem fechados, salmodiava "Não há outro deus além de Deus". Aquele que o sustentava, imóvel, fazia-se de minarete; outro, humilhado no pó e ajoelhado, de congregação dos fiéis. A brincadeira durou pouco: todos queriam ser o almuadem, ninguém a congregação ou a torre. Averróis ouviu-os discutir em dialeto grosem, ou seja, no incipiente espanhol da plebe muçulmana da Península. Abriu o Quitah-ul-ain de Jalil e pensou, com orgulho, que, em toda Córdova (talvez em todo Al-Andalus), não existia outra cópia da obra perfeita além dessa que o emir Yacub Almansur lhe remetera de Tânger. O nome desse porto lembrou-lhe que o viajante Abulcásim Al-Ashari, que regressara de Marrocos, jantaria com ele essa noite em casa do alcoranista Farach.648A PROCURA DE AVERRó1SAbulcásim dizia ter alcançado os reinos do império de Sin (da China); seus detratores, com essa lógica peculiar que o ódio oferece, juravam que ele nunca havia pisado na China e que nos templos desse país blasfemara contra Alá. Inevitavelmente, a reunião duraria algumas horas; Averróis, pressuroso, retomou a escrita do Tahafut. Trabalhou até o crepúsculo da noite.O diálogo, na casa de Farach, passou das incomparáveis virtudes do governador às de seu irmão, o emir; depois, no jardim, falaram de rosas. Abulcásim, que não as tinha visto, jurou que não existiam rosas como as que decoram os jardins andaluzes. Farach não se deixou subornar; observou que o douto Ibn Qutaiba descreve uma excelente variedade de rosa perpétua, que dá nos jardins do Industão e cujas pétalas, de um vermelho encarnado, apresentam caracteres que dizem: "Não há outro deus como o Deus. Muhammad é o Apóstolo de Deus". Acrescentou que Abulcásim, com certeza, conheceria essas rosas. Abulcásim fixou-o com inquietação. Se respondesse que sim, todos o julgariam, com razão, o mais disponível e casual dos impostores; se respondesse que não, seria julgado infiel. Optou por murmurar que com o Senhor estão as chaves das coisas ocultas e que não existe na terra uma coisa verde ou uma coisa murcha que não esteja registrada em Seu Livro. Essas palavras pertencem a uma das primeiras suratas; acolheu-as um murmúrio reverenciai. Envaidecido por essa vitória dialética, Abulcásim ia dizer que o Senhor é perfeito em suas obras e é inescrutável. Então Averróis declarou, prefigurando as remotas razões de um ainda problemático Hume:

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- Menos me custa admitir um erro no douto Ibn Qutaiba, ou nos copistas, do que admitir que a terra dê rosas com profissão de fé.- Assim é. Grandes e verdadeiras palavras - disse Abulcásim.- Certo viajante - lembrou o poeta Abdalmálik - fala de uma árvore cujos frutos são verdes pássaros. É menos difícil acreditar nele que em rosas com letras.- A cor dos pássaros - disse Averróis - parece facilitar o portento. Além disso, os frutos e os pássaros pertencem ao mundo natural, mas a escrita é uma arte. Passar de folhas a pássaros é mais fácil que de rosas a letras.649O ALEPHOutro hóspede negou com indignação que a escrita fosse uma arte, já que o original do Quran - a Mãe do Livro - é anterior à Criação e está guardado no céu. Outro falou de Cháhiz de Basra, segundo o qual o Quran é uma substância que pode tomar a forma de um homem ou de um animal, opinião que parece combinar com a dos que lhe atribuem duas faces. Farach expôs longamente a doutrina ortodoxa. O Quran (disse) é um dos atributos de Deus, como Sua piedade; é copiado num livro, é pronunciado com a língua, é lembrado no coração, e o idioma e os sinais e a escrita são obra dos homens, mas o Quran é irrevogável e eterno. Averróis, que havia comentado a República, podia ter dito que a Mãe do Livro é algo assim como seu modelo platônico, mas percebeu que a teologia era um tema totalmente inacessível a Abulcásim.Outros, que também o perceberam, instaram com Abulcásim para contar alguma maravilha. Então, como agora, o mundo era cruel; os audazes podiam percorrê-lo, mas também os miseráveis, os que se sujeitavam a tudo. A memória de Abulcásim era um espelho de íntimas covardias. Que podia ele contar? Além disso, exigiam-lhe maravilhas e a maravilha é talvez incomunicável: a lua de Bengala não é igual à lua do Iêmen, porém, deixa-se descrever com as mesmas palavras. Abulcásim vacilou; depois falou:- Quem percorre os climas e as cidades - proclamou com unção - vê muitas coisas dignas de crédito. Esta, por exemplo, que só contei uma vez ao rei dos turcos. Ocorreu em Sin Kalan (Cantão), onde o rio da Água da Vida se derrama no mar.Farach perguntou se a cidade ficava a muitas léguas da muralha que Iskandar Zul Qarnain (Alexandre Bicorne da Macedônia) levantou para deter Gog e Magog.- Desertos a separam - disse Abulcásim, com involuntária soberba. - Quarenta dias demoraria uma cáfila (caravana) para divisar suas torres e dizem que outros tantos para alcançá-las. Em Sin Kalan não sei de nenhum homem que a tenha visto ou que tenha visto quem a viu.O medo do grosseiramente infinito, do mero espaço, da mera matéria, tocou Averróis por um instante. Olhou o simétrico jardim; sentiu-se envelhecido, inútil, irreal. Dizia Abulcásim:A PROCURA DE AVERRóIS- Uma tarde, os mercadores muçulmanos de Sin Kalan me conduziram a uma casa de madeira pintada, na qual viviam muitas pessoas. Não se pode contar como era essa casa, que mais parecia um único quarto, com filas de armários ou sacadas, umas sobre as outras. Nessas cavidades havia gente que comia e bebia, e também no chão, e também num terraço. As pessoas desse terraço tocavam tambor e alaúde, salvo umas quinze ou vinte (com máscaras vermelhas) que rezavam, cantavam e dialogavam. Estavam presas, e ninguém via o cárcere; cavalgavam, mas não se percebia o cavalo; combatiam, mas as espadas eram de cana; morriam e logo estavam de pé.- Os atos dos loucos - disse Farach - excedem às previsões do homem sensato.- Não estavam loucos - teve de explicar Abulcásim. - Estavam figurando, disse-me um mercador, uma história.

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Ninguém compreendeu, ninguém pareceu querer compreender. Abulcásim, confuso, passou da escutada narração às desajeitadas razões. Falou, ajudando-se com as mãos:- Imaginemos que alguém mostre uma história, em vez de contá-la. Seja essa história a dos adormecidos de Éfeso. Vemos retirarem-se para a caverna, vemos orarem e dormirem, vemos dormirem com os olhos abertos, vemos crescerem enquanto dormem, vemos despertarem depois de trezentos e nove anos, vemos entregarem ao vendedor uma antiga moeda, vemos despertarem no paraíso, vemos despertarem com o cão. Algo semelhante nos mostraram àquela tarde as pessoas do terraço.- Essas pessoas falavam? - perguntou Farach.- Claro que falavam - disse Abulcásim, convertido em apologista de uma cena que mal recordava e que o enfadara bastante. - Falavam e cantavam e peroravam!- Nesse caso - disse Farach -, não eram necessárias vinte pessoas. Um só narrador pode contar qualquer coisa, por complexa que seja.Todos aprovaram essa opinião. Encareceram-se as virtudes do árabe, idioma usado por Deus para comandar os anjos; em seguida, as da poesia dos árabes. Abdalmálik, depois de examiná-la devidamente, escarneceu por antiquados dos poetas que em Damasco ou em Córdova se apegavam65O651O ALEPHA PROCURA DE AVERRÓISa imagens pastoris e a um vocabulário beduíno. Disse ser absurdo que um homem ante cujos olhos se estendia o Guadalquivir fosse celebrar a água de um poço. Alertou para a conveniência de se renovarem as antigas metáforas; disse que, quando Zuhair comparou o destino a um camelo cego, essa figura pode ter causado surpresa às pessoas, mas que cinco séculos de admiração a gastaram. Todos aprovaram essa opinião, que já haviam escutado muitas vezes, de muitas bocas. Averróis calava-se. Por fim, falou, menos para os outros que para si mesmo.- Com menos eloqüência - disse Averróis -, mas com argumentos congêneres, defendi algumas vezes a proposição que Abdalmálik sustenta. Em Alexandria, tem-se dito que só é incapaz de uma culpa quem já a cometeu e já se arrependeu; para se estar livre de um erro, acrescentemos, convém havê-lo praticado. Zuhair, em seu "mualaca", disse que, no decurso de oitenta anos de dor e de glória, viu muitas vezes o destino atropelar de surpresa os homens, como um camelo cego; Abdalmálik entende que essa figura já não pode surpreender. A essa observação caberia contestar muitas coisas. A primeira é que, se o fim do poema fosse o assombro, seu tempo não se mediria por séculos, mas por dias e por horas e talvez por minutos. A segunda é que um famoso poeta é menos inventor que descobridor. Para louvar Ibn-Sharaf de Berja, tem-se repetido que só ele pôde imaginar que as estrelas, ao amanhecer, caem lentamente, como as folhas caem das árvores; isso, se fosse certo, evidenciaria que a imagem é frívola. A imagem que um único homem pode formar é a que não toca ninguém. Infinitas coisas existem na terra; qualquer uma pode equiparar-se a qualquer outra. Equiparar estrelas a folhas não é menos arbitrário que equipará-las a peixes ou a pássaros. Em compensação, ninguém nunca sentiu que o destino é forte e é rude, que é inocente e é também inumano. Para essa convicção, que pode ser passageira ou contínua, mas que ninguém evita, foi escrito o verso de Zuhair. Não se dirá melhor o que ali se disse. Além do mais (e isso talvez seja o essencial de minhas reflexões), o tempo, que despoja os alcáceres, enriquece os versos. O de Zuhair, quando este o compôs na Arábia, serviu para confrontar duas imagens, a do velho camelo e a do destino; repetido agora, serve para recor

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dar Zuhair e para confundir nossos pesares com os daquele árabe morto. Dois termos tinha a figura e hoje ela tem quatro. O tempo amplia o âmbito dos versos e sei de alguns que, como a música, são tudo para todos os homens. Assim, atormentado há anos em Marrakech por lembranças de Córdova, comprazia-me em repetir a apóstrofe que Abdurrahman dirigiu, nos jardins de Ruzafa, a uma palmeira africana:

Tu também és, é palmeira!, Neste solo estrangeira...

Singular benefício da poesia; palavras escritas por um rei que desejava o Oriente serviram a mim, desterrado na África, para minha nostalgia da Espanha.Averróis, depois, falou dos primeiros poetas, daqueles que no Tempo da Ignorância, antes do Islã, já disseram todas as coisas, na infinita linguagem dos desertos. Alarmado, não sem razão, pelas futilidades de Ibn-Sharaf, disse que nos antigos e no Quran estava cifrada toda poesia e condenou por analfabeta e por vã a ambição de inovar. Os demais o escutaram com prazer, pois ele defendia o antigo.Os muezins chamavam à oração da primeira luz quando Averróis voltou a entrar na biblioteca. (No harém, as escravas de cabelos negros haviam torturado uma escrava de cabelos ruivos, mas ele não o saberia senão à tarde.) Algo lhe revelara o sentido das duas palavras obscuras. Com firme e cuidadosa caligrafia juntou estas linhas ao manuscrito: "Aristu (Aristóteles) denomina tragédia os panegíricos e comédias as sátiras e os anátemas. Admiráveis tragédias e comédias são abundantes nas páginas do Corão e nos "mualacas" do santuário".Sentiu sono, sentiu um pouco de frio. Desenrolado o turbante, olhou-se num espelho de metal. Não sei o que viram seus olhos, porque nenhum historiador descreveu as formas de seu rosto. Sei que desapareceu bruscamente, como se o fulminasse um fogo sem luz, e que com ele desapareceram a casa e o invisível repuxo e os livros e os manuscritos e as pombas e as muitas escravas de cabelos negros e a trêmula escrava de cabelos ruivos e Farach e Abulcásim e os roseirais e talvez o Guadalquivir.652653O ALEPHNa história anterior quis contar o processo de uma derrota. Pensei, primeiro, naquele arcebispo de Canterbury que se propôs demonstrar que há um Deus; depois, nos alquimistas que procuraram a pedra filosofal; depois, nos inúteis trissectores do ângulo e retificadores do círculo. Refleti, em seguida, que mais poético é o caso de um homem que se propõe um fim que não está vedado a outros, mas sim a ele. Lembrei-me de Averróis, que, encerrado no âmbito do Islã, nunca pôde saber o significado das palavras tragédia e comédia. Contei o caso; à medida que me adiantava, senti o que teve de sentir aquele deus mencionado por Burton, que se propôs criar um touro e criou um búfalo. Senti que a obra zombava de mim. Senti que Averróis, querendo imaginar o que é um drama sem ter suspeitado o que seja um teatro, não era mais absurdo que eu, querendo imaginar Averróis, sem outro material além de alguns adarmes de Renan, de Lane e de Asín Palacios. Senti, na última página, que minha narrativa era um símbolo do homem que eu fui enquanto a escrevia, e que, para escrever essa narrativa, fui obrigado a ser aquele homem e que, para ser aquele homem, tive de escrever essa narrativa, e assim até o infinito. (No instante em que deixo de acreditar nele, "Averróis" desaparece.)O ZAHIREm Buenos Aires, o Zahir é uma moeda comum, de vinte centavos; marcas de navalha ou de canivete riscam as letras N T e o número dois; 1929 é a data gravada no anverso.

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(Em Guzerat, em fins do século XVIII, um tigre foi Zahir; em Java, um cego da mesquita de Surakarta, que os fiéis apedrejaram; na Pérsia, um astrolábio que Nadir Shah mandou atirar no fundo do mar; nas prisões do Mahdi, por volta de 1892, uma pequena bússola que Rudolf Carl von Slatin tocou, envolta numa dobra de turbante; na mesquita de Córdova, segundo Zotenberg, um veio no mármore de um dos mil e duzentos pilares; entre os judeus de Tetuan, o fundo de um poço.) Hoje é 13 de novembro; no dia 7 de junho, de madrugada, chegou às minhas mãos o Zahir; não sou o que então eu era, mas ainda me é dado recordar, e talvez contar, o ocorrido. Se bem que, parcialmente, ainda sou Borges.Em 6 de junho morreu Teodelina Villar. Seus retratos, por volta de 193O, enchiam as revistas mundanas; essa abundância contribuiu talvez para que a julgassem muito bonita, embora nem todas as imagens apoiassem incondicionalmente essa hipótese. Além do mais, Teodelina Villar se preocupava menos com a beleza que com a perfeição. Os hebreus e os chineses codificaram todas as circunstâncias humanas; na Mishnah se lê que, iniciado o crepúsculo do sábado, um alfaiate não deve sair à rua com uma agulha; no Livro dos Ritos se lê que um hóspede, ao receber o primeiro copo, deve assumir um ar grave e, ao receber o segundo, um ar respeitoso e feliz. Análogo, porém mais minucioso, era o rigor que Teodelina Villar exigia de si mesma. Procurava, como o adepto de Confúcio ou o talmudista, a irrepreensível correção de cada ato, mas seu empenho era mais admirável e mais duro, pois as654655O ALEPHnormas de seu credo não eram eternas, já que se rendiam às casualidades de Paris ou de Hollywood. Teodelina Villar mostrava-se em lugares ortodoxos, em hora ortodoxa, com atributos ortodoxos, com tédio ortodoxo, mas o tédio, os atributos, a hora e os lugares caducavam quase imediatamente e serviriam (na boca de Teodelina Villar) para definição do ridículo. Procurava o absoluto, como Flaubert, mas o absoluto no momentâneo. Sua vida era exemplar e, no entanto, um desespero interior a roía sem trégua. Ensaiava contínuas metamorfoses, como para fugir de si mesma; a cor de seus cabelos e as formas de seu penteado eram famosamente instáveis. Também variavam o sorriso, a tez, a obliqüidade dos olhos. Desde 1932, foi estudadamente delgada... A guerra deu-lhe muito que pensar. Ocupada Paris pelos alemães, como seguir a moda? Um estrangeiro de quem ela sempre desconfiara permitiu-se abusar de sua boa-fé para vender-lhe uma porção de chapéus cilíndricos; durante o ano, propagouse que esses objetos extravagantes nunca haviam aparecido em Paris e, por conseguinte, não eram chapéus, mas arbitrários e desautorizados caprichos. As desgraças não vêm sozinhas; o doutor Villar teve de mudar-se para a rua Aráoz e o retrato de sua filha ilustrou anúncios de cremes e de automóveis. (Os cremes que ela tanto se aplicava, os automóveis que já não possuía!) Ela sabia que o bom exercício de sua arte exigia grande fortuna; preferiu retirar-se a claudicar. Além disso, doía-lhe competir com garotinhas insubstanciais. O sinistro distrito de Aráoz mostrou-se demasiado oneroso; em 6 de junho, Teodelina Villar cometeu o solecismo de morrer em pleno Barrio Sur. Confessarei que, movido pela mais sincera das paixões argentinas, o esnobismo, estava apaixonado por ela e que sua morte me afetou até as lágrimas? Talvez já o tenha suspeitado o leitor.Nos velórios, o progresso da decomposição faz com que o morto recupere suas faces anteriores. Em algum momento da confusa noite do dia 6, Teodelina Villar foi magicamente a que fora havia vinte anos; seus traços recobraram a autoridade imposta pela soberba, pelo dinheiro, pela juventude, pela consciência de coroar uma hierarquia,

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pela falta de imaginação, pelas limitações, pela estupidez. Pensei mais ou menos assim: nenhuma versão dessa face que tanto meO ZAHIRinquietou será tão memorável como esta; convém que seja a última, já que pôde ser a primeira. Rígida entre as flores deixei-a, aperfeiçoando seu desdém pela morte. Seriam duas da manhã quando saí. Fora, as previstas fileiras de casas baixas e de casas de um pavimento tinham assumido esse ar abstrato que costumam assumir à noite, quando a sombra e o silêncio as simplificam. Ébrio de uma piedade quase impessoal, caminhei pelas ruas. Na esquina das ruas Chile e Tacuarí, vi um armazém aberto. Naquele armazém, para minha desgraça, três homens jogavam o truco.Na figura que se chama oxímoro, aplica-se a uma palavra um epíteto que parece contradizê-la; assim os gnósticos falaram de luz obscura, os alquimistas, de um sol negro. Sair de minha última visita a Teodelina Villar e tomar cachaça num armazém era uma espécie de oxímoro; sua grosseria e sua facilidade me tentaram. (A circunstância de que se jogavam cartas aumentava o contraste.) Pedi uma aguardente de laranja; de troco, deram-me o Zahir; olhei-o por um instante; saí à rua, talvez com um princípio de febre. Pensei que não existe moeda que não seja símbolo das moedas que resplandecem interminavelmente na história e na fábula. Pensei no óbolo de Caronte; no óbolo que Belisário pediu; nos trinta dinheiros de Judas; nas draemas da cortesã Laís; na antiga moeda que ofereceu um dos adormecidos de Éfeso; nas claras moedas do feiticeiro das Mil e Uma Noites, que depois eram círculos de papel; no denário inesgotável de Isaac Laquedem; nas sessenta mil peças de prata, uma para cada verso de uma epopéia, as quais Firdusi devolveu a um rei por não serem de ouro; na onça de ouro que Ahab fez cravar no mastro; no florim irreversível de Leopold Bloom; no luís cuja efígie denunciou, perto de Varennes, o fugitivo Luís XVI. Como num sonho, o pensamento de que toda moeda permite essas ilustres conotações pareceu-me de imensa, se bem que inexplicável, importância. Percorri, com crescente velocidade, as ruas e as praças desertas. O cansaço me deixou numa esquina. Vi uma gasta grade; por trás, vi os ladrilhos negros e brancos do átrio da Concepción. Errara em círculo; agora estava a uma quadra do armazém onde me deram o Zahir.Dobrei; a esquina escura me indicou, de longe, que o armazém estava fechado. Na rua Belgrano tomei um táxi.656657O ALEPHInsone, possesso, quase feliz, pensei que não existe nada menos material que o dinheiro, já que qualquer moeda (uma moeda de vinte centavos, digamos) é, a rigor, um repertório de futuros possíveis. O dinheiro é abstrato, repeti, o dinheiro é tempo futuro. Pode ser uma tarde nos arredores, pode ser música de Brahms, pode ser mapas, pode ser xadrez, pode ser café, pode ser as palavras de Epicteto, que ensinam o desprezo pelo ouro; é um Proteu mais versátil que o da ilha de Faros. E tempo imprevisível, tempo de Bergson, não duro tempo do Islã ou do Pórtico. Os deterministas negam que haja no mundo um único fato possível, id est um fato que pôde acontecer; uma moeda simboliza nosso livre-arbítrio. (Não suspeitava eu que esses "pensamentos" eram um artifício contra o Zahir e uma primeira forma de sua demoníaca influência.) Dormi após tenazes cavilações, mas sonhei que eu era as moedas que um grifo custodiava.No dia seguinte, decidi que tinha estado bêbado. Também resolvi livrar-me da moeda que tanto me inquietava. Olhei-a: nada tinha de particular, a não ser algumas ranhuras. Enterrála no jardim ou escondê-la num canto da biblioteca teria sido o melhor, mas eu queria distanciar-me de sua órbita. Preferi perdê-la. Não fui ao

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Pilar, essa manhã, nem ao cemitério; fui, de metrô, a Constitución e de Constitución a San Juan e Boedo. Saltei, impensadamente, em Urquiza; dirigi-me ao oeste e ao sul; baralhei, com desordem estudada, umas quantas esquinas e, numa rua que me pareceu igual a todas, entrei num botequim qualquer, pedi uma caninha e paguei-a com o Zahir. Entrecerrei os olhos, por trás das lentes esfumadas; consegui não ver os números das casas nem o nome da rua. Essa noite, tomei uma pastilha de veronal e dormi tranqüilo.Até fins de junho, distraiu-me a tarefa de compor um conto fantástico. Ele encerra duas ou três perífrases enigmáticas - em lugar de sangue, traz água da espada; em lugar de ouro, leito da serpente - e está escrito em primeira pessoa. O narradoré um asceta que renunciou ao trato com os homens e vive numa espécie de páramo. (Gnitaheidr é o nome desse lugar.) Dada a candura e a simplicidade de sua vida, há os que o julgam um anjo; isso é um piedoso exagero, pois não existe homem que esteja livre de culpa. Sem ir mais longe, ele mesmo degolou seu pai; é bem verdade que este era umo ZAHIRfamoso feiticeiro que se apoderara, por artes mágicas, de um tesouro infinito. Resguardar o tesouro da insana cobiça dos humanos é a missão a que dedicou sua vida; dia e noite vela sobre ele. Rápido, talvez demasiadamente rápido, essa vigília terá fim: as estrelas disseram-lhe que já se forjou a espada que a decepará para sempre. (firam é o nome dessa espada.) Num estilo cada vez mais tortuoso, pondera o brilho e a flexibilidade de seu corpo; em algum parágrafo, fala distraidamente de escamas; em outro, diz que o tesouro que guarda é de ouro fulgurante e de anéis vermelhos. No final, entendemos que o asceta é a serpente Fafnir e o tesouro em que jaz, o dos Nibelungos. A aparição de Sigurd corta bruscamente a história.Disse que a execução dessa ninharia (em cujo decurso intercalei, pseudo-eruditamente, algum verso da F#nismdO permitiume esquecer a moeda. Noites houve em que me acreditei tão seguro de poder esquecê-la que voluntariamente a recordava. O certo é que abusei desses momentos; dar-lhes início resultava mais fácil que lhes dar fim. Em vão repeti que esse abominável disco de níquel não diferia dos outros que passam de uma para outra mão, iguais, infinitos e inofensivos. Impelido por essa reflexão, procurei pensar em outra moeda, mas não pude. Também me lembro de alguma experiência, frustrada, com cinco e dez centavos chilenos e com um vintém oriental. Em 16 de julho, adquiri uma libra esterlina; não a olhei durante o dia, mas nessa noite (e outras) coloquei-a sob uma lente de aumento e estudeia à luz de uma poderosa lâmpada elétrica. Depois, desenhei-a com um lápis, através de um papel. De nada me valeram o fulgor e o dragão e São Jorge; não consegui livrar-me da idéia fixa.No mês de agosto, optei por consultar um psiquiatra. Não lhe confiei toda a minha ridícula história; disse-lhe que a insônia me atormentava e que a imagem de um objeto qualquer costumava perseguir-me; a de uma ficha ou a de uma moeda, digamos... Pouco depois, exumei em uma livraria da ruaSarmiento um exemplar de Urkunden zur Geschichte der Zahirsage(Breslau, 1899), de Julius Barlach.Naquele livro estava declarado meu mal. Segundo o prólogo, o autor se propôs "reunir em um único volume em legível oitavo-maior todos os documentos que se referem à superstição do Zahir, inclusive quatro peças pertencentes ao arquivo de Habicht e o manuscrito original do relatório de658659

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O ALEPHPhilip Meadows Taylor". A crença no Zahir é islâmica e data, ao que parece, do século XVIII. (Barlach impugna as passagens que Zotenberg atribui a Abulfeda.) Zahir, em árabe, quer dizer evidente, visível; em tal sentido, é um dos noventa e nove nomes de Deus; a plebe, em terras muçulmanas, chama-o de "os seres ou coisas que têm a terrível virtude de ser inolvidáveis e cuja imagem acaba por enlouquecer as pessoas". O primeiro testemunho incontrovertido é o do persa Lutf Ali Azur. Nas derradeiras páginas da enciclopédia biográfica intitulada Templo do Fogo, esse polígrafo e dervixe narrou que, num colégio de Shiraz, houve um astrolábio de cobre, "construído de tal modo que quem o olhasse uma vez não pensava em outra coisa e assim o rei ordenou que o atirassem no mais profundo do mar, para que os homens não se esquecessem do universo". Mais extenso é o relatório de Meadows Taylor, que serviu ao soberano de Haidarabad e compôs a famosa novela Confessions of a Thug. Por volta de 1832, Taylor ouviu nos arrabaldes de Bhuj a estranha locução "Ter visto o Tigre" (Verily he has looked on the Tiger) para significar a loucura ou a santidade. Disseramlhe que a referência era a um tigre mágico, que foi a perdição de quantos o viram, mesmo de muito longe, pois todos continuaram pensando nele até o fim de seus dias. Alguém disse que um desses desventurados fugira para Mysore, onde pintara num palácio a figura do tigre. Anos depois, Taylor visitou os cárceres desse reino; no de Nithur, o governador lhe mostrou uma cela em cujo piso, em cujos muros e em cuja abóbada um faquir muçulmano desenhara (em bárbaras cores que o tempo, em vez de apagar, delineava) uma espécie de tigre infinito. Esse tigre estava feito de muitos tigres, de vertiginosa maneira; atravessavam-no tigres, estava raiado de tigres, incluía mares e Himalaias e exércitos que pareciam outros tigres. O pintor morrera, havia anos, nessa mesma cela; vinha de Sind ou talvez de Guzerat e seu propósito inicial fora traçar um mapa-múndi. Desse propósito restavam vestígios na monstruosa imagem. Taylor narrou a história a Muhammad Al-Yemeni, de Fort William; este lhe disse que não havia criatura no mundo que não se inclinasse para Zaheer," mas que o Todo-Misericordioso não deixa que duas coisas o sejam ao mesmo tempo, já que uma

1 Assim escreve Taylor essa palavra.O ZAHIRsó pode fascinar multidões. Disse que sempre existe um Zahir e que na Idade da Ignorância foi o ídolo que se chamou Yauq e depois um profeta do Kurassan, que usava um véu recamado de pedras ou uma máscara de ouro." Disse também que Deus é inescrutável.Muitas vezes li a monografia de Barlach. Não decifro quais foram meus sentimentos; recordo o desespero quando compreendi que já nada me salvaria, o intrínseco alívio de saber que eu não era culpado de minha desdita, a inveja que me deram aqueles homens cujo Zahir não foi uma moeda mas um pedaço de mármore ou um tigre. Que empresa fácil não pensar num tigre, refleti. Também me lembro da inquietude singular com que li este parágrafo: "Um comentador do Gulshan i Raz diz que quem viu o Zahir logo verá a Rosa e cita um verso interpolado no Asmr Nama (Livro de Coisas que se Ignoram), de Attar: o Zahir é a sombra da Rosa e a rasgadura do Véu".Na noite em que velaram Teodelina, surpreendeu-me não ver entre os presentes a senhora de Abascal, sua irmã mais moça. Em outubro, uma sua amiga me disse:- Pobre Julita, ficou tão estranha que a internaram no Bosch. Como não estará estafando as enfermeiras que lhe dão comida na boca! Continua obcecada pela moeda, idêntica ao chau ffeur de Morena Sackmann.

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O tempo, que atenua as lembranças, agrava a do Zahir. Antes, eu imaginava o anverso e depois o reverso; agora, vejo simultaneamente os dois. Isso não ocorre como se fosse de cristal o Zahir, pois uma face não se superpõe à outra; ocorre, isso sim, como se a visão fosse esférica e o Zahir sobressaísse no centro. O que não é o Zahir me chega depurado e como que distante: a desdenhosa imagem de Teodelina, a dor física. Disse Tennyson que, se pudéssemos compreender uma única flor, saberíamos quem somos e o que é o mundo. Talvez quisesse dizer que não existe fato, por humilde que seja, que não implique a história universal e sua infinita concatenação de efeitos e causas. Talvez quisesse dizer que o mundo visível se dá inteiro em cada representação, da mesma maneira que a2 Barlach observa que Yauq figura no Corão (71, 23) e que o profeta é AI-Moganna (O Velado) e que ninguém, com exceção do surpreendente correspondente de Philip Meadows Taylor, vinculou-os ao Zahir.66166Oo ALEPHvontade, segundo Schopenhauer, se dá inteira em cada indivíduo. Os cabalistas entenderam que o homem é um microcosmo, um simbólico espelho do universo; tudo, segundo Tennyson, o seria. Tudo, até o intolerável Zahir.Antes de 1948, o destino de Julia talvez já tenha me atingido. Terão de alimentar-me e vestir-me, não saberei se é tarde ou manhã, não saberei quem foi Borges. Qualificar de terrível esse futuro é uma falácia, já que nenhuma de suas circunstâncias terá significado para mim. Tanto valeria sustentar que é terrível a dor de um anestesiado a quem abrem o crânio. Já não perceberei o universo, perceberei o Zahir. Segundo a doutrina idealista, os verbos viver e sonhar são rigorosamente sinônimos; de milhares de aparências, passarei a uma; de um sonho muito complexo a um sonho muito simples. Outros sonharão que estou louco, e eu com o Zahir. Quando todos os homens da terra pensarem, dia e noite, no Zahir, qual será um sonho e qual uma realidade, a terra ou o Zahir?Nas horas desertas da noite ainda posso caminhar pelas ruas. A aurora costuma surpreender-me num banco da praça Garay, pensando (procurando pensar) naquela passagem do Asrar Nama, na qual se diz que o Zahir é a sombra da Rosa e a rasgadura do Véu. Vinculo essa opinião a esta notícia: para perder-se em Deus, os sufis repetem seu próprio nome ou os noventa e nove nomes divinos até que eles já nada querem dizer. Eu desejo percorrer esse caminho. Talvez acabe por gastar o Zahir à força de pensar e repensar nele; talvez, por trás da moeda, esteja Deus.Para Wally Zenner.A ESCRITA DO DEUSO cárcere é profundo e de pedra; sua forma, a de um hemisfério quase perfeito, embora o piso (também de pedra) seja algo menor que um círculo máximo, fato que de algum modo agrava os sentimentos de opressão e de grandeza. Um muro corta-o pelo meio; este, apesar de altíssimo, não toca a parte superior da abóbada; de um lado estou eu, Tzinacan, mago da pirâmide de Qaholom, que Pedro de Alvarado incendiou; do outro há um jaguar, que mede com secretos passos iguais o tempo e o espaço do cativeiro. Ao nível do chão, uma ampla janela com barrotes corta o muro central. Na hora sem sombra [o meio-dia], abre-se um alçapão no alto e um carcereiro que foram apagando os anos manobra uma roldana de ferro e nos baixa, na ponta de um cordel, cântaros com água e pedaços de carne. A luz entra na abóbada; nesse instante posso ver o jaguar.Perdi o número dos anos que estou na trevas eu, que uma vez fui jovem e podia caminhar por esta prisão, não faço outra coisa senão aguardar, na postura de minha

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morte, o fim que me destinam os deuses. Com a profunda faca de pedernal abri o peito das vítimas e agora não poderia, sem magia, levantar-me do pó.Na véspera do incêndio da Pirâmide, os homens que desceram de altos cavalos me castigaram com metais ardentes para que revelasse o lugar de um tesouro escondido. Abateram, diante de meus olhos, o ídolo do deus, mas este não me abandonou e me mantive silencioso entre os tormentos. Laceraramme, quebraram-me, deformaram-me e depois acordei neste cárcere, que não mais deixarei em minha vida mortal.Premido pela fatalidade de fazer algo, de povoar de algum modo o tempo, quis recordar, em minha sombra, tudo o que sabia. Noites inteiras desperdicei em recordar a ordem e o número de algumas serpentes de pedra ou a forma de uma662663O ALEPHárvore medicinal. Assim fui debelando os anos, assim fui entrando na posse do que já era meu. Uma noite, senti que me aproximava de uma lembrança precisa; antes de ver o mar, o viajante sente uma agitação no sangue. Horas depois, comecei a avistar a lembrança; era uma das tradições do deus. Este, prevendo que no fim dos tempos ocorreriam muitas desventuras e ruínas, escreveu no primeiro dia da Criação uma sentença mágica, capaz de conjurar esses males. Escreveu-a de maneira que chegasse às mais distantes gerações e que não a tocasse o azar. Ninguém sabe em que ponto a escreveu nem com que caracteres, mas consta-nos que perdura, secreta, e que a lerá um eleito. Considerei que estávamos, como sempre, no fim dos tempos e que meu destino de último sacerdote do deus me daria acesso ao privilégio de intuir essa escrita. O fato de que me rodeasse uma prisão não me vedava essa esperança; talvez eu tivesse visto milhares de vezes a inscrição de Qaholom e só me faltasse entendê-la.Essa reflexão me animou e logo me infundiu uma espécie de vertigem. No âmbito da terra existem formas antigas, formas incorruptíveis e eternas; qualquer uma delas podia ser o símbolo procurado. Uma montanha podia ser a palavra do deus, ou um rio ou o império ou a configuração dos astros. Mas no curso dos séculos as montanhas se aplainam e o caminho de um rio costuma desviar-se e os impérios conhecem mutações e estragos e a figura dos astros varia. No firmamento há mudança. A montanha e a estrela são indivíduos e os indivíduos caducam. Procurei algo mais tenaz, mais invulnerável. Pensei nas gerações dos cereais, dos pastos, dos pássaros, dos homens. Talvez em minha face estivesse escrita a magia, talvez eu mesmo fosse o fim de minha procura. Estava nesse afã quando recordei que o jaguar era um dos atributos do deus.Então minha alma se encheu de piedade. Imaginei a primeira manhã do tempo, imaginei meu deus confiando a mensagem à pele viva dos jaguares, que se amariam e se gerariam eternamente, em cavernas, em canaviais, em ilhas, para que os últimos homens a recebessem. Imaginei essa rede de tigres, esse quente labirinto de tigres, causando horror aos prados e aos rebanhos para conservar um desenho. Na outra cela havia um jaguar; em sua proximidade percebi uma confirmação de minha conjetura e um secreto favor.A ESCRITA Do DEUSDediquei longos anos a aprender a ordem e a configuração das manchas. Cada cega jornada me concedia um instante de luz, e assim pude fixar na mente as negras formas que riscavam a pelagem amarela. Algumas incluíam pontos; outras formavam raias transversais na face interior das pernas; outras, anulares, se repetiam. Talvez fossem um mesmo som ou uma mesma palavra. Muitas tinham bordas vermelhas.

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Não falarei das fadigas de meu labor. Mais de uma vez gritei à abóbada que era impossível decifrar aquele texto. Gradualmente, o enigma concreto que me atarefava me inquietou menos que o enigma genérico de uma sentença escrita por um deus. Que tipo de sentença (perguntei-me) construirá uma mente absoluta? Considerei que mesmo nas linguagens humanas não existe proposição que não implique o universo inteiro; dizer o tigre é dizer os tigres que o geraram, os cervos e tartarugas que ele devorou, o pasto de que se alimentaram os cervos, a terra que foi mãe do pasto, o céu que deu luz à terra. Considerei que na linguagem de um deus toda palavra enunciaria essa infinita concatenação dos fatos, e não de um modo implícito, mas explícito, e não de um modo progressivo, mas imediato. Com o tempo, a noção de uma sentença divina pareceu-me pueril ou blasfematória. Um deus, refleti, só deve dizer uma palavra e nessa palavra a plenitude. Nenhuma palavra articulada por ele pode ser inferior ao universo ou menos que a soma do tempo. Sombras ou simulacros dessa palavra, que equivale a uma linguagem e a quanto pode compreender uma linguagem, são as ambiciosas epobres palavras humanas, tudo, mundo, umvverso.Um dia ou uma noite - entre meus dias e minhas noites que diferença existe? - sonhei que no chão do cárcere havia um grão de areia. Voltei a dormir, indiferente; sonhei que despertava e que havia dois grãos de areia. Voltei a dormir; sonhei que os grãos de areia eram três. Foram, assim, multiplicando-se até encher o cárcere e eu morria sob esse hemisfério de areia. Compreendi que estava sonhando; com enorme esforço, despertei. O despertar foi inútil; a inumerável areia me sufocava. Alguém me disse: "Não despertaste para a vigília, mas para um sonho anterior. Esse sonho está dentro de outro, e assim até o infinito, que é o número dos grãos de areia. O caminho que terás de desandar é interminável e morrerás antes de haver despertado realmente".664665O ALEPHA ESCRITA DO DEUSSenti-me perdido. A areia me enchia a boca, mas gritei: "Nenhuma areia sonhada pode matar-me, nem existem sonhos dentro de sonhos". Um resplendor me despertou. Na treva superior desenhava-se um círculo de luz. Vi a face e as mãos do carcereiro, a roldana, o cordel, a carne e os cântaros.Um homem se confunde, gradualmente, com a forma de seu destino; um homem é, afinal, suas circunstâncias. Mais que um decifrador ou um vingador, mais que um sacerdote do deus, eu era um encarcerado. Do incansável labirinto de sonhos regressei, como à minha casa, à dura prisão. Bendisse sua umidade, bendisse seu tigre, bendisse a fresta de luz, bendisse meu velho corpo dolorido, bendisse a treva e a pedra.Então ocorreu o que não posso esquecer nem comunicar. Ocorreu a união com a divindade, com o universo (não sei se estas palavras diferem). O êxtase não repete seus símbolos; há quem tenha visto Deus num resplendor, há quem o tenha percebido numa espada ou nos círculos de uma rosa. Eu vi uma Roda altíssima, que não estava diante de meus olhos, nem atrás, nem nos lados, mas em todas as partes, a um só tempo. Essa Roda estava feita de água, mas também de fogo, e era (embora se visse a borda) infinita. Entretecidas, formavam-na todas as coisas que serão, que são e que foram, e eu era um fio dessa trama total, e Pedro de Alvarado, que me atormentou, era outro. Ali estavam as causas e os efeitos e me bastava ver essa Roda para entender tudo, interminavelmente. Oh, felicidade de entender, maior que a de imaginar ou

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que a de sentir! Vi o universo e vi os íntimos desígnios do universo. Vi as origens que narra o Livro do Comum. Vi as montanhas que surgiram da água, vi os primeiros homens feitos de pau, vi as tinalhas que se voltaram contra os homens, vi os cães que lhes destroçaram os rostos. Vi o deus sem face que há por trás dos deuses. Vi infinitos processos que formavam uma só felicidade e, entendendo tudo, consegui também entender a escrita do tigre.É uma fórmula de catorze palavras casuais (que parecem casuais) e me bastaria dizê-la em voz alta para ser todopoderoso. Bastaria dizê-la para abolir este cárcere de pedra, para que o dia entrasse em minha noite, para ser jovem, para ser imortal, para que o tigre destroçasse Alvarado, para afundar o santo punhal em peitos espanhóis, para reconstruir apirâmide, para reconstruir o império. Quarenta sílabas, catorze palavras, e eu, Tzinacan, regeria as terras que Montezuma regeu. Mas eu sei que nunca direi essas palavras, porque não me lembro de Tzinacan.Que morra comigo o mistério que está escrito nos tigres. Quem entreviu o universo, quem entreviu os ardentes desígnios do universo não pode pensar num homem, em suas triviais venturas ou desventuras, mesmo que esse homem seja ele. Esse homem foi ele e agora não lhe importa. Que lhe importa a sorte daquele outro, que lhe importa a nação daquele outro, se ele agora é ninguém. Por isso não pronuncio a fórmula, por isso deixo que os dias me esqueçam, deitado na escuridão.

Para Ema Risso Platero.666667ABEN]ACAN, o BOKARI, MORTO EM SEU LABIRINTOABENJACAN, O BOKARI,

MORTO EM SEU LABIRINTO

...são comparáveis à aranha, que edifica uma casa.Alcorão, XXIX, 4O.- Esta - disse Dunraven com um grande gesto que não recusava as nubladas estrelas e que abarcava o negro páramo, o mar e um edifício majestoso e decrépito que parecia uma cavalariça deteriorada - é a terra de meus antepassados.Unwin, seu companheiro, tirou o cachimbo da boca e emitiu sons modestos e aprovadores. Era a primeira tarde do verão de 1914; fartos de um mundo sem a dignidade do perigo, os amigos apreciavam a solidão desses confins de Cornwall. Dunraven fomentava uma barba escura e se sabia autor de uma considerável epopéia que seus contemporâneos quase não poderiam escandir e cujo tema não lhe havia sido ainda revelado; Unwin publicara um estudo sobre o teorema que Fermat não escreveu à margem de uma página de Diofanto. Ambos - será preciso que o diga? - eram jovens, distraídos e apaixonados.- Fará um quarto de século - disse Dunraven - que Abenjacan, o Bokari, chefe ou rei de não sei que tribo nilótica, morreu no aposento central desta casa, pelas mãos de seu primo Zaid. Com o passar dos anos, as circunstâncias de sua morte continuam obscuras.Unwin perguntou por quê, docilmente.- Por diversas razões - foi a resposta. - Em primeiro lugar, esta casa é um labirinto. Em segundo lugar, vigiavamna um escravo e um leão. Em terceiro lugar, desvaneceu-se um tesouro secreto. Em quarto lugar, o assassino estava morto quando o assassinato ocorreu. Em quinto lugar...Unwin, cansado, o deteve.

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- Não multipliques os mistérios - disse. - Estes devem ser simples. Lembra a carta roubada de Poe, lembra o quarto fechado de Zangwill.- Ou complexos - replicou Dunraven. - Lembra o universo.Subindo colinas arenosas, haviam chegado ao labirinto. Este, de perto, pareceu-lhes uma direita e quase interminável parede, de tijolos sem reboco, pouco mais alta que um homem. Dunraven disse que tinha a forma de um círculo, mas tão extensa era sua área que não se percebia a curvatura. Unwin lembrou-se de Nicolau de Cusa, para quem toda linha reta é o arco de um círculo infinito... Por volta da meia-noite, descobriram uma arruinada porta, que dava para um cego e perigoso corredor. Dunraven disse que no interior da casa havia muitas encruzilhadas, mas que, dobrando sempre à esquerda, chegariam em pouco mais de uma hora ao centro da rede. Unwin assentiu. Os passos cautelosos ressoaram no solo de pedra; o corredor se bifurcou em outros mais estreitos. A casa parecia querer asfixiá-los, o teto era muito baixo. Tiveram de avançar um atrás do outro pela complicada treva. Unwin ia adiante. Embrutecido de asperezas e de ângulos, fluía sem fim contra sua mão o invisível muro. Unwin, lento na sombra, ouviu da boca de seu amigo a história da morte de Abenjacan.- Talvez a mais antiga de minhas lembranças - contou Dunraven - seja a de Abenjacan, o Bokari, no porto de Pentreath. Seguia-o um homem negro com um leão; sem dúvida o primeiro negro e o primeiro leão que meus olhos viram fora das gravuras da Escritura. Eu era então um menino, mas a fera da cor do sol e o homem da cor da noite me impressionaram menos que Abenjacan. Pareceu-me muito alto; era um homem de pele citrina, de entrecerrados olhos negros, de insolente nariz, de carnudos lábios, de barba açafroada, de peito forte, de andar seguro e silencioso. Em casa disse: "Chegou um rei num navio". Depois, com o trabalho dos pedreiros, ampliei esse título e pus-lhe o de Rei de Babel.A notícia de que o forasteiro iria fixar-se em Pentreath foi recebida com agrado; a extensão e a forma de sua casa, com espanto e até mesmo com escândalo. Pareceu intolerável que uma casa constasse de um único aposento e de léguas e léguas de corredores. "Entre os mouros são usadas tais casas, mas668669O ALEPHnão entre cristãos", diziam as pessoas. Nosso reitor, o senhor Allaby, homem de curiosa leitura, exumou a história de um rei a quem a Divindade castigou por ter erguido um labirinto e a divulgou do púlpito. Na segunda-feira, Abenjacan visitou a reitoria; os pormenores da breve entrevista não se conheceram então, mas nenhum sermão ulterior aludiu à soberba, e o mouro pôde contratar pedreiros. Anos depois, quando pereceu Abenjacan, Allaby declarou às autoridades a substância do diálogo.Abenjacan disse-lhe, de pé, estas ou parecidas palavras: "Ninguém mais pode censurar o que faço. As culpas que me infamam são tais que, mesmo que eu repetisse durante séculos o último Nome de Deus, isso não bastaria para mitigar um só de meus tormentos; as culpas que me infamam são tais que, mesmo que eu o matasse com estas mãos, isso não agravaria os tormentos que me destina a infinita justiça. Em nenhuma terra é desconhecido o meu nome; sou Abenjacan, o Bokari, e regi as tribos do deserto com um cetro de ferro. Durante muitos anos, despojei-as, com assistência de meu primo Zaid, mas Deus ouviu seu clamor e permitiu que se rebelassem. Minha família foi rasgada e esfaqueada; eu consegui fugir com o tesouro arrecadado em meus anos de espoliação. Zaid guiou-me ao sepulcro de um santo, ao pé de uma montanha de pedra. Ordenei a meu escravo que vigiasse a frente do deserto; Zaid e eu dormimos, exaustos. Nessa noite, acreditei que me aprisionava uma rede de serpentes. Despertei

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com horror; a meu lado, ao amanhecer, dormia Zaid; o roçar de uma teia de aranha em minha carne me fizera sonhar aquele sonho. Desgostou-me que Zaid, um covarde, dormisse tão tranqüilamente. Considerei que o tesouro não era infinito e que ele podia reclamar uma parte. Em meu cinto estava a adaga com a empunhadura de prata; desnudei-a e atravesseilhe a garganta. Em sua agonia, ele balbuciou algumas palavras que não pude entender. Olhei-o; estava morto, mas temi que se levantasse e ordenei ao escravo que lhe desfizesse o rosto com uma pedra. Depois erramos sob o céu e um dia divisamos um mar. Sulcavam-no navios muito altos; refleti que um morto não poderia andar pela água e decidi procurar outras terras. Na primeira noite que navegamos, sonhei que eu matava Zaid. Tudo se repetiu mas eu entendi suas palaABENJACAN, o BOKARI, MORTO EM SEU LABIRINTOuras. Dizia: "Como agora me apagas, eu te apagarei, onde quer que estejas". Jurei frustrar essa ameaça; ficarei oculto no centro de um labirinto para que seu fantasma se perca".Dito isso, foi embora. Allaby tratou de pensar que o mouro estava louco e que o absurdo labirinto era símbolo e claro testemunho de sua loucura. Depois refletiu que essa explicação condizia com o extravagante edifício e com o extravagante relato, não com a enérgica impressão que deixava o homem Abenjacan. Talvez tais histórias fossem comuns nos areais egípcios, talvez tais estranhezas correspondessem (como os dragões de Plínio) menos a uma pessoa que a uma cultura... Allaby, em Londres, reviu números atrasados do Times; comprovou a verdade da rebelião e de uma subseqüente derrota do Bokari e de seu vizir, que tinha fama de covarde.Aquele, tão logo os pedreiros concluíram a obra, instalouse no centro do labirinto. Não o viram mais no povoado; por vezes, Allaby temeu que Zaid já o tivesse encontrado e aniquilado. Durante as noites, o vento nos trazia o rugido do leão, e as ovelhas do redil se aconchegavam com um antigo medo.Costumavam ancorar na pequena baía, rumo a Cardiff ou a Bristol, navios de portos orientais. O escravo descia do labirinto (que então, estou lembrado, não era rosado, mas de cor carmesim) e trocava palavras africanas com as tripulações e parecia procurar entre os homens o fantasma do vizir. Dizia-se que tais embarcações traziam contrabando, e se de álcoois ou marfins proibidos, por que não, também, de sombras de mortos?Aos três anos da construção da casa, ancorou ao pé das colinas o Rose of Sharon. Não fui dos que viram esse veleiro e talvez na imagem que tenho dele influam esquecidas litografias de Aboukir ou de Trafalgar, mas acho que era desses barcos muito trabalhados que não parecem obra de armador mas de carpinteiro e menos de carpinteiro que de ebanista. Era (se não na realidade, em meus sonhos) polido, escuro, silencioso e veloz, e o tripulavam árabes e malaios.Ancorou ao amanhecer de um dos dias de outubro. Ao entardecer, Abenjacan irrompeu na casa de Allaby. Dominavao a paixão do terror; apenas pôde articular que Zaid já tinha entrado no labirinto e que seu escravo e seu leão haviam perecido. Perguntou com seriedade se as autoridades poderiam ampará-lo. Antes que Allaby respondesse, saiu, como se o67O671O ALEPHarrebatasse o mesmo terror que o havia trazido a essa casa, pela segunda e última vez. Allaby, sozinho em sua biblioteca, pensou com espanto que esse temeroso oprimira no Sudão tribos de ferro, e sabia o que é uma batalha e o que é matar. Observou, no outro dia, que já havia zarpado o veleiro (rumo a Suakin, no mar Vermelho, averiguou-se

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depois). Refletiu que seu dever era comprovar a morte do escravo e dirigiu-se ao labirinto. O arquejante relato do Bokari pareceu-lhe fantástico, mas em um ângulo das galerias deu com o leão, e o leão estava morto, e em outro, com o escravo, que estava morto, e no aposento central com o Bokari, a quem haviam destroçado o rosto. Aos pés do homem havia uma arca marchetada de nácar; alguém forçara a fechadura e não restava uma única moeda.Os períodos finais, agravados por pausas oratórias, procuravam ser eloqüentes; Unwin adivinhou que Dunraven os pronunciara muitas vezes, com idêntico aprumo e com idêntica ineficácia. Perguntou, para simular interesse:- Como morreram o leão e o escravo?A incorrigível voz respondeu com sombria satisfação:- Também lhes destroçaram o rosto.Ao ruído dos passos juntou-se o ruído da chuva. Unwin pensou que teriam de dormir no labirinto, no aposento central do relato, e que na lembrança essa longa incomodidade seria uma aventura. Guardou silêncio; Dunraven não pôde conterse e perguntou, como quem não perdoa uma dívida:- Não é inexplicável esta história?Unwin respondeu, como se pensasse em voz alta:- Não sei se é explicável ou inexplicável. Sei que é mentira.Dunraven prorrompeu em palavrões e invocou o testemunho do filho mais velho do reitor (Allaby, parece, havia morrido) e de todos os vizinhos de Pentreath. Não menos atônito que Dunraven, Unwin desculpou-se. O tempo, na escuridão, parecia mais longo; os dois temeram haver perdido o caminho e estavam muito cansados quando uma tênue claridade superior lhes mostrou os degraus iniciais de uma estreita escada. Subiram e chegaram a um arruinado quarto redondo. Dois sinais perduravam do medo do malfadado rei: uma estreita janela que dominava os páramos e o mar e no chão um alçapão que se abria sobre a curva da escada. O quarto, embora espaçoso, tinha muito de cela carcerária.672ABENJACAN, o BOKARI, MORTO EM SEU LABIRINTOMenos instados pela chuva que pelo afã de viver para rememorar e contar, os amigos passaram a noite no labirinto. O matemático dormiu com tranqüilidade, o que não aconteceu com o poeta, acossado por versos que sua razão julgava detestáveis:

Faceless the sultry and overpowering liou, Faceless the stricken slave, faceless the king.

Unwin acreditava que não lhe interessara a história da morte do Bokari, mas acordou com a convicção de havê-la decifrado. Todo aquele dia esteve preocupado e esquivo, ajustando e reajustando as peças, e duas noites depois se reuniu com Dunraven em uma cervejaria de Londres e disse-lhe estas ou parecidas palavras:- Em Cornwall disse que era mentira a história que ouvi de ti. Os fatos eram certos, ou poderiam sê-lo, mas contados como tu os contaste eram, de modo manifesto, mentiras. Começarei pela maior mentira de todas, pelo labirinto inacreditável. Um fugitivo não se oculta num labirinto. Não ergue um labirinto sobre um alto lugar da costa, um labirinto carmesim que os marinheiros avistam de longe. Não precisa erguer um labirinto, quando o universo já o é. Para quem verdadeiramente quer ocultar-se, Londres é melhor labirinto que um observatório para o qual se dirigem todos os corredores de um edifício. A sábia reflexão que agora te submeto foi-me concedida anteontem à noite, enquanto ouvíamos chover sobre o labirinto e esperávamos que o sono nos visitasse; advertido e esclarecido por ela, optei por esquecer teus absurdos

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e pensar em algo sensato.- Na teoria dos conjuntos, digamos, ou numa quarta dimensão do espaço - observou Dunraven.- Não - disse Unwin com seriedade. - Pensei no labirinto de Creta. O labirinto cujo centro era um homem com cabeça de touro.Dunraven, versado em obras policiais, pensou que a solução do mistério sempre é inferior ao mistério. O mistério participa do sobrenatural e até mesmo do divino; a solução, da prestidigitação. Disse, para retardar o inevitável:- Cabeça de touro tem em medalhas e esculturas o minotauro. Dante imaginou-o com o corpo de touro e cabeça de homem.673O ALEPH- Também essa versão me convém - assentiu Unwin. - O que importa é a correspondência da casa monstruosa com o habitante monstruoso. O minotauro justifica de sobra a existência do labirinto. Ninguém dirá o mesmo de uma ameaça percebida em um sonho. Evocada a imagem do minotauro (evocação fatal num caso em que existe um labirinto), o problema, virtualmente, estava resolvido. No entanto, confesso não ter entendido que essa antiga imagem fosse a chave e, assim, foi necessário que teu relato me oferecesse um símbolo mais preciso: a teia de aranha.- A teia de aranha? - repetiu Dunraven, perplexo.- Sim. Não me espantaria nada que a teia de aranha (a forma universal da teia de aranha, entendamos bem, a teia de aranha de Platão) tivesse sugerido ao assassino (porque há um assassino) seu crime. Lembrarás que o Bokari, em uma tumba, sonhou com uma rede de serpentes e que, ao despertar, descobriu que uma teia de aranha lhe sugerira aquele sonho. Voltemos a essa noite em que o Bokari sonhou com uma rede. O rei vencido e o vizir e o escravo fogem pelo deserto com um tesouro. Refugiam-se em uma tumba. Dorme o vizir, de quem sabemos que é um covarde; não dorme o rei, de quem sabemos que é um valente. O rei, para não compartilhar o tesouro com o vizir, mata-o com uma facada; a sombra dele ameaça-o num sonho, noites depois. Tudo isto é inacreditável; entendo que os fatos ocorreram de outra maneira. Nessa noite dormiu o rei, o valente, e velou Zaid, o covarde. Dormir é distrair-se do universo, e a distração é difícil para quem sabe que o perseguem com espadas nuas. Zaid, ávido, inclinou-se sobre o sono de seu rei. Pensou em matá-lo (quem sabe até brincou com o punhal), mas não se atreveu. Chamou o escravo, ocultaram parte do tesouro na tumba, fugiram para Suakin e para a Inglaterra. Não com o fim de ocultar-se do Bokari, mas para atraí-lo e matá-lo, construiu à vista do mar o alto labirinto de muros vermelhos. Sabia que os navios levariam aos portos da Núbia a fama do homem vermelho, do escravo e do leão, e que, cedo ou tarde, o Bokari viria procurá-lo em seu labirinto. No último corredor da rede esperava o alçapão. O Bokari desprezava-o infinitamente; não se rebaixaria a tomar a menor precaução. O dia ansiado chegou; Abenjacan desembarcou na Inglaterra, caminhou até a porta do labirinto, atravessou os674ABENJACAN, o BOKARI, MORTO EM SEU LABIRINTOcegos corredores e já havia pisado talvez os primeiros degraus quando seu vizir o matou do alçapão, não sei se com um balaço. O escravo mataria o leão e outro balaço mataria o escravo. Em seguida, Zaid desfez os três rostos com uma pedra. Teve que agir assim; um só morto com a face desfeita teria sugerido um problema de identidade, mas a fera, o negro e o rei formavam uma série e, dados os dois termos iniciais, todos postulariam o último. Não é estranho que estivesse dominado pelo temor quando falou com Allaby; acabava de executar a horrível tarefa e se dispunha a fugir da Inglaterra para recuperar o tesouro.

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Um silêncio pensativo, ou incrédulo, seguiu-se às palavras de Unwin. Dunraven pediu outro copo de cerveja preta antes de opinar.- Aceito - disse - que meu Abenjacan seja Zaid. Tais metamorfoses, vais dizer, são clássicos artifícios do gênero, são verdadeiras convenções cuja observância exige o leitor. O que resisto a admitir é a conjetura de que uma porção do tesouro ficasse no Sudão. Lembra que Zaid fugia do rei e dos inimigos do rei; mais fácil é imaginá-lo roubando todo o tesouro do que se demorando em enterrar uma parte. Talvez não se encontrassem moedas por não restarem moedas; os pedreiros teriam esgotado um caudal que, ao contrário do ouro vermelho dos Nibelungos, não era infinito. Teríamos assim Abenjacan atravessando o mar para reclamar um tesouro dilapidado.- Dilapidado, não - disse Unwin. - Investido em armar em terra de infiéis uma grande armadilha circular de tijolo destinada a prendê-lo e aniquilá-lo. Zaid, se tua conjetura é correta, procedeu premido pelo ódio e pelo temor e não pela cobiça. Roubou o tesouro e depois compreendeu que não era o essencial para ele. O essencial era que Abenjacan perecesse. Simulou ser Abenjacan, matou Abenjacan e finalmente foiAbenjacan.- Sim - confirmou Dunraven. - Foi um vagabundo que, antes de ser ninguém na morte, recordaria ter sido um rei ou ter fingido ser um rei, algum dia.675OS DOIS REIS E OS DOIS LABIRINTOS"Contam os homens dignos de fé (porém Alá sabe mais) que nos primeiros dias houve um rei das ilhas da Babilônia que reuniu arquitetos e magos e ordenou-lhes a construção de labirinto tão surpreendente e sutil que os varões mais prudentes não se aventuravam a entrar, e os que entravam se perdiam. Essa obra era um escândalo, pois a confusão e a maravilha são operações próprias de Deus e não dos homens. Com o correr do tempo, veio a sua corte um rei dos árabes, e o rei da Babilônia (para zombar da simplicidade de seu hóspede) fez com que ele penetrasse no labirinto, onde vagueou humilhado e confuso até o fim da tarde. Implorou então o socorro divino e deu com a porta. Seus lábios não proferiram queixa nenhuma, mas disse ao rei da Babilônia que ele tinha na Arábia outro labirinto e, se Deus quisesse, lho daria a conhecer algum dia. Depois regressou à Arábia, juntou seus capitães e alcaides e arrasou os reinos da Babilônia com tão venturosa sorte que derrubou seus castelos, dizimou sua gente e fez prisioneiro o próprio rei. Amarrou-o sobre um camelo veloz e levou-o para o deserto. Cavalgaram três dias, e lhe disse: "Oh, rei do tempo e substância e símbolo do século, na Babilônia, quiseste que me perdesse num labirinto de bronze com muitas escadas, portas e muros; agora o Poderoso achou por bem que eu te mostre o meu, onde não há escadas a subir, nem portas a forçar, nem cansativas galerias a percorrer, nem muros que te vedem os passos".Em seguida, desatou-lhes as amarras e o abandonou no meio do deserto, onde morreu de fome e de sede. A glória esteja com Aquele que não morre.1 Esta é a história que o reitor comentou do púlpito. Ver a página 67O.676A ESPERAA carruagem deixou-o no quatro mil e quatro dessa rua do Noroeste. Não tinha dado as nove da manhã; o homem percebeu com aprovação os manchados plátanos, o quadrado de terra ao pé de cada um, as respeitáveis casas com varandinha, a farmácia contígua, os desbotados losangos da loja de tintas e da ferraria. Um longo e compacto paredão de hospital fechava a calçada da frente; o sol reverberava, mais ao longe, em algumas estufas. O homem considerou que essas coisas (agora arbitrárias e casuais

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e em qualquer ordem, como as que se vêem nos sonhos) seriam com o tempo, se Deus quisesse, invariáveis, necessárias e familiares. Na vitrina da farmácia lia-se em letras de fôrma: Breslauer; os judeus estavam deslocando os italianos, que tinham deslocado os nativos. Melhor assim; o homem preferia não alternar com gente de seu sangue.O cocheiro ajudou-o a descer o baú; uma mulher de ar distraído ou cansado abriu por fim a porta. De seu assento, o cocheiro lhe devolveu uma das moedas, um vintém oriental que estava em seu bolso desde essa noite no hotel de Melo. O homem entregou-lhe quarenta centavos, e no ato ele sentiu: "Tenho obrigação de agir de maneira que todos se esqueçam de mim. Cometi dois erros: dei uma moeda de outro país e deixei ver que esse equívoco me interessa".Precedido pela mulher, atravessou o vestíbulo e o primeiro pátio. O quarto que lhe haviam reservado dava, felizmente, para o segundo andar. A cama era de ferro, que o artífice havia deformado em curvas fantásticas, representando ramos e pâmpanos; havia, ao mesmo tempo, um alto guardaroupa de pinho, uma mesa-de-cabeceira, uma estante com livros quase ao nível do chão, duas cadeiras díspares e um677O ALEPHlavatório com sua bacia, sua jarra, sua saboneteira e um garrafão de vidro escuro. Um mapa da província de Buenos Aires e um crucifixo adornavam as paredes; o papel era vermelho, com grandes pavões repetidos, de cauda desfraldada. A única porta dava para o pátio. Foi necessário mudar a posição das cadeiras para dar lugar ao baú. O inquilino aprovou tudo; quando a mulher lhe perguntou como se chamava, disse Villari, não como um desafio secreto, não para mitigar uma humilhação que, na verdade, não sentia, mas porque esse nome o perseguia, porque lhe foi impossível pensar em outro. Não o seduziu, certamente, o erro literário de imaginar que assumir o nome do inimigo pudesse ser uma astúcia.O senhor Villari, no início, não deixava a casa; passadas algumas semanas, começou a sair, por um instante, ao escurecer. Numa noite, entrou no cinema que havia a três quadras. Não passou nunca da última fila; sempre se levantava um pouco antes do fim da sessão. Viu trágicas histórias de bandidos; estas, sem dúvida, incluíam erros; estas, sem dúvida, incluíam imagens que também eram de sua vida anterior; Villari não os percebeu porque a idéia de uma coincidência entre a arte e a realidade lhe era alheia. Docilmente, procurava que as coisas lhe agradassem; queria adiantar-se à intenção com que elas lhe eram mostradas. Ao contrário dos que têm lido romances, ele não se via nunca a si mesmo como personagem da arte.Nunca lhe chegou uma carta, nem sequer uma circular, mas lia com confusa esperança uma das seções do jornal. À tarde, encostava na porta uma das cadeiras e mateava com seriedade, de olhos postos na trepadeira do muro do contíguo sobrado. Anos de solidão haviam-lhe ensinado que os dias, na memória, tendem a ser iguais, mas que não há um dia, nem mesmo de prisão ou de hospital, que não traga surpresas. Em outras reclusões cedera à tentação de contar os dias e as horas, mas esta reclusão era diferente, porque não tinha fim - a não ser que o jornal, numa manhã, trouxesse a notícia da morte de Alejandro Villari. Também era possível que Villari jd tivesse morrido e então esta vida seria um sonho. Essa possibilidade o inquietava, pois não chegou a entender se ela se parecia com alívio ou com desdita; disse a si mesmo que era absurda e a repeliu. Em dias longínquos, menos longínquos pelo passarA ESPERAdo tempo que por dois ou três fatos irrevogáveis, desejara muitas coisas, com amor sem escrúpulo; essa vontade poderosa, que movera o ódio dos homens e o amor de

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alguma mulher, já não queria coisas particulares: só queria perdurar, não concluir. O sabor da erva, o sabor do tabaco negro, o crescente fio de sombra que ia ganhando o pátio.Havia na casa um cachorro-lobo, já velho. Villari fez amizade com ele. Falava-lhe em espanhol, em italiano e nas poucas palavras que lhe ficaram do rústico dialeto de sua infância. Villari procurava viver no mero presente, sem lembranças nem previsões; as primeiras lhe importavam menos que as últimas. Vagamente acreditou intuir que o passado é a substância de que o tempo está feito; por isso é que este se torna logo passado. Sua fadiga, algum dia, pareceu-se com felicidade; em momentos assim, não era muito mais complexo que o cão.Numa noite, deixou-o assombrado e trêmulo uma íntima descarga de dor no fundo da boca. Esse horrível milagre ocorreu em poucos minutos e outra vez por volta do amanhecer. Villari, no dia seguinte, mandou buscar um carro que o deixou num consultório dentário do bairro do Once. Aí, arrancaramlhe o molar. Nesse transe, não esteve mais covarde nem mais tranqüilo que outras pessoas.Em outra noite, ao voltar do cinema, sentiu que o empurravam. Com ira, com indignação, com secreto alívio, encarou o insolente. Cuspiu-lhe uma injúria soez; o outro, atônito, balbuciou uma desculpa. Era um homem alto, jovem, de cabelo escuro, e o acompanhava uma mulher de tipo alemão; Villari, nessa noite, repetiu a si mesmo que não os conhecia. Entretanto, quatro ou cinco dias se passaram antes que saísse à rua.Entre os livros da estante havia uma Divina Comédia, com o velho comentário de Andreoli. Menos premido pela curiosidade que por um sentimento de dever, Villari atirou-se à leitura dessa obra capital; antes de comer, lia um canto, e a seguir, em ordem rigorosa, as notas. Não julgou inverossímeis ou excessivas as penas infernais e não pensou que Dante o tivesse condenado ao último círculo, onde os dentes de Ugolino roem eternamente a nuca de Ruggieri.Os pavões do papel carmesim pareciam destinados a alimentar pesadelos tenazes, mas o senhor Villari não sonhou678679o ALEPHnunca com um caramanchão monstruoso feito de inextricáveis pássaros vivos. Nos amanheceres sonhava um sonho de fundo igual e de circunstâncias variáveis. Dois homens e Villari entravam com revólveres no quarto ou o agrediam ao sair do cinema ou eram, os três ao mesmo tempo, o desconhecido que o havia empurrado, ou o esperavam tristemente no pátio e pareciam não o conhecer. No fim do sonho, ele tirava o revólver da gaveta da contígua mesa-de-cabeceira (e é verdade que nessa gaveta guardava um revólver) e o descarregava contra os homens. O estrondo da arma despertava-o, mas sempre era um sonho e em outro sonho o ataque se repetia e em outro sonho tinha que tornar a matá-los.Numa escura manhã do mês de julho, a presença de gente desconhecida (não o ruído da porta quando a abriram) despertou-o. Altos na penumbra do quarto, curiosamente simplificados pela penumbra (nos sonhos do temor sempre tinham sido mais claros), vigilantes, imóveis e pacientes, com os olhos baixos como se o peso das armas os encurvasse, Alejandro Villari e um desconhecido tinham-no alcançado, finalmente. Com um sinal, pediu-lhes que esperassem e voltou-se contra a parede, como se retomasse o sono. Fez isso para despertar a misericórdia dos que o mataram? Ou porque é menos duro suportar um acontecimento espantoso que imaginá-lo ou aguardá-lo indefinidamente? Ou - e isto talvez seja o mais verossímil - para que os assassinos fossem um sonho, como já o haviam sido tantas vezes, no mesmo lugar, à mesma hora?

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Nessa magia estava quando o apagou a descarga.O HOMEM NO UMBRALBioy Casares trouxe de Londres um curioso punhal de folha triangular e empunhadura em forma de H; nosso amigo Christopher Dewey, do Conselho Britânico, disse que tais armas eram de uso comum no Industão. Essa opinião animouo a mencionar que trabalhara naquele país, entre as duas guerras. ("Ultra auroram et gangem", lembro-me de que disse em latim, equivocando-se com um verso de Juvenal.) Das histórias que contou nessa noite, atrevo-me a reconstruir a que segue. Meu texto será fiel: livre-me Alá da tentação de acrescentar breves traços circunstanciais ou de agravar, com interpolações de Kipling, o aspecto exótico do relato. Este, além do mais, tem um antigo e simples sabor que seria uma lástima perder, talvez o das Mil e Uma Noites.

"A exata geografia dos fatos que vou contar importa muito pouco. Além disso, que precisão conservam em Buenos Aires os nomes de Amritsar ou de Udh? Basta-me dizer, pois, que naqueles anos houve distúrbios numa cidade muçulmana e que o governo central enviou um homem forte para impor a ordem. Esse homem era escocês, de um ilustre clã de guerreiros, e no sangue levava uma tradição de violência. Uma só vez o viram meus olhos, mas não esquecerei os cabelos muito negros, os pômulos salientes, o ávido nariz e a boca, os largos ombros, a forte ossatura de viking. David Alexander Glencairn se chamará ele, nesta noite, em minha história; os dois nomes convêm, pois foram de reis que governaram com um cetro de ferro. David Alexander Glencairn (terei de me habituar a chamá-lo assim) era, suspeito, um homem temido; o simples anúncio de sua chegada bastou para apaziguar a cidade. Isso não impediu que decretasse diversas medidas enérgicas.68O681O A L E P HO HOMEM NO UMBRALAlguns anos passaram. A cidade e o distrito estavam em paz; sikhs e muçulmanos haviam renunciado às antigas discórdias e de repente Glencairn desapareceu. Naturalmente, não faltaram rumores de que o tinham seqüestrado ou matado."Essas coisas eu soube por meu chefe, porque a censura era rígida e os jornais não comentaram (nem sequer registraram, que eu me lembre) o desaparecimento de Glencairn. Um provérbio diz que a índia é maior que o mundo; Glencairn, talvez onipotente na cidade que uma assinatura ao pé de um decreto lhe destinou, era um simples número nas engrenagens da administração do Império. As investigações da polícia local foram de todo inúteis; meu chefe pensou que um profissional poderia infundir menos receio e conseguir melhor êxito. Três ou quatro dias depois (as distâncias na Índia são generosas), eu perambulava sem maior esperança pelas ruas da opaca cidade que escamoteara um homem."Senti, quase de imediato, a infinita presença de uma conjuração para ocultar o destino de Glencairn. "Não há uma alma nesta cidade", pude suspeitar, "que não saiba o segredo e que não tenha jurado guardá-lo". A maioria, interrogada, professava ilimitada ignorância; não sabia quem era Glencairn, não o tinha visto nunca, jamais ouviu falar dele. Outros, ao contrário, tinham-no divisado há um quarto de hora falando com Fulano de Tal, e até me acompanhavam à casa em que entraram os dois, e na qual nada sabiam deles, ou de onde acabavam de sair nesse momento. Num desses mentirosos precisos dei com o punho na cara. As testemunhas aprovaram meu desafogo, e fabricaram outras mentiras. Não acreditei nelas, mas não me atrevi a deixar de ouvi-las. Uma tarde, entregaram-me um envelope com uma tira de papel em que havia

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algumas senhas..."O sol tinha declinado quando cheguei. O bairro era popular e humilde; a casa era muito baixa; da calçada, entrevi uma sucessão de pátios de terra e próxima ao fundo uma claridade. No último pátio, celebrava-se não sei que festa muçulmana; um cego entrou com um alaúde de madeira avermelhada."A meus pés, imóvel como um objeto, encolhia-se no umbral um homem muito velho. Direi como era, pois é parte essencial da história. Os muitos anos haviam-no reduzido epolido como as águas a uma pedra ou as gerações dos homens a uma sentença. Longos farrapos o cobriam, ou assim me pareceu, e o turbante que lhe envolvia a cabeça era mais um pedaço de pano. No crepúsculo, ergueu em minha direção um rosto escuro e uma barba muito branca. Falei-lhe sem preâmbulos, porque já havia perdido toda esperança, a respeito de David Alexander Glencairn. Não me entendeu (talvez não me ouvisse) e tive de explicar que era um juiz e que eu o procurava. Senti, ao dizer essas palavras, o irrisório de interrogar aquele homem antigo, para quem o presente era apenas um indefinido rumor. "Notícias da Rebelião ou de Akbar poderia dar este homem", pensei, "mas não de Glencairn". O que me disse confirmou essa suspeita."- Um juiz! - articulou com débil espanto. - Um juiz que se perdeu e o procuram. O fato aconteceu quando eu era criança. Não sei de datas, mas não tinha morrido ainda Nikal Seyn (Nicholson) diante da muralha de Delhi. O tempo que se foi fica na memória; sem dúvida, sou capaz de recuperar o que então se passou. Deus tinha permitido, em sua cólera, que o povo se corrompesse; cheias de maldição as bocas estavam e de enganos e de fraude. Entretanto, nem todos eram perversos, e quando se proclamou que a rainha ia mandar um homem que executaria neste país a lei da Inglaterra, os menos maus se alegraram, porque sentiram que a lei é melhor que a desordem. Chegou o cristão e não tardou a prevaricar e a oprimir, a encobrir delitos abomináveis e a vender decisões. Não o culpamos, a princípio; a justiça inglesa que administrava não era conhecida de ninguém e os aparentes excessos do novo juiz correspondiam talvez a válidas e arcanas razões. "Tudo terá justificativa em seu livro", queríamos pensar, mas sua afinidade com todos os maus juízes do mundo era demasiado evidente, e por fim tivemos de admitir que era simplesmente um malvado. Chegou a ser um tirano e a pobre gente (para vingar-se da errônea esperança que alguma vez puseram nele) acalentou a idéia de seqüestrá-lo e submetê-lo a julgamento. Falar não basta; dos desígnios tiveram de passar às obras. Ninguém, talvez, à exceção dos muito simples ou dos muito jovens, acreditou que esse propósito temerário pudesse ser levado a cabo, mas milhares de sikhs e de muçulmanos cumpriram sua palavra e um dia executaram, incrédu682683O ALEPHO HOMEM NO UMBRALlos, aquilo que a cada um deles parecera impossível. Seqüestraram o juiz e lhe deram por cárcere uma casa de campo num afastado subúrbio. Depois, envolveram as pessoas prejudicadas por ele, ou (em alguns casos) os órfãos e as viúvas, porque a espada do verdugo não havia descansado naqueles anos. Por fim - isto foi talvez o mais difícil -, procuraram e nomearam um juiz para julgar o juiz."Aqui o interromperam algumas mulheres que entravam na casa."Depois, com lentidão, prosseguiu:"- Dizem que não há geração que não inclua quatro homens honestos que secretamente sustentam o universo e o justificam diante do Senhor: um desses varões teria sido

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o juiz mais idôneo. Mas onde encontrá-los, se andam perdidos pelo mundo e anônimos e não se reconhecem quando se vêem e nem eles mesmos sabem do alto ministério que cumprem? Alguém então opinou que, se o destino nos vedava os sábios, teríamos de procurar os insensatos. Essa idéia prevaleceu. Alcoranistas, doutores da lei, sikhs que levam o nome de leões e que adoram um Deus, hindus que adoram multidões de deuses, monges de Mahavira que ensinam que a forma do universo é a de um homem com as pernas abertas, adoradores do fogo e judeus negros, integraram o tribunal, mas a última sentença foi encomendada ao arbítrio de um louco."Aqui o interromperam algumas pessoas que iam embora da festa."- De um louco - repetiu - para que a sabedoria de Deus falasse por sua boca e envergonhasse a soberba humana. Seu nome perdeu-se ou nunca se soube, mas andava nu por essas ruas, ou coberto de trapos, contando os dedos com o polegar e zombando das árvores."Meu bom senso rebelou-se. Disse que entregar a um louco a decisão era invalidar o processo."- O acusado aceitou o juiz - foi a resposta. - Talvez compreendesse que, em vista do perigo que os conjurados corriam se o deixassem em liberdade, só de um louco podia não esperar sentença de morte. Ouvi que riu quando lhe disseram quem era o juiz. Muitas noites e dias durou o processo, pelo grande número de testemunhas."Calou-se. Uma preocupação o agitava. Para falar alguma coisa, perguntei quantos dias."- Pelo menos dezenove - replicou. Gente que ia embora da festa voltou a interrompê-lo; o vinho está proibido aos muçulmanos, mas as faces e as vozes pareciam de bêbados. Alguém lhe gritou algo, ao passar."- Dezenove dias, precisamente - retificou. - O cão infiel ouviu a sentença, e a faca se saciou em sua garganta."Falava com alegre ferocidade. Com outra voz pôs termo à história."- Morreu sem medo; nos mais vis há alguma virtude."- Onde aconteceu o que contaste? - perguntei. - Numa casa de campo?"Pela primeira vez, olhou-me nos olhos. Em seguida, esclareceu com vagar, medindo as palavras."- Disse que numa casa de campo lhe deram prisão, não que o julgaram aí. Julgaram-no nesta cidade: numa casa como todas, como esta. Uma casa não pode diferir de outra: o que importa é saber se está edificada no inferno ou no céu."Perguntei-lhe pelo destino dos conjurados."- Não sei - disse-me com paciência. - Estas coisas ocorreram e foram esquecidas faz já muitos anos. Talvez os homens os condenaram, porém não Deus."Dito isto, levantou-se. Senti que suas palavras me despediam e que eu cessara para ele, a partir daquele momento. Uma turba composta de homens e mulheres de todas as nações do Punjab espalhou-se, rezando e cantando, sobre nós e quase nos fez desaparecer: espantou-me que de pátios tão estreitos, pouco mais que longos corredores, pudesse sair tanta gente. Outros saíam das casas da vizinhança; sem dúvida, haviam saltado os muros... À força de empurrões e imprecações, abri caminho. No último pátio, cruzei com um homem despido, coroado de flores amarelas, a quem todos beijavam e agasalhavam, e com uma espada na mão. A espada estava suja, pois dera morte a Glencairn, cujo cadáver mutilado encontrei nas cavalariças do fundo."684685O ALEPHO God, I could be bounded in a nutshell and count myself a King of infinite space.Hamlet, II, 2.

But they will teach us that Eternity is the Standing still of the Present Time, a Nuncstans (as the Schools call it); which neither they, nor any else understand,

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no more than they would a Hie-stans for an Infinite greatnesse of Place.Leviathan, IV, 46.Na candente manhã de fevereiro em que Beatriz Viterbo morreu, depois de uma imperiosa agonia que não cedeu um só instante nem ao sentimentalismo nem ao medo, observei que os painéis de ferro da praça Constitución tinham renovado não sei que anúncio de cigarros; o fato me desgostou, pois compreendi que o incessante e vasto universo já se afastava dela e que essa mudança era a primeira de uma série infinita. Mudará o universo mas eu não, pensei com melancólica vaidade; sei que, alguma vez, minha vã devoção a exasperara; morta, eu podia consagrar-me a sua memória, sem esperança mas também sem humilhação. Considerei que em 3O de abril era seu aniversário; visitar, nesse dia, a casa da rua Garay para saudar seu pai e Carlos Argentino Daneri, seu primo-irmão, era um ato cortês, irrepreensível, talvez iniludível. De novo aguardaria no crepúsculo da abarrotada salinha, de novo estudaria as circunstâncias de seus muitos retratos. Beatriz Viterbo, de perfil, em cores; Beatriz, com máscara, no carnaval de 1921; a primeira comunhão de Beatriz; Beatriz, no dia de seu casamento com Roberto Alessandra; Beatriz, pouco depois do divórcio, num almoço do Clube Hípico; Beatriz, em Quilmes, com Delia San Marco Porcel e686O ALEPHCarlos Argentino; Beatriz, com o pequinês dado por Villegas Haedo; Beatriz, de frente e em três quartos de perfil, sorrindo, com a mão no queixo... Não estaria obrigado, como outras vezes, a justificar minha presença com módicas oferendas de livros: livros cujas páginas, finalmente, aprendi a cortar, para não comprovar, meses depois, que estavam intatos.Beatriz Viterbo morreu em 1929; a partir dessa data não deixei passar um 3O de abril sem voltar a sua casa. Eu costumava chegar às sete e quinze e ficar uns vinte e cinco minutos; a cada ano, aparecia um pouco mais tarde e ficava um pouco mais; em 1933, uma chuva torrencial me favoreceu: tiveram de me convidar para jantar. Não desperdicei, como é natural, esse bom precedente; em 1934, apareci, já dadas as oito, com um alfajor santafecino; com toda a naturalidade, fiquei para jantar. Assim, em aniversários melancólicos e inutilmente eróticos, recebi as graduais confidências de Carlos Argentino Daneri.Beatriz era alta, frágil, ligeiramente inclinada; havia em seu andar (se for tolerável o oxímoro) uma como que graciosa lentidão, um princípio de êxtase; Carlos Argentino é rosado, robusto, encanecido, de traços finos. Exerce não sei que cargo subalterno numa biblioteca ilegível dos subúrbios do Sul; é autoritário, mas também ineficiente; aproveitava, até há bem pouco, as noites e as festas para não sair de casa. A duas gerações de distância, o "esse" italiano e a abundante gesticulação italiana sobrevivem nele. Sua atividade mental é contínua, apaixonada, versátil e completamente insignificante. Excede em imprestáveis analogias e em ociosos escrúpulos. Tem (como Beatriz) grandes e afiladas mãos formosas. Durante alguns meses, sofreu a obsessão de Paul Fort, menos por suas baladas que pela idéia de uma glória irrepreensível. "É o Príncipe dos poetas da França", repetia com fatuidade. "Em vão te revoltarás contra ele; não o atingirá, nunca, a mais envenenada de tuas setas."No dia 3O de abril de 1941, permiti-me juntar ao bolo de Santa Fé uma garrafa de conhaque nacional. Carlos Argentino provou-o, julgou-o interessante e empreendeu, depois de alguns tragos, uma defesa do homem moderno.- Eu o evoco - disse com animação um tanto inexplicável - em seu gabinete de estudo, como se disséssemos na torre687

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O ALEPHO ALEPHalbarrã de uma cidade, provido de telefones, de telégrafos, de fonógrafos, de aparelhos de radiotelefonia, de cinematógrafos, de lanternas mágicas, de glossários, de horários, de prontuários, de boletins...Observou que, para um homem assim dotado, o ato de viajar era inútil; nosso século XX tinha transformado a fábula de Maomé e da montanha; as montanhas, agora, convergiam para o moderno Maomé.Tão ineptas me pareceram essas idéias, tão pomposa e tão extensa sua exposição, que logo as relacionei com a literatura; disse-lhe por que não as escrevia. Como era de prever, respondeu que já o fizera: esses conceitos, e outros não menos originais, figuravam no Canto Augurai, Canto Prologal ou simplesmente Canto-Prólogo de um poema em que trabalhava havia muitos anos, sem réclame, sem tumulto ensurdecedor, sempre apoiado nesses dois báculos que se chamam trabalho e solidão. Primeiro, abria as comportas à imaginação; depois, fazia uso da lima. O poema se intitulava A Terra; tratava-se de uma descrição do planeta, em que não faltavam, por certo, a pitoresca digressão e a galharda apóstrofe.Roguei-lhe que me lesse uma passagem, mesmo que fosse breve. Abriu uma gaveta da escrivaninha, tirou um maço volumoso de folhas de bloco impressas com o timbre da Biblioteca Juan Crisóstomo Lafinur e leu com sonora satisfação:

Vi, como o grego, as cidades dos homens,Os trabalhos, os dias de vária luz, a fome; Não corrijo os fatos, não falseio os nomes,Mas le voyage que narro é... autour de ma chambre.

- Estrofe, sob qualquer ângulo, interessante - opinou. - O primeiro verso granjeia o aplauso do catedrático, do acadêmico, do helenista, quando não dos falsos eruditos, setor considerável da opinião; o segundo passa de Homero para Hesíodo (toda uma implícita homenagem, na fachada do flamante edifício, ao pai da poesia didática), não sem remoçar um procedimento cujo ancestral está na Escritura, a enumeração, congérie ou conglobação; o terceiro - barroquismo, decadentismo, culto depurado e fanático da forma? - consta de dois hemistíquios gêmeos; o quarto, francamente bilíngüe, assegura-me o apoio incondicional de todo espírito sensível aos desenfadados impulsos da facécia. Nada direi da rima rara nem da ilustração que me permite, sem pedantismo!, acumular em quatro versos três alusões eruditas que abarcam trinta séculos de densa literatura: a primeira à Odisséia, a segunda aos Trabalhos e Dias, a terceira à bagatela imortal que nos proporcionaram os ócios da pena do saboiano... Compreendo, uma vez mais, que a arte moderna exige o bálsamo do riso, o scherzo. Decididamente, tem a palavra Goldoni!Leu-me muitas outras estrofes, que também obtiveram sua aprovação e seu comentário profuso. Nada de memorável havia nelas; nem sequer as julguei muito piores que a anterior. Em sua redação haviam colaborado a aplicação, a resignação e o acaso; as virtudes que Daneri lhes atribuía eram posteriores. Compreendi que o trabalho do poeta não estava na poesia; estava na invenção de razões para que a poesia fosse admirável; naturalmente, esse ulterior trabalho modificava a obra para ele, mas não para outros. A dicção oral de Daneri era extravagante; sua inépcia métrica, salvo contadas vezes, impediu-o de transmitir essa extravagância ao poema."Uma única vez em minha vida tive ocasião de examinar os quinze mil dodecassílabos do Polyolbion, essa epopéia topográfica na qual Michael Drayton registrou a fauna,

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a flora, a hidrografia, a orografia, a história militar e monástica da Inglaterra; estou certo de que esse produto considerável mas limitado é menos tedioso que o vasto projeto congênere de Carlos Argentino. Este se propunha versificar toda a redondez do planeta; em 1941, já tinha dado conta de alguns hectares do estado de Queensland, mais de um quilômetro do curso do1 Lembro-me, no entanto, destas linhas de uma sátira em que fustigou com rigor os maus poetas:Aqueste da al poema belicosa armaduraDe erudicción; estoiro le da pompas y galas.Ambos bateu en vano Ias ridículas alas...iOlvidaron, cuitados, el factor HORMOSURA![Este dá ao poema belicosa armadura / De erudição; este outro lhe dá pompas e galas. / Ambos batem em vão as ridículas asas... / Esqueceram, coitados, o fator FORMOSURA! (N. da T.)]Só o temor de se criar um exército de inimigos implacáveis e poderosos o dissuadiu (disse-me) de publicar sem medo o poema.688689o ALEPHOb, um gasômetro ao norte de Veracruz, as principais casas de comércio da paróquia de Concepción, a chácara de Mariana Cambaceres de Alvear na rua Once de Setiembre, em Belgrano, e um estabelecimento de banhos turcos não longe do renomado aquário de Brighton. Leu-me certas laboriosas passagens da zona australiana de seu poema; esses longos e disformes alexandrinos careciam da relativa agitação do prefácio. Copio uma estrofe:

Saibam. A mão direita do poste rotineiro(Vindo, claro está, do nor-noroeste)Se entedia uma carcaça - Cor? Branquiceleste - Que dá ao curral de ovelhas um aspecto de ossário.

- Duas audácias - gritou com exultação - resgatadas, te ouço resmungar, para o sucesso! Admito, admito. Uma, o epíteto rotineiro, que certeiramente denuncia, en passant, o inevitável tédio inerente às fainas pastoris e agrícolas, tédio que nem as Geórgicas nem nosso já laureado Don Segundo se atreveram jamais a denunciar assim, com descaramento. Outra, o enérgico prosaísmo se entedia uma carcaça, que o melindroso quererá excomungar com horror, mas que apreciará mais que a própria vida o crítico de gosto viril. Todo o verso, de resto, é de muito alto quilate. O segundo hemistíquio trava animadíssima conversa com o leitor; antecipa-se a sua viva curiosidade, colocalhe uma pergunta na boca e a satisfaz... na hora. E que me dizes desse achado, branquiceleste? O pitoresco neologismo sugere o céu, que é fator importantíssimo da paisagem australiana. Sem essa evocação, resultariam demasiado sombrias as tintas do esboço e o leitor se veria compelido a fechar o volume, ferida no mais íntimo a aluna, de incurável e negra melancolia.Por volta da meia-noite me despedi.Dois domingos depois, Daneri me telefonou, penso que pela primeira vez na vida. Propôs que nos reuníssemos às quatro, "para tomar leite juntos, no contíguo salão-bar que o progressismo de Zunino e de Zungri - os proprietários de minha casa, estarás lembrado - inaugura na esquina; confeitaria que gostarás de conhecer". Aceitei, com mais resignação que entusiasmo. Foi-nos difícil encontrar mesa; o69Oo ALEPH

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"salão-bar", inexoravelmente moderno, era apenas um pouco menos infame que minhas previsões; nas mesas vizinhas, o excitado público mencionava as somas investidas sem regatear por Zunino e por Zungri. Carlos Argentino fingiu assombrarse com não sei que primores da instalação da luz (que, sem dúvida, já conhecia) e me disse com certa severidade:- Mesmo que não queiras, tens de reconhecer que este local não deve nada aos mais chiques de Flores.Releu-me, depois, quatro ou cinco páginas do poema. Corrigira-as de acordo com um depravado princípio de ostentação verbal: onde antes escreveu azulado, agora abundava em azulino, azulego e até mesmo azulilho. A palavra leitoso não era bastante feia para ele; na impetuosa descrição de um lavadouro de lã, preferia lactário, lacticinoso, lactescente, leital... Insultou com amargura os críticos; depois, mais benigno, equiparou-os a essas pessoas "que não dispõem de metais preciosos nem tampouco de prensas a vapor, laminadores e ácidos sulfúricos para a cunhagem de tesouros, mas que podem indicar aos outros o lugar de um tesouro". Imediatamente, censurou a prologomania, "da qual já se fez mofa, no donairoso prefácio do Quixote, o Príncipe dos Engenhos". Admitiu, porém, que no frontispício da nova obra convinha o prólogo vistoso, o respaldo firmado pelo plumífero de forte prestígio. Acrescentou que pensava publicar os cantos iniciais de seu poema. Compreendi então o singular convite telefônico; o homem ia pedir-me que prefaciasse o seu pedante aranzel. Meu temor resultou infundado: Carlos Argentino observou, com admiração rancorosa, que não acreditava errar o epíteto ao qualificar de sólido o prestigio obtido em todos os círculos por Álvaro Melián Lafinur, homem de letras que, se eu me empenhasse, prefaciaria com prazer o poema. Para evitar o mais imperdoável dos fracassos, eu tinha de me fazer portavoz de dois méritos incontestáveis: a perfeição formal e o rigor cientifico, "porque esse extenso jardim de tropos, de figuras, de elegâncias não tolera um único detalhe que não confirme a severa verdade". Acrescentou que Beatriz sempre se havia divertido com Álvaro.Assenti, profusamente assenti. Esclareci, para maior verossimilhança, que não falaria com Álvaro na segundafeira, mas na quinta: no pequeno jantar que costuma coroar691O ALEPHtoda reunião do Clube de Escritores. (Não existem tais jantares, mas é irrefutável que as reuniões têm lugar às quintas-feiras, fato que Carlos Argentino Daneri podia comprovar nos jornais e que dotava a frase de certa realidade.) Disse, entre divinatório e sagaz, que, antes de abordar o tema do prólogo, descreveria o curioso plano da obra. Despedimo-nos; ao dobrar a rua Bernardo de Irigoyen, encarei com toda imparcialidade os futuros que me restavam: a) falar com Álvaro e dizer-lhe que aquele primo-irmão de Beatriz (esse eufemismo explicativo me permitiria mencioná-la) elaborara um poema que parecia estender até o infinito as possibilidades da cacofonia e do caos; b) não falar com Álvaro. Previ, com lucidez, que minha desídia optaria por b.A partir de sexta-feira, à primeira hora, começou a inquietar-me o telefone. Indignava-me que esse instrumento, que algum dia reproduziu a irrecuperável voz de Beatriz, pudesse rebaixar-se a receptáculo das inúteis e talvez coléricas queixas desse equivocado Carlos Argentino Daneri. Felizmente, nada ocorreu - salvo o rancor inevitável que me inspirou aquele homem que me havia imposto uma delicada missão e depois me esquecia.O telefone perdeu seus terrores, mas em fins de outubro Carlos Argentino falou comigo. Estava agitadíssimo; não identifiquei sua voz, no começo. Com tristeza e com raiva, balbuciou que esses já ilimitados Zunino e Zungri, a pretexto de ampliar a desmedida confeitaria, iam demolir sua casa.

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- A casa de meus pais, minha casa, a velha casa enraizada da rua Garay! - repetiu, talvez esquecendo seu pesar na melodia da voz.Não me foi muito difícil compartilhar de sua aflição. Já completos os quarenta anos, qualquer mudança é um símbolo detestável da passagem do tempo; além disso, tratava-se de uma casa que, para mim, aludia infinitamente a Beatriz. Quis esclarecer esse delicadíssimo aspecto; meu interlocutor não me ouviu. Disse que se Zunino e Zungri persistissem nesse propósito absurdo, o doutor Zunni, seu advogado, os processaria ipso facto por danos e prejuízos e os obrigaria ao pagamento de cem mil nacionales.O nome de Zunni me impressionou; sua banca, na Caseros com a Tacuarí, é de uma seriedade proverbial. PerO ALEPHguntei se ele já se havia encarregado do assunto. Daneri disse que iria falar-lhe nessa mesma tarde. Vacilou e com essa voz plana, impessoal, à qual costumamos recorrer para confiar algo muito íntimo, disse que para terminar o poema lhe era indispensável a casa, pois num ângulo do porão havia um Aleph. Esclareceu que um Aleph é um dos pontos do espaço que contém todos os pontos.- Está no porão da sala de jantar - explicou, com a dicção aligeirada pela angústia. - E meu, é meu; eu o descobri na infância, antes da idade escolar. A escada do porão é empinada, meus tios me haviam proibido de descer, mas alguém me disse que havia um mundo no porão. Referia-se, soube depois, a um baú, mas eu compreendi que havia um mundo. Desci secretamente, rolei pela escada proibida, caí. Ao abrir os olhos, vi o Aleph.- O Aleph? - repeti.- Sim, o lugar onde estão, sem se confundirem, todos os lugares do orbe, vistos de todos os ângulos. A ninguém revelei minha descoberta, mas voltei. O menino não podia compreender que lhe fosse concedido esse privilégio para que o homem burilasse o poema! Zunino e Zungri não me despojarão, não e mil vezes não. De código na mão, o doutor Zunni provará que é inalienável o meu Aleph.Procurei raciocinar.- Mas não é muito escuro o porão?- A verdade não penetra num entendimento rebelde. Se todos os lugares da terra estão no Aleph, aí estarão todas as luminárias, todas as lâmpadas, todas as fontes de luz.- Irei vê-lo imediatamente.Desliguei, antes que ele pudesse emitir uma proibição. Basta o conhecimento de um fato para se perceber no ato uma série de traços confirmatórios, antes insuspeitados; espantoume não ter compreendido até esse momento que Carlos Argentino era louco. De resto, todos esses Viterbo... Beatriz (eu mesmo costumo repetir isso) era uma mulher, uma menina de uma clarividência quase implacável, mas havia nela negligências, distrações, desdéns, verdadeiras crueldades, que talvez reclamassem explicação patológica. A loucura de Carlos Argentino encheu-me de maligna felicidade; no fundo, sempre nos detestamos.692693O ALEPHNa rua Garay, a criada me disse que tivesse a bondade de esperar. O menino estava, como sempre, no porão, revelando fotografias. Junto ao vaso sem flor, no piano inútil, sorria (mais intemporal que anacrônico) o grande retrato de Beatriz, em pesadas cores. Ninguém nos podia ver; num desespero de ternura, aproximei-me do retrato e disse-lhe:

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- Beatriz, Beatriz Elena, Beatriz Elena Viterbo, Beatriz querida, Beatriz perdida para sempre, sou eu, sou Borges.Carlos entrou pouco depois. Falou com secura; compreendi que não era capaz de outro pensamento que o da perda do Aleph.- Um cálice do falso conhaque - ordenou - e mergulharás no porão. Já sabes, o decúbito dorsal é indispensável. Também o são a escuridão, a imobilidade, certa acomodação ocular. Tu te deitas no piso de tijolos e fixas o olhar no décimo nono degrau da pertinente escada. Saio, baixo o alçapão e ficas sozinho. Algum roedor te mete medo - não tem importância! Em poucos minutos vês o Aleph. O microcosmo de alquimistas e cabalistas, nosso concreto amigo proverbial, o multum ín parvo!Já na sala de jantar, acrescentou:- É claro que, se não o vês, tua incapacidade não invalida meu testemunho... Desce; muito em breve poderás iniciar um diálogo com todas as imagens de Beatriz.Desci com rapidez, farto de suas palavras insubstanciais. O porão, pouca coisa mais largo que a escada, tinha muito de poço. Com uma olhada, procurei em vão o baú de que Carlos Argentino me falara. Alguns caixões com garrafas e algumas sacolas de lona escureciam um ângulo. Carlos pegou uma sacola, dobrou-a e acomodou-a num lugar preciso.- O travesseiro é humildoso - explicou -, mas, se o levanto um centímetro, não verás nada e ficas confundido e envergonhado. Refestela esse corpanzil no chão e conta dezenove degraus.Cumpri suas ridículas instruções; por fim, saiu. Fechou cautelosamente o alçapão; a escuridão, embora houvesse uma fresta que depois distingui, deu a impressão de ser total. Subitamente, compreendi meu perigo: deixara-me soterrar por um louco, depois de tomar um veneno. As bravatas de Carlos evidenciavam o íntimo terror de que eu não visse o prodígio; Carlos, para defender seu delírio, para não saber694que estava louco, tinha de matar-me. Senti um confuso malestar, que tentei atribuir à rigidez e não ao efeito de um narcótico. Fechei os olhos, abri-os. Então vi o Aleph.Chego, agora, ao inefável centro de meu relato; começa aqui meu desespero de escritor. Toda linguagem é um alfabeto de símbolos cujo exercício pressupõe um passado que os interlocutores compartem; como transmitir aos outros o infinito Aleph, que minha temerosa memória mal e mal abarca? Os místicos, em análogo transe, são pródigos em emblemas: para significar a divindade, um persa fala de um pássaro que, de algum modo, é todos os pássaros; Alanus de Insulis, de uma esfera cujo centro está em todas as partes e a circunferência em nenhuma; Ezequiel, de um anjo de quatro faces que, ao mesmo tempo, se dirige ao Oriente e ao Ocidente, ao Norte e ao Sul. (Não em vão rememoro essas inconcebíveis analogias; alguma relação têm com o Aleph.) É possível que os deuses não me negassem o achado de uma imagem equivalente, mas este relato ficaria contaminado de literatura, de falsidade. Mesmo porque o problema central é insolúvel: a enumeração, sequer parcial, de um conjunto infinito. Nesse instante gigantesco, vi milhões de atos prazerosos ou atrozes; nenhum me assombrou tanto como o fato de que todos ocupassem o mesmo ponto, sem superposição e sem transparência. O que viram meus olhos foi simultâneo; o que transcreverei, sucessivo, pois a linguagem o é. Algo, entretanto, registrarei.Na parte inferior do degrau, à direita, vi uma pequena esfera furta-cor, de quase intolerável fulgor. A princípio, julguei-a giratória; depois, compreendi que esse movimento era uma ilusão produzida pelos vertiginosos espetáculos que encerrava. O diâmetro do Aleph seria de dois ou três centímetros, mas o espaço cósmico estava

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aí, sem diminuição de tamanho. Cada coisa (o cristal do espelho, digamos) era infinitas coisas, porque eu a via claramente de todos os pontos do universo. Vi o populoso mar, vi a aurora e a tarde, vi as multidões da América, vi uma prateada teia de aranha no centro de uma negra pirâmide, vi um labirinto roto (era Londres), vi intermináveis olhos próximos perscrutando-me como num espelho, vi todos os espelhos do planeta e nenhum me refletiu, vi num pátio da rua Soler as mesmas lajotas que, há trinta anos, vi no vestíbulo de uma casa em Fray Bentos, vi cachos de uva, neve, tabaco, veios de metal, vapor de água, vi convexos desertos equatoriais e cada um de695O ALEPHO ALEPHseus grãos de areia, vi em Inverness uma mulher que não esquecerei, vi a violenta cabeleira, o altivo corpo, vi um câncer no peito, vi um círculo de terra seca numa calçada onde antes existira uma árvore, vi uma chácara de Adrogué, um exemplar da primeira versão inglesa de Plínio, a de Philemon Holland, vi, ao mesmo tempo, cada letra de cada página (em pequeno, eu costumava maravilhar-me com o fato de que as letras de um livro fechado não se misturassem e se perdessem no decorrer da noite), vi a noite e o dia contemporâneo, vi um poente em Querétaro que parecia refletir a cor de uma rosa em Bengala, vi meu dormitório sem ninguém, vi num gabinete de Alkmaar um globo terrestre entre dois espelhos que o multiplicam indefinidamente, vi cavalos de crinas redemoinhadas numa praia do mar Cáspio, na aurora, vi a delicada ossatura de uma mão, vi os sobreviventes de uma batalha enviando cartões-postais, vi numa vitrina de Mirzapur um baralho espanhol, vi as sombras oblíquas de algumas samambaias no chão de uma estufa, vi tigres, êmbolos, bisões, marulhos e exércitos, vi todas as formigas que existem na terra, vi um astrolábio persa, vi numa gaveta da escrivaninha (e a letra me fez tremer) cartas obscenas, inacreditáveis, precisas, que Beatriz dirigira a Carlos Argentino, vi um adorado monumento em Lã Chacarita, vi a relíquia atroz do que deliciosamente fora Beatriz Viterbo, vi a circulação de meu escuro sangue, vi a engrenagem do amor e a modificação da morte, vi o Aleph, de todos os pontos, vi no Aleph a terra, e na terra outra vez o Aleph, e no Aleph a terra, vi meu rosto e minhas vísceras, vi teu rosto e senti vertigem e chorei, porque meus olhos haviam visto esse objeto secreto e conjetura) cujo nome usurpam os homens, mas que nenhum homem olhou: o inconcebível universo.Senti infinita veneração, infinita lástima.- Tonto ficarás de tanto bisbilhotar onde não te chamam - disse uma voz enfadonha e alegre. - Mesmo que esquentes a cabeça, não me pagarás num século esta revelação. Que observatório formidável, che Borges!Os sapatos de Carlos Argentino ocupavam o degrau maisalto. Na brusca penumbra, consegui levantar-me e balbuciar: - Formidável. Sim, formidável.A indiferença de minha voz causou-me estranheza.Ansioso, Carlos Argentino insistia: - Viste tudo bem, em cores?Nesse instante, concebi minha vingança. Benévolo, manifestamente apiedado, nervoso, evasivo, agradeci a Carlos Argentino a hospitalidade de seu porão e o instei a aproveitar a demolição da casa para afastar-se da perniciosa metrópole, que a ninguém - creia-me, a ninguém! - perdoa. Neguei-me, com suave energia, a discutir o Aleph; abracei-o, ao despedir-me, e repeti-lhe que o campo e a serenidade são dois grandes médicos.Na rua, nas escadarias de Constitución, no metrô, pareceram-me familiares todos os rostos. Tive medo de que não restasse uma única coisa capaz de surpreender-me,

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tive medo de que não me abandonasse jamais a impressão de voltar. Felizmente, depois de algumas noites de insônia, agiu outra vez sobre mim o esquecimento.

Pós-escrito de primeiro de março de 1943. Seis meses após a demolição do imóvel da rua Garay, a Editora Procusto não se deixou amedrontar pela extensão do considerável poema e lançou ao mercado uma seleção de "trechos argentinos". Vale a pena repetir o ocorrido; Carlos Argentino Daneri recebeu o Segundo Prêmio Nacional de Literatura." O primeiro foi outorgado ao doutor Aita; o terceiro, ao doutor Mario Bonfanti; inacreditavelmente, minha obra Los Naipes del Tahur não conseguiu um único voto. Uma vez mais, triunfaram a incompreensão e a inveja! Já faz muito tempo que não consigo ver Daneri; os jornais dizem que em breve nos dará outro volume. Sua afortunada pena (não mais perturbada pelo Aleph) consagrou-se a versificar os epítomes do doutor Acevedo Díaz.Duas observações quero acrescentar: uma, sobre a natureza do Aleph; outra, sobre seu nome. Este, como se sabe, é o da primeira letra do alfabeto da língua sagrada. Sua aplicação ao cerne de minha história não parece casual. Para a Cabala, essa letra significa o En Soph, a ilimitada e pura divindade; também se disse que tem a forma de um homem que assinala o céu e a terra, para indicar que o mundo inferior é o2 "Recebi tua aflita congratulação", escreveu-me. "Bufas, meu lamentável amigo, de inveja, mas confessarás - mesmo que isso te sufoque! - que desta vez pude coroar meu barrete com a mais vermelha das plumas, meu turbante com o mais califa dos rubis."696697O ALEPHespelho e o mapa do superior; para a Mengenlehre, é o símbolo dos números transfinitos, nos quais o todo não é maior que qualquer das partes. Eu queria saber: Carlos Argentino escolheu esse nome, ou o leu, aplicado a outro ponto para onde convergem todos os pontos, em algum dos textos inumeráveis que o Aleph de sua casa lhe revelou? Por incrível que pareça, acredito que exista (ou que tenha existido) outro Aleph, acredito que o Aleph da rua Garay era um falso Aleph.Dou minhas razões. Por volta de 1867, o capitão Burton exerceu o cargo de cônsul britânico no Brasil; em julho de 1942, Pedro Henríquez Urena descobriu numa biblioteca de Santos um manuscrito seu que versava sobre o espelho que atribui o Oriente a Iskandar Zu al-Karnayn, ou Alexandre Bicorne da Macedônia. Em seu cristal refletia-se o universo inteiro. Burton menciona outros artifícios congêneres - o sétuplo cálice de Kai Josru, o espelho que Tarik Benzeyad encontrou numa torre (Mil e Uma Noites, 272), o espelho que Luciano de Samósata pôde examinar na lua (História Verdadeira, I, 26), a lança especular que o primeiro livro do Satyricon de Capella atribui a Júpiter, o espelho universal de Merlin, "redondo e oco e semelhante a um mundo de vidro" (The Faerie Queene, 111, 2, 19) - e acrescenta estas curiosas palavras: "Mas os anteriores (além do defeito de não existirem) são meros instrumentos de ótica. Os fiéis que acorrem à mesquita de Amr, no Cairo, sabem muito bem que o universo está no interior de uma das colunas de pedra que rodeiam o pátio central... Ninguém, é claro, pode vê-lo, mas os que aproximam o ouvido da superfície declaram perceber, em pouco tempo, seu atarefado rumor... A mesquita data do século VII; as colunas procedem de outros templos de religiões anteislâmicas, pois como escreveu Abenjaldun: "Nas repúblicas fundadas por nômades, é indispensável o concurso de forasteiros para tudo o que seja alvenaria".".

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Existe esse Aleph no íntimo de uma pedra? Vi-o quando vi todas as coisas e o esqueci? Nossa mente é porosa para o esquecimento; eu mesmo estou falseando e perdendo, sob a trágica erosão dos anos, os traços de Beatriz.

Para Esteia Canto.EPÍLOGOCom exceção de "Emma Zunz" (cujo argumento esplêndido, tão superior a sua tímida execução, foi-me dado por Cecília Ingenieros) e da "História do guerreiro e da cativa", que se propõe interpretar dois fatos fidedignos, os contos deste livro correspondem ao gênero fantástico. De todos eles, o primeiro é o mais trabalhado; seu tema é o efeito que a imortalidade causaria nos homens. A esse esboço de uma ética para imortais, segue "O morto": Azevedo Bandeira, nesse relato, é um homem de Rivera ou de Cerro Largo e é também uma tosca divindade, uma versão mulata e selvagem do incomparável Sunday, de Chesterton. (O capítulo XXIX do Decline and Fall of the Roman Empire narra um destino semelhante ao de Otálora, mas bastante mais grandioso e mais inacreditável.) De "Os teólogos" basta escrever que são um sonho, um sonho bem mais melancólico, sobre a identidade pessoal; da "Biografia de Tadeo Isidoro Cruz", que é uma glosa de Martín Fierro. A uma tela de Watts, pintada em 1896, devo "A casa de Astérion" e o caráter do pobre protagonista. "A outra morte" é uma fantasia sobre o tempo, que urdi à luz de certas propostas de Pier Damiani. Na última guerra, ninguém pôde desejar mais que eu a derrota da Alemanha; ninguém pôde sentir mais que eu a tragédia do destino alemão; "Deutsches Requiem" quer entender esse destino, que não souberam chorar, nem sequer suspeitar, nossos "germanófilos", que nada sabem da Alemanha. "A escrita do Deus" tem sido generosamente julgada; o jaguar obrigou-me a pôr na boca de um "mago da pirâmide de Qaholom" argumentos de cabalista ou de teólogo. Em "O Zahir" e "O Aleph" creio notar alguma influência do conto "The crystal egg" (1899), de Wells.J. L. B.

Buenos Aires, 3 de maio de 1949.698699O ALEPHPós-escrito de 1952. Incorporei quatro contos a esta reedição. "Abenjacan, o Bokari, morto em seu labirinto" não é (asseguram-me) memorável, apesar de seu título terrível. Podemos considerá-lo uma variante de "Os dois reis e os dois labirintos", que os copistas intercalaram em As Mil e Uma Noites e que o prudente Galland omitiu. De "A espera" direi que foi sugerida por uma crônica policial que Alfredo Doblas me leu, há dez anos, enquanto classificávamos livros segundo o manual do Instituto Bibliográfico de Bruxelas, código do qual me esqueci por inteiro, salvo que a Deus corresponde o número 231. O personagem central da crônica era turco; tornei-o italiano para intuí-lo com mais facilidade. A momentânea e repetida visão de um fundo cortiço que existe ao redor da rua Paraná, em Buenos Aires, propiciou-me a história que se intitula "O homem no umbral"; situei-a na índia para que sua inverossimilhança fosse tolerável.J. L. B.ÍNDICE

Dedicatória a Leonor Acevedo de Borges 7 FERVOR DE BUENOS AIRES (1923)

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Prólogo 11A quem ler 13As ruas 15La Recoleta 16O Sul 17Rua desconhecida 18A Praça San Martín 19O truco 2OUm pátio 21Inscrição sepulcral 22A rosa 23Bairro reconquistado 24Sala vazia 25Rosas 26Final de ano 28Açougue 29Arrabalde 3ORemorso por qualquer morte 31Jardim 32Inscrição em qualquer sepulcro 33A volta 34Afterglow 35Amanhecer 36Benares 38Ausência 39Singeleza 4OCaminhada 41A noite de São João 427O17OOÍNDICECercanias 43Sábados 44Troféu 46Entardeceres 47Campos entardecidos 48Despedida 49 Linhas que posso ter escrito e perdido por volta de 1922 ... 5ONotas 51

LUA DEFRONTE (1925)

Prólogo 55Rua do armazém rosado 57Ao horizonte de um subúrbio 58Amorosa antecipação 59Uma despedida 6OO general Quiroga vai de coche para a morte 61Louvação da quietude 62

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Montevidéu 63 Manuscrito encontrado num livro de Joseph Conrad .... 64Singradura 65Dakar 66A promissão em alto-mar 67Dulcia linquimus arva 68Quase Juízo Final 69Minha vida inteira 7OÚltimo sol em Villa Ortúzar 71Para uma rua do Oeste 72Versos de catorze 73

CADERNO SAN MARTÍN (1929)

Prólogo 79Fundação mítica de Buenos Aires 81Elegia dos Portões 83Curso das lembranças 85Isidoro Acevedo 87A noite em que no Sul o velaram 897O2íNDICEMortes de Buenos Aires 911. La Chacarita 9111. La Recoleta 92A Francisco López Merino 94Bairro Norte 95Paseo deJulio 96

EVARISTO CARRIEGO (193O)

Prólogo 1O3Declaração 1O5I. Palermo de Buenos Aires 1O711. Uma vida de Evaristo Carriego 116111. As Misas Herejes 125IV La CanciM del Barrio 135V Um possível resumo 148VI. Páginas complementares 15OI. Do segundo capítulo 15O11. Do quarto capítulo - O truco 152VII. As inscrições dos coches 155VIII. Histórias de ginetes 159IX. O punhal 163 X. Prólogo a uma edição das poesias completasde Evaristo Carriego 164XI. História do tango 166O tango briguento 168Um mistério parcial 169As letras 171

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O desafio 173XII. Duas cartas 177

DISCUSSÃO (1932)

Prólogo 185A poesia gauchesca 187A penúltima versão da realidade 2O9A supersticiosa ética do leitor 214O outro Whitman 2187O31NDICEUma vindicação da cabala 222Uma vindicação do falso Basilides 226A postulação da realidade 23OFilmes 236A arte narrativa e a magia 24OPaul Groussac 248A duração do inferno 25OAs versões homéricas 255A perpétua corrida de Aquiles e da tartaruga 261Nota sobre Walt Whitman 267Avatares da tartaruga 273Vindicação de Bouvard et Pécuchet 279Flaubert e seu destino exemplar 284O escritor argentino e a tradição 288Notas 297H. G. Wells e as parábolas 297Edward Kasner and James Newman 298Gerald Heard 299Gilbert Waterhouse 3O2Leslie D. Weatherhead 3O3M.Davidson 3O5Sobre a dublagem 3O7O dr. Jekyll e Edward Hyde, transformados 3O8

HISTÓRIA UNIVERSAL DA INFÂMIA (1935)

Prólogo à primeira edição 313Prólogo à edição de 1954 315O atroz redentor Lazarus Morell 319A causa remota 319Olugar 319Os homens 32OO homem 321O método 322A liberdade final 323A catástrofe 324

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A interrupção 325O impostor inverossímil Tom Castro 326O idolatrado homem morto 3277O4INDICEAs virtudes da disparidade 328Oencontro 328Ad Majorem Dei Gloriam 329Acarruagem 33OO espectro 33OA viúva Ching, pirata 332Os anos de aprendizagem 333Ocomando 333Fala Kia-King, o jovem imperador 334As ribeiras espavoridas 335O dragão e a raposa 336Aapoteose 337O provedor de iniqüidades Monk Eastman 338Os desta América 338Os da outra 338O herói 339O mando 34OA batalha de Rivington 341Os rangidos 342Eastman contra a Alemanha 343O misterioso, lógico fim 343O assassino desinteressado Bill Harrigan 344O estado larvar 344Go West! 345Demolição de um mexicano 345Mortes porque sim 347O incivil mestre-de-cerimônias Kotsuké no Suké 349O cordão desatado 349O simulador da infâmia 35OA cicatriz 351Otestemunho 352O homem de Satsuma 353O tintureiro mascarado Hakim de Merv 354A púrpura escarlate 354Otouro 355Oleopardo 356O profeta velado 356Os espelhos abomináveis 357Orosto 358Homem da esquina rosada 36O7O5INDICEI N D I C EEtcétera 368Um teólogo na morte 368

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A câmara das estátuas 369História dos dois que sonharam 371O bruxo preterido 372O espelho de tinta 375Um duplo de Maomé 377Índice das fontes 379

HISTÓRIA DA ETERNIDADE (1936)

Prólogo 385História da eternidade 387As kenningar 4O5A metáfora 421A doutrina dos ciclos 425O tempo circular 434Os tradutores das Mil e Uma Noites 4381. O capitão Burton 4382. O doutor Mardrus 4493. Ermo Littmann 454Duas notas 458A aproximação a Almotásim 458Arte de injuriar 463

FICÇÕES (1944)

O JARDIM DE VEREDAS QUE SE BIFURCAM (1941) 471

Prólogo 473Tlõn, Ugbar, Orbis Tertius 475Pierre Menard, autor do Quixote 49OAs ruínas circulares 499A loteria em Babilônia 5O5Exame da obra de Herbert Quain 511A biblioteca de Babel 516O jardim de veredas que se bifurcam 5247O6ARTIFíCIOS (1944) 535

Prólogo 537Funes, o memorioso 539 A forma da espada . 547Tema do traidor e do herói 552A morte e a bússola 556O milagre secreto 567 Três versões de Judas 573O fim 578A seita da Fênix 581O Sul 584

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O ALEPH (1949)

O imortal 593O morto 6O7Os teólogos 612História do guerreiro e da cativa 62OBiografia de Tadeo Isidoro Cruz (1829-1874) 624Emma Zunz 627A casa de Astérion 632A outra morte 635Deutsches Requiem 641A procura de Averróis 647O Zahir 655A escrita do Deus 663Abenjacan, o Bokari, morto em seu labirinto 668Os dois reis e os dois labirintos 676A espera 677O homem no umbral 681O Aleph 686Epílogo 699BíbliOteca Pública Arthur Vianna7O7L..-


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