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    CONFERNCIAS DE PARIS

    Edmund Husserl

    Tradutores:Artur Moro e Antnio Fidalgo

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    Apresentao

    Ed. Husserl no apresenta aqui um manifesto da fenomenolo-gia, mas antes um panorama sinttico do seu trabalho filosfico atento desenvolvido.

    As Conferncias de Paris, pronunciadas na Sorbona, a conviteda Acadmie Franaise, a 23 e 25 de Fevereiro de 1929, expem,de facto, as linhas mestras da sua reflexo fenomenolgica. So,por um lado, um tributo a Descartes, que ajudou o autor a che-gar sua descoberta da transcendentalidade do ego; e, por outro,ofereceram-lhe a ocasio para assinalar as diferenas relativamenteao sistema cartesiano, que no seguiu at ao fim o mpeto inovadorque o inspirava e movia.

    Traduzem um radicalismo semelhante: nada mais nada menosdo que instaurar um comeo absoluto da filosofia, em vista da uni-dade universal das cincias. Palpita nelas um impulso, de certomodo, espiritual, pois se busca a plena responsabilidade do filoso-far na demanda de uma sabedoria universal, no abandono de todosos conhecimentos pressupostos e garantidos, na indagao das evi-dncias derradeiras, as quais serviro, depois, para a fundamenta-o do sistema de saberes e dos valores, alm da instituio e dopressuposto de uma comunidade notica de empenhamento verita-tivo.

    Por isso, os grandes temas husserlianos vo assomando, me-dida que o discurso avana: a epoch ou a suspenso da atitudenatural perante o mundo, a reduo fenomenolgica, a intenciona-

    lidade da conscincia, a relao com o mundo e o significado deste,a questo do solipsismo, o difcil problema da intersubjectividade emuitos outros. O texto presente uma espcie de corte transversalna obra de Husserl at ento realizada: vemos os temas, o seu es-foro por uni-los, os espinhosos problemas que surgem em virtudeda soluo proposta, as virtualidades que se insinuam... Estes e ou-

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    tros aspectos traam um perfil excepcional de um pensamento emaco, sempre aqum da promessa que o anima, mas lucidamentemergulhado numa inteno de rigor e de profunda honestidade in-telectual.

    Artur Moro

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    Conferncias de Paris(1929)

    Edmund Husserl

    Poder falar sobre a nova fenomenologia neste to venerando lu-gar da cincia francesa enche-me de alegria por razes especiais.Nenhum filsofo do passado teve, de facto, uma influncia to de-cisiva sobre o sentido da fenomenologia como o maior pensador deFrana, Ren Descartes. A ele deve ela venerar como seu verda-deiro patriarca. Foi de um modo muito directo, diga-se expressa-

    mente, que o estudo das meditaes cartesianas interveio na novaconfigurao da fenomenologia nascente e lhe deu a forma de sen-tido que agora tem e que quase lhe permite chamar-se um novocartesianismo, um cartesianismo do sculo XX.

    Neste contexto posso, partida, estar bem certo da vossa anun-cia ao associar-me aos motivos das Meditationes de prima philo-sophia s quais, como creio, cabe um significado eterno, e ao carac-terizar de seguida a remodelao e a nova formao em que emergea peculiaridade do mtodo e da problemtica fenomenolgicos.

    Todo o principiante na filosofia conhece o notvel percurso do

    pensamento das Meditaes. O seu objectivo , como recordamos,uma plena reforma da filosofia, inclusive a de todas as cincias.Pois estas so apenas membros subalternos de uma cincia univer-sal, a filosofia. S na unidade sistemtica desta podem elas chegar autntica racionalidade que, tal como at agora se desenvolve-ram, lhes falta. necessria uma reconstruo radical que satisfaa

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    a ideia da filosofia como unidade universal das cincias na unidadede uma fundamentao absolutamente racional. Esta exigncia dareconstruo realiza-se em Descartes numa filosofia de cunho sub-jectivo. Este giro subjectivo cumpre-se em dois estdios.

    Primeiro: Quem quiser seriamente tornar-se filsofo deve, umavez na vida, retirar-se para dentro de si mesmo e em si tentar o der-rube de todas as cincias existentes e a sua reconstruo. A filo-sofia um assunto inteiramente pessoal de quem filosofa. Trata-se

    da sua sapientia universalis, isto , do seu saber em busca do uni-versal mas de um saber cientfico genuno, pelo qual ele desdeincio e em cada passo se responsabiliza absolutamente em virtudedas suas razes absolutamente evidentes. S posso tornar-me ver-dadeiro filsofo pela minha livre deciso de querer viver para esteobjectivo. Se a tal me decidi, se, portanto, optei pelo comeo emabsoluta pobreza e pelo derrube, ento a primeira coisa a fazer ,decerto, reflectir como que poderei encontrar o comeo absolu-tamente seguro e o mtodo da progresso, sem qualquer apoio dacincia existente. As meditaes cartesianas no pretendem, pois,ser apenas um assunto privado do filsofo Descartes, mas o prot-tipo das meditaes necessrias a todo o principiante em geral dafilosofia.

    Se atendermos ao contedo das meditaes, hoje para ns toestranho, bem depressa se leva a cabo um retrocesso ao ego filo-sofante num segundo e mais profundo sentido. o conhecido re-trocesso, originador da epoch, ao ego das puras cogitationes. oego que a si se encontra como o nico ente apodicticamente certo,enquanto pe fora de vigncia a existncia do mundo, como nogarantida frente dvida possvel.

    Ora este ego realiza, antes de mais, um filosofar seriamente

    solipsista. Procura caminhos apodicticamente certos pelos quaislhe seja patente uma exterioridade objectiva na pura interioridade.Isto acontece em Descartes do modo que sabemos, ou seja, deduz-se primeiro a existncia e a veracitas de Deus; e, em seguida, porseu intermdio, a natureza objectiva, o dualismo das substncias,

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    em suma, o terreno objectivo das cincias positivas e estas mesmas.Todos os modos de inferncia ocorrem luz de princpios que soimanentes, inatos ao ego.

    At aqui Descartes. Agora perguntamos: vale realmente a penarastrear de forma crtica o significado eterno destes pensamentos?So eles adequados para insuflar foras vivas ao nosso tempo?

    de ponderar, em todo o caso, que as cincias positivas, quedeveriam obter mediante estas meditaes uma fundamentao ab-

    solutamente racional, se tenham to pouco interessado por ela. Nanossa poca, e no obstante o desenvolvimento fulgurante dos trssculos, sentem-se decerto inibidas pela falta de claridade dos seusfundamentos. Mas no lhes ocorre na remodelao dos seus con-ceitos bsicos recorrer s meditaes cartesianas.

    Por outro lado, de monta que as meditaes tenham feitopoca na filosofia num sentido muito singular e, sem dvida, pre-cisamente devido sua retrocesso ao ego. Descartes inaugura, defacto, uma filosofia de tipo inteiramente novo. Esta, ao modificartodo o seu estilo, empreende uma viragem radical do objectivismoingnuo para um subjectivismo transcendental, que em tentativasnovas e, no entanto, sempre insuficientes, aspira a uma forma finalpura. No deveria, porventura, esta tendncia contnua trazer em sium sentido eterno, para ns uma tarefa ingente, a ns imposta pelaprpria histria, e na qual somos todos chamados a colaborar?

    A fragmentao da filosofia contempornea no seu af desnor-teado d-nos que pensar. No h que atribu-la ao facto de as forasprovenientes das Meditaes de Descartes terem perdido a sua vi-vacidade originria? No deveria o nico renascimento fecundo,que estas meditaes despertam, consistir no em retom-las, masem descobrir primeiro na retrocesso ao ego o sentido mais pro-

    fundo do seu radicalismo e os valores eternos que da brotam? Detodas as maneiras indica-se assim o caminho que levou fenome-nologia transcendental.

    Queremos agora percorrer em comum este caminho. de ummodo cartesiano que, enquanto filsofos radicalmente incipientes,

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    queremos meditar, decerto em reformulao crtica permanente dasvelhas meditaes cartesianas. O que nestas era simples situaoembrionria deve ser levado a franco desabrochamento.

    Comeamos, portanto, cada qual por si e em si, com a deci-so de pr fora de vigncia todas as cincias que previamente nosso dadas. O objectivo perseguido por Descartes, da fundamen-tao absoluta das cincias, no o deixamos fugir, mas, antes demais, nem sequer se deve pressupor como assero prvia a sua

    possibilidade. Contentamo-nos com a nossa insero no agir dascincias e com tirar da o ideal da cientificidade como aquilo aque a cincia aspira. De acordo com o seu intuito, nada deve va-ler como realmente cientfico que no seja fundamentado medianteplena evidncia, isto , que no tenha de se legitimar pelo retornos prprias coisas ou aos estados de coisas numa experincia e

    evidncia originrias. Assim guiados, tomamos como princpio,enquanto filsofos principiantes, s julgar em evidncia e exami-nar criticamente a prpria evidncia, e isto, claro est, tambm comevidncia. Tendo, de incio, posto as cincias fora de vigncia,encontramo-nos ento na vida pr-cientfica, e aqui tambm nofaltam evidncias, imediatas e mediatas. isto, e nada mais, quetemos partida.

    Daqui nos vem a primeira pergunta: ser que no podemos le-gitimar evidncias imediatas e apodcticas, e em si primeiras, ouseja, tais que devam necessariamente preceder todas as outras evi-dncias?

    De facto, ao ocuparmo-nos meditativamente desta questo, pa-rece logo oferecer-se como em si a primeira de todas as evidnciase como apodctica a evidncia da existncia do mundo. Ao mundose reportam todas as cincias e j, antes delas, a vida activa. An-tes de tudo o mais, bvia a existncia do mundo de tal modoque ningum pode pensar em enunci-la expressamente numa pro-posio. que temos a experincia contnua do mundo, na qualeste est sempre e inquestionavelmente diante dos olhos. Mas seresta evidncia da experincia, no obstante o seu carcter bvio,

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    realmente apodctica? E ser ela realmente a primeira que ante-cede todas as outras? Temos de responder negativamente a ambasas perguntas. No acontece por vezes que uma coisa acaba por serevelar uma iluso dos sentidos? No sucede que at o contextoglobal da experincia, susceptvel de uma viso homognea, des-valorizado como simples sonho? No queremos utilizar a tentativade Descartes de provar demonstrao feita mediante uma crticademasiado fugaz da experincia sensvel a cogitabilidade do no-

    ser do mundo, apesar de este ser incessantemente experimentado.Apenas retemos que a evidncia da experincia para fins de umafundamentao radical da cincia necessitaria primeiro, em todoo caso, de uma crtica, da sua validade e alcance e que no deve-mos, pois, utiliz-la como inquestionvel e imediatamente apodc-tica. Assim sendo, no basta pr fora de vigncia todas as cinciasque nos so previamente dadas, trat-las como preconceitos; temostambm de subtrair vigncia ingnua o solo universal das mes-mas, o da experincia do mundo. O ser do mundo no mais podeconstituir para ns um facto bvio, mas somente um problema davigncia.

    Restar-nos- agora ainda um certo solo de ser, um solo paraquaisquer juzos, evidncias, a fim de sobre ele e apodicticamente podermos fundamentar uma filosofia universal?

    No o mundo o ttulo para o universo do ente em geral? Serque ele no em si, no fim de contas, o primeiro solo do juzo,mas j se pressupor, pelo contrrio, com a sua existncia um soloanterior de ser?

    Realizamos aqui e agora, no pleno seguimento de Descartes,a grande viragem que, feita correctamente, leva subjectividadetranscendental, a viragem para o ego como o solo apodicticamente

    certo e ltimo do juzo, sobre o qual h que fundar toda a filosofiaradical.

    Consideremos: como filsofos meditando radicalmente, no te-mos agora uma cincia para ns vigente, nem um mundo que parans exista. Em vez de pura e simplesmente existir, isto , de vi-

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    gorar para ns naturalmente na crena do ser da experincia, ele para ns apenas uma simples pretenso de ser. Isto concerne atodos os outros eus, de modo que legitimamente no podemos emrigor falar no plural comunicativo. Os outros homens e animais sopara mim apenas dados em virtude da experincia sensvel de cujavalidade, enquanto posta em questo, no me posso servir. Com osoutros perco tambm decerto todas as formas da socialidade e dacultura, numa palavra, todo o mundo concreto para mim, em vez

    de existente, apenas um fenmeno de ser. Mas independentementedo modo como se atenha pretenso de realidade deste fenmenode ser, se ser ou aparncia, ele prprio como meu fenmeno nada, mas precisamente aquilo que em toda a parte torna possvel paramim o ser e a aparncia. E de novo: se me abstiver, como emliberdade poderia faz-lo e efectivamente fiz, de qualquer crenana experincia, de modo que para mim o ser do mundo da expe-rincia permanea fora de vigncia, ento esta minha absteno o que em si, mais a corrente inteira da vida da experincia e detodos os seus fenmenos singulares, as coisas e os outros homense os objectos culturais aparentes, etc. Tudo permanece como es-tava, s que no o assumo simplesmente como existente, antes meabstenho de toda a tomada de posio quanto ao ser e aparncia.Devo igualmente abster-me das minhas outras opinies, dos meusjuzos, das minhas tomadas de posio valorativas na referncia aomundo, enquanto pressupem o ser do mundo, e tambm para eleso abster-me no significa o seu desaparecimento enquanto simplesfenmenos.

    Por conseguinte, esta inibio universal de todas as tomadas deposio frente ao mundo objectivo, qual damos o nome de epochfenomenolgica, torna-se justamente o meio metdico pelo qual

    me apreendo puramente como aquele eu e aquela vida da consci-ncia na qual e para a qual todo o mundo objectivo para mim,e tal como para mim . Tudo o que mundano, todo o serespcio-temporal para mim em virtude de o experimentar, per-cepcionar, recordar, de algum modo o pensar, julgar, valorar, dese-

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    jar, etc. Tudo isto designado por Descartes, como se sabe, como ttulo cogito. O mundo em geral para mim apenas o que existeconscientemente e para mim vigora em tais cogitationes. Dessascogitationes recebe ele todo o seu sentido e toda a sua vigncia de

    ser. Nelas decorre toda a minha vida mundana. No posso viver,experimentar, pensar, valorar e agir em nenhum outro mundo queno tenha o sentido e a validade em mim e a partir de mim pr-prio. Se me elevar acima de toda esta vida e me abstiver de toda

    a realizao de qualquer crena no ser, a qual supe justamente omundo como existente, se dirigir exclusivamente o meu olhar paraesta prpria vida enquanto conscincia do mundo, ento ganho-mea mim como o ego puro com a corrente pura das minhas cogitatio-nes.

    Ganho-me, decerto, no como um pedao do mundo, j quepusera universalmente o mundo fora de vigncia, no como o eude homem singular, mas como eu em cuja vida consciente todo omundo e eu prprio enquanto objecto mundano, enquanto homemque existe no mundo, recebem o sentido e a vigncia de ser.

    Encontramo-nos aqui num ponto perigoso. Afigura-se-me muitofcil, seguindo Descartes, apreender o ego puro e as suas cogitati-ones. No entanto, como se estivssemos numa ravina ngremeem que avanar com serenidade e segurana decide da vida e damorte filosficas. Descartes tinha a mais pura vontade de radicalausncia de preconceitos. Mas, graas s recentes investigaes,em particular s belas e profundas dos Srs. Gilson e Koyr, sa-bemos quanta Escolstica se encontra oculta e como preconceitoobscuro nas Meditaes de Descartes. No , porm, s isso; te-mos, antes de mais, de manter afastados j os preconceitos, parans dificilmente perceptveis, derivados da orientao para a cin-

    cia matemtica da natureza, como se sob o ttulo ego se tratassede um axioma fundamental apodctico que, em unio com outros(a derivar deste), deve fornecer o fundamento para uma cinciadedutiva do mundo, uma cincia ordine geometrico. Neste con-texto, no pode de modo algum afigurar-se bvio que tivssemos

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    salvo, no nosso ego apodicticamente puro, uma pequena pontinhado mundo que, entre todas as coisas do mundo, seria a nica in-questionvel para o eu filosofante, e que o que importa agora desvendar o mundo restante, mediante inferncias bem feitas e deacordo com os princpios inatos do ego.

    Infelizmente o que acontece em Descartes com a viragem dis-creta, mas funesta, que transforma o ego em substantia cogitans,em animus humano separado, em ponto de partida para racioc-

    nios segundo o princpio da causalidade, em suma, com a viragempela qual se tornou o pai do contraditrio realismo transcendental.Nada disto ter a ver connosco, se nos mantivermos fiis ao radi-calismo da auto-reflexo e, assim, ao princpio da pura intuio;se, portanto, nada deixarmos valer a no ser como aquilo que, nocampo do ego aberto pela epoch, nos foi efectivamente dado e,antes de mais, de um modo de todo imediato; se, portanto, nadaexpressarmos que ns prprios no vejamos. Foi aqui que Descar-tes falhou, e assim se explica que esteja perante a maior de todas asdescobertas, que de certo modo j a fez e, apesar disso, no capte oseu sentido genuno, sentido da subjectividade transcendental, peloque no transpe a porta de entrada que d para a autntica filosofiatranscendental.

    A epochlivre, quanto ao ser do mundo que aparece e que paramim vale como real como real na primitiva atitude natural , mos-tra o maior e mais maravilhoso de todos os factos, a saber, que eue a minha vida permanecemos intocados na minha vigncia de ser,quer o mundo exista quer no, quer se decida a seu respeito seja oque for. Se afirmar na vida natural: Sou, penso, vivo, ento estoua afirmar: eu, esta pessoa humana entre outros homens no mundo,que me situo graas ao meu corpo no complexo real da natureza,

    no qual se inserem tambm as minhas cogitationes, as minhas per-cepes, recordaes, juzos, etc., como factos psicofsicos. Assimconcebidos, sou eu e somos ns, homens e animais, temas das cin-cias objectivas, da biologia, da antropologia e zoologia, e tambmda psicologia. A vida psquica, de que toda a psicologia fala,

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    entendida como vida psquica no mundo. A epoch fenomenol-gica, que o percurso das meditaes cartesianas depuradas exigede mim enquanto filosofante, exclui do meu campo judicativo nos a vigncia do ser do mundo objectivo em geral, mas tambmas cincias mundanas, e at j como factos do mundo. Para mimno h, portanto, nenhum eu e nenhuns actos psquicos, fenme-

    nos psquicos no sentido da psicologia: para mim, por conseguinte,tambm no existo como homem, no existem as minhas prprias

    cogitationes como componentes de um mundo psicofsico. Em vezdisso, porm, ganhei-me a mim mesmo, e ganhei-me simplesmentecomo aquele eu puro com a vida e as faculdades puras (por exem-plo, com a faculdade evidente: posso suspender o meu juzo), pelasquais o ser deste mundo e qualquer essncia tm para mim sentidoe vigncia possvel. Se o mundo se diz transcendente, pois o seueventual no-ser no elimina o meu ser-puro, antes o pressupe,ento este meu ser puro ou o meu eu puro diz-se transcendental.Mediante a epoch fenomenolgica reduz-se o eu humano naturale, claro est, o meu, ao transcendental; e assim que se entende aelocuo acerca da reduo fenomenolgica.

    preciso, porm, dar mais alguns passos para que o que aquise elucidou possa primeiramente obter a sua recta utilidade. Quese deve comear por fazer filosoficamente com o ego transcenden-tal? Sem dvida evidente para mim que filosofo que o seuser precede gnoseologicamente todo o ser objectivo. Em certo sen-tido, ele mesmo o fundamento e o solo sobre o qual se joga todo oconhecimento objectivo, o bom e o mau. Mas significar esta pre-cedncia e pressuposio em todo o conhecimento objectivo queele a base cognitiva, no sentido habitual, para este conhecimentoobjectivo? A ideia, a tentao, no anda muito longe; at a de

    toda a teoria realista. Mas a tentao de buscar na subjectividadetranscendental premissas para a posio existencial do mundo sub-jectivo desaparece ao pensarmos que todos os raciocnios, por nsrealizados e concebidos puramente, decorrem justamente na sub-jectividade transcendental e que todas as comprovaes relativas

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    ao mundo tm o seu padro no prprio mundo, tal como ele se d econfirma a si mesmo na experincia. No que queiramos declararcomo falsa a grande ideia cartesiana de procurar a fundamentaomais profunda das cincias objectivas e do ser do mundo objectivona subjectividade transcendental. De contrrio, no seguiramoso caminho da sua meditao, mesmo sujeitando-a crtica. Mas,talvez, com a descoberta cartesiana do ego, se abra tambm umanova ideia de fundamentao, a saber, a da fundamentao trans-

    cendental.Com efeito, em vez de avaliar o ego como uma simples propo-sio apodctica e como premissa absolutamente fundante, dirigi-mos a nossa ateno para o facto de que a epochfenomenolgicanos desvendou (ou a mim que filosofo) com o eu sou certamenteapodctico uma nova e infinita esfera de ser e, claro est, comoum esfera de uma nova experincia, de uma experincia transcen-dental. Mas, justamente por isso, tambm a possibilidade de umconhecimento emprico transcendental, mais ainda, de uma cinciatranscendental.

    Rasga-se aqui um horizonte cognitivo notabilssimo. A epochfenomenolgica reduz-me ao meu puro eu transcendental e, pelomenos no incio, sou ento, em certo sentido, solus ipse: no nosentido habitual, como seria o de um homem que, aps um colapsocsmico, ficaria sozinho no mundo que continua ainda a existir.Aps ter banido o mundo do meu campo judicativo como o que demim e em mim recebe o sentido de ser, sou ento o eu transcen-dental que precede o mundo, a nica coisa que judicativamente sepode posicionar e est posicionada. E agora tenho de obter umacincia, uma cincia extraordinariamente peculiar, pois ela, pro-duzida pela minha e na minha subjectividade transcendental, deve

    tambm somente pelo menos de incio valer para si, uma cin-cia transcendental-solipsista. Portanto, o fundamento derradeiro dafilosofia, no sentido cartesiano de cincia universal, no deveria sero ego cogito, mas uma cincia do ego, uma egologia pura, e deve-

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    ria pelo menos proporcionar a pedra angular da sua fundamentaoabsoluta.

    Efectivamente, esta cincia j existe como a fenomenologiatranscendental mais bsica: a mais bsica, portanto no a plena, qual pertence o caminho ulterior do solipsismo transcendental paraa intersubjectividade transcendental. Para tornar tudo isto compre-ensvel, preciso, antes de mais, abrir o que faltou a Descartes fa-zer o campo infinito da auto-experincia transcendental do ego. A

    auto-experincia, e at mesmo na sua valorao como apodctica,desempenha, como se sabe, nele prprio um papel, mas desvendaro ego na total concreo da sua existncia e vida transcendentais,e encar-lo como campo de investigao a percorrer sistematica-mente at aos seus confins, foi algo que lhe permaneceu estranho.O filsofo tem de pr no centro a inteleco fundamental de que,na atitude da reduo transcendental, pode reflectir de modo conse-quente sobre as suas cogitationes e o seu contedo fenomenolgicopuro, e descortinar a por todos os lados o seu ser transcendental nasua vida transcendental-temporal e nas suas faculdades. Trata-seclaramente de paralelos daquilo que o psiclogo na sua mundani-dade chama experincia interna ou auto-experincia.

    Da maior e at de decisiva importncia , em seguida, observarque isto no se pode abordar ligeiramente o que tambm Descar-tes por vezes advertiu que, por exemplo, a epochnada modificaquanto ao mundano, que a experincia experincia dele e, porconseguinte, a respectiva conscincia tambm conscincia dele.O ttulo ego cogito deve incluir mais um elo: cada cogito tem em sicomo visado o seu cogitatum. A percepo da casa, mesmo quandosuspendo a actividade da crena perceptiva, , tomada tal como avivo, percepo desta e justamente desta casa que aparece assim e

    assado, mostrando-se com as determinaes, de lado, de perto oude longe.

    E, do mesmo modo, a lembrana clara ou vaga lembrana dacasa representada vaga ou claramente, e o juzo, ainda que errado, um juzo deste e daquele estado de coisas visado, etc. A propri-

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    edade fundamental dos modos de conscincia, que o eu vive como

    eu, a chamada intencionalidade, sempre ter conscincia de al-guma coisa. A este quid da conscincia pertencem os modos deser como existente, ser presumido, no-ser, mas tambm os modosdo ser-aparncia, ser-bom ou ser-de-valor, etc. A experincia fe-nomenolgica enquanto reflexo deve manter-se afastada de todasas invenes construtivistas e, como genuna, deve tornar-se muitoconcreta, justamente com o contedo de sentido e de ser com que

    ela surge. uma inveno construtivista do sensualismo interpretar a cons-cincia como complexo de dados sensveis, eventualmente acrescentar-lhe depois qualidades morfolgicas e deixar ao cuidado destas atotalidade. Isto j radicalmente falso na atitude psicolgica mun-dana, e muito mais o ainda na atitude transcendental. Se a anlisefenomenolgica na sua progresso sob o ttulo de dados sensoriaistem de mostrar alguma coisa, ento esta no , de todas as ma-neiras, algo de primeiro em todos os casos da percepo externamas, na verdadeira descrio puramente intuitiva, a primeira coisa descrever de perto o cogito, por exemplo, a percepo da casa en-quanto tal, segundo o seu sentido de objecto e segundo os modosde manifestao. E assim para toda a espcie de conscincia.

    Justamente ao virar-me para o objecto da conscincia, acho-ocomo algo que experimentado ou intentado com tais e tais deter-minaes, nos juzos como portador de predicados judicativos, navalorao como suporte de predicados axiolgicos. Olhando parao outro lado, deparo com os modos variveis da conscincia, omodo perceptivo, o modo da recordao, tudo o que no objectoou determinao objectal, mas sim modo subjectivo do dar-se ouda manifestao, como perspectivas ou diferenas da vaguidade ou

    claridade, da ateno ou desateno, etc.Fazendo uma reflexo permanente sobre si mesmo, enquanto

    filsofo meditativo que assim se tornou ele prprio ego transcen-dental, significa pois ingressar na experincia transcendental de ili-mitada abertura, no se contentar com o ego vago, mas rastrear

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    a corrente incessante do ser e da vida cogitantes, observar tudoaquilo que h para observar, penetr-lo pela explicitao, apreend-lo descritivamente em conceitos e juzos puros que se vo buscarde modo inteiramente originrio a este depsito intuitivo.

    Portanto, serve-nos de orientao, como j se disse, mesmoum ttulo trplice enquanto esquema das elucidaes e descries:ego cogito cogitatum. Se abstrairmos, antes de mais, do eu idn-tico, no obstante ele residir de certo modo em todo o cogito,

    destaca-se ento mais facilmente na reflexo a especificidade doprprio cogito, e de imediato se distinguem tipos descritivos, quena linguagem so indicados muito vagamente como percepcionar,lembrar-se, manter-se-ainda-na-conscincia-aps-a-percepo, ex-pectar, desejar, querer, enunciar predicativamente, etc. Mas se atomarmos tal como no-la proporciona concretamente a reflexo,logo vem ao de cima a diferena fundamental j mencionada entreo sentido objectal e o modo de conscincia, eventualmente o modode manifestao: por conseguinte, a bilateralidade considerada noseu elemento tpico que constitui justamente a intencionalidade,ou seja, a conscincia enquanto conscincia disto e daquilo. Daquiresultam sempre duplas orientaes descritivas.

    Importa, pois, ter aqui em conta que a epoch transcendentalquanto ao mundo existente com todos os objectos experimenta-dos, percepcionados, recordados, pensados, judicativamente acre-ditados, nada altera no facto de o mundo e todos estes objectosenquanto fenmenos da experincia, mas tambm enquanto fen-menos puros, ou seja, como cogitata das respectivas cogitationes,terem de ser um tema capital da descrio fenomenolgica. Masque faz ento a diferena abissal entre os juzos fenomenolgicossobre o mundo da experincia e os objectivo-naturais? A resposta

    pode dar-se assim: enquanto ego fenomenolgico, tornei-me puroespectador de mim mesmo, e nada mais tenho em vigncia do queaquilo que encontrei como inseparvel de mim prprio, como aminha vida pura e como desta mesma inseparvel e, claro est, talcomo a reflexo originria e intuitiva me desvela para mim prprio.

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    Enquanto homem radicado na atitude natural, como eu era antes daepoch, vivia ingenuamente no interior do mundo; em plena expe-rincia, vigorava para mim, sem mais, o experimentado e, nessabase, eu levava a cabo as minhas outras tomadas de posio. Mastudo isto decorria em mim sem que eu para a virasse a minha aten-o; o que por mim era experimentado, as coisas, os valores, osfins, constitua o meu interesse, mas no a minha vida experien-cial, o meu ser-interessado, o meu tomarposio, o meu subjectivo.

    Tambm enquanto vivia naturalmente era o meu eu transcendental,mas eu nada de tal sabia. Para me aperceber da minha peculiari-dade absoluta, tive de exercitar justamente a epoch fenomenol-gica. No pretendo por meio dela, como Descartes, praticar umacrtica da validade, se poderei confiar apodicticamente na experi-ncia, por conseguinte, no ser do mundo, mas quero aprender queo mundo para mim, e tambm de que modo que o mundo paramim o cogitatum das minhas cogitationes. No pretendo apenasestabelecer em geral que o ego cogito antecede apodicticamente oser-para-mim do mundo, mas chegar a conhecer integralmente ever o meu ser concreto como ego: o meu ser como algum que ex-perimenta e vive naturalmente no interior do mundo consiste numavida transcendental particular, na qual levo a cabo o experimentarcom uma crena ingnua, e continuo a activar a minha convicoacerca do mundo, ingenuamente adquirida, etc. Por conseguinte, aatitude fenomenolgica com a sua epoch consiste em eu obter oderradeiro ponto pensvel da experincia e do conhecimento, no

    qual me torno espectador imparcial do meu eu mundano-natural e

    da vida do eu, a qual constitui a apenas um pedao particular ouum estrato especfico da minha vida transcendental desvelada. Noestou envolvido na medida em que, enquanto me abstenho de to-

    dos os interesses mundanos que a ainda tenha, enquanto eu ofilosofante me ponho acima deles e os contemplo, os tomo comotemas da descrio, bem como em geral o meu ego transcendental.

    Realiza-se assim, com a reduo fenomenolgica, uma esp-cie de ciso do ego: o espectador transcendental pe-se acima de

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    si prprio, olha para si e v-se tambm como eu antes votado aomundo, e descobre-se em si, pois, como homem enquanto cogita-tum e descobre nas cogitationes inerentes a vida e o ser transcen-dentais que constituem o mundano integral. Se o homem natural(em que o eu , em ltima anlise, transcendental, mas disso nadasabe) tem um mundo que existe em ingnua absolutidade e umacincia do mundo, ento o espectador que de si se tornou transcen-dentalmente consciente, enquanto eu transcendental, tem o mundo

    apenas como fenmeno, isto , como cogitatum da respectiva co-gitatio, como o aparente das respectivas aparncias, como simplescorrelato.

    Quando a fenomenologia tem tematicamente objectos da cons-cincia, e seja qual for a sua natureza, se reais ou ideais, tem-nosapenas como objectos dos respectivos modos de conscincia; a des-crio que pretende apreender os fenmenos plenamente concretosdas cogitationes, deve continuamente voltar o olhar do lado objec-tal para o lado da conscincia e rastrear aqui em geral as relaescontextuais existentes. Se, por exemplo, tomar a percepo de umhexaedro como tema, noto, na reflexo pura, que o hexaedro dadocontinuamente como unidade objectal numa multiplicidade poli-morfolgica e claramente inerente de modos de manifestao. Omesmo hexaedro ou o mesmo que aparece, ora deste ou daquelelado, ora nestas ora naquelas perspectivas, ora em manifestaesprecisas ora em manifestaes esbatidas, ora em grande claridade eexactido ora em menor claridade. No entanto, se atentarmos bemem qualquer superfcie vista do hexaedro, em qualquer aresta oucanto, em qualquer mancha cromtica, em suma, em qualquer mo-mento do sentido objectal, notamos para cada um deles a mesmacoisa: a unidade de uma multiplicidade de modos de manifesta-

    o que contnua e repetidamente variam, das suas perspectivasparticulares, das diferenas especficas do aqui e alm subjecti-vos. Olhando bem, deparamos com a cor inalterada continuamenteidntica mas, ao reflectirmos sobre os modos da manifestao, re-conhecemos que ela nada mais , que no pode ser pensada de

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    outro modo, a no ser que se apresenta ora nestes ora naqueles per-fis cromticos. Temos sempre a unidade apenas como unidade apartir da apresentao, a qual a apresentao da auto-ostenso dacor ou auto-ostenso da aresta.

    O cogitatum simplesmente possvel no modo particular docogito. Se, pois, comearmos a tomar a vida da conscincia deum modo inteiramente concreto e olharmos descritivamente, comconstncia, para ambos os lados e para as suas relaes intencio-

    nais, desfraldam-se verdadeiras infinidades e factos sempre novosjamais pressentidos. Entre eles se inscrevem as estruturas da tem-poralidade fenomenolgica. o que se passa, j quando persis-timos no interior do tipo da conscincia, que se chama percepocoisal. Ela , ao vivo, como um durar, um fluir temporal do per-cepcionar e do percepcionado. Este fluir incessante, esta tempora-lidade algo de essencialmente inerente ao fenmeno transcenden-tal. Toda a diviso, que nela pensarmos, origina por seu turno umapercepo do mesmo tipo, e de cada seco, de cada fase dizemosa mesma coisa: o hexaedro percepcionado. Mas esta identidade um rasgo descritivo imanente de semelhante vivncia intencio-nal e das suas fases, um rasgo que existe na prpria conscincia.Os fragmentos e as fases da percepo no esto colados uns aosoutros de modo extrnseco, esto unidos, justamente como cons-cincia e, de novo, a conscincia est unida, e unida decerto naconscincia dela mesma. No existem primeiro coisas e, em se-guida, se insinuam na conscincia de modo que o mesmo pene-trou aqui e alm, mas conscincia e conscincia, um cogito e outroconectam-se num cogito que a ambos une, o qual, como uma cons-cincia nova, por seu turno conscincia de algo e , sem dvida,a realizao desta conscincia sinttica de que nela se conhece o

    mesmo, o um como um. num exemplo que embatemos aqui na singularidade da sn-

    tese enquanto peculiaridade fundamental da conscincia, e com eladesponta ao mesmo tempo a diferena entre contedos da consci-ncia inclusos e ideais, simplesmente intencionais. O objecto per-

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    ceptivo, olhado fenomenologicamente, no uma poro inclusano percepcionar e nas suas perspectivas e outras multiplicidadesde manifestao, que fluem e se unificam de modo sinttico. Duasmanifestaes que se me do, em virtude de uma sntese, comomanifestaes do mesmo so separadas quanto ao teor, no tmnenhum dado em comum enquanto assim separadas, tm quandomuito momentos semelhantes e anlogos. O mesmo hexaedro visto o mesmo intencionalmente; o que se oferece como espacial-real

    , em mltiplas percepes, algo de idealmente idntico, idnticopara a inteno, para os modos da conscincia, imanente aos ac-tos do eu no como dado incluso, mas como sentido objectal. Omesmo hexaedro pode, em seguida, existir tambm para mim emdiferentes recordaes, expectaes, representaes claras ou va-zias como o mesmo intencional, substrato idntico para predica-es, valoraes, etc. Esta mesmidade reside sempre na prpriavida da conscincia e intuda pela sntese. Por isso, a refernciada conscincia objectalidade atravessa toda a vida consciente,e semelhante objectalidade descortina-se como uma peculiaridadeessencial de toda a conscincia, em modos conscientes sempre no-vos, e muito dissimilares, de poder transitar sinteticamente para aconscincia unitria do mesmo.

    Com isto se prende o facto de que nenhum cogito singular estisolado no ego, tanto mais, por fim, se vem a descobrir que toda avida universal na sua flutuao, no seu fluxo heracliteano, constituiuma unidade sinttica universal. H que agradecer-lhe profunda-mente que o ego transcendental no s , mas por si mesmo, umaunidade concreta abarcvel, vivendo uniformemente, em modos daconscincia sempre novos e, no entanto, objectivando-se constante-mente de uma maneira homognea e na forma do tempo imanente.

    Mas no s isto. To essencial como a actualidade da vida igualmente a potencialidade, e esta potencialidade no uma pos-sibilidade vazia. Cada cogito, por exemplo, uma percepo externaou uma recordao, etc., traz em si mesma e com a possibilidadede ser desvelada, uma potencialidade que lhe imanente de vivn-

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    cias possveis referidas ao mesmo objecto intencional e a realizarpelo eu. Em cada uma encontramos, como diz a fenomenologia,horizontes, e em diverso sentido. A percepo progride e delineiaum horizonte de expectao como horizonte de intencionalidade,apontado para o vindouro enquanto percepcionado, portanto parafuturas sries perceptveis. Mas cada uma traz tambm consigo po-tencialidades como o eu poderia, em vez disso, olhar para alm,ser-lhe-ia possvel dirigir de outro modo o seu decurso perceptivo.

    Cada recordao remete-me para uma cadeia completa de recor-daes possveis at ao agora actual, e para co-presencialidades adesvelar em cada lugar do tempo imanente, etc.

    Tudo isto so estruturas intencionais e dominadas pelas leis dasntese. Posso inquirir toda a vivncia intencional, ou seja, possopenetrar no seu horizonte, explic-lo e, por um lado, desvelo as-sim potencialidades da minha vida, por outro, clarifico sob umaperspectiva objectal o sentido visado.

    A anlise intencional , pois, algo de inteiramente diverso daanlise na acepo habitual. A vida consciente e isto vale j paraa pura psicologia interna como paralelo da fenomenologia trans-cendental no uma simples conexo de dados, nem um amon-toar de tomos psquicos, nem ainda uma totalidade de elementos,que esto unidos por qualidades morfolgicas. A anlise intencio-nal o desvelamento das actualidades e potencialidades, nas quais

    se constituem objectos como unidades de sentido, e toda a anlisede sentido se leva a efeito na transio das vivncias ingredientespara os horizontes intencionais nelas delineados.

    Este ltimo esclarecimento prescreve anlise e descriofenomenolgicas uma metodologia totalmente nova, uma metodo-logia que entra em aco em toda a parte onde objecto e sentido,

    questes de ser, de possibilidades, de origem e de legitimao sedevem abordar com seriedade. Toda a anlise intencional vai almda vivncia momentnea e inclusamente dada da esfera imanente,e de modo tal que, ao descortinar potencialidades, patentes agoraingredientemente e guisa de horizonte, reala multiplicidades de

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    novas vivncias, nas quais se torna claro o que s implicitamentese visava e j deste modo era intencional. Se vir um hexaedro, digotambm: estou a v-lo realmente e, em rigor, s de um lado. E,no obstante, evidente que aquilo que agora percepciono mais,que a percepo encerra em si um visar, embora inconcretizado,graas ao qual o lado visto enquanto simples lado possui o seusentido. Mas como se descortina este visar mais, como que emrigor se torna evidente que eu intento mais? Pela transio para

    uma sequncia sinttica de percepes possveis, como eu a teriase, com o passo, me pusesse a rodear a coisa. A fenomenologiadesmembra continuamente o visar, a respectiva intencionalidade,ao estabelecer como tais snteses cumuladoras de sentido. Expli-car a estrutura universal da vida transcendental da conscincia nasua referncia significante e na sua constituio do sentido, tal atarefa ingente imposta descrio.

    Naturalmente, a investigao move-se em nveis diferentes. No decerto impedida por aqui ser o reino da corrente subjectiva eporque seria uma loucura querer proceder aqui com uma metodo-logia da formao de conceitos e de juzos, que a decisiva paraas cincias exactas objectivas. Sem dvida, a vida da conscin-cia encontra-se em fluxo, e todo o cogito se insere numa corrente,sem elementos ltimos e relaes ltimas fixveis. Mas na cor-rente domina uma tpica muito bem assinalada. A percepo umtipo universal, a recordao um outro tipo, conscincia vaga e,claro est, retentiva; como a que tenho de um fragmento de melo-dia, que j no ouo, mas ainda tenho no campo da conscincia, nano-intuibilidade e, no entanto, este fragmento de melodia coisassemelhantes so tipos universais, recortados com preciso que, porseu turno, se particularizam no tipo percepo da coisa espacial eno tipo percepo de um homem, do ser psicofsico.

    Posso indagar, mediante uma descrio geral, cada um dessestipos segundo a sua estrutura e, claro est, segundo a sua estru-tura intencional, pois se trata justamente de um tipo intencional.Posso inquirir como um passa para o outro, como se constitui, se

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    modifica, que formas de sntese intencional nele necessariamenteresidem, que formas de horizontes ele necessariamente em si in-clui, que formas de desvelamento e repleo lhe pertencem. Isto anlise intencional da percepo, teoria transcendental da lem-brana e da conexo das instituies em geral, mas tambm teo-ria transcendental do juzo, da vontade, etc. A questo no prem movimento, como as cincias empricas objectivas, a simplesexperincia e analisar inclusivamente o dado da experincia, mas

    rastrear as linhas da sntese intencional, como elas esto traadasintencionalmente e segundo um horizonte, devendo nelas mostrar-se e, em seguida, desvelar-se tambm os prprios horizontes.

    Mas j que cada cogitatum singular, em virtude do seu mbitotranscendental imanente de tempo, uma sntese de identidade,uma conscincia de que continuamente o mesmo, o objecto de-sempenha j algum papel como fio condutor transcendental para asmultiplicidades subjectivas que o constituem. Mas na viso globaldos tipos mais gerais de cogitata e da sua geral descrio intencio-nal , no entanto, de novo indiferente se estes ou aqueles objectosso a os percepcionados ou recordados, e quejandos.

    Se, porm, ao fenmeno do mundo, o qual tambm consci-ente enquanto unidade na corrente unitrio-sinteticamente transi-tiva das percepes, o tomarmos como tema, a saber, o admirveltipo percepo universal do mundo, se perguntarmos como se devecompreender intencionalmente que existe para ns um mundo, en-to retemos de modo consequente o tipo objectal sinttico mundo,naturalmente como cogitatum, e como fio condutor para o desdo-bramento da estrutura infinita da intencionalidade experiencial do

    mundo. Temos assim de ingressar na tpica singular. O mundo daexperincia puramente como experimentado, sempre na reduo

    fenomenolgica, articula-se em objectos identicamente persisten-tes. Como aparece a infinidade particular de percepes reais epossveis que pertencem a um objecto? E assim para todo o tipouniversal de objecto. Como aparece a intencionalidade do hori-zonte, sem a qual um objecto no poderia ser objecto apontando

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    para a conexo do mundo fora do qual, como mostra a anlise daprpria intencionalidade, nenhum objecto pensvel, etc. E assimigualmente para todo o tipo particular de objecto, que possivel-mente pertence ao mundo.

    A reteno ideal de um tipo intencional de objecto significa,como logo se v, uma organizao ou ordem nas investigaesintencionais. Por outras palavras, a subjectividade transcenden-tal no um caos de vivncias intencionais, mas uma unidade da

    sntese, e de uma sntese multi-estratificada, na qual so constitu-dos sempre novos tipos objectais e objectos individuais. Mas cadaobjecto designa uma estrutura regular para a subjectividade trans-cendental.

    Com a questo em torno do sistema transcendental da intenci-onalidade, graas ao qual existe permanentemente para o ego umanatureza, um mundo antes de mais, na experincia como direc-tamente visvel, apreensvel, etc. e, em seguida, mediante a inten-cionalidade sempre j dirigida para o mundo com esta questo,encontramo-nos j, em rigor, na fenomenologia da razo. Razo eirrazo, entendidas no sentido mais amplo, no designam quaisquerpoderes e factos casualmente ocorridos, mas pertencem em geral mais universal forma estrutural da subjectividade transcendental.

    A evidncia no sentido mais lato da automanifestao, do estar-a-como-ele-mesmo, como um ser-dentro de um estado de coisas,de um valor e quejandos, no uma ocorrncia casual na vidatranscendental. Pelo contrrio, toda a intencionalidade ou elaprpria uma conscincia de evidncia, que tem o cogitatum comoele prprio, ou est apontada essencialmente e segundo um hori-zonte para a autodoao, e para tal dirigida. J toda a clarificao uma evidenciao. Toda a conscincia vaga, vazia e indistinta

    de antemo apenas conscincia disto e daquilo, na medida em queo remete para uma via de clarificao em que o intentado estariadado como realidade ou como possibilidade. Posso inquirir toda aconscincia vaga sobre como deveria aparecer o seu objecto. Semdvida, tambm inerente estrutura da subjectividade transcen-

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    dental que se formem opinies, as quais, na transio para a evi-dncia possvel, a saber, para a representao clara, e tambm naexperincia realmente contnua na transio efectiva de uma opi-nio para o prprio estado de coisas evidente, no salientam o vi-sado como uma identidade possvel, mas outra coisa. Em vez daconfirmao, da repleo, surge ento, muitas vezes, a desiluso, aabrogao, a negao. Mas tudo isto pertence, enquanto modo t-pico de ocorrncias contrrias da repleo e desiluso, ao domnio

    global da vida consciente. O ego vive sempre e necessariamentenas cogitationes, e o respectivo objecto sempre ou intuvel (querna conscincia de que ele , quer na conscincia fantasiosa de comose ele fora) ou tambm no-intuvel, factualmente remoto. E sem-pre dele se podem indagar os caminhos possveis de a ele prprio sechegar como realidade efectiva ou como possibilidade da fantasia,e os caminhos em que ele se revelaria, portanto, como existente,se apreenderia numa continuidade unnime de evidncias, ou nosquais ele realaria o seu no-ser.

    Um objecto existe para mim, isto , tem vigncia para mim deacordo com a conscincia. Mas esta vigncia s para mim vign-cia enquanto presumo que eu a poderia confirmar, que eu consegui-ria preparar para mim caminhos praticveis, isto , experincias, apercorrer de um modo livre e activo e outras evidncias, nas quaiseu estaria diante dele mesmo, o teria realizado como efectivamentea. Isto tambm se mantm, quando a minha conscincia expe-rincia dele, conscincia de que ele prprio est a, ele prprio visto. Com efeito, tambm este ver continua a remeter para ou-tro ver, para a possibilidade de comprovar e de poder sempre denovo remeter para o modo de comprovao progressiva o que j sealcanou como existente.

    Reflictam no imenso significado desta observao, aps nos ter-mos situado no solo egolgico. Vemos, neste ltimo ponto de vista,que a existncia e a essncia no tm, de facto e na verdade, parans nenhum sentido excepto o ser a partir da possibilidade da com-provao identificadora; mas tambm que esta via de comprovao

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    e a sua acessibilidade pertencem a mim enquanto subjectividadetranscendental e s enquanto tal tm um sentido.

    Por conseguinte, o ente verdadeiro, quer real ou irreal, tem sig-nificado s enquanto correlato particular da minha intencionali-

    dade prpria, da intencionalidade actual e da indicada como po-tencial. Sem dvida, no um cogito isolado; por exemplo, o serde uma coisa real no como mero cogito da percepo isolada, queagora tenho. Mas ela prpria e o seu objecto no como do dar-se

    intencional remetem-me, em virtude do horizonte presuntivo, paraum sistema infinitamente aberto de percepes possveis enquantotais, que no so inventadas mas motivadas na minha vida inten-cional, e s podem perder a sua vigncia presuntiva quando umaexperincia antagnica as abroga, e so necessariamente pressu-postas como possibilidades minhas que eu, se no for impedido,poderia estabelecer, ao dirigir-me para certo ponto, ao olhar emredor, etc.

    Mas, decerto, tudo isto foi expresso de um modo muito gros-seiro. So necessrias anlises intencionais de muito maior alcancee complicao para expor as estruturas de possibilidade em relaoao horizonte que pertence especificamente a cada tipo objectal, etornar assim compreensvel o sentido do ser respectivo. De ante-mo, evidente apenas uma coisa, que serve de guia: o que eutenho por ente vale para mim como ente, e toda a comprovaoimaginvel reside em mim prprio, encerrada na minha intenciona-lidade imediata e mediata, na qual deve, pois, estar conjuntamenteincludo todo o sentido do ser.

    Encontramo-nos assim j nos grandes problemas, mais ainda,nos problemas esmagadoramente grandes da razo e da realidade,da conscincia e do ser verdadeiro, como em geral a fenomenologia

    os denomina, nos problemas constitutivos. Surgem, em primeirolugar, como problemas fenomenolgicos limitados, pois que, porrealidade efectiva, por ser, se pensa to-s no ser mundano e, destemodo, nos paralelos fenomenolgicos da teoria do conhecimento(assim habitualmente chamada) ou da crtica da razo, a qual, como

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    usual, se refere ao conhecimento objectivo, ao conhecimento dasrealidades. Mas, na verdade, os problemas constitutivos abarcamtoda a fenomenologia transcendental e designam um aspecto siste-mtico inteiramente geral, sob o qual se ordenam todos os proble-mas fenomenolgicos. A constituio fenomenolgica de um ob-jecto significa o seguinte: considerao da universalidade do egosob o ponto de vista da identidade deste objecto, a saber, na in-dagao da totalidade sistemtica das vivncias reais e possveis

    da conscincia que, enquanto a ele referveis, esto esboadas nomeu ego e significam para o meu ego uma regra firme de sntesespossveis.

    O problema da constituio fenomenolgica de qualquer tipode objectos , antes de mais, o problema do seu dar-se com evi-dncia idealmente perfeita. A cada tipo objectal cabe a sua espcietpica de experincia possvel. Que aspecto tem semelhante expe-rincia segundo as suas estruturas essenciais e, claro est, quandoa pensamos como realando o objecto de um modo omnilateral eidealmente perfeito? E acrescente-se ainda outra questo: como que o ego chega a ter semelhante sistema como posse disponvel,mesmo quando dele no se tem nenhuma experincia imediata?Por fim, que significa para mim o facto de os objectos serem paramim o que so, sem que deles eu saiba ou soubesse?

    Todo o objecto existente objecto de um universo de experi-ncias possveis, pelo que devemos apenas alargar o conceito deexperincia ao mais lato conceito, ao da evidncia correctamenteentendida. A todo o objecto possvel corresponde um tal sistemapossvel. Transcendental , como j se disse, ndice objectal pro-gressivo de uma estrutura universal do ego, de pertena inteira-mente determinada, segundo os reais cogitata deste ltimo, e se-

    gundo as suas potencialidades e poderes. Mas a essncia do egoconsiste em ser na forma de conscincia real e possvel, e da cons-cincia possvel segundo as suas formas subjectivas nele nsitas, doeu posso, do poder. O ego o que em relao a objectalidadesintencionais, e tem sempre ente e ente segundo a possibilidade e,

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    por isso, a sua peculiaridade essencial consiste em formar sempresistemas de intencionalidade e em t-los j constitudos, cujo n-dice so os objectos por ele visados, pensados, valorados, tratados,fantasiados e a fantasiar, etc.

    Mas o prprio ego , e o seu ser ser para si mesmo, tambmo seu ser est nele constitudo e contnua a constituir-se para elecom todo o ente particular que lhe inerente. O ser-para-si-mesmodo ego ser em contnua autoconstituio, a qual, por seu lado,

    o fundamento para toda a constituio dos chamados transcenden-tes, das objectalidades mundanas. Por conseguinte, o fundamentoda fenomenologia constitutiva consiste em fundar, na doutrina daconstituio da temporalidade imanente e das vivncias imanentesnela incorporadas, uma teoria egolgica pela qual se possa pouco apouco entender como que o ser-para-si-mesmo do ego concre-tamente possvel e compreensvel.

    Com isto reala-se uma ambiguidade do tema ego: ele algode diverso nos diferentes estratos da problemtica fenomenolgica.Nas primeiras consideraes mais gerais em torno da estrutura, en-contramos como resultado da reduo fenomenolgica o ego cogitocogitata e, claro est, aparece-nos pela frente a multiplicidade doscogitata, do eu percepciono, recordo-me, desejo, etc. E a primeiracoisa que a se observa que os muitos modos do cogito tm umponto de identidade, uma centrao, uma vez que eu, o mesmo eu,sou o que uma vez realiza o acto eu penso e, em seguida, o actoeu avalio como aparncia, etc. Torna-se visvel uma dupla sntese,uma dupla polarizao. Muitos, mas no todos os modos da cons-cincia, que a decorrem, so sinteticamente unidos como modosda conscincia acerca do mesmo objecto. Mas, por outro lado, to-das as cogitationes e, antes de mais, todas as minhas tomadas de

    posio tm a forma estrutural (ego) cogito, tm a polarizao doeu.

    Importa, porm, observar agora que o ego centrador no umponto ou plo vazio mas, em virtude de uma regularidade da g-nese com cada acto que dele irradia, experimenta uma determina-

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    o constante. Se, por exemplo, num acto judicativo me decidir poruma essncia, este acto fugaz esvai-se, mas eu continuo a ser o euque assim se decidiu, encontro-me a mim prprio, e de modo cons-tante, como o eu das minhas convices permanentes. O mesmo sepassa com todo o tipo de decises, por exemplo, decises axiol-gicas e volitivas.

    Temos, pois, o ego no como simples plo vazio, mas respecti-vamente como o eu persistente e permanente das convices dura-

    douras, das habitualidades em cuja modificao se constitui, antesde mais nada, a unidade do eu pessoal e do seu carcter pessoal.Mas importa de novo separar o ego na plena concreo, o qual sexiste concretamente na multiplicidade manante da sua vida inten-cional e com os objectos a intentados e que para ela se constituem.Dizemos tambm ento o ego como mnada concreta.

    Visto que eu, como ego transcendental, sou aquele que a mimprprio me posso encontrar como ego num e noutro sentido e aperceber-me do meu real e verdadeiro ser, tambm este um problema cons-titutivo, e at o problema constitutivo mais radical.

    Por isso, a fenomenologia constitutiva abrange, de facto, toda afenomenologia, embora ela no possa iniciar-se como tal, mas comuma apresentao da tpica da conscincia e o seu desdobramentointencional, que s mais tarde torna visvel o sentido da problem-tica constitutiva.

    Todavia, os problemas fenomenolgicos de uma anlise essen-cial da constituio de objectividades reais para o ego e, destemodo, os de uma teoria do conhecimento objectiva fenomenol-gica constituem por si um campo vasto.

    Antes, porm, de confrontarmos esta teoria do conhecimentocom a habitual, necessrio um ingente progresso metdico, com

    o qual chego to tarde para, em primeiro lugar, lhes referir maisdespreocupadamente as concrees. Cada um de ns, recondu-zido pela reduo fenomenolgica ao seu ego absoluto, deparouconsigo em certeza apodctica como ente fctico. Olhando comconstncia sua volta, o ego encontrou diversos tipos descritiva-

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    mente apreensveis e intencionalmente dilucidveis, e cedo con-seguiu avanar no desvelamento intencional do seu ego. No foi,porm, por acaso que repetidamente me escapou a expresso es-sncia e essencial, o que se equipara a um conceito determinadodo a priori, s elucidado pela fenomenologia. Claro , sim, o se-guinte: se expusermos e descrevermos como tipo um tipo cogita-tivo como percepo-percepcionado, reteno e retido, recordaoe recordado, enunciao e enunciado, desejo e desejada, chega-se

    assim a resultados que persistem, ainda que abstraiamos do facto.Para o tipo, a individualidade do facto exemplar, a saber, da per-cepo da mesa que agora momentaneamente conflui, de todoirrelevante; e at o (aspecto) universal de que eu, este eu fctico,tenha em geral entre as minhas vivncias efectivas semelhante tipo irrelevante, e a descrio no depende de uma comprovao dosfactos individuais e da sua existncia. E o mesmo se passa paratodas as estruturas egolgicas.

    Se, por exemplo, fao uma anlise do tipo da experincia sens-vel, acerca dos objectos espaciais; se continuo a adentrar-me siste-maticamente pela considerao constitutiva sobre como tal experi-ncia poderia e deveria continuar a decorrer unanimemente, se emgeral uma e mesma coisa se revelasse perfeita de acordo com tudoo que se lhe deve atribuir enquanto coisa, ento surge o grande co-nhecimento de que, a priori na necessidade essencial, o que paramim enquanto ego em geral deveria poder ser uma coisa verdadei-ramente existente, se encontra sob a forma essencial de um sistemaestrutural determinadamente correspondente da experincia poss-vel, com uma diversidade apririca de estruturas especificamenteinerentes.

    Posso, claro est, simular o meu ego de um modo inteiramente

    livre, posso considerar os tipos como possibilidades puramente ide-ais do ego doravante simplesmente possvel e de um ego possvelem geral (como livre variao do meu ego fctico), e obtenho assimtipos essenciais, possibilidades apriricas e leis essenciais ineren-

    tes; de igual modo, estruturas essenciais universais do meu ego

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    como de um ego imaginvel em geral, sem as quais no me possode modo algum pensar em geral ou a priori, porque deveriam tam-bm existir de um modo evidentemente necessrio para cada livrevariao do meu ego.

    Elevamo-nos assim a uma inteleco metdica que, alm dogenuno mtodo da reduo fenomenolgica, a mais importanteinteleco metdica da fenomenologia: a saber, que o ego, para fa-lar como os que nos precederam, tem um ingente a priori inato, e

    que toda a fenomenologia ou a pura auto-reflexo, metodicamenteprosseguida, do filsofo o desvelamento deste a priori inato nasua polimorfia infinita. Eis o sentido genuno do inatismo, que oantigo conceito ingnuo por assim dizer rastreara, mas no conse-guira apreender.

    A este a priori inato do ego concreto, para falar, como Leibniz,da minha mnada, pertence decerto muito mais do que poderamosrecensear. Pertence-lhe o que se pode indicar somente com umapalavra, tambm o a priori do eu no sentido particular, que definetrindade geral do ttulo cogito; o eu como plo de todas as tomadasde posio especficas ou actos do eu e como plo das afeces que,indo alm do eu dos objectos j constitudos, o motivam ao virar-seatentivo e a cada tomada de posio. O ego tem, pois, uma duplapolarizao: a polarizao segundo unidades objectais mltiplas,e a polarizao do eu, uma centrao em virtude da qual todas asintencionalidades se referem ao plo do eu idntico.

    De certo modo, porm, multiplica-se tambm indirectamenteno ego a polarizao do eu atravs das suas empatias, como espe-lhamentos nele ocorrendo maneira de apresentao de mnadasestranhas com plos estranhos do eu. O eu no simplesmenteplo de tomadas de posio que surgem e se desvanecem; cada to-

    mada de posio estabelece no eu algo de fixo, a sua convico quepersiste at algo de ulterior.

    A explorao sistemtica da esfera transcendental como esferaabsoluta do ser e da constituio, a que se reconduz tudo o que imaginvel, levanta dificuldades enormes, e s no ltimo decnio

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    que se ordenaram claramente os mtodos e os graus superiores doproblema.

    Foi muito tarde que, em especial, se abriu o acesso aos pro-blemas da universal regularidade essencial da gnese fenomeno-lgica, no fundo, da gnese passiva na formao de intencionali-dades sempre novas e de apercepes sem qualquer participaoactiva do eu. Desponta aqui uma fenomenologia da associao,cujo conceito e origem recebe um rosto essencialmente novo; so-

    bretudo, j mediante o conhecimento, a princpio estranho, de queassociao um ttulo medonho para uma regularidade essencial,um a priori inato, sem o qual o ego impensvel enquanto tal. Poroutro lado, tambm a problemtica da gnese do grau superior, emque surgem formaes de vigncia graas aos actos do eu, e o eucentral aceita assim propriedades especficas do eu, por exemplo,convices habituais, caractersticas adquiridas.

    S pela fenomenologia da gnese o ego se torna compreens-vel como uma conexo infinita de realizaes sinteticamente cor-respondentes e, claro est, de realizaes constitutivas, que fazemvigorar graus sempre novos de objectos existentes em graus de re-latividades. Torna-se compreensvel como o ego to-s o que numa gnese, pela qual se lhe adjudicam intencionalmente sempre,de modo provisrio ou duradoiro, mundos existentes, mundos re-ais e ideais; adjudicam-se a partir de criaes prprias de sentido,adjudicam-se em emendas e rasuras possveis a priori e encade-ados de nulidades, aparncias, etc., que se produzem imanente-mente no menos do que ocorrncias tpicas de sentido. De tudoisto, o facto irracional, mas a forma, o sistema ingente de for-mas dos objectos constitudos e o sistema correlativo das formasda sua constituio intencional, a priori uma infinidade inesgot-

    vel do a priori, que se descobre sob o ttulo fenomenologia, e quenada mais do que a forma essencial do ego em geral, desveladoe, respectivamente, a desvelar mediante a minha auto-reflexo.

    s realizaes constituintes do sentido e do ser pertencem to-dos os graus da realidade e da idealidade, por conseguinte, ao con-

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    tarmos e calcularmos, ao descrevermos a natureza e o mundo, aoagirmos de modo terico, ao formarmos frases, raciocnios, provase teorias, ao configur-los como verdades, etc., criamos assim parans formas sempre novas de objectos, desta vez formas de objectosideais, que existem para ns em vigncia permanente. Levamos acabo uma auto-reflexo radical, portanto um retorno ao nosso ego,e cada qual por si ao seu ego absoluto, pelo que tudo isto so for-maes da actividade livremente efectiva do eu, inserida nos graus

    da constituio egolgica, e tudo o que assim existe idealmente o que enquanto ndice dos seus sistemas constitutivos. A se en-contram tambm, pois, todas as cincias, que fao em mim valerno prprio pensar e conhecer. Inibi enquanto ego a sua vignciaingnua mas, na conexo do meu autodesvelamento transcendentalenquanto espectador imparcial da minha vida operosa, entram denovo, como j o mundo da experincia, em vigncia, mas to-scomo correlato constitutivo.

    Passamos agora a referir esta teoria egolgico-transcendentalda constituio do ser, que apresenta tudo o que ente para o egocomo criao originada nas motivaes sintticas da sua prpriavida intencional da realizao passiva e activa, habitual teoriado conhecimento ou teoria da razo. Sem dvida, a falta de umelemento fundamental da teoria fenomenolgica, que ultrapasse aaparncia do solipsismo, s se far sentir plenamente num contextomais amplo e a sua suplementao conveniente remover o impe-dimento.

    O problema da teoria do conhecimento tradicional o da trans-cendncia. Embora enquanto empirista se baseie na psicologia ha-bitual, ela no pretende ser simples psicologia do conhecimento,mas procura elucidar a possibilidade principal do conhecimento.

    O problema surge na atitude natural e continua tambm a ser nelaabordado. Encontro-me como homem no mundo e, ao mesmotempo, como quem o experimenta e cientificamente o conhece,incluindo-me a mim. Digo agora a mim mesmo: tudo o que paramim tal graas minha conscincia cognoscente, para mim o

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    experimentado do meu experimentar, o pensado do meu pensar, oteorizado do meu teorizar, o examinado do meu examinar. paramim apenas como objectalidade intencional das minhas cogitati-ones. A intencionalidade, enquanto propriedade fundamental daminha vida psquica, designa uma peculiaridade que me pertencerealmente a mim enquanto homem e tambm a cada homem quanto sua interioridade puramente psquica, e j Brentano a abordara nocentro da psicologia emprica do homem. No precisamos, pois,

    para tal de uma reduo fenomenolgica, estamos e permanece-mos no solo do mundo dado. E, por isso, dizemos tambm demodo compreensvel: tudo o que e vale para os homens e paramim, na prpria vida da conscincia que o faz, a qual persisteem si prpria em todo o ter-conscincia de um mundo e em todaa realizao cientfica. Todas as distines que leva a cabo entreexperincia autntica e enganadora e, nela, entre ser e aparncia,decorrem na minha prpria esfera consciente, igualmente quando,num grau superior, fao uma distino entre pensar discernente eno discernente, e tambm entre necessrio a priori e absurdo, en-tre empiricamente correcto e empiricamente falso. Evidentementereal, necessrio quanto ao pensamento, absurdo, possvel pelo pen-samento, verosmil, etc., tudo isto so caracteres que ocorrem nodomnio da minha conscincia em qualquer objecto intencional.Toda a autenticao e fundamentao em prol da verdade e do serocorre inteiramente em mim, e o seu fim uma caracterstica nocogitatum do meu cogito.

    Ora, aqui que se enxerga o grande problema. compreens-vel que eu, no meu campo de conscincia, no contexto da motiva-o que me determina, chegue a certezas, mais ainda, a evidnciasconstrangentes. Mas como que este jogo, que decorre totalmente

    na imanncia da vida da conscincia, pode obter significao ob-jectiva? Como que a evidncia (a clara et distincta perceptio)pode pretender mais a ser em mim do que um carcter da conscin-cia? Eis o problema cartesiano, que teve de ser resolvido mediantea veracitas divina.

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    Que tem a dizer a isto a auto-reflexo transcendental da feno-menologia? Nada mais a no ser que todo este problema absurdo,um contra-senso em que Descartes teve de cair simplesmente por-que no divisou o sentido autntico da epoch transcendental e dareduo ao ego puro. Mas muito mais grosseira ainda a habitualatitude ps-cartesiana. Perguntamos: quem ento o eu que podelegitimamente suscitar a pergunta transcendental? Se consigo issocomo homem natural, e se posso enquanto tal perguntar com seri-

    edade e, claro est, de modo transcendental: de que modo possosair da ilha da minha conscincia, de que modo pode obter signifi-cao objectiva o que ocorre na minha conscincia como vivnciaevidente? Logo que me apercepciono como homem natural, aper-cebi j de antemo o mundo espacial, apreendi-me no espao emque tenho, pois, um fora-de-mim! No estar j pressuposta a vali-dade da apercepo do mundo para o sentido da questo enquanto,porm, s a sua resposta deveria em geral revelar a validade objec-tiva? necessria, pois, a realizao consciente da reduo feno-menolgica para obter aquele eu e a vida da conscincia, na qual sedeve estabelecer a indagao transcendental enquanto indagao

    da possibilidade do conhecimento transcendente. Mas logo quealgum, em vez de levar a cabo pressa uma epochfenomenol-gica, procura antes querer desvelar, em auto-reflexo sistemtica ecomo puro ego, o seu campo total da conscincia, por conseguinte,a si mesmo, reconhece que tudo o que para ele ente se constituinele prprio, alm disso, que todo o modo de ser, inclusive todoo que caracterizado como transcendente, tem a sua constituioparticular.

    A transcendncia um carcter de ser imanente, que se consti-

    tui no interior do ego. Todo o sentido imaginvel, todo o ser conce-

    bvel, quer se expresse de modo imanente ou transcendente, cai nombito da subjectividade transcendental. Um fora dela surge comocontra-senso, pois ela concreo universal, absoluta. Pretenderconceber o universo do ser verdadeiro como algo fora do universoda conscincia possvel, do conhecimento possvel, da evidncia

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    possvel, e ambos relacionados entre si de um modo puramenteextrnseco por uma lei rgida, um absurdo. Ambos so essen-cialmente solidrios e o que essencialmente solidrio tambmconcretamente um s, um s na concreo absoluta: da subjecti-vidade transcendental. Ela o universo do sentido possvel, umfora-de , ento, precisamente o absurdo. Mas todo o absurdo ,inclusive, um modo do sentido e tem a sua absurdidade na discer-nibilidade. Mas isto no vale para o ego simplesmente fctico e

    para o que lhe facticamente acessvel enquanto ente para ele. Aauto-interpretao fenomenolgica apririca e cada ente conce-bvel, portanto, para todos os mundos imaginveis.

    Por consequncia, a genuna teoria do conhecimento s temsentido enquanto fenomenolgico-transcendental que, em vez delidar com inferncias absurdas de uma suposta imanncia para umasuposta transcendncia de quaisquer coisas em si, se ocupa, pelocontrrio, to-s com a elucidao sistemtica da realizao cog-nitiva, na qual ela se torna inteiramente compreensvel enquantorealizao intencional. Mas justamente assim que cada espciede ente, real ou ideal, se torna compreensvel como produto consti-tudo da subjectividade transcendental, precisamente nesta realiza-o. Este tipo de inteligibilidade a mais elevada forma concebvelda racionalidade. Todas as interpretaes perversas do ser brotamda cegueira ingnua relativa ao horizonte que co-determina o sen-tido do ser. Por isso, a auto-interpretao do ego levada a cabona pura evidncia, e efectuada nesta em concreo, leva a um ide-alismo transcendental, mas a um idealismo que essencialmentede novo sentido: no um idealismo psicolgico, no um idealismoque pretende derivar um mundo significativo dos dados sensoriaisinsignificativos, no um idealismo kantiano que, pelo menos, julga

    poder deixar aberta, como conceito limite, a possibilidade de ummundo de coisas em si mas um idealismo que nada mais doque uma auto-interpretao de cada sentido de ser, levada a cabo

    consequentemente na forma de cincia egolgica sistemtica, sen-tido de ser que deve poder ter sentido para mim, o ego. Mas este

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    idealismo no um produto de argumentaes ldicas para ganharcomo prmio da vitria na disputa dialctica com os realismos. Ea interpretao do sentido realizada em efectivo trabalho na trans-cendncia (dada ao ego pela experincia) da natureza, da cultura,do mundo em geral, e isto o desvelamento sistemtico da prpriaintencionalidade constituinte. A demonstrao de tal idealismo arealizao da prpria fenomenologia.

    Importa agora, no entanto, expressar a nica objeco verda-

    deiramente perturbadora. Se eu, o eu que medita, me vejo redu-zido pela epochao meu ego absoluto e ao que a se constitui, nome tornei ento no solus ipse, e no ser assim toda esta filosofiade auto-reflexo um solipsismo puro, se bem que fenomenolgico-transcendental?

    No entanto, antes de aqui se fazer uma deciso e se tentar atrecorrer a argumentaes dialcticas inteis, imperativo levar acabo o trabalho fenomenolgico concreto at uma extenso e siste-matizao suficientes pare ver como o alter ego se revela e verificano ego enquanto dado da experincia, que tipo de constituio temde emergir para a sua existncia enquanto existncia no crculo daminha conscincia e no meu mundo. Com efeito, experimento,isso sim, os outros realmente e experimento-os no ao lado da na-tureza, mas num entrosamento com a natureza. No entanto, deum modo particular que nela experimento os outros, experimento-os como no s surgindo no espao enredados psicologicamenteno contexto da natureza, mas sinto-os como experimentando tam-bm este mesmo mundo que eu experimento, como sentindo-meigualmente a mim, tal como eu os sinto, etc. Experimento em mimmesmo, no mbito da minha vida consciente transcendental, tudoe cada um, e experimento o mundo no como simplesmente o meu

    mundo privado, mas como um mundo intersubjectivo, dado a cadaum e acessvel nos seus objectos, e nele experimento os outros en-quanto outros e, ao mesmo tempo, enquanto uns para os outros,para cada um. Como que isto se clarifica, pois, permanece toda-

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    via inapreensvel que tudo o que para mim s possa obter sentidoe comprovao na minha vida intencional?

    Necessita-se aqui de uma interpretao genuinamente fenome-nolgica da realizao transcendental da empatia e para tal, en-quanto ela est em questo, de um pr-fora-de-vigncia abstrac-tivo dos outros e de todos os estratos de sentido do meu mundoenvolvente, que para mim se acumulam a partir da vigncia ex-periencial dos outros. justamente assim que, no mbito do ego

    transcendental, isto , no seu recinto da conscincia, se separa o seregolgico especificamente privado, a minha peculiaridade concretacomo aquela cuja anlogo eu sinto, em seguida, empaticamente apartir das motivaes do meu ego. Posso experimentar directa egenuinamente toda a vida peculiar da conscincia como ela pr-pria, mas no como estranha: captar pelos sentidos, percepcionar,pensar, sentir, querer estranhos. Mas ela co-experimentada emmim mesmo, portanto indiciada, num sentido secundrio, no modode uma peculiar apercepo de semelhana, comprovando-se a deum modo consensual. Para falar com Leibniz: na minha originali-dade enquanto minha mnada apodicticamente dada, reflectem-seas mnadas estranhas, e este espelhamento uma indicao que secomprova de modo consequente. Mas o que a se ndica, quandoeu levo a cabo uma auto-interpretao fenomenolgica e, nesta, aexplicao do legitimamente indicado, uma subjectividade trans-cendental alheia; o ego transcendental pe em si um alter ego trans-cendental, no de modo arbitrrio, mas necessrio.

    justamente assim que a subjectividade transcendental se alargaem intersubjectividade, em socialidade intersubjectivamente trans-

    cendental, que o solo transcendental para a natureza e o mundo

    intersubjectivos em geral, no menos para o ser intersubjectivo de

    todas as objectalidades ideais. O primeiro ego, a que conduz a re-duo transcendental, dispensa ainda as distines entre o intencio-nal, que lhe originariamente peculiar, e o que nele espelhamentodo alter ego. necessria, em primeiro lugar, uma fenomenologiaconcreta ampliada, para alcanar a intersubjectividade como trans-

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    cendental. Mas, apesar de tudo, revela-se aqui que, para quem me-dita filosoficamente, o seu ego o ego originrio e que, em seguida,numa sequncia ulterior, a intersubjectividade s , por seu turno,pensvel para todo o ego imaginvel como alter ego enquanto nelese reflecte. Nesta elucidao da empatia, revela-se tambm que huma diferena abissal entre a constituio da natureza que j temum sentido de ser para o ego abstractamente isolado, mas no aindaum sentido intersubjectivo, e a constituio do mundo do esprito.

    Por isso, o idealismo fenomenolgico descobre-se como umamonadologia fenomenolgico-transcendental, que no apenas qual-quer construo metafsica, mas uma explicitao sistemtica dosentido, que o mundo tem para ns todos antes de todo o filosofar,sentido esse que unicamente pode ser filosoficamente desfigurado,mas no alterado. O caminho inteiro, que temos de percorrer, de-veria ser um caminho com a meta cartesiana, por ns retida, deuma filosofia universal, isto , de uma cincia universal a partir daabsoluta fundamentao. Podemos dizer que ele conseguiu ater-se realmente a esta inteno, e j vemos que ela efectivamenteexequvel.

    A vida prtica quotidiana ingnua, constitui um experimentar,pensar, valorar, agir no seio de um mundo previamente dado. Nelese levam a cabo todas as realizaes intencionais do experimen-tar pelo qual as coisas esto pura e simplesmente a, de um modoannimo, e quem as experimenta nada delas sabe; nada igualmentesabe a propsito do pensar realizador: os nmeros, os estados decoisas predicativos, os valores, os fins, as obras surgem graas a re-alizaes ocultas, edificando-se membro a membro, encontram-seapenas no mbito do olhar. As coisas no se passam de outro modonas cincias positivas. So ingenuidades de grau superior, produ-

    tos de uma tcnica terica sagaz, sem que se tenham explicado asrealizaes intencionais de que tudo, em ltima anlise, brota.

    A cincia pretende, sem dvida, poder justificar os seus passostericos, e funda-se por toda a parte na crtica. Mas a sua crticano a derradeira crtica do conhecimento, isto , estudo e crtica

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    das realizaes originrias, desvelamento de todos os seus horizon-tes intencionais, graas ao qual unicamente se pode, por ltimo,apreender o alcance das evidncias e, de modo correlativo, avaliaro sentido de ser dos objectos, das produes tericas, dos valorese dos fins. Temos, pois, e justamente no estdio superior das mo-dernas cincias positivas, problemas de fundamentos, paradoxos,ininteligibilidades. Os conceitos originrios que, ao longo de todaa cincia, determinam o sentido da sua esfera objectal e da sua teo-

    ria, brotaram de modo ingnuo: tm horizontes intencionais inde-finidos, so produtos de realizaes intencionais incgnitas, exer-cidas apenas em grosseira ingenuidade. Isto vale no s para ascincias positivas especiais, mas tambm para a lgica tradicional,com todas as suas normas formais. Toda a tentativa de, a partirdas cincias formadas historicamente, se chegar a uma melhor fun-damentao, a uma melhor autocompreenso segundo o sentido ea realizao, um fragmento de auto-reflexo do cientista. Mash apenas uma auto-reflexo radical, isto , a fenomenolgica. Aauto-reflexo radical, porm, plenamente universal, inseparvele, ao mesmo tempo, inseparvel do mtodo fenomenolgico ge-nuno da auto-reflexo na forma da universalidade essencial. Masa auto-interpretao universal e essencial significa domnio sobretodas as possibilidades ideais inatas ao ego e a uma intersubjecti-vidade transcendental.

    Uma fenomenologia levada a cabo de modo consequente cons-tri, pois, a priori, mas numa necessidade e universalidade essen-cial estritamente intuitiva as formas de mundos concebveis, e es-tas, por seu turno, no mbito de toda a forma de ser imaginvelem geral e do seu sistema de graus. Mas isto de modo origin-rio, a saber, em correlao com o a priori constitutivo, com o das

    realizaes intencionais que os constituem.Visto que ela, no seu procedimento, no tem realidades e con-

    ceitos de realidade previamente dados, mas vai buscar de antemoos seus conceitos originariedade da realizao, ela prpria apre-endida em conceitos originais, e pela necessidade de desfraldar to-

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    dos os horizontes domina tambm todas as diferenas do alcance,todas as relatividades abstractas, deve, por isso, chegar de per siaos sistemas conceptuais que determinam o sentido fundamentalde todas as produes cientficas. So os conceitos que delineiamtodas as demarcaes formais da ideia formal de um mundo poss-vel em geral e, por conseguinte, devem ser os genunos conceitosfundamentais de todas as cincias. Para tais conceitos, no h pa-radoxos.

    O mesmo vale para todos os conceitos que concernem cons-truo e forma integral de construo das cincias referidas e areferir s diversas regies de ser.

    Podemos igualmente dizer: na fenomenologia apririca e trans-cendental, originam-se em fundamentao ltima, graas sua in-vestigao correlativa, todas as cincias apriricas em geral e, to-madas nesta origem, integram-se numa universal fenomenologiaapririca como suas ramificaes sistemticas. Este sistema do apriori universal deve, portanto, designar-se tambm como desdo-bramento sistemtico do a priori universal, inato essncia de umasubjectividade transcendental, ou tambm intersubjectividade, oudo logos universal de todo o ser universal. Significa, por seu turno,o mesmo: a fenomenologia transcendental plenamente desenvol-vida de modo sistemtico seria eo ipso a verdadeira e genuna on-tologia universal: no, porm, apenas uma ontologia vazia formal,mas ao mesmo tempo uma ontologia tal que incluiria em si todasas possibilidades regionais de ser, e segundo todas as correlaesque lhes so inerentes.

    Esta ontologia concreta universal (ou tambm universal lgicado ser) seria, pois, em si o primeiro universo da cincia a partir deuma absoluta fundamentao. Quanto ordem, a primeira em si

    das disciplinas filosficas seria a egologia solipsisticamente deli-mitada, em seguida, a fenomenologia intersubjectiva e, claro est,numa universalidade que aborda, antes de mais, as questes uni-versais, para s ento se ramificar nas cincias apriricas.

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    Este a priori universal seria, pois, o fundamento para genu-nas cincias empricas e para uma autntica filosofia universal no

    sentido cartesiano, uma cincia universal a partir de absoluta fun-

    damentao. Toda a racionalidade do facto reside, sem dvida, noa priori. Cincia apririca cincia do principial, a que deve recor-rer a cincia emprica para, em ltima anlise, se fundar tambmem princpios s que a cincia apririca no pode ser uma cin-cia ingnua, antes deve brotar das ltimas fontes fenomenolgico-

    transcendentais.Por fim, para eliminar um mal-entendido, gostaria de referirque, pela fenomenologia, apenas se exclui toda a metafsica ing-nua e que em si trabalha com coisas absurdas, no a metafsica emgeral. O ser em si primeiro, que antecede e sustenta toda a objecti-vidade mundana, a intersubjectividade transcendental, o conjuntodas mnadas que se reparte em diversas formas de associao. Masno interior da esfera mondica fctica e, como possibilidade essen-cial ideal, em cada esfera concebvel, aparecem todos os proble-mas da facticidade contingente, da morte, do destino, da possibi-lidade enquanto exigida significativamente num sentido particular,de vida subjectiva individual e comunitria, portanto tambm osproblemas do sentido da histria, etc. Podemos ainda dizer: soos problemas tico-religiosos, mas implantados no solo em que sedeve justamente situar tudo o que para ns pode ter um sentidopossvel.

    Assim se realiza a ideia de uma filosofia universal de ummodo inteiramente diverso do que Descartes e a sua poca, guia-dos pela nova cincia da natureza, pensavam no como um sis-tema universal da teoria dedutiva, como se todo o ente residisse naunidade de um clculo, mas como um sistema de disciplinas cor-relativas fenomenolgicas, sobre a base nfima no do axioma egocogito, mas de uma auto-reflexo universal.

    Por outras palavras, o caminho necessrio para um conheci-mento de fundamentao ltima no sentido mais elevado ou, o que a mesma coisa, para um conhecimento filosfico, o de um auto-

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    conhecimento universal, antes de mais, de um autoconhecimentomondico e, em seguida, intermondico. O orculo de Delfos:g n

    w j i s e a u t n

    adquiriu um novo significado. Cincia positiva cincia em plena perda do mundo. Importa primeiro perder omundo pela epoch, a fim de o reaver na universal auto-reflexo.Noli foras ire, diz Agostinho, in te redi, in interiore homine habi-

    tat veritas [No saias de ti, volta a ti, no homem interior habita averdade].


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