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    CAPTULO 3

    segurAnA pBlICA nA ConstItuIo FeDerAl De 1988:ContInuIDADes e perspeCtIVAs

    Natlia de Oliveira Fontoura*

    Patricia Silveira Rivero**

    Rute Imanishi Rodrigues***

    1 ApresentAo

    O texto a seguir examina a orma como a Constituio Federal CF de 1988 congurou o sistema de segurana pblica em nosso pas, seus desdobramentos nosltimos 20 anos e algumas perspectivas para enrentar os problemas percebidoshoje no dia a dia das nossas cidades.

    A segurana pblica no Brasil um tema undamental, a partir do qual sepode estruturar um diagnstico a respeito de alguns aspectos polticos, institucionais

    e sociais centrais. Partindo deste tema podese abordar a posio do Estado comoaparelho burocrtico que detm o monoplio da violncia legtima e delegado pelasociedade a azer uso desta violncia. A legitimidade supe a crena por parte dasociedade nesta legitimidade WEBER, 2004. Nesta perspectiva, as instituies quecompem o sistema de segurana pblica teriam a uno de assegurar que a coero com legitimidade seja cumprida. Do ponto de vista das garantias civis e sociais,o Estado deve preservar o direito dos indivduos no seu carter de cidados, velandopelo cumprimento dos direitos humanos undamentais, entre os quais o direito vida, igualdade, segurana, liberdade e o acesso justia MONDAINI, 2006.

    Nesse sentido, chama ateno o ato de que o Brasil apresente at hoje altas taxasde mortalidade por homicdio, principalmente, cometidos com armas de ogo, mesmo se tratando de um pas que no est em guerra, nem tem passado por insurreiesrecentes FERNANDES, 2005; WAISELFISZ, 2008. Junto aos dados de mortes violentas, undamentalmente nas grandes metrpoles, estudos constatam a presena debandos armados que ocupam territrios e o desenvolvimento de uma sociabilidadeque submete populaes pobres inteiras violncia SOARES, 2008a; SILVA, 2008;BEAO et al., 2001. A situao agravase quando constatado que o controle ilegal

    * Especialista em Polticas Pblicas e Gesto Governamental.

    ** Pesquisador do Programa de Pesquisa para o Desenvolvimento Nacional (PNPD) no Ipea.

    *** Tcnico de Pesquisa e Planejamento do Ipea.

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    2 A segurAnA pBlICA nA ConstItuIo FeDerAl De 1988

    2.1 Acd

    Os parlamentares constituintes herdaram, na rea de segurana pblica, um arcabouo institucional ragmentado, ortemente militarizado e marcado por atuaoimportante das Foras Armadas.

    A segurana j era objeto de tratamento constitucional desde o sculo XIXquadro 1, do anexo 1. O arranjo institucional herdado pela ANC em 1987 oide reconhecimento da segurana como direito individual, a denio constitucional das atribuies da Polcia Federal PF e, ainda, um modelo dualizado depolcias e a militarizao desta atividade.

    Desde o sculo XIX, nossas polcias so organizadas de maneira dualizada.As oras policiais militarizadas, encarregadas de manter a ordem pblica, oramcriadas ainda durante o Imprio e, aps a promulgao da Repblica, oram denominadas oras pblicas em muitos estados. A elas, sucedeuse a criao deguardas civis, que passaram a responder pelo policiamento ostensivo, com objetivo de prevenir a criminalidade. Como nos relata Bretas,

    ... a uno de polcia dividiuse, sem obedecer a um padro denido, em duas orasparalelas: a polcia civil e a polcia militar. A polcia civil originouse da administrao

    local, com pequenas unes judicirias, ao passo que a polcia militar nasceu do papelmilitar do patrulhamento uniormizado de rua. Com o tempo, a polcia civil teve suasunes administrativas e judiciais restringidas, enquanto a polcia militar soria requentes ataques como inadequada para o policiamento dirio, motivando a criao de outraspolcias uniormizadas concorrentes, principalmente a Guarda Civil 1997b, p. 40.

    Nas primeiras dcadas do sculo XX, temos, portanto, num quadro geral,aora militar qual se recorria em casos de grandes distrbios coletivos ou insurreies, aguarda civilresponsvel pelo policiamento nas ruas, e a Polcia Ci

    vil PCincumbida de coordenar o policiamento da cidade e instruir processoscriminais, que ganha cada vez mais importncia. Na Repblica, cada estado ederado ganhou autonomia para organizar sua segurana pblica, por isso estacongurao se diere de um estado para outro.

    somente em 1969 que ocorre a uso entre as guardas civis e as oras pblicas dosestados, por meio do DecretoLei no 667, modicado pelo DecretoLei no 1.072/1969,que extingue as guardas civis e institui as Polcias Militares PMs estaduais com competncia exclusiva pelo policiamento ostensivo. Antes dele, existia a PM como uma po

    lcia aquartelada, utilizada para conter greves de operrios, maniestaes pblicas etc.Esta PM estava isolada da populao e era chamada a agir em questes de ordeminterna. A partir do DecretoLei, ela passa a incumbirse do policiamento ostensivo etornase proibida a criao de qualquer outra polcia ardada pelos estados.

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    Isso , as PMs, como as conhecemos hoje, oram institudas pelo regimeautoritrio em substituio s oras pblicas nos enrentamentos e s guardascivis, no policiamento preventivo e passaram a se subordinar diretamente ao

    Exrcito. Uma polcia que havia sido criada e treinada para garantir a ordem interna, dentro da lgica do combate ao inimigo, mostrouse adequada para garantir o combate aos guerrilheiros e opositores do regime. Como deende Pinheiro:O caso das Polcias Militares no Brasil pode oerecer um exemplo privilegiadopara examinar essa continuidade entre o combate subverso e a guerra contrao crime 1982, p. 5758.

    precisamente a misso original das Polcias Militares que justica sua insero nas constituies brasileiras anteriores, como mostrado no quadro 1, no

    Anexo 1. Conorme nos elucida Silva 2008a,... no se considerava a segurana pblica como matria a ser tratada na Constituio Federal, o que s vai acontecer em 1988. As Polcias Militares eram reeridas na Constituio porque a elas se atribua uno de segurana internaresponsabilidade da Unio.

    De ato, em 1946, sua uno aparecia como segurana interna e manuteno da ordem; em 1967, esta ordem invertida manuteno da ordem e segurana interna e, em 1969, a uno das PMs passa a ser a manuteno da ordem

    pblica quadro 1, do Anexo 1, o que preservado em 1988.

    Outra caracterstica importante do modelo policial adotado em nosso pas, ea ser examinado a seguir, a subordinao das polcias s Foras Armadas. Desdea Constituio de 1934, prevse que as Polcias Militares sejam consideradasreserva do Exrcito. Estas corporaes, no entanto, no tinham as atribuies queo regime militar lhes determinou a partir de 1969.2

    O mesmo DecretoLei no 667/1969 que reorganiza as PMs e os Corpos

    de Bombeiros CBs deineos como oras auxiliares, reserva do Exrcitoe remodela a InspetoriaGeral das Polcias Militares IGPM, que passa aintegrar o EstadoMaior do Exrcito EME. Este Decreto e outros que oseguiram DecretoLei no 1.072/1969 e Decreto no 88.777/1983 regulamentam o papel de controle e de coordenao do Exrcito sobre as PolciasMilitares. Este papel abrange organizao, legislao, eetivos, disciplina,adestramento e material blico das corporaes estaduais, todos assuntosgerenciados pela IGPM.

    2. Na realidade, a inteno dos constituintes de 1934, ao declararem as polcias estaduais como oras auxiliarese de reserva do Exrcito, teria sido de controlar o poderio blico das oras pblicas (...), impondo algum controlecoercitivo por parte do prprio Exrcito Nacional, pois na poltica dos governadores (...) as polcias atuavamcomo verdadeiros exrcitos (MEDEIROS, 2004, p.281).

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    Essas duas caractersticas do sistema de segurana pblica dualizao daspolcias e subordinao das PMs ao Exrcito , consolidadas pelo regime militar,e o modo como oram tratadas a partir da Constituio Federal de 1988 sero

    examinadas na seo 2.4. Antes dela, porm, apresentamse alguns elementosimportantes para compreenso dos debates constituintes sobre o tema.

    2.2 o pc Cii

    O processo de elaborao da Constituio oi organizado em comisses esubcomisses temticas.

    A partir das discusses havidas no mbito da subcomisso, o processo deelaborao dos dispositivos constitucionais seguia a seguinte sistemtica:3

    1a etapa: elaborao dos dispositivos constitucionais por subtemas, acargo das Subcomisses emticas;

    2a etapa: elaborao dos captulos, por temas, a cargo das Comissesemticas;

    3a etapa: elaborao dos ttulos, sistematizao dos dispositivos aprovados pelas comisses e elaborao do Projeto de Constituio, a cargo daComisso de Sistematizao; e

    4 etapa: votao e redao nal de toda a matria, a cargo do Plenrioda Assembleia Nacional Constituinte e da Comisso de Redao.

    A primeira etapa pode ser subdividida em: elaborao do anteprojeto dorelator; emendas ao anteprojeto do relator e, a partir da votao destas, anteprojeto da subcomisso. endo em vista que oi no mbito da subcomisso queas discusses se deram de modo mais pormenorizado, provavelmente esta aetapa que merece maior ateno, apesar de ser relevante acompanhar o histricode alterao dos dispositivos na Comisso emtica, na Comisso de Sistema

    tizao e no Plenrio, especialmente porque soreram alteraes importantes aolongo deste trajeto.

    O tema da segurana pblica cou a cargo da Subcomisso de Deesa doEstado, da Sociedade e de sua Segurana Subcomisso IVb, ligada Comisso da Organizao Eleitoral, Partidria e Garantia das Instituies IV. Estateria sido a primeira vitria das Foras Armadas no processo constituinte,segundo Miguel 1999, pois em princpio o tema deveria caber Comissode Organizao dos Poderes e Sistema de Governo. Mas, devido ao perl dos

    relatores de uma e de outra comisso e das respectivas subcomisses e dado opapelchave dos relatores nos trabalhos da Constituinte, a mudana de comis

    3. C. Portal da Constituio Cidad Cmara dos Deputados: .

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    so serviu para entregar a questo militar a parlamentares mais conservadoresMIGUEL, 1999, p. 3.4

    Com isso, concentraramse na mesma subcomisso os principais temas deinteresse das Foras Armadas. Alm de garantir sua misso constitucional, interessavalhes a manuteno do servio militar obrigatrio, a preservao da jurisdioespecial para crimes de natureza militar, o veto s propostas de criao de umMinistrio da Deesa MD, e, nalmente, a manuteno das Polcias Militares esua subordinao ao Exrcito.

    As questes que suscitaram mais debate e tambm mais repercusso na imprensa eram as relativas ao papel das Foras Armadas no novo regime especialmente suas possibilidades de atuao interna e a continuidade e papel do Conselho de Segurana Nacional CSN. O contexto de m do regime autoritriojusticava a preocupao com estas questes, mas tambm a atuao do lobbydasForas Armadas e o papel dos militares no processo constituinte contribuiu paraorma nal do texto.

    Zaverucha nos relata que as Foras Armadas nomearam 13 ociais para azerlobbypelos interesses militares junto aos parlamentares constituintes; parlamentares oram convidados e tiveram viagens pagas para conhecer as instalaes dasForas Armadas no pas, alm da atuao do ministro do Exrcito 2005, p. 59.5

    No relato eito a Hlio Contreiras 1998, o coronel do Exrcito SebastioFerreira Chaves arma ter ido conversar com o deputado Ulysses Guimares, presidente da ANC, porque percebera, quando era secretrio de segurana pblica deSo Paulo SP, que o desenho das polcias gerava muita violncia dos dois lados:Polcia Militar muito violenta nas ruas e Polcia Civil tambm violenta nas delegacias. A resposta que ele teria ouvido que j havia acordo com o general Lenidas,Ministro do Exrcito, para que no se alterasse o modelo de Polcias Militares/Polcias Civis e das primeiras como oras auxiliares do Exrcito.

    4. Miguel deslinda a manobra: No se tratou de uma simples desavena regimental. O relator da Subcomissodo Poder Executivo era o senador gacho Jos Fogaa, ligado esquerda do Partido do Movimento DemocrticoBrasileiro (PMDB). Na Subcomisso de Deesa do Estado a relatoria estava a cargo do deputado Ricardo Fiza doPartido da Frente Liberal (PFL), que zera carreira poltica nas leiras na agremiao de sustentao da ditadura, aAliana Renovadora Nacional (Arena), e era um dos lderes do grupo conservador na ANC. O relator da Comisso deOrganizao dos Poderes, deputado Egdio Ferreira Lima, era um progressista do PMDB, enquanto o deputado PriscoViana, tambm liado ao PMDB mas proundamente ligado ao regime autoritrio, ocupava o cargo na Comisso deOrganizao Eleitoral, Partidria e de Garantia das Instituies. O presidente desta comisso, alis, era o senador e

    coronel da reserva Jarbas Passarinho, do Partido Democrtico Social (PDS), sucedneo da Arena (MIGUEL, 1999, p. 3).5. De acordo com Miguel, no aliciamento dos parlamentares, oram utilizadas basicamente as conversas nos ga-binetes ministeriais ou no Congresso, bem como declaraes vagamente ameaadoras divulgadas pela imprensa.Mas, quando julgavam necessrio, as Foras Armadas no hesitavam em usar mtodos comuns a outros lobbistas,patrocinando pequenas mordomias, como a viagem de 37 constituintes (e os amiliares de alguns deles) a Natal, comtransporte e hospedagem custeados pela Aeronutica, sob pretexto de visitarem instalaes militares (1999, p. 2).

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    odo o movimento de esquerda pela cidadania, pelos direitos, pelo Estadodemocrtico tinha contraposio muito orte no s do lobbydas Foras Armadas,mas tambm dos policiais militares e dos delegados de polcia. Estas trs corpora

    es atuaram de maneira muito ativa na Constituinte no sentido de preservaremsuas atribuies e garantias. Ainda em Contreiras, lse, acerca do relato do CoronelChaves: O coronel armou que, em Braslia, encontrou uma resistncia desmilitarizao da polcia: Havia um lobbyda PM na prpria Constituinte, e senti quenada conseguiria. Ele deendia uma Polcia Civil, com um grupamento ardadoCONREIRAS, 1998, p. 55.

    Dierentemente das Foras Armadas e das corporaes policiais, contudo,os grupos mais progressistas e ligados esquerda no tinham proposta homog

    nea para as polcias e a rea de segurana pblica. Alguns prossionais da rea,deensores dos direitos humanos e juristas da rea criminal deendiam a desmilitarizao da polcia, mas esta no era proposta conciliadora e no oi objetode grandes investimentos por parte das esquerdas. No ocorreu o que era de seesperar, a participao de uma esquerda ativa para evitar as continuidades doregime militar e repensar as polcias, que haviam atuado to ortemente duranteo regime, e que deveriam ser remodeladas para atuarem em um Estado democrtico. Com isso, a subcomisso acabou, em grande medida, sendo dominadapelos atores que deendiam basicamente a manuteno do arranjo institucionalmodelado no perodo ditatorial.

    Composta por 19 membros titulares e 20 suplentes,6 a subcomissoencarregada de elaborar os artigos sobre segurana pblica acabou atraindomuitos parlamentares com relaes com as oras militares e vises mais conservadoras do tema; estes eram ora predominante, com algumas excees,como o Dep. Jos Genuno. Com isso, a subcomisso rejeitou a criao doMinistrio da Deesa; rejeitou a abolio do Servio Nacional de Inormaes SNI e do CSN; manteve o desenho da PM como ora auxiliar do

    Exrcito, e as Foras Armadas com unes na ordem interna, entre outrascontinuidades relevantes.

    A subcomisso realizou 18 reunies entre 7 de abril e 25 de maio de 1987,sendo oito audincias pblicas, cujas explanaes e debates infuenciaram em grandemedida as propostas apresentadas. Nestas audincias, oram ouvidos 22 convidados,4 dos quais policiais militares; 4 da Escola Superior de Guerra ESG; 5 ociais dasForas Armadas; 3 prossionais da Polcia Federal; 1 delegado de polcia; 1 ocial doCorpo de Bombeiros; 2 integrantes do CSN, 1 proessor da Universidade Estadual

    de Campinas Unicamp e o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil OAB.7

    6. O Anexo 1 apresenta breve perl dos constituintes titulares da subcomisso.7. A lista completa de nomes e respectivos cargos e entidades destes convidados encontra-se no Anexo 1.

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    ... atendendo aos apelos comunitrios e de nossa sociedade como um todo, surge anecessidade de se dotar a Constituio Federal de um ttulo denominado Da Segurana Pblica. Atualmente se observa uma lgica tradicional, onde somente os entes

    estaduais passveis de utilizao ou convocao pela Unio integram o texto constitucional. O anteprojeto inova com a criao de uma seo sobre segurana pblica,onde a denio conceitual somada ao estabelecimento das competncias da Polcia Federal, Foras Policiais, Corpos de Bombeiros, Polcia Judiciria e Guardas Municipais, modicando a lgica constitucional anterior FIZA, 19871988, p. 29.8

    Nas constituies anteriores, em subttulos separados, era estabelecido o direito individual concernente segurana; deniamse as atribuies da PolciaFederal ou a competncia da Unio sobre segurana das ronteiras e servios de

    polcia martima e area e, desde a Constituio de 1934, as Polcias Militaresestaduais aparecem como reservas do Exrcito e denese como competncia daUnio legislar sobre sua organizao, instruo, justia e garantias e sua utilizaocomo reserva do Exrcito quadro 1, do Anexo 1.

    2.3.1 Segurana pblica como dever e direito: o conceito de ordem pblica

    A Constituio Federal de 1988, alm de estabelecer o direito segurana comoum dos direitos individuais undamentais, denido no caputdo Art. 5o, e tam

    bm como direito social, elencado no caputdo Art. 6

    o

    , traz um captulo intitulado Da segurana pblica, composto pelo Art. 144, o qual prev que: A seguranapblica, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, exercida para apreservao da ordem pblica e da incolumidade das pessoas e do patrimnio.9

    Ao atribuir ao Estado o dever pela segurana pblica, reconheceo como servio pblico a ser garantido pela mquina estatal, direito inalienvel de todos os cidados. J a denio da segurana tambm como responsabilidade de todos podeser interpretada luz da necessidade de que haja participao social nas polticaspblicas relacionadas a esse campo. Adicionalmente, possvel compreender que asegurana pblica no pode ser vista apenas como atribuio do Estado, uma vezque a sociedade tem um papel importante no somente na participao e controledas polticas, como tambm na socializao dos indivduos, na perpetuao dosmecanismos inormais de controle social e de autocontrole, a partir da perspectivade que no somente o controle pelo Estado que garante a segurana de todos.

    8. ANC. Anteprojeto do Relator da Subcomisso. IV Comisso da Organizao Eleitoral, Partidria e Garantias dasInstituies; IV-B Subcomisso de Deesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurana.9. No anteprojeto do relator da subcomisso, a proposta para o caputdeste artigo era: A segurana pblica a prote-

    o que o Estado proporciona sociedade para assegurar a manuteno da ordem pblica. Este texto oi modicadoa partir das emendas dos constituintes e seguiu para a Comisso Temtica com a seguinte redao: A seguranapblica a proteo que o Estado proporciona sociedade para a preservao da ordem pblica e da incolumidadedas pessoas e do patrimnio. A Comisso Temtica manteve esta redao no seu anteprojeto enviado Comissode Sistematizao. Desaparece, portanto, no processo de sistematizao, o termo proteo. E parece prevalecer, naredao nal do artigo, a importncia da manuteno da ordem.

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    Questionase a validade de um texto constitucional chegar ao detalhe deenumerar os rgos ederais e estaduais que devem se encarregar da seguranapblica, sendo que, a maior prova desta inadequao seria o ato de que a polcia

    erroviria ederal, na prtica, inexiste at hoje. A enumerao , alm de tudo,taxativa, o que signica que no podem ser criados outros rgos policiais incumbidos da segurana pblica. Denese, portanto, um desenho institucional nicopara as organizaes policiais estaduais.14 A PF e as PMs j haviam sido objeto dedispositivos em constituies anteriores. J a PC e a PRF aparecem pela primeiravez em uma constituio, sendo que a criao da PRF oi objeto de emendas spropostas parciais de dispositivos constitucionais.

    No anteprojeto do relator da Subcomisso emtica, os rgos responsveis

    pela segurana pblica eram: Polcia Federal; oras policiais; Corpos de Bombeiros; polcias judicirias e guardas municipais. As Polcias Rodoviria e Ferroviriaso incorporadas ao texto somente na etapa de discusso em Plenrio.

    A relao e atribuies de PCs e PMs e a manuteno destas como reservado Exrcito sero analisadas nos itens a seguir.

    Cabe mencionar que o Art. 144 prev, ainda, a possibilidade de criao deguardas municipais destinadas preservao do patrimnio. Este outro temade discusses no Legislativo at a atualidade e oi objeto de disputas na Assem

    bleia Nacional Constituinte. Argumentase que as guardas tambm deveriamatuar na proteo do cidado e houve grande debate quanto possibilidade deguardas civis municipais terem ou no porte de arma. Quinze anos depois da CF,o Estatuto do Desarmamento Lei no 10.826/2003 previu que somente cidades com 500 mil habitantes ou mais teriam guardas armadas, mas j oi emendado atualmente, os municpios com populao a partir de 50 mil habitantesj podem ter guardas civis armadas, mas seus integrantes, neste caso, s podemportar a arma em servio.

    Chama ateno, ainda, que o captulo dedicado segurana pblica trateto somente de rgos de natureza policialesca e no incorpore o papel do Ministrio Pblico MP, do Judicirio ou dos agentes penitencirios neste campode atuao do Estado. Isto corrobora uma viso de segurana como repressopolicial, que pode ser avaliada como limitadora e produtora de polticas poucoecientes, porque restritas. E talvez se explique em alguma medida pela prpriainsero do tema na organizao do texto constitucional.

    14. Nas palavras de Coelho que se seguiram promulgao da Constituio: Andaram mal os constituintes aoimporem aos estados uma mesma e igual organizao das oras policiais. Uma das consequncias desta excessivapadronizao, desta indierena pelas dierenas, ser inevitavelmente transormar em letra morta os dispositivosconstitucionais no mbito das atividades prticas das agncias policiais (COELHO, 1989, p. 1003).

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    2.4 A iciai ciidad

    A orma como o tema da segurana pblica oi inscrito na Constituio Federaltrouxe muitas continuidades, especialmente em relao ao perodo ditatorial, emquestes que so de grande importncia para consolidao da democracia.

    Assim, apesar de todos os avanos decorrentes da promulgao da CF/88,apontados por esta publicao, a segurana pblica, a atuao dos policiais e aspenitencirias passaram ao largo da Constituio. Para estes campos, 1988 no marco de mudana e isto pode ser percebido ainda hoje no cotidiano das nossas cidades, nas notcias e nos estudos eitos. Dierentemente do que se poderiaimaginar, j que estvamos saindo de um perodo de mais de 20 anos de regimemilitar que se utilizou do poder das oras policiais para represso no h

    grande ruptura.Entre as continuidades na letra da lei, destacamse o modelo dualizado de

    polcias PC encarregada da apurao das inraes e PM encarregada do policiamento ostensivo; as Polcias Militares como oras auxiliares do Exrcito; e apermanncia da justia militar que complementa o segundo ponto. Uma quartacontinuidade diz respeito aos direitos do apenado, j previstos na Lei de ExecuoPenal, de 1984, e conrmados pela CF, de maneira positiva, mas que no oramlevados a eeito at os dias de hoje.

    Como colocado anteriormente, a orma como oram conduzidos os debatesna Assembleia Nacional Constituinte e os lobbiesque nela atuaram nos ajudam acompreender o porqu destas continuidades, mesmo em uma Constituio elaborada em um momento de tanta participao dos movimentos sociais.

    2.4.1 Modelo dualizado de polcias

    Conorme descrito anteriormente, o modelo dualizado de polcias no rutodo regime militar. Existe no Brasil desde o sculo XIX e apresentase de ormas

    bastante dierenciadas de estado para outro. Isto traz consequncias para o confito de competncias e a eccia do sistema de segurana pblica como um todo.O ano de 1969 oi determinante, contudo, na ampliao e ortalecimento dopapel das Polcias Militares e, portanto, na militarizao do sistema. A ECno 1/1969, pela primeira vez, institui como papel das PMs a manuteno daordem pblica at ento seu mandato limitavase a questes de seguranainterna e o DecretoLei no 1.072/1969 coroa este princpio, ao determinarque as Polcias Militares tm exclusividade no policiamento ostensivo ardado.

    A CF/88 no rompe este modelo; na verdade, o institucionaliza, ao denirclaramente as atribuies das Polcias Civis pela primeira vez matria constitucional e das Polcias Militares.

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    Como arma Zaverucha, a Constituio de 1988 nada ez para devolver Polcia Civil algumas de suas atribuies existentes antes do incio do regime militar, o que contribuiu para que hoje esteja consolidada a militarizao da rea

    civil de segurana 2005, p. 7576.Pinheiro mais entico ao armar que

    a Constituio de 1988 reiterou a organizao dos aparelhos repressivos ormuladadurante a ditadura: a Constituinte reescreveu o que os governos militares puseramem prtica. No h transio, mas plena continuidade PINHEIRO, 1991, p. 51.

    Assim, a corporao que temos hoje nas nossas ruas com uno de garantir asegurana de todos os brasileiros surgiu como tal no auge do perodo ditatorial.

    Se na Constituio Federal de 1988 a uno das Polcias Militares o policiamento ostensivo e a manuteno da ordem pblica, cabe s Polcias Civis asunes de polcia judiciria e a apurao de inraes penais.15

    Com isso, dierentemente da maioria dos pases, onde as polcias so de ciclo completo isto , a mesma corporao que investiga realiza o policiamentonas ruas no Brasil, como aponta Mariano, temos duas meias polcias, o queacarreta confitos de competncia, distanciamento das direes das instituiespoliciais, duplicidade de equipamentos e de gerenciamento das operaes, que, so

    mados, constituem uma das principais causas estruturais da inecincia do setorMARIANO, 2004, p. 21. Medeiros ressalta que muitos pases normalmente tomados como reerncia Estados Unidos, Frana, Itlia, entre outros possuemmltiplas organizaes policiais. Isto , em termos numricos, o Brasil no exceo. Nossa peculiaridade est em que, enquanto nos demais pases a especializao intraorganizacional, com prossionais de uma mesma organizao se dividindonas unes de polcia criminal e polcia urbana, no Brasil extraorganizacional:no mesmo espao geogrco, uma polcia se ocupa da investigao e a outra execu

    ta tareas paramilitar e de patrulhamento MEDEIROS, 2004, p. 278.Hoje, a PM a que tem o contato com a populao no momento do crime

    ou da tentativa de crime. ela que, muitas vezes, d a notcia do crime para aPC, que, por sua vez, ir investiglo. Mas esta diviso de tareas no tem se mostrado eciente. Em geral, a PM no respeita a cena do crime, a PC no investeem investigao e os inquritos policiais tornamse pouco qualicados, o queaz com que o percentual de crimes no esclarecidos seja inaceitavelmente altono Brasil. Apesar da interdependncia o trabalho de uma depende do trabalhoda outra no h integrao e, pelo contrrio, h disputas por espao, porsalrios, por poder. anto que a Polcia Militar acaba criando mecanismos de

    15. Atribuies estas ortemente condicionadas pelos Cdigos Penal, de 1940, e de Processo Penal, de 1941, queatravessaram o perodo ditatorial e a renovao democrtica e se perpetuam at hoje.

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    investigao como o chamado PM2, ou 2a seo do Comando e as PolciasCivis no raramente criam unidades de policiamento ostensivo MARIANO,2004, p. 52.16 O problema na atualidade bem explicitado por Medeiros:

    Apesar do contato dirio entre as duas organizaes policiais, h pouca troca derecursos tcnicos e institucionais. As relaes isomrcas so mais ortes entre as diversas Polcias Civis, entre as diversas Polcias Militares e o mais grave em termosde campo policial entre Polcia Civil e Justia, e entre Polcia Militar e Exrcito.Est incompleta a conquista democrtica da separao institucional PolciaJustiae PolciaExrcito 2004, p. 279.

    Se a atividade de policiamento ostensivo muitas vezes marcada pela violncia eo despreparo, as atividades ligadas investigao criminal no so poupadas de crticaspelos estudiosos do tema. O principal instituto da PC na sua atividade de apurar os crimes o inqurito policial, alvo de severas crticas por parte daqueles que o consideramcomo pea que vai de encontro a todo o restante do nosso sistema constitucional e desuas garantias relativas persecuo penal. Criado em 1871, ainda durante o perodoimperial, e consagrado pelo Cdigo de Processo Penal CPP de 1941, o inquritopolicial persiste apesar de contradizer princpios de nosso ordenamento jurdico, comodireito ao contraditrio e ampla deesa. O modelo inquisitorial no qual se enquadrapermite que a polcia prenda suspeitos mesmo sem provas; indicie cidados e subordine

    a atuao dos advogados.17

    Os delegados de polcia, com isso, possuem poder desmedido poder de selecionar e de criminalizar e, como deende Silva, os excessos soacilitados para no dizer induzidos pela lei, pois no parecia ser outra a intenodo governo, edio do Cdigo de Processo Penal 2008a, p. 85.18

    De acordo com Mingardi 2000, somente dois grupos deenderiam a manuteno do inqurito policial no ormato atual no Brasil: os delegados de polcia,por questes corporativas, e alguns advogados criminalistas, pois a m qualidadedos inquritos acilita a deesa dos rus. Apesar da diculdade em se chegar a n

    meros precisos, sabido que a maioria dos casos de delitos criminais sequer investigada. Como h uma grande burocracia relacionada ao inqurito policial prazos,prestaes de contas em relao a juzes e promotores, entre outras haveria umaregra no escrita que determina que se instaure o inqurito somente nos casos emque o culpado j conhecido, o que vai diretamente de encontro a seu objetivo.

    16. Coelho, j em 1989, o previa: Nas principais metrpoles brasileiras, o cidado continuar a notar nas ruas apresena de policiais civis ostensivamente armados, circulando em viaturas ostensivamente identicadas pelas corese nome da corporao impresso nas laterais, quando no so os prprios policiais que vestem coletes nos quais se lem letras garraais: POLCIA CIVIL (...) Trata-se a, tecnicamente, de policiamento ostensivo, mais ostensivo do que seosse policiamento ardado. De orma igual, os policiais militares no deixaro de azer investigaes atravs de seusservios reservados (1989, p. 1.005).17. C. Silva (2008a, p. 85).18. Para ilustrar seu argumento, reproduz excerto da Exposio de Motivos do CPP, assinada pelo ento ministro daJustia Francisco Campos.

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    Silva no deixa dvidas ao armar que:

    ... em se tratando da apurao de crimes ... a polcia brasileira vem uncionando

    como se osse uma grande rma de detetives privados, e os governantes e autoridades, como seus proprietrios. Este talvez seja o principal ator de impunidade noBrasil, pois o criminoso sabe que a possibilidade de ser descoberto, incriminadocom provas cabais e preso remotssima 2008a, p. 329330.

    Ainda sobre a atividade de apurao criminal, temos assistido nos ltimosanos a intenso debate sobre a possibilidade de ser realizada tambm pelo MP. Estapossibilidade tem sido alvo de intensas disputas judiciais e doutrinrias e encerradeesas corporativistas tanto por parte de promotores quanto de delegados depolcia. Ela se explica, em larga medida, pela ambiguidade de alguns dispositivosconstitucionais, mas principalmente pela alta de regulamentao de alguns deles. Assim, o Art. 129 da CF, que elenca as unes institucionais do MP, prevexclusividade na promoo da ao penal pblica; promoo do inqurito civile da ao civil pblica para proteo do patrimnio pblico e social, do meioambiente e de outros interesses diusos e coletivos; exerccio do controle externoda atividade policial e requisio de diligncias investigatrias e instaurao deinqurito policial.

    Pelo que deendem os promotores, sua participao na investigao crimi

    nal teria o mrito de garantir o mnimo de contraditrio e tirar do delegado asobreposio de prerrogativas. Os policiais civis, por sua vez, deendem que o MPtem uno somente de instaurar inqurito civil nos casos previstos e que cabe somente s Polcias Civis a apurao penal, ainda que a partir de solicitao do MP.Apesar de ainda no ter tomado deciso denitiva sobre a questo, o Supremoribunal Federal SF recentemente tomou deciso no sentido de reconhecer ainvestigao conduzida pelo MP.19 Este oi tema de discusso ao longo dos trabalhos da ANC e ainda hoje objeto de proposies legislativas, especialmente de

    emendas constitucionais. Esta questo sobre a qual no se avizinha soluo eque se soma dicotomia das organizaes policiais para tornar nosso sistema desegurana pblica pouco eciente e muito marcado por interesses de corporaes.

    Nos anteprojetos de dispositivos constitucionais oriundos dos trabalhos daSubcomisso emtica, j estava previsto o modelo dicotmico de polcia. Contudo, havia se optado por utilizar a denominaooras pblicaspara a corporaoencarregada de manter a ordem pblica e de polcias judiciriaspara as corporaes com uno de apurar as inraes penais. O relator da subcomisso, na

    apresentao de seu anteprojeto, argumenta que:

    19. Em contraposio a decises tomadas anteriormente, em maro de 2009 a 2 a turma do STF reconheceu porunanimidade que os integrantes do Ministrio Pblico podem investigar .

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    As oras Policiais estaduais continuaro exercendo a polcia ostensiva, comoalis o vm exercendo h mais de um sculo e meio, desde o perodo regencial.Recentemente, de orma equivocada, receberam a denominao imprpria de

    Polcia Militar, sugerindo interpretaes desastrosas. Sua ao complementadapela atividade de Polcia Judiciria, a qual tem como procedimento processualbsico o Inqurito policial, instituto jurdico consagrado no Brasil como alternativa ao Juizado de Instruo Criminal. Por outro lado, a Polcia Judiciriatambm nos ltimos anos oi denominada impropriamente de Polcia Civil,inadequao geradora de perversa dicotomia semntica entre Polcia Civil e Polcia Militar, postura dialtica de confito potencial, distoro que posiciona emlados opostos civis e militares, ato que a proposta neutraliza completamenteFIZA, 19871988, p. 30.20

    As denominaes rechaadas pelo relator acabaram sendo adotadas j naComisso emtica, inclusive a partir de argumentos que colocavam as unesdas Polcias Civis no somente ligadas apurao penal e questionavam a aludidadicotomia entre civil e militar.

    Cabe mencionar, ainda, a proposta da Comisso Provisria de EstudosConstitucionais, conhecida como Comisso Aonso Arinos, que previa que osestados, por meio das Polcias Civis, cassem incumbidos da preservao da or

    dem pblica e da incolumidade das pessoas e do patrimnio; que as Polcias Civisdeveriam proceder s investigaes criminais e realizar a vigilncia ostensiva epreventiva, podendo manter quadros de agentes uniormizados; e que os estadospoderiam criar Polcia Militar para garantia da tranquilidade pblica, por meiode policiamento ostensivo, quando insucientes os agentes uniormizados da Polcia Civil e do Corpo de Bombeiros.21

    Na mesma linha, segundo levantamento do relator da Subcomisso IVb,oram apresentadas sete sugestes com proposta de uso entre PC e PM em

    uma nica estrutura de carter civil, alm do projeto de Constituio apresentado pela bancada do Partido dos rabalhadores P, propondo a extino dasPolcias Militares estaduais e a criao de oras policiais de natureza civil. Emcontraposio, 29 sugestes teriam sido apresentadas pela manuteno das PMsno policiamento ostensivo.

    20. ANC. Anteprojeto do Relator da Subcomisso. IV Comisso da Organizao Eleitoral, Partidria e Garantias dasInstituies; IV-B Subcomisso de Deesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurana. Anteprojeto Relatrio.21. A Comisso Provisria de Estudos Constitucionais reuniu 50 intelectuais, nomeados pelo Presidente da Repblica

    Jos Sarney e presididos pelo jurista Aonso Arinos, que trabalharam entre 1985 e 1986, para elaborar um anteprojetode texto constitucional. O anteprojeto elaborado jamais oi entregue Assembleia Nacional Constituinte, pois pocase temia que osse entendido como infuncia sobre os parlamentares e perigosa ingerncia do Executivo sobre a au-tonomia do Legislativo. Mas o texto produzido oi publicado no Dirio Ocial da Unio (DOU) e acabou infuenciando,em alguma medida, os trabalhos dos constituintes. A esquerda havia considerado a comisso muito conservadora, maso resultado de seus trabalhos acabou desagradando a direita, que o julgou excessivamente progressista.

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    Para repensar o modelo dualizado de polcias, as opes apresentadas so,entre outras:22i) desconstitucionalizar a questo cada estado poderia implantaro melhor arranjo, sendo possvel haver polcias de ciclo completo civis e milita

    res; ii) regulamentar o 7o do Art. 144, para que se promova melhor diviso detareas, se maximize a cooperao e se minimizem as disputas;23iii) desmilitarizar as polcias e criar polcias de ciclo completo civis; iv criar polcias de ciclocompleto militares; ou, ainda, v) implantar polcias organizadas por circunscriogeogrca ou por tipo de crime. Adicionalmente, discutese ampliao do papeldas guardas municipais para que passem a desempenhar unes de proteo docidado e de policiamento ostensivo, nos moldes das polcias de proximidade.

    No h, portanto, nenhum tipo de consenso entre estudiosos da rea, que

    so unnimes somente em avaliar que da orma como atualmente est organizadoo sistema de segurana pblica no pas, no h ecincia, aumentase a impunidade, a violncia policial se perpetua, a populao no cona nas instituiespoliciais, as investigaes criminais so alhas, o policiamento das ruas inecaz,alm de outros problemas, relacionados corrupo, ao excesso de letalidade notrabalho policial e orma como os policiais interagem com os cidados comuns,problemas estes que aetam a populao como um todo e a populao pobreem particular mas que tambm trazem repercusses sobre os policiais e suascondies de trabalho, riscos no exerccio da prosso, entre outras.

    Como pde ser visto neste item, portanto, a vinculao das Polcias Militares ao Exrcito, arranjo de 1967 mantido aps a transio democrtica, constituiimportante caracterstica do nosso sistema de segurana pblica, o que nos levaao ponto seguinte.

    2.4.2 Polcias Militares como oras auxiliares do Exrcito

    Desde 1934, a subordinao das Polcias Militares ao Exrcito matria constitucional quadro 1, do Anexo 1. Antes do perodo de exceo iniciado em1964, contudo, estas eram polcias aquarteladas e voltadas para questes desegurana interna. A manuteno de sua vinculao s Foras Armadas, aliadaao seu papel central nas aes de segurana pblica, de atribuio dos governosde estado, ambos princpios consagrados pela CF/88, geram situao ambguae que traz questionamentos relevantes. Por isto, os autores so unnimes aoarmar que a Constituio de 1988 deu continuidade a modelo institudo peloregime autoritrio e que traz srias consequncias para as polticas de seguranapblica at a atualidade.

    22. Ver, por exemplo, Silva (2008a), Silva Filho (2001) e Bicudo (2000).23. Art. 144, 7o: A lei disciplinar a organizao e o uncionamento dos rgos responsveis pela segurana pblica,de maneira a garantir a ecincia de suas atividades.

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    A centralizao e a militarizao da segurana pblica ocorridas durante o regime militar normalmente so associadas a trs atores: i) a preocupao da Unio comalguns estados e suas PMs, que haviam participado ativamente do golpe de 1964 e

    estariam desgastadas; ii) o aumento da criminalidade e a necessidade de atender asdemandas populares por mais polcia nas ruas; e iii) a

    diculdade das Polcias Civis de lidarem com as tareas de controle impostas pela consolidao do regime autoritrio e das antigas polcias estaduais de darem conta do enrentamentoda luta armada desenvolvida por alguns setores da oposio PINHEIRO, 1982, p. 65.

    A vinculao das Polcias Militares estaduais como oras auxiliares do Exrcito tema dos mais controversos e criticados por todos que estudam a Constituio Federal sob a tica dos direitos humanos e/ou da relao entre militares ecivis na histria de nosso pas. A conuso entre polcia para deender o cidadoe polcia para deender o Estado permanece ou seja, teramos continuidade dalgica da doutrina de segurana nacional, como colocado anteriormente.

    De qualquer orma, a congurao perpetuada pela Constituio Federalsuscita duas questes undamentais: uma relacionada prpria militarizao daatividade policial e a outra ao duplo comando vivenciado pelas PMs brasileiras.

    Segundo dierentes especialistas,24 a atividade policial, em uma sociedadedemocrtica, deveria ter carter civil. No somente porque no se deve imiscuir

    deesa do Estado e proteo do cidado, mas devido prpria lgica militar, inadequada para atividades relacionadas preveno da violncia e da criminalidade.O policial que age na rua deve ter conscincia de sua uno preventiva e deve teriniciativa, e no somente dever disciplina e obedincia a um superior. A sua atuao no deve estar undamentada em princpios blicos, ligados lgica de guerrae de combate ao inimigo, mas na proteo aos cidados de maneira democrticae equitativa. A atividade de policiamento seria, portanto, eminentemente civil,porque a polcia tem que prestar servio pblico para o cidado. O oco de suaatuao deve ser a proteo do cidado, e no o combate ao inimigo.

    Na ANC, o relator da Subcomisso de Deesa do Estado, da Sociedade e de suaSegurana, na apresentao de seu anteprojeto, argumentou em sentido contrrio:

    Para manter a operacionalidade de servios executados normalmente em situaesadversas e de grande risco, exigese dos integrantes das Foras Policiais e Corpos deBombeiros, disciplina rgida, hierarquia orte, alm de condicionamento sico epsicolgico, que somente o estatuto administrativo militar pode proporcionar, sendo perigoso e insensato manter seus integrantes ao estatuto comum do uncionriopblico civil FIZA, 19871988, p. 30.25

    24. Ver, por exemplo, Mariano (2004) e Bicudo (2000).25. ANC. Anteprojeto do Relator da Subcomisso. IV Comisso da Organizao Eleitoral, Partidria e Garantias dasInstituies; IV-B Subcomisso de Deesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurana. Anteprojeto Relatrio.Relator: Deputado Constituinte Ricardo Fiza (PFL/PE).

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    Pinheiro deendia, em 1982, que na medida em que o esquema de sustentaoideolgica que determinou a organizao das Polcias Militares e suas tareas tenha sidoultrapassado, a militarizao da polcia inaceitvel 1982, p. 8687. Hlio Bicudo

    sustenta que os modelos adotados pelos pases do primeiro mundo aconselhamuma Polcia Civil a servio do povo e que a Comisso Interamericana de DireitosHumanos tem eito reiteradas recomendaes no sentido de que entreguem, com exclusividade, as atividades de policiamento s autoridades civis 2000, p. 99.

    O mesmo autor analisa que os constituintes de 1986 no quiseram ou, provavelmente, no puderam enrentar o desao de desmontar por inteiro os undamentos de uma ditadura que ento se desazia. Ao invs, consolidaram a existncia de uma Polcia Militar autoritria e arbitrria... BICUDO, 2000, p. 98.

    Zaverucha lhe az eco ao armar que:... nossos constituintes no conseguiram se desprender do regime autoritrio recm ndo e terminaram por constitucionalizar a atuao de organizaes militaresem atividades de polcia Polcia Militar e deesa civil Corpo de Bombeiros ,ao lado das Polcias Civis. As polcias continuaram constitucionalmente, mesmo emmenor grau, a deender mais o Estado que o cidado 2005, p. 7273.

    O relator Ricardo Fiza argumentou, ainda, em sua justicativa:

    A condio de oras auxiliares e reserva do Exrcito, tanto para as Foras Policiais

    como para os Corpos de Bombeiros, alm de j pertencerem a nossa melhor tradio constitucional e longe de signicar qualquer subordinao, traz sem dvidaindiscutveis vantagens operacionalidade desejada, seja para a deesa territorial em caso de guerra seja para a manuteno da ordem interna 19871988, p. 30.26

    Silva, ao analisar as possibilidades de que as Foras Armadas requisitem amobilizao de Polcias Militares ou o contrrio que os estados solicitem a atuao das Foras Armadas chega a concluso inteiramente oposta:

    No carece dvida de que a alternativa encontrada em 1988, a de manter essas

    instituies como polcia e como ora de deesa interna, redundou na consolidaode um sistema policial canhestro e um no menos canhestro sistema de seguranainterna, um a complicar o outro. Se esse quadro no traz maiores prejuzos segurana interna, para cujas situaes de risco podem ser adotadas solues ad hoc, omesmo no ocorre com a segurana pblica, pois a proteo das pessoas contra acriminalidade e a violncia exige o empenho mximo e permanente da polcia, nemsempre com o emprego da ora, mas com as atividades de investigao policial ecom as tcnicas de mediao 2008a, p. 413.

    26. ANC. Anteprojeto do Relator da Subcomisso. IV Comisso da Organizao Eleitoral, Partidria e Garantias dasInstituies; IV-B Subcomisso de Deesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurana. Anteprojeto Relatrio. Desteraciocnio e da previso estabelecida pelo Art. 144 se justica a necessidade de a Unio ter a prerrogativa de legislarprivativamente sobre as normas gerais de organizao, eetivos, material blico, garantias, convocao e mobilizaodas Polcias Militares e Corpos de Bombeiros Militares, conorme prev o Art. 22, inciso XXI, da CF/88.

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    Um grave problema decorrente da subordinao dos policiais militaresao Exrcito o duplo comando. As Polcias Militares respondem ao EstadoMaior do Exrcito, mas tambm, aos governadores estaduais. O governador

    nomeia os comandantes e conere patentes, a azenda estadual remunera osintegrantes da corporao, mas eles podem ser chamados a qualquer tempopara compor a ora do Exrcito, que controla uma srie de elementos relativos s corporaes.27

    uma ambiguidade que gera muitas diculdades, em relao ao duplo comando, mas tambm a uma crise de identidade por parte dos policiais. Comocoloca Silva:

    Foras ambguas, as Polcias Militares continuam com diculdade de se identicarplenamente com a uno policial, ao mesmo tempo em que j no se identicamcom a uno militar do Exrcito. Sendo as duas coisas sem discernir claramenteeste ato, no conseguem ser nem uma coisa nem outra 2008a, p. 410.

    Em grande medida, esta ambiguidade est relacionada misso constitucional das Foras Armadas, qual seja, [a] deesa da Ptria, [a] garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa destes, da lei e da ordem CF, Art. 142.Este oi tema de aproundados debates ao longo da ANC, sobretudo tendo em

    vista o contexto de redemocratizao que se vivenciava.28 No oi por acaso queo captulo da segurana pblica cou ao lado do captulo das Foras Armadase que os conceitos de deesa externa, deesa, ordem ou segurana interna e segurana pblica perpassaram o debate sobre estes captulos. Seu resultado oi asobreposio de captulos e artigos ambguos e, de maneira mais marcada, a continuidade de institutos cruciais, que haviam sido criados ou renovados duranteo perodo de arbtrio.

    27. Apesar de ter perdido o controle sobre a instruo das PMs, a IGPM, atualmente subordinada ao Comandode Operaes Terrestres (Coter), ainda controla o tipo de armamento, a localizao dos quartis e o ades-tramento das tropas, entre outros aspectos. Na pgina da IGPM na internet, encontram-se luxograma deaquisio de material blico, regulamentos para uniormes e para uso de condecoraes, eetivo das PolciasMilitares e Corpos de Bombeiros Militares de cada estado, bem como sua organizao em batalhes, compa-nhias, regimentos etc; oerta de cursos e estgios para policiais e bombeiros militares, entre outros. Disponvelem:. Acesso em: 4 ev. 2009. Acrescente-se a isto que osistema de inormaes das Polcias Militares deve estar subordinado ao sistema de inormaes do Exrcito, oque traz implicaes at mesmo sobre o arranjo ederativo. Como expe Zaverucha, as PMs so obrigadas, por

    lei, a passar inormaes coletadas atravs do chamado canal tcnico ao comandante do Exrcito. Ou seja, talcomandante possui inormaes sobre o prprio governador de Estado, pondo em xeque o princpio ederativo(ZAVERUCHA, 2005, p.71). Apesar de parecer anacrnico, este um princpio que continua em uso e j trouxenos anos recentes embaraos para a relao Exrcito/governo estadual.28. Miguel (1999) relata detalhes do processo de atuao das Foras Armadas na ANC em torno da deesa da missoconstitucional tal como desenhada na Emenda no 1, de 1969.

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    Um deles, que serve de corolrio para o quadro apresentado at aqui, a prerrogativa por parte dos policiais militares de serem julgados pelasjustias militares estaduais. Esta prerrogativa havia sido concedida em 1977,

    no chamado pacote de abril EC no 7, que incluiu na Constituio apossibilidade de criao de justia militar estadual com competncia paraprocessar e julgar, nos crimes militares deinidos em lei, os integrantes dasPolcias Militares Art. 144, 1o, letra d. Devido a esta incluso, o SF,j em 1978, reviu a Smula no 297, de 1963, que no considerava oiciais epraas das milcias dos estados no exerccio da uno policial como militarespara eeitos penais, sendo competente a justia comum para julgar os crimescometidos por ou contra eles.

    A CF/88 manteve dispositivo semelhante ao inserido pelo pacote deabril, autorizando a criao de justia militar estadual e prevendo tribunaisde justia militar nos estados em que o eetivo militar seja superior a 20 milintegrantes Art. 125, 3o. Este dispositivo, aliado ao 4o do Art. 144 s Polcias Civis, dirigidas por delegados de polcia de carreira, incumbem,ressalvada a competncia da Unio, as unes de polcia judiciria e a apurao de inraes penais, exceto as militares desenham o oro privilegiadopara militares estaduais e ederais.

    A crtica apresentada por Pinheiro ainda antes dos debates sobre a Constituio mantmse, tendo em vista a perpetuao do quadro legal:

    ... a utilizao das polcias militares que se amplia no enrentamento do crimecomum, especialmente depois do pacote de abril, cria um oro privilegiado paraas polcias militares.Aguerra contra o crimedas polcias militares vai ser beneciadacom as mesmas garantias que gozava no enrentamento da luta armada: passa a noter ronteiras com a guerra permanente 1982, p. 66.

    A Constituio Cidad, portanto, manteve regulamentaes de

    1970, ano de promulgao do Cdigo de Processo Penal Militar CPPM,e de 1978, quando o SF decidiu que o policial militar, se comete crime no exerccio do policiamento, deve ser julgado pela justia especial.A maior crtica a este desenho que se trata de justia rigorosa com transgressesdisciplinares, mas, em geral, complacente com crimes cometidos contra o cidadono exerccio do policiamento.

    Atualmente, quando um policial comete um crime, aberto inquritopolicial militar IPM, presidido por um colega, e o julgamento se d nos

    chamados conselhos de sentena, compostos por quatro juzes militares eum juiz togado, sendo que, para ser juiz militar basta ter patente ou postosuperior ao do policial que est sendo julgado. Esta a receita para grandeimpunidade decorrente de crimes cometidos por policiais militares, o que

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    perpetua as prticas de violncia, por um lado, e a alta de coniana da populao nos agentes de segurana pblica, por outro lado.29 Esta questo serabordada na prxima seo.

    A perpetuao de institutos herdados do perodo militar, portanto, gera situaes que erem rontalmente importantes preceitos constitucionais relacionados ao Estado democrtico de direito. Neste sentido, a violncia policial mostrase atualmente como um dos grandes problemas relacionados ao modelo adotadopelo Estado brasileiro para a segurana pblica.

    odos os ingredientes apresentados acima a crise de identidade dos PMs,a lgica do combate em detrimento da lgica do servio pblico, a dupla vinculao das PMs e dualizao da atividade policial azem com que tenhamosa polcia violenta que temos, que trabalha na lgica da guerra contra o crime o inimigo externo substitudo pelo inimigo interno, agora no mais o guerrilheiro, mas o tracante, o bandido, o morador de avela.

    Devido sua importncia e seu carter emblemtico no sentido de representar, por um lado, enorme ilegalidade e ilegitimidade ace ao nosso Estado democrtico de direito e, por outro, signicativa continuidade em relao ao regimeque o antecedeu, o tema da violncia policial ser aproundado na prxima seo.

    3 estADo DeMoCrtICo e VIolnCIA polICIAl

    3.1 A ivia icia c jdicia d Autos de resistncia

    Enquanto prevaleceu o Cdigo Penal Militar CPM tal como ormulado em1969, o julgamento pela justia comum de policiais militares que haviam cometido homicdios dolosos era praticamente impossvel. O jornalista Caco Barcellosilustra este ato no seu livro Rota 66, em que examina dezenas de casos de pessoasmortas por policiais militares em So Paulo entre 1970 e 1992,30 em sua maioria

    29. Inmeros so os relatos e denncias nesse sentido, como o caso do amoso livro Rota 66 (2001), de Caco Barcellos,que apresenta extenso e minucioso levantamento eito pelo autor acerca do envolvimento de policiais militares de SoPaulo em homicdios e os desdobramentos destas aes. Desde 1996, a Lei no 9.299 determina que os crimes dolososcontra a vida cometidos por policiais militares devem ser julgados na justia comum. Contudo, a investigao permanecesob a alada da justia militar e o Superior Tribunal Militar (STM) decidiu, ainda, que esta lei no se aplica aos militares e-derais. Zaverucha (2005) relata que a Cmara dos Deputados havia aprovado que quaisquer crimes cometidos por policiasmilitares contra civis deveriam ser julgados na justia comum, mas o Senado aps sorer presso por parte dos policiaismilitares acabou limitando somente para crimes dolosos contra a vida, o que oi aprovado na reerida lei. Ademais, duassemanas depois, oi apresentado novo projeto de lei propondo a excluso dos militares das Foras Armadas desta novanorma e, de qualquer orma, a deciso do STM neste sentido oi tomada em novembro daquele ano. Pode-se concluir quea lei de 1996 oi relativamente branda, ao deslocar para a justia comum apenas os crimes dolosos contra a vida e, alm

    disso, no explicitar que o processo investigatrio deveria ser realizado pela PC. Ainda assim, a constitucionalidade danova lei pde ser contestada na justia. A questo oi resolvida com a promulgao da Emenda Constitucional no 45, de2004, que inseriu na prpria Constituio, no captulo sobre as justias estaduais, que os crimes militares seriam julgadospela justia militar ressalvada a competncia do tribunal do jri quando a vtima or civil (Art. 125, 4).30. O caso Rota 66, que d nome ao livro, ocorrido em 1975, revelou a impossibilidade de julgamento de ociaismilitares pela justia comum durante a vigncia do regime militar.

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    pobres e moradores da perieria da cidade. O livro tornouse um importantedocumento sobre a violncia policial, pois rene inormaes da imprensa, documentos do Instituto Mdico Legal IML, da justia militar, justia civil e entre

    vistas com amiliares das vtimas. Entre suas principais concluses, destacamse: Os laudos do IML requentemente contradiziam as verses policiais,

    devido ao nmero de balas e sua localizao nos corpos das vtimas.

    O local do crime no era preservado, ao contrrio, o corpo do alecidoera levado a algum hospital simulando ao de socorro.

    Nmero importante de vtimas era inocente, pois no praticara nenhum ato criminoso e a maioria no tinha antecedentes criminais.

    O inqurito policial militar apresentava erros graves, invariavelmenteem deesa dos policiais.

    Nos poucos casos em que testemunhas a avor das vtimas eram ouvidas, isto no alterava o veredicto em avor da absolvio dos ociaismilitares por parte da justia militar.

    Nmero importante de vtimas das aes violentas da Polcia Militarno azia parte das estatsticas ociais, pois os corpos nunca seriam en

    contrados, eram casos de desaparecidos.ais mtodos de atuao de determinados batalhes da PM permanecem

    presentes mesmo aps tantos anos. As descobertas de Barcellos sobre as aes depraxe nos casos de resistncia seguida de morteoram conrmadas por outros estudos, realizados anos depois, notadamente o realizado pela Ouvidoria de Polciade So Paulo, no ano 2000 OUVIDORIA DA POLCIA DO ESADO DESO PAULO, 2001. ambm no Rio de Janeiro, diversos relatrios tm descrito aes policiais abusivas similares, contabilizando milhares de vtimas civis nosanos recentes LYRA, 2004; ANISIA INERNACIONAL, 2007.

    Quanto ao julgamento dos ociais militares, no Rio de Janeiro um estudosobre os processos relativos aos autos de resistncia em andamento na auditoria dajustia militar, entre 1993 e 1996, mostrou que de 301 casos encontrados, 295oram arquivados a pedido da promotoria e que os seis que oram a julgamentoresultaram em absolvio dos policiais acusados CANO, 1997.

    Mesmo depois da aprovao da Lei no 9.299, em 1996, que transeriu os crimesdolosos contra a vida cometidos por militares para a justia comum, a deesa da posio

    dos civis mortos em conronto com a polcia continuou sendo problemtica. Em SoPaulo, estudo realizado em 2002 mostrou que a maior parte dos casos de resistnciaseguida de morte eram encaminhados justia comum, mas somente em processos cujoacusado era o civil morto. Poucos casos eram encaminhados ao tribunal do jri acusando

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    Segurana Pblica na Constituio Federal de 1988: continuidades e perspectivas 159

    O governo do jurista Franco Montoro, de 1983 a 1986, adotou em suapoltica de segurana um discurso de deesa do Estado de Direito e contrrio violncia policial. Por exemplo, o governo tomou algumas medidas, tais como:

    enraquecer a Rota,32 trocar o comando da Polcia Civil e dar maior apoio Corregedoria da Polcia, que passou a punir e aastar nmero maior de policiaisCALDEIRA, 2000. Mesmo com estas medidas, a violncia policial continuouem nveis altos no estado at 1985, passando a cair a partir do ltimo ano dogoverno, como mostra o grco 1.

    GRFICO 1Civi m m c cm a cia ad d s pa 1981-2008

    300 286328

    481

    585

    399

    305 294

    532585

    1140

    1470

    409453

    500

    286 271351

    393

    595

    459

    610

    915

    663

    329

    576

    438 431

    0

    200

    400

    600

    800

    1000

    1200

    1400

    1600

    1982 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 20081981

    Jos SerraJosM

    Marin

    CludioLemboOrstes QurciaFranco Montoro Luiz A. Fleury Filho Mrio Covas Geraldo Alckmin

    PauloMaluf

    Nmerodecivismortospelapolcia(militareciv

    il)

    Governador/anoCivis mortos em confronto com a polcia

    Fontes: Para nmero de mortos pela polcia entre 1981-1995, Caldeira (2000); entre 1996-2007, SSP-SP.

    O governo Qurcia, 19871990, adotou discurso mais complacente com

    o uso excessivo da ora pela polcia e nomeou para a Secretaria de SeguranaPblica SSP um exocial da Polcia Militar e ento promotor, Luiz AntnioFleury Filho, que seria seu sucessor como governador do estado. Como secretrio de segurana, Fleury armava que a polcia teria seu apoio para usar todoo rigor CALDEIRA, 2000. Durante o governo Qurcia a violncia policialcontinuou em nveis similares aos do governo anterior, embora apresentandoalta nos dois ltimos anos da gesto.

    32. Rota so as Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar, batalho de choque da Polcia Militar do Estado de So Paulo,conhecido por sua truculncia e tornado mais amoso aps o relato de Caco Barcellos no livro Rota 66, cujo ttulo sedeve ao caso contado pelo jornalista, ocorrido em 1975, que envolveu jovens da classe mdia paulistana e policiaisdo reerido batalho.

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    Segurana Pblica na Constituio Federal de 1988: continuidades e perspectivas 161

    A tabela 1 mostra tambm que a razo entre civis mortos e policiais mortos temuma amplitude de variao elevada no perodo considerado. Cabe observar que noperodo 19961999 a razo entre civis e policiais mortos apresentou os nmeros

    mais baixos da srie e que este perodo coincide com os esoros do Executivo estadual no sentido de aumentar o controle sobre os abusos cometidos por policiais.

    TABELA 1nm d m id m c cm a cia m d iciaim id m vi ad d s pa 1981-2008

    Ano

    Pessoas mortasem conrontocom a polcia

    Pessoas eridasem conrontocom a polcia

    Policiais mortosem servio

    Policiais eridosem servio

    Mortos/ Feridos Civis mortos/Policiais mortosnos conrontosPolcia

    Civil

    Polcia

    Militar

    Polcia

    Civil

    Polcia

    Militar

    Polcia

    Civil

    Polcia

    Militar

    Polcia

    Civil

    Polcia

    Militar

    Polcia

    Civil

    Polcia

    Militar Civis

    1981 ND 300 ND ND ND ND ND ND ND ND ND ND

    1982 ND 286 ND 74 ND 26 ND 897 ND 0,03 3,86 11,00

    1983 ND 328 ND 109 ND 45 ND 819 ND 0,05 3,01 7,29

    1984 ND 481 ND 190 ND 47 ND 654 ND 0,07 2,53 10,23

    1985 ND 585 ND 291 ND 34 ND 605 ND 0,06 2,01 17,21

    1986 ND 399 ND 197 ND 45 ND 599 ND 0,08 2,03 8,87

    1987 ND 305 ND 147 ND 40 ND 559 ND 0,07 2,07 7,63

    1988 ND 294 ND 69 ND 30 ND 360 ND 0,08 4,26 9,80

    1989 ND 532 ND ND ND 32 ND ND ND ND ND 16,63

    1990 ND 585 ND 251 ND 13 ND 256 ND 0,05 2,33 45,00

    1991 ND 1140 ND ND ND 78 ND 250 ND 0,31 ND 14,62

    1992 ND 1470 ND 317 ND 59 ND 320 ND 0,18 4,64 24,92

    1993 ND 409 ND ND ND 47 ND ND ND ND ND 8,70

    1994 ND 453 ND 331 ND 25 ND 216 ND 0,12 1,37 18,12

    1995 ND 500 ND 312 ND 23 ND 224 ND 0,10 1,60 21,74

    1996 47 239 48 287 17 32 59 730 0,29 0,04 0,85 4,88

    1997 18 253 37 275 11 26 68 714 0,16 0,04 0,87 6,84

    1998 52 299 44 342 14 31 67 1011 0,21 0,03 0,91 6,64

    1999 66 327 72 288 32 43 97 975 0,33 0,04 1,09 4,36

    2000 71 524 88 298 16 33 101 712 0,16 0,05 1,54 10,69

    2001 74 385 82 357 18 40 100 524 0,18 0,08 1,05 6,64

    2002 69 541 47 373 17 42 88 449 0,19 0,09 1,45 9,17

    2003 47 868 37 594 14 19 73 458 0,19 0,04 1,45 26,30

    2004 40 623 27 476 2 25 81 442 0,02 0,06 1,32 23,07

    2005 32 297 24 406 6 22 69 398 0,09 0,06 0,77 10,61

    2006 66 510 32 383 9 29 58 394 0,16 0,07 1,39 13,42

    2007 47 391 44 372 8 28 57 555 0,14 0,05 1,05 10,86

    2008 39 392 46 322 3 19 74 363 0,04 0,05 1,17 17,82

    Fontes: Para o perodo 1981-1995, Caldeira (2000). Para o perodo 1996-2008, Secretaria de Segurana Pblica do Estadode So Paulo.

    Obs.: ND = inormao no disponvel.

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    Segurana Pblica na Constituio Federal de 1988: continuidades e perspectivas 163

    GRFICO 2nm d m m c cm a cia ad d ri d Jai 1997-2008

    300

    397

    289

    427

    592

    900

    1195

    983

    10981063

    1330

    1137

    0

    200

    400

    600

    800

    1.000

    1.200

    1.400

    1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008

    Marcelo Alencar Antony Garotinho Beneditada Silva

    Rosinha GarotinhoSrgio Cabral

    Nmerodepessoasmortasemc

    onfrontocoma

    po

    lcia

    Governador/ano

    Fontes: Centro de Estudos de Segurana e Cidadania (CESeC) e ISP.

    Porm, a partir de 2000, os nmeros da violncia letal por parte da polcia

    cresceram rapidamente, passando de 289, em 1999, para 900, em 2002, quandoBenedita da Silva havia assumido como governadora. Dois episdios graves deviolncia na cidade do Rio de Janeiro mobilizaram a ateno da populao e podem ter contribudo para omisso do governo rente escalada da violncia policial, a saber: o caso do sequestro do nibus 174, em 2000, e o caso do assassinatodo jornalista im Lopes, em 2002 LYRA, 2004.

    A partir de 2003, j no governo de Rosinha Garotinho, o Executivo passou aadotar discurso avorvel ao uso excessivo da ora pelas polcias e promover aes

    mobilizando grande eetivo policial para aes pontuais em determinadas avelas,requentemente com grande saldo de civis mortos. Alm disso, o governo realizoutrocas importantes nos cargos relativos segurana pblica no estado visando aastaras pessoas comprometidas com organizaes de direitos humanos LYRA, 2004.Em maro de 2005 ocorreu o alarmante episdio da Chacina da Baixada, na qual29 pessoas oram assassinadas. As investigaes da Polcia Civil e da Polcia Federallevaram o MP a denunciar 11 Policiais Militares do estado pelo crime. Em 2007 onmero de civis mortos pela polcia no estado atingiu novo recorde, 1.330 pessoas.34

    34. A poltica de reorar a postura ostensiva e combativa da polcia to evidente que o relator das Naes Uni-das sobre execues sumrias esteve no Rio de Janeiro em 2007 e oi presenteadocom um caveiro em miniatura(o caveiro como se chama o veculo blindado da Polcia Militar destinado, primordialmente, a operaes em avelase que tem desenho inspirado em tanques de guerra). Ressalta-se que o governador do estado no recebeu o relatordas Naes Unidas em sua misso ao Brasil.

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    Polticas Sociais: acompanhamento e anlise164

    As inormaes disponveis sobre uso da ora letal pela polcia no estadodo Rio de Janeiro no revelam o nmero de eridos nem discriminam as mortescausadas por policiais civis e militares separadamente. A tabela 2 apresenta nme

    ro de pessoas mortas nos chamados autos de resistncia, assim como nmero depoliciais civis e militares mortos em servio. Como pode ser observado na ltimacoluna da tabela, a razo entre civis mortos e policiais mortos extremamenteelevada em todo o perodo, alcanando valores extremos no perodo recente, maisde 40 civis para cada baixa policial.

    TABELA 2nm d m m c cm a cia d iciai m m vi ad d ri d Jai 1997-2008

    Ano

    Pessoas mortas emconronto com a polcia

    Policiais mortos em servio Civis mortos/ policiaismortos em conrontos

    Polcia Civil e Militar Polcia Civil Polcia Militar

    1997 300 _ _ _

    1998 397 7 ND _

    1999 289 4 ND _

    2000 427 3 20 18,57

    2001 592 3 24 21,93

    2002 900 7 33 22,50

    2003 1195 7 43 23,90

    2004 983 0 50 19,66

    2005 1098 9 24 33,27

    2006 1063 2 27 36,66

    2007 1330 9 23 41,56

    2008 1137 4 22 43,73

    Fontes: CESeC e ISP.Obs.: ND = inormao no disponvel.

    Cabe observar que a Ouvidoria de Polcia no Rio de Janeiro oi criada em1999, mas no se destacou como instituio de controle externo da violnciapolicial AZEVEDO, 2006. No caso do Rio, a ouvidoria unciona dentro daSecretaria de Segurana Pblica e o ouvidor escolhido livremente pelo governador, dierentemente de So Paulo, onde o ouvidor escolhido de uma listatrplice indicada pelo Conselho Estadual de Segurana Pblica CONSEP etem oramento e recursos denidos.

    A evoluo dos nmeros relativos ao uso da ora letal no Rio de Janeiro e em So Paulo mostra alguns atores relevantes. Em primeiro lugar,h relao importante entre a poltica de segurana adotada pelo Executivoestadual e o nmero de civis mortos pela polcia, qual seja, os governos que

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    Segurana Pblica na Constituio Federal de 1988: continuidades e perspectivas 165

    se mostraram complacentes com o uso abusivo da ora pela polcia tenderam a engendrar nveis de violncia policial que, muitas vezes, escaparam aocontrole do prprio governo por exemplo, os casos da chacina da Baixada

    Fluminense, em 2005, e a chacina de maio de 2006 em So Paulo. Por outrolado, os governos que se propuseram a controlar os nveis de violncia policialencontraram srias diculdades e, muitas vezes, oram sucedidos por governos que adotaram linhas opostas na rea da segurana pblica.

    Em segundo lugar, os nmeros da violncia policial no Rio de Janeiro e emSo Paulo permanecem bastante elevados, e isto ca patente quando se observaa razo entre civis e policiais mortos em conrontos, especialmente no caso doRio de Janeiro. Cabe observar que a atuao da Ouvidoria de Polcia do estado

    de So Paulo tem sido undamental para documentar e tornar transparentes osdesvios de conduta e os abusos de violncia cometidos pelas polcias estaduais.A sociedade civil pode, por meio das inormaes produzidas, exercer o chamadocontrole externo da atividade policial. No Rio de Janeiro, pelo contrrio, no existeum rgo que exera papel similar, embora os pesquisadores da rea e ativistas dedireitos humanos se esorcem em denunciar as prticas consideradas abusivas.Cabe azer ressalva de que, no estado de So Paulo, o excessivo nmero de presos eos problemas do sistema prisional atores que no oram abordados no presenteestudo indicam que a poltica de segurana pblica adotada no resolveu deorma sustentvel a questo da represso ao crime.

    As inormaes de dois dos mais populosos estados brasileiros onde osndices de criminalidade superam a mdia nacional evidenciam que se perpetuaem nossas polcias cultura de enrentamento e de abuso da ora letal. Isto nosignica que todos os prossionais destas corporaes se alinhem a estas posturas.Ademais, os recentes esoros governamentais voltados para ormao e capacitao tm procurado romper com estes elementos de cultura institucional, presentes mesmo dentro do atual arcabouo legal. Um dos esoros neste sentido tam

    bm diz respeito implantao de novos conceitos para as polticas de seguranapblica e novas ormas de atuao policial. A prxima seo se dedica a este tema.

    4 poltICAs De preVeno DA VIolnCIA: potenCIAlIDADesDo polICIAMento CoMunItrIo no BrAsIl

    4.1 o md d iciam cmii

    Modelos de policiamento so discutidos no mundo todo h vrias dcadas.

    Experincias de diversas naturezas vm sendo empreendidas em localidades de dierentes pases, na busca por atuao policial que possa se mostrarmais eciente na preveno da criminalidade ou, pelo menos, no aumentoda conana dos cidados e na reduo da sensao de medo e insegurana.

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    Polticas Sociais: acompanhamento e anlise166

    Neste sentido, um dos modelos mais discutidos na atualidade o chamadopoliciamento comunitrio, ou policiamento de proximidade.35

    A existncia de polcia comunitria pressupe que oras policiais e cidadosso coprodutores da segurana pblica, para que possa haver menos crimes, menos medo da violncia, mais responsabilizao da polcia e maior respeito nas relaes entre policiais e comunidade. O policiamento comunitrio reconhecidocomo o lado progressista e avanado do policiamento SKOLNICK; BAYLEY2006, p. 15 nas democracias industriais mundiais.

    Apesar de no haver acordos sobre o que deva ser o policiamento comunitrio, existe a certeza de que ele deve refetir uma losoa de respeito mtuo eproximidade no nvel de tticas e estratgias de operao da polcia. A premissacentral do policiamento comunitrio de que o pblico deve exercer papel maisativo e coordenado na obteno de segurana. O pblico deve ser coprodutor dasegurana junto com a polcia, refetindo novas interaes entre estes.

    Skolnik e Bayley 2006 denem as aes de polcia comunitria por meiode quatro elementos: i) preveno do crime baseada na comunidade; ii) reorientao das atividades de patrulhamento para enatizar os servios no emergenciais;iii) aumento da responsabilizao da polcia e da responsabilidade da comunidade; e iv) descentralizao do comando.

    A preveno do crime o elemento central e, para alcanla ecazmente,a unidade de organizao do policiamento deve ser a mais localizada possvel,preerencialmente o bairro. Os programas de Vigilncia de Bairro, implementados em alguns pases, possuem esta unidade geogrca de reerncia.36 Umadas crticas que estes programas atuam mais sobre a diminuio do medo emrelao ao crime que sobre a preveno dos atos criminosos em si. Outra crtica a de que se trata de aes que uncionam mais para amlias de classe mdia epara o cuidado de suas propriedades. Finalmente, analisase que so aes que

    representam intromisso das polcias nos assuntos particulares dos moradores.Como veremos, estas crticas parecem ser aplicveis a alguns programas implementados aqui no Brasil.

    Outro ponto importante para caracterizar as polcias comunitrias o tipode estratgia de policiamento que utilizam. A presena na rua considerada undamental, assim como o contato com a vizinhana, mas as estratgias so variadas.

    35. Ver Skolnick e Bayley (2006) e Rolim (2006) para discusses mais pormenorizadas acerca destes conceitos e mo-

    delos. Chama ateno o ato de que o modelo analisado desde a dcada de 1980 em pases desenvolvidos. A ediooriginal da obra de Skolnick e Bayley, reerncia sobre o tema, data de 1988.36. Este oi um programa implementado na Gr-Bretanha por iniciativa da polcia e de alguns polticos a partir dosanos 1980, sendo que se identicam programas similares nos Estados Unidos, Japo, Austrlia e Cingapura, comdierenas entre eles de acordo com a instituio proponente da iniciativa e a cultura local. Skolnick e Bayley (2006)analisam muitos destes programas em seu livro.

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    Segurana Pblica na Constituio Federal de 1988: continuidades e perspectivas 167

    Policiamento motorizado, em bicicleta, ronda a p, postos de polcia acessveis nosbairros e em lugares pblicos, visitas domiciliares azem com que os policiais entremem contato direto com a populao e com os problemas cotidianos desta, elementos

    indispensveis para o policiamento preventivo. O modelo pressupe estratgia queest baseada na ideia de manuteno da ordem, que, associada polcia comunitria, se reere supresso da desordem ou do comportamento incivilizado deindivduos em lugares pblicos SKOLNICK; BAYLEY, 2006, p. 28.

    ratase da teoria das janelas quebradas broken windows), baseada emestudo eito em 1969 pelo psiclogo da Universidade de Stanord Philip Zimbardo, que relatava experimentos onde esta teoria era utilizada. O experimentoconsistia em deixar dois carros abandonados, cada um em um bairro die

    rente no Bronx e em Palo Alto , para depois ser observado o comportamento da vizinhana em relao aos carros. Em ambos os casos observouse quehouve destruio e saqueio dos carros, mas aconteceram em momentos e deorma dierenciados. No Bronx, o ataque do carro oi quase imediato, dez minutos depois de abandonado. Em Palo Alto o vandalismo no carro no se produziu at que o prprio cientista destrusse parte deste. A destruio semprecomeava pelas janelas, e depois de quebradas, a destruio e saqueio do carroera quase imediata. Concluiuse que o vandalismo pode ocorrer em qualquerlugar onde as barreiras comunais, no sentido de cuidado mtuo e de obrigaes de civilidade, estejam diminudas por aes que deem a entender queningum se preocupa com isto. Utilizando esta teoria, oi avaliado o programadenominado Sae and Clean Neighborhoods Program, anunciado em meados de1970 no estado de New Jersey para ser aplicado em 28 cidades. Chegouse concluso de que, apesar de no haver diminudo a criminalidade por vezeshavia aumentado nos lugares onde houve patrulhamento a p parte undamental do programa a populao tinha opinio mais avorvel em relao polcia, sentiase mais segura e os policiais estavam com a autoestima elevada,

    maior satisao no trabalho e atitude avorvel com os cidados do bairro, emcomparao aos ociais que trabalhavam em patrulhas motorizadas. Isto levoua pensar que na comunidade o nvel de desordem e crime est geralmente relacionado no somente a comportamentos que perturbem o sossego pblico,mas tambm degradao ambiental. A teoria das janelas quebradas sistematizada por Wilson e Kelling 1982 oerece, desta orma:

    ... uma valiosa contribuio para o ortalecimento de uma nova abordagem policial.A metora usada pelos autores a de que quando a janela de uma casa quebrada

    preciso reparla rapidamente, pois, se isso no ocorrer, haver a tendncia de queoutros vidros sejam quebrados. O abandono produziria, assim, uma mensagemque estimularia os inratores a persistirem nas aes ilegais e a tornlas progressivamente mais srias como uma espiral de declnio ROLIM, 2006, p. 72.

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    De acordo com essa concepo, as rondas a p em locais onde imperam desordem, vandalismo, pichaes, comportamentos agressivos e violentos, pessoas dormindo na rua etc., tm o potencial de azer com que as pessoas que moram nestes

    locais sintamse menos inseguras e menos tentadas a abandonar o bairro. O objetivo suprimir crimes e manter o bairro atraente para seus habitantes. Interessa mostrarque o controle do local no est nas mos de inratores e criminosos, mas que apolcia quem o detm. No entanto, como advertem Skolnick e Bayley 2006, seesta estratgia de policiamento ser comunitria ou no vai depender da orma comque seja aplicada. Na medida em que seja realizada de orma autoritria e sem participao da comunidade se aastar do policiamento comunitrio e ser um serviorealizado sob ameaa. Esta advertncia de extrema importncia para o caso brasi

    leiro, j que, como mostra a anlise que segue, apolcia comunitria implementadaem avelas do Rio de Janeiro esteve baseada em grande parte nesta losoa, masapresentou alguns dos problemas aqui ormulados, alm de outros especcos destetipo de localidade e da criminalidade que nela impera.

    Se as comunidades tm problemas especcos e prioridades dierentes o policiamento deve ser adaptvel. Neste sentido, um aspecto importante do policiamentocomunitrio a descentralizao do comando, que signica que os policiais subordinados devem ter a liberdade para agir de acordo com sua leitura prpria da realidade. 37Este elemento tem sido de dicil aplicao no caso brasileiro devido estrutura altamente hierarquizada da nossa Polcia Militar, como apontado na seo 1.

    Hoje em dia at os preconizadores da losoa dopoliciamento comunitriodesistiram de chamlo assim e reeremse necessidade de um policiamentointeligente, ligado concepo de que possvel reduzir o problema da criminalidade se voc tem o pblico do seu lado. simples assim. E como se az isso?Voc presta ao pblico o servio que o pblico pede a voc que preste, comoaponta Bayley, um dos autores mais citados quando se ala do tema, em entrevista de 2007. No entanto, no est clara a dierena entre um e outro conceito,

    pois o mesmo autor concorda com a estratgia de introduzir a losoa depoliciamento comunitrio BAYLEY, 2007 na polcia de orma generalizada.Neste sentido, o policiamento comunitrio, mais do que um tipo especco depolcia, deve ser uma orma especca de conceber e realizar o trabalho de polcia. Como veremos a seguir, no Brasil, apesar das diculdades institucionais eculturais que constituem ponto de partida dicil para a aplicao desta losoa,h programas e aes concretas de policiamento comunitrio que tm sido implementados e ainda continuam na agenda das polticas de segurana pblica.

    37. Os policiais devem ter capacidade de pensar por si s e de traduzir as ordens gerais em palavras e aes apro-priadas. necessria uma nova espcie de policial, bem como um novo tipo de comando. O policiamento comuni-trio transorma as responsabilidades em todos os nveis: no nvel dos subordinados, aumenta a autogesto; no dossuperiores, encorajam-se as iniciativas disciplinadas, ao mesmo tempo em que se desenvolvem planos coerentes quecorrespondam s condies locais (SKOLNICK; BAYLEY, 2006, p. 34).

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    4.2 pcia cmiia Bai: mac iicia c daiv

    O Brasil dierena dos outros pases ederativos exceto a Blgica tem um ederalismo triplo, que atribui constitucionalmente aos trs nveis de governo Unio,estados e municpios autonomia, poder de deciso e responsabilidades para aplicao de polticas pblicas. Para alguns autores, o ederalismo no Brasil est associadoao constitucionalismo, j que em todas as constituies esta orma de organizao degoverno raticada, ainda que sob dierentes arranjos institucionais SOUZA, 2005.

    A Constituio de 1988 conrma o ederalismo, ao tempo que constitucionaliza e descentraliza diversas polticas sociais. Com isso, a partir de 1988 municipalizamse vrias instituies e a coordenao de polticas pblicas. Como vistoanteriormente, porm, as Polcias Militar e Civil permanecem sob jurisdio dos

    governos estaduais. No se estimulou, no texto constitucional, portanto, a descentralizao da poltica de segurana pblica. Se, por um lado, as oras de seguranaso comandadas pelos governos estaduais, por outro lado, a Polcia Militar continuou com parte de sua estrutura vinculada ao Exrcito e, portanto, ao poder central.Alm disso, o dispositivo que vincula a poltica de segurana s aes municipais ainda tmido, no podendo ser considerado parte de uma poltica descentralizadoranesta rea. O Art. 144 da Constituio, em relao ao papel dos municpios, dispeto somente que estes podero constituir guardas municipais destinadas proteo

    de seus bens, servios e instalaes, conorme dispuser a lei Art. 144, 8o

    .Contrariamente, so mltiplas as reerncias importncia das experincias

    locais, descentralizadas, e as polticas e aes no espao municipal para desenhode uma poltica de preveno do crime e da violncia. No Brasil, experinciasque tm a localidade como unidade geogrca de reerncia para o desenho dainiciativa so mais apontadas como bem sucedidas, ou seja, que tiveram algumeeito sobre a queda da criminalidade avaliada como diminuio de diversosdelitos, seja contra a propriedade ou contra a vida KAHN; ZANEIC, 2005.38Muitas das aes de preveno de violncia comearam a realizarse no espaomunicipal e depois oram transeridas aos estados e aplicadas em toda ederao.Portanto, podese armar sem receio que projetos de preveno implementadosno nvel local podem constituir experinciaspiloto, a partir das quais se elaboramposteriormente polticas de maior abrangncia. A implementao de programasde polcia comunitria no escaparia a esta lgica.

    No entanto, qualquer ao que integre a polcia deve ser produto da coordenao entre os diversos mbitos, principalmente o estadual e o ederal e requer acordos entre instituies destes nveis da ederao. Nos casos onde oram realizadas experincias de polcia comunitria, oi por iniciativa dos governos dos estados e maisespecicamente produto da ao das secretarias estaduais de segurana pblica.

    38. Entre elas so assinaladas a Lei Seca, o disque denncia, a criao de secretarias municipais de segurana e algunsinvestimentos sociais.

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    Como analisa Marta Arretche 2000, a descentralizao das polticas pblicasdepende de ao poltica deliberada que supe estratgias de induo especcas,capazes de delegar responsabilidades pela gesto das polticas de um nvel de go

    verno mais abrangente para outro mais especco. A adeso de governos locais transerncia de atribuies depende de clculo dos custos e benecios advindos deassumir a gesto de poltica determinada e dos recursos com que cada administraoconta para desempenhla. Portanto, os atores envolvidos avaliaro os custos e ganhos em termos polticos que derivam da implementao de uma poltica pblica.

    No caso das polticas de segurana, podese armar que os riscos de qualquerao so altos, j que, se por um lado qualquer melhora indicada pela diminuioda criminalidade pode acarretar grandes benecios polticos, por outro lado, um

    equvoco nesta rea altamente visvel, que permanece na mira constante da opiniopblica, pode trazer perdas enormes aos seus responsveis. Portanto, sendo rea altamente sensvel, poucos so os polticos que costumam arriscar grandes mudanas.39A implementao de programas de polcia comunitria no escapa a estas pressesque permeiam disputas dentro dos governos estaduais, os quais acabam sendo identicados como responsveis tanto pelos xitos como pelos racassos destes programas.

    Os projetos de policiamento comunitrio tampouco escapam das pressesoriundas das prprias corporaes policiais. Neste caso, um dos principais proble

    mas a ser enrentado tem a ver com a persistncia de prticas e conceitos arraigados, conorme abordado anteriormente. Muitas destas prticas advm da predominncia nas instituies policiais da doutrina da segurana nacional, cujos preceitosparecem continuar permeando o cotidiano do trabalho da polcia no Brasil MUNIZ, 1999. A cultura das instituies policiais o resultado de polticas herdadasde perodos de arbtrio, o que impe srias diculdades a qualquer mudana quese queira azer tanto na estrutura quanto na losoa das prticas institucionais.

    Devido aos dispositivos constitucionais, o papel undamental pela poltica

    de segurana pblica est nas mos dos governos estaduais. Cabe ao governo ederal a responsabilidade de traar diretrizes e estimular a adeso dos nveis subnacionais a determinadas iniciativas, por meio da transerncia de recursos e do apoioinstitucional. Por m, resta aos municpios a elaborao de iniciativas prprias,desde que coordenadas com as polcias estaduais.

    A partir dos anos 1990, especialmente, percebese maior atuao do governo ederal na rea da segurana pblica. Alm disto, observase que, ao ladoda instrumentalizao de aes de controle e represso, vem ganhando espao

    a implementao de medidas voltadas para preveno do crime e da violncia.Os programas e aes de preveno tm sido implementados a partir de dierentes

    39. Este pressuposto rearmado na lgica que orienta a anlise de Soares (2006).

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    nveis do Estado polticas ederais, estaduais e municipais. A seguir, sero examinadas as principais aes de iniciativa do governo ederal nos ltimos anos.

    4.3 pica d v da vicia d iciam cmii v da

    No mbito do governo ederal, em 1997 oi criada a Secretaria Nacional de Segurana Pblica SENASP no Ministrio da Justia MJ,40 o Programa de Integrao das Inormaes Criminais, em 1995, e o Fundo Nacional de SeguranaPblica FNSP, em 2001, que lhes deu impulso. A criao destes rgos e programas pode ser avaliada como uma das primeiras medidas visando prevenotomada pelo governo ederal e envolvendo estados e municpios.

    Criado por meio da Lei no 10.201/2001 depois alterada pela Leino 10.746/2003 , o FNSP tem como objetivo apoiar projetos na rea desegurana pblica e de preveno violncia, enquadrados nas diretrizes doPrograma de Segurana Pblica para o Brasil do Governo Federal. Com isso,o FNSP desde 2001 destina recursos para projetos e


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