A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
1
Índice
AGRADECIMENTOS II
RESUMO III
ABSTRACT IV
INTRODUÇÃO 2
CAPÍTULO I - ENQUADRAMENTO TEÓRICO E CONCEPTUAL 4
1. TEORIA CONSTRUTIVISTA 5
2. TEORIA CONSTRUTIVISTA DO JORNALISMO 14
2.1 TEORIA DO AGENDAMENTO 18
2.2 TEORIA DO ENQUADRAMENTO 20
CAPÍTULO II –TRAJECTÓRIA E CONTEXTUALIZAÇÃO DO CONFLITO SÍRIO 25
1. A OCORRÊNCIA DE CONFLITOS NO ESTADO DA SÍRIA 27
2. A COBERTURA DOS REPÓRTERES DE GUERRA E A REPRESSÃO DO GOVERNO DE BASHAR AL ASSAD PARA COM OS MEIOS
DE COMUNICAÇÃO 33
CAPÍTULO III - A IMPORTÂNCIA DO JORNALISMO/DOS REPÓRTERES DE GUERRA PARA AS RELAÇÕES
INTERNACIONAIS 42
1. O EFEITO CNN NA ÓPTICA DE PIERS ROBINSON 48
2. O PAPEL DOS MEDIA NOS CONFLITOS INTERNACIONAIS 54
2.1 . ENQUADRAMENTO HISTÓRICO DO PAPEL DOS MEDIA NOS CONFLITOS INTERNACIONAIS 55
CAPÍTULO IV- ESTUDO DE CASO: A COBERTURA DO CONFLITO SÍRIO PELOS MEDIA PORTUGUESES
ENTRE 2010 E 2011 62
4.1. A DIPLOMACIA PORTUGUESA E O CONFLITO DA SÍRIA: A ESCASSEZ DAS RELAÇÕES BILATERAIS
ENTRE PORTUGAL E A REPÚBLICA DA SÍRIA 64
4.2. A REALIDADE PORTUGUESA E O CONFLITO DA SÍRIA: O FUNCIONAMENTO DO SISTEMA
MEDIÁTICO EM PORTUGAL 67
4.3. A INFLUÊNCIA DA POLÍTICA SOBRE AS FORMAS DE MEDIATIZAÇÃO : OS INTERESSES
PORTUGUESES E OS CONSTRANGIMENTOS DA POLÍTICA INTERNACIONAL FACE À COBERTURA DOS
CONFLITOS INTERNACIONAIS NOS MEDIA PORTUGUESES 71
CONCLUSÃO 73
BIBLIOGRAFIA 76
ANEXOS 88
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
2
INTRODUÇÃO
O século XX foi marcado por acontecimentos que mudaram o mundo contemporâneo
de uma forma inimaginável. Actualmente, analisar a realidade internacional implica a
compreensão de uma pluralidade de perspectivas – inclusive a contribuição de outras áreas.
Sendo esta uma realidade que tem vindo a abraçar as teorias das Relações Internacionais, a
reflexão teórica passou pela inclusão de novos actores e temas na agenda internacional. As
mudanças no exercício do poder político contemporâneo, assim como do processo de tomada
de decisões, metamorfosearam as próprias relações internacionais, dando espaço para a
actuação de novos actores, de forma que, aquando da ocorrência de conflitos, os meios de
comunicação têm vindo a assumir um papel de destaque para o desenrolar e, por vezes,
mesmo para o desenlace dos mesmos, embora as decisões finais sobre essa temática ainda se
encontrarem vinculadas às repostas dadas pelos Estados. Importa sublinhar que, no campo da
comunicação, também ocorreram alterações, resultantes da revolução tecnológica e que
possibilitaram novas formas de trocar informações, cultura e saber, o que por sua vez
também influência o rumo das Relações Internacionais.
O tema escolhido para a presente tese apresentou-se como um enorme desafio, pois
envolve a questão da emergência de novos actores e novos agentes na intelecção das
Relações Internacionais e, mais especificamente o papel que estes desempenham como soft
power no processo de tomada de decisões dos decision makers.Este estudo, cronologicamente
situado no período entre 2010 e 20111, descreve as principais dinâmicas subjacentes à
cobertura mediática dos conflitos internacionais, em específico à cobertura noticiosa em
Portugal do conflito na Síria. Nesse contexto, com o caso da Primavera Árabe2 e, o conflito da
Síria, a ser analisado na presente investigação, pretende-se ilustrar o tipo de relação
existente entre as duas áreas – Relações Internacionais e Comunicação.
1 A opção de delimitação por este intervalo de tempo resultou da convicção de que o Conflito da Síria foi marcado pelos acontecimentos durante a Primavera Árabe e uma vez que não concluído, ser-nos-ia impossível acompanhar os acontecimentos diários e a titulo póstumo. 2 A Primavera Árabe é uma expressão que caracteriza a onda revolucionária e de manifestações e protestos (quer não violentos, quer violentos), que desembocaram em alguns casos em guerras civis no mundo árabe e que teve início a 18 de Dezembro de 2010. Esta série de protestos e manifestações no Norte da África e em grande parte do Oriente Médio tornou-se conhecida alternativamente como a «Primavera Árabe», e, por vezes, como «despertar árabe» ou simplesmente como «revoltas árabes». Alguns analistas consideram que os acontecimentos iniciais passaram de «Primavera Árabe» a «inverno», na medida em que não satisfizeram as expectativas criadas e que as crises de transição que normalmente seguem revoluções acabaram por beneficiar os islamistas. O movimento foi despertado pelos primeiros protestos que ocorreram na cidade de Sidi Bouzid, Tunísia, em 18 de Dezembro de 2010, após Mohamed Bouazizi se ter suicidado dando-se fogo, em protesto contra os maus-tratos da polícia e uma situação individual de desespero extremo, devido ao desemprego. Com o sucesso dos protestos na Tunísia, a onda de agitação iniciada na Tunísia espalhou-se à Argélia, Jordânia, Egipto, Iémen e Síria.
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
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Como questão de partida perguntamo-nos se as coberturas mediáticas dos media
portugueses terão exercido algum impacto na actuação dos decision makers portugueses em
relação ao conflito da Síria? Surgem os quatro capítulos que constituem esta dissertação.
No primeiro capítulo é feito o enquadramento teórico e conceptual da teoria
construtivista das Relações Internacionais e da Comunicação. No segundo capítulo elabora-se
uma trajectória da evolução do conflito sírio. No terceiro capítulo é efetuada uma análise
detalhada acerca da importância do Jornalismo/dos Repórteres de guerra para as Relações
Internacionais, nomeadamente do Efeito CNN na óptica de Piers Robinson e do papel dos
Media nos conflitos internacionais. Por fim, no último capítulo é feita uma avaliação empírica
à cobertura do conflito sírio pelos media portugueses.
Em termos metodológicos, a natureza desta tese exigiu uma investigação bicéfala,
que atendeu quer aos artigos científicos e monografias publicadas sobre esta temática e a
subsequente discussão académica, quer as entrevistas realizadas. Neste sentido, a abordagem
metodológica que sustentou a tese poderá ser dividida em fontes primárias e secundárias. As
fontes primárias incluem não só as entrevistas realizadas, como ainda o recurso à produção
dos media sobre o assunto, análise essencial num mundo globalizado onde a mediação do
discurso político pela comunicação social é um dado adquirido. As fontes secundárias
consistiram primordialmente em monografias publicadas sobre a temática, bem como artigos
e outras reflexões teóricas, publicadas em jornais e revistas, que têm marcado o
desenvolvimento dos estudos sobre o papel dos media nas relações internacionais e da
cobertura dos conflitos na Comunicação na tentativa de intelecção e compreensão do
fenómeno.
A fim de proporcionar uma boa compreensão de alguns termos que acompanharão o
decorrer do presente estudo torna-se imprescindível o esclarecimento de alguns termos
contribuirão a sua composição, tais como media, e media internacional. Por media, termo
que advém do termo médium, em latim, entende-se meio, veículo, imprensam grande
imprensa, jornalismo, meio de comunicação (Guazina, 2007). Quanto ao termo, media
internacional, como o nome indica, refere-se aos meios de comunicação cuja informação é
produzida e veiculada em vários países. Os media internacionais, são normalmente
caracterizados por serem os actores que dispõem de credibilidade a nível global e cujo
material noticioso é tido como referência ao nível global (Camargo, 2008). No entanto,
convém frisar que, por ser um termo abrangente, este engloba as agências internacionais de
notícias, como Reuters, e a France Press, assim como jornais e rádios de renome
internacional.
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
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Capítulo I - Enquadramento teórico e
conceptual
Nada é tão prático como uma boa teoria
(Langer 2000: 75).
A necessidade de relacionar as teorias das Relações Internacionais com os estudos de
comunicação tem sido reconhecida por ambas as áreas científicas. Nesta investigação, optou-
se pela elaboração do enquadramento teórico diferenciado na tentativa de captar todas as
dinâmicas transversais à cobertura noticiosa nos conflitos internacionais. Os acontecimentos
no mundo Árabe, no período de 2010 e 2011, conduziram a uma metamorfose quer nas RI,
através dos “arranjos” na arquitectura regional; quer na cobertura de reportagem de guerra.
Assim, e dada a importância do agendamento de axiomas quer das Relações Internacionais,
quer dos estudos de comunicação, o presente capítulo tem por objectivo central a
desmistificação do conflito da Síria com base no paradigma construtivista das RI e da
comunicação, avaliando o papel das normas, ideias e valores na emancipação e conflito no
sistema internacional, sem negligenciar o papel das media no Agenda Setting dos estudos da
comunicação.
A teoria construtivista, mais recente do que as teorias percorridas até agora, insere-
se, no terceiro debate das teorias das Relações Internacionais, inaugurando novos cenários de
intelecção no quadro de análise das relações entre os atores internacionais, depois do fim da
Guerra-fria3. Com origem pluridisciplinar, este novo paradigma associa aos processos
dinâmicos constituintes das Relações Internacionais, novas metodologias de análise, tentando
a construção de um verdadeiro ethos das Relações Internacionais (Reis, 2014: 126). A escola
construtivista tem influências, sobretudo, da sociologia4, nomeadamente através de Onuf,
Kratochwil e Wendt. Alguns autores consideram mesmo que o construtivismo se inicia a partir
da publicação da obra de Wendt, World of our Making – Rules and Rule in Social Theory and
International Relations (1989). Wendt tem um papel importante no início deste debate, dado
ter elencado as condicionantes sobre as etapas de construção e de co-construção da teoria
social aplicada ao sistema internacional através de “Anarchy is What States Make of It”.
(Wendt 1992).
3 O construtivismo, como marco teórico, é relativamente recente no estudo teórico das Relações Internacionais, tendo surgido, somente no final dos anos de 1980. 4 Sendo os principais expoentes Anthony Giddens, Peter Berger e Thomas Luckmann.
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
5
1. Teoria Construtivista
Nós construímos mundos que conhecemos num mundo que não conhecemos.
(Onuf, 1989:38).
Antes de considerarmos a capacidade analítica do pensamento construtivista na
análise do conflito que marcou o mundo árabe, procuraremos delimitar o construtivismo como
perspectiva teórica das Relações Internacionais.A teoria construtivista, emergiu pela primeira
vez nos estudos da disciplina em 1989, na publicação do livro de Nicholas Onuf “ World of our
Making-Rules and Rules in Social Theory and International Relations” e no artigo de
Alexander Wendt, 1992 “Anarchyis Is What States Make Of It” publicado na revista
International Organization (Wendt, 1992).
Com estes dois autores, os debates das Relações Internacionais ganharam uma
abrangência maior, uma vez que conferiram ao indivíduo e às suas relações maior
importância. Tendo em conta que até então, a centralidade das questões que dominavam os
debates teóricos baseavam-se apenas em questões racionalistas que tratavam o indivíduo e os
agentes como algo exógeno ignorando os seus interesses e as suas ideias, emerge um dos
principais axiomas construtivistas: Vivemos num mundo que construímos, no qual somos os
protagonistas, e que é produto das nossas escolhas (Messari, 2005:162).
Uma das contribuições mais significativas do construtivismo, foi a introdução do
debate referente à posição das ideias, das normas e dos valores na análise dos fenómenos
internacionais. A sua premissa básica alega que vivemos num mundo que é permanentemente
construído, portanto, não existe a imposição uma realidade absoluta, pré-determinada, pelo
contrário, uma construção social que é fruto das escolhas humanas. Em resultado, o mundo é
um lugar susceptível a mudanças e transformações, por incluir questões abstratas e gerais,
em vez de temas específicos (Onuf, 1998).
Os construtivistas, como os teóricos críticos e os pós-modernistas, argumentam que não existe realidade social externa objectiva. O mundo social e o político não formam uma entidade física ou um objecto material exterior á consciência humana. O sistema internacional não é algo que está “la fora” como o sistema solar (…)
(Pinheiro, 2012: 10)5.
O posicionamento do construtivismo no debate académico das relações
internacionais, insere-se no denominado terceiro debate. A natureza do debate construtivista
5 A citação foi retirada de um estudo. Vide a este respeito: Pinheiro, J. (2012) “Cobertura da Mídia das Resoluções do Conselho de Segurança Relacionadas À LÍBIA”. Disponível em: http://www.repositorio.uniceub.br/bitstream/123456789/632/3/20822747_Joyce%20Pinheiro.pdf
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
6
distancia-se das teorias clássicas das relações internacionais podendo definir-se como sendo
epistemologicamente disposto para a realidade social, e ontologicamente6 para a construção
social do mundo.
Deste modo, no campo ontológico, os fenómenos da construção social da realidade
incluem questões sobre quem e de que forma a realidade é construída, destacando-se a nível
da acção num nível intersubjectivo; enquanto, que no campo epistemológico destaca-se a
observação, num nível que engloba a teoria sobre o conhecimento, onde a construção social
da realidade é tida como um meio para criar conhecimento ou objectos de conhecimento
(Guzzini, 2000:160).
Como afirma Adler 1999, para o construtivismo o modo pelo qual o mundo material
forma e é formado pela acção e interacção humana dependendo de interpretações
normativas, e epistémicas dinâmicas do mundo material. Assim, muitos dos académicos
construtivistas acreditam que, as capacidades humanas de aprendizagem e reflexão
influenciam em grande medida a forma como os indivíduos e os actores sociais interpretam o
mundo material e como se enquadram cognitivamente no mundo em que conhecem
(vivenciam). Desta forma, pode afirmar-se que a teoria valoriza as experiências vivenciadas
pelos indivíduos e a forma como estas são partilhadas.
Faz-se crucial esclarecer, de uma vez por todas, que o centro do debate sobre o construtivismo não sobre ciência versus interpretação literária ou “relatos”, mas sobre a própria natureza da ciência social e, portanto, da disciplina de relações internacionais.
(Adler, 1999: 202).
O construtivismo contempla o sistema internacional como sendo socialmente
construído, rejeitando a percepção do mundo como algo pré-determinado e tendo por base a
consciência humana (Ruggie, 1998 apud Finnermore & Sikking, 2001: 391). A construção
teórica ressalta a importância do papel das ideias, das normas e da cultura na política
internacional, enfatizando a intersubjectividade existente na vida social (Finnermore, 2001).
Assim, o contributo da teoria para as Relações Internacionais assenta em termos ontológicos
no conhecimento intersubjectivo, e nas implicações metodológicas e epistemológicas dessa
mesma realidade.
No quadro epistemológico do construtivismo, as Relações Internacionais consistem
primordialmente no ambiente social, no ser humano, nos valores, nas normas, e sobretudo na
afirmação das identidades colectivas. Desta forma, o quadro conceptual é visto como uma
construção da realidade na medida em que, o objectivo principal, passa pela percepção, do
que os construtivistas denominam, dos agentes, e na função que a acção por eles realizada
terá para a sociedade. A acepção não é limitada pelo agente em si, mas pelo significado dado
por outros agentes, assim como pela observação (Guzzini, 2000:161).
6 A ontologia estuda a natureza, ou melhor, a formação dos elementos.
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
7
Assumindo que, o foco da teoria no contexto, no contexto das Relações
Internacionais, incide em temas como a guerra, a cooperação e a política internacional, a
hipótese teórica pode iluminar características importantes da política internacional que antes
eram enigmáticas e têm implicações práticas cruciais para a teoria internacional e para as
pesquisas empíricas (Adler,1999:99).
No que respeita à realidade, o mundo é constantemente construído pela interacção
entre os actores, a partir das relações estabelecidas por diferentes canais de comunicação,
que delimitam os interesses e as preferências dos agentes (Messari, 2005: 166). No entanto,
esta ideia não pode ser validada sem ter em conta, a importância da linguagem, nós não
temos meios de decidir quais são as afirmativas que correspondem à realidade a não ser por
outras afirmativas, não faz sentido, assumir a existência independentemente de uma
realidade externa, logo sem saída (Fuchs, 1992: 60) daí, alguns defensores desta corrente
como Alexander Wendt (1992)7 argumentarem que um dos principais axiomas no escrutínio da
realidade ser a organização do discurso.
Em Síntese:
O foco do construtivismo assenta na construção social da realidade tendo como alicerce três premissas centrais: O mundo é construído através de interacções sociais; os agentes e as estruturas são constitutivos; e por fim, a crença de que a realidade é construída com interacções matérias e ideias (Nogueira e Messari, 2005: 185).
Quanto ao processo cognitivo, este deve ser analisado como um todo, ou seja, ter em
conta que o conhecimento é duplamente construído. Inicialmente foi o povo que deu voz à
revolução, em seguida foram os media que a difundiram e que graças aos enquadramentos
realizados nas suas coberturas encorajaram os países vizinhos a dar continuidade á revolução
nos seus países. Wendt ilustra esta ideia afirmando:
Uma importante fonte de incentivo é a crescente “densidade dinâmica” de interacção entre Estados no mundo de novas tecnologias de comunicação, armas nucleares, externalidades por parte do desenvolvimento industrial (…).
(Wendt, 1992).
7 Na verdade, o construtivismo de Wendt posicionou-se como meio-termo entre as teorias racionalistas e construtivistas e ao criticar as teorias das Relações Internacionais, por estas considerarem as identidades predeterminadas, logo incompletas. Segundo o autor, uma teoria que não incorpore de forma endógena instrumentos para analisar o processo de construção de ideias, da cultura e dos valores dos agentes, é uma teoria incompleta (Nogueira 2000: 178). Wendt apresentou uma explicação intrínseca sobre o processo de formação das identidades colectivas, conferindo destaque central para os valores e ideias. Contudo, ao contrário de muitos, o autor não defendeu a virada linguística, pelo contrário, insistiu em manter-se distante de construtivistas como Friedrich Kratochwil e Nicholas Onuf, ao não lidar com o discurso como uma categoria central da sua análise (Nogueira 2000:178).interpretativas tendo servido de ponte entre as duas. Wendt, marcou a diferença ao distanciar-se dos teóricos
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
8
A realidade para os construtivistas só passa a fazer sentido e a determinar
identidades, agentes, Instituições, estruturas e acções a partir da comunicação social. A
difusão de informação e a socialização são então a principal base para os teóricos dessa linha.
Existe a formação de conceitos através do contacto social e dos vários incentivos resultantes
do processo de comunicação (Pinheiro, 2011:19).
Deste modo, e relativamente à Primavera Árabe, O “sucesso” da auto-imolação que
conduziu à morte do jovem tunisino, Mohamed Bouazizi desencadeou uma onda de
manifestações e conflitos que ganharam força na luta pela libertação de muitos dos países do
médio oriente e norte de África, que se encontravam imersos pela tirania e mergulhados na
ignorância cultural. Tal acto pode ser considerado como uma consequência do conhecimento
partilhado, que é repartido por todos aqueles capazes de se comprometerem com, ou
reconhecerem o desempenho apropriado de uma prática social, ou de um conjunto de
práticas (Cohen, 1987: 287). Na observação dos acontecimentos, deteta-se que grande parte
dos países, nomeadamente a Síria, país em análise nesta investigação, seguiram o exemplo da
Tunísia e realizaram as suas próprias revoluções. Uma vez que se identificaram com
sentimento de revolta e o desejo de melhores condições de vida. Na Síria 82% dos sírios8
apontaram a Turquia como exemplo de estado a seguir. Estes acontecimentos, só foram
possibilitados graças à partilha de informação efectuada pelos meios de comunicação social.
O mundo é intersubjectivo porque nós vivemos nele (...) compreendendo os outros e sendo
compreendidos por eles (Schutz,1964: 10).
Contudo, o sucedido no mundo árabe, não resultou apenas da partilha do sentimento
de revolta. Partindo do pensamento de Wendt resultou, também do reconhecimento da
identidade do povo árabe, sustentada na partilha de ideias, normas e valores que uniram um
povo, dando voz à reivindicação de direitos que são comuns a todos os povos. O
desencadeamento dos conflitos encorajou a consolidação das identidades e fez com que o
povo árabe reconhecesse e lutasse pelos direitos políticos, económicos e acima de tudo
cívicos (Santos, 2012: 7). Para Wendt, existe sim, um “mundo lá fora”, mas este mundo é
socialmente construído e, por isso, é produto das ideias e dos valores dos agentes que o
constroem (Nogueira, 2000: 178). Para o teórico, as ideias e os valores são centrais e deviam
de ser explorados de forma endógena.
Sem negar o materialismo, nem menos a racionalidade da existência de um “mundo lá
fora”, Nicholas Onuf9 defende sim o discurso como a categoria essencial da sua análise. Como
tal, alega que para o seu entendimento é necessária a compreensão dos discursos, uma vez
que “Talking is Undoubtedly the most important way that we go about making the world
8 A Turquia não participou na Primavera Árabe, no entanto apoiou as revoluções chegando mesmo a visitar a cidade do Cairo, após a ocorrência dos conflitos. Grande parte dos países envolvidos na insurgência popular no nundo árabe ambiciona obter um regime semelhante ao da Turquia. 9 O autor levantou um debate interessante para as Relações Internacionais ao considerar a sociedade internacional como descrita em bases históricas e sociológicas, e a realidade não como algo dado, mas sim construído.
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
9
what it is” (Onuf, 1998). Para o autor, existe de facto um “mundo lá fora”, mas esse é
entendido através de uma linguagem, que não só reflecte a acção, mas que é a própria acção.
Onuf acredita, portanto, na relação directa entre as normas e o discurso entendendo este
último não como mero instrumento político, mas como a política em si (Guarnieri, 2010: 257).
Afinal, “Saying is doing” (Onuf,1998: 59).
As normas, compartilhadas colectivamente e percebidas como padrões apropriados de
comportamento (Finnermore, 1998), servem de modelo de conduta, ditando o procedimento
que os actores devem adoptar no sistema internacional, esta lógica construtivista permite
entender determinados comportamentos. Desta forma, a intersubjectividade aplicada ao
construtivismo arroga-se há existência do conhecimento partilhado.
Relativamente à formação das identidades, estas em vez de serem dadas pela
natureza, resultam da partilha de ideias e do conhecimento partilhado. Permitem
interpretações e profecias sobre todo o acto socialmente significativo, quando exercido por
outros agentes. As identidades são produzidas, legitimadas e por vezes, imaginadas.
A globalização apresenta um leque de diferenças, o que legitima a existência de
diversas identidades, e permite aos agentes deslocarem-se, adquirirem conhecimento e
adoptarem novas identidades. Os agentes, denominados por Hall (2004) como pós-modernos,
passam por constantes mutações e formações identitárias. O autor acrescenta ainda que, o
facto de estarmos inseridos numa cultura e esta ser um discurso, a identidade cultural e
nacional torna-se situacional, a partir do momento que também é definida pelo tempo,
“lugar” e história (Terra, 2008: 16).
Quanto à identidade nacional, Hall (2004), afirma que é construída e imaginada.
Admite que é formada por diferentes identidades, mas que tende a unir-se para construir a
sua própria identidade nacional.
Se atendermos aos acontecimentos do Médio Oriente e no Norte de África. A
insatisfação e a crescente repressão por parte dos seus governantes assim como o
agravamento das condições de vida culminaram com a partilha de informação, que resultou,
na formação da identidade de um povo com voz, unido e decido a lutar e reivindicar pelos
seus direitos. A atitude do povo árabe traduziu-se na reafirmação e no fortalecimento da sua
identidade. Desta forma, entendemos que o construtivismo ajuda a compreender como as
identidades e os interesses em mutação podem conduzir a mudanças na política dos estados e
até na política internacional.
De regresso às regras, baseadas na concepção de que a sociedade tem por base as
regras, que são os “statements”, Onuf, relaciona as regras da linguagem adoptando a
concepção de Wittgenstein, de que as regras são semelhante às mesmas de um jogo
(Frizzera, 2013: 59). Como tal, incidem nos actos de fala que são: assertivos, directivos e
comissivos, correspondendo o primeiro ao conhecimento sobre o mundo, o segundo ao
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
10
fornecimento de instruções e, o terceiro, que vincula as promessas; isto como forma de
distinguir as regras: de instrução, de direcção e de compromisso (Onuf, 1989).
Relativamente aos meios de comunicação, através das notícias é possível observar a
aplicabilidade dos actos de fala nas notícias que diariamente são publicadas. Como por
exemplo as publicações dos jornais diários, acerca do tema da Síria, neste caso, as notícias
fornecem informações, aos agentes a respeito do mundo e do seu funcionamento, a exemplo
disso, a notícia publicada pelo jornal Expresso com o título “Síria: Porque é que o Regime Al-
Assad não cai” relativamente aos actos de fala de direcção, neles estão implícitas as ordens
que implicam a obediência e a aceitação das regras, estes são imperativos e ditam aos
agentes o que deve e não ser feito. Nos textos de carácter opinativo encontra-se uma
indicação acerca do que deve ou não ser feito. E por último, os actos de fala comissivos,
verifica-se um vínculo que envolve uma promessa e que se exige uma resposta, o sucedido na
guerra das Malvinas serve de exemplo ilustrativo. O “pedido” de Margareth Thatcher para que
os meios de comunicação ficassem impossibilitados por nove horas de fazer a cobertura do
acontecimento, visto que Thatcher queria anunciar a sua vitória em primeira mão.
Analisados os significados dos actos de fala, adquire-se uma noção mais clara da
importância e da forma como a linguagem estrutura o mundo e as relações e claro, a sua
complementaridade com a comunicação. Como se observa:
Tem-se realizado esforços para encaixar as palavras no mundo. Estas são fruto das relações interpretativas, ao que se organizam da materialidade das expressões humanas. Dessa forma, objectivam-se elementos que dotam os objectos do mundo de características. Isto permite que a acessibilidade a estes elementos do mundo seja intuitiva e possa partilhar também de experiências pregressas, sem a necessidade de recorrer sempre à interpretação. Tal esforço, apresenta claras intenções de organizar os elementos de encaixe e significação, que representação o fundamento das regras (originais de actos de fala) assertivas, que são sentenças sobre o mundo.
(Onuf,1989)
Deste modo, o autor observa a realidade como definida por agentes que seguem
regras por viverem e interagirem num mundo socialmente construído por essas mesmas
regras. Por sua vez, através dos institucionalismos da sociologia, Martha Finnermore tenta, à
luz da teoria construtivista, analisar o comportamento dos Estados. Neste seguimento será
analisado o comportamento do governo sírio perante a onda de protestos que se
desencadearam no decorrer da Primavera Árabe. Para a autora, os Estados só podem ser
entendidos se analisados como parte integrante do sistema internacional. A estrutura
internacional “socializa” os Estados, ao moldar as suas percepções do mundo e ao definir os
papéis, na realidade política Internacional (Finnermore, 1996: 2).
Para e inevitavelmente numa lógica construtivista analisar a acção do estado sírio no
contexto das normas e dos valores internacionais, Martha Finnermore, 1996, aponta o sistema
internacional como sendo ao mesmo tempo “constitutivo” e “generativo”, criando interesses
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
11
e valores, e por conseguinte, identidades para os actores estatais. Seguindo esta
argumentação, pode constatar-se que governo de Assad (na Síria) deveria reger-se pelas
normas internacionais e garantir ao povo sírio direitos como a liberdade de expressão entre os
demais.
Segundo o construtivismo, o sistema internacional tem a capacidade de alterar a
actuação estatal e influenciar as preferências dos Estados, fazendo com que estes pensem e
ajam de acordo com o sentido que dão a eles mesmos e aos demais (Guarnieri, 2010:257). A
forma repressiva como o governo de Assad liderou o país, antes e durante a Primavera Árabe,
através de ataques desencadeados pelas forças do governo, para deter os manifestantes e aos
meios de comunicação nacionais e internacionais, constituíram um desacato às regras e
normas do sistema internacional, Finnermore, afirma que os interesses nacionais são
definidos pelo contexto das normas e valores internacionais, o que prova mais uma vez que o
governo sírio cometeu um desrespeito moral para com o seu povo e para com a comunidade
internacional, pois segundo a convenção das Nações Unidas, um país só pode sofrer uma
intervenção externa, na ajuda da resolução de conflitos internos cujos efeitos alcancem
proporções graves, caso cometa crimes contra a Humanidade, ou genocídio praticado por um
governo contra a sua própria população, como é o caso do Estado da Síria.
Neste seguimento, e conscientes da violação dos direitos do povo sírio, a comunidade
internacional tomou algumas medidas que demonstraram o seu apoio à luta do povo sírio.
Com efeito, começaram por proceder a uma “espécie” de bloqueio comercial do Estado da
Síria, no qual os Estados Unidos e a União Europeia congelaram os bens dos altos funcionários
nas forças sírias do governo e das forças de segurança, estendendo a funcionários de
empresas que auxiliavam a repressão na Síria, assim como uma série de entidades; em
seguida, procederam ao congelamento dos bens activos de empresas sírias e bancos ligados ao
governo e aos seus apoiantes, o governo dos EUA proibiram ainda os cidadãos norte-
americanos de efectuarem negócios com empresas e bancos sírios. Quanto à UE, que compra
cerca de 95% das exportações de petróleo sírio, proibiu a compra de petróleo, assim como o
investimento em empresas sírias (HUMAN RIGHTS WATCH, 2011). A nível regional, também se
verificou uma crescente condenação por parte dos países vizinhos da Síria. Em Agosto de
2011, a Arabia Saudita, juntamente com o Bahrein, Kuwait e a Tunísia retiraram as suas
embaixadas de Damasco. A Turquia, que até então era aliada da Síria, também condenou as
acções desumanas desencadeadas pelas forças de Assad e cessou pelo menos dois
carregamentos de armas para a Síria, a Turquia foi também responsável pela organização de
inúmeras reuniões para a oposição síria. Em Novembro, a Liga Árabe suspendeu a Síria da
organização10 e, pediu à Organização das Nações Unidas (ONU) para que aplicasse sansões
10 O governo de Assad tinha acordado com o plano proposto pela Liga Árabe para colocar fim à violência do governo para com a população e, dar início às conversações entre ambos, no entanto, o acordo não foi cumprido pelas forças de Assad, desde que o acordo foi assinado, registaram-se mais de 60 civis mortos pelas forças do governo, afirmou o Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Ravina Shamdassani (REUTRS, 2011).
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
12
económicas e políticas para a síria e para que a situação fosse julgada pelo Tribunal Penal
Internacional, no seguimento das atitudes do governo de Assad para com a população: os
abusos de natureza sistemática contra os civis em Homs por parte das forças do governo sírio,
incluindo tortura e dos massacres, constituem crimes contra a humanidade, afirmou a Liga
Árabe num comunicado (REUTERS, 2011). A ONU estimou que até Outubro de 2011,
registassem cerca de 3 mil civis mortos em território sírio.
Simultaneamente, a vaga de protestos só alcançou grande impacto graças, mais uma
vez, à partilha de conhecimento e informação, possibilitada pelos media, nomeadamente
pelos repórteres de guerra e as redes sociais como o Facebook, Twitter, youtube, entre
outras, que serviram de canal difusor na sensibilização das massas árabes e da Comunidade
Internacional. Uma vez que os meios de comunicação são capazes de agir sobre o colectivo e
as nações. Numa lógica ideal, ao forjarem as linhas de influência em dada conjuntura, o mais
certo seria os media garantirem uma certa protecção aos manifestantes e à população em
geral dos países envolvidos, contudo, como se poderá observar nos seguintes capítulos, não se
verificou tal ocorrência. Quanto ao conhecimento, que é partilhado por todos aqueles capazes
de se comprometer com, ou reconhecer o desempenho apropriado de uma prática social, ou
de um conjunto de práticas esse transpõe o individual, define a realidade social, uma vez que
abarca as práticas e a vida em sociedade. Cada um de nós tem os seus próprios pensamentos;
compartilhando os nossos conceitos com os nossos semelhantes (Toulmin, 1972).
Relativamente há mobilização social, Searle (1995: 127), afirma que, as pessoas
actuam em conjunto, como sucedeu na Síria, e desta forma a intencionalidade individual de
cada pessoa deriva da intencionalidade colectiva de que compartilha. Por conseguinte, pode
observar-se a grande proximidade com a comunicação social, afirmando que, a metamorfose
da realidade intersubjectiva é, efectivamente, uma das possibilidades dos media.
Porém, para compreender o processo e as razões que não só desencadearam como
deram força, à onda de tumultos, torna-se importante analisar, sob a perspectiva do quadro
conceptual cognitivo evolutivo, que engloba as acções nas quais os actores individuais e
sociais são bem-sucedidos, ao introduzirem alterações que resultam na transformação ou a
criação de novos entendimentos colectivos, que por si só, moldam os interesses, e as
expectativas dos actores sociais. À luz desta teoria construtivista, Nicholas Onuf defende que
a construção das identidades das pessoas é um processo contínuo, resultante da realidade a
que estas estão expostas. A conjuntura política contribui de levemente para a formação das
identidades, mas no entanto, factores como o reflexo de valores, normas e práticas, que
segundo Robert Kaohane, diferem de uma cultura para cultura, podem sofrer alterações de
uma época para a outra (Pfaltzgraff, 2003: 215). Wendt (1994) apresenta as identidades não
como pré-determinadas, mas como resultantes de processos relacionais. As identidades
seriam estabelecidas endogenamente à interacção:”Trough interaction, States might form
collective identities and interests”. Para o autor, os interesses tendem a “espelhar” as
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
13
práticas significativas ao longo do tempo. Esse conceito da formação de identidades é
capturado pela noção interaccionista simbólica11 que afirma que o “agente” é um reflexo da
socialização (Wendt, 1992).
Inspirados pelo cenário ocorrente na Tunísia, os países percursores, movidos pelo seu
exemplo, que resultou na retirada do, na altura, governante ditador, Zine el Albidine Bem Ali
fez com que as expectativas por parte dos habitantes dos países vizinhos se transformassem
no sentimento de esperança, conduzindo-os a organizarem e a reverem as suas identidades
colectivas, enquanto nação e a mergulharem na sua própria luta. Keohane (2001: 10) afirma
que:
Os interesses dos actores, as preferências e as percepções estão sujeitas às mudanças de discursos; Os actores humanos e sociais são preparados para mudar a visão deles sobre o mundo, se for provado racionalmente que os seus interesses estão num outro lugar, num novo ambiente dado.
(Citado em: Lazarou, 2011)12
Entendimentos colectivos, tais como normas, não são a causa suficiente para a
acção; os agentes individuais devem agir de acordo com o que ditam as suas identidades e os
seus interesses (Adler, 1999). Relativamente ao estudo de caso em análise, importa sublinhar
que o construtivismo explica a legitimidade do povo Sírio. Quanto à legitimidade, interessa
ressaltar que, quanto mais pessoas a aceitarem como sendo uma norma válida, mais legítima
esta se torna, o que significa que, a teoria não anseia por previsões do comportamento dos
actores, mas antes, num estágio anterior, na constituição das identidades e nos
constrangimentos políticos gerados pela forma como uma nação se vê em relação às demais
(Edler, 2011: 7). O despoletar das revoluções, na altura decorrentes, demarcou os interesses
de um povo cansado de um regime autoritário, dos altos preços dos alimentos, do desemprego
que afectava maioritariamente a população jovem e sobretudo, a falta de liberdade. Ao
decidir combater pelos seus interesses os sírios não só lutaram pela conquista desses mesmos
direitos, como pela afirmação da sua identidade enquanto povo que aseia a liberdade.
A legitimidade de uma norma refere-se à sua internalização por parte dos indivíduos,
isto é, da sua aceitação como válida, pois o que as legítima é da coerência e concordância
colectiva e interna de valores, meios e fins. No caso do povo sírio, a sua união na
revindicação dos seus direitos, legitimou a sua acção, pois demonstrou a existência de
consenso nacional. Por outro lado, outro factor importante que pode explicar a formação da
identidade do povo sírio, e que no fundo legitima a unanimidade do mesmo é o facto de Assad
11 A Noção interaccionista simbólica refere-se á corrente teórica denominada de intercacionismo simbólico, em que se situa o conceito de “eu-espelho”. 12 O artigo não tem paginação.
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
14
ser sunita13, assim como os seus apoiantes, enquanto que, grande parte dos opositores serem
xiitas.
A teoria construtivista explora duas dimensões: uma individualista caracterizada por
focar-se no agente em sociedade, e que estuda a intersubjectividade, a construção das
identidades e dos seus objectos de análise, as regras; normas; valores; costumes e práticas
que são construídas por agentes sociais. A linguagem e o discurso que são efectivamente
utilizados pelos agentes em toda a sua dinâmica. A segunda dimensão é estruturalista, uma
vez que, procura estudar como as construções observadas na primeira dimensão, devidamente
convertidas em conhecimento, tornando-se referência para a vida em sociedade e, até
mesmo para as construções subsequentes e complementares. Assim, nada disso ocorre de
forma isolada, nem é auto-suficiente, quando se trata de observar empiricamente. Não é
possível analisar e compreender apenas como as identidades formatam, por exemplo, o
comportamento dos Estados no ambiente internacional. A lógica da dupla-hermenêutica surge
nesse momento como um elo fundamental entre a dimensão ontológica e a dimensão
epistemológica do construtivismo (Guzzini, 2000: 160).
Observados os desígnios da construção social da realidade, na matriz teórica
construtivista das Relações Internacionais, passa-se à observação no campo do jornalismo- e,
em especial, na prática noticiosa, através da análise da teoria construtivista do jornalismo.
Posteriormente procede-se à análise da hipótese teórica das teorias do agendamento, e
enquadramento de, forma a melhor compreender as coberturas noticiosas do conflito
internacional- Guerra Civil da Síria, tomando assim como espaço de interdisciplinaridade
entre as áreas da comunicação (jornalismo) e das Relações Internacionais.
2. Teoria construtivista do jornalismo
Os media não relatam simplesmente e de uma forma transparente acontecimentos que são só por si «naturalmente» noticiáveis. «As notícias» são o produto final de um processo complexo que se inicia numa escolha e selecção sistemática de acontecimentos e tópicos de acordo com um conjunto de categorias
socialmente construídas.
(Traquina 1993: 133).
Houve desde sempre uma forte necessidade por parte do ser humano de manter-se
informado, e várias são as explicações para essa volição: desde o desejo de inclusão social, à
necessidade de se manter informado como forma de sentir-se culto. Numa perspectiva
13 Há um forte antagonismo religioso entre sunitas e Xiitas. Dos 20 milhões de Sírios, 74% são sunitas, no entanto, o presidente Assad é xiita alauita, o que faz com que os melhores cargos políticos sejam atribuídos a estes tornando-os numa Elite. Vide a este respeito: Carrasco, T. (2012:108) “ A estrada da Revolução”. Alfragide: Oficina do Livro.
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
15
histórica, a par da evolução das sociedades registaram-se também grandes mudanças na
forma como as notícias evoluíram: desde a oralidade, passando pelo desenvolvimento da
escrita, até à criação da contemporânea indústria de informação. Os processos
comunicacionais e, em especial, o jornalismo que hoje conhecemos tornaram-se mais
complexos (Castro e Silva, 2012:1).
Uma vez que, os meios de comunicação ocupam um lugar de destaque para a
organização social, através da difusão e da representação cultural para o público, cabe ao
jornalismo uma das principais referências no que respeita à construção social da realidade.
Como afirma Franciscato (2005), o jornalismo, acabou por desenvolver uma legitimidade
social para produzir, para um público amplo, disperso e diferenciado, uma reconstrução
discursiva do mundo com base num sentido de fidelidade entre o relato jornalístico e as
ocorrências quotidianas.
No entanto, no campo da comunicação social, as teorias do jornalismo foram
marcadas por uma viragem de paradigma, iniciada nos anos 70, nos estudos da socióloga Gaye
Tuchman. A teoria construtivista do jornalismo, defensora de que as notícias são uma
construção da realidade e não o espelho da mesma, como defendida pela teoria do espelho,
denega que as notícias são o espelho da realidade pelo facto de, considerar impossível a
transmissão total e verídica da mesma. O ponto de vista construtivista defende, em primeiro
lugar, que é impossível estabelecer uma distinção radical entre a realidade e os media
noticiosos que é suposto «reflectirem» essa realidade, porque as notícias ajudam a construir a
própria realidade (Traquina 2002:201). Em segundo lugar, considera que a linguagem utilizada
não pode ser desprovida de intenção, ou seja, não pode ser neutra em relação ao
acontecimento e que serve, sim, de instrumento construtivo da notícia, visto que o caracter
subjectivo está sempre implícito na mesma, mais até do que subjectividade, é uma questão
de linguagem, visto que esta dá significado aos acontecimentos relatados. O acontecimento,
em si, não significa; só adquire significado através da linguagem usada para falar acerca dele-
e essa linguagem, pelas escolhas que se faz, constrói o acontecimento (no sentido de
construir um determinado significado dele). Em terceiro lugar, o jornalismo aparece como um
dos processos construtores da realidade, na medida em que esta é ao mesmo tempo
construída pelas próprias notícias. Por último lugar, as notícias são uma construção no sentido
de englobarem factores como as rotinas de produção, a construção da audiência e um muito
indispensável- a noticiabilidade de cada notícia, isto é a aptidão para se transformar um
acontecimento em notícia (Wolf, 1992) ou, por outras palavras, para dar a relevância pública
do acontecimento.
Na perspectiva do paradigma cultural das notícias, tal como na teoria construtivista
das Relações Internacionais, a teoria construtivista do jornalismo defende a importância da
cultura, uma vez que a conceptualização das notícias como “Estórias” realça a necessidade
de compreender a dimensão cultural das mesmas. O sociólogo Michael Schudson (1995),
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
16
defende essa posição, afirmando que, as notícias são produzidas num contexto que engloba
cultura, pessoas e acontecimentos, «As notícias são produzidas por pessoas que operam,
inconscientemente, num sistema cultural, um depósito de significados culturais armazenados
e de padrões de discursos» (Schudson, 1995: 14). Por conseguinte, outros autores, como
Stuart Hall (1978), similarmente defendem a relevância da dimensão cultural destacando a
importância dos “mapas culturais”, termo naturalmente conhecido no construtivismo das R.I,
que corresponde à base cultural que temos acerca do mundo que conhecemos e que nos é
dado a conhecer. A identificação social, classificação, assim como a contextualização dos
acontecimentos noticiosos relativamente aos “mapas culturais” constituem elementos de
familiarização e de ligação dos media para com o público e tornando assim inteligível o
mundo a que fazem referência (Traquina 2002: 97).
A construção social do mundo é vista segundo a visão de 14Niklas Luhmann de forma
deveras similar à do pensamento construtivista das R.I, uma vez que a comunicação é um
sistema inconsistente que produz e reproduz a sociedade (Langer 1999: 77). Quanto aos
processos de comunicação, Luhmann pensa tal como Wendt, pois acredita que advém de
contextos que englobam regras, normas, valores, (todo um contexto social próprio de cada
sistema social) factores que, constituem o individuo e que só podem ser integrados graças aos
meios de comunicação. Os sistemas sociais são baseados em esquemas sociais, que por sua
vez são esquemas culturais. Nas palavras de Schudson “as notícias são produzidas por pessoas
que operam, inconscientemente, num sistema cultural, um depósito de significados culturais
armazenados e de padrões de discursos (1995), o que o evidencia que, os factores culturais,
económicos e políticos exercerão sempre influência nas notícias.
Roy Langer, no artigo “Towards a Constructivist Communicaton Theory?”, fala da
cultura da comunicação, que se aproxima muito do pensamento construtivista das Relações
Internacionais em relação à construção social do mundo. Remetendo uma vez mais, para os
conflitos da Síria, a teoria da cultura dos Media pode explicar o porquê destes terem
decorrido. Uma vez que, os meios de comunicação servem de instrumentos difusores de
informação e têm grande impacto na representação e na comunicação de emoções (langer
1999:79), as coberturas noticiosas sobre a Primavera Árabe sensibilizaram o mundo e
incentivaram os países árabes a revoltarem-se e a reivindicarem pelos seus direitos junto
daqueles que, na altura, eram os seus governantes ditadores. As imagens das revoluções que
percorreram o mundo assim como as notícias do sucesso das mesmas encorajaram os países a
fazer o mesmo, nós aprendemos através dos media como viver e como morrer (Schmit 1997:
130). Os protestos, graças também, à mobilização online têm provado que mais uma vez, os
media têm grande impacto perante os governos. No entanto é importante analisar a forma
como foram realizadas as coberturas noticiosas pelos Media internacionais e a forma como o
acontecimento ocupou a agenda noticiosa dos mesmos. Importa deste modo abordar a Teoria
do Agenda Setting.
14 Este autor muito contribuiu para o homologar da teoria construtivista.
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
17
No entanto, antes de avançar para a teoria do agendamento, interessa analisar a
questão da formação das identidades à luz desta teoria que tanto se aproxima à teoria
anteriormente estudada. A formação das identidades acontece simultaneamente à
acumulação de conhecimento. De acordo com Stuart Hall (2006), a identidade é formada no
discurso e cada sujeito tem a sua personalidade (verdadeira) que vai sendo moldada ao longo
da vida. O sujeito ainda tem um núcleo interior que é o “eu real”, mas este é formado e
modificado num diálogo contínuo com os mundos culturais exteriores e as identidades que
esses mundos oferecem. A identidade constrói-se na interacção entre o eu e a sociedade
(Hall, 2006:11).
Dado o papel de destaque que os media conferem à vida do público, quando estes
conseguem interferir no processo de identificação do público, pode afirmar-se que a sua
relevância está comprovada. Segundo Bauman (2001), vivemos na era da “modernidade
líquida”, em que os valores são menos estáveis e mais mutáveis. Daí a importância dos
discursos que constroem, desconstroem ou consolidam de significações, que geram
identidades e noções de inclusão (Castro e Silva, 2012:2).
Quanto à linguagem, no campo da comunicação, tal como Nicholas Onuf, do
construtivismo das Relações Internacionais, Berger e Luckmann (2007) abordam a linguagem
aplicada à teoria do jornalismo:
A linguagem constrói, então, imensos edifícios de representação simbólica que parecem elevar-se sobre a realidade da vida quotidiana como gigantescas presenças de um outro mundo (…) Desta maneira, o simbolismo e a linguagem simbólica tornam-se componentes essenciais da realidade da vida quotidiana e da apreensão pelo senso comum desta realidade. Vivo num mundo se sinais e símbolos todos os dias (Berger e Luckmann, 2007: 61).
O que por sua vez, justifica a prática de determinadas atitudes por parte dos
jornalistas. No fundo, mostra que o profissional do jornalismo, assim como grande parte dos
profissionais das mais variadas áreas, vive num ambiente marcado por regras socialmente
construídas. O que significa que, mesmo a desempenhar o seu trabalho este vai observar o
mundo à sua volta como sendo socialmente construído.
Concludentemente, o paradigma construtivista do jornalismo não descarta o carácter
real das notícias, contudo aceita que estas passam por um processo de produção que envolve
formas literárias e narrativas utilizadas para enquadrar o acontecimento. O recurso à
pirâmide invertida; (às questões: O quê? Quando? Onde? Como? e porquê?), a necessidade de
excluir ou selecionar determinados acontecimentos assim como a forma de os enquadrar são
alguns dos exemplos que demonstram como a notícia, ao dar vida ao acontecimento, constrói
o acontecimento e, consequentemente, a realidade (Traquina, 2002).
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
18
2.1 .Teoria do Agendamento
Os mass media fornecem algo mais do que um certo número de notícias.
(Shaw 1979: 103).
O termo 15Agendamento teve a sua origem nos estudos desenvolvidos por Maxwell
McCombs e Donald Shaw (1972, 1993), jornalistas pioneiros no estudo da Teoria do
agendamento ou Agenda Setting no artigo: The Agenda Setting funtion of mass media,
publicado em 1971, na revista Public Opinion Quarterly. A teoria consiste na reciprocidade
que há entre a importância dada pelos meios de comunicação a determinados assuntos, e o
impacto que estes mesmos assuntos e problemas têm para o público e para a política
(McQuail 2003: 461).
Agenda setting é uma das formas pela qual os media podem ter um efeito no público. É a ideia de que os media jornalísticos pela apresentação de notícias, vêm a determinar os assuntos sobre os quais o público pensa e conversa (McCombs, 1962).
Antes de avançar no estudo do agendamento, convém frisar as palavras de Mauro
Wolf que avança a hipótese de agendamento não ser exactamente uma teoria:
No estado actual, a hipótese do agenda-setting é, portanto, mais um núcleo de temas e de conhecimentos parciais, susceptível de ser, posteriormente, organizado e integrado numa teoria geral sobre mediação simbólica e sobre os efeitos da realidade exercidos pelos media, do que num modelo de pesquisa definido (Wolf, 2005: 128).
Dearing e Rogers (1996) defendem que esta a teoria já havia sido estudada no
contexto das campanhas eleitorais no que definem de “competição contínua entre
protagonistas de questões para chamarem a atenção dos profissionais dos Media, do público e
das elites políticas”. Contudo, o seu efeito vai para além das campanhas eleitorais. A teoria
do agendamento identifica os assuntos e problemas que são considerados e pensados como
prioritários e que estão estar na ordem da discussão do dia e da agenda. Lazarsfeld (1994: 3)
definiu o agendamento como “o poder de estruturar assuntos”.
Partindo da hipótese de que os media têm um papel cimeiro na definição da agenda
pública, estes detém notoriedade suficiente para que os assuntos por eles considerados
relevantes sejam imperativos para a agenda política (Traquina, 2012). Desta forma, a teoria
do agendamento, além de identificar os assuntos que os media propõem à atenção do
15 Por agenda entende-se os temas que estão na ordem do dia e que ganham maior visibilidade e atenção por parte da sociedade e que são considerados temas de grande relevância.
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
19
público, engloba também, a ordem com que esses assuntos são apresentados/dispostos nos
media e a forma como são considerados em termos de importância pelo público.
Em consequência da acção dos jornais, da televisão e dos outros meios de informação, o público sabe ou ignora, presta atenção ou descura, realça ou negligencia elementos específicos dos cenários públicos. As pessoas têm tendência para incluir ou excluir dos seus próprios conhecimentos aquilo que os media incluem ou excluem do seu próprio conteúdo. Além disso, o público tende a atribuir àquilo que esse conteúdo inclui uma importância que reflecte de perto a ênfase atribuída pelos media aos acontecimentos, aos problemas, às pessoas (Shaw, 1976 apud Mauro Wolf, 2002:128).
Deste modo, pode concluir-se que a disposição dos assuntos da agenda pública
corresponde à que é feita pela agenda dos media, no entanto, convém frisar que, esta teoria
não passa de uma hipótese teórica, o que significa que consoante o contexto a ser analisado
esta pode ser aplicável ou não, o o que será comprovado com o estudo levado a cabo através
da análise da cobertura dos repórteres portugueses e brasileiros na Síria durante a Primavera
Árabe.
As pessoas têm tendência para incluir ou excluir dos seus próprios conhecimentos àquilo que os meios de comunicação incluem ou excluem do seu próprio conteúdo. Além disso, o público tende a atribuir áquilo que esse conteúdo inclui uma importância que reflecte de perto a ênfase atribuída pelos meios de comunicação aos acontecimentos, aos problemas, às pessoas (Shaw 1979:96).
Antes de avançar, torna-se oportuno abordar a forma como os meios de comunicação
social e a política se relacionam, e analisar o seu funcionamento. Quando analisados segundo
a perspectiva da teoria do agendamento, os meios de comunicação social assumem um papel
central para a política e para os seus profissionais. Visto que grande parte das pessoas tem
em conta o conteúdo informativo dos media, estes funcionam como um veiculo informativo
acerca do “mundo lá fora” e filtram os acontecimentos transformando-os em conteúdos
informativos (desde o acontecimento em si até ao momento em que a informação é tratada
pelos meios de comunicação e chega ao público).
Para os políticos esta questão torna-se vital, pois não terem visibilidade perante os
meios de comunicação é como não existirem para o mundo. Logo, os políticos vão fazer de
tudo para merecerem a atenção da agenda pública e captarem a atenção dos media, que leva
a verificar-se a existência de uma ligação muito próxima entre as duas áreas. Transpondo esta
relação para o campo da teoria do agendamento, a teoria explica quais as questões e o tipo
de problemas que alcançam a agenda política (Cobb & Elder, 1972). A forma como os media
colocam os assuntos de ordem política como problemas da ordem do dia (agenda Setting)
deve-se ao facto das questões políticas não fazerem parte da experiência directa das pessoas
(não fazem parte do quotidiano), logo não lhes são familiares e a compreensão desses
acontecimentos é feita muitas vezes através das coberturas noticiosas por parte dos media,
daí estas serem vitais para a política e para os seus profissionais, e dessa forma serem
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
20
decisivas para direcionar, ou não, a opinião pública para uma agenda política. Dearing e
Rogers (1996)16 defendem esta perspectiva ao reforçarem a ideia de que a agenda setting é
um processo político inerentemente político, razão pela qual grande parte dos estudos na
teoria do agendamento estenderem-se a campanhas políticas.
Contudo, para os países que não ocupam um lugar de destaque no cenário
internacional, o mais provável é alcançarem visibilidade nos meios de comunicação em
situações de conflito, como é o caso de grande por países envolvidos na chamada Primavera
Árabe. No caso, a Síria, só começou a fazer parte da agenda dos media internacionais quando
a situação começou a ficar caótica. Nessa altura, os media do mundo inteiro começaram a
integrar nas suas agendas os acontecimentos ligados ao país. (Pinheiro, 2012: 22). A inicial
falta de informação acerca desses países deixa os leitores e telespectadores dependentes da
vontade dos meios de comunicação de relatar de forma detalhada os acontecimentos, o que
possibilita aos meios de comunicação total abertura para darem ao acontecimento o
enquadramento que mais lhes convier, isto através das imagens, das fotos (no caso da
imprensa) que estes disponibilizarem para o público e serão essas imagens que ficarão na
mente das pessoas sempre que abordarem o tema.
A teoria, além de pesquisar quais os problemas que são destacados, investiga a forma
como estes propõe uma certa forma de pensar acerca dos acontecimentos, o que é sugerido
através do enquadramento feito sobre esses mesmos problemas. Neste quadro, importa
também abordar um pouco daquilo que são enquadramentos (frames) e o impacto que estes
conferem às notícias.
2.2 .Teoria do enquadramento
As formas como as notícias são enquadradas pelos jornalistas e como as audiências as
enquadram podem ser semelhantes ou diferentes.
(Capella e Jamiesson, 1997: 98).
Pode afirmar-se que, a interpretação do mundo feita pelos diferentes agentes sociais
e tipificada pelos jornalistas, por meio das notícias se baseia num “acervo de ideias prévias”
que funciona como um esquema de referências, a partir de uma espécie de “conhecimento à
mão” (Antunes, 2009: 86). Os jornalistas, quando se deparam com um acontecimento,
16 Vide a este respeito: McQuail, D. (2003) “Teoria da Comunicação de Massas”. Lisboa: Fundação Calouste Glubenkian.
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
21
desenvolvem automaticamente uma cadeia de percepções que vão desde o seu leque de
experiências individuais até às molduras produzidas à escala da comunidade interpretativa
profissional, assim, como os preceitos da Rotina jornalística: os editoriais, a linha editorial, a
linguagem do veículo entre outros, trata-se de estabelecer um quadro, de questionar de que
evento se trata, que notícia será esta, de forma a verificar o grau de conformidade com
outros acontecimentos, isto, para identificar o seu grau de tipicidade e singularidade
(Antunes, 2009: 87).
O surgimento dos enquadramentos, ou frames, deu-se a par do surgimento da Teoria
do agendamento17, na década de 70, altura em que se iniciaram os estudos sobre os efeitos
dos meios de comunicação na sociedade. Inicialmente desenvolvida pelo sociólogo Erving
Goffman, o conceito de enquadramento resultou numa série de mudanças no pensamento
sociológico do século XX. Na sua obra:”Frame analysis: an essay on the organization of
experience” de 1974, Goffman, define enquadramento como um processo na experiência
pessoal de cada individuo que, resulta da forma como estes enquadram a realidade ao seu
redor. (Goffman 1974 apud Hangai, 2012)18.
Parto do princípio de que as definições de uma situação são construídas de acordo com princípios de organização que governam eventos- pelo menos os sociais- e o nosso envolvimento subjectivo neles; enquadramento é a palavra que eu uso para referir-se a um destes elementos básicos, tais como sou capaz de identificar. Esta é a minha definição de enquadramento. A minha expressão de análise do enquadramento é um slogan para referir-me, nesses termos, ao exame da organização da experiência (Goffman, 1974
apud Hangai, 2012)19.
Desta forma, pode afirmar-se que os enquadramentos podem ser aplicados aos níveis
interpretativos e discursivos. A sua utilização pode estende-se ao campo da comunicação
através da construção de sentido e na interpretação de questões que as audiências fazem
quando os media (um dos grupos de referência dos indivíduos) as tornam relevantes,
interessante e apelativas.
Portanto, o enquadramento é uma estrutura cognitiva, estrutura essa que limita e
define as formas de encarar uma experiência, uma situação, um acontecimento, uma notícia.
A sida, por exemplo, começou por ser enquadrada como uma doença de homossexuais, mas
mais tarde foi enquadrada como um problema de saúde pública. Diferentes grupos, actores
sociais, grupos, partidários, políticos, lutam pela definição dos enquadramentos, e os media
participam nesse processo inevitavelmente, porque ao noticiarem um acontecimento têm o
enquadramento de uma determinada forma. No campo da comunicação, os estudos do
enquadramento começaram a ser explorados na década de 80, pela sociologia, Gaye
Tuchman, anteriormente referida na teoria do agendamento. Tuchman alargou o conceito
estendendo-o aos estudos da comunicação e, em especial aos jornalistas. Uma vez que o
17 As teorias do agendamento e do enquadramento são indissociáveis, uma vez que muitos consideram a primeira incompleta, a teoria do agendamento acaba por completá-la tornando-a mais perceptível. 18 O artigo de Luís António Hangai não tem numeração. 19 O artigo de Luís António Hangai não tem numeração.
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
22
enquadramento mexe essencialmente com a interpretação, nada melhor do que analisá-los
aplicados às notícias, uma vez que os jornalistas trabalham diariamente com a interpretação
dos factos transformados em acontecimentos noticiosos. Com a utilização dos
enquadramentos noticiosos, os profissionais conseguem reconfigurar recortes subjectivos da
realidade e conferir, assim determinado sentido às notícias.
No mesmo campo, o conceito de enquadramento ganhou notoriedade, com a análise
realizada por Todd Gitlin (2003), à cobertura noticiosa sobre a guerra do Vietname. Com a
realização do estudo, comprovou-se que, uma vez aplicados ao jornalismo, os
enquadramentos são tidos como os princípios de selecção, enfâse, e representação composto
por pequenas tácticas teóricas sobre o que existe, o que acontece e o que importa (Gitlin,
1980). Através do uso de certas palavras ou frases, certas referências contextuais, escolha de
certas imagens ou filmes, referências a certas fontes e por aí fora (McQuail, 2003). Desta
forma, como afirma Entman, os frames, definem problemas e diagnosticam causas, fazem
juízos e sugerem soluções (Entman, 1993: 52).
Hudson e Martin (2010) afirmam que os enquadramentos moldam a forma como
determinados eventos são transmitidos e entendidos, o que sugere que os jornalistas podem
privilegiar alguns assuntos em detrimento de outros. Além disso, os autores concluem que o
poder dos media representa a capacidade de produzir uma imagem do mundo exterior que é
tida como verdadeira por parte do público (Hudson e Martin, 2010). Com isto, no seu estudo,
Elena Lazarou pressupõe que o conceito de enquadramento, confere aos media o poder de
facilmente efectuarem alterações na inclusão de novas políticas, na agenda política e de as
enquadrar como sendo positivas, de forma que estas sejam aceites pelo público em geral.
Neste contexto, os media actuam como os agentes da mudança através da promoção de novos
discursos, ou, no caso oposto, como veto players, persistindo na reprodução de ideias e
discursos tradicionais resistindo à mudança política (Lazarou, 2011)20.
Segundo 21Hangai, a aplicação dos enquadramentos ao jornalismo mudou por
completo a perspectiva académica sobre o do trabalho jornalístico. Este já não é mais visto
como uma unidade do real, mas sim como uma construção simbólica promovida por agentes
especializados e na sua tentativa de enquadrar a realidade. Nesse sentido, as pesquisas sobre
o frame, aplicadas ao jornalismo incidem, não só na forma como este constrói e enquadra a
realidade, mas também aos meios que recorre para obter tal efeito. Contudo, há que ter em
conta que, o conceito é muito vasto, podendo, a sua utilização estender-se às diversas áreas
da comunicação. Neste estudo em particular, pretende-se através da análise de
enquadramentos noticiosos realizados pelos canais de televisão portugueses e brasileiros
20 O artigo: “Tranforming Discourses of `Otherness`: The Role of Mass-Media in Greek-Turkish Relations”. De Elena Lazarou não tem numeração. 21 Luís António Hangai, jornalista especialista em novos media e mestrando de comunicação e sociedade.
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
23
compreender, se a posição política de ambos os países para com a Síria influenciou as
coberturas que estes realizaram sobre o conflito.
O conceito de framing tem-se revelado de grande utilidade e aplicabilidade na análise
de processos cognitivos em diversos campos das ciências sociais e humanas. Visto que, os
enquadramento têm um papel crucial na construção do sentido das notícias, conferindo maior
ou menor destaque aos assuntos e ao explicar a essência de um problema, estes “ditam”
quem são os intervenientes, responsabilizando-os numa maior ou menor escala e dando
ênfase ao que deve ou não ser feito. O frame pode determinar e influenciar a posição de um
cidadão face a uma questão. Quando estão envolvidas influências políticas, há esforços para
determinar o rumo dos enquadramentos, a exemplo disso McQuail (2003) afirmou:
No conflito do Kosovo, a propaganda da NATO procurou, desde o princípio do ataque aéreo à Jugoslávia, enquadrar o acontecimento como uma guerra ao mesmo tempo necessária e «humanitária» contra o «genocídio», pelo recurso também a imagens do Holocausto, à comparação de Milosovic com Hitler e à diabolização dos sérvios, de modo geral. A finalidade foi conseguir e manter o apoio da opinião pública e combater quadros alternativos segundo os quais o ataque era percebido como ilegal, excessivamente brutal ou uma forma desajustada de lidar com um conflito étnico interno (McQuail, 2003: 461).
Com o exemplo apresentado, pode concluir-se que o enquadramento dado a
determinado assunto pode de facto ter grande impacto na opinião pública e até na tomada de
decisões dos actores políticos. Por outro lado, importa frisar que, a utilização de
enquadramentos funciona como um custo de oportunidade, ao enquadrar determinado
assunto, está a excluir-se outro, o que pode demostrar a posição dos jornalistas, ou, no caso a
ser estudado, do país em relação ao conflito em questão.
Neste contexto torna-se pertinente a distinção entre enquadramentos interpretativos,
introduzidos por Galtung e Ruge. Este tipo de quadros explica que as várias características
dos fluxos noticiosos, principalmente das notícias internacionais, podem ser explicadas por
factores económicos e políticos (Rosengren, 1974: 64). O que significa que o tipo de relação
existente entre os países pode determinar o tipo de quadro utlizado para se referir ao
mesmo. Posto isto, os frames assumem tendências não só estruturais, mas ideológicas e isto
no processo de produção noticioso. Assim, os frames incentivam determinados modos de
compreender a realidade e limitam interpretações alternativas dos factos (Bantimaroudis,
2007).
Mais uma vez, para realçar a relação existente entre a comunicação e a política, os
autores Bantimaroudis e Kampanellou (2007), reforçam a ideia de que os media a têm
capacidade de influenciar a opinião pública e as percepções políticas. Nesse sentido, a
oportunidade de “enquadrar“ certos assuntos surge a partir da capacidade de transmitirem
certos acontecimentos, e da forma como os transmitem, resultado de escolhas feitas a partir
de discursos oferecidos por grupos de pressão e políticos. Portanto, a política também
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
24
influencia o rumo das notícias. Parte-se do pressuposto de que durante o processo de
produção noticiosa, os jornalistas, por vezes necessitem de recorrer a recursos externos:
Políticos, empresários e as organizações sociais, que constituem fontes das quais os
jornalistas frequentemente dependem, principalmente quando se trata de reportagens
(Hangai, 2012)22.
O enquadramento de determinada realidade pode variar também de acordo com o
veículo, com o repórter, com o editor e mesmo com o fotógrafo. Dentro da rotina de um
veículo de comunicação é elevado o número de pessoas e processos que podem alterar uma
notícia (Traquina, 2005). Os enquadramentos revelam mais sobre as orientações jornalísticas
do que aparentam a olho nu, estes revelam peculiaridades acerca dos veículos noticiosos,
como por exemplo, a sua posição perante determinados assuntos (a ideologia). Quando
comparado a nível internacional, estes podem até mesmo indicar a posição de determinado
país.
Para os media, este tipo de cobertura possibilita a realização dos enquadramentos
que mais lhes convierem a eles e mesmo aos decisores políticos, visto que, a realidade desses
países é desconhecida para grande parte do público. Desta forma, através da publicação de
notícias e fotos formamos imagens desses conflitos armados. Consequentemente, sempre que
o público for abordado sobre o tema, este terá como referência os enquadramentos
realizados pelos meios de comunicação.
Quanto menor é a experiência directa que a pessoa têm de uma determinada área temática, mais essa experiência dependerá dos mass media para se possuir as informações e os quadros interpretativos referentes a essa área. As pessoas não têm necessidade dos mass media para terem conhecimento vivido do aumento dos preços. Esssas condições, quando existem, invadem a vida quotidiana das pessoas (Zucker, 1978: 226).
Desta forma, através do poder que estes (os enquadramentos) detêm, não só os meios de
comunicação, os decisores políticos podem influenciar em grande medida a tomada de
decisões, com as avaliações e considerações comunicadas, validando atitudes,
comportamentos e opiniões sobre uma determinada questão. Enquadrar um problema através
de um processo político real nunca fica limitado à influência da cobertura dos media. Implica
sempre uma forma discursiva que alcança força política e que pode influenciar a deliberação
pública. Muitas decisões políticas tornam-se expressões públicas, enquadrando consequências
e construindo uma “comunidade discursiva” que constitui a “fonte” da democracia discursiva
(Pan & Kosicki, 2001, apud Oliveira, 2001)
22 Vide a este respeito: “Framing Analisys de Goffman e a sua aplicação nos estudos em comunicação” de Luís António Hangai. O artigo não tem numeração.
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
25
Capítulo II –Trajectória e
Contextualização do Conflito Sírio
Em Dezembro de 2010, a atenção do país e do mundo concentrou-se no Médio Oriente
e no Norte de África, regiões que foram palco da mais revolucionária vaga de protestos
realizada nos últimos anos, a chamada- Primavera Árabe. “Era talvez o maior acontecimento
histórico desde a queda do Muro de Berlim e o 11 de Setembro” (Carrasco, 2012: 14).
O termo Primavera Árabe pode ser entendido como uma recuperação conceptual do
termo primavera que marcou a Europa Oriental em 1989, aquando a onda de protestos
populares em massa, alcançou mudanças intensas nos regimes comunistas vigentes na altura.
Num curto período, grande parte dos países adoptou sistemas políticos democráticos que
originaram uma economia de mercado (Manfreda, 2014)23.
Países como a Tunísia, Egipto, Líbano, Marrocos, Iraque e Síria (país em análise)
tornara-se protagonistas dos movimentos revolucionários que deram voz aos povos na luta por
direitos que são comuns a todos os seres humanos, “Soma-se ainda à frustração, a falta de
liberdade de expressão e de possibilidades de participar na vida política” (THE GUARDIAN,
2010). Na base da Primavera Árabe esteve primordialmente uma manifestação de
ressentimento profundo por parte da população árabe para com os regimes ditadores que
recorriam constantemente à força como forma de impor o poder, aliando às dificuldades
económicas, tais como aumento do desemprego e do dos preços dos alimentos, assim como os
problemas sociais que, de tão enraizados nas sociedades árabes, chegavam mesmo a ser
crónicos.
No entanto, o desejo do povo árabe não era unanime. No subconsciente das
revoluções encontravam-se vários desejos: nos regimes monárquicos como, Marrocos e a
Jordânia apelava-se a uma transição imediata, para uma monarquia constitucional; para os
regimes republicanos como o Egipto e a Tunísia, ansiava-se sobretudo, pela retirada dos
respectivos presidentes; enquanto que, para outros países além da questão política, somava-
se o antagonismo religioso, que envolvia islamitas radicais, xiitas entre outros, grupos
religiosos que, no fundo, só queriam viver em paz com as suas próprias religiões.
Mohamed Bouazizi, um jovem comerciante Tunisino, deu início à onda de protestos e
contestações que abraçaram o mundo árabe captando a atenção de todos durante um ano. O
protestante, que morreu um mês depois de ter demonstrado a sua indignação, num acto de
auto-imolação24, após a polícia, de forma violenta e repressiva, ter confiscado o carrinho de
23 Vide a este respeito a seguinte fonte da internet: http://middleeast.about.com/od/humanrightsdemocracy/a/Definition-Of-The-Arab-Spring.htm 24 O Jovem demonstrou a sua indignação em frente ao escritório do governador Bouzid Sidi.
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
26
fruta e vegetais que este vendia numa barraca de rua. Tal acto de frustração e revolta,
rapidamente impulsionou os povos das várias regiões árabes a imporem-se perante os seus
governos e exigirem direitos como liberdade, melhores condições de vida25, e na maior parte,
a retirada dos seus governantes do poder, acusando-os de vários crimes, como a corrupção.
Na agência noticiosa REUTERS poderia ter-se que “AS pessoas estão zangadas com o caso de
Mohamed e com o aumento do desemprego na região” (REUTERS, 2010).
Na Tunísia, país onde teve origem a Primavera Árabe, grande parte dos tumultos só
terminou aquando das acções violentas por parte das forças do governo- com o lançamento de
gás lacrimogéneo por parte da polícia para com os manifestantes e com a prisão destes
últimos, “havia um quebrar de montras de lojas e de carros, enquanto a polícia lançava gás
lacrimogéneo” (REUTERS, 2010). Não obstante, os actos de revolta não se mantiveram apenas
na Tunísia. O “sucesso” da autoimolação desencadeou uma onda de manifestações e conflitos
que foram ganhando força na luta pela libertação de muitos países do mundo árabe, que se
encontravam imersos pela tirania e mergulhados na ignorância cultural. Contagiados pela
difusão online que se gerou não só nas redes sociais, mas como também nos vários meios da
comunicação social de todo o mundo, países como Egipto, Argélia, Iêmen, Líbano, Jordânia e
a Síria entre outros realizaram as suas próprias revoltas.26
Depois da Tunísia, seguiu-se a vez do povo egípcio sair à rua e dar voz à sua revolução
que resultou na retirada de Mubarack do poder, que este ocupava à certa de 30 anos. No
Barein, os jovens saíram à rua no dia 11 de Fevereiro de 2011 dando vida a uma onda de
protestos, que mais tarde viriam a ser liderados pelos opositores do governo, os xiitas. Os
líbios e iemenitas deram início às suas próprias revoluções a meados de Fevereiro e os sírios
começaram em Março. No Iraque, os slogans anticorrupção estiveram na base da revolução
por semanas. No entanto, o governo apressou-se a reprimir tais actos, de forma a acabar com
as revoluções, levando a cabo acções repressivas para com os protestantes do Curdistão
iraquiano. Ninguém conseguiu ficar indiferente à onda de contestações. Os palestinianos
motivados pelas revoluções, protestaram na cidade de Gaza contra a divisão entre as
autoridades palestinianas e Hamas. As ruas de Jerusalém foram palco do momento histórico
no qual o governo deu prioridade às reformas sociais sobre a política de segurança. Mais
tarde, seguiu-se a vez do Kuweit e da Jordânia vivenciarem as suas próprias revoluções
(REPORTERS WITHOUT BORDERS, 2011).
25 Mais do que a questão política, as más condições de vida e o desemprego juvenil foram a chave do despoletar das revoluções. 26 A onda de manifestações e revoltas tinha derrubado quatro tiranos e fizera estremecer mais uns quantos (Carrasco, 2012). Na Tunísia, o presidente Zine El Albidine Bem Ali fugiu para a Arábia Saudita no dia 18 de Janeiro; no Egipto, o presidente Hosni Mubarak, após 18 dias de protestos realizados em massa, render-se-ia, pondo fim a um mandato de 30 anos e no dia 11 de Fevereiro de 2011 renunciou o poder. Na Líbia, o presidente Muammar al kaddafi foi torturado por rebeldes e morto em plena praça pública no dia 20 de outubro do mesmo ano.
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
27
Amedrontados com o crescente número de protestos, os governantes dos países
vizinhos anteciparam-se e realizaram reformas sociais nos seus países. Na Argélia, o
presidente Abdelaziz Bouteflika anunciou, a 15 de Abril reformas políticas. O rei marroquino,
Mohammed, adoptou reformas constitucionais que foram aprovadas na realização de um
referendo. Quanto aos monarcas do Golfo, estes apresentaram propostas aos líderes da
oposição de forma a chegar a um acordo e colocar fim ao descontentamento popular
(REPORTERS WITHOUT BORDERS, 2011).
Com efeito, o impacto da vaga de revoluções arrogou proporções diferentes nos vários
países da região árabe. Enquanto que, na Tunísia e no Egipto as revoluções populares
triunfaram com a retirada dos seus governantes do poder, na Líbia o panorama alcançou
proporções bem diferentes, este país, rico em petróleo, necessitaria da intervenção por parte
da OTAN27 e dos Estados Unidos. O ditador, Muamar Kadafi foi torturado pelos rebeldes,
arrastado e morto em praça pública. Na Síria, as tensões assumiram outro rumo dando origem
a uma Guerra Civil cujo desfecho ainda ninguém sabe.
1. A ocorrência de conflitos no Estado da Síria
A guerra civil síria pode em nosso entender, ser enquadrada como possível
consequência da Primavera Árabe. De qualquer modo, cumpre-nos sublinhar, a este respeito
alguma da evolução do estado da síria nos últimos anos, para uma compreensão mais
abrangente. Não obstante, subsistem algumas lacunas no processo de evolução da história
mais recente que nos cumpre abordar.
A Síria caracteriza-se por ser um amplo país, que aloja uma vasta diversidade étnica,
religiosa e cultural sendo talvez, a sociedade mais dividida do Médio Oriente e do Norte de
África, originando uma multiplicidade identitária, que por sua vez, resulta num desenho de
geometria variável, complexa e com ambições que por vezes divergem no ceio das próprias
alianças (Santos, 2012:2).
Grande parte da população síria é árabe (90%), sendo a minoria Composta por: Curdos
(5,9), circassianos, turcos (5,9) e Arménios (4,1) (Santos, 2012). Dentro desta população,
grande parte fala a língua arábica oficial- o dialecto sírio- sendo que, o circassiano é
amplamente compreendido pela população enquanto que o curdo, o arménico e o aramaico,
são pouco falados tal como, o francês e o inglês. Quanto à religião, verifica-se a existência de
uma minoria cristã, enquanto que, a grande parte da população é muçulmana, o que pode
constituir um elemento unificador entre os mesmos, mas, que no entanto se subdivide em
27 A intervenção militar na Líbia começou em 19 de Abril de 2011. Esta tinha como finalidade findar com a Guerra Civil líbia que já estava a alcançar graves proporções. A acção contou com a participação de países como: França, Reino Unido e Canada. Os Estados Unidos comandaram as operações militares que apoiaram a oposição que tentava derrubar o, na altura presidente Muamar Kadafi até Marco. Altura em que estas passaram a ser formalmente comandadas pela OTAN. As intervenções militares só terminara a 31 de Outubro de 2001, após a morte de Kadafi.
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
28
grupos distintos, Drusos, Xiitas e Sunitas Alauitas Árabes28, sendo que o último grupo constitui
a maioria da população síria (74% dos 20 milhões de sírios), que no entanto, não vivem em
harmonia (BBC,2013).
Durante 42 anos, a Família de Assad, de origem Xiita Alauita, esteve rodeada de uma elite política e militar, também alauita, fazendo com que apenas estes ocupassem elevados cargos da elite síria. A polícia, o exército e os serviços secretos são constituídos por Alauitas. As grandes empresas nacionais estão nas mãos dos Alauitas, nomeadamente dos Assad. Os tribunais são presididos por Alauitas. Nós, Sunitas, podemos ser mais, mas não temos oportunidades no nosso próprio país.
(Carrasco, 2012: 88).
Para a minoria curda29, cerca de 10% da população, grande parte dos direitos básicos
sempre lhes foi negado, incluindo a aprendizagem da língua curda nas escolas, ou mesmo a
celebração das datas festivas curdas, tal como a Nowruz que corresponde ao Final-de-ano
curdo (REPORTERS WITHOUT BORDERS, 2011).
Bashar al-Assad, presidente do Estado da Síria, assumiu o poder após a morte do seu
pai (2000), dando continuidade a uma dinastia civil que perdura há 40 anos. Apoiado pelo
partido único, Baath, o regime do presidente Assad demarca-se pela sua linha nacionalista e
autocrática, na qual a repressão policial é a sua principal forma de acção. Após a morte de
Hafez al–Assad, a Síria passou por um breve período de relaxamento. No seu discurso
inaugural, realizado a 17 de Julho de 2000, Bashar referiu a necessidade da existência de
“pensamento criativo”, de “transparência” e de “democracia” e tomou algumas medidas:
Centenas de prisioneiros políticos foram libertados, mas as verdadeiras liberdades políticas,
assim como, a melhoria económica dominada pelo Estado nunca se materializou (BBC,2013).
Mesmo as medidas aparentes pouco duraram, rapidamente as prisões receberam presos
políticos, jornalistas a activistas dos direitos humanos (REPORTERS WITHOUT BORDERS, 2010).
A Síria, tal como os outros países do Médio Oriente já mencionados, que foram
afectados pela, à Primavera Árabe caracterizava-se por apresentar um acentuado clima de
instabilidade económica e elevados níveis de desemprego, ¼ da população, nomeadamente os
jovens encontravam-se desempregados. Por parte do governo, verificou-se uma enorme
redução nos apoios sociais (BBC 2012). Conquanto, a economia estivesse repartida pelos
diversos sectores da actividade, a economia era totalmente controlada pelo governo, embora
28 Os muçulmanos xiitas e sunitas acreditam no mesmo Deus (Alá), no entanto discordam quanto ao sucessor legítimo do grande profeta e primeiro Califa, Maomé. Para os xiitas é Ali, primo e genro de Maomé, enquanto que, para os sunitas, Ali não passa do quarto Califa, distinção proporciona uma divisão religiosa muito acentuada no Médio Oriente e, ao mesmo tempo explica grande parte das aliança da região. 29 A minoria curda anseia que o governo lhes conceda a cidadania e uma vez que o governo não lhes concede esse direito, muitos tornaram-se activistas, alguns radicais, dando início a uma luta que não parece ter fim para com o governo sírio.
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
29
este tivesse permitido uma pequena liberalização económica, como a diminuição das taxas de
juro para os empréstimos e a abertura de bancos privados, assistiu-se ao aumento do iva,
reflectindo-se no aumento dos preços e na consequente deterioração do nível de vida da
população síria. “O mundo pensa que vivemos no campo e que podemos comer o que a terra
nos dá. Mentira! Até isso é taxado. Os sírios não vivem da terra, mas sim da enorme prisão,
onde só comem e bebem o que Assad quer”- estes são relatos de Hassan, um sírio de 32 anos,
que foi entrevistado pelo repórter Tiago Carrasco, num campo de refugiados de Bonyogun, na
fronteira com a Síria (Carrasco, 2012: 91).
Tais atitudes por parte do governo só perduraram por tantos anos, pois a Síria
encontrava-se em Estado de emergência30 desde 1963, o que conferia às próprias forças de
Assad total liberdade para colocar em prática os actos mais extremos de repressão e abuso de
poder para com a população.
Neste contexto, e impulsionados pela vaga de protestos da Primavera Árabe, seguiu-
se a vez do povo sírio de, no dia 15 de Março de 2011 sair às ruas e dar início à onda de
protestos que, não só sensibilizaram o mundo árabe como a comunidade internacional. Os
sírios começaram por manifestar-se contra a detenção de 15 adolescentes que escreveram no
muro de uma parede da cidade de Daraa: “O povo quer a queda do regime” (Carrasco, 2012:
84).
Em consequência, os Jovens31 foram presos e torturados. A população síria, como
resposta ao sucedido e impulsionada pela Primavera Árabe, saiu às ruas para reivindicar por
direitos tais como: a Criação de partidos políticos, direitos iguais para a população curda, a
elaboração de uma nova legislação, o cumprimento e o respeito pelos direitos humanos e
maior liberdade de imprensa. A manifestação pacífica (BBC, 2012) foi brutalmente
interrompida pelas forças do governo e desde então as acções repressivas por parte do
governo têm-se intensificado desencadeando uma “guerra” entre a oposição, que exige a
retirada de Assad, e o governo, que por sua vez resiste aos protestos. O conflito atingiu tais
proporções que, acabou por se transformar numa Guerra Civil, com o coagir das elites que
reagem sinalizando o colapso constante da autoridade central (BBC, 2013). As tentativas do
governo para enfraquecer as forças da oposição tem conduzidos a acções cada vez mais
repressivas para com a população, que passam desde o corte da electricidade, até à restrição
de alimentos básicos em locais estratégicos, que vão desde a repressão, até ao ataque
violento e massivo para com a população.
30 O estado de emergência, instaurado pelo partido de Assad, Baas, conferia às forças de segurança a liberdade e a legitimidade de para deter quaisquer “suspeitos ou pessoas que ameaçassem a segurança”; permitia também controlar os meios de comunicação e restringir a liberdade de reunião e associação (PÚBLICO, 2011). 31 Quando os jovens foram presos, os pais dirigiram-se à esquadra com o intuito de conseguirem libertar os seus filhos, no entanto obtiveram como resposta por parte da polícia: “Esqueçam estes filhos e façam outros. Se não conseguirem deem -nos as vossas mulheres que nós tratamos disso” (Carrasco, 2012: 122). Foi por este motivo que os sírios saíram às ruas para se revoltarem.
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
30
De acordo com o relatório da HUMAN RIGHTS WATCH de 2011:
Os métodos de tortura incluíam espancamentos prolongados com paus, fios torcidos, e outros dispositivos; choques electricos, o uso de metais improvisados e “prateleiras” de madeira, num dos casos, o estupro de um dos detidos. Os guardas e interrogadores submetiam os reclusos a situações humilhantes tais como fazê-los beijar os seus sapatos, declararem que o Presidente Assad era o seu Deus, entre outras (HUMAN RIGHTS WATCH, 2011).
Os dados da HUMAN RIGHTS WATCH 32 indicam que cerca de 105 detidos morreram,
em 2011, sob custódia33, nesses casos, a organização não-governamental (ONG) tem acesso
aos corpos das vítimas. No decorrer do processo, constatou-se que os corpos apresentavam
marcas inconfundíveis de tortura: hematomas, cortes e queimaduras. No entanto, para que os
familiares tivessem acesso aos corpos das vítimas, as autoridades exigiam que estes
assinassem declarações que afirmassem que os seus familiares tinham sido mortos por
“bandos armados” assim como, prometer que não realizariam funerais (HUMAN RIGHTS
WATCH, 2011).
Relativamente à assistência médica, as forças de segurança de tudo têm feito para
impedir que os doentes, grande parte deles activistas, tenham acesso aos cuidados médicos.
Às ambulâncias e aos enfermeiros que tentaram socorrer os feridos, desencadearam ataques
mortíferos, a HUMAN RIGHTS WATCH, relata que pelo menos um médico e uma enfermeira
morreram nessa sequência. Contudo, os atentados às vítimas não se ficaram por aqui, a
perseguição aos manifestantes foi de tal forma intensa que, as forças do governo chegaram
mesmo a invadir hospitais e a retirar de lá os feridos de forma a evitar que estes usufruíssem
de assistência médica, nos casos mais extremos, chegaram mesmo a invadir as salas de
operação e a retirarem cinco pacientes no decorrer das cirurgias (HUMAN RIGHTS WATCH,
2011).
As medidas desencadeadas pelo presidente Assad, constituem um desrespeito às
liberdades fundamentais e aos direitos humanos, o que acabou por chamar a atenção da
comunidade internacional, visto que perante esta, os Estados não são os detentores
exclusivos do uso e do abuso do poder, de forma que a comunidade internacional34 e as
respetivas potências têm intentado solucionar a questão, contudo, a divergência de interesses
entre os aliados de Assad e os apoiantes das causas do povo sírio tem dificultado o
solucionamento da questão35. No Conselho de Segurança das Nações Unidas, países como a
33 Dados fornecidos por habitantes locais (HUMAN RIGHTS WATCH, 2011). 34 Importa frisar que no contexto internacional, a Síria tornou-se cada vez mais isolada devido aos apoios concedidos aos seus aliados Xiitas: Iraque e Líbano. 35 A este respeito, surgiu na semântica das RI a taxonomia de R2P. A sigla R2P surge como o acrónimo da expressão Responsability to Protect. O termo foi denominado pelo ex–chanceler australiano, Gareth Evans que relembrou que “quando um Estado não garante manifestamente a protecção da sua população contra o genocídio, crimes de guerra, limpeza étnica e de outros crimes contra a humanidade, a comunidade internacional está disposta a levar a cabo, em tempo útil, uma acção colectiva decidida por intermédio do Conselho de Segurança, em conformidade com a carta da ONU” (UNRIC, 2009).
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
31
China e a Rússia, grandes aliados do governo sírio impedem que a própria organização aplique
sanções36 às acções levadas a cabo pelas forças do ditador e que a organização proceda assim
com a intervenção militar no território sírio, por outro lado, países como os Estados Unidos,
França e Grã-Bretanha defendem a aplicação de sanções, juntamente com a Turquia e os
países do Golfo Pérsico que, constituem a grande oposição internacional actuando como os
representantes legítimos do povo sírio, sinalizando a crença de que o governo de Assad está
além da redenção (BBC, 2013).
Por detrás das decisões da Rússia estão os interesses que a potência tem na Síria: o
Estado da Síria é o último aliado da Rússia, no médio oriente e caso Assad perda a sua
soberania, Moscovo, automaticamente perde a oportunidade de alcançar os seus objectivos:
A guerra do Iraque arruinou as esperanças russas de recuperar os 7
mil milhões de euros que Bagdade lhe devia desde o tempo da URSS. Já em 2011, a capitulação do regime de Kadhafi na Líbia representou para Putin perdas de 4 mil euros, milhões na venda de armamento. Restava a Síria, a mais determinante de todas.
(Carrasco, 2012: 109).
Outra questão não negligenciável é o facto de Damasco representar um grande cliente
para Moscovo no que respeita ao armamento, só em 2010, foram negociados contratos no
valor de 12 mil milhões de euros e o montante anual de exportações de armas deveria
manter-se à volta dos 8 mil milhões até 2014 (carrasco, 2012: 110). Os dois países também
mantêm negócios no campo da energia, as companhias russas Gazprom, Tafneft e
Stroytransgaz têm projectos de exportação na Síria. Os russos temem que estes laços
económicos não sejam respeitados em caso de queda do ditador (carrasco, 2012: 110).
Entretanto, embora a posição da Rússia e da China representasse um entrave para as acções
interventivas por parte da comunidade internacional, as tentativas por parte dos organismos
internacionais não cessaram.
Em Março do mesmo ano, o Estado de Emergência foi suspenso, em seguida, os EUA
congelaram os bens da família Assad no país e a o Bloco Europeu decidiu em Maio punir o
presidente sírio através da implementação de algumas medidas, tais como, o congelamento
dos bens do presidente sírio; a proibição da emissão do visto ao mesmo; assim como o
aumento da pressão para com o principal apoiante regional da Síria- o Irão. Todas estas
medidas inserem-se numa lógica de punição pelas acções que Assad tem vindo a desencadear
à sua população (JORNAL ÚLTIMO MINUTO, 2011).
Contudo, embora as divergências no conselho de segurança ainda se mantivessem,
como afirmou o Chanceler francês, Alain Juppé, a maioria começou a delinear-se no sentido
36 A divergência de interesses no conselho de segurança não só impede a aplicação de sanções por parte da ONU, mas a intervenção da ajuda internacional, para que está ponha fim à guerra tal como aconteceu na Líbia.
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
32
de condenar o regime de Al-Assad (JORNAL ÚLTIMO SEGUNDO, 2011), e as decisões tomadas
no Conselho de Segurança regem-se no sistema de votos por maioria.
Relativamente aos aliados do povo sírio na luta contra a repressão, esta é uma
questão que tem levantado controvérsias. Para além da comunidade internacional, o povo
sírio, a nível interno, conta com o apoio de estruturas militares do exército de libertação síria
(Syrian liberation Army- SLA) entre outras forças espalhas pelo país e, também conta com o
apoio da frente Al-Nursa37, que é descrita como sendo das mais violentas a integrar o “corpo”
de rebeldes sírios. Contudo, países como os Estados Unidos consideram-nos Terroristas, no
entanto um factor que tornou a situação menos favorável para a reputação dos Al-Nursa foi o
facto destes terem jurado fidelidade ao chefe da Al-Qeada, com quem mantêm laços
ideológicos suscitou algumas dúvidas perante o apoio da comunidade internacional para com a
causa dos sírios, o que criou um ambiente mais favorável para as forças do ditador actuarem.
Aquando da revolução, as medidas repressivas levadas a cabo pelos militantes do
governo intensificaram-se ao ponto de findarem com a vida de milhares de pessoas. Todos
que se opusessem ao governo seriam alvos a abater A título de exemplo, “As milícias de
Bashar mutilam os órgãos aos que ameaçam o presidente; aos fotógrafos, arrancam-lhes os
olhos, aos músicos, cortam-lhes a língua, aos pintores, amputam-lhes as mãos” estes são
relatos de um dos homens que ajudou os repórteres português a entrar no território sírio
(Carrasco, 2012: 107). O Observatório Sírio dos Direitos Humanos (OSDH) estimou que
aproximadamente 94 mil pessoas foram assassinadas desde o início de Março de 2011, ao
passo que, a ONU, estima que haja cerca de 4,2 milhões de deslocados na Síria e 1,4 milhões
de refugiados.
A este respeito, mas inserindo-se já, fora do âmbito do período em análise nesta
investigação (2010-2011), a insistência por parte do ditador em manter a repressão para com
os opositores resultou no envio do ex-secretário-geral geral das Nações Unidas, Kofi Annan,
que se reuniu com o presidente sírio no dia 12 de Março de 2012 para chegar a um acordo, no
qual presidente sírio se comprometeu do cessar-fogo e a libertar os presos entre outros dos 4
pontos38 que compuseram o plano apresentado pelo enviado especial da organização. No
entanto nenhum desses pontos foi cumprido pelo ditador, prova disso é que as acções
repressivas intensificaram-se.
Os ataques aos manifestantes aumentaram, transformando-se numa espécie de
perseguição intensiva. Estima-se que morreram pelo menos cerca de 3.500 manifestantes,
37 Os Jabhat al-Nursa também conhecidos como Frente Al-Nursa surgiram em Janeiro de 2012 e são considerados a organização mais forte da Síria. Trata-se de um grupo essencialmente sunita e tem como objectivo a criação de um Estado islâmico e declarou publicamente ser apoiado pelo líder da Al Qaeda. 38 Os seis pontos que compuseram o plano apresentado por Kofi Annan são: a inclusão de um processo inclusivo, a suspensão dos confrontos violentos, incluindo a retirada de armas pesadas e soldados de centros urbanos, a permissão de assistência humanitária irrestrita, a libertação de prisioneiros políticos, a liberdade de movimentação, o acesso aos jornalistas para entrarem e saírem do país, e o direito às manifestações pacíficas (Deutsche Welle, 2012).
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
33
muitos deles, crianças, sendo que os ataques realizavam-se a qualquer altura, passando das
manifestações, pacíficas, às celebrações fúnebres. Quanto aos meios utilizados, as forças de
segurança, inicialmente, recorriam ao gás lacrimogéneo passando mais tarde a disparar
directamente para os manifestantes ao ponto de findar com a vida dos mesmos (HUMAN
RIGHTS WATCH, 2011). Com o passar do tempo, a situação só se deteriorou: os ataques aos
manifestantes intensificaram-se, nomeadamente nas cidades mais agitadas resultando em
assassinatos em massa. Como ilustrado pelo relatório da HUMAN RIGHTS WATCH de 2011:
Alguns residentes da cidade de Daraa afirmaram à HUMAN RIGHTS WATCH, que as forças de segurança ocupara todos os bairros, franco atiradores colocados em telhados dos edifícios em toda a cidade impediam qualquer movimentos por parte dos moradores, até mesmo de saírem das suas próprias casas. As forças de segurança lançaram uma campanha maciça de prisão, na qual detiveram arbitrariamente centenas de pessoas que foram submetidas a torturas, entre outros actos de violência
(HUMAN RIGHTS WATCH, 2011).
2. A cobertura dos repórteres de guerra e a repressão do
governo de Bashar al Assad para com os meios de
comunicação
Em boa verdade, tanto os grandes, como os pequenos exemplos de activismo online
têm provado que os meios de comunicação social têm tido sucesso na mobilização e no
suporte de problemas sociais, assim como na chamada de atenção dos mesmos, junto dos
governos (Howard, 2012: 295-362). Os países envolvidos na Primavera Árabe, em especial a
Síria, foram a prova disso. À mercê das coberturas mediáticas, realizadas pelos meios de
comunicação social, os protestos ganharam voz e força, tendo culminado em alguns casos na
retirada dos governantes ditadores do poder.
Não obstante, os profissionais dos media continuarem a efctuar as coberturas dos
acontecimentos e a transmiti-las para o mundo inteiro.
Tendo em conta que um dos papéis desempenhados media pela “denúncia” de casos
de corrupção ou abusos de poder por parte dos governos, para muitos elementos políticos em
geral, os media são vistos como uma ameaça ao poder que estes exercem, o que acaba por
representar um constrangimento para às actuações destes profissionais. Os jornalistas, e em
especial os fotógrafos, têm pago um preço elevado; refira-se que 11 fotógrafos foram mortos,
no início dos protestos, enquanto actuavam no terreno, entre eles, fotojornalistas
internacionalmente conhecidos (REPORTERS WITHOUT BORDERS, 2011).
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
34
Na maioria dos países, as redes sociais como o Facebook, o Twitter e o YouTube
assumiram um papel de destaque, em detrimento dos media convencionais, na difusão da
informação e na chamada de atenção junto dos poderes dominantes “A internet39 é a única
forma de comunicar com o mundo (…) Ensino às crianças a usá-la como forma de expressar o
nosso desejo de liberdade”- afirmou uma professora Síria aos repórteres portugueses, autores
de “A Estrada da Revolução” (Carrasco, 2012: 90). Com efeito, a diversidade e a pluralidade
de coberturas teve repercussões, assinaláveis, especialmente em países como o Bahrein, a Al-
jazera40 actuou de forma eficaz dando voz à oposição perante o governo (REPORTERS
WITHOUT BORDERS, 2011). No entanto, o papel dos media tem sido crucial para a chamada
de atenção da comunidade internacional quanto à realidade síria, assim como para a
denuncia das atrocidades cometidas pelas forças do governo para com os próprios. As redes
sociais em conjunto com os profissionais dos meios de comunicação têm constituído uma
ameaça tão grande, ou maior que os rebeldes, para os ditadores. Conscientes da actuação e
do poder que os media conferiam ao povo, os governantes de muitos dos países envolvidos na
Primavera Árabe, começaram a desencadear medidas repressivas para com os meios de
comunicação, em especial para com os jornalistas, como forma de tentar garantir o poder.
Resgata-se a este propósito que:
Os media internacionais, que actuaram nos locais das ocorrências de conflito conseguiram marcar a diferença. No Egipto, a Al-jazira e a CNN transmitiram em directo os confrontos para as audiências internacionais. Por esta razão, as autoridades de muitos países procuraram afastar os meios de comunicação dos seus territórios.
(REPORTERS WITHOUT BORDERS, 2011).
O papel das redes sociais como o Twitter e o Facebook foi fundamental para a
actuação dos rebeldes, através do fornecimento de informações sobre o procedimento a
tomar para neutralizar as forças de segurança que tentavam dispersar os manifestantes. Com
efeito, através das redes sociais, os activistas tinham acesso aos mapas que mostravam os
locais das reuniões de protestos, assim como a conselhos sobre como agir perante os ataques
com gás lacrimogéneo e outras substâncias perigosas. Através destas, a denúncia perante a
violência exercida pelas forças dos governos para com os protestantes foi divulgada e
partilhada, chamando a atenção da comunidade internacional e obtendo assim o seu apoio.
Devido ao impacto que as redes sociais conferiram às revoluções, os ditadores não foram
apenas recriminados pelo seu povo, mas por todo o sistema internacional (REPORTERS WITHOUT
BORDERS, 2011).
Neste sentido, as autoridades dominantes tentaram aplicar a censura total aos
profissionais dos meios de comunicação, aos bloggers e aos cibernautas, através de uma
39 Apesar da internet ser um meio muito utilizado por todos os que se opõem ao regime de Assad na Síria, convém ter em conta que e até este foi muito controlado e até mesmo restringido pelo ditador, tendo sido parcialmente liberalizado em 2011. 40 Estação de televisão árabe.
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
35
perseguição violenta e mesmo “assassina”. Nesta caça aos media, cada país, desenvolveu o
seu método de repressão, uns optaram pelo monitoramento da internet, cortando o seu
acesso aos telemóveis e a outros dispositivos; outros trocaram as estações de televisão por
satélite; outros, por sua vez, procederam à apreensão de jornais, agressões e prisões. Nos
casos mais extremos, como o da Síria, chegaram mesmo a sequestrar, deturpar e expulsar os
jornalistas estrangeiros proibindo as suas entradas no país, através da negação dos vistos de
entrada41.
Com efeito, para os profissionais dos meios de comunicação, a transmissão da
realidade síria não se tem relevado tarefa fácil, não só pelo ambiente que se vive no país,
mas principalmente pela repressão que o governo de Assad desencadeia aos meios de
comunicação42 e aos jornalistas em especial. O país foi considerado pelo Comité para a
proteção dos jornalistas (CPJ), como sendo o mais perigoso para os jornalistas, tendo
registado até 2011 cerca de 63 profissionais assassinados e cerca de 30 desaparecidos
(observatório de imprensa, 2014). As mais graves formas de violência foram e continuam a ser
colocadas em prática na Síria, nos últimos anos, sendo a tortura uma delas. As forças de
Assad não olham a meios para colocar fim à persistência dos media em partilhar com o mundo
a realidade da Síria desde o início da guerra civil. Na verdade:
Em Março, as forças de segurança detiveram a jornalista jordaniana, Suleiman al Khalidi, por esta ter retratado a violência vivida em Dara: Eles expulsaram-na do país, após a terem mantido presa e incomunicável por quatro dias. Em Abril, as forças de segurança detiveram o freelancer franco-argelino, Sid Mahand, e o jornalista americano, Dorothy Paevaz por estes exercerem as suas profissões
(HUMAN RIGHTS WATCH, 2011).
Como se pode observar no seguinte mapa (mapa 1), a Síria apresenta-se como um país
“não-livre” no que respeita à Liberdade de Imprensa, ilustrado na cor roxa.
41 Também em outros países já analisados no contexto da Primavera Árabe como a Tunísia, o governo começou por bloquear as redes sociais como o Facebook, o YouTube, o Flickr, Vimeo, e o Dailymotion e em seguida confiscou as contas de facebook de grande parte dos utilizadores a fim de encontrar ligações entre estes e os jornalistas infiltrados e os bloggers que partilhassem imagens e informações acerca do sucedido. Outro caso marcante ocorreu no Egipto, aquando da condenação de 3 anos de prisão do blogger Maikel Nabil. Este foi acuado de obstrução da paz e de ter insultado as forças militares egípcias através das suas publicações, que levantavam suspeitas sobre a neutralidade do exército durante as manifestações ocorridas em Janeiro e Fevereiro de 2011 na região: “Nas suas publicações, Nabil, afirmava que os soldados estavam envolvidos nas prisões, detenções e demonstrações de tortura. Desta forma, Nabil começou uma greve no dia 23 de Agosto para chamar a atenção para a sua detenção. A sua audiência de apelação deveu-se ao facto de este ter recebido uma ordem por parte do juiz a decretar a sua prisão num hospital psiquiátrico”(Reporters without borders, 2011).
42 Nomeadamente a internet.
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
36
Mapa 1 – Liberdade de Imprensa
Fonte: Adaptado de freedom House. Disponível em:
http://www.freedomhouse.org/report/freedom-press/freedom-press-2014#.U2jAh_ldWSo
Para os profissionais locais, o exercício da sua actividade laboral tem significado uma
sentença de morte. Muitos são levados pela polícia para serem interrogados, outros
simplesmente desaparecem sem deixar rastos:
As agressões físicas são ocorrências diárias. Os membros das forças de segurança sequestraram o cartunista Ali Fezort, a 25 de Agosto de 2011, em Omeyyades Square, no centro de Damasco. Espancaram-no, queimaram-lhe o corpo e tiveram o cuidado especial de partir a sua mão esquerda, a que este utilizava para desenhar. Ele foi libertado depois de várias horas numa estrada que daria para o Aeroporto sempre com um saco na cabeça.
(REPORTERS WITHOUT BORDERS, 2011).
Para muitos, a solução passou pela procura refúgio na Turquia ou mesmo no Líbano,
embora a governo líbio colabore com o de Damasco.
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
37
Não obstante, a situação não sofreu alterações significativas relativamente ao
governo do antigo presidente Hafez. Na altura, apenas os canais de notícias estatais ou
filiados no partido socialista árabe Baath eram autorizados a realizar reportagens. Quando
Bashar al-Assad tomou posse, verificaram-se algumas mudanças, que eram verdade, em
grande medida “cosméticas”. De facto, procedeu-se a uma liberalização para a crítica, mas
mesmo estas tinham de ser aprovadas: todas as publicações deveriam ser licenciadas pelo
governo, e os relatórios sobre os assuntos militares ou outros conteúdos que poderiam
prejudicar a segurança nacional, revistos. Só em caso de serem aprovados pela “inspecção”
seriam publicados.
Durante as revoluções, também os jornalistas estrangeiros sofreram com a repressão e
com as forças do governo. As autoridades de tudo fizeram para expulsar as estações
televisivas, assim como os seus profissionais, do país. Aquando do início dos protestos, as
prisões, as expulsões, e a negação dos vistos intensificaram-se para com os jornalistas,
iniciando-se uma violenta perseguição aos jornalistas. Como exemplo, temos o caso dos
correspondentes da associação de imprensa e a agência de notícias REUTERS que, e aquando
dos protestos, foram presos e em seguida expulsos do país. Ao correspondente da REUTERS
Khaled Oweis, foi-lhe retirada a carteira de jornalista, logo no início das manifestações, a 25
de Março (REPORTERS WITHOUT BORDERS, 2011). Segundo o jornalista português:
Não era fácil entrar. O regime interditara a entrada no país à imprensa estrangeira e só a britânica BBC tinha permissão para cobrir o conflito. As equipas de reportagem que tinham conseguido entrar, fizeram- -no de forma ilegal, atravessando clandestinamente as fronteiras da Turquia ou do Líbano, com ajuda dos rebeldes.43
(Carrasco, 2012: 82).
A estação televisiva, Al Jazera, anunciou em Abril de 2011 o final da sua cobertura
no país abandonado o local, após as suas instalações em Damasco terem sido vandalizadas e
os seus jornalistas acusados de terem exagerado e mentido nas suas coberturas acerca dos
acontecimentos passando uma imagem negativa acerca da Síria. A situação intensificou-se de
tal forma, que grande parte dos cidadãos comuns, os mais corajosos, transformaram-se em
activistas e ao mesmo tempo transmissores de informação:
Simultaneamente os cidadãos, os activistas e repórteres, usam a sua imaginação para exportar as informações obtidas. Os vídeos filmados através dos telemóveis filmavam o sucedido e partilhavam as imagens com o mundo e enviam-nas directamente para os websites. Ou através das pen drives copiavam os ficheiros das câmaras de filmar e enviavam-nos de mão- a- mão até que estes fossem publicados online. Grande parte do uso, é feito através do Skype e do Mumble. Os sírios que vivem perto da fronteira recorrem aos servidores libaneses e turcos para terem acesso à internet e assim escaparem à vigilância do governo.
(REPORTERS WITHOUT BORDERS, 2012).
43 O jornalista, Tiago Carrasco; o repórter de imagem, João Fontes e o fotógrafo, João Henriques, todos portugueses, estiveram na Síria. No entanto, mantiveram-se apenas pelos campos de refugiados e em contacto directo com os civis, maior parte deles refugiados e com os rebeldes que além de ajudarem na luta contra o governo, ajudavam os jornalistas estrangeiros a penetrarem em território Sírio.
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
38
Nesta mesma linha, mesmo assim, os cidadãos que colaboram com os jornalistas não
ficaram livres das represálias do governo arriscando-se a serem presos, torturados e mesmo
mortos, sendo que o número de incidentes tem vindo a aumentar dia-após-dia. Segundo os
repórteres sem fronteiras, devido à repressão do governo para com os meios de comunicação,
o centro de media sírio, criado por comités de coordenação local, formou uma rede de
colaboradores por todo o país, que colabora na disseminação da informação. Este centro
conseguiu publicar vídeos directamente no Youtube, através da LCCSyria TV44, que tem
colaborado na transmissão da informação obtida pelos poucos jornalistas estrangeiros que
ainda permanecem no país, assim como pelos cidadãos. Outras redes, como a Sham News e a
Avaaz também têm contribuído para a circulação da informação (REPORTERS WITHOUT
BORDERS, 2012). Segundo o CPJ (Comité para a protecção dos jornalistas), muitas empresas
sírias têm feitos esforços para colaborar com a transmissão da informação “ Antes da
revolução, só havia uma história para ser contada: A história segundo o ponto de vista do
regime”, estes são relatos de Mowaffaq Safadi, um jornalista sírio exilado na Turquia.
No entanto, a repressão não incidiu somente nas estações televisivas, meios como a
internet foram também alvos de grande controlo por parte do governo, e começou mesmo
antes do despoletar da revolução na Síria. Os sites sírios restringiram os utilizadores de
realizarem comentários sobre a revolução iniciada na Tunísia, como é o caso do Syrian News,
um site que actua a serviço do governo, outros sites restringiam os comentários deixando
apenas os mais moderados (REPORTERS WITHOUT BORDERS, 2011), tanto que o país em 2009
foi considerado pelo CPJ, o 3º pior país para os bloggers (Observatório de imprensa, 2014).
Aquando dos conflitos, os serviços de internet normalmente deixam de funcionar,
quase todas as sextas-feiras, dias em que normalmente se realizam as manifestações, e
curiosamente, voltam a funcionar no fim das mesmas, tudo “estratagemas” do governo para
evitar que as imagens e vídeos das ocorrências circulem pelo “mundo”. O cyber-exército,
responsável por monitorizar os utilizadores que se opõem ao governo nos sites e nas redes
sociais, têm vindo a intensificar as suas actividades contra a população, ao ponto de entrarem
no site do governo e publicarem mensagens com conteúdos violentos e duvidosos simulando
que se tratavam de membros da oposição a fazê-lo; outra forma de controlo e invasão, que
tem sido utilizada pelo governo é o envio de vírus, através de links que supostamente levam a
outras páginas e que no fundo servem para dar acesso às páginas pessoais e respectivas
passwords dos utilizadores e assim ter acesso às suas actividades na internet (REPORTERS
WITHOUT BORDERS, 2011).
Por sua vez, activistas de todo o mundo sensibilizados com a repressão a que os sírios
têm sido expostos, têm realizado esforços para contornar a situação. Exemplo disso é o caso
44 Canal no Youtube.
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
39
da Telemix45, que levou a cabo a operação OpSYRYA, que consistiu numa espécie de fuga à
repressão de Assad no que respeita à internet. A operação consistiu no desvio do trafego de
internet para uma página com conselhos sobre como contornar a censura, incluindo como
instalar software Tor e como usar uma conecção https segura, o que facilita e protege a
divulgação de imagens por parte dos sírios e dos poucos jornalistas que ainda conseguem
actuar no território.
Durante a revolução, a intenção de Assad continuou a ser a mesma: manter o povo
sírio imerso na ignorância cultural e o mundo isento da verdadeira realidade síria, uma das
formas de controlo que o governo sempre utilizou para camuflar a realidade e conseguir
manter o povo “conformado” relativamente às condições de vida que proporcionava. Durante
a revolução, enquanto que as verdadeiras imagens, as que eram capturadas pelos telemóveis
dos civis mostravam corpos ensanguentados a serem arrastados nos corredores de um hospital
sobrelotado, a syrian Tv, a televisão do Estado, em contraste, passavam imagens dos serenos
jardins de Damasco (Carrasco, 2012: 112). Mesmo os sites estrangeiros que tentavam
transmitir a informação como o caso do website suíço, Bambuser46, que permitia aos
utilizadores publicarem vídeos através do telemóvel, foi bloqueado na Síria desde Fevereiro
de 2012. O responsável do site afirmou “Os ditadores não gostam do Bambuser” (REPORTERS
WITHOUT BORDERS, 2012).
Porém, para a grande parte dos que tentaram transmitir a realidade síria via internet,
através dos blogs ou da publicação de vídeos, os efeitos da repressão também foram intensos,
inúmeros são os casos de civis, muitos deles estudantes, jornalistas e outros profissionais das
mais diversas áreas que foram brutalmente “castigados” pelas forças do governo, por terem
exposto a realidade da Guerra civil ao sistema internacional. Exemplo disso foi o caso do
blogger Ahmad Hadela47, de 28 anos, estudante de jornalismo que foi preso pelos oficiais da
segurança militar. O estudante utilizava o blog para pedir apoio para os blogueiros presos na
Síria, assim como pelos presos políticos e realizou também alguns relatos das revoluções
ocorrentes na Tunísia e no Egipto (REPORTERS WITHOUT BORDERS, 2012).
Com os jornalistas, as medidas também têm sido bem duras, estes além de raptados
são torturados e mortos, como já tivemos oportunidade de referir segundo os dados dos
repórteres sem fronteiras, o número de casos tem vindo a aumentar desde Fevereiro de 2012.
O fotojornalista britânico, Paul Conroy, atingido pelas forças do governo na cidade de Homes,
teme que a perseguição feita aos media e, aos que os ajudam seja bem pior que o massacre
45 Uma pequena organização composta por membros de várias nacionalidades: americanos, europeus e oriundos dos países do Médio Oriente, que motivados pela escassez de informação acerca dos acontecimentos e a repressão aos media e á internet em si decidiram criar este grupo e assim ajudar o povo sírio a escapar da repressão do governo de Assad. 46 O bambuser estava a ser utilizado pela oposição na divulgação de vídeos que continham imagens da brutalidade das forças do governo para com a população, as imagens eram transmitidas por estações de televisões internacionais. O site começou por ser bloqueado em 2011 no Egipto. 47 O jovem foi libertado 4 dias mais tarde.
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
40
vivido no Ruanda, o mesmo também alertou para o facto de poderem não existir mais
testemunhos vivos em Homs devido à intensidade dos massacres (BBC, 2012).
Os repórteres sem fronteiras conhecem dúzias de sírios que têm sido presos e torturados depois após a concessão de entrevistas para os media internacionais acerca da repressão vivida no seu país. Outros têm sido presos por trabalharem com jornalista. A agência Síria de segurança tem feito esforços para identificar aqueles que ajudam os jornalistas estrangeiros ou falam com eles.
(REPORTERS WITHOU BORDERS, 2012).
Do mesmo modo, o governo insiste em tentar esconder a situação e para além das
medidas referidas, tem recorrido à propaganda como forma de proteger a sua imagem em
detrimento daquela dos media. O uso à propaganda assenta em três fases: na primeira, é
feito um louvor ao presidente e ao governo em si; na segunda fase, é feita uma difamação aos
meios de comunicação e à sua actuação no país, acusando-os de mentirem e distorcerem a
realidade síria perante o mundo, quando as demostrações começaram na Síria, em Março,
ninguém se atrevia a assistir à Al Jazera em público, com medo de serem rotulados de
conspiradores, ou mesmo infiltrados das forças opositoras, estes eram os termos utilizados
pelo governo para caracterizar os opositores48(REPORTERS WITHOUT BORDERS, 2011); na
terceira fase, assiste-se à afirmação da existência de uma conspiração contra o governo de
Assad. O governo sírio responsabilizou inicialmente os israelenses, em seguida argumentou
que quem realmente podia estar por detrás da conspiração seriam os salafalistas49. Esta
tragédia dos media ilude poucas pessoas fora do país, mas consegue surtir efeito nos sírios
que têm medo da violência, afirmou Barah Mikhail, pesquisador em questões do Médio
Oriente (REPORTERS WITHOUT BORDERS, 2011), o que no fundo, funciona como uma
estratégia por parte do governo para colocar as comunidades umas contra as outras,
desviando assim o foco de si mesmo. Na visão do presidente, apesar de ser ele o líder, pouco
controlo tem sobre as acções dos militares, que em alguns casos, excedem os limites e que
grande parte dos conflitos que ocorrem no país advém dos conflitos entre grupos extremistas
e que, esses sim, são os verdadeiros culpados do caos instalado no país. Nas suas palavras
“nenhum governo no mundo mata a sua própria população; só se for liderado por uma pessoa
louca”, afirmou o presidente sírio, numa entrevista à estação televisiva americana, BBC NEWS
(2011).
No entanto para quem já esteve em território sírio, como os jornalistas portugueses
que publicaram o Livro “A Estrada da Revolução”, na tentativa da realização de coberturas
noticiosas acerca dos conflitos e da verdadeira realidade síria, a perspectiva difere e muito
48 Relatos de um estudante francês que se encontrava na Síria no início da guerra civil, mas que devido à intensidade dos mesmos teve que retornar a casa! 49 Os salafalistas são um grupo de muçulmanos sunitas, ultraconservadores que lutam para definir a nova ordem de acordo com as tradições religiosas do século VII e não com as realidades terrenas (Estadão, 2012).
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
41
da do presidente Assad relativamente à ligação do mesmo com os ataques que têm sido
desencadeados para com os protestantes e com a população síria em geral:
“Na altura, 2011, era a revolução dos inocentes, funcionava como se a tua família estive a ser atacada porque a cidade onde tu vives protestou contra o regime durante a manhã, e à tarde (..) os rebeldes pertenciam quase todos ao exército da Síria livre, era uma força secular que estava a fazer a revolução de forma pura e durante a maior parte do tempo pacífica”.50
No mesmo seguimento, a jornalista iraniana Dorothy parvaz, que foi para Damasco a
29 de Abril para realizar a cobertura do conflito pela rede Al-Jazeera e que foi detida pelas
forças do governo declarou à BBC:
Parece para mim que a Síria quer que todos nós cubramos os nossos ouvidos. Eles dizem que a Al-Jazeera e a (ONG) Human Rights Watch estão a exagerar o problema (da repressão aos manifestante antigoverno). Então, por que não deixar os repórteres entrarem (na prisão para documentar as ocorrências), por que não dar a esses homens o direito a um processo legal, por que mandá-los para onde ninguém pode escutá-los e bater neles?
(BBC, 2011).
50 Afirmação dos jornalistas autores do projecto A Estrada da Revolução na entrevista realizada no dia 02 de Abril de 2014.Vide a este respeito: em anexo.
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
42
CAPÍTULO III - A importância do
Jornalismo/dos Repórteres de guerra
para as Relações Internacionais
O presente capítulo visa a compreensão das relações muitas vezes paralelas, entre as
duas áreas científicas que contemplam a presente investigação: as Relações Internacionais
pela importância que desempenham no escrutínio e avaliação dos fenómenos internacionais,
e a comunicação pela importância que o jornalismo e os profissionais dos media exercem no
processo da tomada de decisão dos actores políticos.
Analisar a importância dos meios de comunicação, do jornalismo em especial, torna-se
uma tarefa desafiante, uma vez que, inúmeros debates têm surgido quanto há existência ou
não, da total transparência dos relatos feitos pelos jornalistas e, quanto à veracidade dos
mesmos, devido às influências que por vezes estes profissionais estão expostos. Não obstante,
importa salientar que o jornalismo é um meio de comunicação, que possui um papel de
destaque nas sociedades contemporâneas, através do fornecimento de orientação e de
informação, para a sociedade, de forma que, acaba por estabelecer um vínculo de contacto
periódico com a audiência, que é dispersa geográfica e socialmente, abordando um alargado
leque de temas que abraça os mais variados campos do saber humano (Observatório de
Imprensa, 2009).
Portanto, importa ressalvar que, analisar o papel dos media, mais precisamente dos
jornalistas no seio das relações internacionais e como actor das mesmas não é um processo
simples, devido à complexidade de campos teóricos e analíticos que constituem o processo,
assim como à própria amplitude do termo media. No entanto, para desmistificar a
compreensão conceptual de media, que por ser muito abrangente, pode denotar um alargado
leque de fenómenos, acontecimentos e transformações que envolvem a política, o jornalismo,
e publicidade, o marketing, o entretenimento, nos diferentes meios, e podendo a sua
abrangência estender às novas tecnologias da informação como a internet e ao jornalismo
online que têm dado lugar a inúmeros debates de teor político.
Nesta investigação optamos por considerar os media como todas as ferramentas de
comunicação e redes sociais disponíveis na internet, os meios de comunicação tradicionais,
como a rádio, a imprensa e a televisão e, os seus profissionais.
Em face disso, para que possa haver uma compreensão acerca da inserção dos meios
de comunicação no seio das Relações Internacionais contemporâneas, é necessário tecer uma
breve análise histórica.
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
43
Vários foram os adventos, ocorridos no século XX que alteraram a actuação dos meios
de comunicação e o estatuto destes no paradigma internacional. Desse modo, a emergência
dos media no seio das Relações Internacionais causou um impacto modificador nas relações
entre a política e os media, o que contribuiu para o elevar dos meios de comunicação à
condição de actor do cenário externo. Deste modo, autores como Dougherty e Pfatzgraff, ao
classificarem os agentes do Sistema Internacional nas diferentes categorias, referiram-se aos
meios de comunicação como sendo parte integrante do que eles denominaram de Subnational
Group (grupo subnacional), nas palavras dos autores:
A interacção não consiste apenas de procuras e respostas a- acções de nações de nações – estados, organizações internacionais e outros actores não estatais, mas também de transacções em torno de contornos nacionais, incluindo o fluxo de ideias e de informações como na internet e nas televisões globais, tais como a CNN (Dougherty and Pfzatagraff, 2001: 109).
Joseph Nye abordou a questão explicando a capacidade do Soft Power, na obtenção
de resultados desejados sem ter que recorrer à força e, como o próprio afirma “tornando as
ideias agradáveis, aceitáveis, coloridas”, pelo meio da atracção, da cooperação e da sedução.
Consciente de que o presente século está a ser fortemente marcado pela informação global e
pela difusão do poder para os actores não estatais, o autor defende a relevância do soft
power como sendo uma das mais importantes estratégias do poder inteligente (Nye,
2012:118), em concordância, acrescentamos que a sua eficácia pode ser requerida junto dos
meios de comunicação, pois através dos media é possível chegar ao público e deste modo
desenvolver uma acção atractiva e persuasiva conquistando a sua simpatia e alcançando o
mesmo dos juntos dos estados. Segundo este autor em conjunto com Robert Keohane
afirmaram que a revolução da informação havia modificado as características da
interdependência complexa, pois com o advento dos media no mundo político, os canais de
comunicação multiplicaram-se (Ney, 2012). Neste contexto, Nye explicou de que forma os
media são importantes para as Relações Internacionais: “Uma vez que os media noticiam
assuntos que ultrapassam as barreiras físicas e que os mesmos são lidos nas várias partes do
planeta, eu considero-os actores transnacionais (Nye, 2004).51
A existência de estudos entre a comunicação e a política sempre foi frequente, desde
a utilização dos media pela política, associada à propaganda, até à utilização deste meio
como mecanismo de guerra psicológica, como se verificou durante a disputa ideológica entre
os pólos antagónicos de Guerra Fria: Estados Unidos e a União Soviética, durante a, através da
luta pela inculcação de ideais e aquisição de apoiantes aos seus regimes. No entanto, e
presentemente, face às novas tecnologias mediáticas e mais “mediatizantes”, os media
alcançaram um novo estatuto no cenário internacional, através do impulso conferido pelas
novas tecnologias da informação e da comunicação, que proporcionaram uma maior
51 A afirmação apresentada, advém de uma entrevista realizada pela na altura, estudante de mestrado Júlia Camargo, no contexto da realização da sua tese de mestrado. (Camargo, 2008).
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
44
velocidade à circulação global de informação, assim como à expansão das redes de
comunicação.
Neste contexto, por parte dos estudos das Relações Internacionais, que se ocupavam
dos aspectos mediáticos somente em relação à política interna e em relação à opinião pública
nacional, passaram a ocupar um espaço mais expressivo e extensivo, dando lugar ao
reconhecimento de que, a criação e a manutenção da boa imagem dos Estados é crucial para
a sua sobrevivência no cenário internacional e que esta, só será obtida consoante o alcance
que se auferir da disposição de mecanismos mediáticos a nível global dos meios de
comunicação, o que permitiu que simultaneamente surgisse um reconhecimento da
importância do papel dos media como actor internacional e, a reflexão sobre a sua actuação
em situações de conflitos internacionais face às novas tecnologias, que fazem com que estes
apresentem características bastante peculiares enquanto actores das Relações Internacionais,
mas sem nunca deixar de lado a sua função de servir de espaço de discussão junto aos demais
actores (Oliveira, 2010: 143).
A origem do termo “media como quarto poder” advém do autor Edmund Burke
(McQuail, 2003: 508). A expressão “quarto poder” utilizado para auferir aos meios de
comunicação uma conotação positiva e para equiparar a sua “função” na sociedade ao dos
três poderes do Estado democrático: legislativo, executivo e judiciária.
O termo tornou-se comum para os jornalistas, visto que representa a sua função de
repórteres e inspectores do governo.
Segundo Júlia Camargo, ao contrário dos actores das Relações Internacionais, que
apresentam identidades mais constantes, os media podem ser considerados como actores de
múltiplas faces, cujo semblante depende do contexto, do tipo de veículo e da própria
direcção do meio de comunicação, o que impossibilita a fixação de uma identidade no cenário
internacional (Camargo, 2008: 41), neste seguimento, o professor de Comunicação
Internacional, Eytan Gilboa52 no artigo publicado no Journal of Communication, com o título
de “Communication and Foreign Policy”, faz uma classificação de quatro atributos que os
media possuem consoante as atividades e os contextos a que são expostos. Para melhor
explicitar essa relação, utilizaremos uma grelha53 que contém a síntese dessas características:
52 Eytan Gilboa é doutor e professor de Comunicação internacional, na Universidade de Israel. 53 O quadro utlizado foi retirado de um estudo feito acerca da relação dos Media com as relações Internacionais e contém a síntese de alguns autores: Júlia Camargo e Emidio Diodato.
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
45
Quadro 1- Taxonomia dos diversos status dos media, actividades, contexto e conceitos
aplicáveis segundo Eytan Gilboa
Status dos
Media
Actividade Contexto Conceito
Actor
Controlador
A) Ocupa o lugar dos
Policy Makers
substituindo-os na
tomada de decisão
B) Controla os temas
da agenda política
Intervenções
humanitárias e
armadas
Policy making
(criação de políticas)
CNN effect
(Efeito CNN)
Agenda setting
(teoria do
agendamento)
Actor
constrangedor
Constrange a tomada de
decisão e condiciona as
políticas
Processo de tomada
de decisões
(Decision Making)
Real-time policy
(política a tempo
real)
Actor
Interventor
Promove a intermediação
política Internacional
(serve de arena)
Mediação
Internacional
Crises políticas
Actor
Instrumental
Promove negociações e
acordos
Gestão e resolução
de conflitos
Media diplomacy
(Diplomacia
mediática)
Fonte: Adaptado do trabalho realizado por Rafael Oliveira, do artigo de Eytan Gilboa “ Global
Communication and Foreing Policy (2002).
Através das categorias apresentadas no quadro anterior é possível obter uma
compressão mais precisa acerca da diversidade das facetas assumidas pelos media, quando
sujeitos a actividades e contextos diferentes, o que permite entender a relação existente
entre as teorias mencionadas e descritas no 1º capítulo, assim como o impacto que estás
conferem na relação entre as duas áreas a ser estudadas. Em face disso, para completar a
ligação teórica serão abordadas as teorias do Efeito CNN, da política a tempo real, e da
diplomacia mediática, assim como a forma que estas conferiram aos media um lugar de
destaque nas Relações Internacionais.
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
46
Na década de 90, os meios de comunicação emergentes, como a CNN54 foram tidos por
muitos, como a força matriz das intervenções humanitárias durante as crises de países como,
a Somália, 1992-1993, a Bósnia em 1995 e, o Kosovo em 1988 ao darem voz, ao exporem os
problemas ocorrentes, assim como necessidades por parte dos seus povos55, necessidades,
essas que exigiam uma tomada de acção, através de operações interventivas, no que respeita
às questões humanitárias. Deste modo, o quadro de acção da comunidade internacional,
assim como dos decisores políticos mudou, começou a gerar-se uma pressão social, fruto
principalmente de uma pressão mediática que exigia, não só uma aceleração no processo de
tomada de decisão, mas de acção (Robinson, 2013)56.
Neste contexto, surge o conceito do Efeito CNN, que consiste na ideia de que os
media em geral, não só a CNN, têm aumentado o impacto na acção da política de ajuda
externa. “O factor CNN demonstra como os meios de comunicação, ao difundirem imagens de
massacres, elevam o preço da inércia entre os eleitores de países ocidentais a níveis quase
inaceitáveis” (Reis, 2006: 89). Através das imagens, dos vídeos e dos relatos realizados pelos
media, os enquadramentos optam por mostrar o sofrimento humano, fazendo com que haja
uma maior “dramatização” das problemáticas surgidas em ambientes de conflito, a
transposição desses conteúdos para “mundo” reflecte-se numa grande pressão, obrigando os
profissionais das Relações Internacionais a adoptarem a tomada de acções e decisões57. Neste
contexto, o jornalista português, Paulo Nunes dos Santos que já trabalhou com jornais de
renome nacionais e internacionais, como o New York Times, na cobertura de conflitos
internacionais fala acerca do poder das imagens:
“As imagens, sejam elas fotografias ou vídeos, são fundamentais na cobertura de guerra. São talvez a peça mais importante no poder de formação da opinião pública e podem exercer uma pressão inigualável junto dos poderes de decisão. Servem de testemunho e causam um impacto único. Daqui a uns anos quando a guerra na Síria estiver terminada, muita pouca gente se irá lembrar das reportagens (texto) fabulosas feitas durante a guerra. Mas garantidamente, muitos se irão lembrar das imagens dos bombardeamentos de Alepo ou Homs. São essas imagens que ficam para a História. São essas imagens que nos ficam gravadas na memória e irão sempre servir para ilustrar textos ou livros sobre este assunto daqui a dez, quinze, vinte ou cinquenta anos”.58
54 A CNN é uma das redes com mais influencia a nível mundial no que toca à cobertura de conflitos internacionais, o seu reconhecimento ficou marcado pela transmissão da primeira Guerra do Golfo em 1991, desde então a CNN tornou-se na rede de eleição dos lideres políticos na obtenção de informação para a tomada de decisões. 55 Ressaltando valores como os direitos humanos e a importância da defesa dos mesmos, o que de certa forma acabava por gerar uma certa pressão para com os decisores políticos e principalmente para com a comunidade internacional. 56 O artigo “Media as a Driving Force in International Politics: The CNN EfFect and Related Debates” de Piers Robinson, não tem numeração. Vide a este respeito: http://www.e-ir.info/2013/09/17/media-as-a-driving-force-in-international-politics-the-cnn-effect-and-related-debates/ 57 Disponível no site: https://www.youtube.com/watch?v=XLIR_hT9m0I&feature=share&list=PLC896525DA4EA5C3D [a] 58 Afirmação do jornalista Paulo Nunes dos Santos na entrevista realizada no dia 23 de Abril de 2014. Vide a este respeito: em anexo
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
47
Nos casos de ausência mediática, onde não existiram os incentivos para agir não se
registou a ocorrência de intervenções militares e assistiu-se à ausência quase total de
tentativas diplomáticas de alto nível para produzir soluções pacíficas. A exemplo, a
intervenção da Nato no Kosovo. Três dias antes da ocorrência, a cobertura do conflito
realizada pelo New York Times ocupou em média 14% da cobertura internacional em
detrimento da projecção dos conflitos ocorrentes na mesma altura em Angola, na República
Democrática do Congo, na Etiópia, Eritreia e na Serra Leoa que obtiveram em média 0,8; 0,6;
0,6 e 0,8 por cento, o que representa uma quantia quase inexistente das coberturas (Reis,
2006: 89).
Quadro 2- Modelo de interacção: media-política
Linha de
política de
governo
Direcção de
influência
Tipo de cobertura
dos media
Relação media-política
Influência
dos media
Incerta
Extensiva e
crítica
Neste cenário ocorre a influência dos
media. Na ausência de uma linha política
bem definida, o governo é vulnerável à
crítica e à excessiva atenção dos media. Se
as notícias são criticamente enquadradas
defendendo um determinado curso de
acção, o governo é forçado a fazer alguma
coisa ou arrisca-se a enfrentar um desastre
na relação com o público.
Sem
influência
dos media
Certa
Indexada à
agenda oficial
Quando o governo tem objectivos claros e
bem definidos, tende a definir a agenda de
notícias. A cobertura dos media pode
tornar-se crítica se não houver dissenso
com a elite. Havendo decisão política
governamental sobre um determinado
curso de acção, é pouco provável que a
cobertura dos media exerça alguma
influência política.
Fonte: Adaptado de Piers Robinson “The CNN Effect: the myth of news, foreing policy and
interventions (2002: 37).
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
48
No seguimento das razões apresentadas, pode afirmar-se que as questões da
comunicação, já não são tidas apenas no campo governamental, podendo estender-se à área
das Relações internacionais com a comunicação.
1. O Efeito CNN na óptica de Piers Robinson
O Efeito CNN surgiu e começou a estar em voga na década de 90, aquando da
ocorrência de uma série de eventos que elevou os media ao status de actores potencialmente
críticos, no que respeita às crises humanitárias e às questões de política externa no processo
de toma de decisão (Robinson, 2013)59. Este advento iniciou-se com a crise curda em 1991, e
rapidamente seguiu-se com a operação Restaurar a Esperança na Somália em 1992/93. Quanto
ao caso da Somália, esta “teoria” defende que a cobertura realizada pelos media americanos
sobre a fome durante a guerra civil (mais uma vez é possível ver a utilização do
enquadramento), causou um enorme impacto acabando por pressionar o, na altura,
presidente George Bush para projectar 28 mil soldados no suporte aos trabalhadores de ajuda
humanitária. Para muitos, os media de catalisadores da intervenção humanitária, na qual a
soberania política já não era tida como sagrada.
Deste modo, a noção de que os media ditavam o processo de tomada de decisão de
política externa ficou conhecida como o efeito CNN60 (Robinson, 2013)61.
Segundo Piers Robinson (2013), um dos autores do “Efeito CNN”, o conceito só
alcançou uma atenção significativa, devido ao impacto que as coberturas noticiosas dos media
conferiram às intervenções humanitárias. Para alguns estudiosos esta acção representou uma
grande mudança, passou-se de uma sociedade internacional estática, na qual vigorava a
política da não-intervenção, para uma sociedade internacional, mais activa e cosmopolita, na
qual a pressão mediática tornou-se uma força reconhecida. Do mesmo modo, a alteração das
condições geopolíticas, associadas ao término da Guerra Fria, que surgiu para libertar a
agenda política externa, juntamente com a rápida expansão das notícias globais como a CNN,
surgiram numa época em que pareceram dar inicio a uma nova fase, na qual as agendas
59 O artigo “Media as a Driving Force in International Politics: The CNN EfFect and Related Debates” de Piers Robinson, não tem numeração. Vide a este respeito: http://www.e-ir.info/2013/09/17/media-as-a-driving-force-in-international-politics-the-cnn-effect-and-related-debates/. 60 Não obstante, no seu estudo, o autor alerta para o facto de, a teoria do efeito CNN só ter efeito aquando da incerteza de acção por parte dos decisores políticos, isto é, as coberturas mediáticas só surtem efeito, pressionando a tomada de decisões, nos casos em que se verifica uma determinada incerteza na tomada de acções interventivas.
61 O artigo “Media as a Driving Force in International Politics: The CNN EfFect and Related Debates” de Piers Robinson, não tem numeração. Vide a este respeito: http://www.e-ir.info/2013/09/17/media-as-a-driving-force-in-international-politics-the-cnn-effect-and-related-debates/
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
49
políticas externas se apresentaram como sendo mais abertas e nas quais as crises foram
mediadas a uma extensão jamais vista anteriormente (Robinson, 2013)62.
Não obstante, Robinson defende que ainda persistem algumas dúvidas quanto à
influência que os conteúdos das coberturas mediáticas exercem no processo de decisão e que
essa influência é indirecta, condicionando primeiramente e, de forma directa a opinião
pública. Por esta razão, o autor sustenta que a teoria deve ser analisada juntamente com a
opinião pública (Oliveira, 2010: 167), isto porque, pese embora grande parte dos decisores
políticos não confiem nas pesquisas de opinião pública, eles dependem da percepção desta,
que por sua vez é “moldada em grande parte pelos media.
Relativamente ao controlo que os media fazem da agenda política, e para
comprovar, mais uma vez, a influência que a agenda setting exerce no quadro das Relações
Internacionais, Emidio Diotato (2004), defende que os media controlam a definição dos temas
da agenda política, participando no processo da criação de políticas por outras palavras, do
Decision making policy, do mesmo modo, Kofi Annan partilha o mesmo pensamento que o
autor classificando os meios de comunicação como actores constrangedores para as Relações
Internacionais:
Durante algum tempo, os crimes cometidos contra civis em Darfur não apareceram nas primeiras páginas dos jornais. Mas há mais de um ano que nelas figuram. O facto de ter sido necessária uma cobertura intensa dos media mundiais para que fosses tomadas medidas é que é uma vergonha, não só para o Sudão mas para o mundo inteiro (Annan, 2005: A3)63.
Autores como Jerry Medler e Michael Medler (1993 apud Oliveira, 2010: 172), na
mesma óptica, acrescentam que, a duração da cobertura dos temas agendados também é um
factor determinante para a influência que estes assuntos podem exercer no processo de
criação de políticas, quanto maior for o tempo de agendamento do mesmo tema, maior será o
seu efeito. Outra observação pertinente apresentada por Maxwell McCombs (2006: 223),
segundo o autor, para o público, o agendamento é tido como uma espécie de preparação,
sobre os temas que guiarão a opinião pública e que através deste efeito os media estão a
exercer um papel crucial na configuração das políticas (McCombs, 2006: 223). Através da
preparação prévia do público, o agendamento acaba por pressionar os políticos para a criação
de posição e mesmo políticas agendadas pelos media, desta forma e no seguimento do
conflito da Síria, o repórter de imagem João fontes, um dos autores do projecto “A estrada
da Revolução” numa entrevista concebida no âmbito desta investigação afirmou que:
62 O artigo “Media as a Driving Force in International Politics: The CNN EfFect and Related Debates” de Piers Robinson, não tem numeração. Vide a este respeito: http://www.e-ir.info/2013/09/17/media-as-a-driving-force-in-international-politics-the-cnn-effect-and-related-debates/ 63 Vide a este respeito: Camargo, J. (2008) “Ecos do Fragor: A invasão do Iraque em 2003. A mídia Internacional na imprensa brasileira “. Brasília: Universidade de Brasília.
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
50
“Os media tem toda a importância para a tomada de decisões politicas, ou deveriam ter. Os media podem mostrar ao mundo o que se está a passar e a partir disso gerar-se uma pressão social junto dos governos, para os pressionar a agirem relativamente ao que se está a passar. Não acho que os media tenham impacto directo para a tomada de decisão. Penso sim, que estes possam de forma indirecta fazer com que a sociedade e outras entidades pressionem os governos, para que estes, sim tomem decisões. Daí ter tanta pena que não continuem a ocorrer notícias sobre a Síria, porque se houvesse constantemente notícias eu creio que o conflito já se tivesse resolvido”.64
Na linha de argumentação de Gilboa, pode afirmar-se, mais uma vez, que os media
exercem um papel crucial no processo de tomada de decisão, enquanto actores
constrangedores para com os decisores políticos. Por outras palavras, os meios de
comunicação, através das coberturas mediáticas, claro que dependendo do enquadramento
que estas englobem, exercem um efeito perturbador na rotina política e consequentemente
no processo decisivo.
Como resultado, os decisores políticos, por vezes, podem ter que rever os seus
posicionamentos e mesmo as suas políticas de forma a corresponder aos “desejos” da opinião
pública. Exemplo disso, foi o caso da tomada de acção por parte dos decisores políticos de
países como a Argélia e Marrocos que, aquando da Primavera Árabe movidos pelo medo do
efeito que as coberturas mediáticas estavam a ter nos países vizinhos e, que o mesmo
sucedesse nos seus países levaram a cabo uma série de reformas sociais65 de modo a tentar
evitar revoltas (REPORTERS WITHOUT BORDERS, 2011), neste seguimento, Gilboa afirma que,
a comunicação global restringe o processo político, principalmente por meio da alta
velocidade de difusão e transmissão de informações (Gilboa, 2002:736). O autor, ressalta a
ideia relembrando o sucedido na Guerra do Golfo em que, o na altura, presidente George
Bush admitiu que se informou melhor com a CNN do que com a CIA (Gilboa, 2002:736).
Durante a guerra foi possível observar-se como os media servem de lugar para as negociações
e de mensageiro. Nas palavras de oliveira:
Foi através da CNN que Saddam Hussein desafiou a coligação liderada pelos E.U.A ao propor um plano de paz que, foi recebido por washington como uma falsa proposta. George Bush, então, precisava de informar todos os 26 membros da coligação internacional no Iraque, acerca da decisão da Casa Branca de que a guerra iria continuar. A forma mais rápida e eficaz encontrada para isso foi a transmissão dessa avaliação governamental por meio da CNN, configurando-se aqui um típico caso de Real-time policy- política a tempo real (Oliveira, 2010: 172).
64 Afirmação do jornalista João Fontes na entrevista realizada no dia 02 de Abril de 2014. Vide a este respeito: em anexo. 65 Na Algéria, o presidente Abdelaziz Boutefika anunciou a 15 de Abril de 2011 mudanças políticas. Em Marrocos, o rei Mohammed adoptou reformas constitucionais e nas monarquias do golfo foram apresentadas algumas resoluções ao chefe dos protestantes. Vide a este respeito: Guercia, G. (2011) “Uphveal in the Arab World: Media as key witnesses and political pawns”. REPORTERS WITHOUT BORDERS. Disponível em: http://issuu.com/rsf_webmaster/docs/rsf_bilan_moyen_orient_2011_gb?e=4673624/298618
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
51
Quanto à importância deste tipo de acontecimentos e, nomeadamente perante o
papel dos meios de comunicação, Walter Wriston, afirma que estes desempenharam um
marco importante para a relação dos media para com as Relações Internacionais, o autor
afirma que, a transmissão do episódio possibilitou a todos os países do mundo o
acompanhamento a tempo real do desenrolar da guerra, o que marcou uma nova fase na
importância do papel dos media, a estes foi confiado o importante papel de transmitir a
mensagem diplomática que foi vista pelo mundo (Wriston, 1997: 174). Porém, o autor
sustenta que a confiança nos media para a transmissão de conteúdos tão importantes tem
estado cada vez mais em voga, a prática tem-se repetido pelas mais diversas entidades. Com
efeito, observa-se que, quer os terroristas, quer os defensores dos direitos humanos têm –se
servido dos canais de comunicação e, mais recentemente também das redes sociais para a
transmitir as suas mensagens. Isso permite que a conversa global coloque pressão sobre os
governos soberanos que ao longo do tempo influenciam os processos políticos de todo o
mundo:
Pela primeira vez na história, ricos e pobres, norte e sul, leste e oeste, a cidade e campo estão ligados por uma rede global electrónica de imagens compartilhadas em tempo real. As ideias movem-se através das fronteiras como se elas não existissem (Wriston, 1997: 175).
Ambos os autores reconhecem a importância dos meios de comunicação e acreditam
que estes têm contribuído para o exercício das funções dos decision makers, de forma a
criarem cada vez mais complementaridade entre as duas áreas, na medida em que os media,
por vezes, possam agir como actores legítimos do quadro das Relações Internacionais, graças
às novas tecnologias da comunicação as coberturas mediáticas, assim como os seus temas que
eclodem a uma velocidade impensável tornando as decisões que, por regra só seriam
discutidas à porta fechada, aumentando mesmo o número de actores que fazem parte do
processo. No entanto, a forma como os media constrangem os decisores políticos no processo
de tomada de decisão causa uma forte pressão para estes profissionais, isto porque caso os
decisores cedam logo às pressões mediáticas, estes podem correr o risco de cometer erros, no
entanto ao não cederem arriscam-se a transparecer a imagem (causada pelos media) de que
não têm controlo da situação, passando para o público, um maior grau de insegurança.
A comunicação e a revolução na informação ocorrida no século XX têm,
irreversivelmente, mudado o paradigma de poder das Relações Internacionais, no processo de
elaboração das políticas de segurança e defesa, na condução do processo diplomático (Gilboa,
2002: 52). Quanto à condução do processo diplomático, aquando do contacto entre “inimigos
políticos”, os jornalistas actuam como elemento-chave, desempenhando, num contexto
jornalístico a função de mediadores. O autor ilustra este pensamento com o exemplo clássico
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
52
do desempenho de Walter Cronkite66 que, no dia 14 de Novembro de 1977 mediou o conflito
ocorrente entre o Egipto e Israel. Ao entrevistar, o então, presidente egípcio Anwar Sadat e
o, primeiro-ministro israelense Menachem Begin, o jornalista tornou possível que, Sadat
fizesse uma visita histórica a Jerusalém, sete dias após a entrevista. Desde essa data, os dois
países deram início a tentativas para assinarem o tratado de paz, que se realizou em
Washigton, no dia 26 de Março de 1979 (Oliveira, 2013:176).
Não obstante, importa sublinhar que os media também assumem um papel
importante, para o processo diplomático, no sentido em que estes funcionam como
instrumento utilizado pelos líderes políticos, no desenrolar das negociações e para a
mobilização de apoio para os acordos (Gilboa, 2002: 52). Nesta lógica, os media são tidos
como um meio utilizado pelos actores de forma a auxiliar as negociações políticas e assim
mobilizam a opinião pública junto da comunidade internacional. Há, no entanto uma
distinção: enquanto que anteriormente foi referido o papel dos media como agenda settings e
mediadores, outras porem, eles são utilizados como instrumentos políticos de forma
intencional. Para uma melhor compreensão deste tipo de relação, será analisado o conceito
de media diplomacy, contudo, este é um conceito ambíguo, obrigatoriamente o escrutínio de
a exposição de algumas definições.
A socióloga, Patrizia Laurano (2006: 32), na sua publicação “Foundamenti do Comunicazioni
politica internazionale”, define o conceito de media diplomacy como sendo, a prova de que
os media constituem a ponte entre os cidadãos, os políticos e, os diplomatas, argumentando
que os grandes meios de comunicação de massa são utilizados para promover a política
internacional e assim persuadir o público e os decision makers. Por sua vez, para Gilboa,
media diplomacy consiste na utilização dos media por parte dos políticos a fim, destes
últimos de manifestarem as suas intenções durante as negociações, para conquistar a
confiança e assegurarem o suporte do público nos acordos (1998: 62). O autor, refere ainda
que processo é realizado através da organização de vários eventos de rotina e actividades
especiais de comunicação, incluindo conferências de imprensa, entrevistas, visitas de chefes
de Estado e mediadores de países rivais, além da espetacularização de eventos organizados
pelos media que acabam por inaugurar uma nova era (1998: 63)67.
66 Walter Cronkite, apresentador do programa da CBS Evening News, que ficou conhecido por retratar temas polémicos do mundo político e reunir no programa representantes políticos de polos Rivais e actuar como mediador na resolução de conflitos do “mundo político”. 67A diplomacia mediática de Hugo Chávez exemplifica bem a teoria apresentada. A forma como o antigo
presidente venezuelano utilizou os meios de comunicação para demonstrar a sua visão ao mundo foi
muito bem conseguida. Chávez servia-se da canal de televisão TeleSUR para implementar os seus ideias
políticos, segundo o jornalista Renato Rovi, Chávez sempre soube utilizar muito bem o espaço mediático
para a conquista do poder político. Através do programa, Aló presidente, que emitia a transmissão pela
rádio e televisão, o presidente actuava como animador: enquanto bebia café, conversa por telefone
com os telespectadores e anotava os seus problemas. Abordava questões do governo e ataca os seus
adversários políticos, em meio de citações de feitos de Simón Bloivar, a quem costuma evocar em todos
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
53
O advento da Primavera Árabe veio, na verdade, comprovar que, o ritmo intenso dos
intercâmbios diplomáticos conduzidos pelas coberturas noticiosas dos meios de comunicação,
através da televisão global alterou o padrão de tomada de decisão, especialmente em
situações de conflito.
Concluída a análise dos diferentes papéis que os media assumem, importa, portanto
sublinhar que, cada uma das definições mencionadas refere-se ao tipo de actor que os media
representam no quadro das relações internacionais. Vários são papéis desempenhados pelos
media, desde actor da política internacional que influencia e condiciona o comportamento
dos outros actores; como arena, que possibilita a reunião de rivais políticos; e instrumento
político (media diplomacy)68. Consequentemente, a utilidade dos media no processo de
tomada de decisão e consequentemente de acção sejam estas na elaboração da agenda
política (Agenda Setting), intervenções militares ou simplesmente de ajuda externa, ou
mesmo na manutenção da boa imagem dos estados, tem-se tornado indissociável do
funcionamento do cenário internacional. De acordo com o ex-ministro dos negócios
estrangeiros francês, Hubert Vedrine:
(…) Nesse exercício, mais uma vez os media são os primeiros a fazê-lo, porque na sua percepção, cabe-lhes, verdadeiramente, a análise do que entendem ser a defesa do bem público. De resto, o tempo tem-se encarregado de demostrar que o seu poder de influenciar distintos segmentos da sociedade conduz, em larga medida, a aperfeiçoamentos ou à correcção de desvios que, sem as suas intervenções, não teriam sido
possíveis (Lima, 2003: 124).
Em face disso, serão analisadas as formas como os media se comportam nos conflitos
internacionais, na qual se poderá observar a aplicação prática da teoria do enquadramento69
em situações de conflito, assim como a influência e o comportamento da criação de notícias
pelos meios de comunicação (Newsmaking)70.
os seus discursos. Vide a este respeito: Rovai, R. (2007: 31) “Mediático poder: O caso Venezuela e a
guerrilha informativa”. São Paulo: Publisher Brasil.
68 No caso da teoria do media diplomacy, consta que os media intervém nos conflitos oferecendo uma intermediação diplomática (Oliveira, 2013: 195). 69 Cfr: Hipótese que teve a sua origem nos estudos de Maxwell McCombs e que defende que os media agendam os assuntos que estarão em voga na agenda pública. 70 Teoria que defende que a realidade não é reflectida, mas sim construída resultando de preceitos jornalísticos, do ambiente e dos elementos adequados à elaboração e produção das notícias.
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
54
2. O papel dos Media nos conflitos internacionais
A toponímia anteriormente atribuída aos media serviu para “balizar” e de certa forma
“legitimar” a sua existência, enquanto agentes no quadro das relações internacionais e
comprovar a sua importância. No entanto, ainda não foi abordado o papel que estes
desempenham no cenário internacional. Passemos de seguida à performance dos media nos
conflitos e nas guerras que abraçam o cenário internacional, implica a compreensão da
relação que engloba os media, a opinião pública e o Estado.
O envolvimento dos Estados em conflitos ou guerras pressupõe a necessidade de
validar as motivações para o empenhamento nos teatros de operações bem como a
necessidade de construção de um consenso nacional e internacional. Em boa verdade, sob o
ponto de vista dos Estados o seu envolvimento pressupõe sempre a salvaguarda dos seus
interesses, no entanto para atingir o consenso os Estados têm que chegar ao público e para
tal, o reconhecimento de que os meios de comunicação são os grandes responsáveis pela
formação da opinião pública permite a concretização desse objectivo. Desse modo, assiste-se
à aproximação entre os dois agentes (os media e o Estado).
Os processos estratégico-políticos, a criação de políticas externas, e até a actuação
diplomática perante as situações de conflito são influenciadas pela forma como os media
acarretam as suas actividades. Essa influência é sentida na forma como conduzem o ritmo do
decision making process, como oferecem um novo espaço para discussão e mesmo como
instrumento confrontos, assim como, quando oferecem um novo canal de comunicação para a
discussão das situações de conflito (Oliveira, 2013: 198). Dessa forma, os media podem
fornecer informações que ditarão as características identitárias das partes envolvidas no
processo de negociação, conteúdos que informarão e formarão a opinião pública.
Como afirma Camargo (2008: 65), a grande questão da cobertura de um conflito está
na relação entre os media e o governo. Nessa relação assiste-se a uma pressão mútua, entre o
governo e os media. Da parte do governo através do (ou simplesmente da tentativa de)
controlo das declarações, das imagens e opiniões, que na grande maioria das vezes é feita
através de versões oficiais e, através da invocação do patriotismo e do sentimento
nacionalista. Portanto, é nesta divergência de constrangimentos que se conclui um os
principais axiomas nesta problemática: a existência de meios de comunicação que realizam as
suas coberturas de forma parcial e, por outro lado, os realizam de forma nacionalista, o que
Camargo explicita nas seguintes palavras: “cria-se um pacto voluntário ou coercivo no qual os
media e o governo expressam-se com a mesma voz” (Camargo, 2008: 65).
Quando essa relação se materializa torna-se frequente o apoio e favorecimento dos
media, para com as causas e as acções dos políticos, assim como as suas posições nos
conflitos internacionais. O mesmo pode ser comprovado pelos conflitos que marcaram o
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
55
século XX, estes não revolucionaram apenas o cenário internacional, mas a forma de praticar
o jornalismo e o lugar que este conquistou no seio da comunidade internacional. Contudo,
importa referir que a cada conflito, as estratégias utilizadas pelos governos e pelos media
diferem.
2.1 . Enquadramento Histórico do papel dos Media nos Conflitos
Internacionais
Antes de referir alguns dos conflitos nos quais é possível observar a relação dos
media para com os políticos, será feita uma breve referência à cobertura que abriu um novo
marco no jornalismo e na comunicação no tempo de guerra- A Guerra da Crimeia. Na história
da cobertura dos conflitos internacionais, a Guerra da Crimeia (1853-1856), considerada a
pioneira e a impulsionadora das coberturas de guerra, foi a primeira guerra da história a ter
uma cobertura verdadeiramente efectiva e diária, através da exposição de artigos e
fotografias enviadas pelo célebre correspondente de guerra, o irlandês, William Howard
Russel, que juntamente com o fotografo Roger Fenton revolucionaram a relação dos media
para com o público e, da opinião pública em si. Graças às suas coberturas, a opinião pública
tornou-se critica e activa, para com os governos: A figura do correspondente de guerra veio
abrir “janelas” (que mais tarde seriam em tempo real) para os palcos de conflitos, permitindo
à opinião pública ficar informada sobre os acontecimentos (Guerra, 2014:1).
Vários foram os conflitos, cujas coberturas mediáticas contribuíram para a
acreditação do papel desempenhado pelos seus profissionais nos cenários de guerra, assim
como a legitimidade das mesmas.
Desse modo, e relativamente às teorias anteriormente mencionadas, a análise da
funcionalidade do agendamento em situações de conflito permitirá compreender a actuação
dos repórteres nos conflitos de guerra. Sendo a hipótese do agendamento, uma das
perspectivas mais marcantes dos meios de comunicação e contemplando os pontos essenciais
da cobertura mediática indissociável do enquadramento. Aos media é permitido enfatizar
determinados conflitos, através da selecção de determinadas imagens que conduzem
inevitavelmente à formação da agenda. Esta situação conduz por outro lado devido à
visibilidade do conflito, através da apresentação de certas imagens71 que conduzem à
formação da opinião pública nacional e internacional acerca do mesmo e, que por sua vez
conduzem à formação da agenda, e desta forma conferem ao conflito visibilidade e destaque
não só perante a opinião pública, mas também no seio da comunidade internacional.
O conflito que envolveu a aliança entre a França e a Inglaterra contra a Rússia que
desejava a sua expansão territorial, ficou marcado pela voz activa que as coberturas de
71 Segundo McCombs, a agenda setting não se refere apenas aos temas, sendo que inclui imagens (apude rosa, 2007).
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
56
Russel e Fenton proporcionaram ao público, que por estar informado sobre a guerra
desenvolveu uma postura crítica perante o governo e pressionou-o a refazer as suas
estratégias. Para Philip Taylor, a guerra da Crimeia deve ser lida como um marco nas
coberturas, visto que inaugurou a convicção, de que a informação livre durante a ocorrência
dos conflitos poderia ser prejudicial para os objectivos estatais (Taylor, 2003: 168).
O advento do século XX trouxe consigo os horrores da guerra. Porém, no auge dos
anos 90, os meios de comunicação já eram tidos como um dos meios indispensáveis para a
vida social: os jornais já contavam com edições diárias; O físico italiano Guglielmo Marconi,
que inventara o telégrafo sem fio, proporcionara a criação da rádio, o que por sua vez
contribuíra para que os media marcassem uma presença assídua em todas as actividades do
quotidiano, incluindo os conflitos internacionais (Camargo, 2008: 66).
No período de 1959 a 1975, a mundo assistiu, pela primeira vez, em directo a um
conflito internacional de guerra- A Guerra do Vietname. A intensidade dos relatos, somado à
exibição das imagens chocantes (o lançamento de bombas, a realidade dos soldados e dos
civis feridos, tudo a tempo real), assim como demostração do sofrimento das crianças e dos
refugiados que se encontravam no território de guerra, despertaram na opinião pública a
revolta e ao mesmo tempo, o respeito pela legitimidade do conflito, dando motivos para que
estes protestassem junto do governo e apelassem pelo fim da guerra (Camargo, 2008: 67).
Em consequência disso, os governos do cenário internacional tomaram a consciência
de que perante uma cobertura mediática negativa, acerca das suas acções, estes jamais
conseguiriam obter o apoio da opinião pública e assim legitimar as suas acções, o que por sua
vez, acabou por desviar o foco da sua atenção, que passou a incidir nos media e na
construção de uma boa imagem juntos destes. Tal facto ficou comprovado durante a
ocorrência do conflito que envolveu a Argentina e o Reino Unido, na conhecida guerra das
Malvinas. Este conflito ficaria marcado pelo controlo total dos media por parte da política. O
ministério da defesa britânica autorizou apenas a participação de 29 jornalistas de
nacionalidade britânica nas ilhas e no dia da derrota das tropas argentinas, Maragareth
Thatcher, a então primeira-ministra britânica, decretou o que ficaria conhecido por
“blecaute”: durante nove horas nenhuma cobertura poderia ser enviada para Londres por
parte dos jornalistas, visto que a vitória britânica teria que ser anunciada pela própria
Tatcher. Consta-se que houve também uma forte censura de imagens e reportagens
publicadas pelos jornalistas, sendo que o resultado da guerra foi que as notícias não passaram
de relatos oficiais autorizados pelo governo com a visão que este queria que o “mundo”
obtivesse acerca do conflito.
No contexto do controlo exercido pelos governos, outro exemplo foi a Guerra do
Golfo, em 1991. Neste conflito assistiu-se à imposição de “regras” e ao controlo dos media
por parte da comunidade internacional. Este comportamento desencadeou uma estratégia de
controlo de informação.
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
57
Tal se verificou pela limitação do número de jornalistas no local, assim como revisão
dos conteúdos informativos prestados pelos jornalistas. Segundo walter Castells:
A administração profissional de notícias de forma inteligente que entende as nossas necessidades dos media, enquanto as monitora, pode levar a guerra ao vivo às casas das pessoas com uma percepção limitada e saneada da matança e do sofrimento, tema exaustivamente desenvolvido por Baudrllard. É evidente que a Guerra do Golfo foi o ensaio geral para um novo tipo de guerra (Castells, 2003: 548).
O trabalho de campo dos jornalistas nos locais de conflito acaba por funcionar através
da aplicação prática das teorias mencionadas ao longo desta investigação. O que causa
impacto e demarca agenda mediática e política e a forma como os profissionais dos meios de
comunicação a apresentam a realidade, pois possui uma relevância significativa, como o caso
das fotografias jornalísticas. Sem retirar importância ao impacto que o poder dos textos
confere a determinado conflito, a escolha das imagens, por sua vez, determina o impacto que
os conflitos têm na opinião pública e na comunidade internacional. Na verdade conta que as
imagens são repletas de sentidos, através delas é possível despertar os mais variados
sentimentos e com isso conduzir aos efeitos pretendidos pelos media. Deste modo, pode
afirmar-se que os enquadramentos são organizadores e estruturantes do pensamento (Marini,
2008: 70).
Embora as autoridades políticas e militares possam justificar as suas tentativas de controlar os media, com base na lógica do campo de batalha (como a necessidade de evitar informações que possam colocar em risco a vida dos soldados), sabem muito bem que há muito mais em jogo. Sabem que as imagens e as informações mediadas têm o poder de estimular formas de acção que envolvem respostas críticas e diversidades de opiniões que podem enfraquecer o esforço da guerra (Thompson, 2002: 104).
A imagem que os media passam dos conflitos para o mundo é determinante a vários
níveis. Como já foi referido, contribuem para a construção da opinião pública informada que
possa pressionar os decisores políticos. Desta forma, os enquadramentos noticiosos dos
media, os que dizem respeito ao formato adoptado pelos jornalistas para organizar os seus
relatos (Silva, 2006: 51), servem portanto, para atrair a atenção do público para determinado
tema, tornando-o mediático e por outro lado, no caso de conflitos, para identificar o inimigo,
torná-lo público e construir uma má imagem acerca do mesmo.
À luz do pensamento de Rafael Oliveira, na sequência dos enquadramentos, os media
podem contribuir para a criação de uma relação conflituosa entre o “nós” e os “outros”, que
consiste em culpabilizar os “outros” como sendo a origem de qualquer problema (Oliveira,
2010: 199). Perante as situações de conflito, como afirma Diodato, o procedimento consiste
na construção de uma imagem acerca do inimigo e, nesta fase que os media exercem um
papel fundamental (Diodato, 2004: 55). Seguindo este raciocínio, pode afirmar-se que, os
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
58
enquadramentos mediáticos conferem aos autores dos conflitos peculiaridades que podem
influenciar a comunidade internacional a alcançar a identidade dos indivíduos envolvidos.
Uma situação ilustrativa deste argumento é o episódio do 11 de Setembro. Desde a
ocorrência dos atentados que, os meios de comunicação social americanos criaram a imagem
do inimigo que precisava ser combatido e, em resultado disso, as acções por parte do governo
americano no exterior, em particular no Afeganistão foram favorecidas e mesmo
legitimidades como se a tomada de decisão por parte do governo estivesse protegida.
Conforme analisa Júlia Camargo no seu estudo, os media americanos adoptaram uma postura
de autocensura e de apoio às decisões do governo americano (Camargo, 2008: 69), de tal
forma que as entrevistas e o material fornecido pelos jornalistas que se encontravam no
Afeganistão eram confiscadas antes de serem transmitidas assim como a transmissão das
imagens de Bin Laden que, eram proibidas (Camargo, 2008: 69).
Recentemente, a BBC BRASIL publicou um artigo no qual criticou a cobertura
mediática realizada pelos media egípcios, alegando que as coberturas estão a ser realizadas
em prol do governo e na qual a imparcialidade está a ser colocada de parte:
A tensão das ruas contaminou a televisão egípcia já conhecida pelo baixo apego às teorias da imparcialidade e, a narrativa é uma só: a favor do governo. Os veículos que eram favoráveis à Irmandade Muçulmana foram fechados logo após a deposição do ex-presidente Mohammed Morsi, em julho do ano passado- inclusive o canal local da rede Al-Jazeera, chamado de Mubasher (“directo”, em árabe), que se mantém no ar a realizar transmissões a partir da sua sede no Katar (BBC, 2014).
Perante os exemplos acima apresentados poDe ser que demostram o tipo de cobertura
diferenciada, que os media exerceram em alguns conflitos internacionais, constata-se que a
relação que os jornalistas têm com os decisores políticos é reciproca, pois se os media
exercem pressão a nível da tomada do processo de tomada de decisão, os políticos por sua
vez, quando querem ver protegidas as acções que a priori sabem que podem ser criticadas
pela opinião pública, sabem também como pressionar e censurar os media. Camargo, no seu
estudo elabora uma síntese da evolução dessas relações no decorrer dos vários conflitos que
demarcaram o século XX, como podemos observar no quadro 3:
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
59
Quadro 3- As coberturas de guerra do século que marcaram o século XX
Primeira Guerra Mundial
(1914-1918)
Utilização intensa da rádio por parte dos governantes;
Segunda Guerra Mundial
(1939-1945)
Utilização da rádio e do cinema fonte de propaganda política;
Guerra do Vietname
(1959-1975)
Os jornalistas expuseram os horrores da guerra;
Os media questionaram a actuação americana na guerra;
Guerra das Malvinas
(1982)
Controlo externo;
Reduzido número de jornalista, sendo que só eram permitidos
os britânicos;
Os jornalistas baseavam-se estritamente nas fontes militares
oficiais;
Guerra do Golfo
(1991)
Guerra séptica;
Os militares acompanharam de perto a produção das
reportagens;
Número limitado de jornalistas;
Guerra dos Balcãs
(1998)
Semelhante à Guerra do Golfo;
Utilização de operações psicológicas;
Estratégia da superinformação: muitas informações
contraditórias;
Guerra do Afeganistão
(2001)
Guerra contra o terror;
Criação de centros de informação;
Surgimento da Al-Jazeera (Guerra da informação.
Fonte: Adaptado de- “Ecos de Fragor: A invasão do Iraque em 2003”. (Camargo, 2008: 70).
No entanto, com o avançar do tempo e com o evoluir da revolução tecnológica aponta
para uma mudança de paradigma e denunciando uma tendência para que a influência que os
media exercem junto do poder político se sobreponha a este e assim permaneça.
Nas situações de conflito, os media actuam como os agentes das próprias relações
internacionais, estes servem de mensageiros políticos, criando um espaço para negociações
informais, tornando-se por vezes mediadores de conflitos e, em muitos dos casos pressionam
a comunidade internacional a agir, através da publicação de imagens, vídeos e reportagens
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
60
que despertam na esfera pública o sentimento de que algo tem de ser feito, obrigando-os a
tomar decisões que atenuem, ou coloquem fim aos conflitos (Departamento de comunicação,
2007). Actualmente, com o advento da Primavera Árabe pode comprovar-se a tese de
Neuman, a crescente evolução da tecnologia mudou a forma como as nações e os povos
interagem, possibilitando aos povos árabes alcançarem uma atenção, jamais pensada perante
o mundo, através das redes sociais (facebbok e twitter) e dos meios de comunicação.
Com efeito, os povos árabes demonstraram os seus sentimentos de indignação,
iniciaram as suas revoluções e fizeram-se ouvir junto da comunidade internacional e, em
alguns casos, derrubaram os seus governantes do poder. Como exemplo, temos os caso da
Líbia em que, as forças de intervenção das Nações Unidas só intervieram no conflito armado
pondo fim à guerra e ao mandato de Muammar Kadafi devido, em grande medida, à pressão
que as coberturas noticiosas fizeram para o mundo em geral, por terem despertado o
sentimento de que algo deveria ser feito, e este foi sentido pelos telespectadores de todo o
mundo, o que por sua vez chamou a atenção da comunidade internacional.
Tal como o povo sírio, vários jornalistas de todo o mundo, na sua grande maioria
também freelancers, arriscaram as suas vidas, em nome da revolução e do apoio ao povo
sírio. Através dos trabalhos realizados por estes profissionais, a causa do povo sírio ganhou
aliados, que sensibilizados com os acontecimentos moveram esforços para os ajudar: bloggers
de todo o mundo discutiram o conflito da Síria, estudiosos abordaram as suas causas e as
consequências que este teria para o mundo e, hackers lutaram contra a repressão na internet,
imposta pelo governo sírio.
A comunidade internacional pressionada por toda a mobilização que se gerou em torno
do conflito, realizou alguns esforços na tentativa de resolver o conflito que começou por ser a
luta do povo, mas que com o passar do tempo abraçou causas e interesses divergentes.
Através dos jornalistas e das redes sociais, o povo sírio ganhou voz tendo a
possibilidade de projectar para o mundo, a verdadeira realidade do seu país e o porquê de
ansiarem a mudança de regime, assim como a essência da sua causa, fazendo-se ouvir não só
por Bashar al- Assad, embora este os ignorasse mas, principalmente perante a comunidade
internacional. “Se os jornalistas e os repórteres não arriscassem as suas vidas para
retractarem a realidade da Síria, esta não teria tido o impacto que teve junto da comunidade
internacional” afirmou o fotojornalista João Henriques, de A Estrada da Revolução. Através
das imagens, dos vídeos e dos relatos que os jornalistas e os repórteres- cidadão realizaram, a
realidade síria alertou o mundo. A utilização das redes sociais contribuiu para que, a
exposição da sua realidade fosse mais intensa e até mesmo mais realista. Segundo o repórter
Tiago Carrasco, que além de ter escrito o Livro a “Estrada da Revolução” realizou coberturas
acerca da realidade Síria para o jornal sol afirmou numa entrevista concebida para a
concretização desta investigação:
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
61
“A guerra da Síria pode ser considera, talvez como a primeira guerra em que as decisões são tomadas pelo You Tube e essa é uma grande inversão, visto que, sendo uma guerra em que, devido às proporções que esta alcançou, não há muitos correspondentes estrangeiros, o repórter cidadão teve um
papel fundamental e, muitos deles têm uma coragem inacreditável”.72
72 Afirmação do jornalista Tiago Carrasco na entrevista realizada no dia 02 de Abril de 2014. Vide a este respeito: em anexo.
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
62
Capítulo IV- Estudo de Caso: A cobertura
do Conflito Sírio pelos Media Portugueses
entre 2010 e 2011
Relativamente ao impacto que os media têm nas relações internacionais, importa
sublinhar alguns aspectos que consideramos mais imporantes, nomeadamente os
procedimentos diplomáticos e o modus operandi das negociações a nível internacional. Os
media influenciam, de facto, as relações internacionais, mas de forma indirecta e variável,
não alterando a natureza essencialmente política da tomada de decisões na esfera
diplomática.
Após a análise da evolução da actuação dos media, e em especial dos repórteres de
guerra nos conflitos internacionais, assim como o efeito que as suas coberturas provocaram no
desempenho dos trabalhos dos profissionais das Relações Internacionais, contata-se que, nas
situações de conflito armado, os media representam um poder que exerce uma grande
influência na tomada de acções por parte da comunidade internacional. Como tivemos
oportunidade de referir nos capítulos anteriores, através da ilustração de alguns casos que
envolvem a relação dos media com as países considerados hegemon’s, verificámos que ambos
detêm poder suficiente para mudar o rumo dos conflitos.
Hodiernamente, a questão acerca do papel que os media exercem nas relações
internacionais continua a despertar a atenção dos teóricos a nível académico e político. O
despoletar das revoluções árabes, aliada à revolução tecnológica, despertou novamente o
interesse acerca da relação existente entre as duas áreas (Comunicação versus relações
internacionais). Aquando da intervenção na guerra civil da Líbia, novas questões surgiram
sobre a força que os media exercem perante a tomada de acções da comunidade
internacional. Relativamente aos relatos do conflito na Síria, os meios de comunicação não
tiveram qualquer tipo de “pudor” na exposição da tragédia ao mundo, assim como em
pressionar a comunidade internacional a agir em prol da causa do povo sírio (Robinson,
2013)73.
Assim sendo e através do estudo de caso acerca da actuação dos profissionais dos
media na Síria, e de uma forma mais holística compreendendo a Primavera Árabe, pretende-
se destacar a forma como a nova conflitualidade no Norte de África e Médio Oriente foi
73
Vide a este respeito: http://www.e-ir.info/2013/09/17/media-as-a-driving-force-in-international-politics-the-cnn-effect-and-related-debates/
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
63
reportada pelos meios de comunicação social e simultaneamente os efeitos que esta
cobertura tiveram na actuação dos decision makers internacionais. Com efeito, este processo
dialético mostrou um encorajamento às populações dos países do Norte de África e do Médio
Oriente a seguirem o exemplo da Tunísia e a lutarem pelos seus direitos marcando a diferença
perante os seus governantes ditadores, mas paralelamente revelou a pressão que os media
desempenham no processo de tomada de decisão de política interna e internacional. Desse
modo, no artigo “The Media´s Impact on International Affairs Then, and Now”, Johanna
Neuman estabelece a correlação existente entre a evolução tecnológica e a influência que os
media exercem nas relações internacionais defendendo que o advento da tecnologia
instantânea e global conferiu aos meios de comunicação um papel de protagonista nas
relações internacionais, apossando-se mesmo, em algumas situações, do papel diplomático
(Neuman, 1996)74.
Na Síria, até 2011, período em análise a, actuação dos media teve um comportamento
destaque não só na exposição da realidade do conflito para o mundo, como também na
conquista de apoio à causa dos cidadãos sírios. Os freelancers portugueses, Tiago Carrasco,
João Fontes e João Henriques, autores do projecto “A Estrada da Revolução” provam isso
mesmo. Estes repórteres passaram 6 dias no território sírio e realizaram reportagens para o
jornal Sol, editaram um livro75 e um documentário – “A estrada da Revolução”. O trabalho
destes profissionais da comunicação teve como objectivo perceber e dar a conhecer a
essência das revoluções árabes e em especial sírio. Durante os seis dias em que
permaneceram no território sírio, os repórteres tiveram contacto directo com cidadãos que se
encontravam em campos de refugiados, com civis que perderam os seus familiares durante os
confrontos, com estudantes que ansiavam uma vida melhor, com profissionais de vários ramos
que deixaram as suas actividades para se dedicarem à revolução e com rebeldes que fizeram
da revolução a sua vida. Através do seu trabalho, o país e o mundo tiveram acesso a uma
realidade que, e pese embora muito real, é distante e desconhecida para muitos. Em boa
verdade, só quem teve contacto directo com este ambiente é que o conhece. E nesta
questão, os jornalistas ocupam um lugar privilegiado.
Por se tratar de um acontecimento actual e cujo término ainda se desconhece, o
estudo da cobertura mediática portuguesa do conflito da síria durante o período de 2011 deve
ser analisado à luz do encadeamento histórico mencionado no II capítulo e como referimos
ainda em aberto. Portanto, uma vez que a compreensão do impacto que as coberturas
mediáticas causam na actuação dos decision makers já foi analisada numa fase precedente,
cumpre-nos agora, analisar a realidade portuguesa face ao conflito da Síria, nomeadamente
no que diz respeito à posição do país e à actuação dos nossos diplomatas no decurso do
74 Vide a este respeito: https://muse.jhu.edu/login?auth=0&type=summary&url=/journals/sais_review/v016/16.1neuman.html 75 O Livro: “A estrada da Revolução editado em 2012, pela oficina do livro.
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
64
conflito em caso de observância de uma posição do ministério dos negócios estrangeiros
português.
Com o exemplo de A Estrada da Revolução evidenciámos as idiossincrasias que
perpassam o desempenho jornalístico, mas o objectivo deste estudo de caso, passa pela
percepção da realidade dos órgãos de informação portugueses face à mediatização do conflito
da Síria e a forma como os conflitos internacionais são retratados e colocados na agenda
setting em Portugal. A análise é, assim, elaborada a partir do ponto de vista dos profissionais
que estiveram na Síria e acompanharam de perto um dos períodos do conflito que ainda
decorre. Desta forma, foram entrevistados jornalistas nacionais que estiveram em serviço na
Síria ou que têm experiência na cobertura de conflitos, e que se encontram nos três meios
clássicos da comunicação: imprensa, através do fotojornalista Paulo Nunes dos Santos, que
trabalha com o jornal Expresso; televisão, através do enviado especial da RTP, Paulo
Dentinho; e rádio, pelo jornalista Ricardo Alexandre, da Antena 176.
O método utilizado tem como objectivo proporcionar ao investigador a direcção
imprescindível da pesquisa com objectividade e precisão e, portanto, nesta investigação
optamos pela delimitação do estudo de caso ao conflito da Síria durante o período de 2010-
2011 e pela tipologia de cobertura realizada pelos media portugueses. Por outro lado,
analisámos a influência que o pouco envolvimento de Portugal no conflito confere à
mediatização do tema nos media portugueses.
A aplicação das questões (disponíveis em anexo) tem como finalidade escrutinar os
factores que contribuíram para o pouco mediatismo do conflito da Síria em Portugal. Tendo
em conta que os órgãos de comunicação nacionais enviaram alguns jornalistas para realizarem
a cobertura do conflito no território, mas também que alguns freelancers estiveram na Síria a
realizar a cobertura do conflito.
4.1. A diplomacia portuguesa e o conflito da Síria: A escassez
das relações bilaterais entre Portugal e a República Árabe Síria
Segundo Martin Wight77 a diplomacia acarreta a prática, a história e a filosofia, sendo
o centro da sociedade internacional moderna. Quanto às várias actividades e instituições da
diplomacia, estas englobam a mudança de residência dos embaixadores, a comunicação entre
estados, a prática da imunidade diplomática, a prática de congressos e conferências,
76 O jornalista entrevistado a serviço da rádio não foi para a Síria, no entanto tem uma voz activa perante os conflitos de ordem internacional. 77 Conhecido um dos autores fundadores da Escola Inglesa das Relações Internacionais.
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
65
negociações, de vários tipos de acordos e tratados, o que a torna não apenas uma
característica distintiva, mas sim, o elemento fundamental dos Estados da sociedade
independente (Wight, 1968).
Deste modo, torna-se crucial para a sobrevivência dos Estados no contexto
internacional, o estabelecimento de relações diplomáticas. Portanto, e para que possa haver
um entendimento acerca da forma como foi realizada a cobertura do conflito da síria em
Portugal, durante o ano de 2011, será feita uma breve referência às relações bilaterais entre
o nosso país e a Síria.
Segundo os dados do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal, as relações
diplomáticas entre os dois países foram estabelecidas a 20 de Fevereiro de 1975, sendo que,
actualmente, a representação diplomática da Síria em Portugal é assegurada pela embaixada
da República Árabe Síria em Paris. Nesse seguimento, a última visita diplomática feita à Síria,
em Julho do mesmo ano, foi realizada pelo Duque de Bragança, D. Duarte de Bragança, a
pedido do presidente Bashar all-Assad. D. Duarte deslocou-se ao país e fez-se ouvir,
regressando a Portugal com a mensagem de que Bashar “pretende colaborar com uma
constituição inspirada no modelo marroquino para ser aprovada num referendo e permitir que
o país funcione como uma democracia contemporânea”. Segundo D. Duarte, Bashar queixou-
se da incompreensão europeia face à realidade do país na altura (EXPRESSO, 2011).
Não obstante a mediatização portuguesa, favorável à posição ocidental perante o
conflito noticiou o acontecimento expondo a intenção do presidente sírio, mas em seguida
reforçou a conotação negativa atribuída ao presidente e ao seu governo que, em regra geral,
tem sido feita pelos meios de comunicação ocidentais78. No caso da visita diplomática, o
jornal Expresso após ter relatado o acontecimento e a mensagem de Assad, rapidamente
contrastou a imagem que o presidente sírio tentou passar afirmando no parágrafo seguinte:
“Na Síria, os protestos acentuam-se. Ontem, 150 mil manifestaram-se em Hama, no norte do
país”. Este excerto da notícia ajuda a perceber o descontentamento popular face ao regime
Sírio e como alguns meios nacionais focaram este aspecto.79 (EXPRESSO, 2011).
Segundo o Jornalista Paulo Dentinho, enviado especial da RTP para o estrangeiro, os
meios de comunicação seguem o modelo da agenda setting80 internacional, que é controlada
pelos interesses Europeus e norte-americanos. Um facto curioso que pode influenciar a
posição de Portugal no conflito e mesmo a posição dos meios de comunicação nacionais face à
projecção da má imagem do presidente sírio é a posição desfavorável que a França e o Reino
78 São raros, ou quase inexistentes os jornais que fazem uma referência positiva ao presidente sírio e ao seu governo. 79 A notícia do Jornal Expresso encontra-se disponível no blog da família real portuguesa. Vide a este respeito: http://realfamiliaportuguesa.blogspot.pt/2011/07/sar-dom-duarte-fez-viagem-diplomatica.html 80 Hipótese teórica mencionada nos capítulos I e III e que defende que os media guiam a agenda pública.
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
66
Unido adoptaram quanto às acções do presidente e do governo sírio para com o seu povo.
Importa sublinhar que Portugal é um grande aliado diplomático do Reino Unido e da França81
que constituem um dos grandes opositores ao regime de Bashar al-Assad, o que pode levar a
concluir que a posição portuguesa face às acções de Assad são também fruto da oposição dos
seus aliados britânicos e franceses no conflito.
No seguimento da visão de Paulo dentinho e das razões apontadas, assistimos à mútua
influência entre as duas áreas de estudos a serem analisadas na presente investigação. Se por
um lado, os meios de comunicação influenciam o processo de tomada de decisão, como já foi
visto no capítulo anterior, os interesses políticos também determinam os enquadramentos
feitos pelos media em determinados conflitos. No seguimento da entrevista realizada ao
jornalista, Paulo Dentinho constatou:
Muitos jornalistas já chegam aos locais de conflito com uma formatação mental de quem são os bons e os maus. Cabe aos jornalistas adoptarem um espírito muito aberto e desprenderem-se desse constrangimento. Ao deslocarem-se para esses locais, os jornalistas devem partir com a atitude de tentarem perceber a realidade que se encontra por detrás daquilo que eles nos apresentam”. 82
Em termos oficiais não existem registos de acordos realizados entre Portugal e a Síria, no
entanto, e embora pouco significativas, os países mantiveram relações comerciais. O volume
de exportações sírias para com Portugal estivou o valor de 6,9 milhões de Euros, no que tange
ao valor das importações da síria, estas alcançaram a cota de 1,6 milhões de Euros, o que
comprova a não existência de laços fortes entre os dois países que possam causar
constrangimentos quanto à tomada de posição de Portugal perante o conflito sírio.
Portugal é um Estado-membro da União Europeia e integra também o quadro de algumas
instituições internacionais83, sendo a Organização das Nações Unidas. Em Janeiro de 2011 o
país participou como membro não permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas
(CSNU) por um período de dois anos. Durante a sua permanência como membro do Conselho de
Segurança, Portugal teve a possibilidade de dar o seu voto no que respeita às questões da agenda do
Conselho, o que resultou na aprovação da resolução que condenava as violações humanitárias
cometidas pelas autoridades sírias84 em Novembro de 2011. De acordo com o, então, embaixador de
Portugal na ONU, José Filipe Moares Cabral: ”A situação na Síria é extremamente séria e exige uma
condenação muito clara da comunidade internacional” (JORNAL DE NOTÍCIAS, 2011). Tal atitude
81 Portugal possui laços históricos de uma forte aliança com a França e o Reino Unido. 82 Afirmação do jornalista Paulo Dentinho na entrevista realizada no dia 21 de Abril de 2014. Vide a este respeito: em anexos. 83Ver mais sobre as organizações internacionais em que Portugal é membro em: http://www.portugal.gov.pt/pt/os-ministerios/ministerio-dos-negocios-estrangeiros/quero-saber-mais/sobre-o-ministerio/organizacoes-internacionais-de-que-portugal-e-membro/organizacoes-internacionais-de-que-portugal-e-membro.aspx 84 Portugal juntamente com a França, Reino Unido e a Alemanha apresentaram no dia 25 de Abril de 2011 uma declaração na qual apelavam pela condenação da violência na Síria ao Conselho de Segurança das Nações Unidas. Vide a este respeito: Revista Visão. Disponível em: http://visao.sapo.pt/onu-portugal-quer-condenacao-do-conselho-de-seguranca-a-violencia-na-siria=f599969
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
67
comprovou, como já foi referido, a não existência de constrangimentos por parte de Portugal
respeitante ao conflito da Síria. No entanto, para poder clarificar a questão da posição
portuguesa no conflito, questionámos o Diplomata Diogo Rocha, da direcção dos serviços do
Médio Oriente e Magrebe, do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal:
Portugal defendeu sempre uma solução política para o conflito Sírio, que preserve a integridade territorial do país e assegure um regime democrático em que as várias componentes étnicas e religiosas dos países vejam os seus interesses representados. Portugal também sempre defendeu um papel para as Nações Unidas, e o Conselho de Segurança em particular, na resolução do conflito sírio. Enquanto membro não-permanente do Conselho Portugal defendeu soluções de compromisso que permitissem ao Conselho desempenhar o seu papel e tentou mediar entre as posições mais extremadas de alguns dos membros, com vista criar consenso necessário a qualquer acção significativa do Conselho. Portugal tem participado na elaboração e apoiado as posições da UE sobre o conflito sírio. Do ponto de vista humanitário Portugal já contribuiu com 130,000 Euros para ajuda a refugiados sírios”.85
4.2. A realidade portuguesa e o conflito da Síria: O
funcionamento do sistema mediático em Portugal
Antes de abordar a mediatização do conflito da Síria pelos media portugueses, importa
realizar-mos uma pequena descrição da realidade portuguesa face ao agendamento dos conflitos
internacionais e do destaque que estes ocupam nos meios de comunicação nacional.
Relativamente à realidade nacional, e após entrevistarmos os profissionais dos media
portugueses e após uma breve reflexão sobre a experiência diária de consumirmos notícias dos vários
meios de comunicação, constatámos que o mesmo assunto raramente permanece durante muito
tempo na agenda mediática. Esta situação pode ser consequência do surgimento dos acontecimentos
a uma rápida velocidade na agenda, mas depois caírem no esquecimento à mesma celeridade. É
muito frequente um tema tornar-se mediático, mas é ainda mais frequente o mesmo tema cair no
esquecimento de um momento para o outro, ainda mais quando se trata de uma história/ conflito
que dure muito tempo, como o da Síria.86
Neste seguimento, o jornalista da Antena 1 Ricardo Alexandre, analista em questões de
política e conflitos externos, partilhou a sua visão perante esta realidade presente nos media
nacionais: “Aquilo que deixa de ser novidade é quase ignorado, raramente fazendo trabalhos de
85 A citação resulta da entrevista realizada ao diplomata Diogo Rocha, membro do Ministério dos Negócios Estrangeiros portugueses no dia 08 de Abril de 2014. Vide a este respeito: em anexo. 86 Afirmação do jornalista Paulo Nunes dos Santos na entrevista realizada no âmbito desta pesquisa no dia 23 de Abril de 2014. Vide a este respeito: em anexos.
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
68
fundo sobre as causas e motivações”.87 Da mesma forma, o jornalista, freelancer, João Fontes, do
projecto A Estrada da Revolução exprimiu a sua visão aplicando-a ao caso da Síria:
“Há uma notícia, às vezes quando sai um observatório esporadicamente, ou em rodapé uma referência mínima ou uma caixa num jornal, uma coisa pequena, mas não há um destaque e, eu acho que deveria haver um destaque até deixar de ser notícia, quando deixa de ser notícia vai ser sinal de que já não está a acontecer nada e neste momento continua a acontecer”.88
Em boa verdade, se observarmos as notícias de carácter internacional,
nomeadamente os conflitos de guerra nos media portugueses, estes temas assumem uma
relevância muito reduzida na hierarquia noticiosa. Nos telejornais nacionais, por exemplo,
observa-se que aos conflitos internacionais é conferido espaço de antena mínimo e o
conteúdo informativo acerca dos mesmos é pouco informativo e construtivo para formação da
opinião pública, como afirma Teixeira (2012) no seu estudo ”O jornalismo internacional na
televisão portuguesa: o caso do “jornal da Noite” da SIC”: o que é internacional ocupa uma
posição uma posição muito reduzida nos noticiários televisivos portugueses, existe uma falta
de interesse em procurar temas que possam fugir a esta regra, acabando o telespectador por
conhecer apenas uma pequena parte da realidade (Teixeira, 2012: 59).
Assiste-se assim à banalização dos temas de guerra pelos meios de comunicação
portugueses. É como se os media noticiassem este tipo de acontecimentos de forma a não se
interessarem em aprofundar as questões que de facto estão por detrás dos conflitos e que
possam proporcionar um conteúdo informativo mais rico à opinião pública nacional. Deste
modo, podemos afirmar que, muitas vezes, os media nacionais não conferem importância
suficiente aos conflitos de ordem internacional para que estes ocupem um lugar de destaque
na agenda pública. Como exemplo disso, o projecto A Estrada da Revolução foi divulgado nos
media, mas a mediatização incidiu na aventura dos jornalistas e não no conflito da Síria em
si. Como afirmaram os jornalistas: “Claro que houve um certo interesse, mas não tanto pelo
tema e sim, pelo nosso trabalho, e pela nossa experiência. Houve sim mediatização, mas pelo
nosso trabalho e não pelo tema em si da Síria”.89 O que evidência uma vez mais o pouco
destaque conferido pelos media ao conflito.
Também já foi mencionada a crítica apontada por Paulo Dentinho, enviado especial da RTP,
acerca da “formatação mental” que os jornalistas adoptam aquando das suas deslocações para os
cenários de guerra e o pouco interesse que estes profissionais dos meios de comunicação demonstram
em aprofundar as questões que estão por detrás dos conflitos. Este aspecto reflecte um pouco da
visão redutora, assim como do pouco interesse dos media portugueses em aprofundar as causas e
87 O depoimento obtido resultou de uma entrevista realizada ao jornalista no dia 23 de Abril de 2014. Vide mais a este respeito: em anexos. 88 O depoimento obtido resultou de uma entrevista realizada aos jornalistas no dia 02 de Abril de 2014. Vide a este respeito: em anexos. 89 Afirmação dos jornalistas autores do projecto A Estrada da Revolução” na entrevista realizada no âmbito desta pesquisa no dia 02 de Abril de 2014. Vide a este respeito: em anexos.
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
69
motivações dos conflitos internacionais, como referiu anteriormente o jornalista da Antena 1. Quando
questionado sobre a mediatização do conflito sírio pelos media portugueses, o jornalista Ricardo
Alexandre afirmou: “O espaço do noticiário internacional é reduzido nos media nacionais, que
têm uma visão do mundo muito provinciana, redutora, umbiguista, diria mesmo que aquilo
que deixa de ser novidade é quase ignorado, raramente fazendo trabalhos de fundo sobre
causas e motivações”.90
Por outro lado, um factor que pode contribuir para espelhar a realidade nacional face ao pouco
mediatismo dado aos conflitos internacionais, e ao da Síria em especial, pode ser devido a um dos
critérios de noticiabilidade: a proximidade. Segundo o estudo realizado por Mario Fernandes “A força
da notícia local: A proximidade como critério de noticiabilidade”, os eleitores preferem tomar
conhecimento de um facto pequeno, mas próximo, do que outro mais importante, porém ocorrido a
quilómetros de distância (Fernandes, s/d). Ainda acerca da proximidade podemos constatar que a
proximidade cultural é um factor que é considerado pelos media nacionais, isto é, se o
conflito envolver, por exemplo uma ex-colónia a mediatização será muito mais intensa, no
entanto como no conflito da Síria não há uma ligação de proximidade histórica com o país, os
meios de comunicação não conferem um certo destaque ao ponto inserir o tema na agenda
mediática nacional como o fariam de se tratasse de uma ex-colónia.
Acerca desta realidade, os jornalistas autores do projecto “A Estrada da Revolução”
transpareceram a sua visão quanto à realidade nacional:
“Não há uma relação dos portugueses com o Médio Oriente, ainda é uma cultura muito distante. Enquanto que numa cultura anglófona como nos Estados Unidos e no Reino Unido, o Médio Oriente ocupa um lugar de destaque nos jornais mais importante devido à importância estratégica, aqui em Portugal é uma realidade bastante distante. Como nós nunca fomos vítimas, felizmente, de atentados terroristas nos últimos anos, como não temos, pelo menos que se saiba, células implantadas como em Espanha, eu acho que as pessoas não têm preocupação pelo que se passa na Líbia, ou no Egipto ou na Síria. Claro que, por exemplo estivermos a falar de um conflito ocorrente numa ex-colónia como Timor, Angola, Moçambique, o impacto é outro”.91
Para o jornalista Paulo Nunes dos Santos, correspondente do Jornal Expresso “Há uma falta de
tradição em Portugal de enviar jornalistas para a cobertura de conflitos que não ocorram em países
considerados “amigos” ou com alguma ligação histórica que nos una (fundamentalmente) ”. O que
enfatiza a questão da proximidade cultural. A não existência de laços de amizade, de ligações
históricas e culturais define a relevância que determinado conflito terá na agenda mediática
nacional.
90 O depoimento obtido resultou de uma entrevista realizada ao jornalista no dia 23 de Abril de 2014. Vide mais a este respeito: em anexos 91 . As informações obtidas resultaram de uma entrevista feita aos profissionais no dia 7 de Abril de 2014. Vide a este respeito: Anexos.
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
70
Quanto ao funcionamento do sistema mediático em Portugal, os jornalistas freelancers
ressaltaram uma realidade que embora bastante sentida é pouco retratada. Estes jornalistas
abordaram um pouco da realidade freelancer em Portugal e os entraves que são colocados a estes
profissionais ao nível nacional: “O trabalho freelancer ainda não inspira muita confiança para os
meios de comunicação portugueses”.92
No entanto, a razão mais apontada para a realidade portuguesa face ao tratamento
do conflito da Síria na agenda mediática nacional, acima descrita, com base na visão dos
profissionais dos media em Portugal, foi a falta de recursos económicos que os meios de
comunicação actualmente apresentam, nas palavras do jornalista Paulo Nunes dos Santos:
“Penso que isso se deve também ao facto de a cobertura de conflitos em zonas longínquas
acarretar despesas elevadas que os media em Portugal não estarem dispostos a pagar”.93
Partilhando da mesma opinião, os jornalistas, autores do projecto A Estrada da Revolução
afirmaram:” Estamos numa fase em que os jornais estão a travessar um período de crise, logo
não têm dinheiro para financiar projectos novos, e ainda mais “ambiciosos” como o nosso, o
que traria imensos custos”.94
O sistema mediático nacional ainda é tradicionalista e dá preferência aos assuntos de ordem
nacional em detrimento de uma abrangência de assuntos que, embora não próximos da cultura
portuguesa são relevantes para a comunidade internacional em si e para a formação da opinião
pública nacional. Devido à escassez deste tipo de abordagem por parte dos media nacionais, a opinião
pública nacional torna-se desinformada e com uma voz activa muito pouco significativa.
Para os jornalistas, existe de facto um défice quanto à cobertura dos conflitos internacionais em
Portugal, o que acaba por se reflectir na opinião pública nacional. Nas palavras dos jornalistas,
autores do projecto A Estrada da Revolução: “O que notamos quanto aos conflitos internacionais em
geral é que há uma bipolarização enorme de opiniões. As pessoas não têm conhecimento, então para
elas é quase como um jogo de futebol”.95 Quando questionados sobre a importância que as
coberturas noticiosas podem conferir para a formação da opinião pública e do consequente processo
de tomada de decisão, os profissionais que estiveram em contacto com realidade síria evidenciaram a
importância que as coberturas noticiosas conferem à formação da opinião pública e ao consequente
decision making process. Para o enviado especial da RTP:
“Ser jornalista é ter uma missão social de dar às pessoas instrumentos para que estas possam reflectir melhor sobre o seu tempo, o seu país e o mundo em que vivem (…) portanto, ajudar as pessoas a terem uma melhor opinião, uma opinião
92 Afirmações dos jornalistas autores do projecto A Estrada da Revolução na entrevista realizada no âmbito desta pesquisa no dia 02 de Abril d 2014. Vide a este respeito: em anexos. 93 Afirmação dos jornalistas Tiago Carrasco, João Fontes e João Henriques na entrevista realizada no dia 23 de Abril de 2014. Vide: em anexo. 94 94 O depoimento obtido resultou da entrevista realizada aos jornalistas no dia 02 de Abril de 2014. Vide: em anexo. 95 Afirmação dos jornalistas autores do projecto A Estrada da Revolução na entrevista realizada no âmbito desta pesquisa no dia 02 de Abril de 2014. Vide a este respeito: em anexo.
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
71
mais fundamentada e essa é a nossa grande função. Portanto a nossa presença nos locais de conflito acaba por ser fundamental”.96
O fotojornalista que trabalha com o jornal Expresso, Paulo Nunes dos Santos deu-nos a sua opinião:
“O trabalho dos jornalistas em conflitos é fundamental. Sem eles não há um testemunho
independente e real dos acontecimentos. Gente com poder político, que de certa forma poderá
intervir na resolução de conflitos, dependem de informação séria para poderem analisar e tomar
decisões sobre como e quando actuar. Por outro lado, se estes políticos quiserem ignorar as
atrocidades de guerra em geral, é a nossa função fazer com que não os ignorem”.97
4.3. A influência da política sobre as formas de mediatização: Os
interesses portugueses e os constrangimentos da política
internacional face à cobertura dos conflitos internacionais nos
media portugueses
Os exemplos apresentados no capítulo III ilustraram um pouco da forma como os interesses
políticos podem condicionar o rumo das coberturas noticiosas. Para os jornalistas, os interesses
políticos podem em muitos casos constituir um entrave constante na sua luta pela exposição da
realidade e para o consequente processo de formação de opinião pública. Há diversas formas da
política causar constrangimentos ao trabalho dos jornalistas de forma a condicionar o rumo das
coberturas noticiosas.
No conflito da Síria, embora nenhum dos jornalistas portugueses, que tenha estado no país,
tivesse sentido algum tipo de entrave por parte das entidades portuguesas, o panorama não foi o
mesmo no que respeita ao governo Sírio.
Como foi retratado no capítulo anterior, o governo de Assad desencadeou uma série de medidas
que dificultaram as coberturas noticiosas dos media, e os jornalistas portugueses não ficaram imunes
a essa repressão. Nas palavras do correspondente da RTP, Paulo Dentinho: ”Levei 7 meses para
conseguir um visto para lá entrar98”; o que representa a influência da política, como entrave à
mediatização. Ao colocar este tipo de entraves à entrada dos jornalistas no território sírio, o governo
deste país consegue “omitir” ao mundo certos factos da verdadeira realidade do conflito!
Para os freelancers, autores de A Estrada da Revolução a sua experiência focaram também uma
realidade que embora bastante sentida seja pouco retratada. Os profissionais abordaram um pouco
da realidade freelancer em Portugal e os entraves que são colocados a estes profissionais ao nível
96
Afirmação do jornalista Paulo Dentinho na entrevista realizada no dia 21 de Abril de 2014. Vide a este respeito: em anexos a edição da entrevista. 97 Afirmação do jornalista Paulo Nunes dos Santos na entrevista realizada no dia 23 de Abril de 2014. Vide a este respeito: em anexo 98
O depoimento do jornalista Paulo Dentinho resultou da entrevista realizada ao mesmo no dia 21 de Abril de 2014. Vide mais a este respeito: nos anexos
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
72
nacional: “O trabalho freelancer ainda não inspira muita confiança para os meios de comunicação
portugueses”. Uma vez que a entrada destes no território sírio foi deita de forma clandestina e com a
ajuda de rebeldes. Segundo os jornalistas: “a cobertura do conflito na Síria foi feita, quase
exclusivamente por freelancers”.99 O interesse que o governo de Assad tem em manter
desconhecida a realidade do conflito sírio para a comunidade internacional ficou bem
explicita pelos entraves colocados à entrada dos jornalistas no país.
No entanto o conflito sírio é muito mais complexo no domínio da reconfiguração do
sistema internacional, do que se apresenta pelos meios meios de comunicação social. Em
algumas situações a análise dos conflitos sob as “lentes” da reportagem apresentam uma
visão redutora e demasiado simplista dos inputs e outputs dos conflitos internacionais,
nomeadamente e numa lógica realista, os interesses estatais. O enviado especial da RTP, Paulo
Dentinho explicou o funcionamento dos interesses económicos e comerciais, salientando a relevância
dos interesses políticos que estão por detrás do apoio ocidental à causa do povo sírio, assim como o
funcionamento do apoio prestado à oposição por parte da comunidade internacional, que por sua vez
funciona no seguimento do sistema de alianças em que os Estados consoante os interesses que têm se
unem no combate ao “inimigo”. Nas palavras do jornalista:
“No caso da Síria existem factores que são muito importantes e que eu só descobri porque lá estive e porque estive disponível para descobrir outras coisas. O Qatar e a Arabia Saudita têm grandes interesses no mundo ocidental, por exemplo em Paris, o Qatar tem investimentos de milhões. Comprou o Pari Saint Germain tem os dois principais canais de comunicação de desporto na televisão francesa, portanto há aqui grandes investimentos. Além dos investimentos comerciais, há uma relação muito forte que está relacionada com os recursos que esses dois países têm, gás natural no caso do Qatar e petróleo no caso da Arabia Saudita. Para o regime ditatorial de Damasco, que cometeu atrocidades e que tem como padrinhos os russos, não há ligações comerciais com os países do Golfo: Qatar e Arabia Saudita, portanto a Arabia Saudita e o Qatar não podem fazer nenhuma pressão sobre a Rússia naquilo que constitui as relações de “força”. Por tudo isso é que digo que não há bons nem maus. São todos maus”.100
Em suma, as dificuldades no acesso ao território sírio, aliadas ao ambiente repressivo que se
vive no país assim como o desrespeito ao trabalho dos jornalistas na região não lhes garante
protecção, pelo contrário só contribui para que as suas vidas estejam em risco, o que dificulta a
mediatização do conflito, não só pelos media portugueses, como no geral. A este respeito o jornalista
Paulo Nunes dos Santos afirmou na entrevista realizada:
“A cobertura da guerra da Síria em Portugal tem acompanhado o mesmo ritmo que em outros países, desde o início até agora. Com períodos mais mediáticos que outros. Mas isso é natural quando se trata de uma história/conflito que dure tanto tempo”.101
99 O Depoimentos dos jornalistas Tiago Carrasco e João Henriques resultou da entrevista realizada aos mesmos no dia 7 de Abril de 2014. 100 Afirmação do jornalista Paulo Dentinho na entrevista realizada no âmbito desta pesquisa no dia 21 de Abril de 2014. Vide a este respeito: em anexo a edição da entrevista. 101 . As informações obtidas resultaram de uma entrevista feita ao jornalista. Vide a este respeito: Anexos.
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
73
CONCLUSÃO
A problemática que pautou este trabalho de investigação foi a de tentar saber se os
media condicionam o processo de tomada de decisão dos Estados e se simultaneamente as
políticas dos Estados no domínio da segurança e da defesa tem implicações no escrutínio das
coberturas noticiosas por parte dos media. O processo dialético de influência e contra-
influência das variáveis. Uma análise inicial ao enquadramento epistemológico das teorias das
relações internacionais mostra a importância das normas, das ideias e dos valores na
construção da política Internacional. Sob a égide construtivista observa-se ainda a
importância de vários actores e agentes na construção da realidade social e na formação
ontológica da conduta dos Estados. Nesta perspectiva encontramos também, e relativamente
aos estudos da comunicação, a importância do agendamento e do enquadramento nas
coberturas mediáticas.
Mas serão estas coberturas mediáticas realizadas segundo as políticas editoriais de
cada órgão de comunicação social? Ou a própria agenda é definida pela política internacional
de cada Estado? Ainda de maior pertinência colocámos outra questão: Condicionará a
cobertura mediática dos conflitos internacionais o processo de tomada de decisão por parte
dos governos? Com vista a uma melhor compreensão do fenómeno do efeito CNN nas relações
internacionais, esta investigação analisou como estudo de caso, a cobertura mediática do
conflito da Síria, entre 2010 e 2011, por parte dos órgãos de comunicação social portugueses.
De que forma a mediatização dos conflitos em vários países no norte de África durante a
Primavera Árabe catalisaram a emancipação do povo sírio? Terá sido a cobertura dos media
portugueses sobre o conflito na Síria constrangida pelos interesses de Portugal naquele país?
Na abordagem teórica e conceptual realizada no primeiro capítulo observámos que, e
de acordo com a perspectiva construtivista das Relações Internacionais, a estrutura de todo e
qualquer sistema social – o cenário internacional é uma forma ampliada de sistema social
complexo – o qual é composto de três fatores preponderantes: condições materiais, interesses
e ideias. Cada um desses fatores interage de maneira a construir (e co-construir) o tecido
complexo da política internacional (Castro, 2012: 389). Na realidade concluímos que a
formação da política internacional e do sistema social internacional é moldado por uma
multiplicidade de actores e de agentes, nomeadamente os meios de Comunicação Social.
Como Checkel (1998: 326) refere, o construtivismo concentra-se na interação das estruturas e
agentes uma vez que eles são mutuamente constitutivos, ao invés de explicações casuais. O
pensamento, as ideias e os valores possuem força maior que as estruturas materiais
disponíveis; as crenças intersubjetivas representam os meios (canais) por onde passam os
fluxos de relacionamento internacional; e, por fim, a formação das ideias e dos ideais fazem
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
74
parte da construção dos interesses, das identidades e da consciência partilhada dos agentes
internacionais. Com efeito, os jornalistas contribuem diariamente na formação não só das
identidades e da cultura dos estados (actores principais no sistema internacional) como na
própria formação de um código de conduta no domínio internacional através do apelo à
responsabilidade de proteger dos Estados.
Na mesma linha epistemológica do construtivismo, mas aplicado aos estudos sobre
Comunicação, entendemos através da teoria do enquadramento que a interpretação do
mundo é moldada pelos diferentes agentes sociais e tipificada pelos jornalistas, por meio das
notícias. Os jornalistas constituem, em boa verdade, verdadeiros agentes na cadeia de
percepções que vão desde o seu leque de experiências individuais até às molduras produzidas
à escala da comunidade interpretativa profissional. Esta performance jornalística não só
reproduz quadros analíticos internacionais como produz o normatividade internacional.
No decurso desta investigação podemos constatar que os meios de comunicação
exercem um papel crucial no funcionamento do sistema internacional, nomeadamente no
processo de tomada de decisão. A actuação dos jornalistas nos conflitos internacionais que
demarcaram o século XX está demonstrada através de vários estudos. Actualmente, as
transformações tecnológicas que modificaram a actuação dos meios de comunicação, e
essencialmente a sua actuação no seio das relações internacionais, intensificaram ainda mais
o poder conferido aos media enquanto agentes das relações internacionais, sendo os mesmos
verdadeiros constrangedores das políticas de segurança e defesa. Parece-nos prematuro a
redefinição do poder dos media como primeiro poder no contexto das relações internacionais.
No entanto, os media confirmam-se como quarto poder no contexto estatal, apresentando-se
hoje como uma das principais ferramentas de ratio decidendi para a intervenção dos Estados
num contexto de ingerência humanitária, dado que, em ultima instância, a legitima.
A mediatização da Primavera Árabe mostrou a importância do efeito CNN, depois da
Guerra do Iraque e do ataque às, depois e o efeito que as suas manifestações conferiram ao
decision making process por parte dos decisores políticos ilustra a nova realidade que abraça
o actual seio da comunidade internacional. Concluímos, no entanto, que a análise do conflito
ainda decorrente na Síria, no período de 2010-2011, inserido no contexto da mediatização dos
conflitos internacionais na agenda-setting portuguesa, possibilitou-nos a compreensão do
sistema mediático em Portugal quanto ao tratamento dos conflitos internacionais: as suas
falhas e o efeito que estas conferem à formação da opinião pública nacional.
A pouca mediatização do conflito da síria na agenda setting nacional, desde o seu
início até a actualidade, não se relacionou com os possíveis constrangimentos causados pelos
interesses políticos de Portugal no conflito, pois como pudemos constatar através da análise
realizada acerca da actuação do país no conflito, Portugal não tem interesses económicos e
geopolíticos que possam prejudicar as suas relações com a Síria; pelo contrário, dentro da
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
75
comunidade internacional, Portugal assumiu uma posição clara ao lado dos seus parceiros
diplomáticos: França e Reino Unido, que se posicionam contra o regime de Assad. Este factor
comprova a não interferência por parte dos interesses políticos portugueses na realização das
poucas coberturas e a mediatização por parte dos media nacionais.
Deste modo, e através das entrevistas realizadas aos jornalistas portugueses que
estiveram na Síria e ao jornalista analista de conflitos internacionais, concluímos que o
verdadeiro entrave à mediatização do conflito sírio em Portugal no período de 2010-2011
deve-se sobretudo ao funcionamento do sistema mediático português, que apresenta algumas
lacunas que passam pela falta de condições monetárias por parte dos meios de comunicação
nacionais para o envio e manutenção dos jornalistas nos locais de conflito, e essencialmente a
falta de tradição em conferir um certo destaque aos conflitos de ordem internacional,
acabando mesmo por negligenciá-los, o que se traduz no pouco interesse que os meios de
comunicação portugueses conferem aos conflitos externos que não impliquem uma relação
directa com Portugal, evidenciando a sua visão redutora. Esta situação acaba por se reflectir
na opinião pública nacional, que, além de pouco informada, não tem voz activa perante o
conflito, apesar de este, devido à sua dimensão, ter contribuído para a alteração do
funcionamento do sistema internacional.
Portanto, a obtenção de tal resultado acerca do funcionamento do sistema mediático
nacional suscitou a seguinte questão, que poderá ela própria constituir uma das
problemáticas para futuras direcções na investigação: Se os media portugueses tivessem
conferido ao conflito ainda ocorrente na Síria um lugar de destaque na agenda mediática
nacional, teriam os nossos decision makers tido um papel mais activo perante o conflito?
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
76
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A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
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ANEXOS
Edição da entrevista realizada ao Paulo Godinho- RTP
Questão: Sentiu pressão por parte das entidades portuguesas na abordagem do tema da Síria?
Resposta: Não, nenhuma, em circunstância alguma.
Questão: sente que houve uma mediatização do conflito da Síria pelos media portugueses?
Resposta: Eu acho que muitos jornalistas vão para os locais do conflito já com uma
formatação mental de quem são os bons e de quem são os maus, isto porque seguem o
modelo da agenda setting americana. E eu aprendi que não há bons nem maus, quanto mais
todos maus. Os sírios… achei-os muito profissionais, muito desconfiados,
Importância das coberturas mediáticas para a tomada de acção dos decision makers
Resposta: ser jornalista é ter uma missão social de dar às pessoas instrumentos para estas
poderem reflectir, melhor sobre o seu tempo, o seu país e o mundo em que vivem e, se nós
podermos dar às pessoas certos inputs que os ajudem a perceber melhor, aquilo que é o nosso
tempo a, nossa vida, nós estamos a cumprir essa missão social e, portanto ajudar as pessoas a
terem melhor opinião, uma opinião mais fundamentada e essa é a nossa grande função.
Portanto, a nossa presença nesses locais acaba por ser fundamental porque em nenhuma
leitura de português europeu, por esta ordem é diferente de um inglês europeu, que é
bastante diferente de um norte-americano, a nossa sensibilidade para as coisas, é outra. Se
nós não formos aos sítios, se nenhum jornalista internacional for aos locais, então a realidade
será transmitida apenas por comunicados do governo. Quando a realidade é transmitida por
comunicados do governo a liberdade está completamente saciada e controlada. Nós tentamos
ir sempre para lá, daquilo que são as proibições governamentais. Eu por exemplo fui preso
três vezes, porque tentei ir lá ver as coisas e contar, enfim acontece!
Como avalia a importância dos media para a tomada de acção dos decision makers
Reposta: eu não faço ideia, não tenho uma relação tão intensa para com estes, admito que
pode desempenhar um papel importante para um decision maker!
E quanto ao conflito da Síria, após a cobertura que o Paulo realizou para a RTP, qual é o
impacto que o Paulo sente que esta teve para agenda mediática e mesmo para as acções
dos decisores políticos? Sente que houve algum impacto ou que simplesmente a situação
manteve-se?
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
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Eu tenho a certeza de que houve algum impacto, porque aquilo que a RTP transmitiu, durante
os breves dias que lá estive ajudou algumas pessoas a pensarem que, talvez as coisas não
fossem exactamente da forma que estavam a ser transmitidas, digo isto pelo que as pessoas
manifestaram nas redes sociais, e que era preciso olhar para essa realidade com outra
liberdade de olhar e não baseada nessa agenda setting pré-estabelecida, como se houvesse
um bom de um lado e o mau do outro, portanto as coisas não são completamente assim era
isso que eu estava a dizer desde o inicio, acho que vivemos num mundo globalizado e
portanto aquilo que se passa na Síria deveria ter um profundo interesse para nós, porque é
uma zona do mundo altamente sensível, perigosa e com uma capacidade de destruição
completamente estrondosa.
Entrevista realizada ao Ricardo Alexandre da Rádio Antena 1
1. De que forma avalia a mediatização do conflito da Síria pelos media portugueses em
2011? E a evolução da mesma ao longo dos 3 anos?
Os media portugueses não são imunes ao arrastar do conflito que, inevitavelmente, acaba por
produzir um efeito de banalização daquilo que, em todas e quaisquer circunstancias, deveria
ser considerado humanamente intolerável. O espaço ao noticiário internacional é reduzido
nos media nacionais, que têm uma visão do mundo muito provinciana, redutora, umbiguista,
diria mesmo e aquilo que deixa de ser novidade, é quase ignorado, raramente fazendo
trabalhos de fundo sobre causas e motivações.
2. Sente que após a realização das coberturas noticiosas acerca da Síria, realizadas pela
antena 1, o tema da Síria ganhou mais destaque na agenda mediática?
Definitivamente, não.
3. Como avalia o desempenho de Portugal perante a Guerra Civil da Síria, desde que esta
teve início em 2011?
O desempenho de um país de pequena dimensão, que respeita compromissos e alianças
internacionais nas quais está integrado. Pouco pode fazer. Faz aquilo que é suposto
fazer no contexto UE e NATO em que está. Ao nível da sociedade civil, adormecida,
como em relação a muitas outras dimensões da nossa vida comum. Louve-se a iniciativa
do ex-Presidente Jorge Sampaio, que criou uma plataforma de apoio a estudantes sírios,
para lhes permitir algum futuro, longe daquele caos.
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
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Entrevista Realizada aos jornalistas freelancers autores do projecto A Estrada da Revolução
1.Porque razão, grande parte das empresas de comunicação portuguesas de comunicação
se recusaram a apoiar o projecto “A estrada da revolução”-
Pode dizer-se que devido à falta de dinheiro por parte dos media e por falta de interesse (o
nosso tema não era considerado um tema de interesse público) para as empresas de
comunicação
João Henriques- Estamos numa fase em que as empresas de comunicação e os jornais em si
estão a atravessar um período de crise, logo não têm dinheiro para financiar projectos novos,
e ainda mais “ambiciosos” como o nosso, o traria imensos custos. O trabalho freelancer ainda
não inspira muita confiança para os meios de comunicação portugueses.
Tiago Carrasco- Há uns anos atrás, a realização deste tipo de projectos partia das redacções
dos jornais, uma iniciativa, do âmbito do nosso projecto vinda da parte de freelancers era
impensável, no entanto o paradigma mudou muito e as redacções dos jornais, já não têm
dinheiro para mandar pessoal dentro, o que favorece os freelancers, no entanto para
obtermos financiamento por parte das empresas de comunicação, torna-se necessário a
existência de uma parte comercial: o projecto tem de ser apelativo no ponto de vista de
marketing e empresarial, para que as empresas privadas entrem com o dinheiro, no nosso
caso, como não temos a vertente comercial, os nossos temas abordavam questões
problemáticas, nomeadamente de guerra, estes são temas que não vendem, não despertam
interesse. Quanto aos media em Portugal, estes não têm dinheiro para financiar projectos
como o nosso que requerem custos.
João Fontes- Houve interesse por parte dos media, no entanto, a situação actual do país
(crise) e o medo de investir, devido ao desconhecimento do nosso trabalho e da nossa
experiência.
2. De que forma avaliam a mediatização do conflito da Síria pelos media portugueses? E a
evolução dessa mesma mediatização ao longo dos três anos?
Tiago Carrasco- Foi quase inexistente, mas não só pelos media Portugueses, a cobertura do
conflito na Síria foi feita, quase exclusivamente por freelancers, muito poucas televisões,
rádios ou jornais enviaram os seus jornalistas para a Síria por ser demasiado perigoso e
demasiado difícil a entrada legal, foi quase toda clandestina, e em Portugal que eu saiba, nós
fizemos a cobertura para o Sol; o José Manuel Resende para a Antena 1 e a RTP com o Paulo
Dentinho
Quanto à evolução da mediatização ao longo dos três anos, está veio a deteriorar-se devido
João Fontes- quando nós partimos para a síria, o tema invadia os meios de comunicação,
inicialmente houve uma grande mediatização, no entanto com o passar do tempo este foi
perdendo destaque, infelizmente, porque continuam a morrer cento e tal pessoas por dia e é
como se nada acontecesse (…) claro que não têm que entrar como um destaque, como a
abertura de um jornal, mas tem que haver uma notícia. Há uma notícia às vezes quando sai
um observatório, uma nota em rodapé uma coisa mínima, mas já não há um destaques e devia
de continuar a haver destaques pelo menos até deixar de ser notícia, porque deixar de ser
notícia é porque já não estará a acontecer nada.
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
91
3. Sentem que após a realização do vosso trabalho, o tema da Síria ganhou algum
destaque na agenda mediática?
João Henriques e Tiago Carrasco- Na altura, sim, mas em seguida rapidamente esfumou-se,
e falou-se dentro de esferas que abrangiam um público mais informado, cerca de 1 mês. Não
há uma relação dos portugueses com o Médio Oriente, ainda é uma cultura muito distante.
Enquanto que numa cultura anglófona, o Médio Oriente ocupa um lugar de destaque nos
jornais mais importantes até pela importância estratégica, aqui em Portugal ainda é uma
cultura muito distante. Como nós nunca fomos vítimas, felizmente de um atentado nos
últimos anos, como não temos, pelo menos que se saiba, células implantadas aqui como em
Espanha existem, por exemplo eu acho que as pessoas não têm grande preocupação pelo que
se passa na Síria ou no Egipto ou ni Líbano, passa-lhes um bocado ao lado. Claro que se
estivermos a falar num conflito numa ex-colónia como em Timor, em Angola ou Moçambique o
impacto é completamente diferente.
João Fontes- Não, quando nós regressamos a mediatização da Síria já estava numa curva
descendente. Claro que houve um certo interesse, mas não tanto pelo tema e sim, pelo nosso
trabalho, e pela nossa experiência. Houve sim mediatização, mas pelo nosso trabalho e não
pelo tema em si da Síria.
4. Sentiram pressão por parte das entidades portuguesas na abordagem do tema? E quanto
á liberdade, na abordagem do mesmo tema?
João Henriques e Tiago Carrasco- Não, no nosso trabalho não sentimos nenhuma repressão
Ou controle para com o nosso trabalho.
Notámos que em tudo que seja conflitos internacionais, há uma bipolarização enorme de
opiniões, ou seja não as pessoas não têm conhecimento, então para eles é como se fosse um
jogo de futebol. Os comentários ao nosso artigo no site do sol dividiam-se naqueles que
achavam que nós estávamos ao serviço da cia, por o artigo ter um teor muito mais pro
exército livre da Síria do que pro Bashar e os que achavam que o nosso trabalho tinha sido
muito bem feito. Depois há um grande desconhecimento chamam terroristas a todos que
vivem naquela zona. As pessoas não têm uma ideia definida do que se passa ali.
João Fontes- Sentimos total liberdade na abordagem do nosso tema, sem qualquer restrição
ao nosso trabalho. Sentimos sim, foi uma grande pressão, no sentido de nos apoiarem a entrar
na Síria, mas sim pela parte dos serviços secretos portugueses.
5. Como avaliam o trabalho dos profissionais dos meios de comunicação, em situações de
guerra, como a da Síria, para a actuação dos decisores políticos sobre esses mesmos
conflitos?
João Henriques- Desde sempre, que seja pelo texto, ou pela imagem, o vídeo, o papel dos
jornalistas sempre actuou como instância decisora junto dos políticos, ou seja, se os
jornalistas, os repórteres não se arriscarem a lá estar a sua ausência vai ser sentida pelos
decisores políticos.
Tiago Carrasco- Eu acho que esta guerra da Síria é talvez a primeira guerra em que as
decisões são tomadas pelo You Tube e essa é uma grande inversão. Isso é bom por um lado,
porque numa guerra em que não há muitos correspondentes estrangeiros lá, o repórter
cidadão teve um papel fundamental lá e muitos deles têm uma coragem inacreditável.
João Fontes- Os media tem toda a importância para a tomada de decisões politicas, ou
deveriam ter. Os media podem mostrar ao mundo o que se está a passar e a partir disso
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
92
gerar-se uma pressão social junto dos governos para os pressionar a agirem relativamente ao
que se está a passar. Não acho que os media tenham impacto directo para a tomada de
decisão, penso sim que estes possam de forma indirecta fazer com que a sociedade e outras
entidades pressionem os governos, para que estes, sim tomem decisões. Daí ter tanta pena
que não continuem a ocorrer notícias sobre a Síria, porque se houvesse constantemente
notícias eu creio que o conflito já se tivesse resolvido.
Entrevista realizada ao jornalista Paulo Nunes dos Santos
1- De que forma avalia a mediatização do conflito da Síria pelos media portugueses? E a
evolução da mesma ao longo dos 3 anos?
Segundo o meu conhecimento, o conflito na Síria tem sido coberto em Portugal tem sido feita
maioritariamente através de informação obtida por agências noticiosas, nomeadamente
Reuters, AFP e AP. À excepção do Expresso e SIC notícias, para os quais tenho sido eu, desde
o início do conflito, quem tem feito reportagens no terreno, penso que somente o Público
enviou alguém ao terreno para fazer trabalhos de cobertura na primeira pessoa. Tenho
conhecimento que também o Jornal i tenha publicado uma reportagem no início de 2012,
escrita por um colega que esteve na Síria mas como freelancer, e terá então mais tarde
publicado com eles.
A razão para a falta de repórteres portuguese no terreno, deve-se na minha opinião à falta de
uma tradição em Portugal em enviar jornalistas para a cobertura de conflitos que não sejam
em países considerados “amigos” ou com alguma ligação histórica que nos una (África
fundamentalmente). Acontece por vezes em outras regiões do mundo, mas tradicionalmente
só se forem em países geograficamente próximos. Penso que isto se deve também ao facto de
a cobertura de conflitos em zonas longínquas acarretar despesas elevadas que os media em
Portugal (em um pouco por toda a Europa) não estarem dispostos a pagar. No caso do
Expresso, e só posso mesmo falar neste caso por ser o único que realmente conhece de perto,
têm uma história de apostar em reportagens unidas no terreno. Primam por isso na minha
opinião. E é isso que os torna num jornal de referência e único em Portugal.
Quanto à qualidade em geral da cobertura deste conflito nos órgãos de comunicação social
nacionais, prefiro deixar essa análise para o público em geral. No entanto, penso estar ao
nível da maioria dos órgãos de comunicação internacionais, visto que a informação base para
as noticias que se publicam, é proveniente da mesma fonte: as agências noticiosas.
A cobertura da guerra Síria em Portugal tem acompanhado o mesmo ritmo que em outros
países, desde o inicio até agora. Com períodos mais mediáticos que outros. Mas isso é natural
quando se trata de uma historia/conflito que durante tanto tempo.
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
93
2- Sente que após a realização do seu trabalho sobre o conflito, o tema da Síria ganhou
mais destaque na agenda mediática?
Penso que sim. Principalmente desde a minha primeira reportagem no final de 2011. Até essa
altura, menos de meia dúzia de jornalistas tinham conseguido acesso às forças rebeldes. E o
governo restringia muito a entrada de jornalistas estrangeiros no país. Mais tarde, com um
maior avanço e controlo do norte do país por parte das forças rebeldes o caso começou a
tornar-se mais fácil. A dada altura, em Alepo por exemplo, tornou-se nu “circo” mediático. O
acesso era muito fácil e os riscos eram menos.
Actualmente já não é assim. Com o crescendo de grupos radicais islâmicos nessa parte do
país, começou a haver muitos casos de raptos entre jornalistas estrangeiros, e isso fez com
que muita gente optasse por não entrar. Mesmo os grandes meios de comunicação social
começaram a deixar de enviar repórteres à Síria. Com isso começou-se a perder um pouco o
mediatismo sobre a historia e consequentemente começou-se a recorrer novamente às
agencias noticiosas, que têm mantido repórteres locais.
3- Tendo em conta a sua experiência profissional e principalmente a sua experiência em
situações de guerra, como avalia o impacto que as imagens (sobre os conflito da síria)
exerceram na formação da opinião pública acerca do conflito?
Imagens pesam muito na opinião que o publico em geral forma sobre qualquer assunto.
Principalmente conflito, onde imagens de atrocidades e desespero são produzidas. Causam
impacto e de certa maneira mantêm a história “viva”. Sem estas imagens, o mundo
facilmente esquece o que ali está a acontecer. São necessárias imagens que nos choquem
para que se mantenha o interesse sobre um assunto. Especialmente quando esse assunto está
a ocorrer em partes longínquas que muito pouco conhecemos.
Veja-se o exemplo da fotografia tirada por Kevin Carter no Sudão do Sul. A imagem com o
abutre junto de uma criança faminta. Muita gente sabe sobre a fome generalizada em Africa,
muitos conhecem esta fotografia, mas pouca gente sabe onde foi tirada. Basicamente,
conhece-se a imagem mas não se sabe muito sobre a história que representa. No entanto,
será sempre um ícone da fome em Africa. Ficará para sempre na história. E será para sempre
a imagem que salta à memória quando se fala de fome em África.
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
94
4- Como avalia o trabalho dos profissionais dos meios de comunicação, em situações de
guerra, como a da Síria, para a actuação dos decisores políticos sobre esse mesmo
conflito?
O trabalho de jornalistas em conflito é fundamental. Sem eles não há um testemunho
independente e real dos acontecimentos. É assim e na minha opinião sempre o será. Os
chamados “Citizen Journalists” ou activistas, nunca poderão tomar o lugar de um jornalista.
Caso contrário começa-se a duvidar da veracidade da informação disponível para o público e
entra-se num cenário de possível propaganda, que sem ser verificada pode e serve interesses
das partes envolvidas no conflito.
Gente com poder político, que de certa forma poderá intervir na resolução de conflitos,
dependem em informação seria e viável para poder analisar e tomar decisões sobre como e
quando actuar. Por outro lado, se estes decisores políticos quiserem ignorar atrocidades de
guerra ou a guerra em geral, é a nossa função fazer com que não os ignorem. Os meios de
comunicação têm esse poder. O poder de manter “viva” uma historia e por vezes usar o
testemunho viável de um jornalista como prova de crimes, atrocidades e injustiças que
tradicionalmente se praticam em guerras e conflitos.
5- A seu ver, como avalia o impacto que as imagens dos conflitos de guerra, a fotografia,
exercem na tomada de decisões, e junto da opinião pública?
Imagens sejam elas fotográficas ou vídeo, são fundamentais na cobertura de guerra. São
talvez a peça mais importante no poder de formação de opinião pública e podem exercer uma
pressão inigualável junto dos poderes de decisão. Servem de testemunho e causam impacto
único.
Daqui a uns anos quando a guerra na Síria estiver terminada, muita pouca gente se irá
lembrar de reportagens (texto) fabulosas feitas durante a guerra. Mas garantidamente, muitos
se irai recordar de imagens dos bombardeamentos de Alepo ou Homs. São essas imagens que
ficam para a história. São essas imagens que nos ficam gravadas na memória e irão sempre
servir para ilustrar textos ou livros sobre este assunto daqui a dez, quinze, vinte ou cinquenta
anos.
É assim desde a guerra civil nos Estado Unidos da América, quando surgiram as primeiras
fotografias de guerra de sempre. E estou convencido que será sempre assim.
Entrevista realizada ao diplomata Diogo Rocha
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
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Q1: Quando e porquê começaram as relações diplomáticas entre os dois países? A situação
actual das relações diplomáticas entre os dois Estados?
R: As relações diplomáticas entre Portugal e a República Árabe Síria foram estabelecidas em
20 de Fevereiro de 1975. Em 10 de Maio de 1977, Roberto Nuno Pereira de Sousa, Embaixador no
Cairo, apresentou credenciais como Embaixador não residente na Síria. Na sequência de
reformulação de jurisdições, o Embaixador residente em Nicósia passou a estar acreditado como não
residente em Damasco. A representação diplomática Síria em Portugal é assegurada pela Embaixada
da República Árabe Síria em Paris.
Q2: Acordos assinados entre os dois países?
R: De acordo com os registos disponíveis, não existem acordos assinados entre Portugal e a República
Árabe Síria.
Q3: O volume de negociações entre os dois países (principais exportações e importações)
e principais bens e serviços envolvidos.
R: O volume de negócios entre Portugal e a República Árabe Síria é praticamente nulo. Em 2012
(últimos dados disponíveis) corresponderam a 0,02% do total das exportações portuguesas, e a menos
0,01% do total das importações.
Os principais produtos exportados para a Síria no mesmo ano foram papel e outras pastas celulósicas;
matérias têxteis; produtos agrícolas; máquinas e aparelhos e produtos alimentares, com um valor
total estimado de 6.9 milhões de Euros. Os principais produtos importa1dos da Síria foram matérias
têxteis; minerais e minérios e ainda plásticos e borracha, num valor total estimado de 1.6 milhões de
Euros.
Q4: O número de cidadãos sírios residentes em Portugal e vice-versa; número de refugiados sírios
em Portugal.
R: Neste momento, temos registo de dois (2) cidadãos portugueses a residir na Síria. Já em Portugal
residem, de acordo com dados de 2012, trinta e quatro (34) cidadãos sírios. Por questões de
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
96
segurança, a informação sobre o número de refugiados sírios em Portugal só poderá ser divulgado
mediante pedido de autorização ao Ministério da Administração Interna – Serviço de Estrangeiros e
Fronteiras (SEF).
No âmbito da Plataforma Global de Assistência Académica de Emergência, uma iniciativa do
antigo Presidente da República e ex-Alto-Representante para a Aliança das Civilizações, o Dr. Jorge
Sampaio, encontram-se em Portugal, desde o dia 1 de Março, 42 estudantes sírios, a frequentar
diversas instituições de ensino superior nacionais.
Q5: As respostas de Portugal em relação ao conflito na Síria.
R: Portugal defendeu sempre uma solução política para o conflito Sírio, que preserve a integridade
territorial do país e assegure um regime democrático em que as várias componentes étnicas e
religiosas dos países vejam os seus interesses representados. Portugal também sempre defendeu um
papel para as Nações Unidas, e o Conselho de Segurança em particular, na resolução do conflito sírio.
Enquanto membro não-permanente do Conselho Portugal defendeu soluções de compromisso que
permitissem ao Conselho desempenhar o seu papel e tentou mediar entre as posições mais
extremadas de alguns dos membros, com vista criar consenso necessário a qualquer acção
significativa do Conselho. Portugal tem participado na elaboração e apoiado as posições da UE sobre o
conflito sírio. Do ponto de vista humanitário Portugal já contribuiu com 130,000 Euros para ajuda a
refugiados sírios.
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
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Fotografias fornecidas pelos jornalistas freelancers autores do projecto A Estrada da Revolução
Figura 1- Rebeldes na Síria. Fotografia tirada pelo jornalista João Fontes de A Estrada da Revolução
Figura 2- Cidadã síria. Fotografia tirada pelo jornalista João Fontes de A Estrada da Revolução
A cobertura dos repórteres de guerra na Síria durante a primavera Árabe
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Figura 3- Jornalistas autores do projecto A Estrada da Revolução na realização da reportagem sobre
o conflito sírio.
Figura 4- Rebeldes sírios. Fotografia retirada pelo jornalista João Fontes de A Estrada da Revolução.