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IMORTAL ENQUANTO DURE... ANIMAIS, TAXIDERMIA E OBJETOS DO MAL NA ARTE
Marize Malta / UFRJ RESUMO O sculo XIX foi prdigo em colees de animais enclausurados em redomas, preservados graas tcnica da taxidermia. Consideradas peas de mau gosto, criaes hediondas, artefatos execrados pelas crticas e histrias da arte modernistas, elas esto de volta e podem nos ajudar a pensar nos limites dos campos disciplinares da arte e da cincia natural, da dicotomia forma-contedo, natureza-cultura, daquilo que tem nima e inanimado, da mmeses e da realidade, e a explorar essas fronteiras, permitindo-nos repens-las, como as questes do bem e do mal na arte. PALAVRAS-CHAVE objetos do mal; taxidermia; animais empalhados; colees de arte. ABSTRACT The nineteenth century was lavish in collections of animals enclosed in domes, preserved due to the technique of taxidermy. Considered as distasteful objects, hideous creations, execrated artifacts by criticism and modernists histories of art, they came back and can help us to think about the limits of the disciplines of art and natural science, the dichotomy form-content, nature and culture, in what has anima and is inanimate, the mimesis and reality, and to explore these boundaries, allowing us to rethink them, as the questions of good and evil in art. KEYWORDS evil things; taxidermy; stuffed animals; art collections.
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Natureza empalhada
O sculo XIX foi prdigo em colees de animais enclausurados em redomas,
aqurios, dioramas, preservados graas tcnica da taxidermia, seja em museus de
histria natural, seja no ambiente domstico, trazendo uma nota extica
decorao, ou ainda em composies artsticas de amadores que se compraziam
em montar cenas de gnero com vrios animaizinhos mortos, como o ingls Walter
Potter.
Consideradas peas de mau gosto, criaes hediondas, artefatos execrados pelas
crticas e histrias da arte modernistas, durante boa parte do sculo XX, esses
bibels de animais empalhados foram encerrados em pores durante dcadas,
escondidos de modo a no envergonhar seus herdeiros involuntrios. Com a
perspectiva do ecologicamente correto e dos movimentos de proteo aos animais,
os bichos empalhados para a decorao ou instalaes artsticas se tornaram ainda
mais condenveis socialmente, verdadeiros objetos do mal.
Recentemente, em feiras de antiguidades (March aux Puces), expostos em museus
(Coleo Geyer, Quinta da Macieirinha, Museu Deyrolle), em propostas artsticas
(Nelson Leirner, Alex Fleming) ou em colees atuais (Damien Hirst), assistimos
volta dos mortos-vivos. Com um mercado que favorece a emergncia dos incautos
animais empalhados, colees antigas emergem, peas em reserva tcnica
reaparecem e o debate sobre os animais em relao superioridade humana volta
tona, bem como a atribuio de objetos de arte malditos passa por uma reviso.
Animais-acervos
Os museus de histria natural desenvolvidos no sculo XIX compunham verdadeiras
catedrais da natureza, morada de um reino sacralizado de animais e demais
exemplares da Terra, onde se podia ter acesso a uma cultura cientfica ritualizada a
partir da redeno da morte das espcimes que abrigavam.Como prtica expositiva,
muitos animais de locais longnquos foram postos em dioramas, simulando os
cenrios em que viviam e criando a sensao de que estavam nos lugares certos.
Os dioramas reafirmavam a importncia da ambientao para compreender
conformaes e comportamentos, interpretando a total comunho entre espcie e
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meio, situao que dilua a incongruncia estapafrdia de se encontrar bichos
selvagens e silvestres enclausurados em edifcios, chamados museus. Mais do que
exemplos da natureza, tais acervos so importantes para compreender as formas
como foram dados a ver, misteriosamente reais e esteticamente compostos ao
olhar dos visitantes, procurando dissimular o processo que levou a estarem naquele
lugar e daquela maneira. Os dioramas so sintomas da prpria histria da
humanidade e se apresentam como um altar lateral, um palco, um jardim intocado
na natureza, um lar para casa e famlia (HARAWAY, 198485, p. 24), para alm da
oportunidade de ter experincias pedaggicas com animais.
A eternizao de animais como peas de museu transforma a condio natural em
artificial, a situao de mortos em pea viva (objeto falante) e, com o passar das
geraes (muitos museus j chegaram aos seus cem anos), assumem o papel de
relquia cultural, enfraquecendo sua potncia como exemplo da natureza ou seu
poder mimtico (muitos j esto desbotados e desengonados), pois, afinal, o que
est em exibio no tanto a natureza mas viso e manipulao da natureza de
uma poca passada.
A recolha de exemplares exticos, h sculos atrs, tambm diz da cumplicidade
com o projeto colonial, com suas colees tomadas como arquivos imperiais,
travestidos em ddivas universais da Terra. Ao se acessar as reservas tcnicas dos
grandes museus de histria natural surpreendente percebermos a quantidade
colossal de arquivos de bichos empalhados e dissecados, mantidos em vidros,
gavetas, armrios, todos reunidos em grupos de similaridade, cuja situao permite
verificar as pequenas diferenas entre os iguais, compartimentados em estritas
classificaes, que buscavam esclarecer todas as mincias da natureza e delimitar
seus lugares no universo. Normalmente, eram os pases ditos perifricos que
forneciam o principal manancial de exemplares para prover os museus europeus (e
depois americanos) de fontes de conhecimento, que eram devolvidos a eles como
formas corretas de serem olhados e compreendidos.
O desejo pelo conhecimento cientfico em uma escala domstica promoveu milhares
de colecionadores de besouros e borboletas no sculo XIX que, para serem
admirados ao bel prazer, sob a gide da conquista do saber, eram preservados
espetados em pranchas que jaziam em gavetas, vitrines ou quadros emoldurados,
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como minimuseus de histria natural. Os insetos demandavam habilidades menos
especializadas para serem preservados e guardados, alm de sua dimenso se
adequar facilmente em mveis, bem acomodados nos cmodos de uma residncia.
Depois dos insetos, os pssaros foram os animais preferidos para passarem pelo
empalhamento e acmulo colecionista em casa.
No Brasil, Casa dos Pssaros foi o nome adotado pela populao da cidade do Rio
de JaneiroCasa de Histria Natural por causa de uns poucos exemplares
ornintolgicos empalhados que encerrava (OLIVEIRA, 2005, p. 267), que
funcionava tambm como uma espcie de entreposto colonial para envio de
produtos metrpole (LOPES, 1997, p. 38) e que ficou a cargo de Xavier dos
Pssaros (Francisco Xavier Cardoso Caldeira)(falecido em 1810), artista catarinense
especializado em trabalhos com penas e conchas (MACOWIECKY; DIDON, 2015,
p. 75). Os pssaros brasileiros eram atrativos no mercado europeu, sedento por
novidade e pelo interesse nas cincias naturais como passatempo. Antes da
comercializao de pssaros, o interesse por penas j vinha de longa data,
remontando aos primrdios da colonizao, quando ndios Tupinambsmantinham
negcios com franceses, holandeses e portugueses, que empregavam as vistosas
penas em abanos, flores e artefatos para uso nos gabinetes de curiosidades (VOLPI,
2016, p. 130131).
Xavier dos Pssaros foi provavelmente um dos primeiros no Brasil a desenvolver a
taxidermia para criar um acervo de estudode cincia natural e talvez tenha se
dedicado tambm confeco de objetos com pssaros empalhados,visando a
exportao para Europa, como j vinha se praticando no Brasil. Foi somente a partir
do desenvolvimento da tcnica da taxidermia quando se tornou possvel estancar o
tempo da degradao sobre os animais, aps a morte. Assim, milhares de pssaros
puderam atravessar os oceanos e manterem sua aparncia quando em vida e serem
cuidadosamente observados ao vivo.
Os tons cintilantes dos pequeninos colibris eram altamente cobiados na Europa,
promovendo, por consequncia, grandes matanas por toda Amrica Central e do
Sul. H notcia de que um comerciante ingls tenha levado, em uma nica carga,
cerca de 32 mil beija-flores, alm de outros pssaros (JOHNSTON; KITE;
PERSSON, 2009, p. 108). Tamanha quantidade no servia apenas para compor os
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acervos dos nascentes museus de histria natural ou das colees de amadores.
Muitos se transformaram em objetos decorativos, em adornos vestimentares, em
enfeites de abanos de plumas. Junto com os beija-flores, outros passarinhos de
cores atraentes viraram bibels.
Animais-bibels
Durante o sculo XIX, as gaiolas com pssaros costumavam ambientar os jardins de
inverno, ptios ou varandas, lugarespreferidos do convvio familiar dirio nas
grandes casas da elite, geralmente cercadas de muita vegetao, fontes de gua,
mveis e objetos exticos como a natureza que se enclausurava naquele lugar,
construindo a sensao de se estar em um paraso particular. Para o poeta Walt
Whitman, o gorjeio alegre de seu canrio enchia o ar, o quarto solitrio, a longa
manh1, como um ser vivo que animava aquele recinto, repleto de coisas inertes e
inanimadas.
A companhia de pssaros exticos vinha de longa data. Podemos encontrar em
inmeras pinturas de retratos de Corte na Europa, do sculo XVI ao XVIII, com
destaque para crianas e jovens, a presena de periquitos, papagaios, maritacas,
pintassilgos, animais de outros continentes, modalidades de brinquedinhos de
exceo de prncipes e princesas. Foi a partir do sculo XVII que a moda de manter
pssaros em gaiolas impregnou a sociedade de corte na Frana e na Inglaterra,
promovendo a sofisticao dos modelos, finamente ornamentados e fabricados com
materiais nobres. Retratos ou mesmo cenas de gnero com pssaros no
arrefeceram no sculo XIX, encontrando-se, inclusive, artistas com especial
interesse em pintar pssaros, como o ingls Henry Stacy Marks.
A companhia de bichinhos de estimao exticos e raros implicava distino social e
de dominao/domesticao sobre o selvagem, e demarca uma prtica de longa
durao, incrementando um comrcio de trfico de animais que alimentou o
imaginrio europeu e ampliou consideravelmente no sculo XIX por um gosto
burgus alargado, o de possuir gaiolas com pssaros vivos ou empalhados em casa.
Na Casa Geyer (figura 1), no Rio de Janeiro, na Quinta da Macieirinha (figura 2), na
cidade do Porto, no Museu do Romantismo (figura 3), em Madri, h o mesmo
modelo de gaiola dourada com pssaros empalhados no seu interior. Impedidos de
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cantar, eles encenam a condio de animais cantantes por meio de caixas de
msica que se encontram na base da gaiola. Possuir pequeninos pssaros
cantantes permitia gozar da experincia visual aliada sonora, pois se desejava
uma unio harmnica entre a beleza do artefato que aprisionava o animal, a
exuberncia das penas e a melodia agradvel do canto, dificilmente fornecido em
equilbrio in natura.
As gaiolas com pssaros autmatos foram fabricadas desde o sculo XVIII,
especialmente em Genebra e Paris, como a gaiola da Casa Geyer, que carrega a
marca made in France. Elas costumavam ser em bronze dourado a fogo e
anunciavam a qualidade do trabalho empreendido, tendo os nomes de Jaquet-Droz,
Leschot, Flojoulot, irmos Rochat como sinnimo de qualidade inconteste. A
taxidermia era acoplada ao processo de automao dos pssaros para que muitos
deles se mexessem quando o mecanismo de corda fosse acionado, dando a
sensao de que estavam ainda a viver. A caixa de msica, incorporada base,
guardava um delicado e complexo mecanismo de foles que procurava reproduzir os
trinados dos pssaros2.
Fig. 1 Gaiola com caixa de msica e pssaros empalhados / Casa Geyer, Rio de Janeiro, 2015 Fig. 2 Gaiola com caixa de msica e pssaros empalhados / Quinta da Macieirinha, Porto, 2014 Fig. 3 Gaiola com caixa de msica e pssaro empalhado / Museu do Romantismo, Madri, 2011
no mnimo curioso que os pssaros exticos, provenientes de pases no
europeus, tenham retornado aos seus lugares de origem como itens de decorao,
caso da gaiola musical, de fabricao francesa, hoje em um acervo brasileiro, na
coleo Geyer. Aqueles bichos empalhados, que poderiam ter sido taxidermizados
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no Brasil, voltaram enquadrados para serem visualizados e ouvidos por filtros
europeus, ratificando uma forma controlada e civilizada de olhar e de ouvir.
A unio entre o natural e o tecnolgico no campo artstico manteve-se como questo na
contemporaneidade. Agrupando coisas impensadas, a artista neozelandesa Lisa Black
acomoda dispositivos mecnicos em partes dos corpos de bichos taxidermizados,
deixando-os visveis. Relgios, engrenagens e movimentos foram inseridos naquilo cuja
vida como bicho estancou, mas que como objeto permaneceu vivo. Os ponteiros
continuam a se mexer, medindo o percurso no tempo da coisa-bicho. Em vez de
gorjeios, urros e miados, o tic-tac soa e os crculos denteados rangem, anunciando sons
de outra natureza que envolvem outras percepes, nada triviais.
Voltando para o sculo XIX, alm da composio de bichos com engrenagens e
sons, foram tambm muito frequentes as composies em redomas de vidro (figuras
4, 5 e 6). Protegidos da poeira, borboletas multicoloridas ou pssaros com suas
penugens atraentes,j taxidermizados,tinham estancada a ao da degradao do
tempo, dando condies aos animais de serem preservados por longos anos a partir
de vontade e ao humana de controle e poder. No retrato de 1823 de Maria
Francisca de Bragana (figura 4), filha de D. Joo VI e Carlota Joaquina, casada
com Carlos de Bourbon, irmo do rei espanhol Fernando II, a retratada exibe uma
rica indumentria e um exuberante toucado de cabea. Como um luxuoso
complemento, apresenta-se, esquerda da tela, um grupo de pssaros encerrados
em redoma de vidro, dentre eles um papagaio, acompanhado por outros pssaros
exticos, possivelmente presente do seu irmo, imperador do Brasil.Sua posio
inspirava superioridade quela natureza, simbolicamente to rica quanto sua
roupagem, e lembrava do projeto de dominao da civilizao sobre a selvageria,
destino reservado ao seu irmo Pedro I, que deveria domar aquelas terras, cheias
de natureza, que se tornara independente h bem pouco tempo.
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Fig. 4 Retrato da Infanta Maria Francisca de Portugal, 1823 / Vicente Lpez Portaa Fig. 5 Arranjo de pssaros em redoma de vidro / MarchauxPuces, Paris, 2012
Fig. 6 Arranjo de pssaros em redoma de vidro / Museu Gustave Moreau, Paris, 2012
Nas redomas, a cultura triunfava sobre a natureza, ordenada e preservada em
minidioramas ou peas fantasiosas, reunindo uma babel de origens geogrficas,
cujas vizinhanas jamais seriam encontradas na natureza. Ao fcil acesso dos olhos,
ao seguro alcance das mos, os animais naquela situao decorativa ofertavam
mais um atrativo esttico domstico, subjugados outra natureza, a natureza dos
bibels. As peas ganhavam posio de destaque na decorao de interiores e
permitiam outras experincias visuais a cada visada, quando novos detalhes eram
percebidos.
Ao entrarem para dentro das casas, frente ao processo de domesticao, os bichos
preservados assumiam lugar de trofus, confirmando a superioridade do homem
moderno e civilizado, eliminando a selvageria.Sua morte no aniquilava sua forma,
mas destrua suas entranhas, estabelecendo uma tenso entre a ideia de vivo e
morto, tempo corrido e tempo estancado. E a criao do bibel implicava pseudo-
manuteno do animal as borboletas poderiam ser eternas... Elas, com suas asas
de fabulosas cores auxiliavam a trazer uma atmosfera alegre e vibrante aos
interiores domsticos. O mesmo efeito se conseguia com os pssaros tropicais, to
coloridos e variados, sendo os animais preferidos para constituir bibels.
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Animais-colees
Para alm dos acervos de animais empalhados to comuns nos museus de histria
naturale em pequenina escala em alguns museus casas que remetem ao sculo
XIX, existem pequenos museus que publicizam colees particulares, em que se
evidencia a paixo pela taxidermia como distrao ou o prazer da companhia da
fauna selvagem em casa.
O Museu Deyrolle, em Paris, rene o acervo da loja de taxidermia e de cincias
naturais fundada em 1831 por Jean-Baptiste Deyrolle, que abastecia o mercado com
insetos e materiais de caa e para os colecionadores de histria natural. Em 2008,
aps alguns anos de ostracismo e ter passado por um incndio, foi comprada pelo
prncipeLouis Albert de Broglie que, junto sua paixo por jardinagem, reacendeu o
negcio e o interesse sobre a coleo, atraindo novo pblico, interessado por
exposies temporrias de arte contempornea e fazendo associaes com artistas
que, valendo-se dos artigos da Maison Deyrolle, criavam peas que ultrapassavam
seu interesse cientfico. Foi o caso de Damien Hirst, que assinou vrios animais
taxidermizados e ovos de avestruz desenhados como esculturas artsticaspara
serem vendidas em leilo para benefcio de organizaes dos prprios Hirst e
Broglie em prol de causassobre biodiversidade.
O museu, situado na rue de Bac, no muito longe do museu dOrsay, fica na
sobreloja e est instalado em uma antiga residncia do sculo XVIII, com alguns
cmodos compostos por boiseries apaineladas de verde e molduras douradas. L,
os animais de maior porte agrupados em saletas parecem compor um cenrio
surreal, diferente das disposies tradicionais dos museus de histria natural,
passando a ideia de que o zoolgico resolveu mudar de endereo. Tigre, urso,
zebra, avestruz, antlopeparecem estar aguardando a nossa visita. Podemos chegar
perto, olhar nos seus olhos, passar a mo e, se nos afeioarmos muito, lev-los para
casa. Esto venda junto com centenas de pssaros, rpteis, insetos e conchas e
apetrechos necessrios para acomodar uma coleo domstica. A natureza-morta,
morta de fato, encontra-se venda e para usos no necessariamente cientficos.
DamienHirst, celebridade do mundo da arte contempornea, um apaixonado
colecionador de histria natural e tambm entusiasta dataxidermia, quando
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inevitvel lembrarmos da obra do tubaro imerso em formol, intitulada The Physical
Impossibility of Death in the Mind of Somebody Living (A impossibilidade fsica da
morte na mente de algum vivo), de 1991, que declara a obsesso do artista tanto
em estancar o tempo, criando um corpo imortal, quanto de explorar a decadncia
fsica (NAESSENS, 2015, p. 89).Na sua coleo, afora crnios de pessoas e bichos,
Hirst possui vrios animais taxidermizados, como corujas e pssaros tropicais, alm
de bichos bizarros criados por Walter Potter, como o carneiro de sete pernas. Seu
acervo, denominado de Murderme collection, rene mais de 2 mil peas e
provavelmente deve ser no mundo a mais representativa coleo de arte
contempornea que tem a morte como tema. A seu ver, os animais mortos
preservados, uma verdadeira mania da era vitoriana, seria uma tentativa de replicar
a vida na morte (HIRST, 2015, p. 92).
Walter Potter (18351918), natural de Bramber, Sussex, na Inglaterra, levou a
paixo pela taxidermia, iniciada na adolescncia, a tal ponto que foi preciso criar um
museu o Bramber Museum(18611972) para abrigar toda sua coleo com
peas feitas por ele prprio. Contudo, diferente de criar pranchas ou gavetas ou
dioramas como nos museus de histria natural, Potter os empregava para montar
cenas de gnero ou instalaes fora do comum com os bichos. Potter se tornou
referncia na Inglaterra e era procurado para empalhar animais de estimao ou
outros bichos mortos das fazendas locais.
Uma das peas surpreendentes The Death & Burial of Cock Robin (Morte e enterro
do pssaro Robin), baseada em um poema annimo popular entre as crianas
vitorianas, que tomou sete anos sendo meticulosamente elaborada e finalizada em
1861. A caixa de vidro tem quase 2 metros de largura. Ao fundo, uma paisagem
pintada representando uma pequena igreja em meio vegetao de uma vila rural,
cenrio do poema. H cerca de 100 pssaros britnicos, alguns j extintos, que
assistem ou compem a marcha fnebre, ritual usual no sculo XIX, reforado pelas
faixas pretas usadas presas ao corpo dos assistentes. Os olhos se perdem em
tantos pormenores, nas diversas solues e mltiplas posies que os animais
assumem. Alguns deles representam uma determinada estrofe do poema-histria,
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fazendo da composio uma verdadeira obra de fico, uma instalao que
materializa uma lenda, um conto, uma saga.
Como em fbulas, em que os animais assumem atitudes humanas, atuando como
alertas morais, a fico das cenas com bichos em cenas de sociabilidade coloca em
destaque situaes caricatas, como um meio aceitvel de ridicularizar pessoas e
grupos sociais, e as que aproximam algumas atitudes e perfis morais a certos
animais (a raposa esperta, a coruja sbia, o jumento teimoso). Tambm assumem o
lugar de bonecos em maquetes de cmodos de uma casa, servindo de personagens
em um cenrio que reproduz o prazer do conforto mundano alcanado pelos
burgueses em suas casas.
Mesmo que o museu abrigasse vitrines com um animal ou pequenos grupos, a
marca de Potter foi a criao de cenas com vrios animais reunidos. Casamentos,
salas de aula, banquetes, jogo de cartas, ambientados realisticamente e
personificados por gatinhos, esquilos, coelhinhos, porquinhos-da-ndia. O
magnetismo visual inevitvel, produzido por uma reunio particular de tecnologia
com relaes sociais, compondo cenas reproduzidas com exatido de escala,
taxidermia impecvel, cenrio atmosfrico, expresses corporais teatrais. Animais
alimentam a fantasia.
O que desconcertante o fato dos taxidermistas replicarem animais autnticos,
como se ainda estivessem vivos, o que conseguem com a importante ajuda dos
olhos de vidro.Esses objetos-animalizados dificultam classificaes e borram os
limites entre o que sujeito e objeto, aquilo que anima e animado. Funcionam
como quimeras, coisas fantasiosas que misturam instncias naturais para inventar
coisas imaginrias. Os animais-coisas excedem a sua mera materialidade e
resistem em serem totalmente redutveis linguagem.
Animais-obras
Os animais tambm foram usados de outras formas, de modo a esclarecer posturas
de ultrapassagem de uma arte alicerada fundamentalmente em qualidades
plsticas. Foi o caso de O porco empalhado (e seu pernil perdido), de Nelson
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Leirner, apresentado no Quarto Salo de Arte Moderna de Braslia, quando se
indignou com o aceite de sua obra e fez com que muitos do jri, composto por Mario
Pedrosa, Walter Zanini, Frederico de Moraes, Mario Barata e Clarival do Prado
Valadares se posicionassem quanto ao que era ou no arte (PEDROSA, 1975, p.
235).A emblemtica atitude de Leirner colocava em cheque o processo de
naturalizao da natureza, utilizando-se dela prpria mas para tratar de algo para
alm da materialidade natural, uma ideia de arte, um meio de criticar as instituies
artsticas que aceitavam e reificavam um porco empalhado como obra de arte.3
Aquilo que seria a nima, conferia a vida ao animal, tornou-se palha, ou seja, o seu
interior biolgico capaz de lhe dar a energia esvaziara-se de vida. A pele e o
invlucro, que carregavam a nima, passaram a ser a permanncia da memria da
vida, assumindo o seu lugar como representao, ultrapassando a condio de
vtima. Os olhos de vidro disfaravam a morte, mas sua persuaso de olhar de volta
para ns como se fora no animal vivo permanece, talvez como um alerta para nos
lembrar que somos todos animais, que as quimeras podem ser mais reais do que
supomos, mesmo que imprevisveis, e que a taxidermia pode ser um mtodo.
Em todos esses exemplares de animais mortos-vivos h uma tenso frente
tradio da verossimilhana, pois tecnicamente ela no ocorre porque as peles so
reais. Por outro lado, eles no so mais bichos e sim objetos, anlogos na forma e
na postura de quando possuam vida. Mortos, ainda so reais e podem se eternizar
como arte.
Lidar com a taxidermia tratar com a morte e especialmente com os acontecimentos
ps-morte. Tratar os restos mortais de um animal, diferente do que se faz com os de
um humano, para us-lo em um trabalho artstico consider-lo ser inferior, o que
denota certa perversidade. Muitos artistas, no entanto, afirmam que aguardam
doaes de bichos que morreram de causas naturais e no encomendam morte de
nenhum deles. O artista David Shrigley tem uma srie de animais sem cabea, como
o avestruz que foi incorporado coleo do British Council. A ausncia das cabeas,
apresentada de forma que parea que nunca existiram, refora a ideia de que os
bichos no precisam de seus crebros e, naquela condio, tambm nunca mais
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precisaro deles. Outra srie do mesmo artista tratou de animais domsticos
taxidermizados em posio vertical, sobre duas pernas e segurando uma placa,
dizendo Im dead (Estou morto). Segundo Shrigley, seu trabalho no sobre a
relao com os animais, mas sobre nossa relao com vida e morte e o modo como
lidamos com essas coisas. Suas obras pem a questo sobre o que significa estar
vivo ou morto (SHRIGEL, 2015, p. 32).
Da vida de animal, passa-se a uma nova forma de vida, uma vida de arte. o
destino dos bichos de Alex Flemming, cujas cores berrantes e distantes do natural
ressaltam que os ex-bichos pertencem agora a outro reino, o reino das naturezas-
mortas, obras que se tornam um poderoso comentrio sobre a capacidade de
redeno da vida e sobre a relao tnue que se estabelece entre vida e morte,
entre profano e sagrado (CANTOM, 2002). Vazios de vida, os bichos, pela tica de
Flemming, so sinais de solido, de uma alma sem graa, considerada uma outra
forma de morte, que aflige tantas pessoas nas grandes cidades (MORENO, 2002).
Na exposio A Casa, no MAC-USP, em cartaz em janeiro de 2016, Flemming
expe um bode pintado de azul (Cordeiro de Deus, 1991), fincado por vrias
escumadeiras de alumnio. A feio do animal no expressa incmodo ou dor e a
escala dos objetos est longe de ser domstica, afastando sua possibilidade de virar
um bibel. Em colees, dentro de casas ou mesmo em museus particulares, os
animais taxidermizados transcendem tempo, espao e lugar. Ao nos aproximarmos
das relaes travadas de homens com animais, pode-se perceber as fragilidades
dos sentidos de humanidade e que o objeto do mal pode vir a ser o sujeito-homem e
no o objeto-bicho.
Em anos recentes, observa-se a expanso de novas abordagens como Estudos
Animais, Zoopoticas, Ps-humanismo, Ecocrtica e Teoria da Coisa, pondo em reviso
a questo do antropocentrismo e anunciando uma espcie de animal turn na rea das
humanidades.4 Os limites entre o que humano e o que no , o que prprio do
bestial contra o racional, o homem-eu e o animal-outro passam por revises, desafiando
as dicotomias e a prpria unicidade dos humanos. Pensar nos animais em arte seria
acessar casos limites para as teorias da diferena, alteridade e poder.
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2172 IMORTAL ENQUANTO DURE... ANIMAIS, TAXIDERMIA E OBJETOS DO MAL NA ARTE Marize Malta / UFRJ Simpsio 1 A crtica e seus espaos: trnsitos, narrativas e regimes de visibilidade na Amrica Latina
A relao homem-animal est em voga. H sites e blogs que publicizam as paixes
pela taxidermia5 e inmeros artistas reacenderam a prtica, que parecia estar no
ostracismo. A artista Kate Klark se destaca por acoplar feies humanas s caras
dos animais taxidermizados, pondo em cheque os limites que separam o humano do
animal e como seria se ver submetido ao ser bicho, ns que tambm o somos,
fazendo-nos perceber que muitas referncias sobre certos entendimentos do mundo
passam pelo modo como vemos os bichos ou como veramos o mundo se o
fssemos. Engaiolados, presos em redoma de vidro, espetados em pranchas ou
conservados em formol, esses objetos do mal incomodam, arrepiam, causam
alguma repulsa, talvez porque diante de sua imortalidade enquanto coisa dependeu
sua morte e depende a sobrevivncia de nossa prpria humanidade.
Notas 1MY CANARY BIRD.Did we count great, O soul, to penetrate the themes of mighty books, / Absorbing deep and full from thoughts, plays, speculations? / But now from thee to me, caged bird, to feel thy joyous warble, / Filling the air, the lonesome room, the long forenoon, / Is it not just as great, O soul? Walt Whitman, 1888 (WHITMAN, 1891-92: 386). 2 Na Esccia h uma casa de venda e restaurao de objetos autmatos, The HouseofAutomata - Field of Dreams, Findhorn, Scotland. No site da empresa, h vrios modelos de objetos, inclusive os das gaiolas com pssaros, onde possvel assistir um pequeno vdeo que permite ouvir a caixa de msica em ao, imitando os trinados dos passarinhos. O endereo do youtube https://youtu.be/pzDrm2oza88. (THE HOUSE OF AUTOMATA). 3 Dcadas depois, os porcos continuam em voga. O artista belga WinDelvoye tambm se valeu de porcos, mais precisamente de sete, empregando-os empalhados e tatuados para a exposio apresentada em 2010 no Museu de Arte Moderna e Contempornea de Nice, na Frana. 4 Entre 7 e 9 de fevereiro de 2017 ser realizada a conferncia da CEFRES, em Praga, cujo tema ser The Human-Animal Line. Interdisciplinary Approaches. 5 Um dos sites que rene produes artsticas que se utilizam da taxidermia pode ser acessado pelo endereo http://www.ravishingbeasts.com/. Como o nome sugere, as bestas podem ser encantadoras... Referncias
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Marize Malta Professora de histria da arte / artes decorativas / espaos interiores na Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Graduada em Arquitetura (USU), mestre em Histria da Arte (EBAUFRJ) e doutora em Histria (UFF). Seu domnio de investigao em histria e teoria das ambincias, artes decorativas, arte domstica, objetos do mal, colees e modos de exibio.
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