XVII Congresso Brasileiro de Sociologia
20 a 23 de Julho de 2015, Porto Alegre (RS)
Grupo de Trabalho: GT 014 Memória e Sociedade
Histórias de vida no resgate da história da ocupação do solo de Vila Velha (ES)
Instituição: Universidade Vila Velha (UVV – ES); Núcleo de Estudos Urbanos e
Socioambientais (NEUS/UVV – ES)
Autores: CELANTE, Suelem1; SATHLER, Marcelo2; DA-SILVA-ROSA, Teresa3.
Contatos: [email protected]; [email protected];
1 Internacionalista, Mestre em Sociologia Política/UVV-ES, Pesquisadora do Núcleo de Estudo Urbanos e
Socioambientais/NEUS. 2 Biólogo, Mestre em Conservação da Biodiversidade e Sustentabilidade/ESCAS, Pesquisador do Núcleo de
Estudo Urbanos e Socioambientais/NEUS. 3 Professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política, Pesquisadora do Núcleo de Estudo
Urbanos e Socioambientais/NEUS; bolsista de produtividade “Pesquisador Capixaba” (FAPES), coordenadora da pesquisa “Compreendendo a construção da vulnerabilidade socioambiental em contextos urbanos modernos: O caso de Vila Velha (ES)”, com financiamento do CNPq.
Histórias de vida no resgate da história da ocupação do solo de Vila Velha (ES)
RESUMO:
No contexto dos desastres socioambientais envolvendo as populações vulnerabilizadas em áreas de risco, este trabalho visa resgatar a memoria coletiva de antigos moradores sobre a ocupação do solo da cidade de Vila Velha/ES no século XX. Apenas em 2013, a Prefeitura decretou estado de emergência duas vezes, resultando em deslocamento de grande parte de sua população por razão de chuvas intensas. Parte da Região Metropolitana da Grande Vitória, Vila Velha é única cidade do país a superar o poder de consumo de sua capital. Até metade do século passado, a sua ocupação ocorreu em áreas onde o lençol freático possuía maior profundidade, protegendo os habitantes das constantes inundações dos diversos corpos d’água locais, limitando o crescimento da malha urbana. Após a década de 50, a cidade adquire características do Modernismo: retificação dos rios e aterros dos espaços úmidos para a ocupação de novas áreas. Buscou-se identificar os habitantes presentes neste período capazes de descrever esse processo através das suas histórias de vida. As entrevistas apontaram para (1) desrespeito à base geofísica original e (2) o incentivo, pelo poder público, à ocupação de áreas, outrora, alagados, brejos, e mangues, pela população excluída, razão dos atuais desastres socioambientais. Palavras- chave: Memória. História de vida. Vila Velha. Urbanização.
1. Introdução
Vila Velha é um município do Espírito Santo que tem sua formação urbana
relativamente recente. Num processo típico da Modernidade (BOGUS et al, 2010),
faz conurbação com os municípios de Cariacica, Vitória e Serra, e, junto com
esses e os municípios de Fundão, Guarapari e Viana, compõe a Região
Metropolitana da Grande Vitória. Esta possuía a economia pouco desenvolvida
até pouco após meados do século passado (década 60-70) quando a implantação
de grandes projetos desenvolvimentistas começaram a atrair imigrantes de
diversas regiões (SIQUEIRA, 2010). Os imigrantes encontraram o município com
baixa densidade populacional e despreparado para recebê-los.
A base biogeofísica sobre a qual a cidade se estabeleceu até aquela data
não favorecia a ocupação e, aproximadamente, 90% da população localizava-se
limitada à uma estreita faixa de terra ao norte do município, margeando a Baía da
Vitória (que separa Vila Velha da capital), por ser uma das poucas zonas
municipais com o lençol freático profundo e não suscetíveis à delicada hidrografia
local. Vila Velha possui amplas áreas com baixa cota altimétrica em relação ao
mare dotada de diversos corpos d’águas que inundavam suas planícies com
frequência, razão do estreitamento da população em pequena parte do município.
Estas características favorecem, mesmo hoje, ao acúmulo de água,
principalmente, em épocas de maré cheia conjugada com períodos de chuvas
intensas.
O extinto Departamento Nacional de Obras de Saneamento (DNOS) realizou
a retificação dos rios com intuito de diminuir suas extensões e as respectivas
inundações periódicas de forma a permitir maior ocupação do município. Esses
trabalhos de canalização dos rios e de contenção hídrica, como o aterro de certos
corpos d’água, foram motivados por desastres ocasionados por inundações em
décadas anteriores, alguns inclusive atingindo grande parte município, havendo a
necessidade, inclusive, da construção de um dique para evitar a recorrência dos
mesmos. Contudo, a baixa cota altimétrica predominante não foi alterada,
restando manguezais e outros corpos hídricos. Neste contexto, os imigrantes
chegaram, primeiramente, para trabalhar em Vitória e, posteriormente, a mão de
obra era absorvida, aos poucos, pelo desenvolvimento da cidade, impulsionando
a ocupação dos municípios vizinhos, em especial, Vila Velha, ocupação esta que
ocorreu com pouca participação do poder público.
Hoje, Vila Velha é, provavelmente, uma das localidades mais atingidas pelos
impactos de chuvas intensas no Estado, por ter diversas áreas de vulnerabilidade
socioambiental presentes em sua malha urbana, em quantidade tal que a
remoção dos moradores de todas essas áreas parece ser difícil. Afinal, esta
cidade já está consolidada. A fragilidade do município aos impactos das intensas
chuvas é tanta que, apenas em 2013, a prefeitura foi obrigada a decretar estado
de emergência duas vezes – em março e dezembro.
A historiografia do município é ínfima. Poucos relatos existem sobre como
ocorreu a urbanização do solo, existindo na literatura especializada dedicação à
colonização do Espírito Santo, que se iniciou em Vila Velha e poucos trabalhos
descrevem como decorreu o processo de produção desta cidade (CELANTE,
2014). A incapacidade de encontrar fontes bibliográficas que expliquem como se
construiu essa complexidade socioambiental e quais as forças ou as suas
ausências foram responsáveis pela criação de uma cidade “hostil” aos habitantes,
justifica o uso da memória como meio de compreensão e, isso, através de
recordadores. Afinal, assume-se que história da ocupação e do crescimento da
cidade bem como a produção de áreas de vulnerabilidade socioambiental possa
ser explicada por aqueles que a fizeram – os recordadores, apreendidos como
sendo os moradores de ambos os sexos, com diferentes ocupações no passado e
com idades variando entre 60 e 99. Todos vivenciaram as transformações da
“vila” Vila Velha, alçando-a ao segundo município do Estado em número de
habitantes (IBGE, 2014), cidade dormitório em relação estreita com a Região
Metropolitana de Vitoria (CELANTE, 2014) . Visto a urbanização ser recente,
muitos indivíduos que chegaram na localidade próximo à metade do século XX e,
até mesmo antes, puderam ser encontrados para contar como era a Vila Velha de
outrora, explicando a maneira que contribuíram para o seu desenvolvimento
assim como descrever as mudanças que acompanharam. Estes recordadores são
a base deste trabalho e toda a descrição histórica recente a seguir, procura estar
focada na compreensão da formação dos diversos núcleos urbanos de
vulnerabilidade socioambiental de Vila Velha, baseia-se nos seus testemunhos.
Vale ressaltar que esta comunicação é parte da pesquisa “Compreendendo
a construção da vulnerabilidade socioambiental em contextos urbanos modernos:
O caso de Vila Velha (ES)”, contemplada com financiamento do CNPQ e está
sendo desenvolvida no Núcleo de Estudos Urbanos e Socioambientais/NEUS, do
Programa de Pós-graduação/Mestrado em Sociologia Política da Universidade
Vila Velha. Foram feitas 11 entrevistas nos bairros: Soteco (4), Ataíde (1), Prainha
(1), Centro de Vila Velha (2), Praia da Costa (1), Praia de Itaparica (1) e Pontal
das Garças (1) com intuito de prospecção de áreas no município que representem
o crescimento urbano responsável pelo processo de construção de núcleos de
vulnerabilidade socioambiental. Os recordadores terão sua identidade preservada,
sendo, por isto, identificados apenas por letras e/ou pelos bairros em que
habitam. O presente texto tem uma abordagem etnográfica com base nos
elementos discursivos dos recordadores sobre a ocupação de Vila Velha, os quais
foram sendo trazidos para esta comunicação privilegiando a perspectiva histórica,
partindo, assim, desde o início da colonização do solo espirito santense, no
século XVI, até o final do século XX.
2. Vila Velha: da colonização ao abandono político
Segundo relatos históricos, as primeiras naus portuguesas atracaram em
Vila Velha, no ano de 1535 (SANTOS 1999). O desembarque ocorreu na Prainha,
no interior da Baía de Vitória, onde a pouca agitação das águas era colaborativa
(ESPÍRITO SANTO, 2011), e (antes do aterro hoje existente no local) permitia
certa discrição àqueles que, porventura, estivessem navegando na costa. Visto
que a praia ficava escondida entre duas elevações rochosas (hoje, Morro do
Convento e de Jaburuna), não sendo possível visualizá-la sem aproximação. Os
nascidos na cidade são chamados de “canelas-verdes” até hoje, pois as algas
esverdeadas presentes nesta pequena praia (Prainha) impregnam as partes do
corpo onde tocam, como fizeram com os portugueses que nela iam e viam para
ou dos seus navios, ou com os primeiros habitantes que do mar retiravam
alimento (SANTOS, 1999).
O primeiro aglomerado de casas formado foi chamado de Vila do Espírito
Santo. A base biogeofísica que, atualmente, afeta a cidade com sua hidrografia,
encontrava-se selvagem e repleta de corpos d’água, um ambiente perfeito para
proliferações de mosquitos, que eram um dos maiores problemas locais. Os
relatos mostram que eles tornavam o ambiente hostil devido à quantidade e,
indubitavelmente, favorável à transmissão de doenças. A quantidade e a
disposição da água que os tornavam abundantes, também, provocavam outros
dois problemas: 1) limitação da ocupação do solo, por inundar maior parte do
município, mesmo que não durante todo ano nem todos os anos; e 2)
comprometimento da potabilidade da água, pois três braços de mar – chamados
de rios, rio Marinho, da Costa, e do Aribiri – que recebiam a água escoada das
planícies afetavam a qualidade dos demais corpos d’água, tornando-os salobros
(D’ALCANTARA, 2014).
Os índios tornaram-se o quarto grande problema durante o período de
colonização portuguesa. Segundo um recordador do centro de VV, Sr. W. os
portugueses tiveram boa recepção dos nativos ao chegarem, tais nativos eram
todos Goytacazes. Sr. L. morador da Praia da Costa, informou-nos que as índias,
cuja cultura seria muito mais permissiva do que a cristã ocidental, começaram a
constituir famílias com os portugueses, estes as consideravam atraentes.
Contudo, devido às tarefas impostas a eles e aos abusos cometidos pelos
jesuítas e coordenadores da colonização, que os utilizaram como mão de obra
para o plantio de cana, construção de casas e manejo de roças, os indígenas,
revoltados, formaram uma federação adversa à colonização e quase destruíram a
Vila do Espírito Santo - talvez entre 1546 ou 1547, data não confirmada na
literatura, segundo Sr. W.. Não obstante ao que o continente ofereceu aos
colonizadores, Vila Velha não oferecia proteção contra os ataques de corsários.
Dessarte o núcleo de povoamento português foi transferido para a atual Ilha de
Vitória, em 1550, sendo denominada Vila Nova (ESPÍRITO SANTO, 2011).
Permanecendo na cidade apenas os pobres que buscavam na pesca e no
artesanato a sua sobrevivência (TRIGUEIRO; KNOX, 2013).
Por conta da transferência do núcleo urbano, o abandono habitacional da
Vila do Espírito Santo também acarretou em abandono político. O município
passou cerca de dois séculos sem políticas para o desenvolvimento e a nova vila,
em Vitória, fez a primeira delas tornar-se a “Vila Velha”. A denominação perdurou
ao ponto de, em 31 de janeiro de 1959, ser oficializada com a sanção da Lei
Estadual no 479. De acordo com OLIVEIRA (2008), o pouco desenvolvimento
desse período é bem descrito pelo governador Francisco Alberto Rubim quando
relata que, em 1816, havia no município a antiga vila, criação de gado, duas
povoações – uma na Barra do Jucu e outra na Ponta da Fruta –, e seis engenhos
de açúcar e quatro engenhocas, contabilizando 427 casas e apenas 1.627
habitantes. No documento, Rubim descrevia os transbordamentos do Rio Jucu e
dizia como isso afetava o desenvolvimento do município (id., 2008).
3. Século XIX: o retorno das políticas públicas
No início do século XIX, a povoação da Barra do Jucu, localizada na foz do
Rio Jucu, era considerada mais importante do que a da Vila do Espírito Santo
(GALVEÂS, 2005). Embora apenas a 12,5 km da Prainha, essa povoação pouco
cresceu com o passar dos séculos e a malha urbana só a alcançou no final do
século XX, demonstrando a letargia do desenvolvimento urbano, o qual só foi
organizado em 1894, pelo engenheiro Antônio Athayde, que considerou a
hidrografia e delimitou onde a cidade poderia se desenvolver livre dos
alagamentos e inundações (conforme os recordadores Sr. W. e Sr. L.), com intuito
de evitar a criação de zonas de vulnerabilidade socioambiental. Em poucas
décadas, o crescimento da cidade iniciar-se-ia, conforme Sr. W. colocou:
O crescimento de Vila Velha começou de fato em 1916 com a chegada do exército. Com a chegada do exército, e a linha de bonde em 1912, começaram a surgir povoados ao longo da linha de bonde, alguns povoadinhos pequenos. Todos eles (os moradores) trabalhavam em Vitória. O restante eram pescadores, catadores de budigão, gente que fazia pequenos serviços informais, de artesanato, de renda.
O bonde implantado facilitou a conexão com a capital, sendo o primeiro meio
de transporte coletivo no município (SANTOS 1999). A central do bonde foi
instalada no bairro Aribiri, o que colaborou com o povoamento local, e o trajeto do
veículo acompanhava a cadeia de montanhas às margens da Baía de Vitória e
tinha suas extremidades na Prainha, onde se encontrava a maioria dos habitantes
e o exército, e, em Argolas, local de travessia da baía de Vitória para a capital (fig.
1). Embora o relato de Sr. W inclua o bonde, ele chegou em Vila Velha em 1935
com três anos de idade, ou seja, data posterior a implantação do bonde.
Sr. A. foi o recordador entrevistado que melhor pôde relatar como era o
município no início do século. Ele esteve em Vila Velha em 1940 pela primeira
vez. Ele possuía 25 anos e veio de Pequiá/ES ao 38º Batalhão de Infantaria (à
época 3º Batalhão de Caçadores) alistar-se. Classificou Vila Velha desse período
como “medonha”, em referência a ausência de recursos e infraestrutura e pela
permanência de três das cinco citadas razões que causaram o fracasso da
colonização no continente: mosquitos, pouca água potável e as inundações de
corpos d’água e alagamentos que impediam a expansão urbana. Caçador, Sr. A.
contou que abateu veados e outros animais em Vila Velha e disse, reconhecendo
espanto, saber que uma anta viveu próximo ao morro de Jaburuna até o ano de
1925, o que indica a exuberância silvestre ainda presente até a metade inicial do
século passado.
Figura 01 - Malha urbana de Vila Velha em 1920 (ALMEIDA; GOMES, 1985). A Estrada Jerônimo
Monteiro, trajeto do bonde, percorria quase todo traçado urbano de Vila Velha.
O ano de 1929 foi marcante em relação ao crescimento urbano. Três
eventos o tornaram diferenciado: a primeira ponte de ligação entre Vila Velha e
Vitória, a Ponte Florentino Ávidos, foi finalizada; 2) igualmente, construiu-se uma
ponte sobre o Rio da Costa, permitindo acesso do centro de Vila Velha ao litoral;
e, por último, 3) inaugurou-se a fábrica de chocolates Garoto, na Prainha
(SANTOS, 1999; MORRO DO MORENO, 2014). Em 1936, a fábrica foi transferida
para o bairro Glória, quando ele ainda era um pequeno aglomerado de casas. O
trajeto do bonde incluía a entrada da fábrica e este bairro era ligado à Prainha,
além de pelo bonde, por uma estrada, ou “areal”, e continuou muitas décadas
pouco povoado, segundo o recordador Sr. G.. O pai do Sr. G. chegou em Vila
Velha trazendo-o menino, no ano de 1939 segundo seu relato:
Na época havia terra devoluta, meu pai tirou uma posse lá no Graça Aranha, do lugar chamado Paul. Aí foi ele e os irmãos dele... na época era assim, ia lá e tirava uma posse, mas era tudo mata virgem... não tinha esse negócio (referindo-se à proteção de áreas verdes) ... isso foi em 1939. Eu nasci em 1935, estava com 04 anos. A gente enfrentou aquela área por bastante tempo. Depois papai vendeu as terras ali e eu vim para cá (Soteco).
4. Chegada do Modernismo
O sr. J. chegou em Vila Velha em 1945, sorteado para servir no exército. Em
1948, foi transferido para o Resende (RJ) e testificou não haver uma única rua
pavimentada no município à época: “Vila Velha era toda areia”. Um ano antes de
sua partida para Resende, Carlos Lindenberg assumiu o governo estadual e, em
seu primeiro mandato, iniciou a construção da rodovia (hoje avenida) que leva o
seu nome (visualizada na figura 02) (ALMEIDA, 2010). Nesse período o município
vai adquirindo a sua configuração hidrográfica atual, com 45 km de canais abertos
(Prefeitura Municipal de Vila Velha, 2013) – Canal da Costa, Bigossi, Cocal,
Jaburuna, Santa Rita, Guaranhuns, Rio Congo, Camboapina – através,
inicialmente, de obras promovidas pelo DNOS.
O poder público acreditava que a geografia da cidade não favorecia ao seu
desenvolvimento e objetivava maximizar a utilização do solo. Então os rios
começam a ser retificados, tornando-se canais, e os mangues e as áreas
alagadas a serem aterradas (MATTOS, 2013). Esse processo moderno de
ocupação e de uso do solo abriu espaço para a cidade, nas décadas posteriores.
O que, aparentemente, não se concebia eram as consequências possíveis
advindas desta forma de uso do solo que se revela como sendo a expressão de
uma racionalidade moderna, porém estrangeira a racionalidade existente na base
biogeofísica. Durante o começo dessas transformações, chega à cidade Sr. F.,
um dos primeiros moradores do bairro Ataíde, bairro limítrofe ao de Aribiri. Ele
destacou que a vida em Vila Velha era muito difícil e contou da sua chegada:
Cheguei em 1952 e comprei um lote (no bairro Ataíde). Tinham três casas no bairro. Arrumei serviço no centro de Vitória. O único transporte era o bonde, que ia cheio, com gente pendurada. A gente ia no estribo. Passava na Ilha da Conceição, na época era ilha, depois aterraram. Tinha uma casa só lá. Tinha poucas casas no caminho. Tinham umas casinhas na Ilha das Flores, em Garrido, e em Paul mais coisa, lá tinha até um comércio debaixo do viaduto. Por ali eu pegava a lancha para atravessar (para Vitória), quando estava muito cheio pegava bote.
Os botes eram e, ainda hoje¸ são remados pelos catraieiros. Antigamente,
esses barqueiros eram aceitos e benquistos por toda população. Hoje, perduram
no local em desvantagem, trabalhando ao lado do antigo e destruído terminal
aquaviário de Paul e pressionados para se retirarem pela expansão da orla
portuária, razão da existência de um imbróglio judicial desencadeado pela luta
pela permanência4.
Sr. F. também informou que o fornecimento de água era precário, sendo
necessário, às vezes, acordar de madrugada para “roubá-la” da tubulação
4 Estas informações foram obtidas com base em visita de campo feita ao local – Paul-Argolas, no âmbito do
Projeto de pesquisa, citado na introdução, em abril 2015.
pública. A água era pouca e a luz não havia no Ataíde, só no Aribiri, no início dos
anos 50. Informou, ainda, que havia a fábrica de biscoitos Alcobaça no Aribiri e
que, além dela, a central do bonde contribuía para o crescimento demográfico
local. Sr. F. também declarou que o único hospital de Vila Velha existente na
época era a Maternidade (atual hospital Bezerra de Faria). Mesmo com a fábrica,
acrescentou que o bairro Glória tinha “meia dúzia” de casas em volta da fábrica
da Garoto, como igualmente afirma Sr. G., e uma pequena fábrica de sabão.
Figura 02 - Malha urbana de Vila Velha em 1950 (ALMEIDA; GOMES, 1985).
O aumento populacional do bairro Glória se deu quando da construção da
Rodovia Carlos Lindenberg, cujo trajeto percorre as extremidades da Estrada
Jerônimo Monteiro que era o trajeto do bonde, e ligou o bairro diretamente com a
Ponte Florentino Ávidos, logo, à Vitória. Da mesma maneira que o trajeto do
bonde provocou aumento do número de casas e assentamentos em seu entorno,
assim fez a Rodovia Carlos Lindenberg. O primeiro conjunto habitacional
organizado à margem da rodovia foi o Instituto de Bem-Estar Social (IBES) no ano
de 1950, área isolada na figura 02. O IBES originou-se da política habitacional de
casas populares promovidas pelo governo do estado, projetado e implantado pela
Companhia Habitacional do Espírito Santo (COHAB-ES) e Instituto de Orientação
às Cooperativas Habitacionais no Espírito Santo (INOCOOP/ES), na tentativa de
diminuir a pressão populacional sobre Vitória. Contudo, a política não cobriu a
totalidade da população, construindo para o início de formação de aglomerados
subnormais em Vila Velha nas décadas seguintes (SIQUEIRA, 2010).
Figura 03 - Construção do Instituto de Bem Estar Social (IBES) em 1950. O solo exposto, em cor
branca, é a areia exposta devido à degradação da vegetação.
O processo de ocupação do entorno da Rodovia Carlos Lindenberg, que
possui cerca de oito quilômetros de extensão, foi moroso. A Lei Municipal no 262,
de 08 de abril de 1954, demonstra isso com clareza por ter sido sancionada
simplesmente com o propósito de construção de dois abrigos em pontos de
ônibus da via, , um no IBES e outro no Glória. A construção do IBES permitiu
acesso à outras localidades ao sul do mesmo pela facilidade promovida com a
formação das vias do assentamento. Devido a isso, Sr. G. vivenciou e relatou a
ocorrência de muitas extrações de areia em locais que, futuramente, se
transformariam em bairros de classe baixa. Destacou o local do futuro bairro
Santa Inês como uma das áreas onde mais pôde observar o extrativismo. Isso
ocorria por ausência de fiscalização e, como dito anteriormente, a facilidade de
acesso, permitindo aos carroceiros alcançarem esses locais com facilidade.
Sr. J. relatou essas transformações ao seu retorno para o município em
1958:
Quando eu voltei a (rodovia) Lindenberg já estava pronta, asfaltada, até o convento. Começou a aparecer ônibus, foi melhorando, foi melhorando... até que chegou (o desenvolvimento) ... isso por aí tudo afora era tudo pasto, mato.
Sra. M., esposa do Sr. J., relatou que, quando seu pai e tios eram
fazendeiros, sua família saía do atual bairro Soteco e cruzava uma densa restinga
que cobria os atuais bairros de Coqueiral de Itaparica e Praia de Itaparica quando
queriam ir à praia (meados da década de 1950). Ela e o esposo descreveram a
presença de outro tipo de vegetação, com características florestais, em
determinada parte de Vila Velha onde não era areal, e rica em caça, confirmando
os dizeres de Sr. A.. A esposa disse que o bairro Soteco nunca alagou e destacou
que uma fazenda vizinha das terras de seus parentes, a “Toca” 5, tinha um grande
alagado, que foi aterrado e transformou-se no bairro Divino Espírito Santo,
fortalecendo a hipótese de que as áreas mais impróprias para a formação de
moradias foram destinadas às populações excluídas. Hoje, além de ser acometido
com as chuvas, o bairro é um dos três mais violentos de Vila Velha
(HANTEQUESTE; BARRETO; LIRA, 2008).
O pai de Sra. M., o Sr. N., era, com os dois irmãos, proprietários das terras
que se transformaram em partes dos bairros Soteco6, Coqueiral de Itaparica e
Boa Vista, fronteiriças ao sul com as terras de Antônio de Oliveira Santos e o sítio
de João Mendes (este que se tornou o bairro Santa Mônica). Ela testificou que a
fazenda de seu pai, dedicada ao gado, transformou-se no bairro Boa Vista7.
Relatou também que a Universidade Vila Velha e o Shopping Vila Velha
encontram-se nas antigas terras de seu tio, o terceiro dos irmãos, era proprietário
das terras onde construíram o “conjunto coqueiral”, ainda não identificado, visto
os diversos conjuntos habitacionais presentes no bairro Coqueiral de Itaparica.
A mais marcante inundação da cidade de Vila Velha data de 1960. A
construção da BR 101, um pouco antes desta data canalizou o rio Jucu no ponto
em que cruzavam de maneira a não considerar as enchentes que porventura
ocorreriam. Neste ano, uma forte chuva causou o represamento de água nesse
local, visto a tubulação estreita, provocando pressão ao ponto de rompimento da
estrada, por conseguinte, o rompimento do Dique do Jucu (SETÚBAL, 2001). A
inundação desvelou a razão de diversos bairros ou locais serem chamados de
ilhas até o presente, como a Ilha dos Aires, Ilha dos Bentos, Ilha dos Frades, Ilha
de Itapuera e Ilha da Conceição. Estas são as poucas saliências na baixa
geografia, muitas antigamente cercadas de brejos, que não ficavam submersas
nos períodos desses eventos (MORRO DO MORENO, 2012).
5 O nome Toca deriva-se de “Toca do Coelho”, apelido dado à fazenda do desembargador Antônio Francisco
Coelho. 6 Uma imobiliária chamada Soteco comprou uma parte das terras de seu de uma fazenda vizinha, da família
Vieira, e, em seguida, parte das terras de Argeu, loteando-as e razão do nome do bairro. 7 Nome possivelmente originado pela construção do Conjunto habitacional Boa Vista no local.
Sr. J. domiciliava-se numa das áreas mais baixas da Toca nesse ano e,
tamanha a quantidade das águas, teve sua casa submersa. Já à época, ele
colocou a quantidade de flagelados como muito grande em proporção a
população total e disse que o município não estava preparado para combater o
desastre8, ressaltando que nesta época os baixios ainda eram poucos ocupados,
ficando a inundação conhecida como a “dos desabrigados da Toca”.
A filha de Sr. J. e Sra. M., Sra. R. relatou que, em 1963, ia de Soteco à
Glória andando por um areal inabitado e, por sua vez, seu pai recorda a
existência de apenas 12 famílias em Soteco em 1966. Contudo, a cidade
moderna ganha expressão nesse decênio. Inicia-se a implantação dos grandes
projetos industriais – Companhia Vale do Rio Doce (hoje Vale S/A), CST (hoje
ArcelorMittal), Aracruz Celulose, etc. – concomitantemente com as políticas de
erradicação de café, promovendo o início de grande imigração para a atual
metrópole (GURGEL, 2010; Siqueira, 2011) e aumentando o crescimento
demográfico e, consequentemente, a estrutura urbana da cidade.
Nos anos 70 com a consolidação da atividade industrial, surgem os
embriões de diversos bairros situados nos baixios, onde passam a morar os
milhares de imigrantes atraídos para a capital. Há o lançamento pelo INOCOOP-
ES de uma série de conjuntos habitacionais por Vila Velha. Sabe-se que o
primeiro conjunto habitacional em área de baixa cota altimétrica foi entregue no
ano de 1968 no bairro Santa Inês seguido de: Conjunto habitacional Jardim
Colorado I, em 1970 e com 245 imóveis, hoje no bairro Jardim Colorado; conj.
Novo México I, em 1970 e com 493 imóveis, hoje no bairro Novo México; conj.
Jardim Asteca, em 1972 e com 344 imóveis, hoje no bairro Jardim Asteca (antigo
Sítio Correa); conj. Jardim Guadalajara, em 1972 e com 209 imóveis, hoje no
bairro Jardim Guadalajara (INOCOOP-ES, 2015). Nesses mesmos bairros, outros
lançamentos futuros provocaram um maior adensamento, tais como o Conj. Novo
México II e similares tanto lançados pelo INOCOOP-ES. Vale lembrar que – a
ocupação via a comercialização de lotes tanto pelo INOCOOP-ES quanto por
particulares inicia um processo de impermeabilização da atual cidade, o vai
dificultar a infiltração das águas das chuvas e inundações.
8 A Coordenadoria de Defesa Civil surgiria somente 19 anos após este ocorrido.
O ordenamento desse desenvolvimento pelo poder público é inexistente e as
invasões massivas de terrenos são outro destaque dos anos 70. O maior bolsão
de pobreza do Espírito Santo, Terra Vermelha, começa a surgir nesta época, uma
invasão de área alagável ao sul do Rio Jucu, refletindo como processo de
industrialização afetou a metrópole (MATOS, 2013). Sr. F. comentou a respeito
das invasões do mangue que vivenciou:
O mangue do Aribiri era imenso. A família Vereza, a mais rica de Aribiri, cercou o mangue, cercaram aquilo tudo, queriam ser donos do mangue. A marinha começou a querer cobrar impostos (dela). Quem quisesse ter um terreno no mangue era só requerer um pedaço. Podia aterrar à vontade. Os Vereza recusaram “o manguezal” (devido ao imposto) e foram a prefeitura devolver as terras. O povo ficou sabendo disso e invadiu. Isso foi mais ou menos em 1970.
Sobre Santa Rita, onde inclusive adquiriu um terreno este mesmo senhor
afirma que em:
Santa Rita (Bairro) tinha uma casa na beira da estrada, num morro. (O morador) dizia que o bairro era todo dele. Quando descobriram que ele mentia, invadiram (a população). Aquilo lá era tudo mangue, a Estrada de Capuaba não existia, não tinha nada, nada. O povo chegou lá bem antes da estrada. Eu tinha um terreno que eu comprei de um pessoal da marinha, grande, uns sete lotes. Ali onde era o Carrefour era mangue. (O mangue) Subia a Darly Santos cá na frente, até onde tem aqueles galpões, era tudo brejo antigamente. Naquele tempo o cara cercava e dizia que era dono.
Ainda, sobre Cobilândia ele recorda que:
O povo relutou a ir à Cobilândia. Quando chovia alagava aquilo tudo. Perto do Rio Marinho. Era diferente de Santa Rita. Em Santa Rita a água ficava onde tinha mangue só. Em Cobilândia não. Era um desmatado, a água ia naquilo tudo. Depois o povo foi entrando, foi fazendo as ruas. Teve uma refinaria lá, perto da Carlos Lindenberg, que dava um pouco de trabalho. Não passava carro nenhum na Lindenberg. Colocaram uma empresa de ônibus, mas só quem morava perto que pegava, depois parou de funcionar. Aí abriu outra empresa e o povo foi chegando.
Pelos relatos, o poder público parece ser indiferente às invasões nas áreas
alagadas. Resultantes desse descaso há situações de vulnerabilidade
socioambiental ainda mais complexas, como o bairro Dom João Batista. O
surgimento desse ocorreu no antigo manguezal presente na foz do Rio Aribiri,
conforme expôs Sr. F., e uma particularidade que surgiu nesse bairro há poucos
anos apenas nos meses de abril e março, a invasão da maré cheia nas ruas e
regresso do esgoto pela tubulação das casas e dos bueiros, hoje acomete a
população em diversos meses do ano. Por sua vez, agravando a situação, as
ocupações promovidas pelas cooperativas habitacionais com o aval do governo
não apresentavam maior cautela. Quando Sr. N., pai de Sra, M., faleceu, suas
terras estavam loteadas e assim relata Sr. J.:
Aqui atrás tinha uma lagoa que a gente pegava peixe desse tamanho assim (gesticulando com as mãos, indicando serem muito grandes). Quando meu sogro morreu, ele já tinha loteado até à igreja. Os filhos pegaram e ofereceram diretamente pra COHAB, que não comprou. Por três milhões. Isso deve ter sido em 1975. Apareceu um corretor que ofereceu pra Vitória Wagen, que comprou por quatro. Na mesma semana que a Vitória Wagen comprou, ela vendeu pra COHAB por sete milhões. Deu um processo que foi parar em Brasília, o povo desconfiado, porque pareceu que tinha “coisa”. A COHAB desbastou o morro que tinha aqui e jogou em cima das lagoas, aterrando tudo. Foi no governo Élcio Álvares. Aí colocaram o povo para morar em cima...
No final da década de 70, três eventos impulsionaram ainda mais esse
desenvolvimento: 1) a Rodovia do Sol, via de ligação entre Vila Velha e, ao sul, o
município de Guarapari, é concluída em 1977, impulsionando a especulação
imobiliária na orla do município; 2) a Ponte do Príncipe é finalizada, em 1979,
criando-se uma segunda ligação entre o município canela verde e a capital; 3)
inicia-se a construção da terceira ponte sobre a Baía da Vitória, está que
promoverá grandes transformações em Vila Velha quando concluída. Na década
seguinte, os da produção imobiliária de conjuntos habitacionais serão ainda mais
intensa. Sabe-se que o conjunto habitacional Araçás foi inaugurado em 1980
(figura 04) (INOCOOP-ES, 2015), década que a malha urbana se encontrava
duplicada, ou mais, em relação aos anos 50, com a urbanização quase tocando
os limites do dique do Jucu (figura 05) (ALMEIDA, 1985).
Figura 04 - Conjuntos habitacionais em baixios. No centro, Parque Coqueiral de Itaparica, e, mais
distante de todos, o Conjunto Araçás (Fotos antigas do ES, autor desconhecido).
Figura 05 - Malha urbana de Vila Velha na década de 80 (ALMEIDA; GOMES, 1985).
O INOCOOP aumenta consideravelmente a produção imobiliária na década
de 80. Apenas em um bairro, Coqueiral de Itaparica, o lançamento do Parque
Coqueiral de Itaparica disponibiliza 5.040 imóveis, superando todas as unidades
habitacionais lançadas durante a década passada por Vila Velha em 1.190
unidades, de um total de 21 conjuntos habitacionais (INOCOOPES, 2015). Sra.
Z., antiga estagiária no Parque Coqueiral de Itaparica, conta:
Existe uma faixa no litoral que é o melhor tipo de solo para construção. Suporta na ordem de 4.000 quilograma força por cm
2. Vai da praia para
o interior do município, não muitos metros. Lá (na área de construção do Parque Coqueiral de Itaparica) era um taboal. Tudo (as construções) foi estaqueado, o solo é um dos piores possíveis. Você pode observar que a
construção (os edifícios) é leve, sem sapata, paredes grossas, até o piso era um plástico tipo vinícula, porque o peso pode afundar a construção no solo. Havia pouca coisa no entorno das construções. Nenhum prédio, nem havia asfalto.
Sr. C. acrescentou uma informação importante, que foi averiguada e
confirmada, sobre o assoreamento do Rio Jucu. No decorrer do desenvolvimento
do Estado, o desmatamento na bacia hidrográfica do Rio Jucu promoveu erosão
expressiva do solo às suas margens, comprometendo a profundidade da calha do
rio e a sua capacidade de escoamento, ao ponto de ocasionar o aumento
substancial do custo de tratamento de água, devido a turbidez ocasionada pelo
solo carreado (WORLD BANK, 2008). Como Vila Velha abriga a parte final desse
curso d’água, há um acúmulo de solo em seu leito, e trechos onde alcançavam
até quatro metros de profundidade, agora pode ser facilmente atravessado a pé,
não havendo capacidade de reter a água em sua calha na menor das enchentes,
transbordando com facilidade.
No final da década de 1980, concluiu-se a construção da Ponte Darcy
Castello de Mendonça (terceira ponte de ligação entre Vila Velha e Vitória), obra
esta que teve grande impacto na produção da cidade. A ponte aumentou
consideravelmente a conexão entre os municípios e tornou-se a maior via de
acesso entre eles. O núcleo imobiliário do estado, que se concentrava na capital,
venceu a barreira física da Baía de Vitória através dela, impulsionando o número
de lançamentos da indústria da construção civil em Vila Velha (GONÇALVES,
2010).
A especulação imobiliária resultou na ocupação e na impermeabilização
majoritária dos baixios restantes. O impenetrável solo, somado à elevada cota
altimétrica do litoral e a incapacidade de o rio reter suas enchentes, transformou
todo município de Vila Velha em uma “planície de inundação fluvial”. Este
ambiente proporcionou oportunidade para que ocorresse o desastre de dezembro
de 2013, quando fortes chuvas desalojaram milhares de pessoas e alagaram
diversos bairros por mais de 20 dias, expondo a população ao risco de epidemias,
e demonstrando todo o fracasso do desenvolvimento urbano da cidade moderna.
3. Considerações Finais
As consequências do processo de produção da cidade orgânico (pois
praticamente sem intervenção do Estado) refletem-se no presente e, por isso,
milhares de cidadãos da Vila Velha contemporânea estão à mercê dos impactos
de eventos hidro-metereológicos atuais, situação essa prevista e resguardada no
século XVII por Antônio Athayde. Recordadores revelam, através de suas
experiências e testemunhos, a história deste município da Região Metropolitana
da Grande Vitória e as transformações vividas na segunda metade do século XX.
O que se observa pelos relatos é a ausência de ordenamento e a
permissividade nas décadas de urbanização que culminam com a gentrificação. A
população mais abastada, naturalmente, buscou as zonas livres de alagamentos,
aumentando o custo de moradia nessas áreas, impossibilitando as classes menos
favorecidas adquirir moradia em tais áreas, deixando, como única opção, áreas
desvalorizadas pelo mercado imobiliário: margens de rios, mangues, encostas de
morros... Por outro lado, a impermeabilização dos baixios provocada pela
ocupação de conjuntos habitacionais pode significar uma situação de não retorno
ou de difícil solução de problemas em relação aos alagamentos e aos limites
urbanos da base biogeofísica do município. Embora a baixa cota altimétrica fosse
evidente, o terreno arenoso, repetidamente lembrado pelos recordadores, permitia
rápida infiltração da água independente de sua origem, maré cheia, chuva ou
alagamento da planície de inundação. O que amenizava o centenariamente
registrado “problema” hídrico – os solos permeáveis torna-se a principal razão do
seu agravamento: começa a ser criada uma depressão impermeável influenciada
Figura 06 - Inundação de 1960. Visão do limite Norte do Município, sobre o Convento da Penha, em direção ao sul do município. Foto: autor desconhecido.
Figura 07 - Visão do sul da área urbana de Vila Velha em direção ao Norte, em 28 de dezembro de 2013, Morro do Convento da Penha ao fundo. Foto: Jorge Sagrilo.
pela movimentação da maré, cercada de água a oeste pelo mar, a leste pelo rio
Marinho, ao sul pelo Rio Jucu e ao norte pela Baía de Vitória.
Enfim, os testemunhos apontaram para, pelo menos, duas considerações:
(1) o desrespeito à base geofísica original deste território foi ignorada pelo
processo de ocupação do solo; e (2) o “incentivo”, pelo poder público, à ocupação
de áreas, outrora, alagados, brejos e mangues, pela população excluída, o que
pode explicar os atuais desastres envolvendo as populações vulnerabilizadas
socioambientalmente pelo processo de desenvolvimento desigual, excludente e
insustentável. O que parece ter ocorrido foi, no território, a concretização de uma
racionalidade hegemônica e dominadora que rompeu com uma racionalidade
local, nativa, com base em uma lógica ecológica. Os testemunhos levam a pensar
que a cidade moderna se impôs num “vazio”, por assim, dizer, impotente que se
tornou refém da racionalidade hegemônica moderna, arrogante.
4. Referências Bibliográficas
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