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INVENTÁRIOS URBANOS: A SITUAÇÃO DO OLHAR
COMO POTÊNCIA
Beatriz Basile da Silva Rauscher
Universidade Federal de Uberlândia FAPEMIG
RESUMO: Este trabalho apresenta alguns aspectos dos resultados parciais da
pesquisa em curso intitulada “Situações do olhar: impressões e projeções de
imagens da cidade”. Trata-se de uma investigação que também abriga as
pesquisas de três jovens pesquisadores. Como grupo, temos nos dedicado, nos
últimos dois anos, ao desenvolvimento de uma produção em Poéticas Visuais,
comprometida com a reflexão e com a sistematização de nossas ações. A
investigação de que este artigo trata tem como objeto a imagem da cidade; o
conceito que se trabalha é o de situação do olhar, conceito este gerador da poética
de cada artista com suas singularidades próprias que, neste texto, foram
articuladas em torno da idéia de um inventário urbano.
Palavras-chave: fotografia; cidade; poéticas visuais
ABSTRACT: This paper presents some aspects of the partial results of an
ongoing research project entitled “Situations of a look: impressions and projections
of images of the city”, which encompasses the studies carried out by three other
researchers. As a group, we have dedicated ourselves, for the past two years, to
the development of a work called “Visual Poetics”, which is committed to the
consideration, the pondering and the systematization of our actions. Thus, the
present article focuses on the images of the city under examination; the concept
underlying our work is that of the situation of the look, which generates the poetics
of each artist, with its own singularities, which, in this text, have been articulated
around the idea of a urban inventory.
Keywords: photograph; city; visual poetics
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CIDADE DE AFETOS E DE DESAFETOS
As fotos são, é claro, artefatos. Mas seu apelo reside
em também parecerem, num mundo atulhado de relíquias fotográficas, ter o
status de objetos encontrados – lascas fortuitas do mundo.1
SUSAN SONTAG
A investigação2 de que este artigo trata abriga o trabalho de
quatro jovens artistas e coloca como questão principal a situação do olhar,
ou seja, o fato prático de tomar a cidade em imagens. No período em que
temos nos dedicado à pesquisa, cada artista produziu um conjunto de
trabalhos, revelando, a seu modo, uma aproximação sensível do espaço
urbano, problematizando-o através da arte.
Tomamos emprestado de Georges Didi-Huberman a idéia de
situação do olhar (2002, p.82) entendida como constituinte dos processos
fotográficos, a partir dos quais se busca operar pontos de vistas inabituais
obtidos por tomadas de vista de viés, do alto para baixo, de baixo para o
alto, etc. Trata-se, segundo o pesquisador francês, “não somente do
deslocamento do ponto de vista, mas da negação de um olhar regulado
pelo horizonte” (DIDI-HUBERMAN, 2002, p.75).
As ações que procuramos desenvolver visam produzir
imagens através dos recursos técnicos da fotografia, da numerização, do
tratamento da imagem no computador, de sua materialização em diferentes
suportes e de sua apresentação em relação ao espaço. Trata-se de ações
que se dão na esfera das operações da arte e, ao mesmo tempo, nos
ambientes urbano, social e cultural. Elas terão implicações na percepção
desse mesmo contexto.
O ato fotográfico é ação produtiva nas operações
instauradoras do trabalho. Ele capta, através do corte espaço-temporal
(DUBOIS, 1993, p.161), a imagem indicial de fragmentos escolhidos do
espaço urbano. A numerização caracteriza-se como uma ação radical que
se dá sobre as imagens captadas (ou no próprio ato de tomá-las)
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produzindo um estilhaçamento radical e irreversível que leva a fotografia da
ordem do indicial à ordem numérica, transformando-a em imagem virtual,
portanto, entendida como possibilidade. O modo de apresentação
determinará outras possibilidades de transfiguração dessas fotografias.
Aqui, olhar a cidade é pensá-la, e o que se pretende com a
reincidência de ações e operações sobre as imagens tomadas
fotograficamente é antes trabalhar, no interior das imagens, os sentidos e
os afetos que se percebe na cidade. Armando Silva diz que as “cidades
devem atender aos desejos e às representações dos cidadãos, a seus
afetos e lembranças” (SILVA, 2002, p.15). Desse modo, buscamos, através
do trabalho, intensificar a percepção do contexto urbano como um espaço
sensível, entendendo que o modo de percebê-lo se refletirá sobre a nossa
própria urbanidade.
A cidade que vivemos – Uberlândia, MG - desencadeia e
mobiliza o problema colocado por esta investigação. Ela reflete do mundo
contemporâneo globalizado que dá as costas ao seu ambiente natural e
cultural local. Mas, sabemos, é justamente nossa natureza cultural,
moldada nas suas formas de dominar os componentes do ambiente
natural, que organiza os espaços e seus lugares de vida.
Edificar muitas vezes sobrepõe o desejo de participar da
temporalidade da paisagem. Além disso, a cultura do automóvel influencia
drasticamente a paisagem urbana. Vivemos cada vez mais o paradigma da
cidade mediada, a cidade à distância, a cidade da internet, que tem como
contrapartida a ausência da percepção imediata da realidade, e “engendra
um desequilíbrio perigoso entre o sensível e o inteligível” (VIRILO,1993, p.
23).
Isso se observa na negação dessa jovem cidade de seu
passado recente. O declínio da percepção direta dos fenômenos reflete-se
no caráter irreconciliável da cidade com seu patrimônio cultural e natural.
Elegemos Uberlândia como território de nossa investigação.
Sabemos que a cidade é um imenso, persistente e inesgotável campo de
estudos para todas as áreas do conhecimento humano, pois ela define
nossa urbanidade, nossa civilidade e nossa condição de cidadã. A arte
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contemporânea não ignora estas questões, por isso, figurar, representar,
apresentar e metaforizar a cidade estão e sempre estiveram no foco das
artes plásticas.
ALGUNS PRESSUPOSTOS OPERACIONAIS
Cada um dos pesquisadores vinculados a este trabalho definiu
um recorte espacial específico no tecido da cidade para focar seu interesse
de produção de imagens. Do mesmo modo, questões específicas da
imagem e dos processos e técnicas da arte foram objetos de discussão do
grupo e da atenção de cada pesquisador, tendo ainda como questão
comum dos trabalhos a investigação sobre a imagem impressa e projetada.
Buscamos, no contexto urbano, objetos que revelassem
aspectos significativos sobre a cidade que os produziu, fossem eles triviais,
prosaicos, ordinários, ou não notados, misturados ao caos da cidade. Cada
pesquisador levantou um universo de objetos que problematizassem a
cidade e a condição urbana do homem contemporâneo e, deste modo,
construiu seu inventário.
A idéia de inventário3 em seu sentido comum, sabemos,
refere-se à lista ou relação de bens. Inventário nesta pesquisa faz alusão
antes a um relatório de perdas, mais do que a um legado. Tomada como
um conceito operatório4, a idéia de inventário mobilizará a busca e o
registro das imagens. Em alguns desses trabalhos, desdobrar-se-á a idéia
de documentário. Ruína, vestígio e apagamento são conceitos transversais
desencadeados no próprio ato de inventariar.
Entendendo os aspectos operacionais como meio de criação
do objeto e, simultaneamente, como caminho para se atingir os objetivos
propostos pela pesquisa, foram três os principais aspectos processuais que
se objetivou desenvolver: O primeiro referiu-se às imagens realizadas
através do encontro entre o artista e o contexto urbano. Trata-se da
operação que produziu a foto; o próprio olhar do fotógrafo sobre a cidade:
“vista deslocada, olhares enviesados e a primazia do caminhar na caça das
imagens” ( DIDI-HUBERMAN, 2002, p.75).
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A inscrição do numérico na fotografia, sua decomposição em
números, confere a elas aquilo que Edmond Couchot chamou de controle
morfogenético (2003, p.161), assim a transformação da imagem captada
através de processos computacionais, visa arrancá-las da indiferença a qual
o hábito as lançou.
O terceiro aspecto processual, diz respeito ao modo de
oferecimento dessas imagens ao expectador. Trata-se da impressão e da
projeção como estratégias de envolvimento e apreensão da obra e do modo
de se regularem as relações que se estabelecem entre o observador e o
trabalho.
Entendemos que, quando a imagem é projetada, a fotografia
adere-se à forma das superfícies de projeção. Modifica-se de imediato a
relação espectador/obra, pois a mudança do substrato coloca, entre outras
questões, o problema da duração. “A imagem projetada é vivenciada, é
quase impossível pensar a luz sem pensá-la no tempo (AUMONT, 1993.
p.176). Assim a imagem projetada rege seu modo de oferecimento,
colocando em situação o olhar do próprio espectador, estabelecendo
percursos e determinando a duração de sua apreciação.
Fig.1 – Manuel Rocha Neto (dois projetores de slides, caixa de vidro com dispositivo de
ventilação interna e notas de dinheiro). Ensaio de projeção realizado pelo grupo na Sala de Pesquisas
Visuais do Museu Universitário de Arte / UFU em 2006.
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A adesão da imagem aos espaços arquitetônicos se dá de
formas diferentes, se diferentes forem as matérias da imagem. Enquanto
as imagens impressas são inseparáveis dos seus suportes, as imagens-luz
são livres. Assim, as imagens projetadas caracterizam-se por estarem
totalmente aderidas aos espaços e, ao mesmo tempo, jamais se integram à
superfície na qual são projetadas. Desse modo, pretende-se, nesta
pesquisa, pensar a apresentação das imagens também como projeção
(fig.1).
INVENTÁRIOS
A produção que desencadeia esta pesquisa recebe o título de
Diário das calçadas. Nela, reúno um conjunto de fotografias que se
caracteriza como um diário visual de meus trajetos pela cidade. São
fotografias de situações banais observadas nas calçadas dos bairros
residenciais da cidade de Uberlândia.
Nessas fotografias, a imagem da cidade é construída e
tornada visível através de um sutil deslocamento de um ponto de vista
habitual. É para o chão e para cima que o olhar se dirige. Essas fotografias
trazem a calçada como território desprestigiado da cidade contemporânea
revelando uma paisagem empobrecida. O inventário que se faz é o do
processo de apagamento de uma paisagem vegetal que não encontra mais
lugar no espaço urbano.
A taxonomia das ações de dissipação das velhas sibipirunas
das calçadas de Uberlândia só é possível pelo registro dos vestígios
encontrados: restos enraizados no chão; podas radicais (prenúncio da
derrubada); escleroses provocadas através de talhos nos caules;
fragmentos de troncos deixados nas portas das casas e, por fim, as placas
escritas a mão, com os dizeres: “corta-se árvores”.
Essas placas, curiosamente, encontram-se no alto dos postes,
colocam-se na calçada de onde as árvores foram arrancadas e dirigem para
o alto - e para o vazio - o nosso olhar. As fotografias – apresentadas em
espaços expositivos - recolocam esta situação espacial (fig.2).
É sobre outro apagamento que trata o trabalho de Eduardo
Prado. Ele procura revelar como seu olhar se relaciona com a cidade
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contemporânea, avaliando, questionando e refletindo sobre a cidade que o
cerca. Para Prado, esse processo só foi possível por intermediar arte,
cidade e tecnologia, esta última utilizada com o intuito de criar um tipo de
imagem que se coloca em algum lugar “entre” uma fotografia recente e
outra antiga.
Fig.2 – Beatriz Rauscher (25 fotografias de 80 x 35 cm cada, impressas em papel fotográfico, justapostas
e coladas na parede acima de 160 cm).
Outro aspecto significativo dessas imagens refere-se ao fato
de elas se apresentarem como uma espécie de projeto urbanístico: seu
olhar multiplica os edifícios antigos (ainda preservados) e compõe com eles
praças e ruas de uma cidade inventada. Vemos, nessas imagens, o desejo
de fazer o presente reencontrar o passado. O inventário aqui opera como
uma coleção de vestígios. “O vestígio, escreve Walter Benjamin, é o
aparecimento de uma proximidade, por mais distante que esteja aquilo que
o deixou” (1989, p.226). Suas fotos são registros forjados a partir dos
vestígios de uma cidade que não existe mais ( fig.3).
Assim, Prado redesenha a cidade. Sua tentativa de
recuperação da história através de uma “cidade inventada” é menos um
conservadorismo ou nostalgia que uma utopia5. O território destas ações é
o Bairro Fundinho, núcleo original de Uberlândia, um bairro que conjuga de
modo paradoxal o ápice da especulação imobiliária na construção de
modernos edifícios de apartamentos e a tardia preservação do que ainda
resta da memória arquitetônica da cidade. Alegóricas no sentido dado por
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Walter Benjamim, as imagens resultantes da re-combinação dos edifícios
inventariados por Eduardo Prado podem ser vistas como “uma operação
crítica de apropriação deformadora” (NASCIMENTO, 2005, p. 56) em sua
ressignificação da cidade.
Fig. 3 – Eduardo Prado , fotografia com manipulação digital impressa em papel fotográfico , conjunto de
15 imagens diferentes de 30 x 10 cm cada, 2007.
Novo em ruínas é o título do conjunto de trabalhos de
Francesca Gargiulo. Ela inventaria os edifícios abandonados em obras. O
termo ruína - que se refere aos restos de construções desmoronadas -
também significa aniquilamento, destruição e decadência. A idéia de ruína
carrega uma sensação próxima da desaparição das coisas; o paradoxo
presente nessas imagens é que esses prédios jamais chegaram a existir, a
cumprir seu desígnio. Que tipo de ferida estes edifícios malogrados
representam no imaginário progressista da cidade?
Através da fotografia, Francesca toma o contexto urbano
como objeto, visando, deste modo, a mudança da percepção desse mesmo
contexto. Seu olhar é desencantado. As ruínas inventariadas por Francesca
não oferecem qualquer possibilidade de recriação do tempo passado; não
pertencem a tempo algum ( fig.4).
O olhar de Gargiulo se dirige para um objeto que pode ser
entendido como uma colagem de tempos. Representa o investimento (de
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força, de trabalho, de dinheiro) que se perdeu no passado; alude ao desejo,
representa, ele mesmo, uma busca e mostra-se contemporaneamente em
seu processo de degradação e morte. Aqui, a fotografia é – como para
Susan Sontag - o inventário da mortalidade (2004, p.85), e as ações
operadas pelo tratamento digital promovem a ênfase no caráter de
decrepitude desses prédios.
Fig.4 – Francesca Gargiulo, bedroom e playground; fotografias digitais impressas sobre vinil adesivo com
laminação fosca, 80 x 210 cm, 2006.
Outra questão que está em causa em nossas reflexões sobre
os “edifícios abandonados” em obras e sua caracterização como “ruína” é a
proposta de pensá-los como um espaço excepcional, de “uma
complexidade incomum”, aqui no sentido de ruína posto por Robert Morris:
“um tipo de estrutura que realinha a relação entre objetos e espaços, mas
que sempre é considerada por aquilo que foi em vez de por aquilo que é
(...)” (MORRIS apud FEREIRA e COTRIM, 2006, p.410).
Morris sugere que todas as grandes ruínas foram profanadas
pela “fotografia (...) reduzidas a imagens banais”. Revela, em sua análise, o
potencial que representa o fato de tais lugares ocuparem “uma zona que
não constitui estritamente nem uma coleção de objetos, nem um espaço
arquitetônico” (op. cit. p.411) considerando, assim, o foco no espaço
interno e externo de modo articulado. Em nosso projeto, o modo de
apresentação das imagens inventariadas é uma questão capital. Assim, as
mais recentes ações de Francesca trocam a câmera fotográfica pela de
vídeo. As imagens são registros de seu caminhar por esses grandes e
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vertiginosos espaços vazios. Esqueletos arquitetônicos - repletos de
escadas que nos levam sempre a lugares idênticos - estas imagens
mostram o que esses edifícios são em seu próprio esvaziamento.
Fig. 5 - Manuel Rocha Neto, fotografia e manipulação digital, projeção aproximada de 100 x 220 cm, 2007.
Manuel Rocha volta-se para os excluídos. Seu olhar não é
complacente ou piedoso. Ao inventariar lugares de moradias dos sem teto,
descobre uma cidade paralela que se instala de noite e se desmonta ao
amanhecer. Seu trabalho se desenrola em um momento em que a cidade
discute a criminalização da mendicância. Na sua busca por imagens,
Manuel se flagra como documentarista de uma situação que, de corriqueira
e cotidiana, é repentinamente lançada nas sombras.
Na sua flanerie contemporânea, a motocicleta é grande aliada.
O morador de rua se instala nos lugares mais despovoados e distantes do
centro; está acuado e pode tomar o fotógrafo por um agressor. Sua caçada
fotográfica, no amanhecer da cidade, muitas vezes exige uma escapada
rápida. A cidade marginal está alerta e o fotógrafo, como observa Susan
Sontag6 é uma versão “armada” do célebre caminhante de Baudelaire.
O comentário visual elaborado por Rocha se constrói através
da fusão, das cédulas de dinheiro às imagens de pessoas que pedem
dinheiro nos sinais e dormem nas ruas (fig.5). Ampliadas e, ao mesmo
tempo, transparentes, as notas não conseguem esconder o que se coloca
por traz delas. Alegoricamente, essas imagens são projetadas em grandes
dimensões em espaços expositivos: estamos diante daquilo que a cidade se
recusa a ver.
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O aspecto fundamental desta pesquisa é o foco para as
operações artísticas com as quais se pretende concretizar o conjunto de
imagens que tenham a potência de se inscrever, de modo significativo, no
pensamento visual que abarca as relações entre arte e cidade, se não de
todas, ao menos, desta.
Entendemos que, a partir das reflexões postas neste artigo,
podemos produzir um pensamento significativo que permita à produção do
grupo operar deslocamentos neste campo de pesquisa. Uma das
particularidades da pesquisa em arte é que o artista coloca suas questões
através da obra. O que o projeto Invetários urbanos quer colocar é a
indagação sobre a cidade que temos e a cidade que queremos.
Problematiza-se, deste modo, a herança recebida das gerações anteriores
e se apresentam questões sobre o que se legará às futuras.
Acreditamos que nossa grande cidade se mostra - revelada
por esses olhares - empobrecida. O que ela poderá legar?
1 Objetos de melancolia. SONTAG, S. Sobre fotografia. São Paulo: Companhia da Letras, 2004, p.84 2 “Outras Situações do Olhar: projeções e impressões de imagens da cidade” (2006-2008) é uma pesquisa na linha das poéticas visuais que abriga os planos de trabalho de iniciação científica de Francesca Gargiulo (PIAC-UFU) e Eduardo Prado (PIBIC-CNPq) e a pesquisa em andamento de Manuel Rocha Neto, recém-graduado em Artes Visuais pela UFU. 3 Em seu sentido comum, inventário é a relação dos bens deixados por alguém que morreu; o documento ou papel em que se acham relacionados tais bens. É também lista discriminada, registro, relação, rol de mercadorias, bens, etc. Traz o sentido de descrição minuciosa. Inventário pode ser o levantamento individuado e completo dos bens e valores ativos e passivos duma sociedade mercantil ou de qualquer entidade econômica, e ainda, um processo formado em juízo para legalizar a transferência do patrimônio do morto aos seus herdeiros e sucessores na proporção exata de seus direitos. 4 Conforme Sandra Rey, na pesquisa em arte, as operações não são apenas procedimentos técnicos; são operações do espírito, entendido aqui, num sentido amplo: viabilização de idéias, concretizações do pensamento. Cada procedimento instaurador da obra implica a operacionalização de um conceito. Por isso, os nomeamos “Conceitos operatórios”. (REY, S. , 2002, p.129-130). 5 Sobre os modos de recuperação da história, Plaza apóia-se em Benjamim para dizer “ ou o presente recupera o passado como fetiche, como novidade, como conservadorismo, como nostalgia, ou ele o recupera de forma crítica, tomando aqueles elementos da utopia e sensibilidade que estão inscritos no passado e que podem ser liberados como estilhaços ou fragmentos para fazer face a um projeto transformativo do presente, a iluminar o presente” (PLAZA, J., 1987, p.7). 6 “O flâneur não se sente atraído pelas realidades oficiais da cidade, mas sim por seus recantos escuros e sórdidos, suas populações abandonadas – uma realidade marginal por trás da fachada da vida burguesa que o fotógrafo “captura”, como um detetive captura um criminoso” (SONTAG, 2006, p.70)