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Artigo original

INFECCAo AUTOCTONE DA PAREDEARTERIALMaria de Fatima Teixeira Guimaraes*Abilio Carlos Rizzioli*Joel Kenji Hosoume**Paulo E.G. Braga***Wolfgang G.W. Zorn****Bonno van Bellen*****

A infecr;:ao de um enxerto arterial sintetico e considera-da uma das mais graves complicac;;oesda cirurgia vascular.A alta morbidez e mortalidade associadas a esse problemalevam a uma constante procura por metodos e terapf!Uti-cas que possam diminuir a incidencia do problema. Apesardisso, no entanto, a infecc;;ao ocorre universalmente em1% a 5% dos pacientes submetidos a implantes de pr6te-ses arteriais. Alguns autores tem explicado a manutenc;;aodesses fndices pela contaminac;;ao de material endoarterialque verificaram em seus pacientes. Com 0 objetivo de de-terminar a epidemiologia e a pre valencia da flora endoarte-rial (oram realizadas culturas de material obtido de 117 pa-cientes submetidos a intervenc;;oes arteriais. Houve culturapositiva em 7 pacientes, representando 6% da casufstica.o germe mais frequentemente encontrado foi 0 S.epider-midis (57,1 %), sendo que os demais (oram 0 S.aureus, En-terococcus e Salmonella. Na maioria dos casos (85,7%) asculturas positivas foram obtidas de material retirado daaorta. Dos sete pacientes que apresentaram cultura positi-va houve dois 6bitos hospitalares. Os cinco restantes fo-ram acompanhados durante perfodo de 20 a 31 meses enenhum apresentou evidencia de processo infecciosoatual comprometendo trajeto arterial ou pr6tese implanta-da. Conclui-se que ha evidencias nftidas da existencia deuma flora bacteriana sub-clfnica na parede arterial, que napresente casufstica nao comprometeu a evoluc;;aode pr6-teses arteriais implantadas.

Trabalho realizado no Servi~ de Cirurgia Vascular e Angiologia doHospital da Beneficencia Portuguesa de Sao Paulo.

Ex-estagiarios do Servir;o** ESlagiario do Servir;o*** Assislente do Servir;o**** Responsavel pelo Servir;o***** Responsavel pelo Servir;o

DOUlor em Medicina pela Faculdade de Medicina daUniversidade de Sao Paulo.Livre Docente em Molestias Va,culares Perifericas pelaUniversidade de Campinas.

A infw;ao de urn enxerto arterial e considerado 0maior pesadelo de urn cirurgiao vascular. Desde que istofoi reconhecido, uma serie de cuidados vem sendo torna-dos para diminuir ao maximo a possibilidade de instala<;aode processo infeccioso que possa vir a comprometer a pro-tese vascular, a viabilidade do membro revascularizado e,principalmente, a vida do paciente. Apesar desses esfor-90S, nao se obteve significativa diminui<;aodos indices decontamina<;ao de enxertos arteriais, que permanecem emtorno de 1% a 5%.

Essa recalcitrante tendencia de se manter em faixa deincidencia aparentemente imutavel tern levado a procurade outras fontes de contamina<;ao da protese vascular queas habitual mente aceitas.

Alguns autores, realizando cultura bacteriana de ma-terial da parede arterial colhido durante a interven<;aoci-rurgica, observaram incidencia significativa de infec<;aolatente nos trombos parietais, isto e, na sede do processoateroscler6tico. Alem disso, observaram que a maioria dasmanifesta<;oes infecciosas verificadas posteriormenteocorreram em pacierites que tinham contamina<;aoprevia,subclinica, de suas placas de ateroma2,3,7,8.

Tendo em vista que a epidemiologia das infecl;6es la-tentes da parede arterial pode variar de regiao para regiaoe de hospital para hospital, realizamos em nossa popula-<;aode pacientes urn estudo prospectivo com 0 objetivo deestabelecermos parametros epidemio16gicos da infec<;aosubclinica da parede arterial doente.

No periodo compreendido entre janeiro de 1988 ese-tembro de 1989, foram estudados 117 pacientes submeti-dos a intervenl;6es cirurgicas arteriais por processo ateros-cler6tico, com a seguinte distribui<;aopor tipo de afecl;iio:- 45 por doen<;aoclusiva aorto-iliaca;- 34 por doen<;aoclusiva carotidea;- 28 por doen<;aaneurismatica da aorta;- 5 por doen<;aoclusiva femoro-poplitea;- 2 por aneurisma anastomotico da arteria femoral;- 1 por aneurisma anastomotico'da aorta;- 1 por doen<;aobstrutiva de arteria subclavia e- 1 por trombo-embolismo de arteria femoral.

A popula<;aode doentes era constituida de 96 (82%)homens e 21 (18%) mulheres. A idade variou entre 29 e86 anos, com media de 61,2 anos. Todos os pacientes fo-ram submetidos a cirurgia eletiva com exce<;aode urn, le-vado a sala por aneurisma rota de aorta abdominal.

Em todos os casos foram realizados estudos microbio-logicos de especimes de trombo ou, em nao havendo, deplaca de ateroma ou mesmo da propria parede arterial. Aomesmo tempo foram estudados especimes de tecido peri-arterial para servir de controle. A colheita era feita commaterial cirurgico nao previamente utilizado durante a in-terven<;aoa fim de minimizar a possibilidade de contami-na<;aosecunditria. 0 material alvo foi colhido da aorta em73 casos, da car6tida em 34 casos, da arteria femoral em 8casos, da arteria iliaca em 1caso e da arteria subchivia em1 caso.

o material retirado era semeado diretamente em meio

de cultura liquido para bacterias aer6bicas e anear6bicas(caldo glicosado e tio-glucolato, respectivamente), sendoencaminhado aolaborat6rio de microbiologia para encu-bayao e realizayao de segunda semeadura 24 horas depoisem placa de agar-sangue, ficando em observayao por 7 a10dias. Somente nos primeiros casos foi realizado antibio-grama, pnitica abandonada por motivos tecnicos.'.. Em nenhum caso foi detectado qualquer sinal clinicoau laboratorial de processo infeccioso ativo por ocasiao daintervenyao. A (mica exceyao foi 0 caso operado de urgen-cia por aneurisma rota da aorta abdominal. Esse pacientefoi admitido com quadro infeccioso e diarreia que se ini-ciara ha 30 dias, acompanhado de dor abdominal difusa,anemia, hipotensao e leucograma infeccioso. No infra-operat6rio foi evidenciado enorme hematoma no retrope-ritoneo, correspondente a rutura do aneurisma, 0 qual, de-pois de aberto, apresentava odor fetido.

Uma vez completada a colheita de material para cul-tura iniciou-se a antibioticoterapia profilatica de rotinacom cefalotina e cloranfenicol por periodo de 24 a 48 ho-ras. 0 periodo de administrayao de antibi6tico era prorro-gada quando a cultura do material se apresentava positivaou quando se evidenciava processo infeccioso do trato res-pirat6rio ou urinario no periodo p6s-operat6rio.

Culturas positivas foram obtidas em 16 pacientes(13,7%). Em 6 (5,1%) a positividade ocorreu somente emtecido periarterial. Em 3 (2,5%) 0 microorganismo foi cul-tivado tanto de tecido arterial quanta de tecido periarte-rial. Em 7 pacientes (6,0%) a cultura positiva foi obtidasomente de tecido oriundo da arteria. Considerando que apositividade de cultura em material arterial seja decorren-te de contaminayao quando a cultura de material periarte-rial tenha sido coincidentemente positiva pelo mesmo ger-me, 0 que ocorreu em todos esses casos, deve-se considerarque houve somente 6,0% de casos com infecyao de mate-rial endoarterial. Os demais casos foram, portanto, des-considerados para efeito de discussao.

Os germes encontrados foram 0 S.epidermidis (4 casos,57,1%), S.aureus (1 caso, 14,3%), Enterococcus (1 caso,14,3%), e Salmonella (1 caso, 14,3%).

A origem do material correspondeu a aorta em 6 ca-sos (85,7%) e a car6tida em 1 caso (14,3%). Quanto aos

. casos de aorta, metade correspondeu a aneurisma e outrametade correspondeu a doenya obstrutiva.

Com 0 objetivo de se averiguar se a contaminayaopreviamente detectada teve influencia sobre a evoluyaocIinica do paciente, todos os pacientes puderam ser locali-.zados para averiguayao de sua situayao cIinica atual.

Houve dois 6bitos hospitalares. Urn ocorreu no pa-ciente com aneurisma rota da aorta e que apresentou Sal-monella a cultura. 0 outro 6bito ocorreu no primeiro diap6s-operat6rio em decorrencia de choque hemornigicopor discrasia sanguinea p6s-transfusional, em urn casosubmetido a aneurismectomia de aorta. Nao houve qual-quer indicio de processo infeccioso em enxerto arterial nospacientes que foram reavaliados a tongo prazo. Urn delesmorreu urn ana ap6s a intervenyao por acidente vascularcerebral isquemico, sem referencia a processo infecciosode qualquer tipo. Todos os demais estao vivos e sem evi-

dencias de qualquer processo infeccioso em trajetos arte-riais ou relacionados com a pr6tese implantada. A avalia-yao foi feita de 20 a 31 meses depois da intervenyao (Tabe-la 1). .

ARTERIA TEMPO DEPACIENTE BACTERIA ALVO SEGUIMENTO

CLS S.aureus Aorta AEO 20 msMCC S.epidermidis Aorta AEO 29 msRGC S.epidermidis Aorta AEO 24 msWLP S.epidermidis Aorta AAA 6bitoNSA Enterococcus Aorta AAA 31 msDJC S.epidermidis Car6tida 29 IDS

ALF Salmonella Aorta AAA 6bito

Apesar de todos os esforyos que tern sido realizadospara se tentar evitar a infecyao de enxertos em pacientessubmetidos a revascularizayao arterial, nao se tern conse-guido diminuir significativamente a incidencia desse pro-blema que e considerado uma das mais graves e temidascomplicayoes da cirurgia arterial.

Hoffert et al.4 em estudo de uma serie de pacientesoperados com 16 anos de seguimento alertaram para 0 fa-to de que, ao subdividir essa casuistica em tre"i periodosconsecutivos de 5 anos, nao se observou qualquer modifi-cayao nos indices de infecyao dos enxertos implantados,os quais foram de 1,7%,2,1 %e 1,1%, respectivamente.

A observayao de que em alguns casos de aneurismade aorta abdominal, notadamente com conteudo tromb6-tico, poderia haver cultura positiva de microorganismoslevou alguns a efetuar pesquisa sistematica da flora bacte-riana em material endoarterial. Por esse motivo, Buckelset aJ.2 recomendaram cultura rotineira de material en-doarterial por consideni-Io de alto risco para 0 desenvolvi-mento de infecyao protetica. Emprestam tanta importan-cia a contaminayao da parede arterial que chegam a suge-rir que a dor com a qual cursam alguns aneurismas ocorreem funyao do processo infeccioso existente em sua parede.

Ernst et al.3, Williams et a1.8, McAuley et al.6 eSchwartz et aJ.7 relatam de 10,3% a 15,4% de culturasbacterianas positivas em material colhido de conteudotromb6tico de aneurismas de aorta abdominal. Macbethet aJ.5,pesquisando todas as arterias submetidas a procedi-mento cirurgico, encontraram contaminayao subcIinicaem 43% dos casos.

Ernst et aL3, fazendo 0 seguimento de casos que fo-ram submetidos a implante de pr6tese arterial sintetica,observaram que os pacientes com cultura positiva da pare-de arterial ou do conteudo tromb6tico da arteria apresen-taram probabilidade cinco vezes maior de desenvolvereminfecyao do enxerto do que aqueles que nao tinham apre-sentado cultura positiva. Esse fenomeno foi por eles atri-buido a contaminayao da pr6tese durante sua imptanta-yao a partir da colonia bacteriana ja assentada na parededa arteria.

Da mesma forma, Macbeth et al.5 observaram inci-dencia de 0,9% de infecyao de enxertos em seus pacientese todos estes tinham apresentado cuitura positiva de placade ateroma colhida por ocasiao do procedimento.

Por outro lado, McAuley et a1.6, nao observaramqualquer caso de infec<;aoem pr6tese arterial nos 14% depacientes que tiveram cultura positiva de material colhidodurante a interven<;ao cirurgica. 0 acompanhamento foide seis meses. Explicam a ausencia de infec<;ao nessesdoentes pelo fato de rotineiramente fazerem remo<;aocompleta dos trombos durante 0 procedimento cirurgico,ah~mdo uso profihliico de antibi6ticos.

Em nossa casuistica observamos incidencia de 6% decontamina<;ao de material endoarterial. Se considerarmossomente os pacientes submetidos a cirurgia de aorta, obti-vemos 5 culturas positivas num total de 73 casos, ou seja,6,8%. Esse dado e companlvel aos 4,2% encontrados porBuckels2 em pacientes operados eletivamente por aneuris-ma de aorta abdominal mas e muito inferior aos 43%, en-contrados por McAuley.

Nao conseguimos detectar, no seguimento a longo pra-ZO, presen<;ade processo infeccioso nos pacientes que fo-ram submetidos a implante de enxerto arterial e que tive-ram cultura positiva de conteudo a6rtico. Apesar da maio-ria desses pacientes nao ter sido examinada por medico emuito menos ter sido realizado algum exame diagn6sticomais especifico, consideramos a ausencia de sintomas urnindicio favonlvel de ausencia de infec<;ao.0 seguimentode 21 a 30 meses nao e suficientemente longo, no entanto,para excluir a possibi1idadede instala<;aode a1gumproces-so infeccioso tardio.

£, difici1afirmar, por outro lado, que a ausencia de pro-cesso infeccioso atual possa estar relacionado com 0 fatode ter sido empregada rotineiramente antibioticoterapiaprofil<'ltica,mesmo porque nao ha grupo controle que per-mita essa compara<;ao.

£, interessante observar que os microorganismos encon-trados em nossa casuistica saGsemelhantes aos encontra-dos por outros autores, sendo 0 S. epidermidis a bacteriamais freqiientemente identificada.

Podemos concluir, portanto, que ha evidencias nitidasda existencia de uma flora bacteriana subclinica na paredearterial. Qualquer pr6tese vascular pode, teoricamente,ser colonizada por essa flora latente, como foi sugeridopor varios autores.

Esse fato pode justificar 0 uso da chamada antibiotico-terapia profil<'ltica,muitas vezes questionada. 0 aspectoprofil<'lticoda antibioticoterapia deixaria de existir umavez que a infec<;ao,latente, ja estaria presente.

Infection of an arterial graft is considered one of themost severe complications in vascular surgery. The highmortality and morbidity rates associated to infection urgefor continuous search for methods and therapeutics to di-minish the incidence of this complication. Nevertheless, in-

InfeC9fio de parede arterial

cidence maintains levels of 1% to 5%. Some authors belie-ve that this is due to the presence of bacteria in endo-arterial material, which was observed in some patient po-pulations. With the purpose to determine the epidemiologyand prevalence of subclinical endoarterial flora, 11 7 pa-tients had arterial content or arterial wall fragments sub-mitted to bacteriological cultures. In 7 patients (6%) thecultures were positive. The highest incidence was ofS.epi-dermidis (57,1 %). The other identified bacteria were S.au-reus, Enterococcus and Salmonella. The majority of positi-ve cultures were obtained from the aorta. Two of the se-ven patients with positive cultures died within 30 days.The other five were retrieved after 20 to 31 months. Nonehad any sign of symptom which could be related to graftinfection. It seems that the presence of subclinical flora ofarterial content of wall is a real entity, but we were notable to detect a complicating effect upon the arterialgrafts.

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