Download - JLPM Tese Naea Ufpa 2015
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PAR NCLEO DE ALTOS ESTUDOS AMAZNICOS
PROGRAMA DE DOUTORADO EM DESENVOLVIMENTO SUSTENTVEL DO TRPICO MIDO
JAMES LEN PARRA MONSALVE
ORGANIZAES REGIONAIS INDGENAS, CIDADANIA E TECNOLOGIAS DE (DES)INFORMAO E (IN)COMUNICAO NA PAN-AMAZNIA
Belm 2015
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JAMES LEN PARRA MONSALVE
ORGANIZAES REGIONAIS INDGENAS, CIDADANIA E TECNOLOGIAS DE (DES)INFORMAO E (IN)COMUNICAO NA PAN-AMAZNIA
Tese apresentada ao Ncleo de Altos Estudos Amaznicos da Universidade Federal do Par como requisito para obteno de ttulo de doutor no Programa de Doutorado em Desenvolvimento Sustentvel do Trpico mido. Orientadora: Profa. Dra. Rosa Elizabeth Acevedo Marin
Belm 2015
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Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Biblioteca do NAEA/UFPa)
Monsalve, James Len Parra Organizaes regionais indgenas, cidadania e tecnologias de (des)informao e (in)comunicao na Pan-Amaznia / James Len Parra Monsalve ; Orientadora, Rosa Elizabeth Acevedo Marin. 2015.
262 f.: il. ; 29 cm Inclui bibliografias
Tese (Doutorado) Universidade Federal do Par, Ncleo de Altos Estudos Amaznicos, Programa de Ps-Graduao em Desenvolvimento Sustentvel do Trpico mido, Belm, 2015. 1. Indgenas Amaznia. 2. Cidadania Amaznia. 3. Tecnologias de Informao e Comunicao. I. Marin, Rosa Elizabeth Acevedo, orientadora. II. Ttulo.
CDD 22. ed. 330.153
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JAMES LEN PARRA MONSALVE
ORGANIZAES REGIONAIS INDGENAS, CIDADANIA E TECNOLOGIAS DE (DES)INFORMAO E (IN)COMUNICAO NA PAN-AMAZNIA
Tese apresentada ao Ncleo de Altos Estudos Amaznicos da Universidade Federal do Par como requisito para obteno de ttulo de doutor no Programa de Doutorado em Desenvolvimento Sustentvel do Trpico mido.
Data de aprovao: 16/03/2015
Banca Examinadora: Prof. Dr. Rosa Elizabeth Acevedo Marin Orientadora - NAEA/UFPA Prof. Dr. Nrvia Ravena Examinadora interna - NAEA/UFPA Prof. Dr. Silvio Jos de Lima Figueiredo Examinador interno - NAEA/UFPA Prof. Dr. Manuel Jos Sena Dutra Examinador externo - FACOM/UFPA Prof. Dr. Sirio Possenti Examinador externo - IEL/UNICAMP
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memria de Moub, liderana Nukak Maku, quem me fez compreender os mltiplos embates que seu povo sofre h quase trs dcadas, graas a nossa selvajaria ocidental. memria de Armando Mendes e Thomas Hurtienne, os mestres que me ensinaram a enxergar a Amaznia de outro jeito.
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AGRADECIMENTOS
CAPES pela concesso da bolsa com a qual pude desenvolver essa pesquisa sobre
uma problemtica transcendental para a regio Norte e, mormente, para a Pan-Amaznia toda,
unidade na diversidade sul-americana.
Aos(as) professores(as) e funcionrios(as) do NAEA, na UFPA, por compartilharem
seu saber conosco, notadamente, ao Prof. Dr. Luis Aragn, por quem soube dessa instituio.
Profa. Dra. Rosa Elizabeth Acevedo Marin, pela sua amabilidade e compreenso, por
todo o tempo oferecido nessa longa caminhada e todas as orientaes dadas durante os anos
em que desenrolamos essa pesquisa. Fico imensamente obrigado.
Ao Prof. Dr. Sirio Possenti, por me aceitar como aluno especial na sua disciplina de
Introduo Anlise do Discurso, ministrada em 2014 na UNICAMP. Esse perodo no IEL
foi realmente crucial na minha formao pessoal e acadmica.
A Mara Ernestina Garreta Chindoy, admirvel lutadora e querida esposa, por sua
incansvel companhia e apoio ao longo desse esforo que nos levou descoberta de novos e
valiosos conhecimentos e paisagens maravilhosas. Sem sua magnfica ajuda, coragem e
perseverana, esse processo nem sequer tivera comeado.
minha me, Rosa, ao meu pai, Oscar, e todos os meus irmos e irms, dessa famlia
que comeou a formar-se na dcada de 1970 e que, mesmo distncia, enviam-me a energia
que fortifica as minhas jornadas.
Aos meus sogros, Delia Chindoy e Miguel Garreta, pela estimao e apreo, pela
ateno com que sempre nos acolhem.
A Gustavo Patio lvarez, advogado extraordinrio, e a sua famlia, graas a quem
conheci as lutas indgenas e me aventurei pela primeira vez na Amaznia em 2004.
Aos(as) indgenas das organizaes e terras visitadas durante 2012 e 2013, na regio
amaznica do Equador, Peru, Bolvia, Brasil, Venezuela e Colmbia. Especialmente s
comunidades de Condagua e Cidade Hitoma, na Colmbia; e ao povo Mundurucu, no Brasil.
Todas as suas lutas e reivindicaes sociais so tambm as nossas.
Aos(as) colegas dessa turma diversa que integrou o curso de doutorado no PPGDSTU
ao incio de 2011, pelos momentos partilhados conosco, os cafezinhos dos intervalos e os
mltiples bate-papos que ajudaram no aperfeioamento do meu portugus.
Enfim, a todos(as) os(as) que, de alguma maneira ou de outra, encontramos ou nos
encontraram no caminho feito ao longo desses quatro anos.
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El hecho de que no nos hayan puesto en los mapas no quiere decir que seamos unos aparecidos.
Povo Ianacona
Es el mayor ro que hay en el Per; los indios le llaman Apurmac; quiere decir: el principal, o el capitn que habla, que el nombre apu tiene ambas significaciones, que comprende los principales de la paz y los de la guerra. Tambin le dan otro nombre, por ensalzarle ms, que es Cpac Mayu: mayu quiere decir ro; Cpac es renombre que daban a sus Reyes; dironselo a este ro por decir que era el prncipe de todos los ros del mundo.
Inca Garcilaso de la Vega
La gran mayora de los pueblos han sido y siguen siendo no ciudadanos sino sbditos.
James Scott
Si las nuevas tcnicas de comunicacin favorecen el funcionamiento de los grupos humanos en inteligencia colectiva, repitamos que no la determinan automticamente.
Pierre Lvy
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RESUMO
A Amaznia uma extensa rea sul-americana, compartilhada por oito pases e um
departamento ultramarino francs. Ela hoje conhecida amplamente pela sua diversidade
socioambiental. A existncia de indgenas e outros povos tradicionais, ao longo desse
territrio, tem sido historicamente decisiva para a conservao de formas comuns de acesso e
usufruto da terra. Nesse contexto, os movimentos indgenas tm desenvolvido uma importante
tarefa de estruturao organizativa, especialmente a partir da dcada de 1970, com o fim de
reivindicar tais direitos no mbito do estado-nao. Constituram-se, assim, novos agentes
organizacionais em luta pelo reconhecimento pleno de seu status cidado em pases como
Bolvia, Equador, Peru, Colmbia, Venezuela e Brasil. Como consequncia dessa articulao
organizativa e, mais ainda, da resistncia histrica das populaes indgenas ao extermnio
fsico e simblico, as novas constituies polticas nesses estados reconheceram o carter
tnico e multicultural de suas sociedades. Surgiram, desse modo, entidades de ndole tnico-
regional como a Confederao de Povos Indgenas do Oriente, Chaco e Amaznia da Bolvia
(CIDOB), a Coordenao das Organizaes Indgenas da Amaznia Brasileira (COIAB), a
Organizao dos Povos Indgenas da Amaznia Colombiana (OPIAC), a Confederao das
Nacionalidades Indgenas da Amaznia Equatoriana (CONFENIAE), a Associao Inter-
tnica de Desenvolvimento da Selva Peruana (AIDESEP) e a Organizao Regional de Povos
Indgenas do Amazonas (ORPIA) na Venezuela. Organizaes que chegam no sculo XXI
com a responsabilidade de reivindicarem os direitos dos mltiplos povos que representam,
tendo ao seu alcance novas ferramentas como as Tecnologias de Informao e Comunicao
(TICs), as quais poderiam, em graus diversos, alavancar esse objetivo social. Este estudo
comparativo permite compreender a relao das reivindicaes tnicas cidads com o saber
comunicacional indgena e o modo em que elas produzem informao e comunicao.
Palavras-chave: Organizaes indgenas. Amaznia. Cidadania. Tecnologias de informao e comunicao. Comunicao transdisciplinar.
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ABSTRACT
The Amazon is an extensive South American area, shared by eight countries and a French
overseas department. It is now widely known for its social and environmental diversity. The
existence of indigenous and other traditional peoples over that territory, has historically been
crucial for the conservation of common ways to access and use the land. In this context,
indigenous movements have developed an important organizational structuring task,
especially starting from the 1970s, in order to claim such rights within the nation-state. Thus,
they have set up new agencies in the struggle for full recognition of their citizen status in
countries like Bolivia, Ecuador, Peru, Colombia, Venezuela and Brazil. As a consequence of
organizational articulation and, even more, the historical resistance of indigenous peoples to
the physical and symbolic disintegration, the new political constitutions in those countries
recognized the ethnic and multicultural character of their societies. Regional ethnic
organizations emerged like the Confederation of Indigenous Peoples of the East, Chaco and
Amazon of Bolivia (CIDOB), the Coordination of Indigenous Organizations of the Brazilian
Amazon (COIAB), the Organization of Indigenous Peoples of the Colombian Amazon
(OPIAC), the Confederation of Indigenous Nationalities of the Ecuadorian Amazon
(CONFENIAE), the Inter-ethnic Association of the Peruvian Rainforest Development
(AIDESEP) and the Regional Organization of Indigenous Peoples of the Amazon (ORPIA) in
Venezuela. Organizations that reach the twenty-first century with the responsibility to claim
the rights of multiple people representing, with new tools such as Information and
Communication Technologies (ICTs), which could, in varying degrees, leverage this social
goal. This comparative study allows us to understand the relationship of ethnic-citizen claims
with indigenous knowledge about communication and the way they produce information and
communication.
Keywords: Indigenous organizations. Amazon. Citizenship. Information and communication technologies. Transdisciplinary communication.
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LISTA DE FIGURAS
Figura 1 - Circuito da fala segundo Saussure............................................................ 33
Figura 2 - Eixos inter- e intradiscursivo........................................................................ 51
Figura 3 - O poder segundo os meios mobilizados........................................................ 97
Figura 4 - Concepo e mtodo tri-dimensionais de anlise do discurso...................... 98
Figura 5 - Evoluo do nmero de dissertaes e teses sobre TICs no Brasil (2001-2010............................................................................................................... 134
Figura 6 - Teses e dissertaes sobre TICs no Brasil por regio (2001-2010).............................................................................................................. 138
Figura 7 - O botuto ontem (a) e hoje (b)........................................................................ 224
Figura 8 - Manguars muinane (macho e fmea, respetivamente)................................ 225
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LISTA DE QUADROS
Quadro 1 - Fatores envolvidos na comunicao verbal segundo Jakobson................ 36
Quadro 2 - Formaes imaginrias do sujeito do discurso......................................... 43
Quadro 3 - Unidades tpicas e no-tpicas da Anlise do Discurso.......................... 53
Quadro 4 - O sujeito discursivo numa perspectiva psicanaltica................................ 70
Quadro 5 - Perspectivas de base em comunicao..................................................... 86
Quadro 6 - Quantidade de informao publicada a novembro de 2013 nos portais das organizaes indgenas...................................................................... 135
Quadro 7 - Organizaes regionais indgenas, tecnologia, velocidade de rede e localizao geogrfica.............................................................................. 136
Quadro 8 - O quadrado ideolgico............................................................................. 137
Quadro 9 - Roteiro inicial de perguntas temticas...................................................... 182
Quadro 10 - Enunciados/impresses sobre a cidadania na AIDESEP......................... 193
Quadro 11 - Enunciados/impresses sobre cidadania na CIDOB................................ 199
Quadro 12 - Enunciados/impresses sobre cidadania na COIAB................................ 212
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LISTA DE SIGLAS
A.M. Modulao em Amplitude
AD Anlise do Discurso
AAD Anlise Automtica do Discurso
ACD Anlise Crtica do Discurso
ADSL Asymmetric Digital Subscriber Line
AIDESEP Associao Inter-tnica de Desenvolvimento da Selva Peruana
AIE Aparelhos Ideolgicos de Estado
ANPPAS Associao Nacional de Ps-Graduao e Pesquisa em Ambiente e Sociedade
APA Amerindian People's Association of Guyana
APPE Associao Peruana de Imprensa Estrangeira
AZCAITA Associao Zonal do Conselho de Autoridades Indgenas de Tradio Autctone
CAPES Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior
CD Compact Disc
CIDH Comisso Inter-americana de Direitos Humanos
CIDOB Confederao de Povos Indgenas do Oriente, Chaco e Amaznia da Bolvia
CIPTA Centro de Informao e Planejamento Territorial AIDESEP
COIAB Coordenao das Organizaes Indgenas da Amaznia Brasileira
COICA Coordenao das Organizaes Indgenas da Bacia Amaznica
CONAMAQ Conselho Nacional de Aillus e Marcas do Quiasuio
CONFENIAE Confederao das Nacionalidades Indgenas da Amaznia Equatoriana
DANE Departamento Administrativo Nacional de Estatstica
DVD Digital Video Disc
EIB Educao Intercultural Bilngue
F.M. Modulao em Frequncia
FD Formao Discursiva
FOAG Fdration des Organisations Autochtones de Guyane
FUNAI Fundao Nacional do ndio
GB Gigabyte
Gb Gigabit
GPL General Public License
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GPRS General Packet Radio Service
GPS Global Positioning System
IBAMA Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renovveis
IBERCOM Associao Ibero-Americana de Comunicao
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica
IEL Instituto de Estudos da Linguagem
IIRSA Iniciativa de Integrao da Infraestrutura Regional Sul-Americana
INE Instituto Nacional de Estatstica
INTERCOM Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicao
ISDN Integrated Services Digital Network
KB Kilobyte
Kb Kilobit
Kbps Kilobits por segundo
MB Megabyte
Mb Megabit
Mbps Megabits por segundo
MD Materialismo Histrico
MERCOSUL Mercado Comum do Sul
MH Materialismo Dialtico
LSB Linux Standard Base
NAEA Ncleo de Altos Estudos Amaznicos
OIS Organisatie van Inheemsen in Suriname
OIT Organizao Internacional do Trabalho
ONG Organizao No-Governamental
ONIC Organizao Nacional Indgena da Colmbia
ONU Organizao das Naes Unidas
OPIAC Organizao dos Povos Indgenas da Amaznia Colombiana
ORPIA Organizao Regional de Povos Indgenas do Amazonas
OTCA Organizao do Tratado de Cooperao Amaznica
OS X Dcima verso do sistema operacional Macintosh
OTCA Organizao do Tratado de Cooperao Amaznica
PAC Programa de Acelerao do Crescimento
PNCSA Projeto Nova Cartografia Social da Amaznia
PPGDSTU Programa de Ps-Graduao em Desenvolvimento Sustentvel do Trpico mido
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RPOs Rdios dos Povos Indgenas
SBPC Sociedade Brasileira para o Progresso da Cincia
SIG Sistema de Informao Geogrfico
TICs Tecnologias de Informao e Comunicao
TIPNIS Territrio Indgena e Parque Nacional Isiboro Scure
UFPA Universidade Federal do Par
UNESCO Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura
UNICAMP Universidade Estadual de Campinas
USB Universal Serial Bus
WEB World Wide Web
WI-FI Wireless Fidelity
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SUMRIO
1 INTRODUO.................................................................................................. 16
2 SOBRE A COMUNICAO DISCURSIVA.................................................. 28 2.1 Problematizar a comunicao............................................................................ 28 2.1.1 O que discurso? Uma definio interdisciplinar................................................ 30 2.2 Da comunicao mecanicista ao discurso......................................................... 32 2.2.1 O modelo de comunicao subjacente na lingustica saussureana....................... 32 2.2.2 Teoria da informao e modelo jakobsoniano da comunicao........................... 35 2.2.3 'O efeito a mensagem'........................................................................................ 37 2.3 Filosofia e linguagem.......................................................................................... 39 2.4 Teoria do discurso: fundamentos para uma comunicao discursiva........... 42 2.4.1 Condies de produo do discurso...................................................................... 43 2.4.2 O que formao discursiva (FD)?...................................................................... 44 2.4.2.1 Formao discursiva em Foucault....................................................................... 45 2.4.2.2 Formao discursiva em Pcheux........................................................................ 48 2.4.2.3 O que 'interdiscurso'?........................................................................................ 50 2.4.2.4 Outra forma de entender as FD: unidades tpicas e no-tpicas........................ 52 2.4.3 O enunciado como unidade da comunicao discursiva...................................... 53 2.4.4 Enunciao no fala: a questo do sujeito numa teoria do discurso.................. 60
3 TICS, IDEOLOGIA E CIDADANIA............................................................... 73 3.1 Tecnologias, informao e comunicao........................................................... 73 3.2 Pensar as TICs numa tica scio-materialista................................................. 82 3.3 Teoria da comunicao: uma viso geral......................................................... 84 3.4 Ideologia e discurso............................................................................................. 90 3.5 Poder e prticas sociais....................................................................................... 94 3.5.1 Histria, sociedade e relaes de dominao........................................................ 94 3.5.2 Texto e prtica social............................................................................................ 98 3.6 Da cidadania incompleta cidadania tnica.................................................... 100
4 MATERIALISMO HISTRICO, METODOLOGIA DISCURSIVA E BENS COMUNS................................................................................................. 104
4.1 Metodologia: reconstrues e polos................................................................... 104 4.2 Materialismo histrico e dialtica..................................................................... 106 4.2.1 A vida e a atividade produtiva numa ontologia materialista histrica.................. 110 4.2.2 Modo de produo extrativo, propriedade, domnios........................................... 115 4.2.3 Sobre a dialtica como lgica cientfica............................................................... 120 4.2.4 Consideraes epistemolgicas sobre o materialismo histrico e dialtico......... 124 4.3 Anlise crtica do discurso e questes de pesquisa........................................... 132 4.3.1 O corpus de uma pesquisa discursiva sobre as TICs............................................ 133 4.3.2 O quadrado ideolgico, instrumento de anlise discursivo-social........................ 137 4.4 A internet como bem ou recurso comum.......................................................... 138
5 TPICOS PARA UMA TEORIA TRANSDISCIPLINAR DA COMUNICAO.............................................................................................. 146
5.1 Informao, impresso e sentido....................................................................... 146 5.1.1 A informao como fator de comunicao........................................................... 147 5.1.2 O 'efeito expresso' e a unidade de anlise da comunicao................................ 149 5.2 A linguagem como factor de comunicao social............................................. 151
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5.3 O canal ou as condies ambientais da comunicao...................................... 155 5.4 Uma perspectiva transdisciplinar da comunicao......................................... 157 5.5 Elementos para uma anlise das relaes entre cidadania e comunicao
na Amaznia........................................................................................................ 159
5.5.1 Modos de produo e formao social na Amaznia........................................... 160 5.5.2 Aspectos da cidadania em face da comunicao na Amaznia............................ 172 5.5.2.1 Revisitando o sentido da cidadania sob a tica do materialismo histrico......... 174 5.5.3 Informao geogrfica e TICs na AIDESEP........................................................ 177
6 SENTIDOS DA CIDADANIA ATRELADOS AO USO DE TICS EM ORGANIZAES INDGENAS AMAZNICAS........................................ 180
6.1 Organizaes indgenas: espaos histricos de reivindicao social.............. 186 6.2 Uma luta scio-histrica da AIDESEP no Peru............................................... 190 6.2.1 Sentidos da cidadania na AIDESEP..................................................................... 191 6.3 O Estado Pluri-Nacional Boliviano e a defesa dos direitos nas terras
baixas.................................................................................................................... 195
6.3.1 CIDOB: a defesa dos direitos nas terras baixas.................................................... 197 6.3.2 Sentidos da cidadania na CIDOB........................................................................ 198 6.4 Um instrumento de representao e luta na Amaznia brasileira................. 210 6.4.1 A cidadania entre aspas......................................................................................... 212
7 TECNOLOGIAS DE (DES)INFORMAO E (IN)COMUNICAO NO CONTEXTO DO SABER COMUNICACIONAL INDGENA AMAZNICO..................................................................................................... 221
7.1 Elementos etnogrficos do saber comunicacional indgena amaznico......... 221 7.1.1 O mullu e o botuto................................................................................................ 222 7.1.2 De trocanos e manguars..................................................................................... 224 7.1.3 Ecos e cantos entre os tacana e os aioreo............................................................. 226 7.1.4 A comunicao interpessoal................................................................................. 228 7.1.5 De chasques e quipos........................................................................................... 228 7.2 Organizaes regionais indgenas e tecnologias de (des)informao e
(in)comunicao.................................................................................................. 231
8 CONSIDERAES FINAIS............................................................................ 238
REFERNCIAS................................................................................................. 245
APNDICE.......................................................................................................... 260
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1 INTRODUO
Os parnteses que acompanham o ttulo desse trabalho merecem a primeira
considerao. O des- e o in- da informao e da comunicao, respetivamente, sugerem uma
problematizao desses conceitos chaves da pesquisa. Isto , de no partir deles como se
fossem fenmenos ou processos dados, claros, certos. Trata-se de enxerg-los na sua
constituio como prticas sociais que navegam entre a certeza e a incerteza, com graus
diversos de probabilidades na sua concreo.
Entre informao e desinformao (ou comunicao e incomunicao) no existe uma
linha divisria evidente ou que, ao menos, possa-se distinguir com absoluta clareza. Em
alguns cenrios, a identificao da primeira poderia ser fcil, mas, a segunda, graas ao seu
carter camalenico, insere-se pelos interstcios dos chamados meios massivos de
comunicao, tanto quanto no cotidiano. E, assim muitos desses meios faam questo de se
declarar isentos, reproduzem estratgias de manipulao comercial, poltica, cultural, militar,
etc., nos seus discursos. Ali a comunicao inibe ou impossibilita o seu sentido como
processo aberto e solidrio para se converter numa mercadoria a mais.
At hoje parece que estamos mais desinformados do que comunicados. Ou, talvez,
mais incomunicados do que informados. Assim, o acmulo de informao que atingimos no
acompanha, necessariamente, a qualidade da comunicao social. Pense-se ainda na
importncia crescente do uso de TICs nas organizaes e a sociedade em geral, os poucos
estudos sobre o assunto na Pan-Amaznia, a diversidade socioambiental nesta regio e as
percepes acrticas na relao da comunicao e o desenvolvimento. Conjuntura em que a
reflexo sobre os modos de produzir informao e comunicao nas organizaes indgenas
torna-se inadivel.
Aprofunda-se nessa problemtica segundo uma abordagem transdisciplinar e
pluralista. Neste aspecto, a leitura de todo tipo de textos recomendados nas disciplinas
cursadas no NAEA, os conselhos da minha orientadora, a pesquisa de campo, o perodo de
estudo na Unicamp e o dilogo entre saberes comunicacionais, foram essenciais para a escrita
e a estruturao dos captulos aqui reunidos. Eles aparecem aqui como produto, mas devem
ser considerados igualmente como ponto de partida de outras indagaes.
dito que as ltimas dcadas do sculo XX trouxeram grandes inovaes nos campos
da informao e da comunicao, especialmente em relao micro-eletrnica e s
telecomunicaes. Estas potenciaram os computadores e possibilitaram a interconexo de
mquinas e seres humanos na internet. No entanto, o acesso e uso das mais novas Tecnologias
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de Informao e Comunicao (doravante TICs) herdam as enormes desigualdades histricas,
pois, em tanto alguns setores sociais tm acesso de tima qualidade e os mais avanados
aparelhos informticos, muitos outros carecem deles e/ou no tm acesso sequer internet.
Mas, a carncia desse acesso no quer dizer que os valores sociais da informao e da
comunicao sejam menores. Os saberes e prticas a elas ligados assinalam algumas
tendncias sobre o agir comunicativo nas entidades regionais indgenas analisadas: AIDESEP,
CIDOB, COIAB, CONFENIAE, OPIAC e ORPIA.
Em termos organizacionais, a visibilidade das atividades corporativas e a
disponibilizao e compartilhamento de informao dinamizar-se-iam com os avanos das
TICs. Por exemplo, o desenvolvimento da Web 2.0, durante a primeira dcada do sculo XXI,
diminuiu custos como os de transmisso e publicao, desonerando as entidades de boa parte
dessas despesas. Mas, outras barreiras, relativas ao saber-fazer e s relaes de produo,
impedem usos mais efetivos dessas tecnologias por parte de algumas organizaes indgenas
amaznicas.
Nesse panorama, as entidades indgenas locais s vezes sofrem at pelo fornecimento
de energia eltrica, que a base para o funcionamento de aparelhos e dispositivos eletrnicos.
Porm, no nvel regional, as organizaes tm conseguido melhor infraestrutura e servios por
estar sediadas nas capitais de departamentos, estados ou pases, sendo que no por isso
deixem de experimentarem tambm disfuncionalidades no acesso e uso de TICs.
Devo dizer que a oportunidade que tenho tido de trabalhar profissionalmente na rea
de Comunicao Social, nos ltimos anos, com grupos e entidades indgenas amaznicos,
principalmente na Colmbia, oferece-me elementos imprescindveis para o estudo dessa
problemtica. Da mesma maneira, no desenvolvimento da minha dissertao tive ocasio de
fazer uma pesquisa de campo ao longo do rio Putumayo-I, conhecendo de perto as
atividades indgenas nessa bacia, que leva suas guas at o rio Solimes. Outra excurso de
campo, feita em alguns pontos da bacia do Caquet-Japur, permitiu aprofundar tambm a
minha aproximao s culturas da Amaznia (PARRA MONSALVE, 2009). Dessa vez, o
horizonte de pesquisa pan-amaznico, analisado atravs dos modos de produzir informao e
comunicao num mbito organizacional indgena, implicou o desenvolvimento de atividades
de campo em setores amaznicos e andinos da Bolvia, o Peru, a Colmbia, o Equador, a
Venezuela e o Brasil. O que forneceu diversos momentos e materiais que complementaram as
vrias consideraes terico-metodolgicas colocadas nesse documento.
Por isso, a temtica escolhida tem a ver com aquela, a minha trajetria recente, e com
a procura de melhor conhecimento sobre as dinmicas miditicas e de comunicao dos
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grupos indgenas dessa regio tropical. Trata-se de descrever, interpretar e explicar a
realizao dessas dinmicas nas organizaes a partir de ferramentas tecnolgicas, avaliando
as suas potencialidades e limitaes no contexto corporativo dos movimentos sociais
indgenas amaznicos. Enxerga-se, desse ponto de vista, a riqueza representada nos saberes
indgenas sobre, entre outras matrias, a informao e a comunicao, em constante
transformao pelos diferentes contatos culturais.
Quanto perspectiva temporal e espacial dessa pesquisa, deu-se prioridade ao estado
atual da temtica em seis entidades regionais na bacia amaznica, com foco na ltima dcada
e meia (2001-2014). No entanto, considera-se fundamental levar em mente as trajetrias
organizacionais, que do conta do seu desenvolvimento histrico nas dcadas finais do sculo
XX. Este fio condutor levar-nos- muito seguramente a quatro ou cinco dcadas atrs, aos
primrdios da estruturao de algumas das atuais organizaes indgenas dessa bacia na
Bolvia, Brasil, Colmbia, Equador, Peru e Venezuela.
Estimou-se, inicialmente, em quase 50 mil reais o oramento para a realizao da
pesquisa de campo nos pases objeto da anlise, incluindo despesas de transporte integral
(internacional, nacional, regional, local), hospedagem, alimentao, em parte ultrapassado. No
total estive seis dias na Bolvia, dez no Peru, seis no Equador, sete na Venezuela, quinze no
Brasil, e, a maior permanncia, na Colmbia, durante quase 90 dias. Essa desproporo
quanto ao tempo dedicado ao campo na Colmbia respeito dos outros pases, justifica-se por
duas razes. Em primeiro lugar, devido s restries do oramento da pesquisa e sendo
natural da Colmbia, onde conheo vrias organizaes, comunidades e terras indgenas,
preferi desenvolver ali com maior aprofundamento algumas questes etnogrficas dessa tese.
Em segundo lugar, pela minha experincia profissional na Amaznia colombiana, essa
perspectiva etnogrfica pde concretizar-se nas terras indgenas de Cidade Hitoma em Letcia,
Amazonas, e Condagua, em Mocoa, Putumayo, nas quais tinha contatos desde os anos 2007 e
2008, poca em que realizei essa outra pesquisa de campo para a minha dissertao, no
programa de mestrado em histria da Universidade Nacional da Colmbia. Cidades em que
foi relativamente fcil o acesso a diversos centros regionais de documentao e pesquisa,
assim como a espaos adequados sistematizao e anlise dos dados coletados durante o
percorrido de investigao.
Esse tempo em campo representou, aproximadamente, quatro meses, ainda que no
consecutivos. Uma parte do oramento concretizou-se com a bolsa da CAPES; a outra parte
com fundos pessoais e a gentileza de diversas pessoas nesses territrios. Finalmente, fizeram-
se visitas e entrevistas em cinco das nove organizaes almejadas na proposta inicial (cf.
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Apndice A). Por questes oramentrias e de tempo no foi possvel fazer visita de campo
nem entrevistas na Guiana (Amerindian People's Association of Guyana, APA), na Guiana
Francesa (Fdration des Organisations Autochtones de Guyane, FOAG), no Suriname
(Organisatie van Inheemsen in Suriname, OIS) e no Equador (Confederacin de
Nacionalidades Indgenas de la Amazonia Ecuatoriana, CONFENIAE). Contudo, o alcance
dessa seleo, em termos de aprofundamento sobre a comunicao na regio amaznica,
continua a ser amplo e diverso, tal e como se ver.
Na sua ordem, a Confederacin de Pueblos Indgenas del Oriente, Chaco y Amazonia
de Bolivia, CIDOB, em Santa Cruz de La Sierra, Bolvia; a Coordenao das Organizaes
Indgenas da Amaznia Brasileira, COIAB, em Manaus, Brasil; a Organizacin de los
Pueblos Indgenas de la Amazonia Colombiana, OPIAC, em Bogot, Colmbia; a
Organizacin Regional de Pueblos Indgenas del Amazonas, ORPIA, em Puerto Ayacucho,
Venezuela; e a Asociacin Intertnica de Desarrollo de la Selva Peruana, AIDESEP, em
Lima, Peru, foram visitadas e realizadas entrevistas nas suas sedes principais.
No obstante, em termos de acesso s matrias publicadas na internet, os stios da
COIAB, da CIDOB e da AIDESEP, permitiram uma anlise mais detalhada e rigorosa,
comparativamente falando. Isto se v respaldado tambm pelas prprias trajetrias desses
agentes organizacionais e suas condies histricas. Tais organizaes foram essenciais para a
construo do corpus de anlise da cidadania, a partir de matrias disponibilizadas na internet.
O objetivo principal dessa tese foi compreender a relao das reivindicaes cidads
dessas organizaes regionais e a utilizao de TICs. Especificamente, interpretar esses usos e
explicar as suas potencialidades e disfuncionalidades nesse mbito. Para tanto, o corpus de
anlise selecionado, fornece materiais onde a prtica comunicativa organizacional aparece nas
redes eletrnicas. Mas, antes de se chegar l, sero feitas vrias reflexes e discusses sobre
alguns fundamentos tericos, metodolgicos, analticos, tcnicos, que constam em diversos
captulos desse documento, tal e como se descreve a continuao.
Comeamos pelo segundo captulo, Sobre a comunicao discursiva, o qual
desenvolve pressupostos tericos derivados, mormente, das cincias da comunicao, da
lingustica, da teoria do discurso, da sociologia e da filosofia da linguagem, complementados
no terceiro captulo intitulado TICs, ideologia e cidadania. A seguir, o quarto, Materialismo
histrico, metodologia discursiva e bens comuns, coloca questes de ordem lgica,
ontolgica, epistemolgica e, em menor medida, terica. Representa o momento de
ponderao dos fundamentos metodolgicos principais dessa tese, assim como da reflexo em
torno da prtica cientfico social.
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Vale repetir que nesses captulos (como na tese toda) desenvolvemos uma perspectiva
pluralista, pois se articulam ali abordagens crticas, sociais, discursivas, inter- e trans-
disciplinares. Interdisciplinar no primeiro momento da pesquisa, o qual se defronta com a
fundamentao terica e metodolgica oferecida, em parte, nas disciplinas cursadas durante o
primeiro ano de estudos no NAEA e na reviso de literatura. O segundo momento, da
pesquisa de campo, desdobrou-se numa perspectiva transdisciplinar, acolhendo outros saberes
sobre informao e comunicao na Pan-Amaznia.
Quanto ao quinto, Tpicos para uma teoria transdisciplinar da comunicao, sugere
um caminho possvel para a investigao social, o qual visa abordagens inovadoras nas
cincias da comunicao e, por que no, nas prticas comunicativas dos mesmos agentes
sociais. Isto se poderia desenrolar s com a ampla discusso e a adequada participao que
uma temtica como essas exige. J o sexto, Sentidos da cidadania atrelados ao uso de TICs
em organizaes indgenas amaznicas, oferece uma anlise do discurso sobre a cidadania
indgena, num contexto dito democrtico, pois o perodo estudado foca-se nos anos de 2001 a
2014, em pases com regimes constitucionais democrticos vigentes.
Destaca-se mesmo a nfase terico discursiva nessa pesquisa. Assim, o eixo central da
nossa anlise, estrutura-se numa conceitualizao aprofundada, mormente, no comeo e a
metade, a qual se auna, paulatinamente, nas divises posteriores desse documento. bom
lembrar que nessas divises desenrolam-se consideraes poltico econmicas, etnogrficas,
discursivas, comunicativas, descrevendo os resultados centrais da anlise. Finalmente, o
stimo captulo, Tecnologias de (des)informao e (in)comunicao no contexto do saber
comunicacional indgena amaznico, desenvolve um olhar etnogrfico ligado aos resultados
mais importantes da pesquisa de campo.
Nesses quase trs lustros do nosso recorte temporal, a internet e todo tipo de
aparelhagem tm se espalhado enormemente, junto ao aumento das velocidades de
transferncia e as maiores quantidades de armazenagem e processamento de informao. Sem,
no entanto, melhorar as possibilidades de permanncia dessa imensa diversidade social e
ambiental que a Amaznia. primeira vista, esses avanos dos campos da informao e da
comunicao no aparecem como ameaa para essa diversidade regional. Mas, mergulhando-
se nas conexes propostas ao longo desses captulos, enxerga-se o desafio que representam as
TICs respeito da diversidade socioambiental e a sua permanncia; desafio atrelado, mormente,
ao desenvolvimento do modo capitalista de produo.
preciso lembrar tambm que diversos textos aqui aprofundados foram apresentados
em anais, resumos, pster, comunicaes orais, em reunies da Sociedade Brasileira para o
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Progresso da Cincia (SBPC), a Associao Nacional de Ps-Graduao e Pesquisa em
Ambiente e Sociedade (ANPPAS) e a Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da
Comunicao (INTERCOM). Recentemente foi aceite, de igual forma, outro trabalho para
apresentao no XIV Congresso da Associao Ibero-Americana de Comunicao
(IBERCOM), a realizar-se na Escola de Comunicao e Artes da Universidade de So Paulo
(29 de maro a 02 de abril de 2015).
Nessas participaes (e outras mais, como na Cpula dos Povos na Rio+20) pude
trocar ideias e argumentos com mltiplas pessoas, sobre variados aspectos da pesquisa que,
sem dvida, auxiliaram no seu aperfeioamento. Dessa maneira, tanto a pesquisa de campo
como as publicaes e a anlise aqui redigida, respondem s diferentes fases desse trabalho
acadmico. Um trabalho que representou para mim um verdadeiro desafio tambm em termos
de uma temtica que ainda pouco entendida pela prpria pesquisa cientfica.
Se pensarmos que o nosso objeto de anlise tem a ver com sujeitos coletivos, portanto,
poltico-ideolgicos, torna-se sugestivo, ento, conceber as atividades organizacionais
indgenas como necessidades de novo direito ou prticas de direito vivo (GRIMALDI,
2014), as quais esto ligadas com os campos da informao e da comunicao. Trata-se de
uma discusso relacionada com uso do espectro eletromagntico, das infraestruturas digitais,
da transmisso de contedos, dentre outros assuntos do complexo (mas no complicado) e
reticular mundo das tecnologias digitais, da produo de informao e comunicao, ligados
ao campo da cidadania, em ltima instncia, do direito e da poltica.
As possibilidades da informtica e da comunicao assinalam novos horizontes nesses
campos, decorrentes das invenes e descobertas em diferentes setores cientficos e
tecnolgicos. S que a dinmica dominante em que tais invenes e descobertas
desenvolvem-se, assinalam a maneira perversa em que ainda vivemos, na pr-histria da
humanidade; levando nas nossas costas a carga da transformao indevida dos bens comuns
em mercadorias. Incluindo nelas at a informao e o conhecimento.
Sem dvida, uma das resistncias mais perseverantes ante tal transformao tem sido a
dos povos indgenas, nos quais a terra (e outros commons) ainda conservam um sentido do
pr-comum, presente nessas populaes, povos originrios, nacionalidades ou comunidades
nativas. Onde o governo do territrio no pode ser particular seno coletivo, pois a terra no
tida como simples mercadoria. Sobre esse tpico vai se discutir ao longo desse trabalho,
frisando a importncia da formao e funcionamento de laboratrios e atividades de
informao geogrfica. Adiantando um pouco disso, diremos que os processos de criao
cartogrfica feitos pelas organizaes e/ou comunidades indgenas amaznicas revelam uma
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tendncia para o uso de mapas que aliceram suas reivindicaes cidads. Portanto, de sua
forma coletiva de apropriao e usufruto da terra, gua, ar, floresta, animais; de sua luta por
um espao de existncia comum como grupo social que resiste, est vivo e que precisa de
novos horizontes de direito.
Explica-se. Essas prticas produtivas coletivas, que poderamos agrupar nos chamados
bens comuns so especialmente importantes na nossa considerao. Isto inclui, claro,
aquelas relativas aos campos da informao e da comunicao, onde essa perspectiva terica
assinala no uma tragdia seno uma alternativa vivel de administrao dos recursos de uso
comum. O grande contraste entre as terras indgenas e as reas de colonizao aponta
transformao acelerada dessas ltimas, com um elevadssimo custo social e ambiental, que
se projeta em cada um dos pases que dividem as territorialidades amaznicas. Muitos desses
projetos planejados, ou em obra, constam dos programas da chamada Iniciativa de Integrao
da Infraestrutura Sul-Americana, IIRSA, ou do Programa de Acelerao do Crescimento,
PAC, e demais planos de desenvolvimento nacional (planos que no Brasil transformaram
rapidamente a Amaznia, especialmente desde os anos 1970, como eixo de articulao
necessrio nova configurao espacial do pas).
Fala-se, assim, da construo de grandes hidreltricas como as dos rios Xingu e
Madeira ou do Plano Amaznia Sustentvel (PRESIDNCIA DA REPBLICA, 2008, no
paginado); este ltimo com o compromisso manifesto de fortalecer a integrao amaznica
por meio de organismos como a Organizao do Tratado de Cooperao Amaznica (OTCA)
e o Foro Consultivo de Municpios, Estados, Provncias e Departamentos do MERCOSUL.
Esses empreendimentos so impostos s populaes locais como prioridade nacional, visando
fornecer ao mercado os recursos naturais, assim entregues a grandes empresas nacionais e
estrangeiras (CASTRO, 2009), enquanto o planejamento nacional em instrumentos como o
Plan Nacional de Desarrollo da Colmbia (2011), projetam ali as reas amaznicas no marco
de uma integrao para a circulao de mercadorias, energia, transporte, ligados aos discursos
sobre os mercados nacionais e globais. Mais adiante voltaremos nesse contexto que,
certamente, tem a ver com a nossa problemtica.
Por enquanto, anotaremos algumas outras consideraes em torno desse trabalho.
Devemos dizer, primeiramente, que a tese traz as referncias em portugus, espanhol, francs,
ingls, pois se optou por citaes em lngua de origem no texto e suas respetivas tradues
livres em nota de rodap. H mesmo ali uma rica coleo de notas explicativas,
especificaes, dados, enunciados, acompanhando, assim, as arguies feitas em cada seo.
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A anlise foca questes como: o que a informao publicada na internet representa
para as metas e objetivos dos agentes organizacionais estudados? Como as organizaes
fazem produo e reproduo de informao eletrnica que visibiliza as suas reivindicaes
tnicas cidads? De que forma a prpria organizao indgena continua a enxergar a
tecnologia, a informao e a comunicao? Que efeitos de sentido movimenta a cidadania nas
prticas discursivas dessas organizaes regionais dos povos amaznicos? Em suma, trata-se
de refletir sobre o modo de produzir informao e comunicao, como uma prtica
sociocultural, dentre outras, relevante na vida das populaes e das organizaes indgenas.
O que mais certo se pensarmos que na Ideologia Alem Marx e Engels (1998) falam
nos modos de produo como a maneira mediante a qual os homens, organizados em
sociedade, produzem a sua subsistncia; os modos de produo correspondem aqui, de acordo
com palavras dos fundadores do Materialismo Histrico, a modos de vida, ou uma forma
determinada de manifestar a vida, prximo de modo de fazer. Eles realizam isto usando os
instrumentos de sua cultura; de sua cultura na prtica como diria Sahlins. Destarte, optou-se
por enfatizar a categoria de modos de produo nessa tese.
Em nossos dias, certamente, o modo capitalista ainda domina o cenrio mundial. E
cabe aos pesquisadores lembrarem e descobrirem formas especficas em que esse predomnio
produzido, reproduzido ou contestado. assim que entendemos a prtica cidad, atrofiada
por mecanismos estatais ou de mercado. Nessa medida podemos afirmar que em lugar do
cidado formou-se um consumidor, que aceita ser chamado de usurio. (SANTOS, 1996, p.
13, grifo do autor). O que primeira vista apareceria como uma contradio de termos no
seno o devir do mundo, segundo uma lgica que enxerga tragdias que encobrem o potencial
de os sujeitos coletivos cooperarem e se comunicarem.
No se deve esquecer que o conhecimento tradicional (que, ao final, pode ser pensado
tambm como um acervo dinmico de informao comum) associado aos usos de fauna e
flora, ou ao funcionamento da cultura como um todo, vital para a reproduo das sociedades
indgenas. Mas, um saber transmissvel que se fragiliza pelo processo de cercamento dos bens
comuns do conhecimento e da informao. Nesse sentido, exploram-se argumentos que
valorizam o pr-comum nas TICs, o que apenas justo se pensamos na transcendncia do
coletivo para se entender o individual no mbito das sociedades indgenas. Isso se constatou
tanto na literatura como na pesquisa de campo. O reconhecimento desse valor demais,
resultante do trabalho social, da ao em comum, da cooperao, que se prolonga entre
geraes como conhecimento partilhado (produzido/reproduzido).
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Aps ler os fundamentos constitucionais dos vrios pases que dividem a Amaznia,
parece haver nesses textos muitos sinais de estimao das liberdades de expresso,
informao e comunicao, assim como alertas perante os perigos da monopolizao ou
oligopolizao do aparelho miditico. Mas, a realidade novamente supera a fico, pois assim
a internet tenha criado espaos alternos para a comunicao, as relaes sociais atuais
sinalizam ainda uma concentrao da produo e a difuso de contedos e do funcionamento
dos servios de telecomunicaes.
Panorama que representa hoje uma verdadeira provocao, em termos da diversidade
social e cultural existente na Amaznia. Quer dizer, onde os diversos modos de (re)produzir
informao nas populaes indgenas amaznicas e, por extenso, nas suas organizaes, so
tpicos compreendidos, maiormente, sob o reducionismo disciplinar que perde de vista as
especificidades das formaes econmicas e sociais como a do trpico mido sul-americano.
Por isto, seguimos assistindo hoje ao confronto cultural e social, renovado agora pela
homogeneizao potenciada no aparelho pblico-privado de informao e comunicao.
Panorama que, todavia, representa a utilizao de tecnologias, geralmente alheias, mas
estrategicamente usadas, segundo os prprios fins sociais e organizacionais dos indgenas.
Desse modo, emergem possibilidades contra-hegemnicas, de resistncia, de emancipao, de
reivindicao, ocultas muitas vezes como resultado das condies subalternas em que se
produzem. Por isso, pensamos com Scott (2000, 2011) que a explorao passvel, em
diversos momentos e espaos, de ser contestada, controvertida e at transformada, em
processos de resistncia incubados sombra dela mesma.
Uma abordagem que nos aproxima dos pressupostos scio-materialistas centrais dessa
arguio, os quais aliceram tambm a discusso em torno da cidadania. Acredita-se como
Santos (1996, p. 8) que ela pode comear por definies abstratas, cabveis em qualquer
tempo e lugar, mas para ser vlida deve poder ser reclamada. Ideia que sintetiza uma
cidadania ativa, onde diversas aes so desenvolvidas por sujeitos (em nosso caso
organizacionais) que efetivamente reclamam, manifestam, contestam, como exerccio
constante na defesa dos seus territrios, da sua vida. Atividades claramente ligadas a esses
processos de resistncia e reivindicao que se contrapem s concepes formalista e
substantivista da cidadania.
o caso das marchas que durante os anos 2011 e 2012 realizaram alguns setores
indgenas opostos construo de um tramo de estrada na Terra Indgena e Parque Nacional
Isiboro Scure (TIPNIS), na Bolvia. Ou a oposio feita pela populao de Bagua, Amaznia
peruana, em defesa dos recursos naturais. Ou da ORPIA, na Venezuela, nas lutas pelo
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reconhecimento dos territrios indgenas e na denncia da violncia contra os seus hermanos
no Estado do Amazonas, em particular, e desse pas, em geral. Esse exerccio constante, ativo,
na defesa dos bens comuns articulado em alguns efeitos de sentido sobre a cidadania,
colocados em matrias publicadas pela AIDESEP, a CIDOB e a COIAB durante o perodo
analisado.
Sentidos que encontram eco na discusso sobre o no cidado do terceiro mundo,
aquele que, em nossos pases, classificado diversamente: h os que so mais cidados, os
que so menos cidados e os que nem mesmo ainda o so. (SANTOS, 1996, p. 12). Por isso,
chega a falar-se dela at como se fosse mais privilgio do que exerccio poltico. Ento,
refletindo sobre essa cidadania atrofiada, justifica-se a deriva conceitual tomada do
arcabouo materialista histrico, com o escopo de se explicar esse campo poltico-
comunicativo ao que nos aproximamos nessas laudas.
Mas, o que tem a ver a cidadania com os modos de produo e as formaes sociais
numa perspectiva transdisciplinar da comunicao? Sintetiz-lo em poucas linhas no uma
tarefa simples. Pensemos numa abordagem que considera tambm a vida, a prtica social,
onde as problemticas ligadas s reivindicaes cidads so colocadas, dispostas, e analisadas
sob uma tica sociomaterialista, onde fatores como as condies materiais e poltico-
econmicas da sociedade (MCQUAIL, 2003) passam a fundamentar tambm o nosso olhar
cientfico social sobre a produo de fenmenos de comunicao e informao no espao e
tempo escolhidos.
Dessa forma, configurou-se um arcabouo terico-metodolgico fundamentado
mormente no Materialismo Histrico e na Anlise do Discurso. Pressupostos que, segundo o
nosso modo de ver, permitem descrever, interpretar e explicar de forma mais rigorosa a
problemtica da produo de informao e comunicao nas entidades regionais indgenas,
objeto dessa anlise. Por isto, o longo percurso dedicado a eles, junto teoria da
comunicao, considera-se uma etapa necessria (ainda que pesada e inacabada) desse
empreendimento crtico.
Empreendimento fundamentado, primeiramente, numa metodologia interdisciplinar
que, aos poucos, foi se aproximando de um horizonte transdisciplinar. Explica-se. Nos
primeiros anos desse doutorado e com a reviso de literatura realizada aprofundamos numa
viso interdisciplinar da investigao cientfico social, tal e como estipulado no Programa de
Desenvolvimento Sustentvel do Trpico mido, adscrito, entre outros 288 programas de
educao superior brasileira, na rea interdisciplinar da Coordenao de Aperfeioamento de
Pessoal de Nvel Superior (CAPES). Mas, considerando-se a problemtica abordada e os
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principais resultados da pesquisa de campo, procurou-se uma via alterna, com o fim de
integrar e pensar esses outros saberes indgenas sobre a informao e a comunicao na
Amaznia.
Uma abordagem reforada pela anlise comparativa que evidencia as maneiras
concretas em que as organizaes indgenas amaznicas utilizam as TICs segundo suas
especificidades. No entanto, com o intuito de delimitar a abrangncia ampla dessa
comparao, optou-se por explorar analiticamente o eixo discursivo da cidadania. Desse
modo, definiu-se tambm o alcance da pesquisa, debateu-se e refletiu-se na comunicao e na
informao de uma forma comparativa. Para tanto, exploraram-se diversas conceitualizaes,
dentre as quais a expresso cidadania tnica a que melhor resume os processos de
reivindicao social desses grupos; processos tambm presentes no dialogismo (BAKHTIN,
1999) dos discursos organizacionais indgenas.
A conceitualizao sobre a comunicao e a cidadania seguiu, assim, alguns dos
achados materialista-histricos, problematizadas segundo um contexto multisocietal como o
amaznico. Nesse mesmo sentido deve ser entendida a tentativa de ir do inter ao
transdisciplinar. Por isso, a execuo do nosso trabalho de pesquisa buscou envolver o
indivduo comum com sua maneira comum de falar e de pensar (MARX, 2007, p. 131),
articulando um olhar que perpassa, portanto, o mbito universitrio.
Devo dizer ainda que tanto a pesquisa de campo desenvolvida como o perodo de
estudos feito na Universidade Estadual de Campinas, em So Paulo, foram cruciais nessa tese.
Foi o perodo em que tive a oportunidade de assistir disciplina de Introduo Anlise do
Discurso, ministrada pelo Prof. Dr. Sirio Possenti, no Instituto de Estudos da Linguagem
(IEL) dessa universidade. O perodo comeou em fevereiro de 2014 e se prolongou at
outubro desse ano; tempo em que foram dedicadas extensas jornadas a leitura e anlise,
especialmente na Biblioteca Central Cesar Lattes e outros espaos comuns desse centro de
educao superior, na cidade de Campinas.
O fato de ter desenvolvido a pesquisa de campo com antecedncia ao aprofundamento
terico metodolgico desse perodo implicou novas questes que so colocadas no comeo
desse trabalho. Pode ser que a ordem expositiva dele, por isso, no seja a melhor, mas
constitui uma estrutura que reflete a caminhada que se fez ao longo dos anos para apreender,
compreender, explicar, em termos cientficos, a informao e a comunicao. Conceitos como
formao e comunicao discursiva, interdiscurso, enunciado, informao, impresso,
sentido, sujeito, ideologia, prticas sociais, linguagem, canal e transdisciplinaridade so
pensados sob uma viso crtica da cidadania. O que segue vigente hoje, pois essa viso ainda
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aponta uma cidadania atrofiada, imperfeita, pensada, imaginada, controvertida, resistida,
transformada, por isto, com a necessidade de se analisarem, concretamente, quais os seus
sentidos.
Tenho a firme convico da necessidade de refletir sobre os processos, procedimentos
e representaes da informao e a comunicao que influenciam, de alguma maneira, a
evoluo organizacional e dos movimentos sociais na Amaznia. Ento, a comunicao, a
lingstica, a antropologia, o direito, a sociologia, entre outras cincias sociais e humanas,
junto histria das organizaes e as formaes econmicas e sociais, podem alicerar a
anlise comparativa, a discusso interdisciplinar e o reconhecimento de outros saberes na
temtica aqui proposta. Esta tese procura e anima, de igual modo, o debate sobre a
transdisciplinaridade, imaginada aqui como um caminho certo para religar os saberes, os
conhecimentos tradicionais indgenas e no-indgenas; para tentar achar e navegar nas ondas
emergentes de um paradigma cientfico que faz questo da incerteza e do movimento na
histria da humanidade social.
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2 SOBRE A COMUNICAO DISCURSIVA
Este captulo representa uma tentativa para a construo de um campo terico
interdisciplinar que v alm das concepes mais tradicionais da comunicao social. Procura
ressignificar o social na comunicao, uma disciplina que se tornou importantssima no
sculo XX dentre as cincias em geral. Para isso, desenvolver-se-o algumas ideias das
correntes de pensamento que constituram o seu dominante terico, logo do qual apresento
algumas categorias e noes fundamentais para a construo desse campo denominado j por
Mikhail Bakhtin de 'comunicao discursiva'. Descrevem-se, a seguir, maiores determinaes
sobre a problemtica e alguns elementos fundamentais nesse arcabouo terico discursivo.
2.1 Problematizar a comunicao
Nesta abordagem fica claro que a comunicao no pode ser enxergada nem como
transmisso de informao ou como um estmulo-resposta. A primeira reduz mecnica e
linearmente o complexo (mas no complicado) processo da comunicao, enquanto a segunda
o simplifica, em termos comportamentais, desdenhando a riqueza simblica nele
movimentada. Sentido e complexidade tm de ser levados a srio numa teoria da
comunicao. Se acreditamos na transcendncia da comunicao na vida e nas relaes
humanas, dever observar-se que
uma teoria da comunicao no pode limitar-se a analisar aspectos parciais da convivncia social, nem contentar-se em examinar as diversas tcnicas de comunicao, embora estas e suas consequncias despertem, pela sua novidade, particular interesse na sociedade actual. (LUHMANN, 2006, p. 39).
Pensar na improbabilidade da comunicao , de alguma forma, problematiz-la.
Primeiro, improvvel que algum compreenda o que outro quer dizer; segundo, que uma
comunicao chegue a mais pessoas do que as que se encontram presentes numa situao; e,
terceiro, que se obtenha o 'resultado desejado', entendendo este como que o receptor adopte o
contedo seletivo da comunicao (a informao) como premissa de seu prprio
comportamento, incorporando seleco novas seleces e elevando assim o grau de
selectividade (LUHMANN, 2006, p. 42); em consequncia dessas improbabilidades a
comunicao arrisca falhar ou se degradar. Esta incerteza constitutiva far at que os sujeitos
se abstenham de comunicar no momento em que no tenham garantias suficientes de que a
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sua mensagem vai chegar a outras pessoas, de que vai ser compreendida e de que vai cumprir
os seus objectivos. (LUHMANN, 2006, p. 43).
Apesar dessa improbabilidade, a concepo de sistemas sociais afirma que a
comunicao pode encontrar um certo xito, superando e transformando a sua natureza
improvvel. Luhmann (2006, p. 45) crtica que no sistema dos meios modernos de
comunicao de massas actua-se, sob a sugesto do funcionamento, como se todos estes
problemas estivessem resolvidos. Quer dizer, a mdia, at hoje, defende a comunicao como
um mecanismo harmnico, no contraditrio, uma viso bastante generalizada nas correntes
tericas mais tradicionais. E o que torna, ento, a comunicao improvvel em provvel?
Luhmann vai propor que os 'meios' so os mecanismos que permitem uma tendncia
para essa probabilidade. Em sua concepo os 'meios' esto agrupados em trs tipos: de
linguagem, de difuso e de comunicao simbolicamente generalizados, assim chamados
porque neles precisamente se atinge por antonomsia o objectivo da comunicao
(LUHMANN, 2006, p. 46-47). Para ele 'sociedade' o sistema que compreende todo tipo de
comunicaes, que reproduz a comunicao por meio da comunicao e desta forma se
distingue de um ambiente. (LUHMANN, 2006, p. 129). Postulou assim uma ontologia do
social, embasada na comunicao como mecanismo auto-poitico que constitui o seu ser.
Entende o social como uma possibilidade de existncia, decorrente das relaes
comunicativas.
Nesse sentido primordial a diferenciao entre comunicao e informao, pois isto
marca a separao entre dois contextos de seleco completamente diferentes, e deste ponto
de vista, o acto de comunicao tem como tarefa voltar a reunir os elementos separados.
(LUHMANN, 2006, p. 133). Desprovida dessa tarefa articuladora, a comunicao entendida
como o estabelecimento de uma unidade comum, uma comunidade.
Esse 'estabelecer uma comunidade' fica evidente quando considerados aqueles meios
'de comunicao simbolicamente generalizados' (que traz tona a noo de meios de
intercmbio de Parsons) como o dinheiro, o poder, a influncia, os compromissos morais, a
verdade (na cincia) e o amor (nas relaes ntimas). Ou seja, nas 'comunidades' criadas a
partir de trocas econmicas, polticas, culturais, sexuais, vai se desenvolver a 'comunicao',
como criao do comum entre pessoas, de compartilhamento de uma dada unidade espacial e
social. nesse mbito que a comunicao se torna essencial para as formaes econmicas e
sociais e no s na explicao de um sistema social.
Levando em considerao isso, deveramos falar melhor de uma possvel disperso ou
bifurcao de fenmenos anlogos mais do que uma diferenciao real entre comunicao e
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informao. Com esse objeto aprofundaremos mais adiante nessa distino entre sentido,
impresso, linguagem e comunicao (Cap. 5), conceitos de grande valor heurstico nesta
abordagem discursiva. Por enquanto, tratar-se- do discurso como categoria central do
arcabouo terico-metodolgico relacionado com a nossa problemtica scio-comunicativa.
2.1.1 O que discurso? Uma definio interdisciplinar
Considera-se que o discurso ultrapassa os cdigos de manifestao linguageira na
medida em que o lugar da encenao da significao, sendo que pode utilizar, conforme
seus fins, um ou vrios cdigos semiolgicos. (CHARAUDEAU, 2001, p. 25). No o
mesmo que texto ou algo que ultrapasse a frase ou que seja um plano de enunciao diferente
e oposto ao da histria (CHARAUDEAU, 2001). Por isto, um conceito ligado, certamente, ao
campo da comunicao.
A categoria 'discurso', como usada aqui, provm do campo dos estudos do discurso,
especialmente da denominada Anlise do Discurso (AD). Nessa linha ele designa menos um
campo de investigao delimitado do que um certo modo de apreenso da linguagem; modo
no considerado como uma estrutura arbitrria, mas como a atividade de sujeitos inscritos
em contextos determinados. (MAINGUENEAU, 1998, p. 43, grifo do autor). Em outras
palavras,
O discurso, bem menos do que um ponto de vista, uma organizao de restries que regulam uma atividade especfica. A enunciao no uma cena ilusria onde seriam ditos contedos elaborados em outro lugar, mas um dispositivo constitutivo da construo de sentido e dos sujeitos que a se reconhecem. (MAINGUENEAU, 1997, p. 50).
Em vez de um lugar da encenao da significao, ele se aproxima do dispositivo
(KLEIN, 2007), da existncia de uma atividade determinada, chamada prtica discursiva, que
no meramente transmisso de informao, j que existe ali um processo complexo de
constituio de sujeitos e criao de sentidos. Portanto, muito mais do que um cenrio pr-
estabelecido ou ringue. Essa relao de sujeitos e sentidos produz efeitos mltiplos e variados,
[d]a a definio de discurso: o discurso efeito de sentidos entre locutores. (ORLANDI,
2010, p. 21).
Foucault (1999, p. 51) sugeria o questionamento da vontade de verdade, a
reconsiderao do discurso como acontecimento e a elevao da soberania do significante.
Dessa maneira, sugerindo uma crtica dos atos comunicativos, que aqui tomada como
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pressuposto terico para a anlise dos processos de informao e comunicao nas
organizaes indgenas. Vale a pena ento frisar o discurso como prtica privilegiada na
formao de sujeitos, objetos e conceitos, por tanto, uma prtica no apenas de representao
do mundo, mas de significao do mundo, constituindo e construindo o mundo em
significado. (FAIRCLOUGH, 2001, p. 91). Diz Foucault (2008, p. 55) tambm que os
discursos so prticas que formam sistematicamente os objetos de que falam. Certamente os
discursos so feitos de signos; mas o que fazem mais que utilizar esses signos para designar
coisas. Processos, atividades, prticas, por isso, ligados com o extralingustico ou o que est
fora da linguagem, com o real.
Nesse sentido, vale observar dois equvocos a serem evitados numa teoria discursiva:
O primeiro consiste em confundir discurso e fala (no sentido saussuriano): o discurso seria ento a realizao em atos verbais da liberdade subjetiva que 'escapa ao sistema' (da lngua). Contra esta interpretao reafirmamos que a teoria do discurso e os procedimentos que ela engaja no poderiam se identificar com uma 'lingustica da fala'. O segundo equvoco se ope ao primeiro porque 'distorce no outro sentido' a significao do termo 'discurso', enxergando a um suplemento social do enunciado, logo um elemento particular do sistema da lngua, que a 'lingustica clssica' teria negligenciado. (PCHEUX; FUCHS, 2010, p. 178179).
Ento, se ele no fala nem suplemento social do enunciado, poderamos dizer com
Brando (2004, p. 106) que ele o efeito de sentido construdo no processo de interlocuo,
o qual se ope concepo de lngua como mera transmisso de informao. Trata-se de
um fenmeno em movimento que articula diversas disciplinas e tendncias na sua anlise:
Da o fato de suas fronteiras se confinarem com as de determinadas reas das cincias humanas como a Histria, a Psicanlise, a Sociologia, s para citar algumas. Pelos prprios objetivos a que se prope, a anlise do discurso , e s pode ser, interdisciplinar. Da mesma forma, essa interdisciplinaridade surge na sua relao com as outras tendncias desenvolvidas no interior das cincias lingsticas, e nesse sentido que a vemos, por exemplo, dialogando com as teorias enunciativas, a lingstica textual e, no campo da pragmtica, com a semntica argumentativa e a teoria dos atos de linguagem. (BRANDO, 2004, p. 104).
Nesse contexto interdisciplinar vai se enfatizar o seu carter material, scio-histrico.
Segundo Foucault (2002, p. 141) os discursos so efetivamente acontecimentos, [...] tm
uma materialidade. Por sua parte, Orlandi (2006, p. 17) diz que o discurso a materialidade
especifica da ideologia e a lngua a materialidade especfica do discurso. Assim, o discurso
no se deve conceber fora da sua dinmica, da sua relao com a sociedade, a linguagem e a
histria.
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Num sentido mais abstrato o discurso uma categoria analtica que descreve os
amplos recursos de significao a nossa mo, entendido assim tambm como 'semiose'; a
Anlise Crtica do Discurso (ACD) o concebe como uma forma de prtica social que implica
uma relao dialtica entre um evento discursivo particular e a situao, a instituio e a
estrutura social que o enquadra; consequentemente uma relao de mo-dupla: the discursive
event is shaped by situations, institutions and social structures, but also shapes them.1
(FAIRCLOUGH; MULDERRIG; WODAK, 2009, p. 357). Portanto, uma relao dialtica
que resulta, necessariamente, das interaes sociedade/sujeito e sujeito/sociedade.
Wodak (2004) v na ACD, campo que se alimenta especialmente da teoria crtica, uma
perspectiva frutfera ao interior da AD. Desta relao com a teoria crtica decorre a nfase que
a ACD d aos problemas sociais vigentes, ponto de partida para a pesquisa e a construo de
estratgias para a ao poltica. Pesquisa e ao ligadas, em nosso caso, com uma
problemtica sobre os modos de produzir informao e comunicao no mbito indgena.
No se pretende aqui determinar absolutamente o que (so) o(s) discurso(s), embora
os pargrafos anteriores constituam um ponto de partida certo nessa aproximao. Pensa-se
que o alcance dessa tica discursiva na rea inter/transdisciplinar da comunicao ser mais
bem apreendido a partir de conceitualizaes tais como condies de produo, formao
discursiva, interdiscurso, intradiscurso, enunciao, comunicao discursiva, as quais
fornecem um variado instrumental para uma anlise histrica e social dessa problemtica.
o que se detalha a seguir.
2.2 Da comunicao mecanicista ao discurso
2.2.1 O modelo de comunicao subjacente na lingustica saussureana
O Curso de Lingustica Geral foi o nome dado compilao das disciplinas
ministradas pelo suo Ferdinand de Saussure (1857-1913) entre 1906 e 1911, na
Universidade de Genebra. O livro foi publicado primeiramente, e de forma pstuma, em
francs, no ano de 1916. Contudo, seria traduzida ao espanhol s em 1945, em tanto a verso
em portugus viria a luz em 1970. Dessa maneira que, aos poucos, o seu pensamento ir-se-ia
difundir amplamente entre leigos, discentes, docentes, profissionais, pesquisadores, tanto da
lingustica como da comunicao e outras disciplinas das cincias humanas e sociais,
1 o evento discursivo delimitado pelas situaes, instituies e estruturas sociais, mas tambm as delimita. (Traduo nossa).
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inicialmente na Amrica Latina e logo no Brasil. um desses poucos autores que muitos dos
que passamos por uma faculdade de comunicao ainda lembramos, pois, tanto no ciclo
bsico de estudos como no aprofundamento disciplinar, os ensinamentos do linguista eram (e
qui ainda sejam) matria obrigatria em aulas de semiologia ou semitica.
Tendo como antecedentes a gramtica e a filologia (incluindo a suas verses
comparadas), e devido insuficincia delas para os problemas que os estudos sobre as lnguas
colocavam no final do sculo XIX, Saussure (2006, p. 7) prope uma lingustica geral. O
assunto dessa nova disciplina atingiria as diferentes manifestaes da linguagem humana,
centrando-se especialmente nos textos escritos, para o qual se estipulou como tarefa a
descrio e histria das lnguas, a procura das leis que as regem e o estabelecimento dos
limites e definies prprios desse novo espao disciplinar.
Para se estudar ento a lngua, destacada como fato primordial e norma nos assuntos
de linguagem, vai se definir no Curso uma unidade terica: o signo lingustico (SAUSSURE,
2006, p. 79). Como um dos seus pressupostos essenciais ele representa a associao
necessria de um significante (imagem acstica) e um significado (conceito). Dessa maneira,
explicava-se o mecanismo psico-fisiolgico a partir do qual os indivduos poderiam formar e
expressar ideias numa lngua, entendida como um sistema de signos.
Mas, como poderia pensar-se um modelo subjacente de comunicao nessa teoria
lingustica? Tendo em mente essa natureza dicotmica do signo lingustico (significante
significado), o que Saussure (SAUSSURE, 2006, p. 19) nomeou como circuito da fala pode
imaginar-se como o modelo bsico de comunicao subjacente na sua teoria, tal e como se
apresenta na figura seguinte (Figura 1):
Figura 1 - Circuito da fala segundo Saussure
Fonte: Saussure (2006, p. 19)
O funcionamento do circuito dar-se-ia com, no mnimo, dois indivduos, representados
por A e B. Tomando como origem o crebro A, um conceito suscitaria nele uma imagem
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acstica, num processo inteiramente psquico; logo, esse crebro, por meio de um impulso
relacionado com essa imagem, ativaria o aparelho fnico num processo fisiolgico, para
traduzir a imagem em sons; em seguida, as ondas sonoras chegariam da boca de A at o
ouvido de B por processo fsico; depois, inversamente, o ouvido deste ltimo captaria esses
sons como imagem acstica para chegar por meio de sinais ao crebro de B, onde
psiquicamente voltaria a se formar o conceito. Completado o circuito dessa fala o crebro de
B estaria na capacidade de recome-lo.
Esquematicamente, o circuito desenvolvido por duas pessoas que falassem, ficaria
representado pelos seguintes pontos nodais: crebro(A), boca(A), canal(=), ouvido(B),
crebro(B) e vice-versa. De maneira que processos psquicos e fisiolgicos pessoais
encarregar-se-iam de manter, criar e, finalmente, veicular o signo lingustico para o canal que
possibilitaria a equivalncia de um conceito em ambos os crebros. Em termos gerais, trata-se
de um modelo do ato de fala, quer dizer, de comunicao verbal, formalista e psicologizante,
ao colocar a origem do sentido como estando no crebro individual. No entanto, o autor vai se
voltar ao estudo da lngua sem se deter, por tanto, na problematizao desses aspectos.
Segundo Saussure (2006, p. 22): Com o separar a lngua da fala, separa-se ao mesmo
tempo: 1.o, o que social do que individual; 2.o , o que essencial do que acessrio e mais
ou menos acidental. A fala fica aqui explicitamente considerada como um ato individual,
acessrio e acidental. E sua razo de ser permitiria expressar o pensamento pessoal, por meio
de mecanismos psico-fisiolgicos e fsicos e umas combinaes apropriadas da lngua, em sua
funo de cdigo. Evidencia-se assim uma preferncia no bojo da sua teoria pelo estudo da
lngua, a qual, a diferena da fala e pelo seu carter homogneo e sistemtico, poderia ser
estudada separadamente, como o pretendia no seu projeto da lingustica geral.
No Curso reconhece-se que lngua e fala so os dois fatores constituintes da
linguagem, embora assinale-se que: A lngua para ns a linguagem menos a fala. o
conjunto dos hbitos lingsticos que permitem a uma pessoa compreender e fazer-se
compreender. (SAUSSURE, 2006, grifo no original, p. 92). No obstante, enxerga-se uma
concepo onde 'hbitos lingusticos' apropriados se relacionam com a realizao da
linguagem, com a comunicao, com o 'compreender e fazer-se compreender'. Mas preciso
do tempo e de uma massa falante para que exista uma lngua como instituio social.
E como se constitui essa instituio social? Pela soma de sinais? A lngua existe na
coletividade sob a forma duma soma de sinais depositados em cada crebro, mais ou menos
como um dicionrio, cujos exemplares, todos idnticos, fossem repartidos entre os
indivduos. (SAUSSURE, 2006, p. 27) Por isso, a realizao da fala, no havendo nada de
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coletivo nela, dependeria da vontade e dos hbitos lingusticos dos que falam,
desconsiderando assim os aspectos histricos do ato comunicativo. Diz-se ali tambm que o
linguista s pode penetrar na conscincia dos indivduos que falam suprimindo o passado. A
interveno da Histria apenas lhe falsearia o julgamento. (SAUSSURE, 2006, p. 97); e o
seu trabalho dar-se-ia fundamentalmente na sincronia, pois se este se coloca na perspectiva
diacrnica, no mais a lngua o que percebe, mas uma srie de acontecimentos que a
modificam. (SAUSSURE, 2006, p. 106).
Essa viso sincronista aistrica vai obstaculizar a descoberta de uma unidade para o
estudo da linguagem (menos fala): No podendo captar diretamente as entidades concretas
ou unidades da lngua, trabalharemos sobre as palavras. (SAUSSURE, 2006, p. 132). A
escolha da palavra como entidade instrumental, d-se pela sua propriedade de representar
ideias com valor convencional e/ou diferencial. O tempo considerou-se ali somente como
elemento cronolgico da sucesso de palavras (ou subunidades destas), as quais
conformariam assim ordens de relaes sintagmticas ou associativas, que limitariam a
arbitrariedade do signo lingustico. Mas, como disse Bakhtin (1999, p. 70): Se ligarmos o
processo fisiolgico da produo do som ao processo de percepo sonora, nem por isso
estaremos nos aproximando de nosso objetivo.
Aps detalhar melhor alguns dos aspectos relacionados com a linguagem na teoria
saussuriana, fica evidente o atrativo do seu arcabouo conceitual para os estudos em
comunicao. A lngua, como meio por excelncia para a comunicao humana (explicitada
especialmente como instituio social base do 'circuito da fala'), transferiu-se
metonimicamente para o estudo de estruturas com funes mediadoras como a imprensa, o
rdio, a televiso, o cinema. De fato, o texto do Curso anima uma trajetria dessa espcie,
quando assinala que: A lngua um sistema de signos que exprimem idias, e comparvel,
por isso, escrita, ao alfabeto dos surdos-mudos, aos ritos simblicos, s formas de polidez,
aos sinais militares etc., etc. (SAUSSURE, 2006, p. 24). Nesse sentido, no s a lingustica
saussuriana contribuiria eficazmente. Outros campos como o da engenharia e a matemtica
brindariam modelos suscetveis de entrar nas correntezas desse novo campo de conhecimento
estruturado no sculo XX.
2.2.2 Teoria da informao e modelo jakobsoniano da comunicao
A teoria matemtica da comunicao (ou teoria da informao) , sem dvida, uma
das teorias mais caras aos estudos em comunicao. Seu problema bsico foi o de reproduzir,
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exata ou aproximadamente, uma mensagem de um ponto a outro, esquecendo os seus aspectos
semnticos; para isso, Shannon (1948, p. 1) props um esquema geral de comunicao, onde
haveria uma fonte de informao, origem da mensagem, que seria veiculada por um
transmissor atravs de sinais num canal (susceptvel a perturbaes), sinais que seriam
recebidos logo por um receptor que reconstituiria a mensagem, endereada finalmente para
algum (ou para algo). Este esquema chamaria imensamente a ateno de outros cientistas,
alm dos da matemtica e da engenharia.
Na dcada de 1960, Jakobson (2001, p. 73) considerava a anlise lingustica
coincidente e convergente com a abordagem da linguagem feita pela supradita teoria da
informao. Seguindo essa perspectiva, o autor construiu tambm seu esquema de anlise,
com o objetivo de relacionar os fatores 'inalienavelmente' postos em jogo em todo processo
lingustico, em toda comunicao verbal, assim:
Quadro 1 - Fatores envolvidos na comunicao verbal segundo Jakobson
CONTEXTO
REMETENTE MENSAGEM DESTINATRIO
...............................................................
CONTATO
CDIGO
Fonte: Jakobson (2001, p. 123).
Explicado sumariamente: O REMETENTE envia uma MENSAGEM ao
DESTINATRIO, mas, para que isso seja eficaz, requer-se de um CONTEXTO ou
referente, um CDIGO comum (ou parcialmente comum) e um CONTATO, sendo este
um canal fsico e uma conexo psicolgica entre o remetente e o destinatrio que
possibilitam a comunicao; esquema do qual derivam as seis funes bsicas da
comunicao verbal: emotiva, potica, conativa, referencial, metalingustica e ftica,
relacionadas, com remetente, mensagem, destinatrio, contexto, cdigo e contato,
respetivamente (JAKOBSON, 2001, p. 129).
Destarte, o autor estabelece uma categorizao que serviria para a anlise da
comunicao verbal, aproximando-se mais do que se afastando da teoria matemtica da
comunicao. Se a informao ali quantificada como digito binrio, como bit, esta
caraterizao formalista vai ser extrapolada no fonema como unidade distintiva e elementar
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para a lingustica da fala, em quanto elabora uma esquemtica linear do processo de
comunicao verbal, anexando-lhe um contexto e algumas caratersticas psicossociolgicas na
sua explicitao. Alm disso, ao suprimir no seu modelo a possibilidade de perturbaes
(rudos, disfuncionalidades) do canal ou da conexo psicolgica do remetente e o
destinatrio (no que ele denomina de 'contacto'), deixa de lado uma parte imprescindvel ao
funcionamento da prpria linguagem. Porque, enquanto para Shannon essa potencialidade do
erro no mecanismo comunicativo evidente, em Jakobson esse funcionamento da
comunicao verbal vai ser normalizado.
Para Jakobson (2001, p. 52): Na linguagem normal, a palavra ao mesmo tempo
parte integrante de um contexto superior, a frase, e por si mesma um contexto de constituintes
menores, os morfemas (unidades mnimas dotadas de significao) e os fonemas. Uma
desordem nessa estruturao vai, portanto, constituir a anormalidade na linguagem, a
incapacidade do indivduo combinar e selecionar, por inteligncia e vontade, as unidades
lingusticas certas para falar.
Jakobson mostra grande afinidade com o modelo saussuriano de comunicao. No seu
objetivismo enxerga-se tambm uma grande influncia do esquema informacional, alm do
funcionalismo aplicado na sua fundamentao terica. Contemporaneamente a Jakobson vai
se desenvolver outra teoria de corte comportamental, que vai dominar uma parte do
mainstream, em dcadas posteriores, nos estudos da comunicao.
2.2.3 'O efeito a mensagem'
Para McLuhan (1988, p. 21) as conseqncias sociais e pessoais de qualquer meio
ou seja, de qualquer uma das extenses de ns mesmos constituem o resultado do novo
estalo introduzido em nossas vidas por uma tecnologia ou extenso de ns mesmos, uma
tese que teria uma grande influncia nos estudos acadmicos de comunicao a partir da
dcada de 1960. Assinalava-se o reclamo por uma mudana de foco na pesquisa em
comunicao, pois as mais recentes abordagens ao estudo dos meios levam em conta no
apenas o 'contedo', mas o prprio meio e a matriz cultural em que um meio ou veculo
especfico atua. (MCLUHAN, 1988, p. 25).
Em palavras de McLuhan (1988, p. 33) o 'contedo' como a 'bola' de carne que o
assaltante leva consigo para distrair o co de guarda da mente. O efeito de um meio se torna
mais forte e intenso justamente porque o seu 'contedo' um outro meio. Da a aposta por
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novos horizontes para alm do contedo como caminho alternativo para um programa de
pesquisa.
O passo de uma era mecnica para uma era eltrica seria um dos pressupostos
essenciais para as concepes mcluhanianas. Ele faz uma analogia do sistema eltrico como
extenso de nosso sistema nervoso central. No seu pensamento, a energia eltrica
informao pura, sem contedo, por isso, com uma capacidade imensamente informativa e
transformadora. Os meios, pela sua possibilidade de se hibridizar, de se encontrar com outros
meios, possuem tambm esta capacidade libertadora. McLuhan (1988, p. 77) vaticina:
Ao colocar o nosso corpo fsico dentro do sistema nervoso prolongado, mediante os meios eltricos, ns deflagramos uma dinmica pela qual tdas as tecnologias anteriores meras extenses das mos, dos ps, dos dentes e dos contrles de calor do corpo, e incluindo as cidades como extenses do corpo sero traduzidas em sistemas de informao.
Nesse contexto os meios tornam-se produtores de acontecimentos, de efeitos sobre os
indivduos e a sociedade. Eltricamente contrado, o globo j no mais do que uma vila.
(MCLUHAN, 1988, p. 19). Este conceito de aldeia global seria um dos avanos mais
conhecidos da sua teoria e a rede eltrica o sistema central dessa vila planetria. McLuhan
interessa-se mais pelo efeito do que pelo significado, pois o efeito envolve a situao total e
no apenas um plano do movimento da informao. (MCLUHAN, 1988, p. 43). Poderia ser
problemtico falar sobre a situao total j que os planos do movimento da informao so
mltiplos e at contra-hegemnicos e no simplesmente uma questo de efeitos.
A palavra falada, a escrita, as estradas, o nmero, o vesturio, a habitao, o dinheiro,
os relgios, a tipografia, a imprensa, a roda, o automvel, os anncios, os jogos, o telgrafo, a
mquina de escrever, o telefone, o fongrafo, o cinema, o rdio, a televiso, os armamentos e
a automao, so considerados por McLuhan os principais meios de informao e
comunicao.
Esse objetivismo radical no estudo da comunicao e da informao s poderia
produzir uma 'miditica' ou, mais alm, uma 'midiatologia', tal e como o apresenta a verso
mais elaborada desse paradigma, concebendo o meio como se fosse a mensagem, como se o
objeto mesmo levasse no seu seio as condies sociais de produo dos discursos de forma
evidente. E, as mais das vezes, tais condies so apagadas em prol dos efeitos ligados
fundamentalmente com os meios mesmos. Nesse sentido, far-se-o a seguir algumas reflexes
sobre filosofia e linguagem tendo ao grupo de Bakthin, notadamente, como base para elas.
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2.3 Filosofia e linguagem
As pesquisas que sobre diversos aspectos da linguagem fizeram Mikhail Bakhtin e o
denominado Crculo de Bakhtin so de reconhecida importncia na lingustica e nos estudos
da linguagem contemporneos, mas, ao que parece no assim no campo da comunicao. Esta
disciplina, de alguma maneira, ficou apresada na corrente de pensamento inaugurada e
difundida amplamente pela Lingustica Geral de Saussure.
Essa proeminncia do pensamento saussuriano na comunicao pode se explicar, em
parte, pelo fato de que estudos como os do Crculo, publicados j desde os anos 1920 na
Rssia, s chegaram a se conhecer a partir das dcadas de 1960 e 19702 em pases europeus e
posteriormente no mbito latino-americano. Tais estudos refutam muitas das teses do suo e
seus seguidores, fundamentalmente a sua ontologia materialista histrica, onde as relaes e
no os termos configuram a base do sentido.
Segundo Sobral (2005, p. 137) ao mesmo tempo em que generaliza sobre o singular,
o Crculo recusa a abstrao, o teoreticismo, ou seja, a atribuio aos elementos gerais de um
papel autnomo, o que apagaria a especificidade dos fenmenos singulares. Destarte, a
inovadora maneira de enxergar os fenmenos da linguagem sob um prisma sociolgico e
materialista, indica uma via mais sugestiva para evitar esse objetivismo.
O tempo e espao aqui no permitem aprofundar sobre os detalhes dessa abordagem.
Pelo momento vale lembrar as grandes afinidades entre a linguagem e o campo da
comunicao e, claro, da cultura popular e a filosofia do cotidiano, pois a
'linguagem' essencialmente um nome coletivo: le no pressupe uma coisa 'nica', nem no tempo nem no espao. Linguagem significa tambm cultura e filosofia (ainda que no nvel do senso comum) e, por tanto, o fato 'linguagem' , na realidade, uma multiplicidade de fatos mais ou menos orgnicamente coerentes e coordenados: no extremo limite, pode-se dizer que todo ser falante tem uma linguagem pessoal e prpria, isto , um modo pessoal de pensar e de sentir. (GRAMSCI, 1995, p. 36).
No entanto, seja no extremo limite, indevido pensar numa linguagem pessoal e
prpria, pois, ao nosso modo de ver, no nvel pessoal realizada uma linguagem mas no
constituda e, portanto, os seres falantes teriam, sim, um estilo e no uma linguagem prpria.