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ANAIS DO II ENCONTRO NACIONAL DO GT HISTRIA DAS RELIGIES E DAS RELIGIOSIDADESRevista Brasileira de Histria das Religies ANPUHMaring (PR) v. 1, n. 3, 2009. ISSN 1983-2859.Disponvel em http://www.dhi.uem.br/gtreligiao/pub.html
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INICIAES RITUAIS NAS MINAS GERAIS DO SCULO XVIII:
OS CALUNDUS DE LUZIA PINTA
Alexandre Almeida Marcussi*
Esta comunicao tem como objetivo analisar alguns aspectos ligados a um rito
mgico-religioso de filiao africana praticado na regio das Minas Gerais na primeira
metade do sculo XVIII, o calundu. A partir da anlise de um caso especfico de prtica
de calundus e observando a variao semntica do termo no contexto colonial, pretendo
indicar a existncia de uma dinmica de iniciaes rituais em ao nas Minas Gerais naprimeira metade do sculo XVIII. O funcionamento dessas iniciaes permitir
esclarecer algumas questes a respeito do carter dos cultos afro-americanos no sculo
XVIII, possibilitando observar como se processava o resgate das tradies rituais
centro-africanas na sociedade das Minas e de que maneira se operava sua reiterada
incorporao e reelaborao em novos contextos rituais.
No final do ano de 1742, a Inquisio de Lisboa deu incio um processo
inquisitorial contra Luzia Pinta, forra natural de Luanda e at ento habitante do
municpio de Sabar, nas Minas Gerais. Luzia Pinta havia sido denunciada comofeiticeira, embora ainda pairassem algumas incertezas a respeito do termo que se viria a
usar para descrever suas prticas rituais heterodoxas, como veremos mais adiante.
Nascera muito provavelmente na ltima dcada do sculo XVII em Luanda, onde fora
criada em uma famlia de escravos. Ainda muito jovem, por volta dos doze anos de
idade, fora embarcada como escrava para a Amrica. Conquistara em algum momento
sua alforria e, at 1742, residia em Sabar. Foi denunciada ao Santo Ofcio em 1739, ao
que se seguiu a abertura de um Sumrio de Culpas e a recolha de diversos testemunhos,
culminando na determinao de que a suspeita fosse enviada a Lisboa para abertura do
processo inquisitorial.
Luzia sofreu as arbitrariedades tpicas do Santo Ofcio: tirada fora da cidade
onde residia e onde tecera sua rede de laos sociais, foi mantida em cativeiro por um
* Mestrando em Histria Social FFLCH/USP
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ano e meio e submetida a tortura durante os interrogatrios. Ao fim do processo, em 20
de junho de 1744, saiu em auto de f e provavelmente foi observada em hbito
penitencial por uma multido nas ruas, como era costume nessas cerimnias em que a
Inquisio portuguesa ostentava seu poder e reafirmava sua autoridade por meio dademonstrao pblica.1 Culpada de leve suspeita na f, foi degredada para o Algarve,
onde teria que recomear do zero, refazer seus laos sociais e redefinir sua identidade
mais uma vez, aps j ter sofrido o mesmo processo de ruptura de laos ao ser vendida
como escrava e transportada de sua cidade natal em Angola para a Amrica Portuguesa.
As denncias contra Luzia Pinra comearam aparentemente em setembro de
1739, quando o clero de Sabar alegou que Luzia Pinta era conhecida publicamente por
feiticeira. Afirmava essa primeira denncia que Luzia Pinta havia persuadido um certo
Luis Coelho Ferreira, enfermo e prximo da morte, a freqentar suas cerimnias para se
curar, levando-o a desprezar as exortaes dos padres, a assistncia dos mdicos e os
remdios da Medicina, tal qual ovelha que foge do pastor e baila [com] o lobo. 2
Segundo o denunciante, Manoel Freire Batalha, a denunciada assim fizera vrias
operaes diablicas invocando o Demnio por meio de uma danas, a que vulgarmente
chamam calanduz.3 A denncia deixa entrever claramente dois discursos bastante
distintos entre si: de um lado, o termo calanduz para designar suas cerimnias; de
outro, a idia de que ela faria operaes diablicas invocando o Demnio. A frmula
usada por Manoel Batalha, a que vulgarmente chamam calanduz, revela claramente
que este era um termo de uso corrente, em Sabar, para designar as cerimnias de
Luzia; a idia da invocao demonaca, por outro lado, no creditada opinio
corrente sobre a acusada e provm de um outro estrato cultural bastante diferente do
dela.
Da alegao de que Luzia tentara curar magicamente Luis Ferreira por meio de
danas conhecidas como calanduz afirmao de que invocava o Demnio, h uma
considervel distncia. Trata-se, aqui, de uma projeo do imaginrio eclesistico s
prticas de Luzia Pinta a fim de acomod-las no interior de um modelo de acusao que
a colocava na jurisdio dos tribunais do Santo Ofcio da Inquisio. De fato, a tarefa da
1 Para uma anlise do papel sociolgico e da simbologia dos autos de f em Portugal, veja-se SARAIVA,Antnio Jos.Inquisio e cristos-novos. Lisboa: Editorial Estampa, 1985.2 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Inquisio de Lisboa, Processo n 252, fl. 8. Daqui em diante,esse processo ser indicado de forma resumida: ANTT, Inq. de Lisboa, Proc. n. 252.3Ibid., fl. 8.
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Inquisio era a de perseguir um delito religioso especfico: a heresia. O herege se
definia como sendo um cristo que insistia em crenas equivocadas e desviantes em
relao ao dogma catlico. Se as prticas mgicas caam sob a alada dos tribunais
inquisitoriais, ento, era porque podiam ser encaradas como uma forma de heresia ou dedesvio de crena. A equiparao explcita entre prticas mgicas e heresia havia sido
feita pela primeira vez atravs da bula papal Super illius specula, emitida pelo papa
Joo XXII em 1326.4 A bula fazia referncia a uma situao histrica muito particular:
no primeiro quartel do sculo XIV, membros da corte francesa do rei Filipe, o Belo, e
do papado de Avignon haviam sido alvos de uma srie de tentativas de assassinato
mgico. O clima de temor causado por essa guerrilha mgica levou ento o papa Joo
a emitir a bula que equiparava os mgicos a hereges, autorizando sua perseguio.5
Afirmava a bula que
[...] muitos dos que so Cristos somente em nome, os quais tendoabandonado a primeira luz da verdade, so obscurecidos pela grandeescurido do erro, que com a morte horrvel se aliam & fazem pactocom o inferno: sacrificam aos demnios, adoram-nos, fazem ou tmfeitas imagens, anis, espelhos, frascos e outras coisas para propsitosmgicos e entregam-se aos demnios. Eles perguntam e recebemrespostas deles e para saciar seus apetites mais depravados pedem aeles ajuda. Com maior fervor exibem a mais repugnante dasrepugnantes das servides [...]6
A referncia aos cristos somente em nome que abandonam a primeira luz da
verdade deixa claro que se tratava de indivduos batizados, o que era importante para
que se qualificassem como hereges, uma vez que um infiel ou pago no podia ser tido
como um herege, pois no estava includo no corpo da cristandade. A bula ainda deixa
claro que, para realizarem seus propsitos mgicos, fazem pacto com o inferno,
sacrificam aos demnios, adoram-nos, entregam-se a eles e lhes pedem ajuda
servilmente. Isso tudo era o bastante para afirmar que rendiam aos demnios um culto
de latria ou adorao, que, de acordo com o primeiro mandamento divino, o cristodeveria render exclusivamente a Deus. Portanto, em ltima instncia, era a demonolatria
que caracterizava a magia como crime religioso. At o momento da Super illius specula,
4 COHN, Norman.Los demonios familiares de Europa. Madri: Alianza Editorial, 1980.5 NOGUEIRA, Carlos Roberto Figueiredo. Do belo rei ao papa Joo: magia e poltica. Revista USP, SoPaulo, n. 42, p. 120-130, jun./ago. 1999.6Apud. NOGUEIRA, C., op. cit., p. 127-8.
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a magia havia sido considerada pelo clero mais como superstio, ou seja, como culto
meramente excessivo que deveria ser desacreditado pela Igreja; desta forma, no era
comum perseguir judicialmente os praticantes de magia, apenas aplicar as penitncias
religiosas cabveis aos pecadores no ato da confisso. A Super illius specula abriu umprecedente jurdico importante, de modo que a partir do sculo XIV se intensificou cada
vez mais a tendncia a perseguir judicialmente os praticantes de magia, culminando no
grande movimento de caa s bruxas iniciado no sculo XV e que atingiu seu apogeu,
na Europa, entre os sculos XVI e XVII.7
Apesar do fato de que a criminalizao da magia ocorrida a partir do sculo XIV
fosse uma tendncia relativamente recente no direito cannico, os argumentos que
equiparavam a magia ao pacto demonaco j se encontravam na tradio crist desde a
patrstica. Para Santo Agostinho, todo efeito sobrenatural que no fosse obra do prprio
Deus deveria implicar necessariamente a interveno (explcita ou implcita) de
demnios; assim sendo, o praticante de magia incorreria necessariamente em pacto, que
podia ser explcito ou implcito, com demnios. Toms de Aquino reitera essa postura
no sculo XIII:
A arte notria ilcita e ineficaz. Porque usa de certos meios paraadquirir a cincia, que no podem em si mesmo conduzir a ela, comoo exame de certas figuras, a pronncia de certas palavras designificao ignorada e cousas semelhantes. Por isso, a referida arteno emprega sses meios como causas, mas, como sinais. Mas, nocomo sinais revelados por Deus, como so os sinais sacramentais.Donde se conclui, que so sinais vos e, por conseqncia, no tmoutro efeito, segundo Agostinho, seno o de exprimir simblicamentepactos e alianas com os demnios. Por isso, o Cristo deve de todoem todo repudiar e fugir arte notria, bem como as outras artesnugatrias por serem supersties nocivas, diz Agostinho.8
Quando Manoel Batalha sugeria que as danas de Luzia Pinta seriam meios
pelos quais ela invocaria o demnio, nesse modelo de acusao que ele tenta
enquadr-la, a fim de represent-la como culpada de um delito religioso inscrito na
jurisdio dos tribunais do Santo Ofcio da Inquisio. A acusao se refora pela
afirmao de que ela seria uma feiticeira, pois as feiticeiras, na concepo veiculada
7 COHN, N., op. cit.8 TOMS DE AQUINO. Suma teolgica. Trad.: Alexandre Corra. Porto Alegre: Livraria SulinaEditora/Universidade de Caxias do Sul, 1980, vol. VI, questo XCVI, art. I, p. 2781, itlico no original.
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pela demonologia da poca, se caracterizavam justamente pela realizao de um pacto
com o Demnio por meio do qual seriam capazes de realizar atos mgicos e, em
especial, malefcios. Uma das testemunhas chamadas posteriormente a depor contra
Luzia Pinta, Manuel Pereira da Costa, afirmava que sabia ser ela calunduzeira (ou seja,praticante de calundus), mas no tinha certeza se era feiticeira. O debate terminolgico,
que para ns, a princpio, pareceria ter interesse apenas marginal, transformou-se numa
questo vital para o Tribunal do Santo Ofcio de Lisboa e a indicao de um percurso
de tradues que procuravam adequar as prticas de Luzia Pinta ao imaginrio
demonolgica a partir do qual ela podia ser condenada.
A denncia de Manoel Batalha data de 7 de setembro de 1939. Dois meses e
meio depois, no final de dezembro do mesmo ano, temos outra denncia contra a
acusada, desta vez bem mais extensa e detalhada, e elaborada pelo bispado do Rio de
Janeiro. Podemos conjeturar que, a partir da primeira denncia, tenha sido feita uma
segunda averiguao das culpas de Luzia Pinta, a partir da qual surgiu um relato mais
minucioso:
Faltando certas oitavas de ouro em casa de Antonio Pereira deFreitas, morador no Arraial de Santa Luzia, freguesia de RoaGrande, comarca de Sabera, foi um Domingos Pinto, assistenteem casa do dito Antonio Pereira de Freitas, casa da dita Luzia
Pinta para que esta lhe dissesse quando lhe tinha tirado o ditoouro, em conseqncia do qual Domingos Pinto foi []denunciada; e vestindo-se esta em certos trajes no usadosnaquela terra, saa danando ao som de uns tambores outimbales que uns pretos lhe estavam tocando; e tomando umacaixinha ou asafate tirou deste umas cousitas que chamava seusbentinhos e os cheirou muito bem, e depois [disse] que eramseis oitavas de ouro; e dizendo-lhe o dito Domingos Pinto [que]eram oito, agoniada disse [que] no eram mais das seis, eassentando-se em uma cadeira principiou com umas grandestremuras, como quando estava fora de si, e logo disse ao ditoDomingos Pinto que ele tinha em casa duas negras, uma Lada eoutra Courana, e que como dormia com uma delas e lhe nodava nada, elas se aconselharam e lhe tiraro o ouro. Foi certo odormir o dito Domingos com uma das negras, e no lhe darnada, e haverem na casa as ditas negras.9
9 ANTT, Inq. de Lisboa, Proc. N. 252, fl. 7.
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Essa segunda denncia j no descreve mais uma cerimnia de cura mgica, mas
sim uma adivinhao por meio da qual Luzia Pinta pretendia apontar o culpado pelo
roubo das oitavas de ouro que o prejudicado afirmava serem oito, mas Luzia insistia
em serem apenas seis. Luzia havia sido procurada por Domingos Pinto para identificar oculpado pelo roubo, o que indica que ela de fato devia ter fama de adivinha na regio.
Contudo, o resultado da consulta parece no ter agradado o cliente, que viu sua relao
com suas escravas ser desnudada e, ainda por cima, com tons de ilegitimidade.
Domingos, aparentemente, no deixou por menos, e denunciou Luzia s autoridades
eclesisticas do bispado do Rio de Janeiro. impossvel saber se ela teria sido
denunciada e se teria cado nas malhas da justia inquisitorial caso no houvesse
desagradado Domingos Pinto, algum cuja posio social de agregado e senhor de
escravos dava mais peso a sua denncia. O caso que a segunda denncia reforava a
primeira, e Gonalo Luis da Rocha, que a registrou, adicionou: como tive desconfiana
de que isto podia ser compacto ou ser obra do demnio, a causa desta denunciao.10
Mais uma vez aqui, as categorias da demonologia foram aplicadas s prticas de Luzia
Pinta para enquadr-la num delito religioso da alada dos tribunais inquisitoriais.
A princpio, portanto, antes da projeo das categorias do discurso eclesistico
s praticas de Luzia Pinta, as informaes que corriam a seu respeito em Sabar
afirmavam que ela era adivinha e realizava calundus ou calanduz, numa variao
grfica sintomtica da hesitao e da pouca familiaridade dos eclesisticos em relao
ao termo. Os calundus eram um tipo de ritual mgico-religioso realizado por africanos
na Amrica Portuguesa, bastante difundido nos sculos XVII e XVIII, especialmente
nas regies de Minas Gerais e da Bahia. Vrios procedimentos rituais distintos entre si
recebiam por vezes a denominao de calundu, mas eles tinham em comum o fato de
serem ritos que contavam com acompanhamento musical de atabaques e com a
possesso ritual por espritos e que tinham entre seus objetivos a adivinhao e a cura. O
processo inquisitorial nos fornece uma descrio mais ou menos detalhada dos calundus
realizados por Luzia Pinta: vestida com trajes considerados inusitados ( turquesa),
ela entrava em transe ao som de atabaques tocados por ajudantes negros, escravos seus,
bebia vinho e comeava a realizar adivinhaes. Respondia s perguntam que lhe eram
endereadas pelos clientes, diagnosticava doentes prostrados ao cho e lhes ministrava
10Ibidi, fl. 7v.
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remdios diversos, tudo isso com base em mensagens que lhe vinham aos ouvidos
durante o transe.
Laura de Mello e Souza ressaltou familiaridades dos calundus (e em especial do
calundu de Luzia Pinta) com cerimnias religiosas afro-brasileiras contemporneas, emespecial no tocante possesso por espritos ocorrida em um contexto ritual marcado
pela msica de percusso. Ela sugeriu, assim, que os calundus teriam sido uma espcie
de antepassado cultural dos modernos candombls.11
Mais atento s especificidades culturais do rito do calundu, Luiz Mott realizou
uma anlise etno-histrica da descrio dos ritos de Luzia Pinta (como eles haviam sido
descritos pelas testemunhas e pela prpria r durante os interrogatrios) a fim de
identificar elementos do rito que pudessem indicar sua filiao a tradies religiosas
africanas especficas e etnicamente localizadas. Para Mott, no seria possvel supor uma
continuidade entre os calundus de Luzia Pinta e o candombl contemporneo, cujo
panteo conta com divindades chamadas voduns ou orixs derivadas das tradies
rituais dos jejes ou dos iorubs. Em vez de remontar os calundus de Luzia Pinta ao
universo cultural jeje ou iorub, Mott afirmou que eles eram derivados das prticas
mgico-religiosas existentes no sculo XVII na regio de Angola, e mais
especificamente dos ritos praticados por um tipo de sacerdote quimbundu chamado
"xinguila". Da a denominao dos ritos de Luzia Pinta como "calundu-Angola", em
contraste com outros calundus registrados posteriormente que se identificavam muito
mais claramente com a tradio dos orixs.12 Apesar dessa divergncia, ambos
assinalam o carter sincrtico dos calundus, presente seja na mistura de elementos de
diferentes ritos africanos, seja nos elementos catlicos que se agregavam ao rito (como a
dedicao das cerimnias a santos catlicos).
James Sweet tambm defende a filiao centro-africana dos calundus, e vai mais
longe, chegando a afirmar a ausncia de qualquer sincretismo com o catolicismo nos
calundus antes da metade do sculo XVIII. Os calundus teriam permanecido como
cerimnias curativas tipicamente centro-africanas tanto em forma quanto em funo,
ainda que se observassem variaes no rito de praticante para praticante. Sweet prope
uma convincente etimologia para o termo calundu que evidencia essa filiao aos
11 SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a terra de Santa Cruz: Feitiaria e religiosidade popular noBrasil colonial. So Paulo: Cia. das Letras, 1987, p. 267, 354-5.12 MOTT, Luiz. O calundu-Angola de Luzia Pinta: Sabar, 1739.Revista do IAC, Ouro Preto, n. 1, p. 73-82, dez 1994.
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princpios rituais centro-africanos: para ele, o termo deriva do vocbulo quimbundo
quilundo [, que] era um termo genrico para qualquer esprito que possusse os
vivos.13 O sistema ritual centro-africano dava papel de destaque aos espritos e s
cerimnias de possesso: acreditava-se que todo poder sobrenatural advinha do mundodos mortos e dos espritos, e a possesso era uma das formas privilegiadas atravs das
quais o sacerdote era capaz de realizar a mediao entre a esfera dos vivos e a dos
espritos. Alm disso, as prprias doenas podiam ser causadas pela ao de um esprito
sobre o doente, de modo que a cura consistia muitas vezes em interromper (ou regular
de forma harmoniosa) a possesso do doente pelo esprito. Os prprios antepassados
podiam estar entre esses espritos que possuam seus descendentes e lhes causavam
diversos distrbios, freqentemente como punio por falhas na devoo e no
tratamento ritual que lhes eram devidos. Cabia ento ao sacerdote regular ritualmente
essa relao entre o antepassado e o descendente, realizando assim a cura do distrbio.14
Os calundus no s eram coerentes com esses princpios como inclusive apresentavam
diversos procedimentos rituais idnticos queles usados na frica Centro-Ocidental. Por
conta disso, Sweet afirma que o calund era a religio centro-africana em ao.15
O termo calundu, contudo, apresentava uma razovel variao semntica nos
seus diversos usos por eclesisticos e pelos seus prprios praticantes. Laura de Mello e
Souza, revisitando o tema dos calundus e reconhecendo a impertinncia de se
estabelecer uma relao de continuidade entre eles e o candombl, atentou para esses
mltiplos sentidos e para a plasticidade das prticas associadas cerimnia e ao prprio
termo, que podia estar relacionado alternativamente com estados de esprito, com
danas (como o lundu), com doenas e com curas. Para Souza, calundu
provavelmente se referia originalmente a uma determinada cerimnia mgico-religiosa
centro-africana qual foram se incorporando elementos estranhos [que] comeam a
distorcer as feies mais tpicas do rito16, decompondo um sistema ritual articulado e
culminando no emprego do termo para prticas e campos semnticos dispersos, que
13 SWEET, James. Recreating Africa: Culture, Kinship, and Religion in the African-Portuguese World,1441-1770. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2003, p. 144.14 MACGAFFEY, Wyatt. Religion and Society in Central Africa: The BaKongo of Lower Zaire.Chicago/London: The University of Chicago Press, 1986.15Ibid., p. 151.16 SOUZA, Laura de Mello e. Revisitando o calundu. In: GORENSTEIN, Lina e CARNEIRO, Maria L.Tucci (Org.). Ensaios sobre a intolerncia: Inquisio, Marranismo e Anti-Semitismo. So Paulo:Humanitas, 2002, p. 312.
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apresentariam apenas relaes indiretas com o rito original. Segundo a autora, seria
difcil determinar se essa disperso semntica do termo teria sido operada pelos seus
prprios praticantes ou pelo olhar externo dos eclesisticos e dos senhores, que
empregaram o vocbulo para se referir a outras prticas de origem africana nonecessariamente relacionadas com o sistema do calundu. Tenho razes para crer,
contudo, que essa ampliao semntica do termo no tenha sido um fenmeno posterior,
pois, como veremos, todos esses campos semnticos (estados de esprito, doenas, curas
e danas) j se encontram presentes e interligados nas cerimnias de Luzia Pinta. De
qualquer forma, Souza sugere ser mais proveitoso pensar nos calundus como uma
constelao ou nebulosa composta por prticas do universo cultural centro-africano, ora
mais aproximadas, ora bastante afastadas entre si.
Parece-me bastante proveitosa a indicao dada por Souza de pensar no calundu
como uma constelao de prticas distintas entre si. No entanto, parece-me
problemtica a conjectura de que o calundu tivesse um dia sido um rito articulado que
se decomps e se desagregou no contexto colonial. James Sweet encara o fenmeno a
partir de uma perspectiva distinta, e sugere que o calundu se tornou um idioma comum e
reconhecido na comunidade escrava para se referir de forma genrica possesso
espiritual presente em diversos tipos de ritos curativos centro-africanos. Segundo ele,
quilundu era um termo quimbundo genrico, na medida em que designava qualquer
esprito que possusse os vivos; da sua grande fora expressiva na comunidade escrava
e seu potencial aglutinador de ritos diversos que contavam com a possesso espiritual.
Para Sweet, quilundu designava originalmente o esprito responsvel por causar a
doena ou aflio de que o doente precisava se curar. O papel do sacerdote ou do
curandeiro era o de restabelecer as relaes harmnicas entre o esprito e o doente, o
que culminaria em sua cura. Para Sweet, no contexto colonial, o termo derivado calund
passou a ser usado no apenas para o esprito causador da doena, mas tambm para a
cerimnia destinada a cur-la.17
Sugiro aqui observar essa flutuao do termo entre o doente e o curandeiro no
como um fenmeno natural de deslocamento semntico, mas como indcio de um
sistema de iniciaes que permite enxergar de outra forma a dinmica dos calundus na
sociedade mineradora do sculo XVIII. Essa variao pode se observar comparando-se
17 SWEET, James, op. cit., p. 144.
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diferentes casos de calundus, ou ocasionalmente no interior de um nico caso. Um dos
mais notveis relatos coloniais relativos aos calundus foi realizado por Nuno Marques
Pereira, o Peregrino da Amrica, em 1728. Relatou o padre que, estando hospedado
por um fazendeiro, no pde dormir por conta dos horrendos sons causados pelascerimnias dos escravos, que mais lhe pareciam ser a confuso dos infernos. No dia
seguinte, o peregrino perguntou ao mestre dos calundus em que consistia o calundu,
ao que ele replicou que ele era usado na frica na ocasio de festas e adivinhaes.
Aqui, o calundu parece designar as prprias cerimnias. O termo j causou perplexidade
ao eclesistico, que arriscou uma etimologia derivando-o do latim calo duo,
significando aquele que esconde dois. Esses dois seriam, evidentemente, o prprio
praticante e o diabo, mestre secreto da cerimnia. 18 Laura de Mello e Souza, Luiz Mott
e James Sweet ressaltam o emprego do termo calundu pelos colonos para designar as
cerimnias de cura das quais os negros (e ocasionalmente os brancos) participavam.
Contudo, as menes ao termo calundu como associado ao doente e doena, e
no totalidade da cerimnia, no so raras. Frei Lus de Nazar, padre carmelita
residente em Salvador nos anos 1730, afamado tanto por seus exorcismos quanto por
suas prticas pouco ortodoxas, como a de fazer mezinhas com a lavagem da genitlia de
moas com quem mantinha relaes sexuais, recomendava uma visita aos calunduzeiros
a vrios dos escravos que no conseguia curar por via dos exorcismos. Para Frei Lus,
quando os negros estavam infectados com calundus, deviam procurar a ajuda dos
calundeiros. Para ele, os calundus eram feitios [que] consistem em se dizer que as
almas dos parentes defuntos vm falar pela boca dos enfeitiados.19 A formulao de
Frei Lus bastante curiosa, pois reconhece no calundu um distrbio e tambm afirma
que os doentes so possudos pelos espritos de seus antepassados. Igualmente, o Juzo
Eclesistico do Bispado de Mariana registrou, em 1750, o caso de Ivo Lopes e Maria
Cardoso, um casal de feiticeiros que tiravam os calundus aos pretos.20 Nesse contexto,
18 PEREIRA, Nuno Marques. Compendio narrativo do Peregrino da Amrica (1728). Apud SWEET,James, op. cit., p. 147-8. O episdio tambm relatado em SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a terrade Santa Cruz: Feitiaria e religiosidade popular no Brasil colonial. So Paulo: Cia. das Letras, 1987, p.266.19 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Inquisio de Lisboa, Processo n. 3723, apudSOUZA, Laurade Mello e, op. cit., p. 263. Cf. SWEET, James, op. cita., p. 145-6, para uma anlise do mesmo caso.20 SOUZA, Laura de Mello e. Revisitando o calundu. In: GORENSTEIN, Lina e CARNEIRO, Maria L.Tucci (Org.). Ensaios sobre a intolerncia: Inquisio, Marranismo e Anti-Semitismo. So Paulo:Humanitas, 2002, p. 307.
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o calundu aparece novamente associado ao doente, e no a cerimnia mais
especificamente, calundu parece designar a prpria doena a ser extirpada.
Na verdade, o uso de termos como calunduzeiro, calundureiro, calundeiro
ou ainda mestre dos calundus para designar os praticantes das cerimnias carrega essaambigidade, pois pode tanto se referir quele que pratica calundus (entendidos como
cerimnias) quanto quele que cura ou tira calundus (concebidos como doenas
espirituais). Percebemos aqui o percurso de um termo quimbundo que podia estar
associado tanto aos doentes que procuravam curas mgicas quanto aos curandeiros que
as realizavam.
A mesma oscilao no emprego do termo aparece no processo de Luzia Pinta.
Os testemunhos recolhidos contra a forra angolana descreviam-na como calunduzeira,
termo que, como vimos, a Inquisio tentava aproximar de feiticeira a fim de
enquadrar Luzia em um crime religioso prprio jurisdio inquisitorial. Aqui, a
palavra se associa prpria curandeira. Contudo, a sinonmia entre calunduzeira e
curandeira no era perfeita, pois o negociante Antnio Leite Guimares afirmava que
ela conhecida por toda vizinhana da Vila de Sabar e freguesia de Roa Grande
como calunduzeira, curandeira e adivinhadeira, sugerindo talvez o reconhecimento de
que havia uma leve diferena ou matiz de significado entre curandeira e calunduzeira.
Outra testemunha que citei anteriormente, Manuel Pereira da Costa, afirmava que Luzia
era calunduzeira, mas no sabia afirmar se era feiticeira. O significado exato da palavra
calundu parecia escapar aos inquisidores, revelando-se inclusive na variao da grafia
ao longo do processo, pois as verses calundu, calandus e calanduz so usadas
em diferentes momentos e etapas da acusao.
Se calundu era um termo que parecia estar, de alguma forma, associado a Luzia
Pinta, ele tambm designava uma doena. Num determinado ponto do interrogatrio
inquisitorial, a r foi questionada pelo inquisidor: Que doena esta da sua terra, a
quem chamam calundus, de que cousa procede, que efeitos produz e por quais sinais se
reconhece?21 A esta pergunta, segundo o escrivo, Luzia Pinta
Disse que a respeito do contedo da pergunta s sabe declarar que adita doena lhe chamam na sua terra calundus e que esta se pega deumas pessoas a outras e que a ela lha poderia ter comunicado uma tia
21 ANTT, Inq. de Lisboa, Proc. n. 252.
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sua, chamada Maria, o que no sabe ao certo, por ter vindo de muitenra idade. E o que pode afirmar com certeza que achando-se ela navila de Sabar ouvindo missa em dia santo, lhe sobreveiorepentinamente a dita doena, de que ficou muito mal, por nosaberem os remdios que se haviam de aplicar, at que sendo
chamado um preto por nome Miguel, escravo de Manuel de Miranda,morador na dita vila, lhe disse este que a dita queixa era a do calanduze que s a havia de curar e ter remdio mandando tocar algunsinstrumentos e fazendo [algumas coisas] mais, por ser este o meio e omodo porque se costuma curar a dita doena, o que com efeito ela feze experimentou melhora.
Aqui, o termo se aplica doena. Contudo, no se trata da doena carregada
pelos clientes de Luzia Pinta, que ela curava com suas cerimnias; nesse caso, a doente
Luzia Pinta, a prpria calunduzeira. Em outro momento do interrogatrio, Luzia
afirmou ainda que os calundus eram destino ou virtude concedidos por Deus. Oquadro se complica, na medida em que estamos diante de um termo que descreve uma
cerimnia de cura e adivinhao, mas designa igualmente uma doena e uma virtude ou
destino. Ele possui portanto uma carga negativa, de enfermidade da qual necessrio se
curar, e uma carga positiva, de virtude.
Analisemos a declarao de Luzia Pinta a fim de tentar esclarecer esse
emaranhado semntico. Na ocasio em que ela foi acometida pela doena enquanto
assistia missa, os presentes tiveram de chamar o preto Miguel, um escravo de Manuel
de Miranda, para ajud-la. Nas entrelinhas dessa convocao, percebe-se oreconhecimento geral de que Miguel detinha o conhecimento necessrio para tratar um
mal que ningum mais parecia capaz de curar. Ou seja, Miguel devia ser, ele tambm,
um curandeiro ou calunduzeiro, capaz de curar Luzia Pinta de seus calundus, ou ao
menos capaz de indicar os meios rituais necessrios para tanto. Portanto, antes de se
tornar calunduzeira, Luzia Pinta havia sido, ela prpria, uma doente submetida
cerimnia de cura de Miguel, a seu calundu. Se o termo calundu podia aparecer
associado tanto ao doente quanto ao curandeiro, aqui parece claro que Luzia Pinta
transitou de fato entre essas duas posies, reforando a ambigidade do termo. Como
interpretar essa passagem? De que forma Luzia Pinta teria sido iniciada aos segredos da
cerimnia aps ter sido curada para se tornar tambm uma calunduzeira?
Retomemos alguns aspectos das iniciaes mgico-religiosas vigentes entre os
sculos XV e XIX nas sociedades da frica centro-ocidental. Em geral, para que um
indivduo se tornasse sacerdote ou chefe (ambos eram ttulos com funes rituais), ele
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devia ser iniciado no culto de um esprito especfico. Mediante uma cerimnia para a
qual dispendia um valor que variava de acordo com o ttulo, o candidato era geralmente
levado a uma recluso ritual, de onde saa algum tempo depois possuidor de segredos e
poderes sobre o esprito em questo. Em nvel simblico, essa recluso correspondia auma morte ritual, uma passagem para o mundo invisvel dos espritos, de modo que, ao
trmino dela, o iniciado voltava ao mundo visvel dos vivos portando uma ligao
especial com o esprito, sendo portando capaz de invocar poderes sobrenaturais. A partir
da, podia, ele prprio, realizar rituais e cobrar por seus servios.
Nas culturas centro-africanas, o universo era entendido como dividido em duas
grandes esferas: o mundo visvel habitado pelos vivos e o mundo invisvel habitado por
antepassados e espritos diversos. O funcionamento harmnico e regular do universo
dependia de uma relao complementar e de reciprocidade entre ambos os mundos, que
deveria ser ritualmente regulada. Cada esprito demandava um tratamento ritual prprio
e exigia oferendas especficas, ao mesmo tempo em que tambm dispunha de uma srie
de benesses a serem distribudas para os vivos que o cultuassem. Dessa forma, criava-se
uma srie de relaes complementares em que os vivos deviam fornecer oferendas aos
espritos e deles receberiam benesses diversas. Nesse contexto, todo poder sobrenatural
era concebido com advindo de uma relao ritualmente regulada com um tipo especfico
de esprito. Quando o iniciado sofria uma morte ritual, o objetivo era transpor a barreira
entre os mundos de modo a fortalecer a ligao com o esprito ao qual ele se dirigiria e,
portanto, acumular ou garantir o acesso ao poder sobrenatural.
Em alguns casos, a iniciao ao culto de um esprito era desencadeada por uma
enfermidade ou aflio espiritual: o futuro iniciado era possudo pelo esprito,
normalmente um antepassado, e sofria de uma doena espiritual para a qual precisava
buscar tratamento ritual e cura. Normalmente, a possesso era desencadeada pela falta
de venerao ou tratamento ritual adequado. Atravs da iniciao ritual, o doente
reatava os laos adequados com o esprito, curava-se da enfermidade e,
simultaneamente, passava a ter uma ligao especial com o esprito que antes o
possura. Com isso, tornava-se um elo de mediao entre mundo visvel e invisvel e
passava a poder mobilizar o poder do esprito para diversos fins rituais, tornando-se um
oficiante dos cultos desse esprito. A cura era, ao mesmo tempo, uma iniciao que
redundava em acmulo de poder ritual e, como era freqente nas sociedades centro-
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africanas, tambm em ocupao de uma funo ritual especfica, como oficiante de um
culto pblico ou privado de um esprito.22
Essa transio do papel de doente para o de sacerdote era uma possibilidade
latente no sistema simblico centro-africano, e que ajuda a explicar a ambigidade dotermo calundu no contexto colonial. No caso de Luzia Pinta, encontramos praticamente
todos os elementos tpicos de uma iniciao ritual centro-africana: primeiramente, Luzia
havia sido acometida por uma doena de sua terra. A declarao de que a doena lhe
teria sido transmitida por uma tia chamada Maria implica, evidentemente, em que a tia
provavelmente sofresse da doena tambm. Isso s refora a hiptese de que se tratasse
de uma aflio ligada aos espritos da linhagem, ou seja, aos ancestrais, j que a
transmisso se dava no interior da parentela. A ligao da aflio com os espritos da
linhagem parece ter sido constante nos calundus coloniais: lembremo-nos de Frei Lus
de Nazar, que em 1730 afirmava que os calundus consistiam em feitios cujas vtimas
so possudas por espritos de parentes mortos. O fato de Luzia Pinta ter vivido em uma
famlia de escravos em Luanda talvez ajude a compreender a ocorrncia da doena:
possivelmente impedida de cumprir todas as obrigaes rituais em relao aos
antepassados por viver na cidade portuguesa e catlica de Luanda, a tia Maria pode ter
se visto (conscientemente ou no) em uma situao de dbito em relao aos espritos.
Suas faltas no tratamento ritual adequado em relao aos ancestrais poderiam
facilmente se manifestar como uma aflio espiritual causada pelos mesmos espritos.
Vtima dessa doena do calundu, Luzia recebeu a ajuda ritual de Miguel em
Sabar a fim de se curar. Para isso, deveria cumprir obrigaes rituais, mandando tocar
alguns instrumentos e fazendo [algumas coisas] mais, por ser este o meio e o modo
porque se costuma curar a dita doena. A expresso o modo porque se costuma curar
indica que Miguel invocou os procedimentos tradicionais e habituais atravs dos quais
se curavam enfermidades causadas por espritos. Esses procedimentos determinavam
que Luzia mandasse realizar algumas cerimnias (tocar instrumentos e fazer [algumas
coisas] mais), que muito provavelmente tinham como objetivo restabelecer os laos
harmnicos com o esprito que a afligia atravs da venerao cerimonial pertinente.
Como nas sociedades centro-africanas, a cura se transformou em uma iniciao ritual:
22 MACGAFFEY, Wyatt, op. cit, descreve a dinmica e a simbologia envolvida nos ritos de iniciaocentro-africanos. Ele descreve ritos contemporneos e relativos ao sculo XIX, mas seu modelo poder seradequadamente aplicado a sculos anteriores quando cotejado com a documentao da poca.
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uma vez reconfigurado o lao de Luzia com o esprito que a afligia, ela prpria passou a
derivar desse lao um poder sobrenatural; ou seja, tornou-se ela prpria uma
calunduzeira como Miguel.
Todos os elementos tpicos das iniciaes centro-africanas esto presentes nocaso de Luzia Pinta: a aflio espiritual (causada pelos espritos da linhagem), a cura
que se converte em acmulo de poder sobrenatural, o valor dispendido pela iniciao e a
morte ritual. O dispndio financeiro no est explcito na documentao, mas pode ser
inferido a partir de dois indcios: Miguel muito provavelmente recebeu pagamento pelos
servios de cura executados, como era habitual entre os curandeiros coloniais, que
muitas vezes extraam seu sustento ou acumulavam dinheiro para alforrias empregando
seus poderes sobrenaturais a servio de clientes pagantes23 como fazia a prpria Luzia,
inclusive. Alm disso, Miguel afirmou que Luzia Pinta devia mandar fazer alguns
procedimentos rituais, frmula que muito possivelmente indica que Luzia pagou pelos
materiais usados do ritual, como comidas, bebidas ou as oferendas necessrias para
restabelecer relaes adequadas com os espritos. Nesses dois indcios encontramos um
dispndio financeiro que corresponde ao valor que devia ser gasto nas cerimnias das
iniciaes rituais centro-africanas com a preparao das oferendas.
A morte ritual tambm aparece atravs de indcios indiretos. Nas iniciaes
centro-africanas, muitas vezes ela era representada pelo desfalecimento do iniciado, e
Luzia Pinta sofreu de fato um desfalecimento enquanto assistia missa. Alm disso, ao
relatar aos inquisidores uma viso exttica que vivenciara quando criana, ainda em
Luanda, Luzia falou da travessia de um rio e de uma bifurcao de caminhos na floresta,
imagens correntes na tradio centro-africana para indicar a transposio das fronteiras
entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos. No foi por acaso que Luzia invocou
exatamente o episdio juvenil da viso exttica quando questionada pelos inquisidores:
a morte ritual vivenciada em xtase relacionava-se com a doena do calundu e
explicava, retroativamente, a iniciao ocorrida anos depois em Sabar, aos cuidados do
preto Miguel.
Alguns indcios nos permitem supor que no estamos diante de um caso isolado,
mas de uma cadeia de iniciaes rituais. Se o idioma do quilundu-calundu, como afirma
James Sweet, era genrico o bastante para ser compreendido por quase todos os
23 SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a terra de Santa Cruz: Feitiaria e religiosidade popular noBrasil colonial. So Paulo: Cia. das Letras, 1987
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escravos de origem centro-africana, tambm possvel que muitos desses indivduos
estivessem cientes do poder sobrenatural que o doente curado pelo calunduzeiro podia
adquirir. Em outros termos, o conceito de uma cura que era simultaneamente acmulo
de poder e iniciao ritual deveria ser uma noo conhecida entre parcelas significativasdo setor escravo da sociedade colonial. Essa noo dava legitimidade simblica aos
clientes de um calunduzeiro que quisessem tambm se tornar calunduzeiros, e para
alguns o exerccio dessa vocao podia mesmo ser uma responsabilidade ritual diante
dos espritos dos antepassados. Se a interpretao que proponho coerente, o calundu
pode ser encarado como um procedimento ritual que impelia o indivduo que a ele se
submetia a se tornar um oficiante do rito, a fim de assumir uma responsabilidade
espiritual frente aos antepassados, ou que pelo menos lhe dava legitimidade simblica
perante a comunidade africana para faz-lo caso o desejasse.
A partir da torna-se possvel compreender a extravagante afirmao de Luzia
Pinta de que o calundu era ao mesmo tempo doena, virtude e destino. Doena
porque afligia o corpo e a alma; virtude porque era um caminho para a obteno de
poder sobrenatural; e por fim, destino porque era uma responsabilidade perante os
espritos e a linhagem. Ao se tornar calunduzeira e cumprir o destino traado por sua
doena, Luzia de alguma forma honrava e respeitava a memria de sua tia Maria,
possivelmente angustiada pelo dbito em relao aos espritos ancestrais com os quais
Luzia pde se reconciliar. Em um universo cultural em que a parentela constitua um
eixo central na construo das identidades sociais do indivduo, a responsabilidade
perante a memria da linhagem no deve ser subestimada.24 Se outros africanos
levavam to a srio quanto Luzia Pinta esse destino, perfeitamente possvel que
estejamos diante de uma cadeia de curas e iniciaes rituais que, em alguns contextos,
perpetuava seus prprios curandeiros de uma maneira atomizada, atravs de relaes
individuais e particulares de iniciao.
Luiz Mott afirmou que as estruturas demogrficas e institucionais da colnia
portuguesa na Amrica facilitaram a plasticidade e a propagao das prticas mgico-
religiosas e os sincretismos religiosos, pois as povoaes tendiam a ser esparsas (o que
era menos verdadeiro no caso da regio mineradora) e a presena de rgos
24 MILLER, Joseph. Retention, Reinvention, and Remembering: Restoring Identities ThroughEnslavement in Africa and under Slavery in Brazil. In: CURTO, Jos C.; LOVEJOY, Paul. EnslavingConnections: Changing Cultures of Africa and Brazil during the Era of Slavery. New York: HumanityBooks, 2004, p. 81-121.
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centralizadores e do clero era pouco enraizada, engendrando uma religiosidade
intensamente vivida no espao privado e marcada pelas prticas heterodoxas.25
Referindo-se mais especificamente ao contexto urbano das Minas Gerais, Laura de
Mello e Souza afirmou que a sociedade mineradora apresentava uma situao propcia propagao, reproduo e plasticidade das prticas mgico-religiosas como o
calundu, pois concentrava numerosa populao urbana de escravos e punha em contato
diferentes prticas mgicas.26 Adicionaramos que tambm propiciava o contexto scio-
cultural dentro do qual que as curas poderiam se transformar em iniciaes em cadeia
que se espalhavam pelas vilas da regio.
Os vestgios diretos de uma tal cadeia de iniciaes so difceis de rastrear, at
porque as iniciaes teriam sido assistemticas e no teriam contado com uma
instituio fixa ou templo, limitando-se relao particular entre o calunduzeiro e o
novo iniciado. Mas h, novamente, alguns sinais a esse respeito. Nas denncias contra
Luzia Pinta, vemos que a calunduzeira afirmava que fazia suas adivinhaes extticas
com a ajuda de uns ventos de adivinhar [que] lhe entravam pelos ouvidos. Em 1753, a
justia eclesistica registrou o caso de uma outra escrava da regio das Minas chamada
Maria Canga, que inventava uma dana de batuque, no meio da qual entrava a sair-lhe
da cabea uma coisa, a que se chama vento, e entrava a adivinhar o que queria.27 Surge
aqui na declarao de Maria Canga o mesmo termo que Luzia Pinta usava, os ventos
de adivinhar. A singularidade do termo vento ressaltada no registro da justia
eclesistica: o fato de se recorrer frmula uma coisa, a que se chama vento indica j
que o termo muito provavelmente no era corrente e precisava ser explicado ou
destacado. Apesar disso, pode ser que o vento s fosse desconhecido dos eclesisticos, e
que fosse um termo corrente em rituais centro-africanos de adivinhao, embora eu no
tenha notcias a esse respeito. Outra possibilidade, que no pode ser descartada, a de
que o termo tivesse sido ensinado a Maria Canga pela prpria Luzia Pinta, que praticara
seus calundus na regio pouco mais de 10 anos antes. Pode ser, ainda, que se tratasse de
25 MOTT, Luiz. Cotidiano e vivncia religiosa: entre a capela e o calundu. In: SOUZA, Laura de Mello e(Org.).Histria da vida privada no Brasil. Vol. 1. Cotidiano e vida privada na Amrica portuguesa. SoPaulo: Companhia das Letras, 2000, p. 155-220.26 SOUZA, Laura de Mello e. Revisitando o calundu. In: GORENSTEIN, Lina e CARNEIRO, Maria L.Tucci (Org.). Ensaios sobre a intolerncia: Inquisio, Marranismo e Anti-Semitismo. So Paulo:Humanitas, 2002, p. 315.27 Arquivo Eclesistico da Arquidiocese de Mariana, Devassas, Maio/Dezembro 1753, fl. 101v. Apud.SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a terra de Santa Cruz: Feitiaria e religiosidade popular no Brasilcolonial. So Paulo: Cia. das Letras, 1987, p. 265-6.
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uma transmisso indireta, atravs de um outro calunduzeiro iniciado por Luzia ou por
Miguel, enfim, atravs de um ou mais degraus iniciatrios que disseminaram o uso do
termo entre alguns calunduzeiros da regio.
Caso se aceite que o percurso de Luzia Pinta no foi isolado, mas que talvezpossa ter feito parte de um padro inicitico de maior amplitude, a natureza desse tipo
de iniciao pode ajudar a explicar algumas caractersticas marcantes dos calundus
coloniais. Luiz Mott, ao empreender a anlise etno-histrica dos calundus de Luzia
Pinta, destacou suas similaridades com os ritos de um tipo de sacerdote ambundo
chamado xinguila.28 No pretendo aqui questionar a filiao proposta por Mott;
contudo, retomando os pormenores da comparao, teremos a oportunidade de
destrinchar os fios de um caminho de apropriaes rituais bem mais complexo e
mediado do que uma mera reproduo, na Amrica, de um rito africano.
Mott recorreu ao relato de Giovanni Antonio Cavazzi de Montecccolo, um
missionrio capuchinho que atuou na regio do Congo e de Angola em meados do
sculo XVII e que descreveu vrios tipos de sacerdotes e rituais com os quais se
deparou ao longo de sua atuao missonria na regio. dele a descrio dos ritos de
um tipo de feiticeiro que ele denomina xinguila (ora aportuguesando o plural da
palavra, adicionando S, ora referindo-se ao plural sem o S escolherei aqui a forma
plural aportuguesada). Mott comparou elementos do calundu de Luzia Pinta com as
descries relativas aos ritos dos xinguilas, concluindo que eles teriam sido o modelo ou
matriz a partir do qual Luzia elaborou seus rituais. Para isso, Mott destacou alguns
aspectos da descrio que Cavazzi fez dos xiguilas e que encontramos na descrio do
calundu de Luzia Pinta: o fato de que os xinguilas podiam pertencer ao sexo feminino, o
fato de os clientes se deitarem no cho, o uso de um alfanje, um machadinho, grinaldas
de flores e penachos, argolas e correntes de ferro e embrulhos com certos ingredientes
atados aos braos dos clientes.
Com esse recorte, porm, Mott deixou de lado boa parte das descries do
missionrio, sobretudo nos aspectos que no coincidiam com as prticas de Luzia Pinta.
Longe de considerar esses aspectos como perdas ou degeneraes culturais, parece-
nos importante dar a eles mais ateno a fim de traar o processo de apropriao
simblica que levou elaborao da forma final dos calundus de Luzia Pinta em Sabar.
28 MOTT, Luiz. O calundu-Angola de Luzia Pinta: Sabar, 1739.Revista do IAC, Ouro Preto, n. 1, p. 73-82, dez 1994.
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Essas rupturas podem revelar tanto sobre o processo quanto as continuidades; se
aceitamos a dinmica que proponho para as iniciaes rituais ligados aos calundus, as
descontinuidades nos permitiro compreender em parte o percurso histrico dos
calundus na sociedade colonial ao longo do sculo XVIII.Cavazzi definiu os xinguilas como um tipo de sacerdote dos jagas (como os
portugueses chamavam o grupo tnico dos imbangalas). Mais especificamente,
xinguila quer dizer adivinho possudo por um esprito que fala pela sua boca 29, ou
seja, um adivinho que realiza seus ritos por meio de uma possesso espiritual. At a, a
coincidncia com as cerimnias de possesso de Luzia Pinta no especialmente
reveladora, tendo em vista que a possesso espiritual era um dos elementos mais
constantes e disseminados nas prticas rituais centro-africanas e nas relaes entre os
vivos e os espritos. Sob a rubrica de xinguila, termo cuja significao, portanto,
bastante ampla, Cavazzi inclui um nmero de adivinhos diferentes entre si, como se
pode observar na seguinte passagem: Duas coisas h de comum com todas as espcies
de xinguila e de dolos: a primeira que, como cada provncia tem os seus dolos
particulares, os xinguila deputados ao culto deles tm sempre o nome do respectivo
dolo, alm do nome genrico de quilundo30. O termo quilundo, aparentado com
calundu, aparece aqui registrado justamente como vocbulo genrico para vrios
espritos particulares (que Cavazzi chama de dolos) que possuem ritualmente os
corpos de seus sacerdotes. Assim sendo, os elementos que Mott recolhe como
caractersticos dos xinguilas podem no ser procedimentos exclusivos de um nico tipo
de sacerdote, mas uma coleo de procedimentos pertencentes ao que o olhar de
Cavazzi identifica como um grupo de especialistas do sagrado, um grupo relativamente
heterogneo que continha especialistas em espritos distintos. possvel que essas
diferentes espcies de xinguilas compartilhassem entre si alguns dos procedimentos
que o missionrio descreve, ou at mesmo todos eles, como um repertrio de prticas
comuns. impossvel, contudo, afirmar com segurana que todas as prticas elencadas
por Cavazzi sob a rubrica genrica dos xinguilas fossem necessariamente usadas por
29 CAVAZZI DE MONTECCCOLO, Padre Giovanni Antnio. Descrio histrica dos trs reinos doCongo, Matamba e Angola. Lisboa: Junta de Investigaes do Ultramar, 1965. Livro Segundo, 50, p.204. Note-se que os excertos transcritos por Luiz Mott no artigo supra-citado no coincidem exatamentecom a redao da edio consultada neste estudo, muito embora a bibliografia indique a mesma edio.No posso determinar o motivo dessa discrepncia.30Ibid., Livro Segundo, 58, p. 209 (o grifo meu, os itlicos so da edio consultada).
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todos os diferentes adivinhos que recebem essa denominao; pelo contrrio, parece-nos
que o fato de os xinguilas se dedicarem ao culto de espritos distintos indica que
empregassem procedimentos rituais tambm diferentes entre si.
Alm dos elementos do calundu de Luzia Pinta advindos dos xinguilas, Mottdestaca outros pertencentes aos rituais de um tipo de sacerdote chamado ngombo: o
ato de urrar e saltar em transe, de lanar ps sobre os clientes e de lhes dar vomitrios.
A origem geogrfica do ngombo no precisada por Cavazzi, mas no se pode admitir a
priori que coincida com a dos xinguilas. Assim sendo, o ritual de Luzia Pinta, antes de
ser a recriao ipsis literis de um rito africano de um sacerdote especfico, parece o
resultado de seleo, apropriao e colagem de elementos oriundos dos ritos de
sacerdotes diversos, talvez mesmo de regies diferentes.
No mbito das relaes sociais e de prestgio tambm se revelam
descontinuidades significativas entre Luzia Pinta e os xinguilas. Cavazzi deixa bastante
claro o papel de proeminncia social e poltica dos xinguilas entre os imbangalas:
Xinguila quer dizer adivinho possudo por um esprito que fala pelasua boca. Esta ral, a mais pestfera entre todas, numerosssima emuito estimada pelos Pretos, quer jagas, quer de outros povos.Embora se julguem isentos de qualquer lei, so rigorosssimos contraos outros transgressores. Tudo o que eles mandarem deve sercumprido, como se fossem deuses na Terra. So to temidos que
ningum, nem sequer os prncipes, se atreve a falar-lhes seno dejoelho dobrado e com suma reverncia. [...] Ordinriamente ofenmeno manifesta-se em pessoas importantes.31
Mais adiante:
Estes xinguila gozam de uma autoridade formidvel perante os reis eos comandantes dos exrcitos. Poderiam ser, de certo modo,comparados com os capeles das nossas tropas, mas tm muito maisautoridade, pois so rbitros das determinaes de ordem militar,especialmente quando seu xito mais difcil e incerto.32
O elevado status social possudo pelos xinguilas revela a importncia da
dimenso ritual na constituio do poder poltico nas sociedades centro-africanas.
Podemos ver no relato de Cavazzi que estes sacerdotes constituam um grupo muito
31Ibid., Livro Segundo, 50, p. 204 (os itlicos so da edio consultada).32Ibid., Livro Segundo, 51, p. 206 (os itlicos so da edio consultada).
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prximo dos chefes polticos. Eram possivelmente semelhantes figura, descrita por
Wyatt MacGaffey e Anne Hilton, do sacerdote que oficiava cultos de espritos locais
ligado ao poder dos chefes, chamado freqentemente de nganga kitomi ou kitome na
regio do reino do Congo.33 A hiptese de que os xinguilas seriam sacerdotes deespritos locais, ligados aos poderes polticos, reforada por um outro indcio que nos
d Cavazzi: como cada provncia tem seus dolos, os xinguila deputados ao culto deles
tm sempre o nome do respectivo dolo34. Esses dolos de cada provncia, cultuados
pelos xinguila, no so seno espritos de carter local.
A situao na qual se encontrava Luzia Pinta em Sabar era, no cabe dvida,
bastante diferente daquela dos poderosos e influentes xinguilas africanos. Talvez ela
pudesse ser aproximada muito mais da posio marginal ocupado pelos curandeiros
centro-africanos que atendiam a clientes particulares e que corriam sempre o risco de ter
sua legitimidade questionada por conta do carter privado de seus ritos.35 Assim como
eles, Luzia realizava curas e adivinhaes para clientes particulares e vivia em uma
situao precria do ponto de vista institucional, pois esteja sujeita ao risco constante de
ser delatada justia eclesistica, o que de fato ocorreu quando ela desagradou clientes
seus e pessoas a eles relacionadas, como Domingos Pinto, que teve seu ouro roubado
pelas escravas com quem dormia, ou os responsveis por Luis Coelho Ferreira, que s
portas da morte preferiu os calundus aos remdios convencionais da f catlica ou da
medicina portuguesa. Nesse sentido, ela tambm estava muito mais prxima do lugar
social e simblico ocupado pelas feiticeiras portuguesas no Reino, marcado pela
ambigidade e pelo risco de denncia a poderes de normatizao religiosa que no
consideravam sua atuao como legtima, especialmente o Santo Ofcio.
Alm dessa diferenas, Cavazzi reitera em vrias passagens o fato de que os
xinguilas realizavam sacrifcios humanos e antropofagia. difcil saber em que medida
isso poderia corresponder projeo de um esteretipo hostil, oriundo da demonologia
eclesistica, sobre os sacerdotes imbangalas.36 Mas um fato deve ser levado em conta: o
33 MACGAFFEY, op. cit., p. 138; HILTON, Anne. The Kingdom of Kongo. New York: OxfordUniversity Press, 1985, p. 1-31.34 CAVAZZI DE MONTECCCOLO, op. cit., Livro Segundo, 58, p. 209 (os itlicos so da edioconsultada).35 MACGAFFEY, op. cit., p. 173.36 COHN, N., op. cit., indica que a acusao de canibalismo ritual era um lugar-comum difamatrio nacultura eclesistica da baixa Idade Mdia, e que fazia parte do modelo acusatrio do sab, empregado
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relato do capuchinho descreve muitos tipos de sacerdotes, e a maior parte deles no
descrito como realizando sacrifcios humanos ou antropofagia, os xinguilas
representando uma exceo significativa. Caso se aceite que eles de fato realizassem
tais atos, claro que Luzia Pinta negligenciou esses aspectos do ritual dos xinguilas, oque constituiria mais um ponto de afastamento entre as prticas africanas e os calundus
coloniais.
A isso tudo podemos adicionar um detalhe bvio, mas importante: Luzia Pinta
nunca foi uma sacerdotisa xinguila, j que, em primeiro lugar, no tinha nem idade para
isso quando deixou Luanda a bordo de um tumbeiro, e em segundo lugar, vivera na
cidade crist de Luanda. impossvel saber se esses procedimentos rituais que ela
executava em Sabar, e que guardavam tantas semelhanas com os ritos dos xinguilas
em Angola, haviam sido recriados a partir da memria de experincias religiosas que ela
tivera em Angola antes de ser traficada, a partir de histrias ouvidas da boca de
parentes, ou se foram aprendidos com outros praticantes de magia de origem africana j
nas Minas Gerais, como o mencionado preto Miguel. Nada nos desautoriza a supor que
Luzia Pinta possa ter aprendido os procedimentos de seu ofcio em sua iniciao ritual
com Miguel ou nas trocas com outros calunduzeiros.
O que me interessa destacar que a composio dos calundus de Luzia Pinta
est longe de ter sido um mero transplante ou transposio sem alterao de um rito
praticado na frica. Antes, a composio operou recortes e sobreposies de funes e
elementos rituais de sacerdotes e mesmo de regies distintas. 37 Isso condizente com o
padro inicitico que descrevi, que no implicava na pertena a uma instituio religiosa
ou a um corpo sacerdotal sistematizado capaz de realizar a padronizao do rito. Antes,
essas iniciaes engendravam laos circunstanciais entre o iniciador e o iniciado, em
que alguns procedimentos rituais poderiam ser transmitidos enquanto ainda persistiriam
muitas lacunas. Caso o iniciado viesse a assumir o destino do calundu, viria a
preencher essas lacunas recorrendo a seu prprio repertrio cerimonial, composto por
procedimentos e elementos que ele aprendeu em outros lugares e com outros sacerdotes
contra as bruxas. Para descries adicionais do sab das bruxas, cf. tambm GINZBURG, Carlo.Histrianoturna: Decifrando o sab. So Paulo: Companhia das Letras, 1991.37 Esta anlise comparativa entre os calundus de Luzia Pinta e as cerimnias dos xinguilas, ressaltando osrecortes e reelaboraes, j havia sido apresentada em MARCUSSI, Alexandre A. Estratgias demediao simblica em um calundu colonial.Revista de Histria, So Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, n.154, p. 97-124, 2 sem. 2006.
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ou que foram resgatados de sua memria a respeito de suas vivncias rituais ainda na
frica, resultando em uma forma final que uma elaborao a partir do recorte de
vrias matrizes.
A enorme variao e disperso dos ritos de calundu que Laura de Mello e Souzaobservou podem, portanto, ser mais bem compreendidos se levarmos em conta o tipo de
iniciao pela qual esses curandeiros-adivinhos passavam. A cadeia de iniciaes do
calundu teria servido como uma instituio flexvel e dispersa que possibilitou a
reformulao constante daquilo que era identificado atravs do termo calundu, bem
como a incorporao reiterada de novos elementos. Em vez de conceber o calundu
como um rito africano que foi perdendo seu carter ou se sincretizando ao longo do
tempo, essa concepo nos levaria a entend-lo antes como um padro inicitico dentro
do qual a reelaborao e a variao seriam aspectos intrnsecos. Atravs dessa forma
assistemtica de transmisso do saber ritual, alguns aspectos dos ritos de cura e
adivinhao teriam sido passados adiante para novos praticantes e recombinados a
elementos oriundos de ritos distintos. Trata-se de uma transmisso sempre parcial e em
constante reelaborao, minimizando a importncia que Mintz e Price do aos ritos
trazidos pela primeira gerao de escravos.38
Na verdade, a plasticidade e a incorporao de novos elementos rituais era uma
constante no sistema ritual centro-africano. Como ressaltam Craemer, Vansina e Fox,
era constante na frica Centro-Ocidental a presena e disseminao de movimentos
religiosos criados a partir de revelaes espirituais e adotados por comunidades vizinhas
em busca de novas cerimnias para resolverem seus problemas. A religiosidade centro-
africana buscava ativamente novos ritos e novos espritos e era aberta a incorpor-los a
partir de outras tradies e outros sacerdotes.39 Tudo isso s refora a tendncia dos
centro-africanos de buscar e incorporar novos ritos, novas figuras sagradas, na frica ou
na Amrica, sem com isso abdicar de sua estrutura cosmolgica fundamental, pois ela
guardava lugar para tais incorporaes. justamente essa tendncia incorporativa que
observamos na cadeia inicitica do calundu .
38 MINTZ, Sidney W.; PRICE, Richard. O nascimento da cultura afro-americana: Uma perspectivaantropolgica. Rio de Janeiro: Pallas / Universidade Cndido Mendes, 2003, p. 73-5.39 CRAEMER, Willy de; VANSINA, Jan; FOX, Rene C. Religious Movements in Central Africa: ATheoretical Study. Comparative Studies in Society and History, Cambridge: Cambridge University Press,v. 18, n. 4, p. 458-475, oct. 1976.
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Tendo em vista tudo o que expus, gostaria de encerrar esta comunicao
propondo uma nova perspectiva a partir da qual podemos conceber os calundus
coloniais. Talvez seja mais proveitoso pensar nos calundus no como um rito ou uma
cerimnia que foi progressivamente se diluindo ou se descaracterizando, como propsSouza, nem necessariamente como um rtulo genrico para vrios ritos de cura e
adivinhao no-relacionados que contavam com a possesso ritual, como sugere
Sweet, mas sim como uma cadeia iniciatria em ao em alguns contextos da sociedade
luso-americana, que permitiu a transmisso parcial e assistemtica de um saber ritual
calcado em uma concepo caracteristicamente centro-africana da possesso espiritual e
que engendrou uma intensa reelaborao das prticas rituais, tornando-se uma espcie
de substrato a partir do qual diversos praticantes operaram uma seleo e recombinao
de ritos de procedncias mais ou menos distintas.
Esta forma de encarar os calundus nos permite abordar de outra maneira o
problema da ausncia de continuidade desses ritos. Aos estudiosos que viram no
calundu uma espcie de religio afro-brasileira do sculo XVIII causou perplexidade a
constatao de que ela teria simplesmente desaparecido da comunidade africana e afro-
descendente para dar lugar, pelo menos na Bahia, aos candombls no sculo XIX. No
entanto, se levarmos em conta o grau de assistematizao dos calundus, o processo se
torna mais compreensvel e a prpria questo da continuidade perde o sentido. O
candombl contava com um corpo sacerdotal, com um conjunto de crenas e
procedimentos mais sistematizado e com iniciaes religiosas cujo carter apontava na
direo de uma transmisso mais codificada e fixada do saber religioso. Muito diferente
era a situao dos calundus: se os concebermos como cadeias de iniciaes sem corpo
doutrinrio nem procedimento ritual fixo, eles sequer poderiam ser considerados uma
religio de feies estveis que poderia ter se perpetuado ou se reproduzido no tempo.
a prpria noo do que constituiria uma religio afro-americana, portanto, que
colocada em causa pelo carter plstico e assistemtico da doena, cerimnia ou destino
dos calundus.
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