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    INTRODUO HERMENUTICA DE PAUL RICOEUR

    MARIA DE JESUS MARTINS DA FONSECA

    Nota de AberturaH muito tempo que tnhamos a inteno de realizar este trabalho, retomando um tema que,

    desde os bancos da Universidade, ficou de ser aprofundado pelo interesse que ento nos despertou.

    Naquela altura, a disciplina de Hermenutica tinha sido introduzida no plano curricular do curso h pouco

    tempo e a temtica constitua uma novidade. Ao tempo, tambm ainda no existiam tradues publicadas

    em portugus da obra de Ricoeur, embora isso no constitusse problema, porquanto as obras estavam

    acessveis nas livrarias, na lngua original em que foram publicadas, por um lado, e, por outro, porque,

    mesmo que existissem tradues portuguesas, sempre os professores nos instavam a ler na lngua original

    em que a obra fora publicada, pelos claros benefcios que a prtica implicava, quer a nvel do domnio

    dessas lnguas estrangeiras, quer a nvel da compreenso do texto. Tambm no existia, na altura,

    bibliografia significativa na rea em causa, e a pouca que havia encontrava-se na lngua original em que

    tinha sido publicada, ou em tradues, elas tambm, em lngua estrangeira, bem ainda como no existia o

    conjunto de estudos hoje disponveis, inclusive em Portugal, no s sobre a temtica hermenutica em

    geral, como, especificamente, sobre Ricoeur e o seu pensamento.

    Por algumas das razes acima expostas, no se estranhe, pois, que tenhamos optado neste artigo

    por manter as citaes na lngua original. Tambm no se estranhe o facto de termos optado neste texto

    por apresentar abundantes citaes do autor, o que corresponde a uma inteno deliberada de ilustrar o

    pensamento do autor pelo prprio autor, no sentido de dar a voz ao prprio Ricoeur, em discurso directo e

    original, e de modo a que seja ele a apresentar-se e a representar-se a si prprio.

    Surgiu agora a oportunidade de realizar esse projecto antigo, mas, como sempre, a ambio

    inicial ficou aqum da realizao. Era nosso desejo tecer uma breve histria da hermenutica, assim como

    projectvamos referir-nos a outros conceitos chave, que permitiriam uma melhor e mais profundacompreenso do pensamento de RICOEUR. Contudo, constrangimentos vrios, sobretudo de tempo,

    impediram-nos de cumprir esse iderio inicial que, num acto de boa vontade, nos propusemos.

    Finalmente, no podemos nem queremos deixar de relembrar, aqui e agora, o nosso saudoso

    Professor Miguel Baptista Pereira (1929-2007). Foi nosso professor de Hermenuticae deAntropologia

    Filosficae ainda de Seminrio. Pela sua mo e com a sua orientao e sabedoria, h muitos anos, pela

    primeira vez, nos foi proporcionado o acesso e a chave de entrada ao pensamento de Ricoeur, como, alis,

    ao de muitos outros filsofos, desde os antigos, aos modernos e aos contemporneos. O seu domnio da

    histria da filosofia, a sua capacidade de nos fazer perceber a contemporaneidade e actualidade das

    filosofias e dos filsofos, por muito antigos que fossem, bem como a extraordinria clareza do seu

    pensamento, da sua linguagem e da sua transmisso, foram sempre traos marcantes da sua aco como

    professor. Por isso as suas aulas no eram interrompidas, com dvidas ou questes, no porque a isso noinstasse os seus alunos, mas porque a sua clareza e sabedoria, a sua extraordinria capacidade de

    relacionar tudo com tudo e de nos tornar evidentes essas relaes, deixando-nos atnitos e maravilhados,

    no permitiam dvidas nem justificavam qualquer suprflua questo. Depois tambm porque o seu

    discurso e a sua fala nos mantinham permanente e profundamente interessados, ainda que a aula durasse

    trs ou mais horas, como se estivssemos em estado de encantamento e encantados. Porque de facto

    estvamos encantados, extasiados, pasmados, mas a perceber e a entender tudo o que nos era dito. Era um

    professor nato. Com ele aprendemos a pensar filosfica e criticamente o mundo, a vida, o homem, a

    Professora Adjunta da Escola Superior de Educao do Instituto Politcnico de Viseu.

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    experincia, o tempo e a histria, mas tambm o amor e a morte, e a ns prprios enquanto imersos no

    mundo e na vida. Era tambm um homem muito atento e preocupado com a anlise crtica do presente, a

    partir dele reavaliando o passado e buscando a prefigurao do futuro. Com ele pudemos conhecer, antes

    de se tornarem moda e conhecidos em Portugal, filsofos como Gadamer, Adorno, Apel, Hannah Arendt,

    Ricoeur, Deleuze, Foucault, Habermas ou Derrida.

    Honramos a sua memria e assim lhe prestamos a nossa merecida homenagem.

    PRIMEIRA PARTE

    Uma viso geral do pensamento de Paul RicoeurPAUL RICOEUR (1913-2005) , sem dvida, um dos filsofos mais importantes do sculo XX

    e, portanto, da nossa contemporaneidade. Autor de uma vastssima obra, grande parte da qual se encontra

    hoje acessvel em Portugal, ainda que nem toda traduzida e publicada em lngua portuguesa, um

    pensador de um flego invulgar e to complexo quanto profundo.

    No fcil aceder ao seu pensamento que, alis, foi um pensamento sempre em evoluo e

    movimento. Por isso, o prprio Ricoeur nunca d da sua obra uma viso unitria e sistematizada,

    considerando o seu pensamento como uma sistematicidade fracturada sistematicit brise. A sua

    extensa obra, (mais de 500 ttulos em artigos, conferncias, colquios, mesas redondas, actas e

    entrevistas, algumas tradues, meia centena de prefcios a obras de outros autores e mais de 20

    monografias, a maior parte das quais de sua autoria, algumas em co-autoria), caracteriza-se no s pela

    diversidade dos temas, como tambm pelo retorno sucessivo (um eterno retorno) a esses mesmos temas.

    Da que retoma incessantemente os mesmos problemas, muitas vezes sob o mesmo ponto de vista, num

    claro esforo do seu aprofundamento e sempre em vista da sua uma melhor compreenso, como alis

    advoga a sua hermenutica, mas tambm porque no raro ficarmos impressionados com a repetio,

    quase ipsis verbis, das mesmas ideias, como o caso de alguns passos das duas obras que mais

    trabalhmos neste estudo, O Conflito das Interpretaes e Da Interpretao: Ensaio sobre Freud.

    Seja como for, impossvel escamotear a riqueza, o aspecto multifacetado e a densidade de umpensamento como o que nos presente, pelo vontade com que se se move em campos to diversos

    como a fenomenologia, o existencialismo, a psicanlise, a filosofia reflexiva, o estruturalismo, a filosofia

    analtica, a semiologia e a lingustica ou a semntica e a hermenutica, entre outras.

    Trata-se, portanto, de uma obra viva, aberta e no mumificada ou fechada dentro de si mesma,

    mas de uma obra que quer compreender e se quer compreender pela mediao de outros, como, alis, o

    exige a sua proposta hermenutica. Se a questo hermenutica , de resto, a sua preocupao central

    durante a maior parte da sua vida e, por isso tambm, grande parte da sua obra lhe dedicada e se se

    trata de dilucidar o problema filosfico da compreenso hermenutica, isso s possvel atravs da

    mediao, na convico de Ricoeur, mediao essa proporcionada por todos os campos atrs referidos.

    que no h compreenso e, consequentemente, interpretao sem mediao. A mediao condio de

    possibilidade da compreenso e da interpretao. Por isso, a sua obra se caracteriza pelo dilogoconstante, atento e vivo, aberto e crtico, que mantm com todos os ramos do saber dentro das chamadas

    Cincias Humanas e, assim, todo esse dilogo, indispensvel e imprescindvel pela mediao que

    possibilita, se encontra subordinado questo central que a questo hermenutica e em vista da mesma

    questo hermenutica.

    Por todas estas razes, a entrada no pensamento de Ricoeur no fcil, porque constantemente

    apela nossa meditao e ao nosso contnuo esforo, empenhamento e participao na sua compreenso.

    neste contexto que se pode compreender o objectivo deste trabalho: aceder compreenso da

    hermenutica de Paul Ricoeur e possibilitar a nossa prpria compreenso desse pensamento e do que ele

    nos diz. De facto, no tanto o dizer(porque o dizer desvanece-se no prprio instante em que se acaba dedizer e mal acaba de se dizer), antes aquilo que o dizer implica, a saber, o que dito, o que se diz, o ditodo dizer, ou, como melhor diz o francs, le dit du dire (porque o dito, esse subsiste), e precisamente

    isso que nos interessa compreender, para melhor nos compreendermos como homens, atravs dessas

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    indispensveis mediaes que o prprio RICOEUR tanto acentuou do texto ou, em geral, do outro,

    daquilo que outro face a ns, do qual o texto s uma metfora ou um modelo exemplar. S assim nos

    compreenderemos como homens, pois h muito que perdemos a iluso de, fechados dentro de ns,

    solipsistas, mumificados, estticos, mortos, nos podermos conhecer e compreender na nossa humanidade.

    Ora estamos e somos vivos e no queremos, meramente, que a vida e o tempo passem por ns, no

    queremos limitar-nos a estar na vida e no tempo como objectos mortos, ns queremos viver a prpria vidae o prprio tempo. Por isso, somos ex-sistncia. E viver a vida e o tempo viver em o mundo, no

    mundo e com o mundo, mas tambm com os outros. E essencialmente atravs deles, da nossa inter-

    relao ao mundo e aos outros e da inter-relao do mundo e dos outros a ns, atravs desta contnua

    dialctica de vai-e-vem, que nos compreenderemos a ns prprios, j que somos seres-no-mundo e seres-

    com-outros.

    A hermenutica de Ricoeur no consiste tanto na construo/captao do sentido dos smbolos,

    dos mitos e das metforas, num primeiro momento, pelo seu excesso de sentido ou pelo seu potencial de

    sentido, ou seja, porque contm sempre mais sentido do que aquele que exprimem verbal e literalmente e

    por isso mesmo necessitam de ser interpretados, e, posteriormente, sobre a narrativa, na qual salienta o

    seu carcter inventivo e criador, mas no esforo efectivo de compreenso de ns prprios e do mundo.

    que a narrao permite a compreenso de ns prprios numa dimenso temporal, isto , histrica, mas,

    mais que isso, permite a compreenso de ns prprios na nossa historicidade.

    Contudo, da falta de sistematicidade do pensamento filosfico de Ricoeur e da sua aparente falta

    de unidade no se deve concluir que no existe uma articulao e uma coerncia interna no seu itinerrio

    filosfico. Assim, ao longo da sua produo filosfica possvel discriminar uma evoluo e um

    desenvolvimento que vo desde os anos de juventude, em que so visveis as influncias que sofreu, alis

    muito em resultado daquela que foi a sua educao e a sua formao (Gabriel Marcel e o existencialismo,

    Emmanuel Mounier e o personalismo e Edmundo Husserl e a fenomenologia), fase esta que vai at 1950;

    Num segundo momento, a fenomenologia o seu centro de interesse at 1960; Muito em resultado das

    suas investigaes e reflexes sobre a fenomenologia passa e centra-se na hermenutica at 1990;

    Finalmente, da hermenutica filosfica passa para uma filosofia prtica, desenvolvendo uma reflexosobre temas ticos e polticos. Esta evoluo implica, simultnea e concomitante, um alargamento da sua

    reflexo e do seu objecto, que se vai estendendo e passando por temas como os da vontade, do mal e da

    finitude (Philosophie de la volont: Le volontaire et l involuntaire (tomo I), Finitude et culpabilit: L

    homme faillible (tomo II); Finitude et culpabilit: La symbolique du mal (tomo III), aos temas

    propriamente j hermenuticos, da subjectividade, do imaginrio, da linguagem, do smbolo, da metfora,

    e, ainda, da aco e da narrativa (De l interprtation: Essai sur Freud; Le conflit des interprtations;La

    mtafhore vive;La smantique de l action; Temps et rcit;Du texte l action: Essai d interprtation).

    A aco e a narrativa alargam o conceito de texto, j que a aco perspectivada como um texto

    narrativo, at desembocar numa reflexo sobre a tica da aco humana e da aco poltica, onde

    desenvolve temas como os da liberdade, do compromisso e da responsabilidade, da esperana, do

    reconhecimento e da justia (Soi-mme comme un autre; thique et responsabilit; Le juste I e II; Lammoire, l histoire, l oublie Parcours de la reconnaissance).

    E ao longo destas fases e do longo desvio por caminhos e temas to diversos, possvel

    encontrar um fio condutor e uma trajectria coerente num filsofo cujo itinerrio reflecte fielmente as

    mltiplas manifestaes da filosofia no sculo XX, como bem refere Villaverde.

    Importa, contudo, realar que no fundo do projecto filosfico e hermenutico de Ricoeur (toda a

    filosofia hermenutica) se encontra sempre a mesma preocupao central e perene: a preocupao

    antropolgica. Compreender o homem, quem somos e quem sou, na nossa historicidade. Assim, a

    hermenutica no s um trabalho de procura e apropriao do sentido dos textos, dos smbolos ou da

    aco, na dimenso temporal de uma narrativa, mas, sobretudo, um trabalho de compreenso de ns

    prprios e do mundo em que vivemos. Da o projecto de uma Hermenutica Antropolgica ou de uma

    Antropologia Hermenutica. Por isso, para Ricoeur, toda a filosofia hermenutica, porquanto o trabalho

    da interpretao penetrado pela profunda inteno de vencer as distncias e as diferenas culturais,

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    harmonizando o leitor/intrprete com o texto que se lhe tornou estranho, e incorporando o seu sentido na

    compreenso actual que um homem capaz de ter de si mesmo, atravs da necessria mediao do

    prprio texto.

    Da o caminho mais longo, nas suas palavras a via longa, que comea na linguagem, porque

    na linguagem que o mundo e o homem se dizem, mantendo-se desta forma o contacto com as

    disciplinas que exercem o trabalho de interpretao, a Histria, a Psicologia, e, em geral, as cinciasHumanas via longa essa que Ricoeur escolheu para a sua hermenutica, porque se pretende levar a

    reflexo at ao nvel da ontologia, j que, afinal, o desejo desta ontologia que anima todo o

    empreendimento, e porque sempre tambm na linguagem que toda a compreenso ontolgica atinge a

    sua expresso.

    Esta via longa ou indirecta surge em contraposio via curta, ao atalho directo, como

    Ricoeur lhe chama, seguido por Heidegger em Ser e Tempoque, ao situar-se directamente na analtica do

    Dasein e ao afirmar que a linguagem abertura ao ser ou o local de revelao do ser (sein), j est

    directamente na ontologia, podendo por isso mesmo formular imediatamente a questo ontolgico-

    hermenutica: Que ente este cujo modo de ser consiste na compreenso?, assim se situando desde logo

    numa ontologia da compreenso, porquanto compreender o modo de ser do homem Dasein (Cf.

    RICOEUR, 1969: 13-15).

    Por outro lado, a via longa exigida como caminho para a compreenso, j que no h

    compreenso sem mediao. O pressuposto de partida que no h conhecimento imediato de si. Os trs

    mestres da suspeita Marx, Nietzsche e Freud puseram a nu essa grande iluso da modernidade: no h

    uma compreenso imediata e intuitiva de si. O cogito , na verdade, uma verdade v, ainda que

    invencvel, e tambm um lugar vazio. Ela um primeiro passo que no leva a nada nem a lugar

    nenhum, porque um passo que no pode ser seguido por nenhum outro, e o egodo ego cogito , final,

    um beco sem sada, pois que no se pode captar no espelho dos seus objectos, das suas obras e finalmente

    dos seus actos (RICOEUR, 1969: 21-22). O homem s pode conhecer-se atravs das suas expresses, no

    jogo contnuo e sempre inacabado da sua figurao, re-figurao e reconfigurao, ou, dito de outro

    modo, toda a compreenso sempre o resultado de uma mediao ou de uma interpretao, ela prpriatambm sempre mediada. De facto, o homem no transparente para si mesmo ou no teria sentido esta

    pergunta que continuamente pomos a ns prprios: Quem sou? Qual o sentido da minha existncia e da

    vida?

    A interpretao leva, assim, ao conhecimento indirecto da nossa existncia, pois o texto

    interpretado para compreender a existncia que o prprio texto expressa e fixa. O sujeito que se interpreta

    e compreende ao interpretar os sinais j no o cogito: um existente que descobre, pela exegese da sua

    vida, que j est posto no ser antes mesmo de se pr e de se possuir. Existir ser interpretado.

    (RICOEUR, 1969: 15). O cogito no mais esse acto pretensioso, ou, dito de forma mais clara, essa

    pretenso de se pr a si mesmo (como auto-posio), mas descobre-se como j posto no ser (RICOEUR,

    1969: 25).

    A preocupao pelo homem situa-se, pois, no incio da reflexo hermenutica de Ricoeur, comoprocura da resposta questo Quem sou? Quem somos como homens na nossa humanidade? Quem o

    homem? E necessrio saber quem somos para podermos agir como homens e para podermos vir a ser

    quem somos, mas sem, afinal, nunca o chegarmos a ser, dada a nossa condio de finitude, ou, como diz

    Heidegger, de ser-para-a-morte. O homem, mais que ser, descobre-se sobretudo como possibilidade de

    ser.

    A via longa ainda exigida a um sujeito finito que no tem conhecimento ou evidncia

    imediata de si e s mediatamente, pelas diferentes e conflituantes interpretaes, nenhuma a poder

    instaurar-se como nica, se pode desvendar atravs das obras que expressam o seu esforo e o seu desejo

    de existir. O percurso em direco a si-mesmo s possvel afinal pela via longa, atravs do outro,

    tomando aqui o outrono sentido lato, de tudo o que outro face a mim, seja o texto, a narrao ou o

    outro-eu. O outro si, o outro homem. L homme est cette unit plurale et collegiale dans laquelle l unit

    de destination et la diffrence des destines se comprennent l une par lautre (RICOEUR, 1977 c: 154).

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    A dimenso da alteridade e, com ela, as questes ticas e polticas, se bem que j presentes nas

    suas primeiras obras, passam a ter uma presena e uma importncia mais agudas nas ltimas obras de

    Ricoeur. Em Soi-mme comme un autre e em Parcours de Reconnaissance o autor caminha para uma

    hermenutica do si e para uma hermenutica da reciprocidade.

    De facto, o carcter temporal da experincia humana deixa-se narrar e a narrativa, seja histrica

    ou ficcional, prefigurao, figurao e reconfigurao dessa mesma experincia. Assim, a narrativa omelhor meio de nos conhecermos a ns prprios. Pela mediao da prpria narrao o si encontra a sua

    prpria identidade (ipse), reconhecendo-se simultaneamente a si-mesmo atravs do reconhecimento da

    sua mesmidade ao longo das suas mutaes temporais (idem). tambm pela narrao que o homem

    percebe a alteridade do outro, o outro como um outro si-mesmo ou outro-eu e s ento o homem pessoa.

    O ideal da pessoa Viver uma vida boa, com e para os outros, em instituies justas, ideal

    simultaneamente tico e poltico.

    A existncia humana, paradoxal e trgica, descobre-se como contingncia, como finitude, como

    desejo de ser, como falvel e s pode compreender-se a si mesma e dar-se sentido atravs da interpretao

    e da apropriao dos sentidos que a prpria interpretao nos revela. Apanhado no meio do tempo, porque

    quando se nasce nasce-se dentro dum tempo, dentro de uma linguagem, dentro de uma histria e de uma

    tradio, j posto no ser, o destino do homem reencontrar-se da perdio inicial e situar-se no seu

    tempo, atravs da interpretao e do conflito de interpretaes que o texto, a narrao, os smbolos, os

    sonhos, a arte geram. Interpretaes, contudo, sempre abertas a novos sentidos, a novos mundos, porque o

    texto sempre abertura a novos mundos e a novas apropriaes, a novas possibilidades interpretativas,

    nunca esgotadas. A prpria ontologia no dissocivel da interpretao no jogo e no crculo entre

    interpretar e ser interpretado, pois todas as interpretaes, ainda que conflituosas ou mesmo

    contraditrias, so igualmente vlidas (RICOEUR, 1969: 126-27).

    SEGUNDA PARTE

    1. O percurso filosfico de Ricoeur: da fenomenologia hermenuticaAtravs da fenomenologia at desaguar na hermenutica: eis o percurso filosfico de Ricoeur.1

    Percurso este, alis, que tambm comum a Heidegger (1971: 7) e a Gadamer. Em Verdade e

    Mtodo, Gadamer declara, logo no prefcio, a sua dvida fenomenologia mi libro se ascienta

    metodolgicamente sobre una base fenomenolgica, acrescentando, mais adiante, que algumas das

    anlises que faz, como a do jogo e a da linguagem, so puramente fenomenolgicas. (GADAMER, 1977:

    19; Cf. p. 27).Depois de pensar criticamente a fenomenologia, Ricoeur estabelece as relaes muito estreitas

    que existem entre a fenomenologia e a hermenutica e resume-as em duas teses que pretende demonstrar:

    Premire thse: - Ce que lhermenutique a ruin, ce nest pas la phnomenologie, mais une de

    ses interprtations, savoir son interprtation idaliste par Husserl lui-mme. (RICOEUR, 1975: 31).

    Deuxime thse: - Par del la simple opposition il y a, entre phnomnologie et hermneutique,

    une appartenance muttuelle quil importe dexpliciter. () Dautre part, lhermneutique sdifie sur la

    base de la phnomnologie (): la phnomnologie reste lindpassable prsupposition de

    lhermneutique.

    Dautre part, la phnomnologie ne peut se constituer elle-mme sans une prsupposition

    hermneutique (RICOEUR, 1975 : 32).2 Dito de uma forma mais simples: Toda a hermentutica

    fenomenlogica, toda a fenomenologia hermenutica.

    1 A princpio, Ricoeur faz apenas uma fenomenologia da vontade em O Voluntrio e o Involuntrio, mas passa,

    depois, para uma hermenutica da vontade, o que o leva at psicanlise em De linterprtation. Essai sur Freud, jque h compreenso ao nvel da vontade, enquanto todo o querer implica um compreender.

    2O sublinhado do autor. Quando o sublinhado for nosso ser devidamente referenciado.

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    De facto, a hermenutica destruiu e arruinou a interpretao idealista da fenomenologia, do

    prprio Husserl. O idealismo husserliano no resiste e sucumbe crtica da hermentutica. Seno

    vejamos:

    A fenomenologia de Husserl reivindica, como ideal de cientificidade, um pontoarquimdico, uma fundamentao ou justificao ltima, que se pe a si mesma, uma exigncia de

    radicalidade.

    A esta exigncia, impossvel, contrape Ricoeur um limite fundamental: la condition ontologique

    de la comprhension (RICOEUR, 1975: 38), que pode ser expressa desta maneira celui qui interrogue a

    part la chose mme sur laquelle il interroge. (RICOEUR, 1975:39). Essa condio ontolgica , pois,

    uma condio de pertena. Nesta condio exprime-se o ser-no-mundo de Heidegger, Lexpression tre-

    au-monde exprime () le caractre dhorizon de ce quoi nous sommes lis. Cest bien ltre-au-monde

    qui prcde la rflexion, (RICOEUR, 1975:39), e exprime-se tambm o conceito de pertena

    gadameriano (Cf. GADAMER, 1977: 360-370). Antes de pensarmos o mundo j temos mundo e j

    estamos no mundo. J pertencemos ao mundo antes de ele nos pertencer a ns e antes de o dominarmos.

    Tambm j somos e temos histria e tradio antes de a pensarmos. Por eso la primera de todas las

    condiciones hermeneuticas es la precomprensin que surge del tener que ver com el mismo asunto

    (GADAMER, 1977: 364). Por isso La antecipacion de sentido que guia nuestra compreension () no es

    un acto de la subjetividad sino que se determina desde la comunidad que nos une con la tradicin

    (GADAMER, 1977: 363)3. A esta antecipao, que Heidegger tinha sido o primeiro a explicitar, (Cf.

    HEIDEGGER, 1971, 31) chama Gadamer antecipao da perfeio (Cf. GADAMER, 1977:363). E

    aqui se patenteia a estrutura circular de toda a compreenso, que, porque no se trata de um crculo

    vicioso, como j Heidegger fizera notar (Cf. HEIDEGGER, 1971: 32), talvez fosse melhor chamar

    estrutura em espiral de toda a compreenso.

    Ora, se antes de escolhermos o nosso lugar e o nosso ponto de partida, j nos descobrimos situados

    (GADAMER, 1977: 370-377) temos que recusar necessariamente a problemtica de um comeo ou deum ponto de partida absoluto. No partimos do zero, le philosophie ne parle pas de nulle part

    (RICOEUR, 1965: 55), ou ento, como diz Gadamer, Con ello sigue sin satisfacerse el requisito de la

    autofundamentacion reflexiva tal como se plantea desde la filosofia transcendental, especulativa de

    Fichte, Hegel y Husserl. Pro puede considerarse que la conversacin com el conjunto de nuestra

    tradicin filosfica, en la que nos encontramos y que nosotros mismos somos en cuanto que filosofamos,

    carece de fundamento? Hace falta fundamentar lo que de todos modos nos est sustentando desde

    siempre? (GADAMER. 1977:20). E atente-se bem nesta ltima questo, que uma questo puramente

    retrica, mas que consuma a ruptura hermenutica com uma filosofia do tipo da de Fichte, Hegel ou

    Husserl, por um lado, e implica o renunciar justificao ltima de Husserl, por outro lado, assim como

    implica finalmente um retorno a uma filosofia da finitude. E isto porque um ser que participa

    necessariamente um ser finito, e ento a finitude desbanca a subjectividade transcendental e a suapretenso de erigir-se em fundamento ltimo ou, dizendo ao contrrio, Cette prtension, cette dmesure,

    cette hybris, fait alors paratre par contraste la relation dappartenance comme finitude. (RICOEUR,

    1975: 39).

    3 Da, alis, a reabilitao gadameriana dos preconceitos, termo que, desde o Iluminismo, estava negativamente

    conotado, e a reabilitao da autoridade e da tradio. Efectivamente, o pr-conceito (ou pr-juzo), no sentido positivoque este autor lhe confere, ou ainda a autoridade e a tradio, so condio prvia de toda a compreenso, ou seja,no h compreenso sem pr-compreenso (ou preconceito), porque s podemos compreender a partir de umhorizonte de sentido que j temos de antemo, determinado pela nossa pertena a um mundo e a uma tradio edentro dos seus pressupostos. O crculo hermenutico (ou arco hermenutico, como lhe chama Ricoeur) pe a nu ojogo que vai da pr-compreenso compreenso, no processo recorrente, contnuo e sempre inacabado, decompreender mais para compreender melhor. No h, pois, compreenso sem pr-compreenso, por um lado, e nuncah uma compreenso ou interpretao ltima, por outro, j que cada horizonte a partir do qual se compreende apenas um horizonte, este horizonte, e podemos sempre retomar o processo, mais tarde, desde um outro horizonte, oque nos permitir compreender no s mais, mas melhor ou, ainda, de outro modo. (Cf. GADAMER, 1977: 344-353).

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    Por outro lado, para Husserl La fondation principielle est de lordre de

    lintuition. (RICOEUR, 1975 : 34) A verdade primeira, fundamento ltimo, auto-fundamento, tem

    necessariamente de ser intuitiva. Ora, lexigence husserlienne du retour lintuition soppose la

    ncessit pour toute comprhension dtre mdiatise par une interprtation (RICOEUR, 1975 : 40).

    Toda a compreenso tem de ser mediatizada por uma interpretao j que todo o imediato j

    mediado, e, sendo assim, e por isso, ope-se radicalmente a toda a exigncia e a toda a tentativa deedificar um saber absoluto de tipo hegeliano atravs de uma mediao total (Cf. RICOEUR, 1975: 43; Cf.

    GADAMER, 1977: 420 e 565). A interpretao um desenvolvimento da compreenso e por ela o

    compreender apropria-se, compreendendo, do compreendido. A interpretao no transforma a

    compreenso noutra coisa diferente, mas f-la ser ela mesma, explicitando-a, tematizando-a (Cf.

    HEIDEGGER, 1971: 32). Assim o campo da interpretao to vasto como o da compreenso e

    igualmente apresenta uma estrutura de antecipao. Cette dpendance de linterprtation de la

    comprhension explique que lexplication elle aussi prcde toujours la rflexion et devance toute

    constitution de lobjet par un sujet souverain. Cet antcdant sexprime () par la structure

    danticipation (RICOEUR, 1975:40), j analisada por Heidegger (Cf. HEIDEGGER, 1971 : 32).

    intil pretender um contacto imediato e intuitivo com a origem j que esta dada na

    compreenso sempre mediada pela interpretao. E a interpretao situa sempre o intrprete in medias res

    e nunca no comeo ou no fim. Este in media resem que sempre surgimos a nossa situao hermenutica

    e marca a nossa diferena epocal. En quel sens ce dveloppement de toute comprhension en

    interprtation soppose-t-elle au projet husserlien de fondation dernire? Essentiellement en ceci que toute

    interprtation place linterprte in medias res et jamais au commencement ou la fin (RICOEUR,

    1975:43).

    Que a compreenso sempre mediada por uma interpretao, alis, o que est bem patente

    quando conversamos utilizando a linguagem natural. Por exemplo, numa situao de dilogo, explicar e

    compreender quase se sobrepem e no se dissociam. Quando no compreendemos espontaneamente o

    que o outro diz pedimos-lhe uma explicao, perguntamos-lhe o que quer dizer, e a explicao que ele

    nos d permite-nos compreender melhor. E isto precede toda a exegese e toda a filosofia! Para alm domais, e diferena do que acontece nas linguagens artificiais, unvocas, lusage des langues naturelles

    repose sur la valeur polysmique des mots (RICOEUR, 1975:41). Na linguagem natural as palavras

    possuem um potencial de sentido, um excesso, que no se deixa esgotar por nenhuma utilizao actual,

    embora exija ser crivado e determinado pelo contexto para que haja entendimento dos interlocutores e

    essa a funo da interpretao.

    Au-del de la polysmie de mots dans la conversation, se dcouvre une polysmie du texte qui

    invite une lecture pluriel (RICOEUR, 1975:42). No s a palavra, mas tambm o texto tm valor

    polissmico; tambm o texto tem um potencial de sentido, um excesso, que no se esgota numa das suas

    interpretaes, at porque o sentido do texto autnomo em relao inteno do autor, em relao

    situao inicial do discurso, em relao ao seu primeiro destinatrio. Por isso, Des possibilits

    dinterprtations multiples sont alors ouvertes par un texte (RICOEUR, 1975:42). O potencial sempremais rico que uma das suas actualizaes, por isso o potencial no se esgota nem se consome em

    nenhuma das suas actualizaes e isto que exclui a possibilidade de um saber absoluto e de uma

    mediao total. Or lhypothse mme de lhermneutique philosophique est que linterprtation est un

    procs ouvert quaucune vision ne conclut. (RICOEUR, 1975:43) Absolutamente contrrio a isto o

    ideal da fundao intuitiva de Husserl, que o de uma interpretao que equivalesse mediao total,

    convertendo-se assim em viso absoluta.

    Ora se o ideal de cientificidade da fenomenologia de Husserl repousa numa

    justificao ltima e se esse fundamento radical intuitivo, Husserl encontrou-o na subjectividade

    transcendental. Le lieu de lintuitivit plnire est la subjectivit. Toute transcendance est douteuse,

    limmanence seule est indubitable (RICOEUR, 1975:35). A imanncia absolutamente indubitvel jque no se d por perfis ou esboos e, portanto, no tem nada de presuntivo, mais permet seule la

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    coincidance de la rflexion ce qui vient juste dtre vcu (RICOEUR, 1975:35). Claro que uma

    posio destas pressupe que o sujeito no se engana acerca de si mesmo, que ele lmpido e transparente

    para si mesmo. E isto para Ricoeur que duvidoso e da a necessidade de falar das iluses do sujeito.

    Que le lieu de la fondation dernire soit la subjectivit, que toute transcendance soit douteuse et

    seule limmanence indubitable, - cela devient son tour minemment douteux, ds lors quil apparat que

    le cogito lui aussi peut tre soumis la critique radicale que la phnomnologie applique par ailleurs tout apparatre (RICOEUR, 1975:43).

    Duvidou-se da coisa, do objecto, porque se d por esboos, presuntivamente, no se duvidou do

    sujeito porque no se d por perfis e, portanto, no comporta nada de presuntivo. Ora, Les resus de la

    conscience de soi sont plus retorses que celles de la chose. (RICOEUR, 1975:44). Ento o conhecimento

    de si pode ser mais enganoso que o da coisa e decerto o mais perigoso, porquanto nem nos apercebemos

    de que estamos enganados. O conhecimento de si mesmo pode ser to duvidoso quanto o do objecto, j

    que o conhecimento de si, enquanto dilogo da alma consigo mesma como afirma Ricoeur pode ser

    sistematicamente distorcido pela violncia e por todas as intruses das estruturas de dominao na

    comunicao interiorizada. Les distorcions fondamentales de la communication doivent tre prises en

    considration par legologie au mme titre que les illusions de la perception dans la constitution de la

    chose. (RICOEUR, 1975:45-46). Se o preconceito uma estrutura fundamental da comunicao na sua

    forma social e institucional, se o sujeito se engana, por isso, acerca de si mesmo, se o sujeito se ilude

    acerca de si mesmo e por isso no s ideolgico como uma ideologia para si mesmo, h que fazer uma

    crtica das ideologias. Critique das ideologies et psychanalyse nous donnent aujourdhui les moyens de

    complter la critique de lobjet par une critique de sujet. (RICOEUR, 1975:44). Mas esta crtica das

    ideologias cette critique repose sur llment de distanciation ().

    Ce concept de distantiation est le correctif dialectique de celui dappartenance, en ce sens que

    notre manire dappartenir la tradition historique, cest de lui appartenir sous la condition dune relation

    de distance qui oscille entre lloignement et la proximit. Interprter, cest rendre proche le lointain.

    (RICOEUR, 1975:46). Existir , ao mesmo tempo, pertena e distncia. Isto mesmo diz tambm

    Gadamer. La posicin entre extraeza y familiaridad que ocupa para nosostros la tradicin es el puntomdio entre la objectividad de la distancia histrica y la pertenencia a una tradicin. Y este punto mdio

    es el verdadero topos de la hermenutica. (GADAMER, 1977:365; Cf. ainda pp. 360-370). A partir da

    distncia possvel fundar-se uma crtica das ideologias, mas essa crtica das ideologias tem de dar conta

    do fenmeno ideolgico e do seu carcter inultrapassvel e, por outro lado, tem de mostrar a possibilidade

    de comear uma crtica das ideologias, embora sem nunca poder acab-la ou consider-la como acabada.

    No h reflexo total. E isto pode ser feito e levado a cabo pois que o sujeito de que a hermenutica fala

    est desde sempre aberto e exposto aos efeitos ou s influncias histricas. Ricoeur refere-se aqui a uma

    famosa noo introduzida por Gadamer, o qual, alis, apresenta, a este propsito, certa ambiguidade

    terminolgica, j que umas vezes aparece como El principio de la historia efectual

    Wirkungsgeschichte (GADAMER, 1977:370-377) e, outras vezes, mais frente no decurso da obra,

    aparece como Anlisis de la conciencia de la historia efectual Wirkungsgeschichtliches Bewusstsein(GADAMER, 1977:415). Esta ambiguidade terminolgica , alis, assinalada pelo prprio Gadamer logo

    no prefcio: Esta ambiguidad consiste en que com l se designa por una parte lo producido por el curso

    de la historia y la conscincia determinada por ella, y por la outra a la conciencia de este mismo haberse

    producido y estar determinado (GADAMER, 1977:16). Se pertena e distncia caracterizam o homem

    como exposto aos efeitos ou s influncias histricas (GADAMER, 1977: 415-458), la critique des

    idologies peut tre icorpore, comme un segment objectif et explicatif, dans le projet dlargir et de

    restaurer la communication et la comprhension de soi (RICOEUR, 1975:47).

    Ora o modo radical pelo qual Ricoeur pe em questo o primado da subjectividade tornando o

    texto e o seu sentido autnomo como objectos primaciais da hermenutica. Une manire radicale de

    mettre en question le primat de la subjectivit est de prendre pour axe hermneutique la thorie du texte.

    Dans la mesure o le sens dun texte sest rendu autonome par rapport lintention subjective de son

    auteur, la question essentielle nest pas de retrouver, derrire le texte, lintention perdue, mais de

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    dployer, devant le texte, le monde quil ouvre et dcouvre. (RICOEUR, 1975:47). O principal no

    reencontrar detrs e sob o texto a inteno subjectiva do autor e toda a hermenutica que pretenda isto,

    como a de Schleiermacher ou de Dilthey, est ainda de alguma maneira presa das aporias da

    subjectividade e insere-se ainda dentro da tradio de uma Filosofia do Sujeito o principal sim

    explicitar, frente ao texto e a partir do texto, o mundo que ele abre, descobre e desvela. () La tche

    hermneutique est de discerner la chose du texte (Gadamer) et non la psychologie de lauteur. O textosuspende uma referncia de primeiro grau, prpria do discurso do quotidiano, e liberta uma referncia de

    segundo grau o le monde est manifeste non plus comme ensemble dobjets manipulables mais comme

    horizon de notre vie et de notre projet (RICOEUR, 1975:48).

    A teoria idealista husserliana hipostasiou a subjectividade esquecendo-se que a prpria noo de

    intencionalidade, descoberta central e querida de Husserl, remete fundamentalmente para fora da

    conscincia. E isto pela prpria definio que Husserl prope da intencionalidade Toda a conscincia

    conscincia de alguma coisa. Neste sentido a prpria fenomenologia de Husserl foi infiel sua prpria

    proposta. Relembremos a este respeito as belas expresses de Sartre, dizendo por exemplo que a

    conscincia um deslizamento para fora de si, essa recusa de ser substncia que a constitui como

    conscincia (SARTRE, 1968:29)4, A esta necessidade que tem a conscincia de existir como

    conscincia de outra coisa diferente dela chamou Husserl intencionalidade. Ser estourar (clater) no

    mundo (SARTRE, 1968:30). E ento no nunca em nenhum refgio, mais ou menos solipsista, no

    numa ilha deserta, no fechando-nos, isolados, que nos descobriremos: na rua, na cidade, no meio da

    multido, coisa entre as coisas, homem entre os homens (SARTRE, 1968:31).

    Contra o idealismo husserliano, preso nas malhas da subjectividade transcendental, contrape a

    hermenutica de dplacer laxe de linterprtation de la question de la subjectivit celle du monde

    () en subordonnant la question de lauteur celle de la chose du texte (RICOEUR, 1975 :49).

    Opondo-se tese idealista da fenomenologia de Husserl lhermneutique invite faire de la

    subjectivit la dernire, et non la premire catgorie dune thorie de la comprhension. La subjectivit

    doit tre perdue comme origine, si elle doit tre retrouv dans un rle plus modeste que celui de lorigine

    radicale (RICOEUR, 1975:49). A subjectividade ltima e no primeira. No se parte da compreensode si, chega-se compreenso de si. lacte de la subjectivit est moins ce qui inaugure la

    comprhension que ce qui lachve. Cet acte terminal peut tre nonc comme appropriation.

    (RICOEUR, 1975 :50 ; Cf. tambm HEIDEGGER, 1971 : 32 e GADAMER, 1977: 378-383 e 566 ).

    Approprier, cest faire que ce qui tait tranger devient propre. () Mais la chose du texte ne devient

    propre que si je me dsapproprie de moi-mme (RICOEUR, 1975 :50 ; Cf. RICOEUR, 1969 : 20).

    2.Aquesto do sujeitoA hermenutica arruinou, como vimos, no a fenomenologia mas uma das suas interpretaes, a

    sua interpretao idealista. E arruinou-a enquanto ela exige uma auto-fundamentao (que impossvel)

    encontrada na auto-posio indubitvel e apodctica da subjectividade intuitiva (impossvel, pois o

    imediato sempre j mediato). A subjectividade, o sujeito , ento, institudo em verdade radical,original, ltima. O sujeito, porque captado intuitivamente, uma certeza e uma verdade de que no se

    pode duvidar e s por ele se podem estabelecer outras verdades. Isto implica uma confiana cega no

    sujeito, raiz e fonte de toda a verdade, e pressupe que o sujeito no se engana acerca de si mesmo. Que

    ele , para si mesmo, claro e distinto, transparente e lmpido. Ora, esta pressuposio sumamente

    duvidosa, sobretudo hoje que conhecemos as iluses que o sujeito teceu acerca de si mesmo, ao longo da

    histria. necessrio, ento, falar das iluses do sujeito, mesmo imperativo, depois de Marx, Nietzsche

    e Freud, os trs mestres da suspeita, os trs crticos da Conscincia falsa, os trs destruidores. O prprio

    Freud tem bem conscincia disto, ao afirmar que, ao longo da histria, houve trs grandes golpes dados

    imagem narcsica que o homem tem de si mesmo. O primeiro foi o de Coprnico e da revoluo cientfica

    4Sobre esta questo, a leitura integral deste texto esclarecedora: J. P. Sartre (1968), Uma ideia fundamental da

    fenomenologia de Husserl: a intencionalidade, in: SITUAES I, Lisboa, Publ. Europa Amrica, pg.28-31.

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    moderna, ao arruinar a iluso narcsica segundo a qual o homem habitava o centro do universo e, por isso,

    era senhor e dominador desse universo. A segunda machadada veio de Darwin, que ps fim pretenso,

    de resto absurda, segundo a qual o homem seria um ser parte, cortado e separado do resto do reino

    animal e, por isso, senhor e dominador de toda a terra. Por fim, a ltima humilhao, vem do prprio

    Freud: o homem, que j sabia que no era o rei do cosmos, que j sabia que no era o rei da criao, fica,

    agora, a saber, tambm, que no , sequer, senhor de si mesmo. Ele e a sua querida conscincia, essatbua de salvao a que se agarrou com toda a fora logo que desabou a sua imagem do cosmos, com ele

    no centro, a quando da revoluo cientfica moderna, ele e a sua conscincia dizamos no passam de

    joguetes nas mos das pulses e das foras do seu prprio inconsciente (Cf. RICOEUR, 1969: 152).

    Parece-nos que seria tambm de citar Marx a propsito das feridas abertas na imagem narcsica que o

    homem tem de si mesmo. Basta lembrarmo-nos de algumas bem conhecidas e famosas afirmaes de

    Marx e Engels naIdeologia Alem: O que (os homens) so coincide portanto com a sua produo, isto ,

    tanto com aquilo que produzem como com a forma como produzem. Aquilo que os indivduos so

    depende portanto das condies materiais da sua produo (MARX&ENGELS, 1975:19). O que os

    homens so depende, portanto, tanto das foras produtivas e do seu desenvolvimento no estado actual,

    como das relaes sociais que lhes correspondem. A conscincia nunca pode ser mais do que o Ser

    consciente; e o Ser dos homens o seu processo de vida real (MARX&ENGELS, 1975:25). Sendo assim

    Marx tira a concluso No a conscincia que determina a vida, mas sim a vida que determina a

    conscincia (MARX&ENGELS, 1975:26). H, pois, que desmistificar as mistificaes que o sujeito tece

    acerca de si prprio. E isso s possvel, segundo Ricoeur, atravs de uma filosofia da reflexo, que tece,

    ao mesmo tempo, uma arqueologia (arque-o-logia) e uma teleologia do sujeito.H que atacar as iluses da conscincia de si. Iluso esta que, alis, resultou da destruio duma

    iluso anterior: a iluso da coisa. Depois de Descartes, o filsofo sabe que as coisas so duvidosas, que

    elas no so tais como aparecem, ou que elas no so o que parecem ser. Mas o filsofo no duvida que a

    conscincia no seja tal como aparece a si mesma. Depois da dvida sobre a coisa, eis-nos na dvida

    sobre a conscincia depois de Marx, Nietzsche e Freud (Cf. RICOEUR, 1969 : 152). Por isso, como

    defende Ricoeur, se torna necessria uma segunda revoluo copernicana. Se a primeira revoluocopernicana, a de Kant, marca o retorno ao sujeito perguntando pelas condies de possibilidade do

    conhecimento e declarando que todo o conhecimento do objecto determinado a priori, reduzindo assim

    o ser conhecido a fenmeno, a aparecer, e excluindo toda a possibilidade de acesso ao nmeno ou coisa-

    em-si, agora necessria uma segunda revoluo copernicana que estilhace as iluses que o sujeito tem

    de si mesmo. The fascination with subjective certainty can be as deceptive as the fascination with the

    world (). If, as Ricoeur argues, the first Copernican revolution in philosophy was the turn to the

    subject made by transcendental philosophy, there is an equal need to create a second Copernican

    revolution which breaks the bonds the subject makes with itself (DON IDHE, 1971:7).

    Se s uma filosofia reflexiva pode desbancar as iluses do sujeito, ela deve ser entendida, no

    entanto, de modo radicalmente diferente da filosofia tradicional, que tambm se diz reflexiva.

    La philosophie est rflexion () rflexion sur soi-mme. Mais qui signifie le soi ? Jadmets icique la position du Soi est la premire vrit pour le philosophe, du moins pour cette vaste tradition de la

    philosophie moderne qui part de Descartes, se dveloppe avec Kant, Fichte et le courant rflexif de la

    philosophie continentale (RICOEUR, 1969 : 322 ; Cf. tambm RICOEUR, 1965 : 50). E aqui Ricoeur

    expressa claramente a sua insero na tradio da filosofia ocidental. Para toda esta tradio a primeira

    verdade, o prottipo de toda a verdade, bem a primeira verdade cartesiana: Penso, existo, que uma

    verdade que se pe a si mesma, auto-posio, ou como Fichte dizia: um juzo ttico. Ela , ao mesmo

    tempo, posio de uma existncia e de um acto de pensamento, porquanto eu existo enquanto penso. Esta

    verdade no pode ser nem verificada nem deduzida de nenhuma outra, ou no seria primeira verdade, por

    isso que ela auto-posio de si mesma.

    Mais cette premire rfrence la position du Soi, comme existant et pensant, ne suffit

    caractriser la rflexion (RICOEUR, 1969 :322 ; Cf. ainda RICOEUR, 1965 : 51). preciso acrescentar

    uma segunda caracterstica da reflexo: rflexion nest pas intuition: ou, en termes positifs: la rflexion

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    est leffort pour ressaisir lego de lego cogito dans le miroir de ses objets, de ses uvres et finalement de

    ses actes. Or, porquoi la position de lego doit-elle tre ressaisie travers ses actes? Prcisment parce

    quelle nest donne ni dans une vidence psychologique, ni dans une vision mystique. Une philosophie

    rflexive est le contraire dune philosophie de limmdiat. La premire vrit je suis, je pense reste

    aussi abstraite et vide quelle est invincible; il lui faut tre mdiatise par les reprsentations, les

    actions, les uvres, les institutions, les monuments qui lobjectivent; cest dans ces objects () que legodoit se perdre et se trouver. Nous pouvons dire quune philosophie de la rflexion nest pas une

    philosophie de la conscience, si par conscience nous entendons la conscience immdiate de soi-mme. La

    conscience est une tche () mais elle est une tche parce quelle nest pas un donn (RICOEUR,

    1969 :322).

    preciso fazer uma arqueologia do sujeito, destruir as iluses que ele faz de si prprio, para que

    seja possvel ento uma teologia e a construo de uma verdade e de um conhecimento de si mesmo.

    Arqueologia e teleologia do sujeito: h, pois, entre as duas uma dialctica. Foi preciso destruir para

    construir. Alis a destruio que possibilita toda a nova construo.

    bem certo que eu sou. Isso indubitvel. Mas o que que eu sou? Isso que eu j no sei. je

    suis, mais que suis-je, moi qui suis? Voil ce que je ne sais plus. En dautres termes, la rflexion a perdu

    lassurance de la conscience. Ce qui je suis est aussi problmatique quil est apodictique que je suis

    (RICOEUR, 1969 :238).

    Desde Scrates que queremos conhecer-nos a ns prprios. Continuamos fiis a essa exigncia.

    Mas isso s possvel atravs da mediao de um outro. No h conhecimento directo e imediato de si

    mesmo. Para Ricoeur impossvel o homem conhecer-se a si mesmo directamente, imediatamente,

    introspectivamente. apenas por uma srie de desvios, de caminhos indirectos, que isso possvel. The

    reflective philosophy to which I appeal is at the outset opposed to any philosophy of the Cartesian type

    based on the transparency of the ego to itself, and to all philosophy of the Fichtean type based on the self-

    positing of that ego. Today this mistrust is reinforced by the conviction that the understanding of the self

    is always indirect and proceeds from the interpretation of signs given outside me in culture and history

    and from the appropriation of the meaning of these signs. (RICOEUR, Prefcio, IN: DON IDHE,1971: XV).

    Compreender sempre compreender-se. Mas compreender-se s possvel pela mediao do

    compreender o mundo, o ser, ou a vida. No h apropriao directa de si, o cogito intuitivo uma certeza

    sem verdade (Cf. RICOEUR, 1969: 323), uma verdade abstracta, v e intil e par consquent, la perte

    des illusions de la conscience est la condition de toute rappropriation du sujet vrai (RICOEUR,

    1969 :241). Uma filosofia da reflexo no , pois, uma filosofia da conscincia rflexion et conscience

    ne coincident plus; il faut perdre la conscience pour trouver le sujet (RICOEUR, 1969: 172). O sujeito

    tem de perder-se para poder encontrar-se. A destruio da conscincia visou, afinal, uma extenso, um

    aumento de conscincia (Cf. RICOEUR; 1969: 150). La conscience saugmente elle-mme en se

    recentrant sur son Autre (); elle se trouve en se perdant; elle se trouve, instruite et clarifie, en se

    perdant, narcisique. (RICOEUR, 1969 :153). Por isso a conscincia no ponto de partida mas ponto dechegada. No dado mas tarefa. No se trata de ser conscincia, mas de tornar-se conscincia (Cf.

    RICOEUR, 1969: 172;238;318;319; Cf. ainda RICOEUR, 1965: 53). Mas ela s se encontra mediatizada

    pelo seu Outro; assim, a filosofia reflexiva de que Ricoeur fala, no uma filosofia da reflexo abstracta,

    que fala de lado nenhum, mas uma filosofia da reflexo concreta, que fala mas situada. Telle est mon

    hypothse de travail philosophique: je lappelle la rflexion concrte, c'est--dire le Cogito mdiatis par

    tout lunivers des signes.(RICOEUR, 1969: 260).

    S uma mediao atravs dos signos torna possvel a compreenso de si. Esse universo de

    signos, que mediatiza, , para Ricoeur, por excelncia, o universo dos smbolos, das expresses de duplo

    sentido ou mltiplo sentido, em que dizendo uma coisa dizemos outra ou em que designamos um sentido

    indirecto no e pelo sentido directo. O smbolo possui uma dupla intencionalidade, por isso ele opaco,

    pois o sentido literal esconde o(s) sentido(s) simblico(s), a significao primria ou manifesta reenvia e

    remete para uma outra significao secundria dissimulada. Tal como na linguagem, no h univocidade.

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    Assim, para a sua compreenso, exigem o trabalho da interpretao e constituem-se mesmo no campo

    privilegiado da hermenutica. Por isso o smbolo excesso, potncia que no se esgota em nenhum

    acto, ce surcrot du symbole (RICOEUR, 1969: 16-17). O smbolo , pois uma relao de sentido a

    sentido, uma arquitectura de sentido, e cest dans cette liaison du sens au sens que reside ce que jai

    appell le plein du langage. Cette plenitude consiste en ceci que le second sens habite en quelque sorte le

    sens premier. (RICOEUR, 1965: 39; Cf. ainda RICOEUR, 1969: 16). Por isso, o smbolo apela e exigeum trabalho de interpretao e aqui que se situa o campo e a tarefa da hermenutica. Ce qui suscite ce

    travail (de interpretao) cest une structure intentionnelle qui ne consiste pas dans un rapport du sens la

    chose, mais dans une architecture du sens, dans un rapport du sens au sens, du sens second au sens

    premier, que ce rapport soit ou non danalogie, que le sens premier dissimule ou rvle le sens second.

    (RICOEUR, 1965: 26-27 : Cf. tambm RICOEUR, 1969: 260). E isto porque, como Ricoeur se apraz e

    encanta em repetir Le symbole donne penser. (RICOEUR, 1969: 46). O smbolo d que pensar, de

    facto. E esta expresso diz duas coisas: o smbolo d, porque no sou eu que ponho o sentido, o smbolo

    d o sentido. Mas o sentido que ele d para pensar. (RICOEUR, 1969:284).

    O smbolo apela a interpretao e a reflexo filosfica, a aurora da reflexo, (RICOEUR, 1965:

    47). Alis, sem o smbolo que o que provoca o pensamento e nos faz pensar, o discurso seria vazio,

    abstracto e vo. Mas no h que pensar atrs do smbolo. O que h a pensar diante e para diante do

    smbolo, a partir do smbolo e, assim, o smbolo recorre reflexo e a reflexo ao smbolo. (Cf.

    RICOEUR, 1965: 45-54).

    Comprendre le monde des signes, cest le moyen de se comprendre ; lunivers symbolique est le

    milieu de lauto-explication ; en effet, il ny aurait plus de problme de sens si les signes ntaient pas le

    moyen, le milieu, le mdium, grce quoi un existant humain cherche se situer, se projeter, se

    comprendre. En sens inverse, dautre part, cette relation entre dsir dtre et symbolisme signifie que la

    voie courte de lintuition de soi par soi est ferme ; lappropriation de mon dsir dexister est impossible

    par la voie courte de la conscience, seule la voie longue de linterprtation des signes est ouverte

    (RICOEUR, 1969:260). Por isso, la destruction du Cogito, comme tre qui se pose soi-mme, comme

    sujet absolu, est lenvers dune hermneutique du je suis en tant que celui-ci est constitu par sa relation ltre (RICOEUR, 1969: 232).

    Ora, se s me compreendo mediatizado, se o conhecimento de si no intuitivo, directo ou

    imediato, se reflectir no intuir mas mediatizar, ento dizendo que la rflexion nest pas intuition, nous

    permet dentrevoir la place de linterprtation dans la connaissance de soi-mme. Cette place est dsigne

    en creux par la diffrence mme entre rflexion et intuition (RICOEUR, 1969: 323). De facto, pela

    interpretao apropriamo-nos dos sentidos do smbolo, tornamos familiar, prximo, nosso, o que parecia

    distante. Assim, a tarefa da hermenutica a tarefa da compreenso de si ou, dito de outro modo, o que a

    hermenutica procura a compreenso de si mesmo atravs da compreenso do outro e dos outros.

    Definimos, at agora, a reflexo de modo negativo, dizendo o que no , e ela no intuio,

    mas podemos, agora, defini-la positivamente: la rflexion est appropriation de notre effort pour exister et

    de notre dsir dtre, travers les uvres qui tmoignent de cet effort e de ce dsir (RICOEUR, 1969:325). Ora cest ici que la rflexion fait appel une interprtation, et veut se muer en hermneutique.

    Telle est lultime racine de notre problme: elle rside dans cette connexion primitive entre lacte

    dexister et les signes que nous dployons dans nos uvres; la rflexion doit devenir interprtation, parce

    que je ne peux saisir lacte dexister ailleurs que dans des signes pars dans le monde. Cest pourquoi une

    philosophie rflexive doit inclure les rsultats des mthodes et des prsuppositions de toutes les sciences

    qui tentent de dchiffrer et dinterprter les signes de lhomme. (RICOEUR, 1969:325). Assim fica

    justificada, alis, a escolha de Ricoeur em seguir uma via longa e no uma via curta, como faz, por

    exemplo, Heidegger, fundando uma ontologia da compreenso e instituindo o compreender como modo

    de ser e no como modo de conhecer (RICOEUR, 1969: 10). Essa via longa exige contornos ou desvios

    constantes, pois que no possvel a apreenso directa e imediata de si, j que a compreenso de si s

    possvel nos e pelos desvios e no fim deles, s possvel mediatamente e no imediatamente. E da

    tambm o dilogo vivo e crtico que Ricoeur mantm com as cincias humanas aparece justificado, pois

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    que s assim se cumprem os desvios necessrios reapropriao de si. E, nesta obra, Ricoeur dialoga com

    o estruturalismo (Cf. RICOEUR, 1969: 29-63; 80-97; 233-262), a Psicanlise de Freud (Cf. RICOEUR,

    1969: 99-207 e ainda RICOEUR, 1965) e com os analistas da linguagem (Cf. RICOEUR, 1977 b: 3-137).

    Ainsi la rflexion doit tre doublement indirecte, dabord parce que lexistence ne satteste que

    dans les documents de la vie, mais aussi parce que la conscience est dabord conscience fausse et quil

    faut toujours slever par une critique corrective de la mcomprhension la comprhension(RICOEUR, 1969: 22). E, por isso, a lgica da hermenutica no uma lgica formal mas transcendental,

    elle stablit au niveau ds conditions de possibilite () des conditions de lappropriation de notre dsir

    dtre; cest en ce sens que la logique du double sens, propre lhermneutique, peut tre appele

    transcendantale (RICOEUR, 1969: 22).

    Fica tambm claro e justificado o facto de Ricoeur considerar que uma hermenutica filosfica,

    como teoria geral da interpretao, deve exercer uma verdadeira arbitragem, erigindo-se em rbitro do

    conflito das interpretaes e das suas pretenses totalitrias. que o smbolo no se esgota em nenhuma

    interpretao, ele , por essncia, potncia e excesso, ele sempre mais e d sempre mais. Sendo assim, a

    hermenutica filosfica, como Ricoeur tanto gosta de repetir, elle se prpare par l exercer sa tache la

    plus haute, qui serait un vritable arbitrage entre les prtentions totalitaires de chacune des

    interprtations. (RICOEUR, 1969: 18-19).

    Por isso tambm, esta hermenutica filosfica, que segue a via longa, permite e resiste tentao

    de separar o conceito de verdade do conceito de mtodo (RICOEUR, 1969: 15, 19), tal como o faz

    Gadamer, e no se pode dispensar de pr algumas questes e preocupaes metodolgicas.

    Se o grande problema central da hermenutica o problema da compreenso, trata-se sempre de

    responder questo o que compreender? e no questo o que fazer, como fazer para

    compreender? O que compreender? a questo que se encontra no centro da interrogao

    propriamente filosfica da hermenutica. E quase se pode acrescentar que a histria da hermenutica

    guiada pelo problema da articulao, da conexo, da ligao entre o como e o o que ou, dito de

    outro modo, entre a verdade e o mtodo.

    Se se trata de saber o que compreender, no h dvida que as trs grandes respostas a estaquesto so as de Schleiermacher, Dilthey e Heidegger; estas respostas, j clssicas, so trs modos

    diferentes de compreender o compreender, que se repercutem e esto presentes na hermenutica filosfica

    dos nossos dias. Assim, EMILIO BETTI na sua Teoria Generale delle Interpretazioni tece o projecto

    de uma metodologia geral das disciplinas hermenuticas, quer pela ideia de reconstruo, quer pela

    exigncia de um cnone universal de princpios hermenuticos, aparentando-se, pois, e apresentando-se

    na sequncia do projecto de Schleiermacher.

    Por seu lado, Gadamer surge na sequncia de Heidegger. No era mi intentin componer una

    'preceptiva' del comprender como intentaba la vieja hermenutica. No pretendia desarrollar un sistema de

    reglas para describir o incluso guiar el procedimento metodolgico de las cincias del espiritu. Tampoco

    era mi idea investigar los fundamentos tericos del trabajo de las cincias del espititu () mi verdadera

    intencin era y sigue siendo filosfica (GADAMER, 1977: 10). nesse sentido que tambm ainvestigao, levada a cabo em Verdade e Mtodo, coloca uma pergunta filosfica e o que interpelado

    o conjunto da experincia humana de mundo e da praxis vital. pregunta como es posible la

    comprensin. Es una pregunta que en realidad precede a todo comportamiento comprensivo de la

    subjectividad, incluso al metodolgico de las cincias comprensivas, a sus normas y a sus reglas

    (GADAMER, 1977: 12).

    Alis o prprio Gadamer, na Introduo da sua obra Verdade e Mtodo, reconhece

    confessadamente a sua filiao La meticulosidad de la descripcin fenomenolgica, que Husserl

    convirti en un deber, la amplitud del horizonte histrico en el que Dilthey h colocado todo filosofar, as

    como la interpenetracin de ambos impulsos en la orientacin recibida de Heidegger hace vrios decnios

    dan la medida que el autor desea aplicar a su trabajo (GADAMER, 1977: 27).

    Quanto a Ricoeur, e apesar das diferenas, segue na linha de Dilthey. De qualquer forma, h que

    salientar a originalidade da hermenutica de Ricoeur situada, alis, numa posio intermdia entre a

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    hermenutica de Betti e a de Gadamer. Como Gadamer, Ricoeur preocupa-se em separar o problema

    hermenutico do todo o psicologismo: o sentido de uma obra autnomo, nada tem a ver com a

    intencionalidade do seu autor. Mas separa-se de Gadamer e aproxima-se de Betti, quando julga no poder

    dispensar-se de colocar questes metodolgicas, o que, alis, o leva ao dilogo com as cincias e a

    aparentar-se de Dilthey. A hermenutica de Ricoeur tenta manter um equilbrio dialctico entre explicar e

    compreender, superando assim a oposio de Gadamer entre Verdade e Mtodo (Cf. RICOEUR, 1970;Cf. Tambm RICOEUR, 1969: 15, 19).

    Finalmente, esta hermenutica geral que Ricoeur quer construir ou ajudar a construir, uma

    grande contribuio para uma, mais vasta e ainda mais geral, Filosofia da Linguagem que tanta falta nos

    faz, j que toda a compreenso se exprime em, pela e na linguagem. Nous sommes aujourdhui la

    recherche dune grande philosophie du langage qui rendrait compte des multiples fonctions du signifier

    humain et de leurs relations mutuelles. Comment le langage est-il capable dusages aussi divers que la

    mathmatique et le mythe, la physique et lart? Ce nest un hasard si nous nous posons aujourdhui cette

    question. Nous sommes prcisment ces hommes qui disposent dune logique symbolique, dune science

    exgtique, dune anthropologie et dune psychanalyse et qui, pour la premire fois peut-tre, sont

    capables dembrasser comme une question celle du remembrement du discours humain ; en effet, le

    progrs mme de disciplines aussi disparates que celles que nous avons nommes a tout la fois rendu

    manifeste et aggrav la dislocation de ce discours ; lunit du parler humain fait aujourdhui problme

    (RICOEUR, 1965 : 14; Cf. RICOEUR, 1969: 19).

    TERCEIRAPARTE

    Algumascategorias bsicas para a compreenso da hermenutica de Ricoeur1. O conceito de ExperinciaO conceito de experincia um dos pressupostos necessrios inteligibilidade e compreenso da

    hermenutica de Ricoeur. De facto, joga-se com um conceito alargado de experincia, uma experincia

    que no se reduz nem ao seu sentido empirista ou positivista, nem mera subjectividade.

    Alargou-se um conceito demasiado apertado e estreito de experincia, que vem de toda a

    tradio. Em Aristteles, o conceito de empeiria demasiado estreito, assim como em toda a tradio:

    trata-se sempre de experincia sensvel das coisas. Alis, esta noo adquiriu lugar privilegiado nas

    cincias experimentais, em que a experincia sensvel prioritria e s depois se pode interpretar

    inteligivelmente. Tambm o empirismo e o positivismo, atendo-se exclusivamente experincia e ao

    positum, mostram, com isso, uma preocupao exclusiva de garantir a objectividade das cincias.

    A experincia , pois, um conceito estreito e coisista, j que a experincia sempre a experincia

    sensvel da coisa: todo o empirismo marcou a sua teoria da experincia com uma orientao exclusiva

    para o objectivismo cientfico, esquecendo ou eliminando a historicidade da experincia, pois tambm as

    chamadas Cincias da Natureza com as do Esprito visavam garantir a sua objectividade custa da

    fixao de uma experincia, cuja repetio e verificabilidade estariam asseguradas (PEREIRA, 1977 a:10).

    Neste sentido, a cincia um projecto fechado e costumeiro, em que os factos so submetidos,

    subordinados, clareza do plano previamente estabelecido e em que se sacrifica a densidade do que

    acontece linearidade do plano.

    Ora, a experincia no s a experincia que se faz, repetitiva, costumeira, igual. Pelo contrrio

    e fundamentalmente, a experincia sobrevm-nos, chega como algo de novo que rompe os nossos planos

    e projectos habituais.

    Pensar que podemos objectivar totalmente a experincia, tematiz-la, esclarec-la

    completamente, elabor-la em conceitos que a exaurem e a esgotem, sistematiz-la em absoluto, isso

    uma iluso, pois a experincia tem muito de no temtico, de insistematizvel, j que inesgotvel, nunca

    se exaure e o novo que sempre acontece que a densifica. A interpretao a mediao necessria queexplicita o que dado na experincia, no a desfigurando, mas fazendo-a ser ela mesma, para que seja

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    possvel a nossa fidelidade experincia. E aqui se enxerta o problema do horizonte e da historicidade da

    experincia. A experincia o grande campo da mostrao, da manifestao, da fenomenalizao, da

    revelao do mundo a mim. A imediatidade do que se revela vai sendo traduzida em mediaes epocais e

    individuais, sempre abertas, porque nunca esgotadas. E, ento, o imediato, se se revela, tambm se oculta,

    pois inexaurvel.

    O que acontece, acontece no tempo. Toda a experincia temporal e histrica. A experincia d-se no presente, no duplo sentido da palavra na lngua portuguesa, isto , no sentido de que a experincia

    acontece no momento temporal presente e no sentido de que a experincia oferta, ddiva, que preenche,

    em plenitude, o momento temporal. O tempo da experincia no homogneo mas heterogneo, no

    abstracto mas concreto, no medido mas vivido, no e extensivo mas intensivo, no kronos mas

    kairs, pois o tempo em que acontece e irrompe o novo e o indito.

    O alargamento do conceito de experincia est bem patente em expresses como: experincia

    histrica, experincia religiosa, experincia hermenutica, experincia esttica. E, por outro lado, o

    alargamento deste conceito foi-se tecendo desde Hegel, at Husserl, Max Scheler, Heidegger e outros. De

    modo que, esta concepo alargada de experincia hoje o pressuposto da compreenso da filosofia

    contempornea.

    O alargamento da experincia humana () continua uma das conquistas da Fenomenologia de

    Husserl, que situou na ordem da intuio a fundao originria, dado que fundar ver, e superou os

    limites estreitos do empirismo com o conceito-chave de campo de experincia, e que o princpio no

    construdo mas visto e experienciado (PEREIRA, 1977 a: 12-13). Tambm Max Scheler tem

    importncia no alargamento deste conceito, porquanto estendeu a intencionalidade no apenas a

    fenmenos da percepo, como fez Husserl, mas tambm emoo. Merleau Ponty alargou ainda a

    intencionalidade corporeidade e Ricoeur estendeu-a vontade.

    A experincia, neste sentido alargado, , para Ricoeur, o pressuposto fenomenolgico

    fundamental de uma Filosofia da Interpretao, na medida em que perguntamos pelo sentido do que se

    mostra na experincia. Assim, Ricoeur transformou a questo ontolgica de Heidegger do esquecimento

    do sentido do ser em questo fenomenolgica e esta mesma torna-se uma questo hermenutica, quandoh alguma coisa que impea ou obstaculize o acesso ao sentido.

    Se o que distingue a atitude fenomenolgica da atitude naturalista-objectivista a escolha pelo

    sentido (e a escolha pelo sentido , ento, o pressuposto fenomenolgico de toda a hermenutica), no

    implica isto uma posio idealista do primado da conscincia na qual se d o sentido? De modo nenhum,

    au contraire, la thse de lintentionnalit pose explicitement que si tout sens est pour une conscience,

    nulle conscience nest conscience de soi avant dtre conscience de quelque chose vers quoi se dpasse

    (). Que la conscience soit hors delle-mme, quelle soit vers le sens, avant que le sens soit pour elle, et

    surtout avant que la conscience soit pour elle-mme () (RICOEUR, 1975: 54). Ora no isto o que

    implica a ideia central de intencionalidadena fenomenologia?

    Por outro lado, a hermneutique renvoie dune autre manire la phnomnologie, savoir par

    son recours la distanciation au cur mme de lexprience dappartenance (RICOEUR, 1975: 54). Naverdade, o conceito de distncia, na hermenutica, pode ser relacionado ou considerado equivalente da

    epoch fenomenolgica, mas, claro, de uma epoch no idealista, na medida em que o sentido s pode

    aparecer como tal depois de nos distanciarmos do vivido. La phnomnologie commence lorsque, non

    contents de vivre ou de revivre -, nous interrompons le vcu pour le signifier. Cest par l que

    poch et vise de sens sont troitement lies (RICOEUR, 1975: 55).

    No caso da hermenutica, no vivido que ela pretende tematizar e do qual pretende decifrar o

    sentido, est presente o passado histrico mediatizado pela transmisso de documentos escritos, de obras,

    de instituies e monumentos. E a pertena no seno a nossa participao e insero neste passado

    histrico, a conscincia de estarmos expostos aos efeitos histricos. Au vcu du phnomnologue

    correspond, du ct de lhermneutique, la conscience expose lefficace historique. Cest pourquoi la

    distanciation hermneutique est lappartenance ce quest, en phnomnologie, lpoch au vcu.

    Lhermneutique, commence elle aussi lorsque, non contents dappartenir la tradition transmise, nous

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    interrompons la relation dappartenance pour la signifier (RICOEUR, 1975: 56). , alis, nesta

    conscincia de estar exposto aos efeitos histricos, s influncias do passado, que radica o carcter

    derivado das significaes de ordem lingustica. (Cf. RICOEUR, 1975: 56). De facto, lexprience, dans

    toute son ampleur, () a une disibilit de principe. Lexprience peut tre dite, elle demande tre dite.

    La porter au langage, ce nest pas la changer en autre chose, mais, en larticulant et en dveloppant, la

    faire devenir elle-mme (RICOEUR, 1975: 53).Mas a linguagem segunda, face experincia. A linguagem diz a experincia, a experincia

    diz-se em e na linguagem, mas a experincia , ento, primeira, face linguagem, pois que ela mais

    original, fundante e fundamental que a linguagem. A linguagem subordina-se, pois, experincia. Cest

    ce renvoi de lordre linguistique la structure de lexprience (qui dans lnonc vient au langage) qui

    constitue, mes yeux, la plus importante prsupposition phnomnologique de lhermneutique

    (RICOEUR, 1975: 58).

    E, ao acentuar o carcter derivado e subordinado da linguagem face experincia, Ricoeur

    concorda quer com Heidegger, quer com Gadamer.

    Com Heidegger, quando este subordina o plano do enunciado ou das significaes lgicas ao

    plano do discurso, que aparece originariamente com o sentimento da situao e da compreenso de

    mundo. (Cf. RICOEUR, 1975: 57-58).

    Com Gadamer, quando, ao olhar para a arquitectura de Verdade e Mtodo, esta comea por

    dilucidar a experincia artstica, que no necessariamente lingustica, e, nesta, sublinha, como primeira

    experincia de pertena a algo, a dimenso da participao ldica, que no se reduz aos jogadores, mas

    precede e funda todo o discurso. Tambm o discurso no o primeiro, no segundo grupo de experincias

    analisadas por Gadamer. A conscincia de estar exposto aos efeitos histricos anterior a toda a cincia

    da histria e tambm no se reduz aos aspectos lingusticos da sua transmisso. (Cf. RICOEUR, 1975: 57;

    Cf. GADAMER, 1977 a: 143-181).

    Esta tesa da subordinao da linguagem experincia, que a hermenutica e a fenomenologia

    perfilham, aparece bem expressa no ltimo Husserl, o de A Crise das Cincias Europeias e a

    Fenomenologia Transcendental. No dizer de Ricoeur, La parent entre lantprdicatif de laphnomnologie et celui de lhermneutique est dautant plus troite que la phnomnologie husserlienne

    a elle-mme commenc dployer la phnomnologie de la perception en direction dune hermneutique

    de lexprience historique (RICOEUR, 1975: 59).

    De facto, Husserl prope o regresso da natureza, que foi objectivada pelas cincias, ao mundo

    da vida (Lebenswelt). Quil me suffise de dire que le retour de la nature objective et mathmatise par

    la science Galilenne et newtonienne la Lebenswelt est le principe mme du retour que lhermneutique

    tente doprer par ailleurs au plan des sciences de lesprit, lorsquelle entreprend de remonter des

    objectivations et des explications de la science historique et sociologique la exprience artistique,

    historique et langagire qui prcde et porte ces objectivations et ces explications (RICOEUR, 1975:

    60). E isto porque por mundo da vida se entende uma reserva ou excesso de sentido da prpria

    experincia, que, por isso, possibilita a prpria atitude objectivadora e explicativa das cincias, mas semque esta a esgote ou totalize.

    2.O conceito de TempoO carcter temporal da experincia humana sempre foi sublinhado ao longo da tradio

    ocidental. J Aristteles considera a empeiria como estando na origem da recordao. No entanto, parece

    que a meditao crucial sobre o tempo, sempre glosada, e qual subjaz a concepo bblica de tempo, a

    meditao augustiniana, no Livro XI das Confisses. O que o tempo? pergunta-se Agostinho. Se

    ningum mo perguntar eu sei, mas se algum mo perguntar j no sei. (SANTO AGOSTINHO, 1966:

    14).

    Divide-se o tempo em passado, presente e futuro, mas o passado j no e o futuro ainda no .

    Existir somente o presente? As diferenas temporais so subtilmente reduzidas por Agostinho ao

    presente, sob a forma presente das coisas passadas ou lembrana presente das coisas passadas,

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    presente das coisas futuras ou esperana presente das coisas futuras e presente das coisas presentes

    (SANTO AGOSTINHO, 1966: 20).

    Por outro lado, Agostinho v-se em conflito ao falar do tempo, porque tambm lhe reconhece

    uma certa distenso ou extenso: que, efectivamente, eu meo o tempo tal como meo o movimento de

    um corpo com o tempo e no tempo. E ao comparar os momentos do tempo digo de uns que so mais

    longos e de outros que so mais breves. Sei perfeitamente que meo o tempo, mas no o futuro, porqueainda no existe. Tambm no avalio o presente pois no tem extenso, nem o passado que no existe.

    Que meo eu ento? (SANTO AGOSTINHO, 1966: 26). Mas no medimos os tempos que passam,

    quando os medimos pela sensibilidade. (SANTO AGOSTINHO, 1966: 16). No medimos o que no

    existe e o passado j no existe, o futuro ainda no existe e o presente est continuamente a deixar de

    existir. E quando sentimos e vivemos o tempo no o medimos. A exigncia augustiniana que no

    vivamos apenas no tempo mas vivamos o prprio tempo.

    Parece que estamos em presena de duas concepes diferentes de tempo, que, porque

    irreconciliveis, geram o conflito e a pergunta que, angustiadamente, nos colocamos sempre, Afinal o

    que o tempo? Uma, a da vivncia do prprio tempo, a de sentir o tempo, que, porque sentido e vivido,

    no se mede, outra, a de medir o tempo. Tambm j em Aristteles radica esta ltima concepo do

    tempo, quando o estagirita reduz o tempo ao nmero e medida do movimento, concepo esta que

    recuperada pela cincia moderna onde vigora uma noo linear de tempo; o tempo , ento, concebido

    como abstracto, contnuo, homogneo, mensurvel, extensivo e quantificvel. Esta concepo de tempo

    no de admirar na atitude cientfica, uma atitude de controlo, de domnio, de assenhorear-se de todas as

    coisas. Trata-se de um tempo formal e vazio, horizontal, sem qualquer densidade, plenitude ou

    intensidade. Este o tempo cronolgico (Kronos) muito diferente do tempo concreto, heterogneo,

    qualitativo, intensivo, que o tempo cairolgico (Kairs), presente na concepo bblica. Kairs o

    tempo preenchido e pleno, o tempo do acontecer, o tempo urgente da aco, o tempo vertical do encontro.

    esta experincia bblica do tempo que subjaz s reflexes augustinianas assim como s de Husserl,

    Bergson, Heidegger, Ricoeur, e Gadamer.

    A questo do tempo ocupa lugar central, como alis o prprio ttulo o indica, em Tempo eNarrao Temps et rcit de Ricoeur. H um tempo histrico como h um tempo literrio. que a

    narrao no s histrica, tambm, por exemplo, a lenda, a novela, o conto, o mito, o romance; narrar

    contar, mas o contar no s de quem faz histria, mas tambm de quem cria e faz fico. Cincia e

    literatura, como actos humanos, so actos no tempo.

    Nesta obra Ricoeur pretende mostrar ou affirmer lidentit structurale entre lhistoriographie et

    le rcit de fiction assim como affirmer la parent profonde entre lexigence de vrit de lun et de

    lautre mode narratifs. (RICOEUR, 1983 b : 17). Mas a tudo isto, quer identidade estrutural da funo

    narrativa, quer exigncia de verdade de toda a obra narrativa, subjaz o pressuposto fundamental cest le

    caractre temporel de lexprience humaine. Le monde dploy par toute uvre narrative est toujours un

    monde temporel (RICOEUR, 1983 b: 17). Por isso Ricoeur comea por analisar as aporias da

    experincia do tempo, patentes no Livro XI das Confisses de Santo Agostinho (RICOEUR, 1983 b:17-53). Alis, em obras anteriores, j Ricoeur manifestara esta mesma preocupao pelo tempo, como o

    caso em O conflito das Interpretaes (Cf. RICOEUR, 1969: 31-63).

    Haver uma temporalidade radical que envolva todos os actos humanos como a cincia e a

    arte? Haver tempo originrio ou roturas de tempo? Qual o tempo radical, originrio? Estas parecem ser

    as questes subjacentes pesquisa de Ricoeur.

    H um tempo de transmisso, h um tempo de interpretao: Or, nous avons le sentiment ()

    que cs deux temporalits sappuient lune sur lautre, sappartiennent mutuellement. Nous sentons que

    linterprtation a une histoire et que cette histoire est un segment de la tradition elle-mme; on

    ninterprte pas de nulle part, mais pour expliciter, prolonger et ainsi maintenir vivante la tradition elle-

    mme dans laquelle on se tient. Cest ainsi que le temps de linterprtation appartient en quelque faon au

    temps de la tradition. Mais en retour la tradition, mme entendue comme transmission dun depositum,

    reste tradition morte, si elle nest pas linterprtation continuelle de ce dpt (). Toute vit par la grce

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    de linterprtation (RICOEUR, 1969: 31). A interpretao explcita, prolonga e mantm viva a tradio

    qual pertencemos mas, por outro lado, a tradio fica morta se no for vivificada e renovada pela

    interpretao. No entanto, no ainda claro o modo como estas duas temporalidades se articulam e se

    pertencem. Como que a interpretao se inscreve no tempo da tradio? Porque que a tradio no

    vive seno no e pelo tempo da interpretao? A mediao que permite unificar estas duas temporalidades

    est numa terceira temporalidade, por isso Je suis la recherche dune troisime temporalit, dun tempsprofond, qui serait inscrit dans la richesse du sens et qui rendrait possible lentrecroisement de ces deux

    temporalits. Ce temps serait le temps mme du sens. Ce serait comme une charge temporelle,

    initialement porte par lavnement du sens. Cette charge temporelle rendrait possible la fois la

    sdimentation dans un dpt et lexplication dans une interprtation; bref, elle rendrait possible la lutte de

    ces deux temporalits, lune qui transmet, lautre qui renouvelle (RICOEUR, 1969: 31).

    Este tempo originrio e profundo do sentido no smbolo que se encontra. O smbolo uma

    arquitectura de sentido que implica uma relao de sentido, em que se designa um sentido indirecto no e

    pelo sentido directo, e que, por isso, apela ser decifrado ou interpretado. Quando aquilo que dizemos quer

    dizer outra coisa alm da que dizemos, eis a expresso simblica. Por isso o smbolo uma estrutura de

    duplo sentido ou de mltiplo sentido. Jappelle symbole toute structure de signification o un sens

    direct, primaire, littral, dsigne par surcrot un autre sens indirect, secondaire, figur, qui ne peut tre

    apprhend qu travers le premier. Cette circonscription des expressions double sens constitue

    proprement le champ hermneutique.

    En retour, le concept dinterprtation reoit lui aussi une acception determine; je propose de lui

    donner mme extension quau symbole ; linterprtation () est le travail de pense qui consiste

    dchiffrer le sens cach dans le sens apparent, dployer les niveaux de signification impliqus dans la

    signification littrale. () Symbole et interprtation deviennent ainsi des concepts corrlatifs; il y a

    interprtation l o il y a sens multiple, et cest dans linterprtation que la pluralit des sens est rendue

    manifeste (RICOEUR, 1969: 16). O smbolo define-se pelo seu poder de duplo sentido, ele d um

    sentido por meio de um sentido, por isso Le symbole donne penser, il fait appel une interprtation,

    prcisment parce quil dit plus quil ne dite et quil na jamais fini de donner dire (RICOEUR, 1969:32). O smbolo, pela sua riqueza, pelas suas potencialidades de sentido, enfim, pelo seu excesso, pela sua

    mais-valia, o smbolo, dizamos, no seu advento, carrega de excesso (porque ele prprio excesso) o

    tempo, nunca permitindo uma objectivao total e nunca se esgotando. Assim, o mito, por exemplo, (e

    Ricoeur consagrou parte da sua obra ao estudo dos smbolos mticos, at porque o mito uma forma de

    narrao) no esgota a riqueza de sentido do fundo simblico, de que ele uma interpretao, e, por isso,

    o mito deve ser subordinado ao smbolo. (Cf. RICOEUR, 1969: 32). Il mest apparu, en mettant en

    uvre cette dialectique du symbole sur la seule base, il est vrai, ds traditions smitiques et hellniques

    que la rserve de sens des symboles primaires tait plus riche que celle des symboles mythiques, et,

    plus fort raison, que celle des mythologies rationalisantes. Du symbole au mythe et la mythologie, on

    passe dun temps cach un temps puis. Il apparat alors que la tradition, dans la mesure o elle

    descend elle-mme la pente du symbole la mythologie dogmatique, se situe sur le trajet de ce tempspuis; elle se mue en hritage et en dpt () (RICOEUR, 1969: 33). Mas se a tradio se torna assim

    herana e depsito sedimentado elle se renouvelle par le moyen de linterprtation, qui remonte la pente

    du temps puis au temps cach, c'est--dire en faisant appel de la mythologie au symbole et sa rserve

    de sens. (RICOEUR, 1969: 33).

    Em dilogo com o estruturalismo de Lvi-Strauss que estuda os sistemas totmicos na

    atemporalidade da sua sincronia e, sobretudo, no Pensamento Selvagem, em que o autor procede a uma

    generalizao do estruturalismo ao nvel de todo o pensamento dito selvagem, em que La gnralisation

    toute pense sauvage est tnue pour acquise (RICOEUR, 1969: 44), Ricoeur pergunta-se Or je me

    demande si le fond mythique sur lequel nous sommes branchs fonds smitique (), fonds proto-

    hellnique, fonds indo-europenne prte aussi facilement la mme opration ()?(RICOEUR, 1969:

    44). E levanta mesmo a dvida de saber se o exemplo escolhido por Levi-Strauss, do pensamento

    totmico, a que to bem se aplica o estruturalismo, pode ser, sem mais nem menos, tomado como

  • 8/10/2019 Introduo Hytermenutica de Paul Ricoeur

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    paradigmtico e, sem mais nem menos, generalizado. Je me demande si son exemple est exemplaire

    ou sil nest pas exceptionnel (RICOEUR, 1969: 45).

    Tomando um exemplo, Ricoeur contesta que esse modelo seja exemplar. Quest-ce qui est

    dcisif pour la comprhension du noyau de sens de lAncien Testament? Non pas des nomenclatures, des

    classifications, mais des vnements fondateurs. (RICOEUR, 1969: 48). Os acontecimentos fundadores

    da histria bblica foram elaborados e desse trabalho resultou a Sagrada Escritura. Or cest bien untravail intellectuel qui a prsid cette laboration des traditions et abouti ce que nous appelons

    maintenant lEcriture (RICOEUR, 1969: 49). Por outro lado, muitas dessas tradies so dispersas,

    pertencem a fontes diferentes e so transmitidas por grupos diferentes mas, apesar disso, possuem uma

    unidade que lhes dada pela aco histrica de Jahv. Ainsi, la Saga dAbraham, celle de Jacob, celle de

    Joseph, appartenant des cycles originairement diffrents, ont t en quelque sorte aspires et happes

    par le noyau primitif de la confession de foi clbrant laction historique de Jahv (RICOEUR, 1969:

    49). Assim, podemos falar de um primado da histria num trplice sentido: Comme on voit on peut

    parler ici dun primat de lhistoire (); en un premier sens, un sens fondateur, puisque tous les rapports

    de Jahv Isral sont signifies par et dans des vnements sans aucune trace de thologie spculative

    (). Le travail thologique sur ces vnements est en effet lui-mme une histoire ordonn, une tradition

    interprtante. La rinterprtation, pour cheque gnration, du fond de traditions confre cette

    comprhension de lhistoire un caractre historique, et suscite un dveloppement qui a une unit

    signifiante impossible projeter dans un systme. Nous sommes en face dune interprtation historique de

    lhistorique ; le fait mme que les sources sont juxtaposes () un sens profond: la tradition se corrige

    elle-mme par additions et ce sont ces additions qui constituent par elles-mmes une dialectique

    thologique.

    Or il est remarquable que cest par ce travail de rinterprtation de ses propres traditions

    quIsral sest donn une identit qui est elle-mme historique (). Cest en interprtant historiquement

    son histoire, en llaborant comme une tadition vivante, quIsral sest projet dans le pass comme un

    unique peuple () (RICOEUR, 1969: 49). E ficam assim encadeadas as trs historicidades, a dos

    acontecimentos fundadores ou tempo oculto, a da tradio constituda pela interpretao viva feita pelosescritores dos textos sagrados, (nvel das tradies constituintes), e a da historicidade da compreenso ou

    historicidade da hermenutica (nvel da tradio constituda) (RICOEUR, 1969: 50). Assim, () le

    temps cache des symboles peut porter la double historicit de la tradition que transmet et sdimente

    linterprtation, et de linterprtation qui entretient et renouvelle la tradition (RICOEUR, 1969: 51). A

    explicao estrutural sincrnica, mas no diacrnica, manifesta um carcter abstracto e d-nos uma forma

    vazia (RICOEUR, 1969: 44), e, por isso, no suficiente para dar conta lorsquil sagit dun contenu

    surdtermin qui ne cesse de donner penser et qui ne sexplicite que dans la suite des reprises qui lui

    confrent la fois interprtation et rnovation (RICOEUR, 1969: 53), at porque la richesse de ce fond

    symbolique napparat que dans la diachronie (RICOEUR, 1969: 53). Se o homem visa compreender-se

    a si mesmo e assim cumprir inexoravelmente o seu destino, o do conhecimento de si mesmo, destino esse

    desde muito cedo intudo, pelo menos explicitamente desde Scrates, isso no possvel directamente j o vimos mas apenas pela mediao interpretativa que se apropria do sentido e da sua referncia, j

    que o homem um ser-no-mundo. Je cherche me comprendre en reprenant le sens des paroles de tous

    les hommes; cest ce plan que le temps cach devient historicit de la tradition et de linterprtation

    (RICOEUR, 1969: 55).

    3.O conceito de TextoA nossa tradio ocidental essencialmente uma tradio escrita e a escrita tem o poder de

    conservar e fixar e, por isso, o escrito transmite um conjunto de informaes que duram e perduram,

    fazendo dele um armazm ou um arquivo, que constitui a nossa memria colectiva. Por isso tambm, a

    nossa tradio deu primado ao texto. Da, o desenvolvimento de um conjunto de disciplinas que visam a

    i


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