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AdéritoSedas

Nunes

Introdução ao estudodas ideologias

Vivemos num mundo ideologicamente di-vidido. Importa, por isso, entender o que asideologias são, sob que formas se apresen-tam, que funções exercem na sociedade,como se desenvolve o seu conflito, como seexplica a sua irrupção no nosso tempo, querelações existem entre o surto ideológico ea evolução social.

1. Conceituaçoes correntes de ideologia

O mundo social em que hoje vivemos é um mundo ideolo-gicamente dividido, quer ao nível de cada sociedade política, querà escala internacional.

Esta divisão do mundo social em ideologias opostas é umfacto relativamente novo na História da Humanidade. Decerto,os indivíduos, os grupos, os povos, os Estados lutaram sempreuns com os outros, entrando frequentemente em competição, tensãoe conflito. Lutaram pela riqueza, pelo poderio, pelo domínio dascoisas e dos homens. Lutaram também, muitas vezes, em nomedas suas crenças. Mas quase nunca lutaram, no passado, por umadeterminada concepção da sociedade, do que ela é e do que deveser. Ora, os processos de competição, de tensão e de conflito ideo-lógicos desenrolam-se, precisamente, entre grupos portadores dedistintas concepções acerca da sociedade e do seu futuro.

Que são, com efeito, as ideologias?Esta palavra tem sido, ao longo do tempo, e é ainda hoje

usada em muitos sentidos diferentes. Em obra recente, de autorportuguês, inventariam-se não menos de catorze acepções distintasque lhe têm sido atribuídas1, sem no entanto o inventário ficar

* Nota do Autor — 0 presente artigo constitui o texto ampliado deuma conferência «pronunciada» em 6 de Março de 1961, perante o comando,os professores e os «alunos da Academia Militar, em Lisboa.

1 Henrique Barrilaro RUAS, Ideologia, Ensaio de Análise Histórica eCritica, Lisboa, Junta da Acção Social, s. d., pp. 19-58.

completo. Destaquemos algumas apenas, aquelas a que mais fre-quentemente se recorre nos escritos sociais e políticos.

Alguns sociólogos usam o termo ideologia para designar «oconjunto de ideias, crenças e modos de pensar característicos deum grupo, seja nação, classe, casta, profissão ou ocupação, seitareligiosa, partido político, etc.»2. A ideologia será, então, o con-junto dos conteúdos espirituais de uma determinada cultura ousubcultura, entendendo aqui por cultura todo o sistema de ele-mentos, materiais e não-materiais, produzidos (ou recebidos),acumulados, propagados e transmitidos pelos homens, ao longodo tempo, em certa sociedade. |É assim que, por exemplo,SOROKIN estabelece a já hoje clássica distinção entre cultura ideo-lógica, cultura de comportamentos e cultura material, três estratosda cultura global de qualquer sociedade, dos quais o primeirocompreende «a totalidade dos significados, valores e normas quepossuem os indivíduos e grupos interactuantes» 3.

Quando Emílio WILLEMS define ideologia como «sistema deideias próprio de um certo grupo e condicionado, em última análise,pelos centros de interesse desse grupo», acrescentando que «afunção da ideologia reside na conquista ou conservação de umaposição social determinada do grupo ou dos iSeus membros»4, éjá outra acepção básica que está em ôausa. A ideologia é agoraconcebida como um sistema de ideias, adoptado e difundido porum grupo particular dentro da sociedade, que serve a esse grupocomo instrumento na luta social, por favorecer a manutenção, oreforço ou, pelo contrário, a alteração da sua posição e dos seusinteresses, perante os outros grupos. «Na nossa civilização, notamJ. MEYNAUD e A. LANCELOT, OS homens não gostam de exprimira& suas reivindicações materiais enquanto tais: esforçam-se porreligá-las a uma concepção moral que lhes possa valer maiorrespeito. A ideia torna-se, assim, factor de justificação ou deprotecção, relegando para segundo plano os móbiles reais da acçãoempreendida» 5. Neste sentido, seira ideologia qualquer sistema deideias que, nas lutas travadas na sociedade, sirva de facto comojustificação ideal dos interesses, das posições e das acções em-preendidas por algum grupo, mesmo quando aqueles que tal sis-tema favorece não consciencializam claramente, na sua maioriaou totalidade, a função protectora dos seus interesses por elepreenchida. «As doutrinas políticas, religiosas, económicas e filo-

2 Henry Pratt FAIRCHILD, ed., Diccionâria de Sociologia, México, F.CE.,2.a ed., 196(0.

3 Pitirim A. SOROKIN, Socieâad, Cultura y Personalidad, trad., Madrid,Aguilar, 1960, p. 481.

4 Emílio WILLEMS, Dictionnaire de Sociologie, adaipft. franc. de ArmandCuvillier, Paris, M. Rivière, 1961.

s Jeam MEYNAUD et Jean LANCELOT, Les Attitudes Politiques, Paris,P. U. F., 1962, p. 100.

sóficas — observa ainda E. WlLLEMS — desempenham geralmentefunções ideológicas. Mas só em casos raros essas funções atingemo limiar da consciência idos que professam a ideologia em ques-tão» 6. O indivíduo adopta sinceramente, convictamente, a ideolo-gia, como se fora verdade universal, válida por igual para todos:não é, portanto, normalmente, um mistificador, que consciente-mente ajusta as suas concepções aos seus interesses. Mas, incons-cientemente, por acção de subterrâneos factores psicológicos quelhe criam a necessidade de se sentir moralmente «justificado», eleadopta modos de pensar, sistemas de ideias, não contraditórioscom os seus interesses e a sua situação. Assim, convicções queàqueles que as possuem se afiguram desinteressadas (e cuja ori-gem pode de facto ter sido, mesmo no domínio do inconsciente,desinteressada), funcionam, à escala social, como forças espiri-tuais protectoras de interesses antagónicos. Nesta acepção, aideologia é conceituada em termos operacionais, válidos para ateoria e a análise da competição e do conflito entre grupos so-ciais. É evidente que não está nela implicado nenhum juízo acercada verdade intrínseca dos sistemas de ideias que, do ponto de vistada luta social, funcionam como ideologias. Por exemplo: tantouma teoria científica correcta como uma teoria científica erradapode vir a operar como ideologia.

Não é assim na concepção marxista original7. Na «IdeologiaAlemã», Karl MARX escreveu o seguinte: «As ideias da classedominante são, em todos os tempos, as ideias dominantes, querdizer: a classe que é a potência material dominante da sociedadeé, ao mesmo tempo, a potência espiritual dominante. A classe quedispõe dos meios da produção material dispõe, igualmente e porisso mesmo, dos meios da produção intelectual, de tal modo que,assim, lhe estão também submetidas, no conjunto, as ideias daque-les a quem faltam os meios da produção intelectual. As ideiasdominantes não são mais do que a expressão ideal das relaçõesmateriais dominantes, são as relações materiais dominantes to-madas como ideias: são, portanto, a expressão das relações queprecisamente fazem de uma classe a classe dominante, e são porconseguinte as ideias do seu domínio» 8. Uma classe que pretendealcançar ou já alcançou uma posição dominadora tem necessidade,para firmar e manter a sua preponderância sobre as outras clas-ses, pensava MARX, de se figurar como portadora de ideias e valo-res verdadeiramente universais: desse modo, ela poderá «provar»que está ao serviço de toda a sociedade, que o seu poderio está

s Op. cit.7 De facto, MARX e o marxismo têm ajtribuído significados vários ao

termo ideologia. Veja-se: Osfcar LANGE, Economia Politique, t. ler, ProblèmesGênêraux, Paris1-Varsóvia, P. UF-P , W. N-, 196i2, nota (63)), pp. 373-375.

8 Karl MARÍX-Friedrich ENGELS, Uldeologia Teãesca, trad. de FaustoCodino, Roma, Editori Riuniti, 1958, p. 43.

fundado em sólidas razões ideais. «Cada classe, que toma o lugarde outra que anteriormente dominou, é constrangida, quandomais não seja para atingir os seus objectivos, a representar o seuinteresse como interesse comum de todos os membros da socie-dade, ou seja, expr&nindo^nos em forma ideaJística, a dar àssuas ideias a forma da universalidade, a representá-las como asúnicas racionais e universalmente válidas»9. Ora, justamente porse encontrar numa posição de domínio, a classe dominante criana sociedade um determinado ambiente intelectual, produz e pro-paga ideias e ideais que se difundem amplamente, penetrandoem profundidade os meios intelectuais. «Os indivíduos que cons-tituem a classe dominante — escreveu ainda MARX — tambémdominam como pensadores, como produtores de ideias que regu-lam a produção e a distribuição das ideias do seu tempo; é, pois,evidente que as suas ideias são as ideias dominantes da época» 9.Mas estas «ideias dominantes», estas ideias geradas pelos pen-sadores da «classe dominante», são as ideologias. «A ideologia —escreveu ENÍGELS — é um processo que o pretenso pensador realiza,certamente com consciência, mas com uma consciência falseada.As forças motrizes que o movem permanecem para ele desconhe-cidas; senão, já não se trataria de um processo ideológico. Eleimagina, pois, forças motrizes falsas ou aparentes. Por se tratarde um processo intelectual, descobre-lhe o conteúdo e a formade pensamento puro, quer se trate do seu próprio pensamento,quer do dos seus predecessores; trabalha somente com a documen-tação intelectuajl, a qual, sem a olhar de perto e sem a situarnum processo mais longínquo e independente do pensamento,julga emanada do pensamento»10. Portanto, o intelectual ilude-se,sofre uma involuntária «mistificação» na ideologia: julga que oseu pensamento se move num «mundo de ideias vivendo de umavida independente e unicamente submetido às suas próprias leis»,quando na verdade as Meias têm a sua origem numa realidade«independente do pensamento». Que realidade? As próprias condi-ções da vida social — situações materiais e relações entre as clas-ses. «O facto de as condições de existência material dos homens,em cujo cérebro se produz o processo ideológico, determinarem,em última análfee, o curso desse processo, permanece inteiramenteignorado por eles»al. Por outras palavras: o intelectual pensa (empolítica, em economia, em religião, em filosofia, etc.) de uma de-terminada maneira, tem portanto determinadas ideias, porque aclasse social a que pertence, ou que é o! seu grupo de referência12,

9 Karl MARX-Friedrich ENGELS, ibidem, p. 44.!o Ibidem, p. 43.11 Citações de Engels extraídas de A. LALANDE, Vocabulaire Technique

et Critique de Ia Philosophie, Paris, P. U, F., 2.a ed., p« 459.12 A expressão grupo de referência «designa qualquer grupo ao qual o

indivíduo se liga psicologicamente, quer porque dele já faz parte como mem-

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desfruta na sociedade de determinadas condições materiais, quea situam numa determinada relação sócio-económica com as outrasclasses. Mas o intelectual não se apercebe disso, dessa dependênciadas ideias e do pensamento, do seu próprio pensamento, em rela-ção a uma certa infra-estrutura material e social. No entanto, a«mfetif icação» ainda vai maás longe. Como as ideologias são ideiasbrotadas da «classe dominante», e como, segundo a concepçãomarxista, há um radicai! e inexorável antagonismo de interessesentre opressores (a classe dominante) e oprimidos em todas associedades, as ideologias têm de realizar, no plano ideal, a con-ciliação do que, no plano real, é inconciliável: têm de encobrir,de disfarçar, de escamotear ísob princípios éticos, dogmas religio-sos, concepções filosóficas, ideais humanísticos, teorias aparente-mente científicas) a realidade brutal da exploração do homem pelohomem, da opressão de umas classes por outras. E têm de o fazer,em primeiro lugar por uma necessidade de auto-justificação dosintelectuais e dos membros das classes dominantes, ou seja: poruma necessidade de conciliar a sua consciência com a sua situação:como diz GORZ, «e!)es procuram na ideologia boas razões parafazerem o que fazem, tentam expulsar magicamente, peio discurso,a imagem inaceitável deles próprios que o real lhes reflecte» 13.Têm de o fazer, em segundo lugar, por uma necessidade de velara consciência dos oprimidos, die tornar a opressão mais suportávelimpedindo-a de ser consciencializada, como opressão, por aquelesmesmos que a sofrem. Ê o que Georg LUKACS exprime, no casoparticular das sociedades capitalistas, nos seguintes termos: «adominação da burguesia só pode ser a dominação duma minoria.Como esta dominação é, não só exercida por uma minoria, masno interesse duma minoria, uma condição inelutável da manuten-ção do regime burguês é que as outras cliastses se ifludam, perma-necendo numa consciência de classe confusa. (Pense-se na dou-trina do Estado como situado acima das oposições de classes,na justiça imparcial, etc). No entanto, também para a bur-guesia é uma necessidade vital mascarar a essência da sociedadeburguesa. Porque, quanto mais clara se torna a visão, mais sedesvendam as contradições internas insolúveis desta organizaçãosocial, o que coloca os seus partidários ante a alternativa se-guinte: ou fechar-se conscientemente a essa compreensão cres-

bro, quer porque deseja ser nele incluído no plano da projecção. O grupo dereferencia polariza a psicologia e o interesse prático do indivíduo; podeser um grupo a que o indivíduo realmente pertence, como a sua família ouo seu grupo profissional ou religioso; mas pode também ser um grupo doqual aspira fazer parfte, por exemplo certo grupo social, certa associaçãoprestigiosa aos olhos do indivíduo». H. CARRIER, in Social Compass, VII, 2,Maio de 1960, p. 147.

13 André GORZ, La Morale de VHistoire, Paris, Edit. du Seuil, 1959,p. 109.

cente, ou reprimir em si todos os instintos morais para poderaprovar, também moralmente, a ordem social que aprovam emvirtude dos seus interesses» 14. F. ZWEIG faz notar que KARL MARXefectuou como que uma psicanálise social do pensamento ético,religioso e sociail. Com FREUD, O subsconsciente individual im-pôs-se como fonte donde brotam muitos dos nossos actos, pala-vras, sentimentos e ideias. MARX teve a intuição de uma espéciede subconsciente colectivo, donde surgiriam, sem se lhes conhecera verdadeira origem, as ideias socialmente dominantes, e quedeturparia, «mistificando-a», a consciência intelectual do pensa-dor. Seria dessa consciência falseada por um subconsciente colec-tivo de classe dominante que nasceriam as ideologias15. Em suma:nesta concepção, a ideologia é um sistema de ideias divorciado darealidade e construído atetractamente sobre os seus próprios da-dos; gerado muna dlasse dominante e por ela adoptado e difun-dido; ramificado ipor vários sectores do pensamento antropoljógico(religião, filosofia, moral, política, economia, sociologia, etc.);produzido por uma consciência intelectual mistificada pelo incons-ciente colectivo da classe dominante; de facto determinado pelaposição e as relações desta classe na sociedade; e cuja funçãoconsiste em dissolver, na própria classe dominante e nas classesoprimidas, a consciência dos antagonismos sociológicos radicaise da exploração do homem pelo homem, justificando a ordem so-cial vigente e validando maraUmente os interesses da classe quedomina a sociedade16.

No vocabulário político vulgar, influenciado pela terminolo-gia marxista, a ideologia designa, frequentemente, de uma formaimprecisa, «as ideias enquanto mekxs na acção e na polémicapolítica», para usar a expressão de Henri LEFEBVRE17. Pois bem:tem sido, precisamente, por exigência de aprofundamento e derigor na análise das atitudes, dos comportamentos, dos grupos edas lutas relacionados com a existência, a conquista e o exercíciodo poder político, que recentemente se tem progredido, em So-ciologia Política, no sentido de uma nova conceituação de ideolo-

14 Georg LUKACS, Histovre et Conscience de Classe, trad. de K. Axeloset J. Bois, Paris, Edit, de Minuit, 1960, pp. 90-91.

15 Cfrw F. ZWEIG, El Pensamiento Económico y su Perspectiva Histó-rica, México, F. C. E., 1953.

1(J Para simplificar a exposição, usámos siempne a expressão «classedominante» no singular. De faoto, porém, o próprio Marx referiu casos emque o domínio da sociedade estava reparlfcido entre duas ou mais1 classes.Cite-se apenas o seguinte trecho da «Ideologia Alemã»:, «num período e numpaíá no qual o poder* monárquico, a aristocracia e a burguesia lutam pelopoder, sendo este, portanto, dividido, aparece como ideia dominante a dou-trina da divisão dos poderes, douitrina que é então enunciada como lei eterna».Loa cit, p. 48.

17 Henri LEFEBVRE, Problèmes Actueis du Marxisme, Paris, P. U. F.,1958, p. 36.

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gia, que aliás aproveita muitos elementos das conceituações an-teriores. Nesta conceituação, a ideologia é tomada tal como surgeao sociólogo da vida política, como um dos três tipos de elementosfundamentais (ideologias, oposições de interesses e choques decaracteres opostos) que participam nas situações determinantesdas atitudes e dos comportamentos políticos. Sendo dado que asideias intervêm na vida política, sob que forma e em que condi-ções aí aparecem? como interactuam com os outros elementos dassituações políticas? como influenciam as atitudes, os comporta-mentos, os grupos e as lutas políticas? como são por efes influen-ciados? Eis o que interessa ao sociólogo político investigar. Sociologia do Conhecimento caberá a análise das correlaçõesfuncionais entre as ideologias, por um liado, e os quadros sócifo--económicos, por outro, campo aberto por K. MARX em que «Ideo-logia e Utopia» de Karl MANHEIM, publicado em 1936, ocupa hojeo lugar de estudo clássico18. É, porém, situando-no® na perspectivada Sociologia Política que tentaremos, seguidamente, dizer comonos parece deve ser tipificado o conceito de ideologia.

2. Elaboração de um «tipo ideal» de ideologia

As ideias intervêm na vida política integradas em sistemasde coerência variável, compostos por demonstrações racionais,interpretações de factos, considerações éticas, afirmações de fée representações míticas, em proporções variáveis também. Há,de facto, ideologias, como o comunismQ, em que o carácter sis-temático, racional, é muito acentuado; e há ideologias, como cer-tos nacionalismos, onde a coerência lógica é fraca e os elementosirracionais abundantes.

A amplitude desses sistemas oscila entre limites muito amplos.Certas ideologias cobrem uma gama muito extensa de sectoresdo pensamento e da acção: é o caso das ideologias marxistas, quese apresentam como verdadeiras «concepções do mundo» norma-tivas. Outras, pelo contrário, concentram-se em determinado sec-tor: é o caso, por exemplo, do liberalismo manchesteriano, basica-mente interessado em problemas de política económica e quasesó invadindo outros campos por necessidades de justificação oude estratégia.

Todos, porém, respeitam à vida dos homens em sociedade.Todos, por isso, contêm, ao menos sob forma rudimentar, umafilosofia fundamental, um humanismo, uma visão da sociedadereal e da sociedade ideal, uma interpretação da História, uma

18 Além de Karl MANHEIM, Idéohgie et Utopie, Paris, M. Rivière, 1956,vejam-se sobretudo, Werner STARK, The Sociology of Knowledge, Londres,Routledge and Kegan Paul, 1958 e Dotnald MAORAE, Ideology and Soâety,Londres, 1961.

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imagem do futuro implicada nessa interpretação, um projecto deorganização social19. Mas, em cada ideologia, esses vários tiposde elementos formam estruturas globais diferentemente desen-volvidas e articuladas. Enquanto, por exemplo, nas ideologias deinspiração cristã, os elementos humanísticos aparecem ampla-mente explicitados e ocupam lugar central na organização dosistema, pelo contrário nos fascismos o maior desenvolvimentoe a posição mais relevante cabem aos elementos socio-políticos.

Todos, por outro lado, aparecem propagados em grupos oucírculos particulares da sociedade, que são os autênticos porta-dores das ideologias. Não são, portanto, os sistemas doutrinais,elaborados por pensadores, em que acaso se originaram. São aresultante socializada da propagação das ideias de um homem oude um pequeno núcleo de homens (intelectuais, líderes políticos,etc.) em círculos mais vastos. Ora, esta resultante não é meraderivação lógica ou simplificação do pensamento original, maso produto da interacção dos elementos propagados desse pensa-mento com ideias, atitudes, comportamentos, situações da colec-tividade em que a propagação se operou. E também não se traduzem uma só versão da ideologia, uniformemente difundida e aceitenum dado círculo social, mas antes num conjwnto de versões hete-rogéneas, disseminadas por todo esse círculo e compatibilizáveisno plano das atitudes e dos comportamentos políticos fundamen-tais. Sobre este ponto, faz notar Serge HURTIG que «a coerênciaque um indivíduo pode dar a uma doutrina, uma colectividadenão pode conservar-lha. E quando se examinam, não já textosredigidos por um indivíduo, mas textos emanados de grupos, porexemplo programas de partidos, manifestos, proclamações, devemutilizar-se critérios relativamente diferentes»^.

Cada sistema é, pois, o produto de todo um processo socialde inovação, de propagação e de interacção (inclusive com outrossistemas), ao longo do qual na verdade se forma e diferencia,e não o resultado de um único acto original de criação intelectual.E é porque resulta de tal processo que o sistema adquire tam-bém uma «espessura social», segundo a expressão de JeanMEYNAUD 21. «Tomemos o exemplo do Liberalismo na França con-temporânea— observa Jean TOUCHARD—. O historiador dasideias não se interessará somente pela doutrina de Bertrand deJouvenel ou pela de Jacques Rueff. Parecer-lhe-á necessárioestudar a acção política de Antoine Pinay, a espécie de «retrato-

19 Vd. Kenneth BOULDING, Conflict and Defense, New York, Harper,1962, pp. 298-304.

20 Seirge HURTIG, Science Politique et Sciences SocMes, 2èl*ie Partie,Paris, Institut <TÉtudes Politiques, polycopié, p. 362.

121 Jean MEYNAUD, Desiin des Idéalogies, Lausana, Études de SciencePolitique, 1961, p. 9.

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-robot» que Jules Romain apresenta no seu 'Eocamen de Consciencedes Français*, o conteúdo e o público de 'UAurore*, onde foi pu-blicado esse 'Examen', o universo político que se exprime em€La Volonté du Commerce et de VIndustrie? e nas publicações daConfederação Geral das Pequenas e Médias Empresas, etc. Umaideia política tem uma espessura, um peso social. Pode ser com-parada a uma pirâmide, com vários andares: o da doutrina, o doque os marxistas chamam a «praxis», o da vulgarização, o dos sím-bolos e representações colectivas» 22. A espessura—ou estrutura—social do sistema consiste, pois, em ele estar contido e ser repre-sentado, simulitâneamente, por obras de intelectuais, pela acção depolíticos, por órgãos de imprensa, por movimentos colectivos, porgrupos organizados, por um círculo de aderentes e simpatizantes.E consiste também numa determinada forma de estratificação docírculo social portador do sistema: «no cume da pirâmide — notaSerge HURTIG, retomando a imagem proposta por TOUCHARD —encontrar-se-iam os doutrinários, os que fabricam as ideologiasou as interpretam e que, em todo caso, têm delas uma concepçãoaprofundada e coerente. Na base, encontrar-se-iam os aderentes,os simpatizantes, aqueles que sabem o que é a ideologia e quedeclaram partilhá-la, mas que seriam sem dúvida incapazes dea expor em termos abstractos. Entre os dois extremos, deparar--se-iam todos os degraus da pirâmide, quer em termos de grupossociais, quer em qualidades da ideologia» 23. A interacção entreestes diversos estratos é, de resto, um dos aspectos fundamentaisdo processo social produtor do sistema: interacção entre as obrasde pensamento e a acção política, interacção entre a acção polí-tica e os movimentos e grupos da base, interacção entre os órgãosde imprensa e os seus leitores, etc.l24.

Desde a sua origem, mas muito mais depois de propagados,os sistemas através dos quais as ideias intervêm na vida políticanão têm um conteúdo puramente intelectual. Elementos emocio-nais (interesses, paixões, ressentimentos, fidelidades, etc.) ade-rem ao sistema, introduzem-se profundamente nele, de tal modoque o sistema surge carregado, como observa Raymond ARON, deum «potencial emocional» 25. Esse potencial interfere na irradia-ção social do sistema (tanto nas suas formas como nas suaspossibilidades), na sua mesma sobrevivência (as adesões, a coesãodo grupo, a própria unidade intelectual do sistema são por eleinfluenciadas) e nas reacções políticas (atitudes e comporta-

22 Jean TOUCHARD, Histoire des Idées Politiquee, Paris , P. U. F. , 1S59,tomo I, p. VI .

23 Serge H U R T I G , op. cit, p. 3492* U m a análise muito sumária desta interacção em:, J. M E Y N A U D et

A. LANCELOT, op. c i t , pp. 105-108.25 Raymond A R O N , in Rea Publica, n,° 3, 1960, pp. 276-277.

ts

mentos individuais ou colectivos) do círculo social em que o sis-tema está implantado.

Finalmente, as ideias e os elementos emocionais conjugam-se,normalmente, numa «vontade de poder», a não ser no caso excep-cional, que postergamos, de certas «ideologias passivas» a queJacques ELLUL se refere em obra recente26. Essa vontade de po-der desdobra-se numa «vontade de proselitismo», de recrutar ade-rentes, de alargar a área de incidência social do sistema, e numa«vontade de acção», numa incitação e impuiso a agir num deter-minado sentido, de acordo com um juízo de valor emitido sobrea sociedade tal como é e um projecto de futuro proposto pelopróprio sistema. Portanto, vontade de irradiação e vontade deconformação da realidade humana e social segundo um determi-nado projecto. E a ideologia aparece, então, como um sistema queexprime, explica e justifica a «vontade de poder» dirigida justa-mente nesse sentido, segvmdo esse projecto.

Talvez se pudesse traduzir o essencial do que fica expostodizendo que a ideologia é um projecto colectivo de futuro social,antecipado num sistema de pensamento e numa acção e propagadonum círculo social mais ou menos amplo, a partir de um núcleode líderes e intelectuais. Mas não queremos aumentar a lista dasdefinições de ideologia. Apenas quisemos construir um «tipoideal», segundo o método de Max WEBER. E para isso nos basta aenumeração de elementos característicos, acima efectuada.

3. «Tipos históricos» e interacção de ideologias

a) O «tipo ideal» de ideologia anteriormente descrito encontra--se realizado, no tempo e no espaço, em numerosas ideologias con-cretas. Alguns autores, tendo em mente as ideologias que actual-mente se defrontam no Mundo, procuraram reduzi-las a um pe-queno número de «tipos históricos» fundamentais, de que aquelasseriam variantes e combinações.

Assim, Jeanne HERSCH apresenta a seguinte «lista de ideo-logias típicas»27:

— ideologia fascista: a que reclama a autoridade absolutapara um chefe, não sujeito a controlo, do qual se espera que pro-porcione ao «seu» povo, através da grandeza nacional, prestígioe felicidade;

— ideologia comunista: a que reclama a autoridade absolutapara um chefe ou entidade colectiva, não sujeita também a con-trolo, do qual se espera que propicie aos trabalhadores do mundointeiro justiça e bem-estar;

*e Jacqmes ELLUL, Propagandes, Paris, A. Coli-n, 1962, p. 215.27 Jeanne HERSCH, Idéologies et Réalités, Paris, Plon, 1956, p. 6 e sega.

—. ideologia liberal conservadora: a que reclama o livre jogodas opiniões no campo político e o livre jogo da oferta e da pro-cura no campo económico, defendendo portanto a manutenção dademocracia política e da hierarquia económica, com distinção en-tre patrões e assalariados;

-—ideologia democrática progressista: a que reclama a ma-nutenção da democracia política, esperando dela atenuações dahierarquia económica em benefício dos assalariados, sem no en-tanto encarar uma supressão da distinção entre patrões e assa-lariados;

— ideologia socialista: a que reclama a manutenção da de-mocracia política e a supressão da hierarquia económica atravésda abolição da distinção entre patrões e assalariados.

É evidente que se trata, como a própria autora reconhece, deuma tipologia simplificada, abstracta. Outras, de resto, são possí-veis. Assim, por exemplo, Kenneth BoULDiNfir, que já citámos, apre-senta um elenco de sete tipos, que só em parte se sobrepõe aoanterior: ideologia da cristandade ortodoxa, ideologia da cristan-dade liberal, marxismo ortodoxo, marxismo liberal, nacionalismofascista, nacionalismo liberal (ou democrático) e individualismohedonista (worldWness); caracteriza cada uma dessas ideologiaspela sua posição em relação a doze pontos distintos (interpre-tação da história, imagem do futuro, natureza da sociedade ideal,etc.) 28. Jeanne HERSCH acrescenta à sua enumeração e caracte-rização de ideologias típicas, uma descrição abreviada dos prin-cipais aspectos que, «para os seus aderentes» e nos domínios filo-sófico e religioso, da política interna, da política externa e daorganização e política económicas, essas ideologias assumem29.

6) Situando-nos, porém, num plano de maior abstracção egeneralidade, podem distinguir-se, de outro modo, «tipos históri-cos» de ideologias. A distinção principal será a que opõe ideologiasde conservação (pode preferir-se dizer: de domínio) a ideologiasde revolução, como tipos extremos.

Nas primeiras, a «vontade de poder» é dirigida para mantera sociedade tal como é, inalterada na sua hierarquia de posiçõeseconómicas e sociais, rigidificada na sua estrutura e organizaçãofundamentais. Nas segundas, pelo contrário, a «vontade de poder»é orientada para a mutação brusca de uma sociedade de certotipo numa sociedade de tipo diferente, para a alteração profundada sua hierarquia de posições económicas e sociais, para a elimi-nação e substituição das suas estruturas e formas de organizaçãofundamentais.

28 Vd. Kenneth BOULDING, op. cit.9 pp. 299-304.*» Vd» Jeanne HERSCH, op. cit, pp. 7^58.

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A oposição entre estes dois tipos de ideologias é, eviden-temente, radical. Todavia, é possível a transformação de ideolo-gias revolucionárias em ideologias de conservação. Com efeito,uma idedlogia pode ser revolucionária na fase do seu desenvol-vimento em que o grupo portador trava uma luta pelo poder, etornar-se em ideologia de domínio numa fase ulterior àquelaem que o poder foi conquistado. Por exemplo: o individualismoliberal foi revolucionário, em França, antes das revoluções quelevaram a burguesia ao poder; mas tornou-se conservador, quandoa burguesia se encontrou firmemente estabelecida numa situaçãode poder político, económico e social.

Entre os dois tipos extremos apontados, são possíveis tiposintermédios: as ideologias de reforma (ou reformistas). Trata-sede ideologias que recusam, ao mesmo tempo, o imobilismo e arigidez das ideologias de conservação, e as mutações bruscas ealterações radicais visadas pélas ideologias de revolução. Usandoa linguagem da biologia, diremos que as ideologias de reformapreferem uma acumulação progressiva de «variações» limitadas,a uma «mutação» súbita do organismo social.

Frequentemente, as ideologias de reforma resultam do con-flito social entre grupos portadores de ideologias extremistas (deconservação e de revolução):

— ou porque noutros grupos se elaboram novas ideologias,que tentam realizar uma síntese de elementos extraídosdas ideologias extremistas em luta: foi o caso, por exem-plo, do Corporativismo, na sua origem, em relação ao Li-beralismo e ao Socialismo;

— ou porque o próprio conflito de longa duração entre ideolo-logias extremistas tende — de acordo com a lei fundamen-tal de evolução dos antagonismos prolongados, enunciadapor E. DUPRÉEL 30 — a repartir pelos antagonistas os carac-teres que inicialmente os diferenciavam, levando-os a mo-dificar-se no sentido de uma mútua convergência de ideias,de atitudes,de intenções, de meios utilizados ou preconiza-dos: é o caso, nomeadamente, do Conservadorismo e doTrabalhismo na Inglaterra,

No primeiro caso, portanto, às ideologias radicais — de con-servação e de revolução — vem juntar-se uma nova ideoiogia con-ciliadora, moderada, de reforma. No segundo, são as própriasideologias radicais que se transformam em ideologias reformistas.

Náo deve, no entanto, supor-se que este processo de modifi-30 Vd. Eugène DUPRÉEL, Sociologie Générale, Paris, P. U. F., 1948,

p. 151. Para uma análise desenvolvida dos conflitos ideológicos, veja-seKemneth BOULDING, op. cit., cap. 14.

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cação mutuamente convergente de ideologias é universal». Comonota Kenneth BOULDING, há, na verdade, dois outros processosfundamentais de interacção ideológica: o de isolamento (ou se-gregação) e o de modificação mutuamente divergente. Quando umaideologia se encontra exposta ao ataque de poderosas contra--ideologias no meio social envolvente, os seus aderentes podemtender, sob certas circunstâncias, a procurar a defesa da sua ideo-logia num movimento de recuo e enquistamento numa subculturainsulada, sistematicamente preservada de comunicações com oexterior ao nível dos temas ideológicos: e teremos um caso deisolamento. Quanto aos casos de modificação mutuamente diver-gente, verificam-se, quer nas primeiras fases do desenvolvimentoduma ideologia, quando o grupo portador se esforça por diferen-ciá-la nitidamente das demais, quer em relação a determinadasideologias, como as do militarismo e do comunismo, que se orga-nizam ao redor duma ideia fundamental de luta e do conceito deinimigo como o principal polo do pensamento e da organização31.

c) Acabamos de propor uma tipologia e um modelo de inte-racção básicos de ideologias. A tipologia é extremamente abstracta,e o modelo, simplificadíssimo, nem tenta explicar a origem dasideologias radicais (aspecto em que será completado adiante),nem considera a hipótese, frequentemente verificada, de nummesmo grupo ou círculo social se cruzarem d!uas ou mais ideolo-gias (por exemplo, uma ideologia nacionalista e uma ideologiasocialista).

O economista polaco Oskar LANGE — situando-se noutra pers-pectiva e operando num quadro conceptual marxista — apresentou,porém, uma tipologia e um modelo de interacção de ideologias, quediferem dos que expusemos. Por se afigurarem aplicáveis a certassituações reais, convém reproduzi-los aqui. Haverá ainda a vanta-gem de um possível confronto.

Começa Oskar LANGE por distinguir quatro tipos de ideo-logias:

— ideologia conservadora: reflecte as tendências duma classedirigente, preocupada basicamente com preservar a exis-tente estrutura de relações soeiais;

— ideologia reaccionária: aspira a restabelecer a estrutura derelações sociais que anteriormente existia;

— ideologia de compromisso: representa uma atitude indecisa,dado que só parcialmente pretende alterar a estrutura derelações sociais existente;

— ideologia progressista: é movida pela intenção de modificara estrutura de relações sociais, em conformidade com as

31 'CfiJ. Kemneíth BOULDING, op, cit, pp. 284-285.

n

exigências presentes de desenvolvimento das forças deprodução.

Distingue, depois, três tipos de grupos, caracterizados poruma determinada forma de comportamento, ou mais precisamentepor uma certa forma de reacção aos estímulos provenientes dodesenvolvimento das forças de produção:

— os idealistas, cujas atitudes mentais se reportam a umasuperestrutura hipotética e visionária, correspondente aosaspectos mais avançados do desenvolvimento actual das«forças de produção»;

— os progressistas, cujas atitudes mentais se reportam a umasuperestrutura hipotética e visionária, correspondente aoestado actual, nos seus aspectos mais avançados, das «re-lações sociais» (retardadas, segundo LANGE e segundo oMarxismo, relativamente às «forças de produção»);

— 05 oportunistas, esmagadora maioria, cujas atitudes men-tais— que se reportam à superestrutura actual (retar-dada, ao mesmo tempo, relativamente às forças de produ-ção e às relações sociais) — influenciam amplamente osprogressos técnicos, económicos e sociais, visto que taisprogressos podem, sob circunstâncias favoráveis, ser lan-hados pelos grupos precedentes, mas são sempre postosem execução por este último.

Como se relacionam, segundo LANGE, estes grupos com aque-las ideologias? Eliminando do modelo a ideologia reaccionária,porque o grupo que a representa não sofre de qualquer ambigui-dade e porque a sua actuação não é determinante, a longo prazo,do desenvolvimento económico, LANIGE põe as seguintes hipóteses:

l.a) O grupo dos idealistas, representando embora a ideolo-gia progressista, inspira-se também, parcialmente, da ideologiaconservadora. De facto, a partir do momento em que os idealistasse constituem em classe dirigente, começam a preocupar-se com apreservação das relações sociais existentes. Mas, mesmo antes doseu acesso ao poder, idêntica hibridação ideológica pode por elesser efectuada, por não serem capazes de renovar os seus ideais.

2.a) O grupo dos progressistas, que se inspira da ideologiaprogressista, absorve igualmente uma parte da ideologia de com-promisso. Esta fusão resulta, por um lado, de a ideologia progres-sista ser correntemente enfraquecida, edulcorada, pelas realidadesquotidianas, e por outro, da frustração experimentada pelos pro-gressistas, em resultado da sua incapacidade aparente para alteraras tendências oportunistas.

3.a) O grupo dos oportunistas, que se refere em princípio àideologia de compromisso, interfere igualmente com a ideologia

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conservadora. Com efeito, ele esforça-se por conseguir que a si-tuação e, mais ainda, a sua posição na economia suscitem conten-tamento, incitem à procura da segurança e contribuam para con-servar o estado presente.

Na concepção de Oskar LÁNGE, este modelo é operacional tantonas Democracias Populares e Soviéticas como nos regimes oci-dentais. Não será, no entanto, aplicável aos períodos histórico--económicos excepcionais, tais como os de «revolução social», deaquisição da independência nacional, das grandes «vagas de espe-rança» que levantam os Povos, etc. (Nesses períodos, outros esti-mulantes intervêm e são suficientemente fortes para agir sobreos comportamentos e leva-ios a ajustar-se mutuamente) **. Parece,todavia, lícito duvidar da sua generalidade e considerá-lo válidosobretudo para casos análogos ao da Polónia socialista.

4. Funções sociais das ideologias

Seja, embora, conservadora, reformista ou revolucionária,qualquer ideologia exerce determinadas funções sociais que, comSerge HURTIG, podemos reduzir a três: quadro de referência, fac-tor de coesão, meio de acção33.

Em primeiro lugar, as ideologias fornecem um quadro dereferência que permite tornar a realidade social inteligível. A re-cordação, a percepção e a interpretação dos factos, das situações,dos acontecimentos sociais processam-se através das ideologias,através dos esquemas mentais e emocionais que as ideologias for-necem aos indivíduos. Indivíduos portadores de distintas ideolo-gias recordam, vêem, interpretam, sentem de forma diferente osmesmos factos, as mesmas situações, os mesmos acontecimentos.

Em segundo lugar, as ideologias contribuem para gerar, man-ter e reforçar a coesão dos grupos sociais onde.se implantam. Acomunidade de ideias, de linguagem, de atitudes, de comporta-mentos em que a sua presença se traduz, cria afinidades que sãofactores adicionais de coesão e permitem, nomeadamente, «a di-ferenciação dos amigos e dos inimigos». Por outro lado, fornecendouma justificação ideal a interesses frequentemente muito mate-riais, reforça essas afinidades através da atribuição de um valormais elevado à união e unidade do grupo e estimula uma fidelidademais intensa e emocional a este último.

Em terceiro lugar, e finalmente, são meios de acção para con

32 Na exposição do modelo de Oskar LANGE, ainda não traduzido dopolaco, utilizámos a descriçãio que dele faz A. NOWICKI, em UÉconomie «gê-nêralisêe» et Ia pensée aotuelle cte Oskar Lcuige, «Cahiers d Tlnstitut deScience Economique Appliquée>, n.° 114, Série G, n.° 11, Junho de 1961,pp. 45-36 e 54^59. Veja-sei, no entanto, O. LANGE, op. cit-, pp. 366-379.

83 Vd, Serge HURTIG, op. cit., p. 358 e segs.

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servar ou transformar as realidades sociais. Traduzindo-se numaconformidade ou conjugação prática de atitudes, comportamento ,reaeyoe&, em círculos sociais mais ou menos iatos, eias permitemaos líderes políticos o lançamento de movimentos colectivos e degrupos organizados, a mobilização para certos fins de amplas mas-sas humanas, o controlo e orientação de determinados comporta-mentos de importantes sectores aa população, jpor isso, elas de-sempenham, nas grandes acções revolucionárias e contra-revolu-cionárias, o fundamental papel que se conhece, mas sobre o qualnão insistiremos. Parece de mais interesse, porque menos dito,salientar a função que, nas transformações económicas em que ospaíses subdesenvolvidos se estão lançando, se afigura caber-lhes.

Por «efeito demonstração», interno e internacional, difun-dem-se, nos estratos menos favorecidos dos países pobres, aspira-ções, desejos, necessidades, que têm, por imperativo de limitaçõestécnicas e económicas inexoráveis, de permanecer em larga margeminsatisfeitos, durante um período mais ou menos longo. Resultadaqui a necessidade de as minorias directivas e a direcção políticado Estado fazerem aceitar, justificando-os, os sacrifícios a exigirdas populações e particularmente dos estratos inferiores. Defacto, os sacrifícios ou compressões de satisfações, meramenteimpostos, inevitavelmente suscitam, no longo prazo, reacções pro-testativas e agressivas, que podem ocasionar perturbações maisou menos profundas no processo de cooperação social global emque se baseiam a actividade económica e a organização política dasociedade. Pelo contrário, os sacrifícios consentidos porque con-siderados justificados pelos mesmos que os têm de suportar, nãosó não provocam tais reacções, com as consequentes resistênciasdeclaradas ou ocultas a prestar colaboração às políticas públicase privadas de desenvolvimento económico, como podem actuarcomo importante factor de coesão social e política. Podem, na ver-dade, determinar, como diz Georges BALANDIER, «uma larga mobi-lização de emoções» 34, particularmente favorável à criação de umestado de espírito colectivo, em que os sacrifícios consentidos nopresente são encarados e aceites, em amplos sectores da popula-ção, como condição e ponto de partida para uma substancial me-lhoria de condições económicas, sociais e culturais no futuro.

Nesta justificação, perante a sociedade e mormente ante osestratos inferiores, do esforço e dos sacrifícios requeridos pelodesenvolvimento económico, intervêm as ideologias. Intensamentepropagadas na sociedade, podem, de facto, predispor e mobilizaros indivíduos para uma adesão deliberada aos programas de de-senvolvimento. Um significativo exemplo de actuação duma ideo-logia como factor de incremento do esforço popular no sentido do

34 Georges BALANDEER, Les Pays en voie de Développemant: Analysesociologique et politique, Paris, Les Cours de Droit, polycopié, 1960-1961,pp. 170-171.

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desenvolvimento económico é-nos dado pela China comunista.«Neste caso —relata Georges BALANDIER—, a ideologia elabora-sse sobre a crítica dum passado que associava às fraquezas pró-prias de uma sociedade feudal tecnicamente retardada, as fra-quezas de que sofre um País onde se defrontam rivalidades 8empresas estrangeiras de índole colonial; mobiliza, em favor damodernização, o descontentamento camponês e o sentimento na-cional. Mostra a impossibilidade em que se encontrou o capitalismolocal, privado e burocrático, de garantir um desenvolvimento sa-tisfatório, em consequência da sua falta de independência e dafragilidade duma economia cujas bases permaneciam essencial-mente fendais. Faz depender todas as garantias para o futuro,no campo da independência nacional e da segurança económica, dosprogressos da industrialização. Ao mesmo tempo, insiste em que oprocesso de industrialização gradual se confunde com o processode socialização gradual da economia»85. Estas ideias, vertidasnuma argumentação clara, simples e emocional, são propagadasatravés de uma rede extremamente ramificada e eficiente de meiosde comunicação verbal, comportando uma orgânica doutrinadoracomposta, na base, por pequenas células de fábrica, de aldeia, devizinhança, de bairro. A técnica consiste em tentar, não umamobilização ideológica maciça e profunda de toda a população,mas uma mobilização intensiva de núcleos que depois exerçam,em sectores mais amplos, uma acção de ideologização, de estímuloe de controlo das atitudes e comportamentos dos indivíduos.

Dum modo geral, podemos dizer que a utilização de uma ideo-logia como instrumento de desenvolvimento económico tem emvista transformar um estado emocional de insatisfação (estadopré-existente ou provocado) num estado emocional de acção, cana-lizando-o no sentido de um esforço criador colectivo que, ao ní-vel popular, se traduza numa intensificação do esforço produtivosocial e numa cooperação mais eficaz com os programas de desen-volvimento.

Porém, justamente porque mobiliza insatisfações, nem sempreo estimulante ideológico pode ser utilizado. Assim sucede, nomea-damente, quando tais insatisfações se dirigem contra os estratossociais que dominam a direcção política do Estado ou do apoiodos quais dependem os governos que exercem essa direcção. Poroutras palavras, parece que o estimulante ideológico só pode serutilizado quando pode tirar inteiro partido — como diz FrançoisPERROUX — «da dupla atracção exercida pela sociedade terminale pela sociedade óptima. Pela sociedade terminal, ou seja poraquela para a qual uma dada evolução histórica impele os homens,

35 Georges BALANDIER, «Le contexte socio-culturel et le coút social duprogrès», in I. N. E. D», Le «Tiers-Monde». Som-développpneni et Déveiappe-ment, Paris, P? U. F., 2-a ed., 1961, pp. 293-294.

u

queiram ou não. Pela sociedade óptima, quer dizer pela sociedadeperfeita tal como eles a imaginam e arquitectam, preenchendo aslacunas e rectificando os defeitos das sociedades que conhecem» 36.Ora, as ideologias de domínio só dificilmente e em parte podemreconhecer tais lacunas e defeitos: logicamente, procurarão antesocultá-los ou atenuá-los.

5 A irrupção das ideologias nas sociedades modernas ou em pro-cesso de modernização

Apontámos no princípio deste artigo o que há de relativa-mente novo, do ponto de vista histórico, nos fenómenos ideoló-gicos. Trata-se agora de procurar alguns pontos de referência,algum modelo de explicação, dessa surpreendente irrupção dasideologias na vida dos povos.

Sem intenção de esgrotar o assunto, indicaremos uma sériede factores socio-culturais genéricas, que parecem ser os funda-mentais para essa explicação.

1.° factor: o impulso social ascensional e a quebra do confor-mismo e da passividade das massas.

A História das sociedades Humanas pode ser abarcada, numesquema extremamente simplificado mas operacional, em trêsgrandes fases de evolução: a da sociedade arcaica ou primitiva,a da sociedade pré-industrial ou antiga e o da sociedade industrialou moderna. Historicamente, estes três tipos de sociedades suce-deram-se, ao longo do tempo, não sincronicamente, como grandesfases de evolução da vida social nos vários ramos da Humanidade.Na época contemporânea, correspondem a três formas de socie-dade ainda existentes, embora as duas primeiras tendam a trans-formar-se na última.

A sociedade arcaica caracteriza-se por um desenvolvimentorudimentar do indivíduo. A estimulação das faculdades mentais éaí fraca para a quase totalidade dos membros da sociedade. Ageneralidade dos indivíduos não possui ainda consciência clarada sua própria liberdade e autonomia pessoal. As suas capacida-des de atitude crítica e de elaboração pessoal de ideias e compor-tamentos permanecem, normalmente, em puro estado latente. Ocomportamento e o pensamento dos indivíduos são quase inteira-mente regulados por normas, modelos e crenças colectivas tradi-cionais, contra os quais os indivíduos se mostram incapazes dereagir. O conformismo quase total e a carência quase absoluta deiniciativa individual conformam as relações do indivíduo com asociedade.

A sociedade prè-industrial distingue-se da anterior pela for-mação de uma minoria, composta sobretudo por membros dos

s« François PERROUX, Éoonomie et Soáété, Paris, P. U. F., 1960, P- 27.

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estratos dominantes e dos aglomerados urbanos, nitidamente dife-renciada das massas sob o ponto de vista dos estímulos e oportu-nidades ao desenvolvimento individual. As grandes massas conti-nuam, efectivamente, a manifestar um conformismo e uma passivi-dade análogos aos das sociedades arcaicas, embora em um nívelde Cultura e Civilização frequentemente mais alto. Mas há umaminoria activa, cujas estimulações mentais são mais intensas, cujosentimento de liberdade e autonomia pessoal se desenvolve, cu^ascapacidades de crítica e de reacção contra as tradições e rotinasse expandem, cujo conformismo se desagrega, enfim cujas facul-dades de iniciativa individual se libertam. Ê, pois, uma sociedadeonde as massas, conformistas e passivas, são ainda facilmentecontroladas, em geral, por uma pequena minoria de «senhores»,mas onde se acha implantado um núcleo activo e inovador, a longoprazo revolucionário, que funciona como o centro criador e reno-vador da sociedade (na economia, ou na política, ou na guerra,ou na arte, etc) .

A sociedade industrial, finalmente, caracteriza-se pelo alar-gamento das oportunidades e, mais ainda, dos estímulos ao desen-volvimento individual, a amplas camadas da população e não já auma restrita minoria. Neste tipo de sociedade, assiste-se a um vastodespertar da razão, da capacidade de crítica, de reacção e de pen-samento pessoal, ao nível de grandes massas humanas. O confor-mismo e a passividade tendem a ceder o lugar ao inconformismoe à iniciativa. Dá-se a desagregação progressiva dos comporta-mentos tradicionais e das crenças socialmente impostas, as massasaspiram a libertar-se dos entraves ao desenvolvimento individual.Em suma: vai-se propagando a maiorias o movimento de reacçãoe libertação, confinado, nas sociedades pré-industriais, à minoriaactiva e inovadora.

Assim se compreende, nesta perspectiva histórica global, quenas sociedades modernas ou em processo de modernização (e comestas duas categorias abarcamos quase todas as sociedades con-temporâneas), impulsos sociais ascensionais, limitados anterior-mente a círculos restritos, se difundam em círculos incomparavel-mente mais extensos. Subir na escala do bem-estar, subir na es-cala social, subir na escala da participação na Cultura são aspi-rações que irrompem em toda a extensão do campo social. Inau-gura-se, deste modo, uma fase inteiramente nova na História daHumanidade: a fase da elevação económica, social e cultural dasmassas e não já (como antes) de pequenas minorias apenas.

2.° factor: as dificuldades e resistências que defrontam osimpulsos sociais ascencionais.

Por um lado, o ritmo do crescimento dos níveis de aspiraçãoe da propagação dos impulsos sociais ascensionais pode ser mais

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rápido do que o do crescimento das possibilidades económicas desatisfazer essas aspirações e esses impulsos. Presentemente, issoverifica-se mesmo em alguns países europeus, nomeadamente empaíses da Europa meridional. Mas sucede principalmente (comojá dissemos acima) na maioria dos países extra-europeus, subde-senvolvidos, cujas economias deparam enormes dificuldades pararesponder à pressão interna das aspirações e dos impulsos ascen-cionais em expansão.

Por outro lado, certas categorias sociais, tradicionalmentedominantes, podem resistir deliberadamente aos impulsos de as-censão económica, social e cultural que se derramam na sociedade.Quando isto sucede — como no presente se verifica em grandeparte dos países retardados—, criam-se as condições infra-estru-turais para um dualismo frontal de ideologias: as ideologias dedomínio dos que resistem aos impulsos (os «inibidores», para usara terminologia de Egbert DE VRIES^ 37, e as ideologias de revolu-ção dos que pretendem vencer essa resistência e as demais dificul-dades ao desenvolvimento de um processo de ascensão económica,social e cultural das massas.

3.° factor: o aparecimento dos «intelectuais» como categoriadistinta, independente e influente.

Com a expressão «intelectuais», não queremos designar todosaqueles indivíduos cuja actividade profissional ê predominante-mente intelectual, nem sequer todos os que, dentro dessa catego-ria, se dedicam às tarefas culturalmente superiores: os filósofos,os cientistas, os investigadores, os técnicos, os literatos, os críticos,etc. Pretendemos abranger apenas uma categoria especial depensadores, que só esporadicamente, e sempre em número muitoreduzido, existiu nas sociedades antigas. Trata-se daqueles pensa-dores — analistas e críticos da sociedade — que se empenhamessencialmente em tomar posição ante os problemas fundamentaisdas sociedades a que pertencem e em forjar sistemas de ideias quesirvam como referencial consciente para a crítica valorativa des-sas sociedades e para a acção (conservadora, reformadora ou revo-lucionária) sobre as suas estruturas e formas de organizaçãobásicas38.

37 Cfr. Egbert DE VRIES, Man in Rapid Social Change, Londres, SOMPress, 1961, l.a parte, cap. II.

38 É evidente que tomamos aqui o substantivo intelectual numa acepçãodeliberadamente muito restritiva, que abrange apenas um dos sectores do«círculo dos intelectuais» na sociedade. Este «circulo», cuja composição eforma de inserção na sociedade constitui um dos elementos fundamentaisda estrutura social, tem vindo a sier objecto de estudo sociológico, mas sobforma pouco sistemática. Uma visão de conjunto mas superficial pode en-contrar-se no volume de readings: Georges B. de HUSZAR, The IntellectiLals,a controversial partrait, The Ffee Press of Glencoe (Hl.), 1960. Interes-

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Nas sociedades modernas, ou em vias de modernização, os«intelectuais» surgem, frequentemente, numa posição de profissio-nalismo cultural e técnico que lhes oferece consideráveis oportu-nidades de elaboração e comunicação de novas ideias e novos va-lores. A partir dessa posição, podem exercer uma influência men-tal, que faz deles um factor importante da evolução das sociedades.Sob a sua influência, são estimulados movimentos colectivos deataque e de defesa, e esses movimentos desenrolam-se, em grandeparte, segundo orientações derivadas dos sistemas doutrinais poreles elaborados.

Na maior parte dos casos, tal influência não se exerce direc-tamente. É uma influência que opera através da formação mentale da orientação doutrinal que dos intelectuais recebem os líderesdos movimentos colectivos. Estes não são os próprios intelectuais,mas actuam sob a influência das ideias e dos valores elaboradose propostos pelos intelectuais. Ê certo que nunca tais ideias evalores são rigorosamente adoptados e utilizados na prática ena liderança dos movimentos colectivos, como já anteriormentevimos ;mas essa prática e essa liderança seguem orientações que,embora deformadas em relação ao que os intelectuais pensaram edesejaram, não seriam o que são, se não fora a influência exer-cida pelos intelectuais. Por exemplo: em nenhum país, o «movi-mento operário» decorreu nos termos precisos em que K. MARXo desejou; todavia, as orientações seguidas, durante bastante tempoem certos países, por esse movimento, são incompreensíveis, senão se levar em conta a influência que K MARX nele exerceu.

li.0 factor: a consciência de que a sociedade pode ser trans-formada mediante uma acção colectiva sobre as suas es-truturas e formas de organização.

Nas sociedades antigas, tal consciência praticamente nãoexistia: a sociedade — ou melhor: a sua estrutura e a sua orga-nização — era tomada como um dado, não como um problema quepudesse ser discutido. Por isso, as aspirações a «um mundo me-lhor» (como hoje se diz) exprimiam-se, quando surgiam, sob aforma de mitos, de utopias. Recentemente, Roger MUCCHIELLI des-creveu e analisou o «mito da sociedade ideal» que, desde as «Leis»de Platão e da «Política» de Aristóteles, até à «Cidade do Sol»de Campanella, à «Nova Atlântida» de Francis Bacon, à «Utopia»de Thomas More e à «Icária» de Cabet, se manteve na alta cultura

sante trabalho de vulgarização sobre o tema é: Louis BODIN, Les Intelleatuels,Paris, P. U. F., 1962 (Col. «Que sais-je?», n.° 1OK>1). As obras de FlorianZNANIECKI, Papel Social dei Intelectual, trad. de E. de Champourcin, México,F. C. E., 1944, Karl MANNHEIM, Ensayos de Sociologia de Ia Cultura, trad.de Manuel Suarez, Madrid), Aguiliar, 1957 (2.a parte), e Max WEBER, LeSavant et le Politique, Paris, Plon, 1959, são «clássicos» na matéria.

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europeia, ao longo dos séculos, vindo a desembocar no messianismoda sociedade comunista perfeita de Karl MARX39. Mas, se comMarx o mito se transforma em expectativa, que se julga justifi-cada em termos científicos, do advento de uma sociedade que seráuma imensa comunidade fraternal, liberta de todas as desigual-dades não estritamente naturais, de todos os antagonismos e detodas as compulsões sociais, antes de Marx tratava-se de um puromito, de um «sonho» de perfeição e de justiça a cuja realização senão dava crédito. Imaginava-se uma sociedade ideal, mas não seacreditava (ou só um número ínfimo acreditava) na possibilidadeda sua criação e manutenção40.

É verdade que, em muitos escritores cristãos dos primeirostempos do Cristianismo — ou seja: no que é conhecido, na Históriado Pensamento, por Patrística—, apareceu a ideia de que a so-ciedade podia ser transformada, tornando-se mais justa e maisfraterna. Mas essa transformação resultaria, segundo esses auto-res, da renovação moral de cada indivíduo, da vitória, em cadaconsciência individual, do «homem novo» sobre o «homem velho»(para usar a terminologia de São Paulo). Intimamente renovada,em cada consciência, por essa vitória — vitória do «espírito»sobre a «carne», da caridade sobre o ódio, da justiça sobre oegoísmo—, a sociedade renovar-se-ia então exteriormente, tor-nando justas as situações humanas e fraternais as relações entreos Homens.

É muito diferente desta a consciência moderna de que a socie-dade pode ser transformada. É a consciência de uma possibilidadede transformar a sociedade, não a partir do «mundo interior» doindivíduo, mas a partir do próprio «mundo exterior» das estrutu-ras e formas de organização sociais. Transformação a operar, nãopela íntima renovação moral de cada um, mas pela acção colectivae objectiva de muitos sobre as estruturas e instituições básicas dasociedade.

Ora, por que é que surge, modernamente, esta consciência?Primeiro, porque, de facto, transformações profundas e rápidasse deram em sociedades concretas, na sequência de mutaçõesbruscas em momentos críticos (exemplos: a Revolução Francesade 1789, a Revolução Russa de 1917, etc). Depois, e sobretudotalvez, porque as sociedades contemporâneas dão, elas próprias,uma demonstração permanente de que a sociedade se transformanas suas estruturas e na sua organização, de que estas estrutu-

3« Vd. Koger MUCCHIELLI, Le Mythe de Ia Cite idéale, Paris, P. U- F.,1960.

40 GeoTge& DUVEAU contestou, até certo ponto, €<sta concepção do uto-pâ®ta pné-marxista como nina espécie de recalcado stocial e tentou <estabeleceruanai relação entre a tradição utopista e a® modernas preocupações pelo pla-neamento económico e social. Veja-sié:> Georges DUVEAU, Sociologio. de PUtopieet autres «essads», Paris, P. U. F., 19G1*

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rás e estas organizações não constituem um dado imutável,mas uma situação transitória, susceptível de ser alterada.A lentidão típica das evoluções nas sociedades pré-industriaisdava origem a que os indivíduos não se apercebessem geral-mente delas, porque os ritmos das inovações estruturais excediamlargamente a duração normal da vida humana. Pelo contrário, aaceleração das evoluções nas sociedades modernas ou em vias demodernização (aspecto particular daquela aceleração da História,que Daniel HALÉVY salientou) 41 torna patente que nenhuma socie-dade é um sistema estacionário, mas uma realidade em transfor-mação incessante, uma realidade cuja estrutura e cuja organiza-ção se estão constantemente modificando.

Para as grandes maiorias, esta consciência é obscura, umpouco vaga e indefinida. Mas, para as minorias intelectuais, elatorna-se, ao invés, frequentemente muito clara e intensa. Ora, vendocom nitidez que as sociedades se transformam, evolucionam eadquirem novas características estruturais e organizacionais, põe--se-lhes, como problema fundamental, o da atitude a assumir pe-rante esse facto.

Nos casos extremos, tal atitude vai desenvolver-se, ou a par-tir de uma «vontade de poder» dirigida para a conservação, isto é:para a defesa e a manutenção das estruturas e situações quepareçam ameaçadas pela evolução em curso, ou, ao contrário, apartir de uma «vontade de poder» dirigida para a transformção,ou seja: para a estimulação e a orientação em determinado sen-tido— o sentido considerado «progressivo» — de transformaçõesjá em curso, de transformações que se crêem inevitáveis ou detransformações consideradas apenas possíveis. E assim nascemas doutrinas e ideologias de conservação e as doutrinas e ideolo-gias de revolução ou de reforma.

5.° factor: a aglomeração urbana e a multiplicação das «co-municações de massa».

Nas sociedades modernas ou em vias de modernização, assis-te-se a uma poderosa concentração demográfica em núcleos urba-nos. Isso contrasta com a dispersão característica das populaçõespre-industriais, polvilhadas por vastos territórios onde os núcleospopulacionais de grande envergadura são relativamente pouconumerosos e só compreendem uma pequena fracção da populaçãototal.

Ao mesmo tempo, nessas sociedades as «comunicações demassa» — a imprensa, a rádio, o cinema, a televisão, etc. — vêmsobrepor-se, e em grande parte substituir-se, às «comunicações

41 Daniel HALEVY, Essai sur VAccélêration de VHistoi-re} Paris1, 2«a ed.,Fayard; 196L

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pessoais» das sociedades antigas. As informações, as ideias, òâconhecimentos, os estados emocionais não se transmitem só, nemprincipalmente, à escala da sociedade, por meio do contacto di-recto e da comunicação de indivíduo a indivíduo, mas por meiodo contacto indirecto e da comunicação global a grandes massas.

Da convergência destas duas circunstancias — aglomeraçãourbana e multiplicação das comunicações de massa — resulta:

— uma facilitação excepcional, comparativamente com o queanteriormente se verificava, da liderança de movimentoscolectivos de grande vulto;

— a abertura de possibilidades inteiramente novas à propa-gação das ideologias nas massas e de influência das ideo-logias sobre os movimentos colectivos.

Aglomeradas nas cidades e podendo ser sujeitas a uma acçãopsicológica intensa através dos meios de «comunicação de massa»,as populações oferecem condições favoráveis, antes inexistentes,para que dentro delas possam ser organizados e comandados am-plos movimentos coljectivos e para que essa organização e essecomando obedeçam, em larga medida, às orientações determinadaspor sistemas ideológicos originários dos meios intelectuais.

6. As ideologias, fenómenos de transição social

O ponto fundamental da análise precedente dos factores queexplicam a irrupção das ideologias nas sociedades modernas ou emvias de modernização, é o processo de impulsos sociais ascensio-nais e de dificuldades e resistências a esses impulsos, que resultados dois primeiros factores apontados.

Ora, há duas formas de superar as dificuldades e resistênciasmencionadas:

— a abertura progressiva dos regimes sociais aos impulsossociais ascensionais que se formam e desenvolvem dentrode cada sociedade: é o que chamaremos, em sentido res-trito, evolução;

—. a vedênda brusca dos regimes sociais ante a pressão exer-cida por esses impulsos: é o que chamaremos revolução.

Os países industriais do nosso tempo oferecem-nos exemplosnumerosos da primeira forma: a evolução. São países cujos regi-mes sociais se foram progressivamente abrindo aos impulsos deascensão na escala do bem-estar, na escala social e na escala daparticipação na Cultura, que dentro deles se formaram e expan-diram. Em muitos países retardados, temo® pelo contrário assis-tido, e estamos assistindo, a soluções da segunda forma. Sirvam

de exemplos a revolução nacionalista do Egipto e a revoluçãocomunista da China.

Num caso ou no outro, o que parece provável é que, a longoprazo, os impulsos sociais ascensionais nao podem ser indefini-damente travados. Pela evolução ou pela revolução, eles encontramfinalmente o modo de vencer as resistências e dificuldades quese lhes opõem.

Tomemos, porém, o caso da evolução.Quando a evolução se realiza em condições de se verificar

suficiente redução das tensões internas, assiste-se à transmutaçãoprogressiva das ideologias de revolução — que deixam de teraudiência nos meios intelectuais e populares — em ideologias dereforma. No limite, parece sobrevir o desinteresse generalizadopetas atitudes e concepções ideológicas radicais: o que passa ainteressar é a discussão e solução de problemas limitados, con-cretos e imediatos, que podem porventura implicar correcçõesparciais do regime social vigente, mas não a sua total substitui-ção. Procuram-se soluções quanto possível dentro do regime, e nãocontra ele. Exemplo típico de uma transformação deste género éa sofrida pelo socialismo na Alemanha, nos Países Nórdicos, naAmérica do Norte.

Quando, pelo contrário, se dá, não uma evolução, mas umarevolução, verifica-se, frequentemente, o seguinte. Temporaria-mente, os sistemas ideológicos revolucionários, que triunfaram,conservam todo o seu dinamismo e toda a sua capacidade de per-suasão e de estimulação: é a fase em que, embora já no poder,o grupo portador da ideologia revolucionária tem ainda de lutarcontra adversários internos ou externos. Posteriormente, regis-ta-se uma tendência para o enfraquecimento das convicções ideo-lógicas e da influência social da ideologia triunfante: é a fase emque ocorre a desilusão de expectativas criadas durante as fasespré-revolucionária e revolucionária e em que começam a mani-festar-se e se vão acentuando o desinteresse, a descrença e as ati-tudes críticas das novas «gerações sociais», que já não tiveramde lutar e que encontram diante de si, estabelecido e consolidado,o regime social post-revolucionário. No limite, tende-se para adesintegração do sistema ideológico progressivamente enfraque-cida.

Todavia, os sistemas, assim entrados na via da dissolução,podem vir a ser reactivados, agora sob a forma de ideologias dedomínio, quando novas ideologias de revolução, dirigidas con-tra o regime inicialmente revolucionário mas já consolidado, seformam na sociedade. Exemplo: o individualismo liberal, que foirevolucionário contra o «Ancien Regime» e se reactivou, como ideo-logia conservadora, ante as ameaças criadas ao regime liberalpelas ideologias revolucionárias socialistas.

Por conseguinte — seja na hipótese da evolução, seja na darevolução —, âfí ideologias comportam-se como fenómenos de tran-sição social, que acompanham as mudanças sociais profundas quese verificam nas sociedades, mas desaparecem ou se modificam,quando essas mudanças chegam ao seu termo.

A análise que acabamos de fazer refere-se, porém, ao que severifica em sociedades políticas determinadas, independente-mente da intervenção de factores internacionais. Não podem, con-tudo, ignorar-se as incidências, sobre as ideologias operantes nointerior das várias sociedades políticas, de tais factores. Acercadesse ponto, duas ideias poderão exprimir talvez o essencial doque importa reter.

Por um lado, o antagonismo internacional das Potências actuacomo um poderoso factor de activação de ideologias, quer de gru-pos já detentores do poder, quer de grupos em luta pelo poder.Exemplo de activação ideológica interna, fortemente estimuladapela eompetição-tensão internacional, é o do Comunismo naRepública Popular da China: a «ameaça capitalista», a rivalidadecom os E. U. A., o risco de uma guerra mundial são aí intensamenteutilizados para alimentar uma eficiente propaganda e para gerarum «fervor» ideológico, dificilmente concebíveis sob condiçõesinternacionais diferentes. Neste exemplo, trata-se da ideologia deum grupo já detentor do poder. Noutros casos, a activação ocorreem ideologias de grupos ainda em luta pe3|o poder, e é frequente-mente provocada do exterior dos países em que se verifica. Ten-do-se tornado demasiado destrutivos os conflitos armados, aspotências preferem outra forma de conflitos: a dos que se travamno interior dos países, sobretudo dos países retardados, entregrupos detentores de ideologias opostas. Embora sem guerra in-ternacional, os blocos políticos internacionais, dirigidos! peiasgrandes potências, alargam-se ou reduzem-se, por efeito do resul-tado das lutas entre esses grupos. Daí que as potências, paramanterem no seu bloco, ou a ele atrairem, os países onde as con-dições internas favorecem o aparecimento de lutas pelo poderentre grupos ideologicamente distintos, procurem auxiliar e acti-var as correntes ideológicas que lhes são favoráveis.

Por outro lado, e inversamente, as tensões sociais internase os conflitos entre gruipos ideológicos no interior dos países re-presentam, por sua vez, poderosos factores de estimulação do an-tagonismo internacional das potências. Com efeito, a «balança dospoderes» na sociedade internacional é constantemente ameaçadade entrar em desequilíbrio pelas incertezas que pairam sobre oresultado dos conflitos pelo poder no interior de muitos países,porquanto de tal resultado depende a integração final desses paí-ses em algum dos biocos internacionais existentes. Sendo assimprecário o equilíbrio internacional, o antagonismo entre as po-

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tências é fatalmente intensificado. Mas, porque também à escalainternacional as ideologias exercem as funções de coesão e demeio de acção acima apontadas, esse antagonismo vem a adquirirum cunho ideológico muito mais vincado do que aquele que asreais diferenças actuais de sistemas político-económicos entre asgrandes potências explicam.

7. Problemas em aberto; conclusão

Ao longo deste artigo ocupámo-nos das ideologias como fenó-menos sociais. Mais precisamente: como fenómenos sociais enca-rados sob a óptica da Sociologia Política.

Poderíamos tê-las estudado de uma perspectiva totalmentedistinta: como formas de pensamento. Pensar ideologicamente é,com efeito, pensar de uma determinada maneira. Foi precisamenteo que JoseDh SCHUMPETER fez notar, numa conferência pronun-ciada em 1948, sem no entanto conseguir exprimir claramente oque há de específico na forma ideológica de pensar42. Mais re-centemente, Gustav BERGMAN sugeriu que uma proposição quai-quer seja considerada ideológica, quando «um juízo de valor estádisfarçado em, ou é tomado por, uma afirmação de facto». Nes-tas condições, um sistema de ideias terá forma ideológica, quando«contém declarações ideológicas em lugares logicamente cru-ciais» 43.

A sugestão de BERGMAN afigura-se muito certeira e fecunda.Mas introduz-nos nos domínios da Epistemologia e da Psicologiada inteligência, onde não queremos entrar neste artigo, tal comonão entrámos no da Sociologia do Conhecimento.

Outra temática — esta já do campo onde quisemos situar--nos—, que fica em aberto, é a seguinte. Um certo número deautores tem sustentado a tese do declínio das ideologias. Os maisrepresentativos serão, porventura, Daniel BELL, Seymour M.LIPSET, Raymond ARON, Maurice DUVERGER, John K. GAL-BRAITH. De uma forma ou de outra, todos insistem, para usar ostermos de ARON, numa «tendência para o apaziguamento dos con-flitos ideológicos nas sociedades ocidentais», numa «espécie de des-valorização intelectual dos conflitos ideológicos do século XIX» 44.Todos igualmente sustentam que as questões de concepção funda-mental, de princípio, de ideologia tendem fortemente a ceder opasso às questões técnicas, aos problemas de concepção e aplica-ção dos meios práticos de resolução de problemas económicos esociais.

*2 Vd. Joseph SCHUMPETER, «Ciência y Ideologia», in El Trimestre Eco-nómico, vol. XVII, n.° de Jan.-Mar. de 1950.

43 Guistav BERGMAN, The Metaphysics of Logical Positivism, Nova Iorque,Longimans, 1954, p. 310; cit. por Veraon Van Dyke.

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Deixaremos para outro artigo a discussão dessa tese, quealiás não poderíamos considerar de algum modo válida, senão paraum restrito número de Países mais favorecidos pelo progresso ma-terial e cultural e por motivo® já acima apontados.

Se ia como for, ainda que tivéssemos de admitir a «morte» pró-xima das ideologias (o que não se nos afigura provável), duasrazões ficariam de pé a justificar o interesse do cientista socialpelo seu estudo.

Em primeiro lugar, como observa Vernon Van DYKE, «seriaaltamente surpreendente que alguém pudesse descrever e explicarde maneira satisfatória as evoluções políticas mais importantesdas últimas décadas, sem se referir a uma ou mais ideologias» 45.O surto e o conflto das ideologias constituem, na verdade, aspectosfundamentais do gigantesco processo de transformações acelera-das que hoje se desenrola à escala mundial. Não é possível enten-der este sem entender também aqueles.

Em segundo lugar, as ideologias, não só podem ser objectode investigação para o cientista social, como são também factoresque directamente interferem na sua actividade e na sua posiçãosocial.

Por este último ponto concluímos. Fazemo-lo com palavras deum grande cientista social, o Prof. Talcott PARSONS. «Torna-seclaro — escreveu este sociólogo norte-americano — que as Ciên-cias Sociais ocupam uma posição particularmente crucial e, sobcertos aspectos, precária, em relação ao equilíbrio ideológico dosistema social. Por um lado, as mais importantes ideologias sociaisnão podem evitar ocupar-se dos temas que interessam às CiênciasSociais; e estas não podem, pura e simplesmente, ignorar os pro-blemas que tocam nas posições ideológicas. Por outro lado, ascircunstâncias em aue as ideologias se desenvolvem e operam sãotais, que parece praticamente impossível evitar a presença de umaampla área de conflito entre estes dois principais tipos de inte-resse cognitivo. As distorções cognitivas, que sempre estão pre-sentes nas ideologias, com frequência compulsivamente motiva-das, tenderão a ser desvendadas e postas em causa pelo cientistasocial. Alguns dos resultados podem ser aceites, mas somentecom dificuldade e mediante um processo de assimilação e ajusta-mento a prazo. Por força desta situação, haverá, mais ou menosinevitavelmente, uma tendência para os defensores da purezaideológica num dado sistema social manifestarem fortes suspeitasacerca do trabalho a que se dedicam os cientistas sociais»46.

44 Vd. La Démocratie à Vêpreuve du XX* siècle, Colloques de EheinfeX-ãen, Paris, 1960, T>p. 11-42.

4« Vernon VAN DYKE, Ciência Política: un Anâlisls Filosófico, trad. deFernando Moran, Madrid, Tecnos, 1962, p. 195-

46 Taloott PARSONS, The Social System, Londres, Tavistock, 1952, p. 358.

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