Imagem e herança cultural em Aby Warburg: potencialidades de um debate
Thays Tonin1
Aby Warburg e a herança intelectual de sua biblioteca
“Ebreo di sangue, Amburghese di cuore, d’anima Fiorentino”2 [Hebreu de sangue,
Hamburguês de coração, e de alma florentina]; “Bisogna sempre di nuovo liberare Atene dai
ceppi di Alessandria"3 [É sempre necessário reconquistar Atenas a partir de Alexandria]; [Os
pensamentos não conhecem fronteiras]4: eis as palavras e lemas autobiográficos de Aby
Warburg, conservadas por colegas e presentes tão fortemente em sua trajetória. Abraham
Moritz Warburg fez seus estudos na Alemanha, Itália, Estados Unidos, Inglaterra e França5.
Tão diverso é seu caminho de estudos quanto seu horizonte referencial: do antropólogo
Edward Taylor, ao naturalista Charles Darwin, o filósofo Friedrich Nietzsche, o seu médico
no período de internação na Suiça, Ludwig Binswanger (correspondente de Sigmund Freud),
os historiadores Jacob Burckhardt, Kart Lamprecht, Hermann Usener, até seus colegas no
Instituto, como o filósofo Ernst Cassirer e os historiadores da arte Fritz Salx e Gertrud Bing -
dentre outros.
Essa amplitude (de lugares, de áreas do conhecimento, de temáticas de estudo, e até
mesmo de “tempos” – pois sua alma florentina se quer atemporal) é a raiz da proposição de
Warburg, teórico de uma erudição singular. Com efeito, o autor teve em vista um objetivo de
1Doutoranda em História pela Università degli Studi della Basilicata, Dipartimento delle Culture Europee e del
Mediterraneo (DICEM). Bolsista Erasmus Mundus, integrante do programa de pesquisa ELARCH ("Euro-Latin
America partnership in natural Risk mitigation and protection of the Cultural Heritage"). Essa pesquisa faz parte
também do Projeto Cátedra UNESCO coordenado pela Profª Drª Angela Colonna, e intitulado “Mediterranean
Cultural Landscapes and Communities of Knowledge”. Email para correspondência, [email protected]. 2 Cf. Gertrud Bing, Aby M. Warburg, "Rivista storica italiana" LXXI, 1960, p.113 3 Cf. Gertrud Bing, Aby M. Warburg, “Rivista storica italiana" LXXII, 1960, pp. 100-113 4 LESCOURRET, Marie-Anne. “Aby Warburg, o não lugar de uma arte sem história” In: SAMAIN, Etienne (org.). Como
pensam as imagens. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2012. p.84. 5 Cf. “Cronologia” In: WARBURG, Aby. Histórias de fantasmas para gente grande: escritos, esboços e conferências. Trad.
Lenin Bicudo Bárbara. SP: Companhia das Letras, 2015. p.379.
“defender um alargamento metódico das fronteiras da nossa ciência da arte, em termos
materiais e espaciais”6 para produzir a base de uma nova disciplina, sua “psicologia histórica
da expressão humana”7.
Das suas principais publicações até então traduzidas para português ou italiano, é
possível ver um esforço em demonstrar em cada uma das suas produções escrito-imagéticas
uma análise profunda das formas culturais, de modo que seu “manifesto teórico” aparece
entre um exemplo de análise do objeto e outro, entre imagens, entre uma escrita prolixa de
artigos que operam pontualmente seu tema-chave. De fato, o texto inacabado da “introdução
ao Altas Mnemosyne” aparentava ser um compilado teórico fundamental de sua tese, mas que
não deixa de estar presente em fragmentos em todos os seus outros trabalhos, quiçá sendo o
motivo pelo qual seus trabalhos deram abertura para diferentes caminhos teóricos serem fruto
do Instituto que carrega seu nome, hoje localizado em Londres.
A constituição do Instituto desde a primeira metade do século XX, a biblioteca (seu
projeto de vida), o Atlas Mnemosyne e sua herança intelectual - vale dizer, as apropriações
sucessivas - deixam problemas incontornáveis aos teóricos das formas culturais, sob
diferentes caminhos teóricos, e o insere dentro de um importante grupo de pensadores da
cultura ocidental. Na data de sua morte (1929), Waburg deixa para os estudiosos da área uma
coleção que vai reunir mais de 70 mil volumes, 25 mil fotos, e os primeiros anos de trabalho
da sua já citada magnum opus – inacabada: um Atlas da memória ocidental.
Os problemas levantados ao idealizar seu Atlas Mnemosyne, seu projeto de mais de
1300 imagens, de “um altas figurativo que ilustra a história da expressão visual na área do
Mediterrâneo”8, e a função atribuída por ele às imagens como órgãos da memória coletiva e
engramma das tensões culturais levantam questões imprescindíveis para pensar a relação
entre arte e história, ou seja, a função da criação figurativa na experiência humana9. Warburg
nos faz pensar a experiência humana e suas criações, representações, expressões, e paixões
6 WARBURG, Aby. Histórias de fantasmas para gente grande: escritos, esboços e conferências. Trad. Lenin Bicudo
Bárbara. SP: Companhia das Letras, 2015. p.127 7 Idem, p.127. 8 BING Apud AGAMBEN. “Aby Warburg e a ciência sem nome”. In: AGAMBEN, Giorgio. A potência do pensamento.
Ensaios de conferências. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015. Op. Cit., p.121. 9 Discorre Agamben, Ibdem, p.111-131.
por imagens10. Em outras palavras, pode-se dizer, pensar por imagens, fazer uma história em
e com as artes, de modo que as fronteiras que dividem os objetos de estudo das áreas se
mostrem incapazes de se manter, fazendo com que a disciplina História, para ele, quebre essas
divisões entre as humanidades (e principalmente entre história da arte, psicologia e
antropologia), e demonstre-se como um espaço muito mais amplo e potencializado. Seus
estudos, sua metodologia, sua “ciência sem nome”, como chamou Agamben11, ajudam à
compreender o que podemos chamar de dimensões insólitas da experiência humana, por meio
das diferentes formas expressivas: arquitetura, pinturas, esculturas, fotografias e da escrita.12
“O Atlas Mnemosine pretende”, como dito por Warburg, “com seu material de imagens,
ilustrar esse processo [...] dos valores expressivos pré-formados na representação da vida em
movimento”13, pois propõe-se a
buscar o mecanismo formador, que martelou na memória as formas expressivas do estado
de máxima comoção anterior [...] com tal intensidade que esse engrama da experiência
passional sobreviveu como herança armazenada na memória, determinando, na condição de
modelo, o contorno do que a mão do artista cria, tão logo os valores máximos da linguagem
gestual pretendam, pela mão do artista, trazer a figuração à luz do dia.14
Fundamentalmente, sua “jovem disciplina”15 aparenta estar preocupada, em outras
palavras, com o domínio da memória, este fundo imaginal16 de referencialidades que
criam/recriam/modificam nossa experiência cotidiana. “Mnemosyne é todavia mais que uma
memória viva do passado passional e patético (do grego pathos) de parte das culturas
humanas. Ela é a memória coletiva de nosso presente e de nosso futuro cultural.”17 O Atlas de
Aby Warburg é uma história imagética da herança cultural ocidental18, um mapa dos
10 Cf. CAMPOS, Daniela Queiroz. Entre o eucronismo e o anacronismo: percepções da imagem na coluna garotas do Alceu.
(Tese de Doutorado em História). Florianópolis: UFSC, 2014. 11 AGAMBEN, Giorgio. “Aby Warburg e a ciência sem nome”. In: A potência do pensamento. Op. Cit., p.111 12 Cf. TONIN, Thays. Os fantasmas da modernidade e as imagens distópicas em quadrinhos e outras artes / Dissertação
(mestrado) - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Programa de Pós-Graduação
em História. Orientadora, Maria Bernardete Ramos Flores - Florianópolis, SC, 2015. 13 WARBURG, Aby. Op. Cit., p.365. 14 Idem, p.367. 15 Idem, p.127. 16 Utilizo-me do debate proposto por Hans Belting sobre imaginário. Cf. BELTING, Hans. Antropologia da Imagem. Trad.
A. Morão, Lisboa, KKYM, 2014 p.21-72. 17 Samain, p.65. 18 Em outros termos, o Atlas Mnemosyne, como define Flores, é um ”atlas iconográfico das Pathosformeln - imagens
sobreviventes do Ocidente.” Cf. FLORES, Maria Bernardete Ramos. “Tempo e destempo na história.” In: VOJNIAK,
Fernando. História e linguagens: memória e política. Jundiaí, São Paulo: Paco editorial, 2015.
deslocamentos mnêmicos, de imagens que produzem um regime de significação que reflete
uma concepção da cultura como o complexo dos processos de circulação das formas
expressivas...19, onde a cultura é vista dentro da (ou como a) concepção de “expressão
humana”20, e a disciplina como uma “psicologia histórica”21, que carece sempre de estar em
diálogo com tantas outras áreas, conceitos e ideias para operacionalizar sua teoria e
metodologia.
Debates atuais e apropriações possíveis
A herança dos trabalhos de Aby Warburg é, desde o inicio do século XX, presente no
campo da história da arte, e agora também história, filosofia, antropologia, teoria da imagem e
até mesmo neurociência. Seu trabalho se propunha a questionamentos tão amplos como
tentar fazer ciência da dimensão simbólica que lastreia dois aspectos fundamentais da cultura
humana: a expressão e a orientação22. Quiçá seja por esse fator que sua retomada traga tantas
interpretações distintas, e o uso de seus conceitos, ferramentas e “método científico sui
generis”23 se deem em diversas áreas.
A começar por seu colega, E. Panofsky. Historiador da arte que a partir da sua relação
com o Instituto Warburg criou um método iconológico de análise da forma artística, dividido
em três momentos (pré-iconográfico, iconográfico e iconológico), com o intuito de realizar
uma decifração simbólica do objeto. Seu método ressona até hoje em áreas como a
Arquitetura, e é referência presente em trabalhos sobre Patrimônio por ter influenciado Alois
Riegl. Para Didi-Huberman, entretanto, os estudos que constituem a iconologia como uma
disciplina dentro da história da arte, foi “magistralmente constituída por Panofsky como
explicação dos símbolos visuais do ocidente”, mesmo que, atualmente, Warburg seja visto
como o idealizador dessa disciplina.24 Porém, continua Didi-Huberman, “o que entende
19 Cf. TONIN, Thays. Op. Cit. 20 WARBURG, Aby. Op. Cit., p.127. 21 Idem. 22 WAIZBORT, Leopoldo. “Apresentação”. In: WARBURG, Aby. Op. Cit., p.14. 23 SAMAIN, Etienne. Op. Cit., p.63. 24 Idem, p.51
Warburg [...] era bem diferente: a decifração simbólica era para ele apenas uma etapa, o que
mirava era uma interpretação sintomal da cultura, através de suas imagens, suas crenças, seus
continentes escuros, seus resíduos, seus deslocamento de origem, seus retornos do recalque.
Algo, finalmente, bastante próximo da psicanálise freudiana (que Panofsky detestava).”25
Outros exemplos das apropriações e debates que atualmente ainda se utilizam de
Warburg, são os trabalhos em tradições teóricas completamente diversas, como os de Carlo
Ginzburg e Georges Didi-Huberman. O primeiro, historiador que inaugurou a tradição teórica
italiana da micro-história, e o outro, filósofo e historiador das imagens, renome do que
podemos chamar de “um caminho ou tradição teórica francesa” de leitura do método
warburguiano.
Ginzburg faz o caminho de rastrear pelos indícios suas fontes, em diálogo e em defesa
da base teórica criada por Panofsky26, e afirma em seus atuais ensaios de iconografia política
que “a riqueza da obra de Warburg, no que tange à analise das imagens, reside na oscilação de
sua mente entre duas direções opostas, ou seja, na tensão não resolvida entre o histórico e o
morfológico, vale dizer, na contraposição entre o deciframento simbólico feito por ele em
alguns trabalhos e as imagens justapostas, por contiguidade e dissonância” (GINZBURG,
2014:11) nos painéis do Atlas Mnemosyne. Ainda nas palavras do italiano,
Essa tensão tem raízes objetivas. A transmissão das Pathosformeln [fórmulas das
emoções”] depende de contingências históricas; as reações humanas a essas fórmulas,
porém, estão sujeitas a circunstancias completamente diferentes, em que os tempos mais ou
menos curtos da história se entrelaçam com os tempos bastante longos da evolução. 27
[grifo meu]
Já Didi-Huberman, focando-se então em outros termos intraduzíveis do alemão e
potenciais da teoria warburguiana (como Nachleben), criticará esse paradigma afirmando a
limitação presente no discurso dos historiadores que querem aproximar o método das
humanidades como um “saber indiciário”, da observação objetiva do pormenor revelador, e
defende o tempo das imagens como diferente do tempo histórico, visto como portador de
25 DIDI-HUBERMAN, Georges. “Aby Warburg, l’histoire de l’art à l’âge des fantômes”. Artpress, 277, mar., 2002b, p. 18-
24. 26 Cf. 2º Capítulo de GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. Trad. Federico Carotti. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989. p. 41-93. 27 Medo reverencia e terror, p.11.
“qualquer sentido evolutivo” e/ou de onde há um passado acabado28. “Em suma, as
sobrevivências não passam de sintomas portadores de desorientação temporal”29 e, além
disso, “a Nachleben só tem sentido ao tornar complexo o tempo histórico, ao reconhecer no
mundo da cultura temporalidades específicas, não naturais.”30. O autor afirma, ainda, que esse
“jogo de empréstimos”, feito por Warburg, reconhece
a necessidade de ampliar os modelos canônicos da história – modelos narrativos, modelos
de continuidade temporal, modelos de assunção objetiva -, dirigindo-se aos poucos para
uma teoria da memória das formas – uma teoria feita de saltos e latências, de
sobrevivências e anacronismos, de quereres e inconscientes.31
Ao falar em empréstimos, posso citar por último os trabalhos do neurocientista italiano
Vittorio Gallese, um dos professores da Universidade de Parma a descobrir o “neurônio
espelho”. Focando-se no termo “engramma”, usado por Warburg, Gallese afirma que “A
abordagem empírica das neurociências cognitivas à cognição social é capaz de demonstrar
como fatores socioculturais podem ativamente modular a atividade funcional dos nossos
idiosincráticos sistemas cérebro-corpo” 32 [texto original em italiano - tradução minha] .
De fato, as apropriações em relação a sua obra demonstram primeiramente a
potencialidade dos conceitos-chaves de suas análises, e as divergências de tradução de tais,
além do foco dado por estudiosos em cada uma de suas áreas. A partir destes novos usos e
debates, demonstra-se que essa abertura entre áreas pode modificar esquemas de
inteligibilidade das formas culturais, da história, e por que não da própria ideia de
“conhecimento” acadêmico, e então “saberes”.
Uma mínima genealogia da herança warburguiana demonstra porém, que, apesar da
ampla influência exercida por seus trabalhos, duas questões permanecem: apesar das
exceções, em via de regra, essas áreas acadêmicas (temáticas ou disciplinares) ainda se veem
desconectadas, com limites bem demarcados; e a temática da memória sob um viés da
28 Cf. “Introdução” em DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da Imagem: Questão colocada aos fins de uma história da arte.
Trad. Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 2013. 29DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente. História da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg.
Trad. Vera Ribeiro. RJ: Contraponto, 2013. p.54 30 Idem, p.55 31 Ibdem, p.57. 32 GALLESE, Vittorio. Aby Warburg e il dialogo tra Estetica, Biologia e Fisiologia. Arte & Cervello. N.2 2012. pp.48-62. p.
92. [““l’approccio empirico delle neuroscienze cognitive all cognizione sociale è in grado di mostrare come fattori
socioculturali possano attivamente modulare l’attività funzionale dei nostri idiosincrasici sisteme cervello-corpo.” ]
imagem e seu tempo, não parece se encontrar ainda com as discussões de Patrimônio Cultural
(mesmo que, em sua grande maioria, as temáticas e os objetos em si presentes nos escritos de
Warburg ou no seu Atlas sejam considerados Patrimônio Cultural (mundial, nacional ou
local).
UNESCO e a definição de Patrimônio Mundial
Sendo assim, qual a novidade que os trabalhos de Warburg podem trazer para os debates
atuais vinculados às escolhas da UNESCO (United Nations Educational, Scientific and
Cultural Organization)? Primeiro, trago a seguir algumas definições presentes nos tratados,
convenções e documentos da UNESCO. Criada no contexto pós-II Guerra, com a função de
“colaboração entre as nações através da educação, da ciência e da cultura [...],sem distinção
de raça, sexo, idioma ou religião”, para com isso garantir “a conservação e a proteção do
legado mundial de livros, obras de arte e monumentos de história e de ciência, recomendando
as convenções internacionais necessárias às nações envolvidas”33. Atualmente, a quase
totalidade dos países adotam o que foi deferido nas Convenções do Patrimônio Mundial,
organizadas desde 1972, definindo a lista de Patrimônios Mundiais cuja proteção é de
responsabilidade da comunidade internacional como um todo. As decisões do Comitê do
Patrimônio Mundial são revistas nas convenções e traduzidas para outras línguas
oficialmente, de modo a estarem disponíveis no site da UNESCO34. As Orientações Técnicas
da UNESCO neste momento definem Patrimônio Cultural como
- Os monumentos: obras arquitetónicas, de escultura ou de pintura monumentais,
elementos de estruturas de caráter arqueológico, inscrições, grutas e grupos de
elementos com Valor Universal Excecional do ponto de vista da história, da arte ou da
ciência;
- Os conjuntos: grupos de construções isolados ou reunidos que, em virtude da sua
arquitetura, unidade ou integração na paisagem, têm Valor Universal Excecional do
ponto de vista da história, da arte ou da ciência;
33 Unesco Brasilia Office . Constituição da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. 2002.
p.2-3. Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0014/001472/147273por.pdf Acesso em: 15/05/2016. 34 Cf. “The Operational Guidelines for the Implementation of the World Heritage Convention”. UNESCO. Disponivel em:
http://whc.unesco.org/en/guidelines/ .
- Os sítios: obras do homem, ou obras conjugadas do homem e da natureza, e as zonas,
incluindo os sítios arqueológicos, com um Valor Universal Excecional do ponto de
vista histórico, estético, etnológico ou antropológico. 35
E o ponto fundamental dessa definição, o conceito de “Valor Universal
Excepcional” como:
49. O Valor Universal Excecional significa uma importância cultural e/ou natural tão
excecional que transcende as fronteiras nacionais e se reveste do mesmo caráter
inestimável para as gerações atuais e futuras de toda a humanidade. Assim sendo, a
proteção permanente deste património é da maior importância para toda a
comunidade internacional. O Comité define os critérios para a inscrição dos bens na
Lista do Património Mundial.36
A partir desse ponto-chave, a UNESCO considera que um Bem tem um Valor
Universal Excecional se ele responde a algum dos critérios abaixo:
(i) representar uma obra-prima do génio criador humano;
(ii) ser testemunho de um intercâmbio de influências considerável, durante um dado
período ou numa determinada área cultural, sobre o desenvolvimento da
arquitetura ou da tecnologia, das artes monumentais, do planeamento urbano
ou da criação de paisagens;
(iii) constituir um testemunho único ou pelo menos excecional de uma tradição
cultural ou de uma civilização viva ou desaparecida;
(iv) representar um exemplo excecional de um tipo de construção ou de conjunto
arquitetónico ou tecnológico, ou de paisagem que ilustre um ou mais períodos
significativos da história humana;
(v) ser um exemplo excecional de povoamento humano tradicional, da utilização
tradicional do território ou do mar, que seja representativo de uma cultura (ou
culturas), ou da interação humana com o meio ambiente, especialmente
quando este último se tornou vulnerável sob o impacto de alterações
irreversíveis;
(vi) estar direta ou materialmente associado a acontecimentos ou a tradições vivas,
ideias, crenças ou obras artísticas e literárias de significado universal
excecional (o Comité considera que este critério deve de preferência ser
utilizado conjuntamente com outros);
(vii) representar fenómenos naturais notáveis ou áreas de beleza natural e de
importância estética excecionais;
(viii) ser exemplos excecionais representativos dos grandes estádios da história da
Terra, nomeadamente testemunhos da vida, de processos geológicos em curso
no desenvolvimento de formas terrestres ou de elementos geomórficos ou
fisiográficos de grande significado;
(ix) ser exemplos excecionais representativos de processos ecológicos e biológicos em
curso na evolução e desenvolvimento de ecossistemas e comunidades de
plantas e de animais terrestres, aquáticos, costeiros e marinhos;
(x) conter os habitats naturais mais representativos e mais importantes para a
conservação in situ da diversidade biológica, nomeadamente aqueles em que
35 Orientações Técnicas para Aplicação da Convenção do Património Mundial. UNESCO. Ed. Em Português, versão 2013.
Lisboa, 2014. Disponível em: http://whc.unesco.org/archive/opguide13-pt.pdf Acesso em: 20/05/2016. p.11-12 36 Idem, p.11-12.
sobrevivem espécies ameaçadas que tenham um Valor Universal Excecional
do ponto de vista da ciência ou da conservação.37
Vemos por exemplo, nos critérios da UNESCO, a ênfase em valores modernos, e a
permanência de um debate que se constitui desde o reconhecido trabalho de Alois
Riegl e suas apropriações (como Françoise Choay), e mesmo que “O Comité procura
estabelecer uma Lista do Património Mundial representativa, equilibrada e
credível”38, há dentro das atuais definições da UNESCO alguns limites e empecilhos
para que essa organização, que se propõe a manter um legado de conhecimento da
humanidade, esteja realmente propondo um conceito de conhecimento que saiba se
libertar da herança do pensamento ocidental moderno, e repensar propriamente o que
deve se constituir como os saberes humanos que visam a abertura do conhecimento, a
melhoria das condições humanas, e a “partilha [da dimensão] sensível”, nos termos de
Rancière39.
A título de exemplo, trago dois conceitos: “valor de antiguidade” e “ valor
histórico”, presentes no livro Culto moderno aos monumentos, que ainda é balizar em
debates sobre Valor Patrimonial, em manuais sobre Gestão de Risco em Patrimônios -
tal como levantado pelo trabalho de Daniela Andrea Díaz Fuentes40, parte de um
projeto Cátedra UNESCO no México, e vencedor de um Edital do Ministério da
Cultura Chileno em 2016, (além de atualmente ser utilizado como base teórica de um
projeto de cooperação internacional em Patrimônio Cultural):
[Valor de antiguidade:] A ruína deveria simplesmente levar à consciência do espectador o
contraste, essencialmente barroco, entre a grandeza do passado e a decadência presente. Ele
exprime o pesar dessa queda, e a nostalgia correlativa de uma antiguidade que desejariam
ver conservada: trata-se, por assim dizer, de um deleite voluptuoso na dor, que, mesmo
atenuado por uma certa inocência pastoral, faz o valor estético do pathos barroco.
[...]
[Valor histórico:] [...] tudo aquilo que foi, e não é mais hoje em dia. No momento atual, nós
acrescentamos ainda a esse termo a idéia de que aquilo que foi não poderá jamais se
37 Ibdem, p.16-17. 38 Ibdem, p.12-14. 39 Cf. RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. Trad. Mônica Costa Netto. São Paulo: EXO, 2009. 40 FUENTES, Daniela Andrea Díaz. Diseño de herramientas de evaluación del riesgo para la conservación del patrimônio
cultural inmueble. México, DF: INAH, 2015.
reproduzir, e que tudo aquilo que foi constitui um elo insubstituível e intransferível de uma
cadeia de desenvolvimento. 41
Gostaria de, com esses levantamentos de debates atualíssimos e recentemente
publicados, retornar à pergunta que fiz no início deste tópico: “qual a novidade que os
trabalhos de Warburg podem trazer para os debates atuais vinculados as escolhas da
UNESCO?”
Potencialidades de um debate: Valor de conhecimento
Tout Penseé émet un Coup de Dés*
Stéphane Mallarmé
Fruto da pesquisa em andamento vinculada ao programa ELARCH42, esse trabalho
propõe questionar alguns pontos consolidados nos debates acerca de patrimônio cultural e
história da arte, para com isso possivelmente trazer novas questões sob um ponto de vista da
“história psicológica da expressão humana”43, tal como foi o projeto de Warburg. Ainda no
inicio desse caminho que demonstra mais conexões entre diferentes (e tão próximas) áreas de
pesquisa, é possível levantar algumas operações, potencialidades possíveis. O diálogo entre os
trabalhos de Warburg, seus herdeiros, e as discussões do campo de patrimônio, podem se dar,
41 RIEGL Apud CUNHA, Claudia dos Reis e. Alois Riegl e “O culto dos monumentos modernos”. Disponível em:
http://www.revistas.usp.br/cpc/article/view/15586. Acesso em: 15/05/2016. * ”Cada pensamento emite um jogo de dados”. Trad. Haroldo de Campos. Perspectiva, 3ªed 1991. 42 Intitulado como "Cooperação Euro-Latina América em Mitigação de Risco Natural e proteção do Patrimônio Cultural", e
centralizado na Università degli Studi della Basilicata na Itália, o programa ELARCH propõe-se a estudos operacionais e
interdisciplinares, questionando os limites entre àreas de pesquisa e suas produções atuais de conhecimento acadêmico. O
grupo de doutorados que atualmente pesquisa vinculado à central do Programa está propondo produzir projetos de pesquisa
que mesmo derivados de diferentes àreas e independentes entre si, estão usando uma base teórica comum, e dialogando ao
questionar debates atuais sobre manutenção, apropriação, proteção e criação de Patrimônio cultural e histórico. Tais trabalhos
vão da engenharia à arquitetura e história, e focam-se em questões relacionadas às diferentes heranças culturais em diversos
países, assim como seu valor como patrimônio cultural mundial ou sua posição política dentro de uma “memória ocidental”.
Além disso, são pesquisas em dialogo com Cátedras UNESCO, projetos de extensão a comunidade não-universitária e
conexões com diferentes universidades e pesquisas. O objetivo comum dos pesquisadores do grupo ELARCH é propor uma
cooperação cientifica entre diferentes áreas de pesquisa no campo de Proteção ao Patrimônio, desde análises, mitigação de
riscos à políticas internacionais – vinculado a questões universais acerca do valor de conhecimento do patrimônio cultural
mundial ou local. Os trabalhos desenvolvidos analisam desde bens imóveis como recursos hidráulicos, castelos, igrejas, a
produções culturais e questões teóricas sobre as políticas nacionais de memória de diferentes países. Para outras informações
sobre universidades e professores participantes, ver http://elarch.org/. 43 WARBURG, Aby. Op. Cit. p.127.
por exemplo, sobre a temática geral de “valor de conhecimento” dado às memórias
valorizadas sob o signo de “Patrimônio Mundial” da UNESCO. De qual modo? A começar
com a afirmação de Samain, ao dizer que
As imagens atravessam nossas histórias coletivas e as reconfiguram numa duração
intemporal. Penso que são essas dimensões trans-históricas – essas multiplicidades e
densisdades históricas, esses extratos/camadas patéticas que elas carregam – que fazem
com que os antropólogos tenham medo das imagens e que, apavorados, delas se afastem,
preferindo-lhes o logocentrismo, tranquilizante tanto como paralisante, de seus discursos. 44
Se tentarmos, então, apropriar-se dos trabalhos de Warburg para o debate de
patrimônio, vemos que alguns pontos podem ser questionados, principalmente a questão de
Valoração. As ferramentas de valoração de um patrimônio mostram-se, desde Riegl,
dependentes de conceitos já questionados desde a Virada Linguística. Valor histórico e Valor
de Antiguidade, por exemplo, se perdem em meio ao conceito de história em Warburg, assim
como a própria ideia de temporalidades diversas, quando estamos falando de formas culturais
(vide os debates de Ginzburg, Didi-Huberman, e outros). O valor estético, enquanto pautado
no conceito de estética kantiano, demonstra-se de pouca ou nenhuma importância nesse
caminho de análise, considerando, por exemplo, as palavras de Baumgarten: “La estética tiene
ahora como finalidad la perfección del conocimiento sensible en cuanto tal, y esta perfección
no es otra cosa que la belleza”45. Conecta-se a esse ponto a crítica a uma história da arte
condicionada “pela norma estética na qual se decidem os bons objetos” de sua narrativa, esses
“belos objetos” cuja reunião formará, no final, algo como uma essência da arte.”46 A
disciplina que Warburg pretendia criar ou a ciência da cultura que tinha em seu horizonte,
nada tinha de defesa da disciplina “história da arte” constituída desde Giorgio Vasari e, sendo
assim, não dialogaria com a importância dada nos critérios da UNESCO à relação entre o
patrimônio X e sua presença numa “história da arte” mundial. Além disso, essa disciplina foi
constituída como a sucessão dos “gênios” humanos, uma concepção de homem e de
conhecimento tão enraizada que se encontra já no primeiro critério de Valor Excepcional
supracitado “representar uma obra-prima do gênio criador humano”. Os debates
44 SAMAIN, Etienne. “Aby Warburg. Mnemosyne. Constelação de culturas e ampulheta de memórias.” In: SAMAIN,
Etienne (org.). Como pensam as imagens. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2012. p.59. 45 BAUMGARTEN, A. .G. WINCKELMAN, J.J. MENDELSSONHN, M. HAMANN, J. Belleza y verdad. Sobre la estética
entre la ilustración y el Romanticismo. Trad. C. Terrasa y V. Jarque. Madrid: Alba, 1999. p.10. 46 DIDI-HUBERMAN, Georges. A Imagem sobrevivente. Op. Cit. p.19.
warburguianos ajudam a quebrar com a glorificação estética. A pobreza das “teorias do
gênio” como a resposta que explica a produção artística, sem considerar outros fatores que
envolvem o processo artístico ou a prática simbólica, não servem ao desenvolvimento de uma
ciência da cultura que compreenda a dimensão simbólica da experiência humana, suas formas
expressivas, sua orientação, sua memória coletiva. “As imagens constituem formas
historicamente contingentes, mas respondem ainda a questões intemporais, razão pela qual os
homens as inventaram e incessantemente as reinventam.”47.
A teoria de Warburg reverbera também em debates que tentam “separar a alta arte e as
imagens cotidianas, a história e a atualidade, ou ainda a arte europeia e a arte não europeia”48,
retornando de novo à crítica de uma história da arte moderna, além de demonstrar a
artificialidade entre as fronteiras disciplinares, quando ratificou materialmente na divisão feita
em sua biblioteca a aproximação necessária entre aparentes áreas com nada em comum, para
explicar como se dá a memória coletiva, a transmissão de conhecimento e formas expressas
em diferentes tempos. Ou seja, aquilo que é uma herança, um patrimônio da humanidade. O
que entra em jogo, aqui, é justamente o valor de conhecimento dessas formas culturais, desses
bens movéis ou imóveis e sua função na constituição da cultura de uma sociedade.
Assim, se patrimônio é aquilo que deve ser mantido por sua função na atualidade como
conhecimento ou como tradição; se patrimonializar é passar por um processo de valorização
do objeto como memória de um grupo; os critérios para isso poderiam ser potencializados ao
criticarmos justamente o que é “memória”, “história”, “ciência” e “arte” (e outras dicotomias
do pensamento moderno) por um viés warburguiano que, ao questionar a vida das imagens na
cultura ocidental, “nos leva diretamente ao centro do conflito cultural dos nossos dias, ao
centro da luta pelas leis de preservação e crescimento de formas históricas, e os historiadores
e higienistas competem uns com os outros na tentativa de defini-las”49.
Por último, ao que parece, porém, a afirmação de Warburg de 1912 sobre a
importância de criar uma ciência da cultura que defende “um alargamento metódico das
fronteiras”, apesar de décadas de apropriação de suas ideias, permanece, ou seja, ainda espera
47 BELTING, Hans. Op. Cit., p.72. 48 BREDEKAMP, H. DIERS, M. “Prefácio à edição de estudos, 1998”. In: WARBURG, Aby. A renovação da Antiguidade
Pagã. Contribuições científico-culturais para a história do Renascimento europeu. Trad. Markus Hediger. RJ: Contraponto,
2013. p.XXI 49 Idem, p.XX.
por ser escrita uma psicologia histórica da expressão humana (WABURG, 2015:127); e ainda
espera por ser reconhecido que o conhecimento específico não responde mais às nossas
questões acerca da experiência humana; assim como o conceito de patrimônio atual não
engloba em si um valor de conhecimento potencializador e operacional à memória coletiva, a
um legado humano de diferentes e representativos saberes.
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