Transcript

artigo1. Introdução;

2. Industrialização, política econômico-financeim eparticipação da burgueSia industrial;

3. As novas estruturas do Estado: corporativismoe populismo;

4. Camadas médias urbanas e radicalizaçãopolítico/ideológica;

5. O clima ideológico da época.

Industrialização, Estadoe sociedade no Brasil

(1930-1945)*

Maria Cecilia Spina ForjazProfessora titular no Departamento de Fundamentos

Sociais e Juridicos da Administraçãoda EAESP /FG V.

I. INTRODUÇÃO

Este artigo objetiva esboçar uma interpretação globali-zante do desenvolvimento social, político e econômicobrasileiro no período de 1930 a 1945.

Esse período transitório entre a República Oligárqui-ca e a etapa denominada por alguns Democracia Populís-ta (usando uma periodização que privilegia o nível da po-lítica) encerra transformações profundas na estrutura declasses da sociedade brasileira, na configuração do Esta-do e no sistema econômico no Brasil.

Sem aprofundar a análise de cada um desses trêsníveis estruturais, tencionamos esboçar as grandes ten-dências do desenvolvimento capitalista (tardio) no Bra-sil, buscando uma análise que consiga integrar satisfato-riamen te o econômico, o social e o político.

-Ou seja, não procuramos o detalhamento históricodo período, mas a determinação das característicasbásicas do desenvolvimento capitalista brasileiro nessaetapa.

Porém, rejeitando o determinismo economicista queainda predomina no pensamento social brasileiro, umapremissa teórica que nos orienta é a noção da primazia

do Estado no desenvolvimento capitalista periférico comindustrialização tardia.

É bom lembrar neste ponto que, apesar da especifici-dade do desenvolvimento capitalista tardio que se consti-tui já na etapa monopolista do capitalismo como sistemainternacional, nossa formação social retém também ostraços gerais de qualquer processo de desenvolvimentocapi talista. 1

A aceitação desse predomínio do Estado não nosleva a um outro extremismo teórico, o "politicismo",que, ao enfatizar exageradamente a autonomia da esferapolítica, "conduz, no limite, a uma descaracterização dasociedade civil enquanto campo de constituição de novasconfigurações dotadas de um dinamismo próprio"."

Em outros termos, o que pretendemos é uma análiseque consiga apreender os processos políticos, sociais eeconômicos em sua interdependência, sem cair nas ten-dências extremas e opostas do economicismo e do politi-cismo.

Uma vez definida a premissa teórica mais geral denosso trabalho, passamos a definir alguns traços comunsda análise sociológica e histórica referente ao período emquestão:

1. Ausência de hegemonia no Estado brasileiro pós-30.A Revolução de 30 destruiu a hegemonia da burguesiacafeeira, mas nenhum outro setor das classes dominantesteve condições de assumi-la. A nova coalizão no poderconstituiu um "Estado de compromisso", 3 no qual seequilibraram de forma instável cafeicultores, oligarquiasdis.sidentes (outros setores da burguesia agroexportadoraou produtora para o mercado interno), grandes comer-ciantes importadores e a burguesia industrial nascente,além das "categorias sociais de Estadot" (militares, in-telectuais e burocratas), como grupos sociais subordina-dos.

Essa perspectiva é expressa com nitidez pelo histo-riador Boris Fausto: "A possibilidade de concretizaçãodo Estado de compromisso é dada porém pela inexistên-cia de oposições radicais no interior das classes dominan-tes e em seu âmbito não se incluem todas as forçassociais. O acordo se dá entre as várias frações da burgue-sia; as classes médias - ou pelo menos parte delas -assumem maior peso, favorecidas pelo crescimento doaparelho do Estado, mantendo entretanto uma posiçãosubordinada. À margem do compromisso básico fica aclasse operária, pois o estabelecimento de novas relaçõescom a classe não significa qualquer concessão políticaapreciável. "5

2. Ausência de uma burguesia industrial plenamenteconstituída e portadora de um projeto de dominação. Aburguesia industrial é vista, pela grande maioria dos auto-res, como um grupo social permanentemente subordina-do na nova coalizão dominante, cujos interesses econô-micos são complementares aos da burguesia agrária. Sen-do assim, ela é frágil, incapaz de obter autonomia polí-tico-ideológica e portanto de definir um projeto de in-dustrialização nacional. Ou seja, não tem consciência dospróprios interesses e não constituiu um agente políticoimportante na Revolução de 30.

Essa visão, obviamente um pouco caricaturizadaaqui, perde de vista a progressiva diferenciação de inte-

Rev. Adm. Empr. Rio de Janeiro, 24(3): 35-46 jul./set. 1984

resses entre a burguesia agrária e conduz a uma análiseque tende a enfatizar a permanência do sistema políti-co anterior no pós-3D.

Além disso, essa visão, que já vai ficando clássica nasociologia brasileira, acerca da burguesia industrial, tor-na-a um ator político muito pouco importante, que te-ria quase "sofrido" a industrialização promovida pelo Es-tado-Leviatã brasileiro.

É importante notar que essa interpretação socioló-gica que minimiza a importância política da burguesiaindustrial surgiu (a partir de meados dos anos 60) comouma reação às primeiras tentativas de interpretação dodesenvolvimento capitalista no Brasil eivadas de prota-gonismo burguês.

Ou seja, nas análises pioneiras, a burguesia encenavanum cenário tropical os lances heróicos de conquista dopoder semelhantes aos da burguesia européia nos séculosXVII (Inglaterra) e XVIII (França).

Para recusar essa transposição mais ou menos auto-mática dos modelos explicativos próprios ao desenvolvi-mento capitalista dos países centrais, a análise histórico-sociológica caiu num outro extremo, que quase anula aparticipação dos industriais na construção do capitalis-mo brasileiro.

Essas duas formas extremas de ver a burguesia in-dustrial, como grupo totalmente subordinado ou, inver-samente, como classe dominante em 30, prendem-se auma visão dualista das relações entre Estado/Sociedade,que ainda predomina no panorama da sociologia brasi-leira.

3. Ausência de uma classe operária autônoma, organi-zada e capaz de reivindicar seus direitos. Graças à ori-gem rural recente, ao "sindicalismo de Estado" queatrela o movimento operário, e ao populismo que ma-nipula suas aspirações de melhores condições de vida,a classe operária brasileira também é frágil, pouco agres-siva e pouco operante do ponto de vista político.

4. Existência de uma classe média urbana (difícil de de-finir sociologicamente) ambígua, que oscila entre a vin-culação às classes dominantes e à classe operária, eportanto incapaz de qualquer autonomia político-ideológica.

5. Vácuo de poder e primazia do Estado: a ausência po-lítica das classes fundamentais e as ambigüidades da clas-se média produzem um vazio de poder que é preenchidopelo Estado, sustentado pelas Forças Armadas, e que sedistancia cada vez mais da sociedade civil, impondo-secrescentemente como aparato burocrático-organizacionalrelativamente autônomo.

6. Ausência de ideologias de classe e "importação deidéias". Graças à caracterização feita sobre as classes so-cias brasileiras conclui-se pela inexistência de ideologiasde classe propriamente ditas e, portanto, pela importa-ção permanente das idéias produzidas nos países capita-listas centrais. 6

Essas características comumente encontradas naprodução sociológica referente ao período de 1930-45,e que configuram "do lado de cima o vazio, e do lado debaixo o desvio, explicam-se na medida em que o capíta-

36

lismo no Brasil é atrasado, tardio ou igual e combinadoem face do capitalismo internacional, de sorte que aconseqüência não se faz esperar: o Estado, fonte de mo-dernização, terá que promover o desenvolvimento capita-lista, telos da história mundial. (. .. ) Assim, a impressãodeixada por grande parte dos textos é a de uma concep-ção demiúrgica da história do Brasil, as interpretações os-cilando na escolha do demos ourgoi que ora é o Estado(e há um hegelianismo latente), ora é o empresariado (e asombra de Schumpeter paira sobre a letra dos textos),ora deveria ter sido o proletariado (e a aura de Leninefulge no esplendor do acaso)."?

Tentaremos construir uma visão de longo alcancedessa etapa do desenvolvimento brasileiro que elimine odemiurgo, seja ele qual for, e que, aceitando a impor-tância do Estado, admita os dinamismos próprios da so-ciedade civil, ou, usando expressões mais antigas, consi-dere os determinismos infra-estruturais.

Nessa tentativa, seremos levados a questionar algu-mas das noções citadas e propor alternativas que as subs-tituam, que as complementem ou que as remodelem.

Passamos então a detalhar as questões que julgamosimprescindíveis para a análise dos anos 30 a 45 no Bra-sil, e portanto formular algumas das hipóteses gerais dotrabalho.

2. INDUSTRIALIZAÇÃO, POLITICAECONOMICO-fINANCEIRA E PARTICIPAÇÃODA BURGUESIA INDUSTRIAL

Há uma polêmica antiga dividindo os cientistas sociais(em sentido lator ísto é, englobando os economistas) so-bre o sentido da política econômico-financeira da pri-meira era Vargas.

Uma corrente interpretativa busca enfatizar o cará-ter conservador dessa política, que teria sido a responsá-vel pelo atraso da industrialização brasileira.

Segundo esses autores," essa política conservadoraseria o resultado de uma grande continuidade políticaentre a Primeira República e a era de Vargas, ou seja,teria havido uma permanência de uma política econô-mica antiíndustrialista e ortodoxa, que impediu maiordiversificação e crescimento da economia brasileira.

Tanto no Governo Provisório, como no períodoconstitucional (1934-37), como no Estado Novo(1937-45), as grandes linhas da política financeira deGetúlio Vargas tenderiam para a obtenção dos seguin-tes alvos: a contenção monetária e a manutenção doequilíbrio orçamentário. Ora, esses princípios orto-doxos seriam inadequados para enfrentar a depressãoeconômica mundial.

Divergindo dessa corrente interpretativa, autorescomo Celso Furtado, Antonio Castro e Maria da Con-ceição Tavares? (que também têm divergências entre si)admitem os compromissos de Vargas com as classes do-minantes tradicionais, mas concluem pela implantaçãode um novo padrão de -rescímento centrado na in-dústria.

Com enfoques semelhantes, essa corrente consideraque a reação interna da economia brasileira à crise de1929 possibilitou o arranque do processo de industria-lização por substituição de importações, apesar de não

Revista de Administração de Empresas

haver por parte do governo uma política deliberada-mente industrializante.

Em livro recentemente publicado, Eli Diniz10 en-campa essa tendência interpretativa e busca acrescentarnovos argumentos contra a primeira versão aqui cita-da de passagem, argumentos esses que tentam inserirna análise a dimensão política, que viria confirmar ocaráter renovador e industrializante, em última instân-cia, da etapa histórica que estamos analisando.

Segundo a autora, o raciocínio exclusivamenteeconômico não permite a elucidação completa da ques-tão da política econômico-financeira dos anos 30 a 45,e é preciso articulá-lo às seguintes questões políticas:

1. A nova coalizão dominante significa a acomodaçãoentre elites tradicionais e emergentes e, portanto,abriu-se efetivamente, com a revolução de 30, um novoespaço político para as elites industriais.

2. A participação da burguesia industrial nas decisõeseconômicas tem sido minimizada pela análise socioló-gica.

3. O pensamento autoritário, ideologia dominante nes-sa etapa histórica, influenciou positivamente o processode industrialização, ao legitimar a ação planificadora eintervencionista do Estado.

4. A grande diversificação do aparelho estatal pós-30 im-plicou a descentralização de arenas decisórias, nas quaisos interesses industriais puderam insinuar-se (principal-mente comissões e conselhos técnicos).

~ por meio dessa máquina burocrática que a burgue-sia industrial vai impondo suas perspectivas. A participa-ção desse grupo social se dá principalmente através doConselho Federal de Comércio Exterior (CFCE), doConselho Técnico de Economia e Finanças (CTEF) e doConselho Nacional de Política Industrial e Comercial(CNPIC), onde defende prioritariamente:

1. O protecionismo alfandegário como forma de prote-ção à indústria. Como política global o protecionismonão foi adotado no Brasil no período que estamos estu-dando. Mas, embora a burguesia industrial não tenha con-seguido impor o protecionismo como estratégia geral (aspressões internacionais, e principalmente americanas,contra ele eram muito fortes), um ou outro setor indus-trial foi protegido por tarifas alfandegárias.

2. Campanha contra o livre-comércio. Nesse aspecto,complementar ao primeiro, não se pode dizer que aburguesia industrial obteve sucesso. A força políticaassociada das oligarquias exportadoras e dos grandescomerciantes importadores conseguiu manter o predo-mínio do livre-comércio, em prejuízo do protecionis-mo.

3. Institucionalização do crédito industrial. De con-creto, nesse sentido, a burguesia industrial obteve acriação da Carteira de Crédito Agrícola e Industrial doBanco do Brasil (em 1937).

Industrialização no Brasil

Além disso, os industriais conseguiram uma certacapacidade de articulação na defesa de seus interesses,assim como conseguiram sensibilizar setores das elitestecnoburocráticas para a questão do crédito industrial.

Além desses aspectos, outros pontos da atuaçãodos empresários industriais que sobressaem nesse perío-do são o fato de que não são nacionalistas (apesar dasconstatações em contrário dos pesquisadores do IBEB) ede que aceitam com limites a intervenção do Estado naeconomia. Resistem mais à ação do Estado do que àação do capital estrangeiro.

A resistência à ação estatal foi um dos pontos deatrito mais freqüente entre as lideranças empresariaise os técnicos estatais, todos eles com uma mentalida-de essencialmente estatizante.

A nível de seu relacionamento com o Estado se-riam esses os principais passos da burguesia industrial nasua luta pela constituição de uma identidade própria epela imposição lenta e progressiva de seus interesses.

Mas além da participação política ampliada pormeio dos órgãos técnico-econômicos, a burguesia indus-trial encontraria outros canais de acesso ao Estado:"No caso brasileiro, as associações de classe são instru-mentos cruciais para a prática política do empresariado,sendo sua via de comunicação com os poderes públicos,quer a nível federal, quer regional. Elas permitiriam'furar' o espaço viciado da política partidária, possibi-litando uma outra frente de contatos com o Esta-do. ,,11

No plano de seu relacionamento com as outras fra-ções das classes dominantes, podemos perceber um con-tínuo processo de diferenciação de interesses entre a bur-guesia industrial e os grupos agrários, assim como entreela e os comerciantes importadores.

Nesse processo, "a defasagem entre percepção deinteresses próprios e o montante de poder que o grupopossui para implementar esses interesses pode gerar es-tratégias de compromisso nem sempre condizentes comseus objetivos fundamentais. Isto, porém, longe de sig-nificar falta de consciência, inconsistência ou dependên-cia ideológica, pode simplesmente representar um esfor-ço por parte do grupo em ascensão, no sentido de preser-var alianças com os setores sociais que detêm os recursosescassos necessários à consecução de seus objetívos".'?

É por isso que, apesar de estar crescentemente sediferenciando da elite rural e se automatizando ideolo-gicamente, a burguesia industrial menteve por muitotempo seus laços com os cafeicultores.

Como observou a esse respeito um outro pesquisa-dor: "Resulta despropositado e abstrato reclamar daburguesia um projeto revolucionário antiagrário, negan-do-lhe, por essa inexistência, consciência de classe, quan-do a ordem agrária a recebia calidamente e sem cons-trangimentos. ,,13

A adesão ao Partido Republicano Paulista, a oposi-ção à Revolução de 30 e o apoio à Revolução de 1932são altamente expressivos desses compromissos. Mas re-velam também táticas de sobrevivência política.

Por que aderir a uma revolução que não tinha umprojeto industrializante e que significava um perigo deradicalização social? (O tenentismo assustava os indus-triais e lhes produzia pesadelos sobre o avanço do socia-lismo.)

37

Por que aliar-se às oligarquias dissidentes (gaúcha emineira), profundamente agraristas? Como aproximar-seda oposição em São Paulo, o PD, partido que faz do an-tiindustrialismo a razão de sua existência?

Por que apoiar a centralização estatâl em detrimen-to do poderio de São Paulo, numa época em que as cli-vagens regionais ainda eram mais importantes do que asclivagens de classe?

Na decolagem da burguesia industrial em sua longa elenta trajetória para o poder, ela freqüentemente se escu-dou no imenso poderio dos cafeicultores, para poder en-frentar, em primeiro lugar, as classes subalternas (e prin-cipalmente uma classe média bastante combativa e en-quistada no aparelho de Estado) e, em segundo, outrasfrações menos poderosas da coalizão dominante (co-merciantes importadores, oligarquias produtoras para omercado interno, oligarquias improdutivas, etc.).

O que importa é que em 1945, na queda do EstadoNovo, a posição relativa da burguesia industrial na coali-zão dominante era amplamente mais significativa do quena República Velha. E a indústria se expandiu de maneirasignificativa nesses anos.

Realmente, ela não fez a sua revolução à moda euro-péia e não elaborou um projeto de dominação, Mas rei-vindicou e conseguiu igualdade jurídico-política no inte-rior dos grupos sociais dominantes e formulou um pro-jeto corporativo de participação nas estruturas do Esta-do em processo de agigantamento.

3. AS NOVAS ESTRUTURAS DO ESTADO:CORPORATIVISMO E POPULISMO

O Estado brasileiro durante esses 15 anos deixa de serum Estado federal/oligárquico para transformar-se numEstado nacional/centralizado.

A centralização político-administrativa e a moder-nização institucional sobressaem como as grandes ten-dências do desenvolvimento do Estado no Brasil.

Essa centralização "tem para nós o sentido de visua-lizar a progressiva 'ocupação' do espaço organizacional edecisório por agências burocrático-estatais ( ... ). O des-mantelamento da velha ordem não ultrapassou os limitesde uma modernização conservadora: sem qualquer re-formulação da estrutura sócio-econômica existente en-caixavam-se no sistema político novos grupos e inte-resses, devidamente cooptados e burocratízados"."

Os mecanismos concretos da centralização autori-tária que Maria do Carmo Campello de Souza analisouna obra citada são os seguintes:

a) sistema de interventorias/departamentos administra-tivos (daspinhos);

b) funcionamento do Departamento Administrativo doServiço Público (Dasp);

c) funcionamento dos órgãos técnico-econômicos.

A atuação constante desses mecanismos centraliza-dores conduziu à criação de uma extensa máquina buro-

38

crática, que deixou de ser controlada pelo Poder Legis-lativo (com exceção do período 1934-37) ou qualqueroutro organismo da sociedade civil.

Porém, através dessa nova máquina em expansão, osnovos e antigos interesses dominantes, agora absorvidose cooptados airetamente pelo Estado central, exerce-ram seu controle sobre a sociedade como um todo.

Quais seriam precisamente esses novos e antigos in-teresses dominantes? Ou as elites emergentes e tradicio-nais a que também nos referimos?

Que grupos comporiam, enfim, o "compromisso"que fundamenta o Estado brasileiro pós-30, e como sedeu concretamente o inter-relacionamento entre eles?

A resposta a tais questões constitui uma das preocu-pações centrais no desvendamento da trama políticaprópria da primeira era Vargas.

Sobre a burguesia industrial, uma das frações dasnovas elites emergentes, já discorremos anteriormente,de maneira sucinta.

Voltemos nossas preocupações para as chamadasoligarquias agrárias, dissidentes ou não, e que foram ato-ras fundamentais na Revolução de 30: "A centraliza-ção, que gradualmente esvazia uma parcela do poderoligárquico, destruindo suas manifestações de autono-mia, opera-se com a ajuda dessemesmo poder oligár-quico (grifo da autora da citação), graças às cisões quedividem internamente as elites regionais, e que as levama competir pelos favores do Estado. A disposição latentede prestar vassalagem - sobretudo nas unidades maiscarentes - será 'habilmente utilizada, através de umacomplexa política de alianças que permite ao podercentral readaptar ou substituir as velhas máquinas oligár-quicas da República Velha por outras, mais permeáveisaos novos objetivos nacionais, dentro de uma estratégiaglobal de fortalecimento do Estado. ,,15

Assim, na visão de Aspásia Camargo, da qual com-partilhamos, a questão central do processo político de-sencadeado em 30 é o da centralização estatal operadapelas próprias oligarquias, o que redunda numa amplarenovação das elites dirigentes.

As clivagens regionais que comandam esse processoseriam a ofensiva paulista para consolidar sua hegemonia,coincidindo com o descenso mineiro e ascensão gaúcha,assim como com a maior inserção nordestina nos centrosde decisão política.

Minas Gerais, estado declinante em termos eco-nômicos, com o rompimento do pacto do "café-com-lei-te", torna-se menos autônoma do que São Paulo, emrelação ao Governo federal. 16

Mas o próprio estado de São. Paulo, embora maisautônomo do que Minas em relação ao centro, sofre apartir de 30 uma disjunção cada vez maior entre o seupeso econômico e sua importância política: "Bastalembrar aqui que o censo de 1940 já mostra ser este omaior Estado brasileiro em população, além de já ser aprincipal fonte de impostos do governo central e o focode industrialização do país. Politicamente, no entanto,São Paulo desempenhou um papel inferior a seu tama-nho e peso econômico relativos e, em 1932, foi o últi-mo Estado brasileiro a se levantar em armas contra ogoverno central."!"

Revista de Administração de Empresas

A diminuição relativa do peso político de São Paulono pós-30, apesar da manutenção da primazia econô-mica, liga-se evidentemente ao processo de agiganta-mento do Estado, que ocorre simultaneamente a seu"descolamento" das forças sociais hegemônicas da so-ciedade brasileira.

Na raiz desse mesmo processo pode-se entender ofato de que Minas Gerais, ao contrário de São Paulo,mantém um peso político desproporcional à sua presen-ça econômica.

A força política de Minas, não condizente com suaforça econômica, fundamentava-se no seu grande pesoeleitoral e na inserção de suas elites no aparelho deEstado: "Como o Estado mais populoso da nação,Minas Gerais possuía o maior eleitorado e ocupava oprimeiro lugar no número de cadeiras no Congresso- 37, em relação às 22 de São Paulo e Bahia, e às 16 doRio Grande do Sul. (Desde a Constituinte de 1933, até ogolpe de novembro de 1937, a composição das bancadasestaduais permaneceu idêntica à de 1891). ( ... ) Essa for-ça eleitoral, associada a uma bancada grande e disciplina-da - apelidade 'a carneirada' - eram os instrumentos dopoder mineiro na arena nacíonal.v'"

Quanto ao Rio Grande do Sul, Estado ascendenteem termos econômicos, e com uma economia voltadaprioritariamente para o mercado interno (charque, arroz,etc.) passa a ter depois de 30 participação maior na es-trutura de poder, apesar de as oligarquias gaúchas, as-sim como as outras, serem progressivamente submetidasao poder central: "Em 1932, às vésperas da RevoluçãoConstitucionalista, o 'governo provisório consegue aadesão do Rio Grande, através de Flores da Cunha, paraderrotar São Paulo, inclusive com a ajuda de suas tropas.Inversamente, em 1937. São Paulo não dificultará a re-núncia forçada de Flores da Cunha, politicamente cerca-do em seu próprio Estado, graças às dissidências entre aslideranças gaúchas, e militarmente cerceado pela presen-ça do General Daltro Filho e pelas diretivas centralizado-ras de federalização das brigadas estaduais.

No Nordeste, a estratégia do Centro é ainda maisbem-sucedida, pois a região constitui-se em aliado incon-dicional da Revolução já em seus primeiros tropeços, cri-ando bases sólidas que neutralizam o inconformismopaulista em face da hegemonia inicial dos tenentes."!"

A dimensão regional da disputa pelo poder nos anos30 e a subordinação das oligarquias nordestinas ao podercentral também são constatadas por Maria Nazareth Bau-del Wanderley: "Sob o impacto da crise de 30, a inter-venção do Estado será definida em termos de uma polí-tica centralizada na esfera federal, e reguladora do co-mércio e da atividade produtiva. Como a crise não é ex-clusiva à produção do açúcar, mas atinge toda a econo-mia do país, desorganizando o mecanismo tradicional dereprodução da atividade agroexportadora, a intervençãodo Estado terá ~m caráter defensivo, de recuperação dodinamismo, assim amecado (... ). Para garantir o apoioda IÃ.A, os usineiros assumem a bandeira da defesa doNordeste, identificando, em seu discurso, os Interessesda região com seus próprios interesses de classe.••20

Convém não esquecer, no entanto, que as disputasregionais que se acirram no processo revolucionário de30 são bem anteriores a ele e têm muitas vezes funda-mentos econômicos.

Industrialização no Brasil

Em toda a década de 20, os cafeicultores de SãoPaulo tentam impor a própria hegemonia em relaçãoaos cafeicultores de outros Estados, quebrando as alian-ças tradicionais da Primeira República, além de provo-car resistência em outras oligarquias exportadoras enos grupos produtores para o mercado interno. Paraos interesses desses últimos, as políticas de defesa docafé eram muito prejudiciais.

Essas resistências a São Paulo já se tomaram claraspor ocasião da Terceira Valorização do café, empreen-dida e ganha por São Paulo no início da década de 20:"Aos emissionistas contrapunha-se uma outra corrente,liderada no Congresso por Antônio Carlos de Andrada,integrada principalmente por políticos gaúchos, pernam-bucanos e baianos. Colocavam-se tanto contra a Valori-zação quanto contra a criação do banco central, argu-mentando que as emissões ativariam a inflação e depri-miriam o já baixo poder de compra dos salários, além decomprometerem as finanças públicas, abaladas por su-cessivos défícíts desde 1914; protestavam contra o'imperialismo paulista', solicitando que a proteção, emsendo concedida, se estendesse a todos os demais produ-tos. Uns temiam que a queda dos salários encurtasse seusmercados - os gaúchos e mineiros produtores agrícolas;outros, que a elevação dos salários industriais reduzisseseu poder de competição num momento de acirramentoda concorrência inter-regional - os índustríaís.v"

A disputa regional continua e toma-se mais agudaa partir de meados da década, quando se efetiva a defesapermanente do café.

Para implementá-la, foi criado o Instituto do Caféde São Paulo, que deveria regularizar o mercado cafe-eiro e fazer acordos com os outros estados produtores,estabelecendo quotas para cada um deles.

Esses acordos redundaram em conflitos entre osestados cafeeiros: ''Nestes convênios explicitam-se asdisputas entre as distintas frações estaduais da burgue-sia cafeeira, especialmente entre a paulista e a mineira.Os mineiros, com menor produção e sem condições pararealizar uma retenção a prazo largo - por não possuíremarmazéns reguladores, não controlarem as estradas deferro para estocar mercadorias nas estações, nem dispo-rem de um sistema bancário como São Paulo - preten-diam escoar suas safras dentro do ano agrícola comercialcafeeiro, quando o interesse paulista era de imprimir atoda a safra nacional um ritmo de escoamento determi-nado exclusivamente por seu volume de produção. Sema arbitragem federal, a disputa entre os dois estados seprolongou até o fim da República Velha."22

Além das disputas regionais, seria conveniente indi-car aqui a existência de conflitos internos da burguesiacafeeira paulista, que entrou cindida na revolução, ecujas divisões internas não estão suficientemente escla-recidas pela análise histórica e sociológica.

A chamada burguesia cafeeira paulista não é umgrupo homogêneo, e o complexo cafeeiro paulista sig-nifica na verdade investimentos em distintos setores eco-nômicos: agricultura, comércio, transporte, setor finan-ceiro, etc.

O fazendeiro produtor, o comissário de café, o ban-queiro que financia a estocagem, o cafeicultor com inves-timentos alternativos na indústria, configuram diferentesinteresses econômicos e distintos graus de poder de bar-ganha política.

39

Existe ainda a vinculação simultânea a diversos seto-res: "Os termos 'empresa' e 'empresário', quando se apli-cam â oligarquia paulista; são justificados, pois inúmerasvezes a diversificação de atividades é uma constante. Ve-ja-se, por exemplo, o caso do Conselheiro Antônio Pra-do, fundador do PD, tradicional fazendeiro possuidorde mais de 6 milhões de pés de café, possuidor de açõesde ferrovias, de frigoríficos, de fábricas; o caso das famí-lias Altino Arantes, Rodrigues Alves, Paulo Nogueira,com interesses cafeeiros e industriais; o do coronel Fran-cisco Schmidt, 'o rei do café', possuidor também de usi-na de açúcar; o do Conde Moreira Lima, o maior produ-tor do vale do Paraíba, também dono de usina de açú-car.,,23

Os reflexos políticos dessa diversidade não estãoainda devidamente esclarecidos, mas sabe-se que ascisões dos cafeicultores atingiram o sistema partidáriode São Paulo (PRPxPD), as associações de classe (So-ciedade Rural x Federação dos Lavradores) e até a im-prensa paulista (Correio Paulistano, O Estado de SãoPaulo, Folha da Manluf).

A intensidade e a complexidade das disputas íntrae inter-regionais, muito agravadas pela crise econômicamundial, estão na raiz da emergência de um Estadotodo-poderoso (o Levíatã brasileiro) - que se impõe atodos e garante a sobrevivência do conjunto.

De que maneira esses antigos interesses dominantesse acomodaram na nova coalizão no poder e como en-frentaram a expansão da burguesia industrial, assim co-mo a centralização autoritária do período 30-45?

A questão da centralização estatal nos remete dire-tamente ao binômio interventorias/daspinhos que cita-mos anteriormente. "Vedados os canais tradicionais derepresentação e influência, as antigas e novas oligarquiasforam absorvidas e encurraladas num sistema que tinhacomo fulcro as interventorias acopladas a órgãos buro-cráticos subordinados ao Dasp ( ... ), sujeitos por sua vezao presidente da República. Nem sempre salientado oucompreendido pelos analistas,o papel do Dasp é sem dú-vida decisivo, não pelo que de real reforma possa ter rea-lizado na administração pública, nos processos de seleçãoe admissão de pessoal, etc., mas pela sua função na mon-tagem da estrutura de poder burocrático: a de um cintode transmissão entre o Executivo federal e a política dosestados. ,,24

Os interventores, nomeados pelo poder central, de-viam a ele sua permanência nos estados, embora fossemalgumas vezes ligados às oligarquias regionais.

B o caso dos estados fortes (São Paulo, Minas Geraise Rio Grande do Sul), cujos interventores têm raízesregionais.

Minas e o Rio Grande do Sul estavam no poder, logoapós a revolução, e se confundiam um pouco com o pró-prio poder central: "Depois de 1930, a tradicional capa-cidade dos mineiros de se unirem em torno do governa-dor voltou a assegurar-lhes uma influência nacional, masem condições que fizeram de Minas um cliente políticode Vargas.?"

O "caso de São Paulo" que conduziu â Revoluçãode 1932, ou seja, o enfrentamento entre o Governo Pro-visório e as elites de São Paulo, se originou exatamentedas tentativas varguistas de imposição de interventoresvinculados ao poder central (começando pelo "tenente"João Alberto Lins de Barros).

40

Já nos estados mais fracos (econômica e politica-mente) a grande maioria dos interventores foram tenen-tes, delegados do Executivo central. '

B o caso da Bahia (Juracy Magalhães); Rio de Janei-ro (Ary Parreírasj- Ceará (Roberto Carneiro de Mendon-ça); Piauí (Landry Salles Gonçalves); Rio Grande doNorte (Hercolino Cascardo); Sergipe (Augusto MaynardGomes); Paraíba (Gratuliano da Silva Brito); EspíritoSanto (Punaro Bley); e Pernambuco (Carlos de Lima Ca-valcante).

O caso da Bahia é ilustrativo de como os interven-tores. se impuseram, mas também conciliaram-se com asoligarquias locais.

Por ocasião da Revolução de 30, os coronéis baianosse dividiram entre os que apoiaram Washington Luiz e ospartidários da Aliança Liberal. Estes "coronéis revolucio-nários" consolidaram seu poder nos municípios do valemédio e superior do rio São Francisco, e em troca acei-taram a liderança do tenente Juracy no executivo es-tadual.

Os coronéis derrotados em 30 mobilizaram-se paraapoiar São Paulo na Revolução de 1932. Quando o servi-ço de informações relatou ao interventor a mobilizaçãodos adeptos bernardistas na Bahia (Artur Bernardes foium dos líderes da conspiração mineira pró-São Paulo em1932), este acionou os coronéis leais a Salvador para quesustassem a rebelião.

Conseguiu esse objetivo e mais ainda: reforçou seusvínculos com os "coronéis revolucionários". Tanto queem janeiro de 1933 eles mesmos proclamaram sua fide-lidade a Juracy Magalhães e elegeram-no o primeiro go-vernador constitucional da Bahia depois da revolução.

Aproveitaram a oportunidade para aderir ao Parti-do Social Democrático ,organizado pelo interventor (nãoé o PSD criado em 1945. Depois da redemocratização,Juracy Magalhães foi um dos fundadores da UDN naBahia) e romperam seus vínculos partidários com oPartido Republicano da Bahia, liderado pelos clãs Cal-mon e Mangabeira.

Os interventores do Norte/Nordeste, liderados pelotenente Juarez Távora, o vice-rei do Norte, formaramum bloco político para se opor a São Paulo na Assem-bléia Nacional Constituinte de 1934.

Freqüentemente se aliaram ã bancada dos represen-tantes classistas 40 deputados eleitos pelos sindicatos pa-tronais e de empregados, assim como de representantesdos profissionais liberais) para impor diretrizes políti-cas àquele colegiado.

Para supervisionar os interventores e impedir umexcessivo acúmulo de poder em suas mãos, o poder cen-tral contava com os "daspinhos", seções estaduais doDasp: "Tendo surgido no contexto de uma ditaduracomprometida com a modernização, sem um partidode massas, o departamento criou meios convenientes pa-ra o controle central do sistema administrativo. Comoagência do Executivo federal, exercia responsabilidadesque iam além das preocupações técnicas. Na realidadeo Dasp tornou-se uma espécie de superministério. ,,26

Os "daspinhos" funcionavam como uma espéciede corpo legislativo, controlando os interventores e ga-rantindo sua lealdade ao Executivo federal.

Todo esse esquema de montagem das relações depoder centro-estados, assim como os novos órgãostécnico-econômicos (por meio dos quais a burguesia in-

Revista de Administração de Empresas

dustrial e as "categorias sociais de Estado" se insinuaramno aparato estatal) configuram a nova forma de intera-ção entre as classes ·dominantes: "A recomposição dopoder oligárquico regional se efetivou sob a cláusula desua simultânea vinculação ao sistema burocrático gover-namental, processo esse que teria decisiva significação,como é sabido, na formação do maior dos partidos dopós-guerra, o PSD.

De maneira análoga ao que se passava com os gru-pos dominantes estaduais, os organismos econômicos es-tabeleceram formas de controle cuja tônica principalfoi também a absorção burocrática. Os agentes autárqui-cos e os conselhos técnicos, na maioria dos casos, insti-tucionalizaram uma modalidade de atuação que era, narealidade, semílegislativa ou semi-representativa, nãoraro com a participação direta dos ínteressedos."??

Vimos exemplos concretos do funcionamentodesses órgãos técnico-econômicos e da inserção nelesde representantes da burguesia industrial e das categoriassociais de Estado.

No entanto, nossa análise não pode e não pretenderestringir-se ao bloco dominante. Tencionamos verificarcomo se dá a relação entre ele e as classes populares emgeral, e especificamente como se dá a articulação entreEstado e massas urbanas.

Essas questões nos remetem à problemática do po-pulismo: "Mas a modificação do sistema político ultra-passou a pura reforma das estruturas do Estado e o alar-gamento do bloco político dominante. Mais precisa-mente, a Revolução de 30 se encontra na origem de umamodificação nas relações políticas entre o bloco domi-nante e as classes populares ( ... ), a Revolução de 30deixou, assim, quase intacta a capacidade oligárquica decontrole das massas rurais. Todavia, a complexidade donovo bloco político dominante e a ausência de umaforça política claramente hegemônica traziam ao novoEstado tão-somente um equiltbrio instável: à vista disso,a conquista de uma base social de apoio se impôs desdelogo. Tal base, o Estado oligárquico não poderia eviden-temente buscá-la nos focos do coronelismo. Se as massasrurais permaneciam sob o poder oligárquico local, a no-va composição política dominante só poderia encontrara fonte de uma estabilidade política relativa no mundosocial engendrado pela urbanização e pelo crescimentoindustrial: a classe operária e os trabalhadores do apare-lho urbano de serviços, ou, conforme a expressão clássi-ca da sociologia brasileira, as massas urbanas. "28

A perspectiva apontada por Décio Saes liga-se àanálise clássica do populismo realizada por FranciscoCorrêa Weffort ainda nos anos 60 e que tomamos porbase para o esclarecimento da participação política po-pular nos anos 30.

O Estado pós-oligárquico reconheceu a presença po-lítica da classe operária e, portanto, sua capacidade rei-vindicativa e sua cidadania: daí a promulgação da legis-lação trabalhista e a montagem da estrutura sindical.

Porém, a integração política da classe operária sefez através do corporativismo: "A expressão da contes-tação política dos 'de baixo', até então uma ameaçavirtual, coloca com nitidez a impropriedade da forma dedominação liberal, que não teria força para impedir acrescente organização sindical e política das classessubalternas, já não contida pelo autoritarismo modera-do dos primeiros anos do Governo Provisório. Se até es-

Industrialização no Brasil

se acontecimento o corporativismo cumprisse em primei-ro lugar as funções de arranjar politicamente as fraçõesde classe dominantes - com o que não concordamos -indubitavelmente, a partir daí, trocaria de natureza paraconsistir num regime primordialmente preocupado emsubordinar coercitivamente as classes subalternas, e aoperária em particular. ,,29

Não se trata da velha idéia da outorga pelo Estadoda legislação trabalhista a uma classe operária imóvel, ouausente ou totalmente inconsciente de si mesma.

Pelo contrário, a idéia é a de que o corporativismose impôs como uma forma de controle (obviamente nãosó da classe operária) para obstaculizar a expansão po-lítico-social das classes subalternas e para impedir a am-pliação do sindicalismo independente.

O corporativismo se impõe também como uma for-ma de brecar o aumento da influência do Partido Comu-nista Brasileiro sobre o movimento operário: "O caráterexcludente do sistema político é dissimulado na fórmu-la corporativa, abrindo-se canais de participação contro-lados e manipulados pelo Estado. Elimina-se ou rebai-xa-se a cota de livre manifestação dos grupos sociais nasociedade civil.

Em relação às camadas médias urbanas, a políticase completa com a cooptação operada a partir do recru-tamento para as funções públicas que o Estado alargabem além das suas necessidades. A legislação sindical, aoinvés de procurar cortar o passo da crescente organizaçãodos assalariados, buscará orientá-la para dentro do apara-to estatal. ,,30

A doutrina corporativista, que permeia todo o pen-samento político da época, propõe a harmonia social ea eliminação dos conflitos de classe pela imposição deum Estado neutro, poderoso e benefactor, que realize aarbitragem dos dissensos sociais.

Esse Estado distribui eqüitativamente suas benessese se relaciona com a sociedade civil através das corpora-ções profissionais.

f: através delas que a sociedade, de uma forma orga-nizada e não caótica como no Estado liberal, se faz re-presentar na arena política.

Os partidos políticos são recusados como canaleficaz de comunicação entre os grupos sociais e o Esta-do. São vistos como agrupamentos que expressam inte-resses particularistas e que conduzem e incrementam adisputa entre as classes sociais.

Porém, a proposta corporativista de organização doEstado que acabou predominando no Estado Novo (epara a qual muito contribuíram os tenentes, não seimpôs sem resistências: "Neste sentido, o marco cor-porativo de organização social e política seria ques-tionado e denunciado por parcelas do movimento ope-rário e pelos próprios setores empresariais, como vere-mos a seguir, além de sofrer ataques da oligarquiaagrária. Desta forma, vigora nestes anos uma espécie deduplo sistema de organização de interesses privados:um enquadrado nas normas da lei de sindicalizaçãoe outro fora destes postulados. Além deste fato, nosanos de abertura política que assinalaram a reconstí-tuoionalízação do país, ganharam primazia real e legalos instrumentos de representação política de formatoliberal-democrático - os partidos - voltando o sindi-calismo a gozar, ao menos por normas constitucionais,

41

do estatuto de autonomia e pluralidade típico de umaproposta política não-corporatíva.v"

Quanto à presença das classes médias, via categoriassociais de Estado ou via movimentos políticos como aAção Integralista Brasileira (AIB) e a Aliança NacionalLibertadora (ANL), pretendemos discuti-la no item aseguir.

Entretanto, antes de passar adiante, gostaríamos deenfatizar que já questionamos as proposições, dois, trêse quatro apresentadas no início deste trabalho, comotendências dominantes da explicação sociológica sobre operíodo em questão.

Com relação à questão da primazia do Estado no de-senvolvimento capitalista brasileiro, todas as nossas colo-cações tendem a reafirmá-la, porém sem que essa consta-tação implique uma ausência política das classes funda-mentais.

Não é porque o Estado se autonomiza no políticoque ele deixa de expressar o domínio de algumas classessobre outras.

Não há um vazio de poder no Brasil. Pelo contrário,há um poder que se impõe de forma mais violenta e bru-tal do que nos países de desenvolvimento capitalista ori-ginário. .

A dominação de classe passa pela coerção extra-eco-nômica. Não são apenas as leis do mercado que impõema submissão das classes subalternas. E preciso reprimirnão só pela ideologia. E preciso um aparato repressivomuito desenvolvido, é preciso transformar o Exércitoem Policia. Isso não é vazio de poder.

4. CAMADAS MÉDIAS URBANAS ERADICALIZAÇÃO POLITICO/IDEOLÓGICA

A hipótese principal que pretendemos desenvolver é a deque, com o tenentismo, o integralismo, o aliancismo,mas principalmente com a inserção das categorias sociaisde Estado no aparelho estatal, as camadas médias urba-nas adquiriram um certo 'grau de autonomia política, emrelação tanto às classes dominantes quanto às classes su-bordinadas.

No que diz respeito aos intelectuais, Sérgio Miceliadmite a existência dessa autonomia relativa: "Os anato-lianos participavam direta e ativamente das campanhaseleitorais de seus mandachuvas ou de candidatos por elesindicados, ao passo que os intelectuais do regime Vargasse empenhavam sobretudo em ampliar, reforçar e gerir as'panelas' burocráticas de que faziam parte e só se sen-tiam credores de lealdade em relação ao poder central.Desta maneira, os intelectuais contribuíram decisiva-mente para tornar a elite burocrática uma força social epolítica que dispunha de uma autonomia relativa tantoem relação aos interesses econômicos regionais como emrelação aos dirigentes políticos estaduais."32

A presença política das classes médias, no períodoque estamos estudando, é tão relevante que alguns auto-res consideram 30 como a "revolução das classes mé-dias". É o caso de Virgínio Santa Rosa, Hélio Jaguaribee Guerreiro Ramos.

Os dois últimos, pesquisadores do velho InstitutoSuperior de Estudos Brasileiros (lSEB), imbuídos daideologia nacional populista vigente nos anos 50, estioentre os que têm essa visão do processo revolucionário.

42

Sem chegar a esses extremos de considerar as cama-das médias como principal agente político, ou principaisbeneficiárias dela, consideramos fundamental o seu pa-pel político na conjuntura revolucionária e nos anos quese seguem.

A presença política da classe média nesse períodoassume duas formas distintas.

De um lado temos a participação das categorias so-ciais de Estado (militares, burocratas e intelectuais) nacoalizão dominante, forçando a destruição do Estadooligárquico agromercantil.

É uma "representação" autoritária, na qual umaclasse social se faz presente no sistema político por inter-médio do próprio aparelho de Estado: "Mas, de outro la-do, para além das motivações puramente 'técnicas', épreciso considerar a dupla filiação das 'categorias sociais'integradas ao bloco dominante: fílíação às camadas mé-dias urbanas, de um lado, e inserção nos aparelhos deEstado, de outro. Ora, as disposições ideológicas própriasa cada uma dessas situações induziram igualmente as'categorias sociais' a tomar decisões favoráveis à indus-trialização. A esse respeito, podemos discriminar, numaperspectiva analítica, três exemplos: os tenentes, as For-ças Armadas (alta oficialidade) e a alta burocracia.":"

Mas nem sempre a alta burocracia foi favorável aosinteresses índustríaís, é o que Eli Diniz afirma, ao pesqui-sar o Conselho Federal de Comércio Exterior (CFCE) e oConselho Técnico de Economia e Finanças (CTEF).

Freqüentemente, os técnicos governamentais diver-giam dos porta-vozes da indústria, já que estes não eramnacionalistas (e aqueles sim) e resistiam à intervenção doEstado no sistema econômico (e aqueles tentavam inten-sificar essa intervenção nos mais variados aspectos da vi-da política, econômica" cultural, etc.).

Reforçando o argumento da oposição entre a classemédia e a burguesia industrial, podemos lembrar tambéma posição contrária que ela sempre assumiu em relaçãoao protecionismo alfandegário reivindicado pelos indus-triais.

Em geral, os setores médios, no período que nosocupa, reforçavam os argumentos antiindustrialistas daburguesia agrária e culpavam os industriais pela carestiada vida.

Além disso tudo, amplos setores das camadas médiasurbanas estiveram vinculados à luta contra as "indústriasartificiais" e aderiram à perspectiva agrarista que, aliás,era também dos tenentes. O programa dos tenentes não éindustrializante: não rejeitam a necessidade da industria-lização, mas dão prioridade, na fase histórica que o Brasilvive, ao desenvolvimento agrícola. Os tenentes defendema instalação da indústria siderúrgica e a exploração esta-tal do petróleo. No entanto, tais propostas estão mais li-gadas ao problema da segurança nacional do que pro-priamente a um projeto industrializante. Pretendem a es-tatização dos núcleos fundamentais da infra-estruturaeconômica, mas não a ampliação da concentração capita-lista. Pelo contrário, condenam os trustes, monopólios eorganizações no gênero.

Warren Dean, em seu trabalho sobre a industrializa-ção de São Paulo, aponta também a hostilidade da classemédia para com a indústria brasileira: "Uma das disposi-ções arbitrárias do governo provisório foi um tributo de8% sobre os lucros remetidos para o estrangeiro. O decre-to levava a intenção de agradar aos sentimentos naciona-

Revista de Administração de Empresas

listas da classe média, em cuja opinião as firmas estran-geiras haviam intensificado a crise, retirando seus lucrosem ritmo acelerado, e que não fazia distinções precisasentre estrangeiros em geral e os estrangeiros aqui residen-tes, como Matarazzo e os Jafets. ( ... ) A animosidade daclasse média evidenciou-se também num decreto que exi-gia a identificação de todos os tecidos nacionais pormeio de um rótulo indelével."34

Tanto militares quanto intelectuais e quanto buro-cratas assumiram um papel fundamental no processo decentralização' do Estado e na sua autonomização em rela-ção às classes dominantes.

À medida que se efetivava um processo de "desco-lamento" do Estado em relação à sociedade civil, essascategorias sociais ganharam um peso enorme na formula-ção de decisões políticas: "Sem sombra de dúvida, esseengendramento de pessoal político e intelectual no inte-rior da classe dirigente constitui um requisito indispensá-vel para que se possa discernir as peculiaridades de umsistema de dominação cujas raízes remontam à crescentedisjunção entre os detentores do poder econômico e osgrupos (militares, intelectuais, políticos profissionais)que foram tomando as rédeas do comando polítíco.?"

Os militares tiveram papel destacado na formulaçãodas diretrizes da política econômica do país no período1930-45.

É amplamente conhecida a influência militar na ela-boração da política siderúrgica e petrolífera no Brasil:"Em seguida à revolta paulista de 19:32, os tenentesentraram em declínio corno força política nacional efeti-va. Deixaram, contudo, um legado de centralismo e de-ram ao país um impulso de reorganização que os seusoficiais superiores levaram avante com objetivos de defe-sa militar e econômica. Assim,em 1931, o Ministro daGuerra Leite de Castro organizou uma Comissão Nacio-nal do Aço, para estudar todo o problema do ferro e doaço. Em 1933, chefiou uma missão encarregada de estu-dar as usinas siderúrgicas européias. A recém-fundadaEscola de Engenharia do Exército começou a formarengenheiros metalúrgicos; muitos oficiais do Exércitoreceberam treinamento 'especializado no estrangeiro. E,em 1934, o general Pedro Aurélio de Góis Monteiro,antigo líder tenentista, instou com Vargas para que esta-tizasse a nascente indústria siderúrgica nacional. Poucosdentre os oficiais mais velhos se dispuseram a seguir oeloqüente Góis pela estrada do estatismo. Não obstante,o estabelecimento militar havia assumido, no início dadécada de 30, um papel importante, embora ainda nãopreponderante, na elaboração. da política para os planossiderúrgicos do governo.

Ali estava a origem da regeneração nacional, doaprestamento militar e da intervenção do governo naeconomia, que deram impulso ao nacionalismo econômi-co como ideologia modernizante dentro das Forças Ar-madas. Em 1937, o Exército, em particular, enquantoinstituição nacional, decidiu-se a encontrar uma alterna-tiva realista para a produção de aço em pequena escala eestabelecer uma base para a auto-suficiência econômicanacional, com vistas à eventualidade de guerra ou blo-queio. E, se bem que os oficiais militares interessados nodesenvolvimento industrial não se mostrassem unidos naoposição a Farquhar, havia entre eles unanimidade quan-to à necessidade de uma solução imediata. ,,3~

Industrialização no B1'QIJil

Além de participar concretamente na formulação dedecisões econômicas estratégicas, os militares tiveram, apartir de 1930, um papel político essencial como árbi-tros internos dos grupos dominantes.

Tornaram-se sustentáculos desse novo Estado, cres-centemente autonomizado dos detentores diretos dopoder econômico: "Por trás da retórica da identificaçãoExército-Estado e da visão de ambos como expressãoorgânica da nação, estava a realidade de um projeto quese caracterizava pela nacionalização da política, peloindustrialismo e pela ideologia da nova ordem não libe-ral mas inequivocamente burguesa ( ... ). O projeto daintervenção controladora dos militares sem dúvida fugiado modelo de Exército burguês clássico. Além disso, nasmotivações imediatas de seus promotores, sobressaíamaspectos que eram de natureza especificamente militar,vinculados aos problemas da segurança interna e externa.Mas o conteúdo concreto da intervenção, particularmen-te em seus aspectos nacionalizantes, industrializantes ede contenção política, revelava-se compatível com a or-dem burguesa industrial que se gestava no país, emborafosse a antítese do liberalismo polítíco.":"

Depois de sofrer um processo interno de homoge-neização, vencendo a profunda fragmentação que o atin-giu com a revolução e o tenentismo, é que o Exércitopôde se impor como instituição unificada: "Se sete anosantes parcela do Exército liderara o movimento de ~es-truição da velha ordem, agora ele servia de parteiro paraa nova ordem, mas diferente da imaginada pelos revolu-cionários de 1930. A ênfase agora não seria nas reformassociais, na representação classista, no combate ao latifún-dio, mas no desenvolvimento econômico, na indústria debase, na dívida externa, na exportação, nas estradas deferro, no fortalecimento das Forças Armadas, na segu-rança interna e na defesa externa.,,38

Esse padrão de intervenção militar na política foichamado, por um brazilianista famoso, de "moderador".Nele, além do impulso castrense de intervir, avulta amentalidade das elites civis de "chamar" os militares pa-ra mediar os conflitos polítícos.

Tanto para romper a legalidade, como para restabe-lecê-la; tanto os grupos no poder, quanto os da oposição;tanto a esquerda, como a direita apelam para a interven-ção militar.

É o "militarismo civil" que as elites brasileiras com-partilham comas latino-americanas em geral, e que o de-poimento de um militar legalista ilustra muito bem:"Fosse outra a orientação dos homens públicos do Bra-:sil ( ... ). Mas a orientação que possuíam era, quando naoposição, desconhecer as vantagens de permaneceremaquelas forças (armadas) fora dos prélios partidários; e,quando no governo, servirem-se delas em apoio de seusinteresses políticos. ,,39

Apesar da relevância política, dos militares no pro-cesso de desenvolvimento político no Brasil, no entanto,não há estudos e pesquisas, empíricas ou teóricas, pro-porcionais ao seu peso: "Sobre o mérito da questão -por que e como, na formação social que nos é peculiar,os militares se tornaram em decisivo atores no sistemade Estado - realmente (há) muito pouco, em termosde insights teóricos e fecundos trabalhos de pesquisaempírica. ,,40

A outra forma de representação política das cama-das médias urbanas nos anos 30, a que já nos referimos

43

de passagem, são os movimentos da Ação lntegralistaBrasileira e da Aliança Nacional Libertadora (AIB eANL, respectivamente).

Ambos se caracterizam pela intensa e rápida mobili-zação, pelo seu caráter nacional (pela primeira vez noBrasil movimentos políticos assumiram âmbito nacionalsignificativo e não se restringiram ao âmbito regional) epelo radicalismo ideológico (de direita e de esquerda).

A Ação Integralista Brasileira, que foi fundada em1932, tem um programa fascista, adaptado às condiçõesnacionais, que rejeita simultaneamente o comunismo e oliberalismo e que se define mais por oposição a eles doque pela afirmação de princípios independentes.

O discurso integralista tem a classe média como des-tinatária esua composição social confirma esses laçosideológicos com as camadas médias urbanas.

Segundo Marilena Chauí, uma entre os vários pes-quisadores que ultimamente se dedicaram à análise dointegralismo, a razão. principal da adesão das camadasmédias ao movimento integralista é o medo da ascensãooperária e comunista.

Entre os argumentos que sustentariam essa tese,a autora afirma:

- a tônica anticomunista da AIB;

- a efetiva ampliação do movimento operário nos anos30, que teria assustado a classe média;

- o efetivo recrudescimento do Partido ComunistaBrasileiro e o aumento de sua influência sobre a organi-zação da classe operária.

A adesão de Luiz Carlos Prestes ao Partido Comunis-ta Brasileiro provocou uma enxurrada de adesões (de ex-tenentes principalmente) e colaborou bastante para sbaexpansão e popularização, Prestes era 9 maior líder polí-tico vivo nesse momento histórico.

Essas adesões são em parte responsáveis pela repre-sentação, da classe média conservadora e mesmo dos in-dustriais, de que ''tenentismo'' é sinônimo de "comu-nismo".

Outro can'al de ampliação da influência política doPartido Comunista foi a Aliança Nacional Libertadora.Fundada em 1935 por uma ala do Partido, a Aliançatinha um programa nacionalista, popular e antiimpe-rialista.

Foi presidida por Prestes e pretendia constituiruma "frente de massas" para o PCB. Sua capacidadede mobilização se demonstrou rapidíssima e veio "jus-tificar" a necessidade do fechamento do sistema polí-tico e eliminação definitiva das instituições liberais.

Diferentemente da representação autoritária e"de cima para baixo" efetuada pelas categorias sociaisde Estado, esses movimentos significaram a emergênciade uma forma de partíeípação política mais aberta e de-rivada da organização mais autônoma (é importanteo mais, indicando o relativismo da afirmação) de seto-

. res da sociedade civil.

Entre outras razões, a ameaça concreta representa-da pela expansão da mobilizaçio popular acirrou oclima propício à instauração do Estado Novo.

Se a inserção das categorias sociais no Estado sefaz via "cooptação " , as camadas médias urbanas tam-bém se fízeram presentes politicamente, no início dosanos 30, via "representação".

No período constitucional de 1934 a 1937, quandoas diferentes forças sociais tiveram condições políticasde colocar demandas ao sistema político, o integralismoe a Aliança Nacional Libertadora cresceram assustadora-mente, assim como o movimento operário se expandiue progrediu na direção de uma organização autônoma,que tentava escapar aos liames corporativistas.

5. O CLIMA IDEOLÓGICO DA ÉPOCA

Resta-nos tecer algumas considerações gerais e sucintassobre o clima ideológico dominante nessa etapa históricaque estamos analisando.

Partimos do pressuposto de que: "Não é fortuito ofato de que, em todos os momentos em que numa socie-dade se faz imperiosa uma mudança institucional, recru-descem os esforços de teorização da realidade social. ,,41

O debate intelectual foi acirrado e rico nesse perío-do, e uma das características gerais do pensamento socialproduzido então é a consciência da existência de umacrise e a noção da necessidade da mudança, assim comoo cetícismo e a ínquíetaçâo.

Outros traços comuns que definem esse clima ideo-lógico são o autoritarismo (que permeia todas as corren-tes políticas, da esquerda até a mais extrema direita), oestatismo (com muitas variações de grau), o combate aoliberalismo e a todas as outras "idéias importadas", amentalidade antipartido político, o corporativismo, onacionalismo e o objetivisrno tecnocrático.

Quanto aos temas mais comuns do debate político, po-demos apontar os seguintes:

- unidade nacional e integração do território;

- autonomia estadual (defendida somente pelas elites deSão Paulo contra a maioria dos outros agentes históricosdo momento) versus centralização;

- íncorporação de novos setores sociais ao sistema polí-tico;

- representação classista (ou mais comumente chamada"representa9ão profissional");

- soberania nacional;

- racionalização da administração pública (ou tecnifica-ção dela);

- rejeição dos modelos teóricos importados;

- construção de um pensamento brasileiro;

- necessidade de dar ''forma'' à sociedade brasileira,através do corporativismo.

Porém, a existência de traços ideológicos comuns avárias correntes políticas e forças sociais não nos deve in-

RtlIista de Adminiltração de Empresas

duzir ao erro de supor que não há divergências ideológi-cas sérias no interior do pensamento autoritãrío predo-minante na época: "A predominância da resposta autori-tária não deve obscurecer, entretanto, a existência decontradições entre as várias posturas e de inconsistênciasno interior de cada uma das correntes. e porém certoque os pontos de divergência entre as várias manifesta-ções autoritárias tornam-se cada vez mais claros no de-correr do debate. Assim, no final da década de 20 e iní-cio dos anos 30, todas as correntes seguem uma mesmadireção, cujo objetivo é o fortalecimento do Estado; osmecanismos para tal, e sobretudo o espaço deixado paraa manifestação e organízação dos interesses a nível dasociedade civil, comporão gradativamente as zonas deatrito. ,,42

E mais, houve não só divergência no interior do pen-samento autoritário, como também a imposição de umacorrente vencedora: a "ideologia de Estado", modelo depensamento analisado pelo sociólogo Bolivar Lamou-nier,43 e que se impõe defmitivamente com a implanta-ção do Estado Novo.

• Texto extraído do trabalho TenentiBmo e Forças Armadas 1IIlRevolução de 30, tese de doutoramento apresentada ao Departa-mento de Ciências Sociais da USP, em março de 1982. mímeogr.

1 A respeito do conceito de capitalismo tardio ver Cardoso deMelo, João Manuel. O CIlpitalirmo tardio: acumulação de capi-tal e industrialização no BraBil. Tese de doutoramento, Unicamp,1975. mímeogr.

2 Díníz, Eli. Empres4rio, Estado e capitalismo no Brasil: 1930-1945, Rio de Janeiro, Pau Terra, 1978. p. 31.

3 Expressão forjada por Francisco Corrêa Weffort no artigo"Le Populisme dans la politique brêsílíenne. Les Temp« Moder·nes, Paris, n9 257, 1967. Atualmente a expressão está generali-zada na sociologia brasileira para definir o Estado pós-oligárqui-co, e esse texto foi publicado, juntamente com outros do mesmoautor, no livro O Populismo 1IIlpol(tica brasileira. Rio de Janei-ro, Paz e Terra, 1978.

4 A noção de "categorias sociais de Estado" e seu comporta-mento político-ideológico é desenvolvida por Décio Saes em suatese de doutoramento (terceiro ciclo): C1ane moyenne et S)lste-me au polittque Bresll, Ecole Pratique des Hautes Êtudes, Paris,1974.5 Fausto, BOIis. A Revolução de 1930, historiograrlll e hiltórill.São Paulo, Brasíliense, 1970, p. 104-5.

6 Ver Schwarz, Roberto. As idéias fora do lugar. In: Bstudo«CEBRAP, n9 3,1973.

7 Chauí, Marilena. Apontamentos para uma crítica da aç4'o in-tegralista brasileira. In: &Carvalho Franco, Maria Sylvia. Ideologiae mobilizaç4'o popular. SA"0Paulo, Cedec/Paz e Terra, 1978p. 21 e 30.

8 Tomamos como expressivos dessa corrente os seguintes auto-res: Pelaez, Carlos Manoel. As conseqüências econômicas da orto-doxia monetária, cambial e fiscal no Brasil entre 1889-1945. Re-

/ndU8trilllização PiO Brail

vista Brasileira de Economia. Rio de Janeiro, Fundação GetulioVargas, jul./set. 1971; Villela, Aníbal & Suzigan, Wilson. Polt-tica do Governo e crescimento da economia brasileira, 1889-1945, Rio de Janeiro, IPEA/Inpes, 1973.

9 Furtado, Celso. Formação econômica do Bralil. Rio de Janei-ro, Fundo de Cultura, 1959; Castro, Antônio de Barros. Sete en-IIIIlos sobre a economia brasileira. São PaUlo/Rio de Janeiro, Fo-rense, 1969 e 1971. 2 v.; Tavares, Maria da Conceição. Da Subs-tituiçêo de importações ao capitalilmo financeiro. Ensaios sobreeconomia brasileira; Rio de Janeiro, Zahar, 1972.

10 Diniz, Eli. op. cito

11 Castro Gomes, Angela Maria. Burgue8ia e trabalho. Polftica elegillllção social no BraliI1917·1937. Rio de Janeiro. Campus,1979. p. 51.

12 Diniz, Eli, op. cito p. 240-1.

13 Vianna, Luiz Werneck. Ltberalismo e sindicato no Brasil, Riode Janeiro, Paz e Terra, 1976, p. 73.

14 Campello de Souza, Maria do Carmo. Bstado e pertido« polt-ttcos no Brasil (1930-1964). São Paulo. Atfa-ômega , 1976.p.84-5.

15 Camargo, Aspásia. A Revolução das elites. Clivagen1J regionaise centralização polüica. Rio de Janeiro, CPDOC-FGV. p. 5. mí-meogr.

16 Sobre a utilização dos estados como unidades de análise polí-tica ver Schwartzrnan, Simon. São Paulo e o Estado nacional.São Paulo, Difel, 1975. capo 1: Polítíca representativa e gruposde interesse.

17 Schwartzman, Simon. op. cito p. 49.

18 Wirth, John. Minas e a Nação. Um estudo de poder e depen-dência regional - 1889-1937. In: Fausto, Borís, org. O BraBil Re-publicano/Estrutura de poder e economia (1889-1930). São Pau-lo, Difel, 1975. p. 89.

19 Camargo, Aspásia. op. cito p.36.

20 Wanderley, Maria de Nazareth Baudel, Capital e propriedadefundiária. Sua, articulações 1IIleconomia açucareil'a de Pernam-buco. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978. p.56-7.

21 Aureliano da Silva, Liana Maria. No limiar da indU8t1'iallza·ção. Estado e acumulação de capital, 1919-1937. Tese de douto-ramento, Capinas, Unicamp. p. 72. rnimeogr.

22 Id. ibid. p. 96.

23 Borges, Vavy Pacheco. Getúlio Vargal e a oligarquia pau/ilta(hiltórill de uma esperança e muito, desenganos). São Paulo,Brasiliense, 1979, p. 22.

24 Campello de Souza, Maria do Carmo. op. cito p. 86.

2S Wirth, John D. Minas e a nação. Um estudo de poder e depen-dência regional, 1889-1937. In: Fausto, Borís, org. História geralda civüização braBileira. São Paulo, Difusão Editorial, 1975 to-mo lIl. O Brasil Republicano, 1. Estrutura de poder e economia(1889-1930). Capo 2: O poder dos Estados. Análise regional p.77.

26 Campello de Souza, Maria do Carmo. op. cito p. 96.

27 Id. ibid. p. 103.

28 Saes, Décio. Industrialização, populismo e classe média noBrasil. Cadernos do Instituto de FüollO{ia e Ciências Huma1lllsda Universidade de Campi1lll1.n9 6, 1976.

29 Vianna, Luiz Werneck op. cito p. 126.

30 Id. ibid. op. cito p. 135.

31 Castro Gomes, Angela Maria. op. cito p. 217.

32 Miceli, Sérgio. Intelectuais e classe dirigente no Brasil (1920-1945). São Paulo, Dífel, 1979.

33 Id. ibid. p.20.

34 Dean, Warren. A industrÚllizaçiio de São Paulo (1880-1945).São Paulo, Düusão Européia do Livro, 1971. p.199.

3S Miceli, Sérgio. op. cito p. 195.

36 Wirth, John D. A polftica do desenvolvimento na era de Var-gas. Rio de Janeiro, Fundação Getulio Vargas, 1973. p. 67.

37 Carvalho, José Murllo de. Forças Anna.dlls e polúice 1930-1945. Rio de Janeiro CPDOC FGV. p. 55. mimeogr.

38 Id. ibid. p. 53.

39 Carvalho, General Estevio Leitão de. Dever militar e politia:partiâária. São Paulo, Nacional, 1959. p. 173.

40 Figueiredo, Eurico de Lima, org. Os Müitarel e a Revoluçtiode 30. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979.

41 Guerreiro Ramos, A. Introdução cntica à sociologill brasilei-ra. Rio de Janeiro, Editorial Andes, 1957. p. 36.

42 Sadek, Maria Tereza Aina. Machillvel. Machillvéis: a tragédiaoctaviana. Estudo sobre o pensamento polüico de Octávio de Fa-ria: São Paulo, Símbolo, 1978. p.91-92.

43 Lamounier, Bolivar. Formação de um pensamento políticoautoritário na Primeira República. Uma interpretação. In: Faus-to, Boris, org. O Brasil republicano - sociedade e instituições(1889-1930). Rio de Janeiro/São Paulo, Dífel, 1977 (Histórillgeral da civilização bralileira. tomo m, v_2).

46

Livros da FundaçãoGetulio Vargascom 60% de desconto,sobre quase tudoquanto é assunto:Administração,Economia,Biologia,Física,Psicologia,História,Informação,Medicina,Arquivologia,Ecologia etc.Nesses tempos difíceis,uma ó~marazãopara vocêvisitar hoje mesmo uma daslivrarias da FGV:

RIO.Praia de Botafogo, 188Presidente Wilson, 228-A

SÃO PAULO.Avenida Nove de Julho, 2029

BRASÍLIA.CLS 104, Bloco A, loja 37

Revista de Adminiltraçiio de Empresas


Top Related