Download - Histórias de Leitura e Memoria
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Universidade Federal do Rio Grande do Sul Faculdade de Educao
Programa de Ps-Graduao em Educao
A travessia do leitor: Histrias de leitura e memria discursiva
nos dizeres de alunas adultas
Rafael Peruzzo Jardim
Dissertao apresentada como requisito parcial para obteno do
ttulo de Mestre em Educao.
Orientadora: Dr. Regina Maria Varini Mutti
Porto Alegre
2002
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In memoriam
Para Maristela Peruzzo Jardim, cujo amor verdadeiro pelos livros abriu espao para minha formao como leitor.
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Agradecimentos
Ao CNPq, pela bolsa de estudos concedida, na expectativa de ser merecedor desta
distino.
Cristine, pela companhia inspiradora que me renova.
Jasmine, pela alegria de todos os dias.
Fabiana Fidlis, pelo emprstimo de livros e pelo apoio constante.
Regina Mutti, pela ardente pacincia de sua orientao, que impulsionou este trabalho
para muito alm do que eu esperava.
Jaqueline Moll, pela estima demonstrada antes e durante este trabalho.
Ao Grupo de Pesquisa, pelos conselhos que tambm foram tecendo esta dissertao.
Ao PEFJAT, por permitir a realizao da Oficina de Leitura.
Ao PPGEDU, assim como FACED, por acolher esta pesquisa.
Banca Examinadora, pelas sugestes e encaminhamentos no Projeto de Pesquisa.
Anlise de Discurso, por representar um porto seguro para esta travessia.
Associao de Leitura do Brasil, pelo esforo obstinado de formar leitores.
Aos colegas, amigos e familiares que de algum modo envolvi, pela cumplicidade.
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Resumo
Este trabalho trata da formao do leitor adulto. A partir de uma Oficina de Leitura,
os alunos sistematizaram suas leituras atravs da escrita de um memorial. Aps a oficina,
realizei entrevistas com as alunas. O recorte para anlise foi feito a partir dos memoriais e
entrevistas de duas alunas. O referencial terico-metodolgico adotado na prtica
pedaggica a Pedagogia de Projetos, em interface com a Anlise de Discurso.
Com relao ao referencial terico, realizo uma pesquisa sobre a leitura,
considerando basicamente duas vozes: a voz dos escritores e a voz da academia. O conceito
de letramento utilizado para discutir a prtica social da leitura. Fundamento meu trabalho
numa viso discursiva de leitura, elaborada desde Michel Pcheux. Entendo a leitura como
um acontecimento, que desloca e desregula a memria discursiva.
A anlise feita com dois objetivos: evidenciar relaes entre a histria de vida e a
histria de leitura; mostrar os efeitos de sentido em suas relaes com diversos pr-
construdos do sujeito-leitor adulto. O intradiscurso composto pelos memoriais e
entrevistas de duas alunas. Na anlise feita, o interdiscurso constitudo por formaes
discursivas religiosa, trabalhadora e familiar, que marcaram a posio de sujeito aluna
adulta.
Em funo disso, apresento uma Formao Discursiva Aluna Adulta heterognea.
Nesta, situo o sujeito adulto analisado, tendo em vista propiciar subsdios ao ensino de
leitura. Defendo que as alunas no se consideram excludas socialmente, ficando o lugar de
excluso restrito escola e s prticas leitoras. Tambm observo que as condies para a
ampliao das prticas de leitura, e conseqentemente das condies de letramento desse
sujeito, no esto dadas nos seus contextos sociais, cabendo Educao de Jovens e
Adultos promov-la de modo condizente.
Palavras-chave: discurso; leitura; letramento; educao de jovens e adultos.
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Abstract
In this dissertation, I study the adult reader's formation. In reading clases, the
learners wrote about their readings. After classes, I interviewed two female learners. The
corpus was made with the writings and interviews. The theory adopted was the French
School of Anlise de Discurso, also the Pedagogia de Projetos.
In my research about reading, I considered two views: the view of writers and the
academic view. The concept of literacy was used to discuss the social practice of reading. I
based my discursive view about reading in the studies of Michel Pcheux. For him, lecture
is a happening that changes the memria discursiva.
The analysis had two objectives: to approximate the life history and the history of
reader of each learner; to show the effects of sentido in many pr-construdos of the
learner. The intradiscurso was composed by religious, working and familiar discursive
formations, that established a subject adult female position.
I present a Formao Discursiva Aluna Adulta. I show that female learners do not
consider themselves as socially excluded. They only said they are excluded of scholar
learning and reading practices. I noted the conditions of literacy are not given in their social
contexts.
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Credo
No creio
No salvador de fuzil
Na balana vermelha de sangue
No peixe dado aos sem
No deus que destri cidades
Nas oraes de laboratrio
Nos tambores de dio
No monumento oficial
No fogo que consome cdulas e bolsos
Sim creio
Na procura da palavra exata
Na fora de um poema falado
No brao que ampara outro brao
No deus que faz da gua o vinho
No passeio de ps descalos na grama
Nos olhos que aceitam outros olhos
No amor sem moedas da criana
Na mulher que l luz de vela
No fogo que medeia livro e olhos
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Sumrio
Dedicatria, i
Agradecimentos, ii
Resumo, iii
Abstract,iv
Fotos, v
Credo, vi
Primeiras palavras
O PEFJAT, 2
A proposta de pesquisa, 6
Captulo 1 - Pressupostos tericos
Vozes sobre a leitura,20
A voz da academia,20
A voz dos escritores,25
Discurso, 28
Formao discursiva,33
Interdiscurso,34
Heterogeneidade,35
Memria,37
Letramento,38
Escrita e leitura, 41
Autor e leitor,42
Histria de vida,43
Histria de leitura, 44
Captulo 2 - Procedimentos metodolgicos
Produo do memorial,46
Teorizando a tipologia do memorial,49
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Uma proposta de entrevista,51
Oficina de leitura e textualizao,53
Captulo 3 - Anlise
Memorial de Carmelina - E a tive paz,60
Efeitos de sentido,69
Formao Discursiva Feminista,70
Formao Discursiva Religiosa,73
Relaes entre as Formaes Discursivas, 75
Memorial de Marli - Era meu amigo,77
Efeitos de sentido,84
Formao Discursiva Religiosa,85
Formao Discursiva Trabalhadora,88
Relaes entre as Formaes Discursivas, 90
Anlise das Entrevistas, 91
Entrevista de Carmelina - L nem tem livro, 92
Entrevista de Marli - bom porque desenvolve,96
Relacionando as entrevistas, 99
Pelo discurso heterogneo da Aluna Adulta, 101
Palavras finais,105
Referncias Bibliogrficas,112
Anexos
Anexo A - Memorial de Carmelina, 116
Anexo B - Memorial de Marli, 117
Anexo C - Entrevista com Carmelina, 122
Anexo D - Entrevista com Marli, 125
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Primeiras palavras
Aquele rio era como um co sem plumas.
Nada sabia da chuva azul, da fonte cor-de-rosa,
da gua do copo de gua, da gua de cntaro, dos peixes de gua, da brisa na gua.
Sabia dos caranguejos
de lodo e ferrugem. Sabia da lama
como de uma mucosa. Devia saber dos polvos.
Sabia seguramente da mulher febril que habita as ostras.
(Joo Cabral de Melo Neto - "O co sem plumas")
Como desenvolver uma pedagogia da leitura voltada para o aluno adulto? Como
ressignificar a escrita na perspectiva da formao de leitores? Como a disciplina de Lngua
Portuguesa pode inscrever-se e inscrever seus alunos na perspectiva do discurso? Como a
pedagogia de projetos pode auxiliar no planejamento das aulas? Como ressignificar o
currculo escolar, incluindo nele as histrias de vida dos sujeitos/leitores envolvidos em
situaes concretas? Como ressignificar o currculo de Lngua Portuguesa, incluindo nele
as histrias de leitura ? Como propiciar que o mundo da escrita faa sentido ao aluno
adulto?
A confluncia destas perguntas me levou presente travessia - a travessia do leitor.
Para tanto, dou visibilidade aos diferentes atravessamentos que desguam nesse rio
pantanoso. Sei que o campo do discurso nada sabe da gua de cntaro (no transparente),
antes incorre na opacidade da lama. Busco, em meio ao lodo e ferrugem, a mulher febril
que habita as ostras.
O discurso um objeto oculto, que no se revela seno parcialmente, de acordo com
a interpretao feita pelo analista a partir de experincias socialmente compartilhadas. Tal
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efeito de sentido configura o discurso, que s pode ser entendido a partir da anlise de seus
processos de produo, e no do seu produto.
O PEFJAT
A greve de 1984 revelou um expressivo contingente de analfabetos p em torno de mil p entre os funcionrios da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Essa demanda concreta recebeu a solidariedade da Associao dos Servidores da UFRGS
(ASSUFRGS) e, logo a seguir, dos professores da FACED. O sentimento dominante, ainda
difuso, era o de que precisava ser feita alguma coisa pelos funcionrios. E as aulas
comearam, de incio improvisadas na Casa do Estudante Universitrio (CEU).
Em 1988, essa "alguma coisa" ganhou forma no Curso de Terminalidade Escolar.
Inicialmente ligado ao Centro de Estudos Supletivos (CES), que realizava as provas, o
programa tinha por objetivos alfabetizar e concluir as sries restantes do primeiro grau.
Problemas com a estrutura, sobretudo com a falta de oferta de algumas disciplinas (entre as
quais Matemtica) retardaram a consolidao do Programa.
O Programa de Ensino Fundamental para Jovens e Adultos Trabalhadores
(PEFJAT) uma ao conjunta da Pr-Reitoria de Recursos Humanos (PRORH) e da
Faculdade de Educao (FACED). Tem por objetivo geral a escolarizao dos
trabalhadores que no ingressaram ou no completaram o ensino fundamental. O PEFJAT
"proporciona a integrao entre Ensino, Pesquisa e Extenso na rea de Educao de
Jovens e Adultos e a concretizao do compromisso social da Universidade com seus
prprios funcionrios (...)".(PEFJAT, 2000)
Este Programa integra o Ncleo Interinstitucional de Ensino, Pesquisa e Extenso
em Educao de Jovens e Adultos (NIEPE-EJA), criado em 1999.
Neste perodo, o Programa tem se constitudo em campo de prtica pedaggica para
os cursos de Licenciatura da Universidade, e em campo de pesquisa dos Cursos de Ps-
Graduao. Merece destaque especial o Programa de Ps-Graduao em Educao
(PPGEDU), que j acolheu vrias dissertaes de mestrado1, e ora acolhe esta.
1 Indico aqui as dissertaes de Sita Mara Sant'Anna, Jorge Nblega e Evandro Alves.
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O PEFJAT se divide em quatro nveis, equivalentes s oito sries do ensino
fundamental. A demanda inicial era a alfabetizao de funcionrios. A partir de 1990, o
curso passou a oferecer turmas de Ps-Alfabetizao (2.a 4.sries), nvel III (5. a 6.srie)
em 1991, e nvel IV (7.e 8. sries) em 1994.
O Curso de Terminalidade Escolar rebatizado Programa de Ensino Fundamental
para Jovens e Adultos Trabalhadores (PEFJAT) em 1995. Nesse mesmo ano, obtm
autorizao do Conselho Estadual de Educao do Estado do Rio Grande do Sul para
emitir certificados de concluso do Ensino Fundamental. As primeiras formaturas
ocorreram em 1996.
A oferta de vagas j superava a procura dos funcionrios, consolidando a
experincia do PEFJAT. Por essa razo, a partir de 1997, o Programa passou a admitir
alunos da comunidade, alm de firmar convnio com a Prefeitura de Porto Alegre.
Tambm so oferecidas regularmente oficinas, semestrais e de carter opcional, e
plantes, que servem de reforo s disciplinas. Nos nveis III e IV, os alunos devem cursar
duas disciplinas por nvel, e cursam obrigatoriamente uma oficina de lngua estrangeira.
A avaliao participativa, elaborada atravs de pareceres descritivos, sendo
abolido o sistema tradicional de avaliao, feito atravs de notas. As alternativas no parecer
so: A (avano), P (permanncia) e AF (afastamento).
As disciplinas se agrupam em blocos, visando a uma maior comunicao entre si.
H trs blocos: Sociedade e Cidadania, Cincia e Tecnologia, Linguagem.
O reconhecimento nacional veio em 1998, atravs da premiao em Braslia. A
partir de 2000, a UFRGS oferece a opo de continuidade dos estudos aos alunos que j se
formaram no Ensino Fundamental: o PEMJAT, Programa de Ensino Mdio para Jovens e
Adultos Trabalhadores.
Ingresso no PEFJAT em 1995, como professor-bolsista, num momento de
renovao dos quadros do Programa. Eu era estudante de terceiro semestre do curso de
Letras desta Universidade. A coordenadora do Programa era a professora Jaqueline Moll e
a orientadora da disciplina era a professora Regina Mutti.
Passei a desenvolver meu trabalho com base na perspectiva textual, de acordo com
a proposta do Programa. Minha dinmica de aula era texto-debate-produo textual. A
nfase era dada escrita, fazendo do texto um pretexto para a discusso das histrias de
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vida. A partir de 1997, inclu na proposta metodolgica o referencial terico da pedagogia
de projetos. Trabalhei assim por quatro anos, com alguns acrscimos e modificaes.
Torno-me orientador do Bloco da Linguagem em 1999, j formado no curso de
licenciatura. Refletindo sobre minha prtica luz da Anlise de Discurso, a partir dos
estudos feitos como "aluno sem vnculo" de mestrado no PPGEDU, pude perceber faltas e
falhas decorrentes do trabalho com a leitura. O sentido do meu trabalho, nesse momento,
passa a ser a formao do leitor. Em decorrncia, o texto deixa de ser pretexto para virar
contexto.
No segundo semestre de 2000, minha inscrio no PEFJAT se deu de trs maneiras:
orientao de estgios de Prtica de Ensino em Lngua Portuguesa, realizando meu Estgio
Docente de Mestrado como bolsista do CNPq; discusso e elaborao do currculo do
Bloco da Linguagem; coordenao da Oficina de Leitura. Por ora, destaco esse ltimo item,
pela vinculao com minha pesquisa. A Oficina, dirigida aos nveis III e IV do Ensino
Fundamental, teve a durao de trinta(30) horas, dispostas em dez encontros de trs horas.
O projeto, desenvolvido junto ao grupo de jovens e adultos dessa oficina, foi a produo de
um memorial: todas as atividades convergiam para a sua realizao.
Uma vez que todo ato pedaggico intencional, preciso um mtodo de leitura.
Isso significa dizer que o professor tem um papel na mediao da leitura, que ela no se d
apenas pela autonomia do aluno. O professor joga o jogo da leitura atravs do resgate das
histrias de vida pela histria de leituras do aluno, como observa Orlandi (1988).
Trs questes balizam meu trabalho: a formao do leitor; a necessidade de incluir
no currculo as histrias de vida dos alunos (em Lngua Portuguesa, atravs da histria das
leituras); o entendimento da leitura como prtica interdisciplinar, sendo o objetivo primeiro
da escola (no s da disciplina de Lngua Portuguesa). Em sntese, funo da escola
formar leitores capazes de expressar suas histrias de vida e de leitura.
A questo de fundo, recorrente em minha pesquisa, saber que leitor queremos
formar no PEFJAT. Meu objetivo contribuir com outros estudos da rea para melhor
compreender por quais trilhas a leitura - e a formao do leitor - pode ser percorrida neste
Programa.
A Proposta de Pesquisa
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Embora haja consenso no meio acadmico e nas leis educacionais de que o ensino
de lngua portuguesa envolve a leitura, a escrita e a oralidade, tal consenso no aplicado
na escola. comum ver professores sendo cobrados apenas quanto ao ensino da gramtica,
vista como um saber instrumental que possibilitaria ao aluno escrever, ler e at mesmo falar
melhor. No estou criticando o professor, e sim o contexto institucional que o obriga a agir
de determinada maneira em situaes concretas de aprendizagem.
Se um professor de lngua usa seus cinco perodos semanais em aulas de gramtica,
ele no est ensinando lngua portuguesa, e sim uma gramtica descontextualizada. Em
suas origens gregas, o termo gramtica (he gramatik techn) significa a arte de ler e
escrever. A gramtica tinha um objetivo prtico de influir na retrica, atuando no plano
social.
Assim, o ensino de leitura no vem destruir a gramtica, e sim salv-la da
autonomia a que ela foi condenada. Nem a gramtica, nem mesmo o texto so autnomos.
Ao contrrio, ambos esto inscritos na ordem social.
nesse contexto que se inscreve a questo da leitura na Educao de Jovens e
Adultos (EJA). A escolha da leitura se justifica por ser ela um projeto inacabado no Brasil:
89% dos municpios brasileiros (e 85% dos gachos) no tm livraria, e a maior parte no
possui biblioteca pblica (Nunes,2000). Se evidente que a simples instaurao de livrarias
e bibliotecas no resolve o problema, a sua no-instaurao priva camadas inteiras da
populao do acesso leitura. Via de regra, tais camadas so justamente o pblico-alvo da
educao de jovens e adultos, constitudo numa situao de excluso escolar. o caso da
aluna Marli, que revelou durante entrevista concedida sobre a leitura (anexo D) no dispor
de bibliotecas perto de sua casa.
Nesta pesquisa, a escolha da EJA se justifica por dar visibilidade a uma rea
relativamente nova de conhecimento (nos seus moldes atuais) que ainda no dispe de uma
quantidade satisfatria de estudos no Brasil. Em geral, a tradio escolar prioriza a
aprendizagem da criana, restando ao adulto o ensino "supletivo" - um complemento da
escolarizao numa proposta de ensino que no foi pensada para ele.
Neste quadro geral, o Programa de Ensino Fundamental para Jovens e Adultos
Trabalhadores (PEFJAT) representa a proposta da UFRGS para o ensino de jovens e
adultos. Inicialmente oferecido apenas para funcionrios da universidade, passou a
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estabelecer convnios, e em 1997 estendeu-se comunidade. Sua escolha se justifica pela
minha inscrio pessoal nele, por ser um espao de experincia pedaggica e pelo seu
discurso inovador no que diz respeito EJA.
Em agosto de 1997, minha me ingressou no PEFJAT. Ela no estudava desde os 19
anos, tendo retomado os estudos aos 51. Pude conferir duas coisas: o impacto causado na
famlia e a metodologia empregada por meus colegas.
Talvez as pessoas no saibam o alcance que a deciso de um pai, me ou av de
retornar aos estudos tm sobre os filhos e netos. Meus dois irmos menores no tinham o
hbito de estudo poca. Com o exemplo dado por nossa me, ambos progrediram de
modo imediato e vertiginoso: minha irm j no se contentava mais com um sete no
boletim, pois passou a buscar o conhecimento antes da nota, enquanto meu irmo se sentiu
estimulado a cursar uma universidade.
Recordo uma noite em que passei a madrugada preparando um trabalho da
faculdade. No dia anterior, minha me me contou que estava com dificuldades em
Matemtica. Quando fui cozinha, eu a encontrei estudando. Eram duas da manh e fiquei
um pouco para ajud-la. Ela j no precisava: havia feito um esforo para entender a
matria. Ela me contou que estava muito feliz por poder ensinar aos colegas e filha.
Interessava-me acompanh-la na disciplina de Lngua Portuguesa, da qual eu j era
professor em outra turma. Causou estranheza saber o que ela estava estudando: pginas de
acentuao grfica, seguidas de muitas pginas de conjugao verbal. A estranheza vem do
fato de a professora que lhe dava aula na poca dizer trabalhar a gramtica atravs de
textos, alm de estimular a produo textual. Nos trs semestres em que minha me esteve
no Programa, ela produziu dois textos: a histria de vida, em Sociologia, e um texto a partir
de uma figura, em Lngua Portuguesa...
Um colega de minha me formou-se sem ampliar a inscrio no Discurso da
Escrita(!). Ele produziu um texto na aula de reforo, cujo incio ser aqui transcrito para
evidenciar o seu grau de letramento:
Umha comparao com homen. e a muliher. em primeiro
lugar. homem precisa de mulher para saber viver. Ele nassi de uma muleher. e vevi para uma mulher. e tudo que costroi, el de pende de sua companheira. que a de ministra a casa. O beter o seu futuro. com muito amor e carinho. esa earazo de viver para a familia..
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Neste texto, o aluno no distingue a palavra fonolgica da palavra ortogrfica:
escreve "earrazo" por "e a razo". H trs grafias para a palavra mulher: muliher, muleher
e mulher. Ele parece estar formulando hipteses sobre a grafia desta palavra, semelhana
de alunos em processo de alfabetizao. Como a palavra em questo de uso corrente,
alm de ser um hipernimo, suas diferentes grafias revelam a quase ausncia de prtica de
produo de leitura ou escrita. H tambm casos de hipercorreo: "de pende" por
"depende" e "a de ministra" em vez de "administra". Um professor de lngua poder objetar
que, nestes casos, ele demonstraria conhecimentos de leitura. Penso que no: ele demonstra
conhecimentos gramaticais, formulando as hipteses de que "de" seria preposio e "a"
seria artigo, quando fazem parte do radical da palavra. Alm disso, ele no tem noo de
pontuao, colocando ponto a cada pausa. Isso comprova que o ensino espontneo de uma
gramtica (pretensamente) autnoma no garante por si s um grau adequado de
letramento.
Quero deixar claro o meu respeito pelo texto do aluno, que pode ser melhorado
atravs da ao pedaggica e da reescritura. No ele quem est sendo avaliado, nem
mesmo seu texto, e sim o contexto institucional que permitiu que um aluno se formasse
sem participar de um discurso escolarizado da escrita. Talvez o seu desembarao na
expresso oral tenha convencido a professora de que ele estava apto a avanar. Em resumo,
ele foi privado do direito de participar do discurso letrado "culto" por deciso da
professora, sem que ns do Programa tenhamos feito algo para defend-lo. possvel que
outros alunos (dela, meus, de outro professor) tenham passado por um processo semelhante.
Todos devemos lamentar a exceo, para evitar que ela se torne regra. No penso que a
escola ir resolver todas as demandas sugeridas pelo conceito sociolingstico do
letramento, apenas acredito que a Escola (e os espaos de ensino j institucionalizados)
deve assumir a sua parte nesta questo. Aconselho aos que se interessarem a pesquisar o
grau de letramento dos alunos formados no PEFJAT a procurarem o PEMJAT, entre outras
instituies.
Passei a indagar o que estava acontecendo no Programa. Conclu que ainda no
tnhamos (eu includo) desenvolvido plenamente uma metodologia voltada para o aluno
adulto. Minha me foi ensinada em algumas disciplinas do mesmo modo que se ensinaria
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um jovem de dezenove anos ou uma menina de nove. certo que h exemplos do oposto
entre seus professores; porm, em meu estudo, detenho-me na disciplina de Lngua
Portuguesa. A partir da, passei a olhar para o aluno adulto em sua especificidade, e para
isso tive de buscar referenciais tericos. Alm disso, verifiquei que a simples nfase na
prtica de produo textual no forma nem leitores, nem produtores de texto. O aluno
formado no passa a escrever porque j escreveu, nem se torna leitor por isso. No creio em
um ler para escrever, mas em um escrever para sistematizar as leituras feitas.
S ento dei-me conta de que o Programa no dispunha de uma biblioteca, e sim de
uma mini-biblioteca (termo usado em folheto endereado aos alunos) que raramente
utilizada. Alguns professores j se deram conta disso, e usam os meios de que dispem para
resolver a questo, como emprstimo dos prprios livros, visitas a outras bibliotecas da
UFRGS, emprstimo de livros de outras instituies. Tais solues so atos isolados que
dependem mais de uma deciso pessoal do professor que de uma poltica voltada para a
formao de leitores. Tal situao representativa do ensino de adultos no Brasil, ainda
vinculado modalidade de estudos supletivos.
dessa (auto)crtica que passei a formular oficinas de leitura. Se em 1995 j havia
oferecido uma Oficina Literria , enfocando vrias linguagens e de modo diretivo, passei a
dedicar meus estudos formao do leitor adulto. Realizei oficinas com professores em
1997, nas quais partilhava minha preocupao. Em 1998, realizei a Oficina de Leituras,
junto com a professora Cristine Costa, que contou com a presena de quinze alunos. Em
1999, busquei orientar um trabalho nesse sentido junto aos professores, mas o resultado
no foi satisfatrio. Em 2000, j cursando o mestrado, realizei a Oficina de Leitura, que
enfocou preferencialmente a linguagem escrita. Embora ainda predominasse o carter
diretivo, houve grande envolvimento dos alunos nas atividades orais e at no planejamento
de algumas aulas.
Destaco o carter indito deste trabalho. Pretendo relacionar as histrias de vida do
aluno adulto com a sua histria de leituras, enfatizando o papel da memria discursiva nos
sentidos que esto sendo construdos por esses alunos. Embora outros trabalhos enfoquem
a histria de vida, este o primeiro em nosso meio que a relaciona com a histria de leitura.
Entendo a leitura como parte da vida (ao menos dos sujeitos leitores), e no apenas como
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um instrumento pedaggico. Com efeito, h (mais) leituras sendo feitas fora da escola, e
isso deve ser estimulado pelo professor.
A memria discursiva (conforme Maingueneau, 1998) pode ser tanto uma remisso
dentro do texto quanto uma memria de outros discursos. Embora as duas perspectivas
sejam usadas neste trabalho, destaco a segunda por seu carter dialgico e interdiscursivo.
Dessa forma, proporcionei ao aluno adulto a valorizao das suas histrias de vida atravs
das suas histrias de leitura, realizando um trabalho pedaggico dirigido a esse objetivo,
tendo em vista a anlise desse processo e enfocando em especial os alunos. Trata-se, assim,
de uma disciplina educacional preocupada com as questes pedaggicas, em especial com o
ensino da Lngua Portuguesa.
Para o enfoque discursivo enfatizado nesta pesquisa, o nosso quadro terico a
Anlise de Discurso de linha francesa. Ela uma disciplina de interpretao que busca
analisar efeitos de sentidos produzidos pelos sujeitos. Estes se constituem no discurso,
representando posies de sujeito. Ela pode ser entendida como um dispositivo de anlise
ou como um gesto de leitura. Os autores estudados so principalmente Michel Pcheux e
Eni Orlandi.
Analisarei no discurso dos alunos o que no homogneo: as falhas e os equvocos.
Buscarei as posies de sujeito que emergem desses discursos. Parto do princpio de que
um discurso nunca homogneo.
Este o nosso problema de pesquisa: que efeitos de sentido so produzidos e que
posies de sujeito so manifestadas pelos alunos adultos em suas leituras, a partir da
Oficina de Leitura no PEFJAT? Pretendo relacionar as histrias de leitura, as histrias
de vida e o papel da memria na formulao do discurso do leitor.
Meu trabalho tem trs objetivos:
1. MOBILIZAR as perspectivas discursivas e textuais relacionadas
formao do leitor;
2. DOCUMENTAR uma prtica pedaggica baseada na Pedagogia de
Projetos e na Anlise de Discurso, fornecendo subsdios para os
professores interessados em EJA.
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3. CONTRIBUIR para a discusso do papel da leitura na Educao de
Jovens e Adultos, inscrevendo uma nova proposta de textualizao.
Como estou falando de Educao de Adultos, recorro contribuio de Paulo
Freire. O que me interessa nele a perspectiva dialgica e a reflexo sobre a prtica de
leitura. Freire fornece importante referencial, no sentido de dar a palavra ao aluno, ouvi-lo
de fato, deix-lo falar de si e do mundo.
As indagaes norteadoras so:
1. Qual a relao entre leitura e memria discursiva, na perspectiva
terica?
2. Como efetivar o trabalho pedaggico de modo a enfatizar a relao entre
leitura e memria discursiva em EJA?
3. Como analisar os elementos leitura e memria discursiva nos textos e
pronunciamentos dos alunos?
Os procedimentos analticos, como observa Orlandi (1999), baseiam-se na noo de
funcionamento da linguagem. O analista observa os processos de constituio de sentidos e
de sujeitos, valendo-se de manutenes e de alteraes de sentidos, ou seja, de sentidos
parafrsticos e polissmicos. Diante de um texto, o analista o remete imediatamente a um
discurso. A primeira etapa de anlise envolve as marcas lingsticas de heterogeneidade
presentes no texto/discurso. Nessa etapa, desnaturaliza-se a relao palavra-coisa. A seguir,
passa-se ao discurso para delimitar as formaes discursivas presentes. Nas palavras da
autora: "O que ele faz tornar visvel o fato de que ao longo do dizer se formam famlias
parafrsticas relacionando o que foi dito com o que no foi dito, com o que poderia ser dito,
etc.". A respeito das bases para anlise, Orlandi adverte que o analista no trata os "dados"
como meras ilustraes: ele "trata de 'fatos da linguagem' com sua memria, espessura
semntica, sua materialidade lingstico-discursiva."(1999:62) Trata-se de um movimento
de ir e vir do texto ao discurso e do discurso ao texto. No um caminho unilateral. Assim
como o texto anuncia aspectos do discurso, o discurso conforma elementos do texto.
Os procedimentos pedaggicos consistem na realizao de uma oficina de leitura
e de entrevistas semi-estruturadas com os alunos dessa oficina. A produo escrita da
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oficina o Memorial da histria de vida, atravessada pela histria de leituras dos diferentes
objetos culturais2 significativos para o aluno.
Desde o incio, julgo necessrio esclarecer o modo como entendo certos conceitos
expressos aqui. Em princpio, explicito os sentidos que atribuo aos conceitos de discurso e
oficina.
Discurso o objeto terico da AD, atravessado pelas categorias de sujeito, lngua e
ideologia. O conceito de discurso dispensa o de mensagem: no h transmisso de
informao, e sim um processo complexo de constituio de sujeitos e de produo de
sentidos. Nessa acepo, discurso "efeito de sentido entre locutores".
Neste projeto de pesquisa, a idia de oficina tributria dos atelis de Josette
Jolibert. Para ela, os atelis so tarefas de curta durao (dois perodos) e inditas. Cada
grupo recria para os outros textos que no conhecem. Preservei a idia dos atelis nas
atividades-elo, que comeavam e encerravam em cada encontro. Apresentei para os alunos
textos, tcnicas e atividades inditas para eles. Oficina, por sua vez, a reunio destas
atividades-elo dentro do mesmo projeto; tambm o nome dado no PEFJAT para
disciplinas opcionais de durao semestral. Realizamos ali uma Oficina de Leitura,
composta por dez encontros, sendo que cada encontro tinha uma atividade-elo especfica,
nos moldes do ateli.
A construo do recorte terico est ligada aos procedimentos analticos e
metodolgicos. Ela feita a partir de marcas lingsticas encontradas nas entrevistas e nos
memoriais produzidos pelos alunos. Com isso, o corpus j parte da anlise.
Mais algumas explicaes sobre o modo como organizei a presente dissertao
tornam-se necessrias. Para tanto, exponho a organizao escolhida para este texto. Divido
esta dissertao em trs captulos: Pressupostos tericos, Procedimentos metodolgicos e
Procedimentos analticos.
No captulo 1, em Vozes sobre a leitura, no me limito teoria que defendo.
Destaco a voz da academia, ligada perspectiva do ensino, e a voz dos escritores, ligada
perspectiva do ato de ler. Fao um mosaico de vozes expressivas na discusso dessa rea,
2 A concepo de objeto cultural est ligada ao que Davallon (1999) define como "o conjunto de objetos concretos que resultam de uma produo formal e so destinados a produzir um efeito simblico." Assim, so objetos culturais os filmes, livros, desenhos, esculturas etc. A aplicao pedaggica deste conceito refere-se produo de um memorial, de acordo com a Pedagogia de Projetos.
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nas mais diferentes perspectivas: o interacionismo, a interdiscipinaridade, a formao de
leitores e a repercusso do tema em peridicos. A seguir, recupero os elementos da Anlise
de Discurso que utilizo mais diretamente, tais como discurso, formao discursiva,
interdiscurso, memria e heterogeneidade. Por fim, relaciono os elementos ligados prtica
do letramento.
Devido proposta deste trabalho envolver leitura e textualizao, analiso as relaes
entre escrita e leitura e entre autor e leitor. Considero a leitura uma forma de produo de
sentidos e o leitor como uma funo enunciativo-discursiva correspondente de autor,
conforme Orlandi (1988) .
Analiso a confluncia dos conceitos do item anterior na produo do memorial. A
seguir, em Teorizando a tipologia do memorial, inscrevo o memorial como uma narrativa
no-homognea ligada tipologia textual do depoimento. A partir da definio de Jean-
Michel Adam para seqncia textual, investigo as seqencialidades e as
microsseqencialidades presentes no memorial.
Devo ressaltar que a solicitao aos alunos para que produzam memoriais j um
tanto familiar no PEFJAT, surgindo como um modo de valorizar a experincia de vida do
aluno adulto. Porm, o seu emprego pedaggico no fora ainda explicitado antes deste
estudo, nem fora feita a relao entre o memorial e as leituras dos alunos.
Em Uma proposta de entrevista, defendo que os temas da interlocuo so
localmente constitudos pelos interlocutores, sem pr-definidos rgidos. Alm disso, fao a
crtica dos manuais de entrevista, que tentam controlar as perguntas e as respostas. Tambm
fao referncia ao conceito de entrevista-dilogo, muito pertinente para este estudo.
No captulo 2, descrevo os procedimentos metodolgicos adotados. Destaco a
produo do memorial, bem como sua tipologia. Explicito meus conceitos de histria de
vida (vista como narrativa) e histria de leitura (vista como relao de texto e leitor com o
contexto histrico). A partir de Mondada (1997), apresento uma proposta de entrevista.
Fao ainda um relato da Oficina de Leitura.
No captulo 3, realizo os procedimentos analticos. Nele constam a anlise dos
memoriais e das entrevistas realizadas. Ao analisar, busco evidenciar efeitos de sentido
diversos, condizentes a diferentes formaes discursivas (FDs), como a FD Religiosa, a FD
Feminista e a FD do Trabalho. Tais FDs se atravessam na FD Pedaggica, sendo estudadas
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em funo desta e revelando os processos interdiscursivos das alunas em questo, na
complexidade de formaes discursivas manifestadas que se entremeiam.
A anlise parte das marcas lingsticas presentes no intradiscurso que o memorial
- por exemplo, a alternncia de primeira e terceira pessoas e o uso incomum de verbos -
para chegar ao contexto histrico-social que condiciona a produo desse texto, contexto
esse marcado por diversas formaes discursivas.
Passo agora a abordar a contribuio terico-analtica da Anlise de Discurso e a
contribuio terico-metodolgica da Pedagogia de Projetos.
Presente desde o Projeto de dissertao de mestrado, a Anlise de Discurso (AD)
constitutiva deste estudo, sustentando conceitos-chave: leitura, memria, efeito-leitor. Por
isso, ela a base na qual a concepo deste trabalho se constitui. Para a anlise, de acordo
com o referencial discursivo, pretendo enfocar a relao entre os conceitos de intradiscurso
e interdiscurso, usuais em AD.
O intradiscurso o "tempo curto" de um enunciado, oposto (mas no separado) ao
interdiscurso, "tempo longo" de uma memria, conforme Trevisan. Ao mesmo tempo que a
ele se ope, o intradiscurso fornece a materialidade lingstica para que o interdiscurso
possa emergir. Como vemos, um est irredutivelmente ligado ao outro.
Para a anlise, so tomados como intradiscurso os memoriais e entrevistas das
alunas Carmelina e Marli. Foram identificadas certas seqncias discursivas, com vistas a
caracterizar uma Formao Discursiva Aluna Adulta Leitora, aqui investigada. Procurei nos
seus dizeres (e nas margens desses dizeres) pistas para entender a relao entre o que dito
e sua exterioridade, como assinala Orlandi (1999).
Assim, os memoriais esto segmentados em Formulaes (F), de acordo com os
procedimentos analticos da Anlise de Discurso. Elas so extradas da continuidade dos
textos, podendo ser de tamanho igual ou superior frase - na gramtica tradicional, so
chamadas de perodos. As formulaes funcionam como unidades discursivas de anlise.
Outro referencial importante para o presente estudo foi a Pedagogia de Projetos. Ela
foi assim definida por Mutti (1997:48) para a orientao da Prtica de Ensino em
Portugus, a partir de leituras de Jolibert (1994) e Kaufman e Rodrguez (1995):
Segundo essas autoras, os alunos participam de projetos que
consistem em atividades de linguagem que extrapolam a sala de
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aula. Produzem jornais-murais, apresentaes ao vivo ou filmadas, coletneas de textos que so divulgadas no mbito mais amplo da escola. Vivenciam as diferentes etapas de produo de tipos variados de textos, de acordo com condies reais de circulao dos mesmos, para um nmero maior de interlocutores. O professor no o nico avaliador do trabalho do aluno, alterando-se o fato de produzir apenas para receber uma nota. Integram-se os aspectos pragmticos, textuais e gramaticais, em funo da atividade de linguagem. H necessidade de leituras, anlises, reescritura de textos produzidos, exerccios de reforo, sempre em funo do projeto visado, que resulta em produo coletiva estimulante, viva e marcada pela criatividade.
Dessa forma, os encontros da Oficina contaram em seu planejamento com
o referencial terico-metodolgico da pedagogia de projetos. As conseqncias
para a leitura so enfatizadas por Jolibert(1994:12), que apresenta dessa maneira
sua hiptese de trabalho:
na medida em que se vive num meio sobre o qual possvel agir, no qual possvel, com os outros, discutir, decidir, realizar, avaliar... que so criadas as condies mais favorveis ao aprendizado, todos os aprendizados, no s o da leitura. E isso vale para todos, inclusive para os adultos.
Ao incluir os adultos, ela estaria pensando em professores. De todo modo, sua
hiptese de trabalho partilhada por mim no que se refere ao ensino de leitura para adultos.
A autora ainda acentua o papel da vida cooperativa na construo de projetos escolares
(1994:20):
A vida cooperativa da sala de aula, e da escola, e a prioridade conferida prtica de elaborao e conduta de projetos explicitamente definidos juntos permitem, de uma maneira exemplar, que a criana viva seus processos autnomos de aprendizado e se insira num grupo e num meio considerados como estrutura que estimula, que exige, que valoriza, que provoca contradies e conflitos e que cria responsabilidades. (...)
permitir a crianas que construam o sentido de sua atividade de aluno. aceitar que um grupo viva com as suas alegrias, entusiasmos, conflitos, choques, com sua experincia prpria e todos os lentos caminhos que levam s realizaes complexas. Vida cooperativa de aula e projetos... Projetos referentes vida cotidiana, projetos-empreendimentos, projetos de aprendizado, cooperativamente
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definidos, cooperativamente construdos, cooperativamente avaliados...
Quanto ao ato de ler na escola, ela situa dois eixos de atuao: ler os textos em
situao real e aprender a ler. No primeiro caso, atende-se a um projeto imediato, com a
finalidade de descobrir as necessidades de aprendizagem. No segundo caso, busca-se a
compreenso de um texto em suas realidades complexas, com o objetivo de question-lo.
Busca-se tambm uma aprendizagem das competncias, com a inteno de realizar
atividades de exerccio. Desse modo, o ato de ler est ligado a um agir do aluno e a uma
aprendizagem mediada pelo professor. Este se envolve com o aprender a ensinar melhor.
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Captulo 1 - Pressupostos tericos
Vozes sobre a leitura
A voz da academia
No meio acadmico, a leitura tratada como um tema interdisciplinar, sendo de
interesse de vrias disciplinas. Norma Ferreira (2001) relaciona 189 dissertaes de
mestrado e teses de doutorado cujo tema a leitura. O assunto interessa s reas de
Educao, Psicologia, Biblioteconomia, Letras/Lingstica e Comunicao, em todo o
Brasil, no perodo compreendido entre 1980 e 1995. Tambm so variadas as abordagens
realizadas: Literatura, Formao do leitor, Lngua Portuguesa, Tipos de leitura, Ato de ler,
Seleo crtica de livros para leitura, Histria da leitura, Ensino da leitura, Leitor. Embora
vrios temas me interessem - em especial Lngua Portuguesa, Literatura e Histria da
Leitura - situo meu trabalho na perspectiva da formao do leitor. Este o 12 trabalho
nessa perspectiva (de acordo com o levantamento feito por Ferreira), o que configura certa
raridade na proposta apresentada. Como diz a autora:
J os anos 90 oferecem 11 trabalhos que focam imagens e representaes construdas socialmente pelos leitores acerca da leitura, em sua relao com os livros e com outros leitores. A reconstituio das histrias de Leitura pelas representaes e imagens construdas pelos leitores direcionada por uma investigao apoiada em depoimentos, relatos, histrias de vida e de leitura, diferentemente do que ocorreu na dcada de 80, em que a pesquisa estava ancorada em questionrios e testes.
Maria Betencourt (2000) considera que a escola pblica tem sido um aparelho
ideolgico do estado burgus, ainda que tenha nascido sob o signo da igualdade. Para ela, a
escola "determina, ainda um conceito de texto limitado lngua escrita, afastando as outras
manifestaes culturais que possuem qualidade de texto". Esse afastamento reproduz no
contexto escolar a relao social de domnio dos alfabetizandos sobre os analfabetos.
Semelhante afirmao pode ser lida tambm em Orlandi (1988).
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Beth Nunes (2000) informa que apenas 300 dos 497 municpios gachos tm
biblioteca pblica. Alm disso, "85% dos municpios gachos no tm sequer uma
livraria.(...) Na mdia, o pas possui uma livraria para cada 137 mil pessoas, quando a
recomendao da Unesco de uma para dez mil." Junto a Nia Kern, ela avalia que "a
leitura prazerosa para as crianas quando ldica", deixando de s-lo na quinta srie,
quando passa a ser obrigatria.
Tnia Rsing (2000) sustenta que o desenvolvimento da cidadania pressupe a
formao de leitores. O problema, para ela, est na falta de acesso ao livro (pois as
bibliotecas esto longe do povo) e na falta de investimento pblico (pois no h
financiamento para livros). Embora o Brasil seja o segundo mercado editorial das
Amricas, o poder pblico no tem poltica para o setor, fato que restringe o nmero de
leitores. Segundo a autora, atualmente mais fcil financiar um carro que financiar uma
biblioteca. Rsing tambm afirma que "cada segmento profissional (...) passa a revelar
maior consistncia medida que so conduzidos por leitores crticos e no apenas por
leitores de resumos, de textos sensacionalistas, ou de fragmentos disponibilizados pela
Internet". Ela destaca uma bem-sucedida experincia francesa, em que pais e mes iam
escola dos filhos para ler em voz alta.
Kleiman e Moraes (1999) defendem a leitura como atividade-elo em projetos
interdisciplinares porque, em ltima instncia, todo professor seria professor de leitura.
Para as autoras, no suficiente declarar o objetivo de formar leitores, uma vez que o
professor teria que mostrar que vale a pena ensinar, aprender e praticar a leitura.
Paulo Freire (1998) entende que a leitura deve ser vista sob o ngulo poltico em
uma sociedade que exclui dois teros da populao. Ele entende a leitura como percepo
crtica da realidade e como ao contra-hegemnica:
Essa "leitura" mais crtica da "leitura" anterior menos crtica do mundo possibilitava aos grupos populares, s vezes em posio fatalista em face das injustias, uma compreenso diferente da sua indigncia. nesse sentido que a leitura crtica da realidade, dando-se num processo de alfabetizao ou no e associada sobretudo a certas prticas claramente polticas de mobilizao e de organizao, pode constituir-se num instrumento para o que Gramsci chamaria de ao contra-hegemnica.
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Para Dalla Zen (1997), a leitura um processo de interao entre leitor e texto, e
nesse encontro a histria de ambos se modifica. A autora procura "um outro tipo de aluno-
leitor", que seja capaz de fazer relaes e de se envolver com interesse em questes mais
abertas. Ao destacar a importncia da oralidade na Grcia antiga, ela recorda que o livro
surgiu apenas no sculo XV, gerando a modalidade do leitor silencioso. Aproveitei essa
informao para valorizar a expresso oral na Oficina, representada nas leituras dramticas
e referida na entrevista de Carmelina.
Josette Jolibert (1994:15) define assim a leitura, a partir da Pedagogia de Projetos:
"Ler atribuir diretamente um sentido a algo escrito(...) Ler questionar algo escrito como
tal a partir de uma expectativa real (necessidade-prazer) numa verdadeira situao de
vida". Ela complementa afirmando que algum se torna leitor lendo de verdade ("para
valer"), e no aprendendo primeiro a ler. Nas palavras da autora: " lendo que nos
tornamos leitor e no aprendendo primeiro para poder ler depois: no legtimo instaurar
uma defasagem, nem no tempo, nem na natureza da atividade, entre 'aprender a ler' e 'ler'."
Destaco que a autora entende a leitura como uma prtica social, um fazer ligado tanto s
necessidades do sujeito quanto sua vida social.
Geraldi (1995:167) destaca o aspecto de interlocuo dialgica entre autor e leitor.
Para ele, a inexistncia de interlocuo gera reconhecimento ou desconhecimento, sem
compreenso. Ele entende o texto como o lugar onde o encontro entre autor e leitor
acontece .
O autor (1995:166) tambm considera a leitura uma produo:
O produto do trabalho de produo se oferece ao leitor, e nele se realiza a cada leitura, num processo dialgico cuja trama toma as pontas do fio do bordado tecido para tecer sempre o mesmo e outro bordado, pois as mos que agora tecem trazem e traam outra histria. No so mos amarradas - se o fossem, a leitura seria reconhecimento de sentidos e no produo de sentidos; no so mos livres que produzem seu bordado apenas com os fios que trazem nas veias de sua histria - se o fossem, a leitura seria um outro bordado que se sobrepe ao bordado que se l, ocultando-o, apagando-o, substituindo-o. So mos carregadas de fios, que retomam e tomam os fios que no que se disse pelas estratgias de dizer se oferece para a tecedura do mesmo e outro bordado. (Grifos meus).
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Para Geraldi, a leitura est a servio da produo textual. Na sua opinio, a
produo de textos orais e escritos simultaneamente ponto de partida e de chegada de
todo processo de ensino/aprendizagem da lngua.
Marisa Lajolo (1998:52) defende o texto como ponto de encontro entre escritor e
leitor:
O texto no pretexto para nada. Ou melhor, no deve ser. Um texto existe apenas na medida em que se constitui ponto de encontro entre dois sujeitos: o que escreve e o que l; escritor e leitor, reunidos pelo ato radicalmente solitrio da leitura, contrapartida do igualmente solitrio ato da escritura.
.
Para Carime Elias (1998:77), a leitura um processo complexo de interpretao.
Por isso, "no h um reconhecimento, no sentido de uma identificao absoluta, entre os
sentidos produzidos pelo sujeito/leitor e texto/autor", ou seja, "no h o tempo inteiro uma
captura efetiva do primeiro pelo segundo". Ela ressalva que os lugares de sujeito/leitor e
texto/autor no devem ser totalmente estranhos, pois isso impossibilitaria a instaurao de
sentidos.
Orlandi (1988:104) afirma que o efeito-leitor relativo posio do sujeito: " em
relao a 'seu' lugar que se define 'sua' leitura". do leitor inscrito no social (no do locutor
nem do destinatrio) que se cobra um modo de leitura. Com isso, a autora abre espao para
a relao entre histria de leitura e histria de vida, abordada neste trabalho. A esse
respeito, a autora acrescenta que " preciso criar condies para que as classes populares
elaborem sua histria de leituras que a classe dominante desconhece, ou melhor, no
reconhece."
Jos Horta Nunes (1998), ao analisar a formao do discurso do leitor pela escola,
afirma que o leitor visto ora como posio vazia (sem histria), ora como agente de
leitura (apagando as condies de produo), ora como estrategista (sem poder expor sua
leitura). Quanto memria de leitura, Nunes (1998:45) afirma que "ao se posicionar, o
leitor se insere em uma memria de leitura especfica e, portanto, ele no cria sua posio a
partir do nada, ele capturado, ele resiste, ele desloca."
Nunes (1994) tambm afirma que a leitura uma atividade ao mesmo tempo
individual e social. Assim, a prtica de leitura envolve tanto o sujeito da leitura quanto as
condies scio-histricas em que ele se insere. Acrescento a esse respeito que, enquanto
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no cognitivismo a relao acontece entre sujeitos, na AD a relao se d entre o sujeito e as
condies de produo. Sobre as condies de produo, Nunes afirma que:
Na leitura de uma seqncia, consideram-se as condies de sua produo. Assim, os elementos da seqncia (e tambm os no-ditos) so relacionados no com a inteno de um sujeito, ou com um sujeito universal, mas com a colocao, com o posicionamento dos protagonistas na sociedade, ou seja, com um certo estado das condies de produo do discurso.
A intencionalidade minimizada porque h sentidos que escapam ao autor, embora
presentes no texto. Outras observaes relevantes de Nunes dizem respeito recusa da
relao direta lngua-mundo e distino feita por Pcheux entre a situao concreta e a
situao vivida pelo sujeito.
A voz dos escritores
evidente que os escritores brasileiros tm algo a dizer sobre leitura. Analisarei os
depoimentos de Ziraldo Alves Pinto e Bartolomeu Queirs, em palestras ministradas em
Passo Fundo e Campinas, em eventos realizados respectivamente em 1995 e 2001.
Na 6 Jornada de Literatura de Passo Fundo, Ziraldo pediu para os professores que
no trabalhassem com ficha de leitura, nem com interpretao de texto. Ele justificou de
modo singelo que estes procedimentos atrapalham a leitura em vez de estimul-la. Em
outro momento, ele exaltou a importncia do estudo para o desenvolvimento do futuro
aluno, "para ser algum na vida", acrescendo em seguida que ler mais importante que
estudar. Ele destacou a importncia da leitura no presente do aluno. Fao a ressalva de que,
em meu trabalho, a dicotomia entre estudo e leitura no existe, pois entendo que a funo
da escola formar leitores.
No 13 Congresso de Leitura (COLE), realizado em Campinas, Bartolomeu
Queirs fez a crtica ao modo como a leitura ensinada na escola. Para ele, a escola o
lugar da escuta - um espao intermedirio, e no um espao- fim. Sua funo realizar o
desejo do aluno, e no certificar. Quando a escola um espao-fim, a literatura vista
como um instrumento pedaggico. Segundo ele, a escola que est a servil: est a servio
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de uma ideologia do futuro, enquanto que o compromisso dele com o agora. Educar
qualificar o outro, e educao o que nomeia e identifica. Ele entende a escola como o
espao do rompimento, embora atualmente limite-se a preparar os alunos a freqentar
shopping center, j que quem cria consome menos. A escola deve ser o espao onde o aluno
possa reinventar a vida.
A escola serve-se da literatura para a conteno. A literatura vista por ele como o
lugar da democracia, no convivendo com o fechamento. Ela detesta as palavras que
encaminham a concluses (contudo, mas, entretanto) que a escola adora. feita da falta,
pois o autor no escreve para crianas, mas pela criana que ele foi. O grande leitor o
sujeito capaz de conviver com as diferenas. Enquanto o texto literrio feito por pessoas
que no sabem, e por isso pede ajuda ao outro de modo leve, o texto pedaggico feito por
pessoas que sabem, e por isso pe o outro a repetir de modo afirmativo.
A palestra de Queirs me causou um forte impacto, pois eu acreditava em um "ler
para". Mesmo que sua palestra contenha pontos polmicos, ela d o que pensar, e por isso
cumpriu com seu objetivo. O autor pode fazer uma crtica to contundente pelo fato de no
ter compromisso com o discurso pedaggico, e sim com o discurso literrio. Desse ponto
de vista, inegvel que o ensino de literatura na escola inadequado ao aluno que pretende
formar.
Destaco ainda a idia de abertura ao outro na escola e na leitura, e o conceito de
leitor. A esse respeito, penso que a escola ignora (ou finge ignorar) que o tempo de leitura
de cada aluno diferenciado. Exemplifico com a experincia pessoal de um colega
professor de Lngua Portuguesa, que pediu para no ser identificado. O professor de seu
filho cobrou a leitura obrigatria de O alienista de Machado de Assis, na oitava srie. O
resultado foi desastroso, pois os alunos se recusavam a ler, afirmando que o nico louco
seria o autor, e revelavam certo dio pela leitura, facilmente passvel de generalizao. Este
professor corria o risco de formar no-leitores. Quando ele me relatou o fato, eu lhe disse
que, salvo excees, os alunos da oitava srie no tm uma histria de leituras que lhes
permita identificar o humor, a ironia e a crtica social presentes no texto de Machado, mas
os alunos poderiam gostar de uma atualizao da obra, o livro O mistrio da casa verde , de
Moacyr Scliar. O professor acolheu meu conselho e confirmou a tese: Scliar ambienta sua
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obra na Itagua de hoje, e os personagens so adolescentes, o que facilita a identificao e
ainda desperta o interesse pela obra anterior, qual remete.
Tambm fao o registro da proposta de escrita criativa, defendida por Lus Antnio
de Assis Brasil no SENALE (Seminrio Nacional sobre Linguagem e Ensino), realizado em
Pelotas em 2001.
A relao entre o discurso acadmico e o discurso literrio merece novos estudos,
que podero ser feitos em trabalhos futuros. Possivelmente o discurso literrio tem a
contribuir em alguns aspectos com o discurso pedaggico, apesar das atribuies
diferenciadas. Do confronto desses discursos, poderia formar-se um professor diferenciado.
O que procuro verificar que sentidos so produzidos pelos sujeitos-leitores em
questo dentro de um contexto especfico - o de alunos do PEFJAT. Nessa perspectiva,
fundamental valorizar as experincias de vida dos educandos. O papel do professor seria
incentivar os alunos a falarem de si, oferecendo as condies pedaggicas necessrias para
que os alunos-leitores se autorizem a isso. O papel do analista seria pesquisar a relao
entre os ditos (e no ditos) do sujeito e as condies de produo do discurso,
desnaturalizando a relao palavra-coisa.
Desloca-se o ponto de indagao da funo para o funcionamento das marcas
lingsticas no texto e no discurso. O fato de o sujeito escolher uma palavra (ou frase) e no
outra no aleatrio, antes constitui o discurso por meio de presenas, ausncias, lacunas,
silncios e hesitaes.
Discurso
No artigo O chapu de Clementis, Courtine (1999) cita a personagem Clementis da
obra O livro do riso e do esquecimento, de Milan Kundera. Clementis teria sido prescrito
da fotografia (e da histria) oficial, dele ficando apenas o chapu. Embora sua
argumentao limite-se ao plano do discurso poltico, noto uma extraordinria simbologia
neste chapu. Assim como Clementis, o discurso um objeto oculto. Dele s restam
vestgios, elementos, pistas que no so em si o discurso, nem remontam a ele. Ou seja, no
podemos reconstituir um discurso maneira de um arquelogo ou de um botnico, pois
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no lidamos com um elemento pronto--mo da natureza, mas com um objeto oculto. Dele
s temos o chapu.
Destaco ainda na obra de Kundera as sucessivas trocas de nome de rua, que fizeram
a personagem mudar vrias vezes de endereo, ainda que sempre residisse no mesmo lugar.
De acordo com as contingncias polticas, o grupo no poder sentia-se no direito de apagar a
histria anterior, banindo antigos heris e entronizando outros. Tal a relao entre
linguagem e poder: o poder poltico o poder de nomear. Esta prtica incomum no Brasil,
mas freqente na Rssia. A cidade de So Petesburgo passou a chamar-se Leningrado com
a Revoluo Russa e, aps 1989, voltou a chamar-se So Petesburgo. Ocorreu o mesmo
com Stalingrado.
A primeira contribuio de Courtine para o meu trabalho est na relao entre
discurso e lngua. O autor distingue um de outro ao dizer que o discurso tem uma ordem
prpria, distinta da materialidade da lngua, mas que se realiza nela, na ordem do
enuncivel. Trata-se de uma posio baseada em Pcheux.
Outro ponto bem resolvido a relao do analista de discurso com a lingstica. Ele
anuncia dialeticamente que necessrio ser lingista e deixar de s-lo ao mesmo tempo. De
fato, o analista precisa ir e vir do texto. Se no pode ignor-lo, tambm no pode fixar-se
somente nele. No dizer de Courtine, h sempre j um discurso, ou seja, o enuncivel
exterior ao sujeito enunciador. Aqui ele refora a concepo de sujeito descentrado, que
no o dono de seu dizer. Na verdade, o sujeito se inscreve na lngua, no a adquire,
porque ela j est a, isto , preexiste e subsiste ao sujeito.
Courtine apresenta dois nveis de descrio: o nvel da enunciao (o eu-aqui-agora
do discurso), correspondente ao intradiscurso, e o nvel do enunciado, sob domnio da
memria, correspondente ao interdiscurso. Essa diviso relevante porque diferencia o
trabalho do analista do discurso do trabalho do lingista. A Lingstica Textual e a
Pragmtica analisam o enunciado de modo estrito, no conferindo historicidade lngua.
Mesmo a Pragmtica, que assume um contexto, refere-se ao contexto imediato do
enunciado. Tal concepo em nenhum caso se assemelha ao interdiscurso. Enquanto a
Lingstica est sempre ligada ao domnio do texto, a Anlise do Discurso entra e sai do
texto em busca dos sentidos que nele transitam. deste modo que entendo a afirmao do
autor.
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Antes de precisar o que entendo por discurso, conveniente delimitar a sua
fronteira. Comeo dizendo que o processo discursivo no tem incio nem essncia.
Fundamento minhas afirmaes nas obras de Michel Pcheux.
O discurso se inscreve na cultura e nos saberes construdos anteriormente.
Conforma Pcheux (1997:77)
"(...) o processo discursivo no tem, de direito, incio: o discurso
se conjuga sempre sobre um discursivo prvio, ao qual ele atribui o
papel de matria-prima, e o orador sabe que quando evoca tal
acontecimento, que j foi objeto de discurso, ressuscita no esprito dos
ouvintes o discurso no qual este acontecimento era alegado. ( In Gadet
e Hak)
Para Pcheux, no h uma essncia do discurso. O sentido de uma palavra ou
expresso no existe em si mesmo. Desse modo, no h um sentido fixo, literal, que seja
anterior ao sujeito, j que a palavra muda de sentido conforme a FD em que opera. Ofereo
dois exemplos: a circulao da palavra qualidade em diferentes contextos e as diferentes
leituras da mesma proposio em um conto de Jorge Luis Borges.
Nas muitas greves do magistrio estadual gacho a partir de 1979, destacava-se uma
palavra de ordem: "por um ensino pblico de qualidade". Entende-se qualidade como
imperativo de um ensino que prepare ao mesmo tempo o aluno para a vida e para o
mercado de trabalho, ou seja, um ensino "bom", "qualificado". J nos anos 90, consolida-se
o termo Qualidade Total, usado especialmente pelas empresas privadas, com o sentido de
eficincia mxima em todos os setores. Aqui a palavra qualidade refere-se
competitividade das empresas. Ocorre desse modo um deslizamento de sentidos, pois o
termo desloca-se de um discurso cooperativo, instigando a preparao qualificada do aluno
no espao da escola pblica, para um discurso competitivo, instigando o atendimento
qualificado do cliente no espao da empresa privada. Permanece em ambas as FDs o
sentido de buscar aceitao do aluno/cliente.
No conto Pierre Menard, autor do Quixote, Jorge Luis Borges mostra como
possvel manipular o contexto e a interpretao. A partir de uma reescritura termo a termo
do romance Dom Quixote, de Cervantes, feita por um hipottico escritor do sculo XX, ele
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compara as duas obras (a de Menard e a de Cervantes), concluindo ser a de Menard melhor.
O texto, igual em ambas, diz que ...
... a verdade, cuja me a histria, mula do tempo, depsito das aes,
testemunha do passado, exemplo e aviso do presente, advertncia do porvenir.
No Quixote de Cervantes, o autor critica a enumerao ingnua das virtudes da
histria. J no Quixote de Menard, ele destaca a "assombrosa" descoberta da histria como
me da verdade. Ainda que se trate da mesma proposio, explica Borges a diferena pelo
contexto histrico. A ironia evidente: atravs do "contexto", pode-se manipular como
quiser um texto, fato que denuncia a suposta neutralidade do crtico.
Entendo o discurso como o ponto de encontro entre o velho e o novo, o mesmo e o
diferente, a estrutura e o acontecimento. O discurso o lugar onde se manifesta o sentido.
A Anlise de Discurso se diferencia da Teoria da Informao por no acreditar na
transmisso de mensagens, como se a linguagem fosse transparente. Enquanto a Teoria da
Informao trabalha com o conceito de mensagem como transmisso de informao de A
para B, a Anlise de Discurso trabalha com o conceito de discurso como efeito de sentido
entre A e B. Chego afinal a uma definio satisfatria de discurso. Ele no a mensagem
transmitida de modo transparente, e sim o efeito de sentido entre interlocutores, marcado
pela opacidade.
Pcheux considera fundamental para os estudos lingsticos a passagem da funo
ao funcionamento da linguagem. Ele retoma a definio de Saussure (1997:62):
A partir do momento em que a lngua deve ser pensada como um sistema, deixa de ser compreendida como tendo a funo de exprimir sentido; ela torna-se um objeto do qual uma cincia pode descrever o funcionamento (retomando a metfora do jogo de xadrez utilizada por Saussure para pensar o objeto da lingstica, diremos que no se deve procurar o que cada parte significa, mas quais so as regras que tornam possvel qualquer parte, quer se realize ou no. (In Gadet e Hak)
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A seguir, ele especifica sua concepo de funcionamento, que diferencia-se da de
Saussure por reconhecer elementos extralingsticos, como as condies de produo do
discurso (1997:78):
Os fenmenos lingsticos de dimenso superior frase podem efetivamente ser concebidos como um funcionamento mas com a condio de acrescentar imediatamente que este funcionamento no integralmente lingstico, no sentido atual desse termo e que no podemos defini-lo seno em referncia ao mecanismo de colocao dos protagonistas e do objeto de discurso, mecanismo que chamamos "condies de produo" do discurso. (Idem)
Outra concepo importante a de efeito metafrico. Vinculado aos estudos
estruturalistas, tal conceito altera o sentido de substituio contextual, ao defender o
deslizamento de sentidos entre duas seqncias:
Chamaremos de efeito metafrico o fenmeno semntico produzido por uma substituio contextual, para lembrar que este "deslizamento de sentidos" entre x e y constitutivo do "sentido" designado por x e y. (1997:96)
Isso significa dizer que no se passa necessariamente de uma seqncia discursiva a outra apenas por uma substituio, mas que as duas seqncias esto, em geral, ligadas uma a outra por uma srie de efeitos metafricos. (1997:99)
A relao do analista de discurso com a linguagem diferente. A esse respeito,
Maria Cristina Ferreira (2000:37) manifesta a seguinte posio:
A AD, portanto, como ponto de vista diferente sobre a linguagem, recorta seu objeto terico distinguindo-se da lingstica imanente e de seu objeto precpuo (a lngua em si e por si mesma). Para o analista de discurso a lngua no objeto, mas pressuposto para analisar a materialidade do discurso. E, por a, redefine-se a noo de lngua, descentrando-a e remetendo-a a outra ordem: a ordem do discurso
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Formao Discursiva
O conceito de Formao Discursiva (FD) foi criado por Foucault, tendo em vista os
estudos sociais, e retomado por Pcheux, em um novo quadro terico. Para Foucault, se
estar diante de uma formao discursiva sempre que se puder definir uma regularidade
entre um certo nmero de enunciados. Assim, uma FD definida a partir de seu
interdiscurso (entendido como o conjunto de FDs), havendo relaes de conflito ou de
aliana entre formaes discursivas distintas.
A noo de FD foi utilizada por Pcheux para definir "o que pode e deve ser dito", a
partir de uma posio dada, numa conjuntura dada. Temos assim que Pcheux tomou este
conceito de Foucault e o juntou com o conceito de Formao Ideolgica (FI). Ele
relacionou os conceitos de FD e FI para teorizar sobre o discurso. Courtine ampliou tais
conceitos ao mostrar que FD e FI no se apresentam unvocas em sua vinculao. Desse
modo, ele situa a heterogeneidade no interior da FD.
Neste momento, apresento o modo como Courtine e Pcheux definem este conceito,
para em seguida explicar a sua utilidade neste trabalho.
Para Courtine (citado por Ferreira), a FD a matriz de sentidos que regula o que o
sujeito pode e deve dizer, e tambm o que no pode e no deve ser dito. Desse modo, a FD
funciona como ponto de articulao entre a lngua e o discurso, ou seja, revela o modo de
inscrio do sujeito no plano social.
Para Pcheux, toda formao discursiva implica a representao de posies
polticas e ideolgicas, que se organizam em relaes de antagonismo, de aliana ou de
dominao. por isso que uma ou vrias FDs interligadas condicionam o que pode e deve
ser dito a partir de um contexto. Destaco a procura de regularidades nos enunciados e
tambm a procura de uma matriz de sentidos.
Ao desenvolver a teoria do discurso, Pcheux faz questionamentos que incluem
ressignificaes, e at mesmo o abandono do termo FD. Na obra Discurso: estrutura ou
acontecimento, refere-se "a redes de sentidos". No entanto, optei por acolher o conceito de
FD nesta pesquisa, baseando-me em Courtine, por achar que o mesmo vem ao encontro da
perspectiva de anlise.
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Em razo do carter pedaggico deste trabalho, utilizo o termo para falar de uma FD
Aluna Adulta, pois Carmelina e Marli falam principalmente do lugar de alunas. No entanto,
os relatos presentes nos memoriais e entrevistas aludem a outras formaes discursivas que
se somam FD Pedaggica, que se mostra heterognea. Dessa forma, conseguimos
evidenciar nessa FD Aluna Adulta efeitos de sentido que configuram uma FD
Trabalhadora, uma FD Religiosa e uma FD Familiar. Estas formaes discursivas so
interdependentes e se atravessam com freqncia, alternando-se no fio do discurso e
revelando-se na linguagem. Reconheo a presena destas FDs nas histrias de vida, e
procuro analisar como elas constituem de um modo singular a FD Pedaggica em questo.
Interdiscurso
J defini o interdiscurso como o conjunto complexo de formaes discursivas e
como o tempo longo de uma memria. Acrescento que ele est bastante ligado ao conceito
de memria discursiva nas definies propostas pelos autores estudados.
Para Courtine (1999:22), o interdiscurso visto como preenchimento ou
deslocamento:
A anlise do processo de assujeitamento conduz, assim, a considerar dois modos ligados de determinao do ato de enunciao pela exterioridade do enuncivel, ou interdiscurso: o interdiscurso como preenchimento, produtor de um efeito de consistncia no interior do formulvel e o interdiscurso como oco, vazio, deslocamento, cuja interveno ocasiona um efeito de inconsistncia (ruptura, descontinuidade, diviso) na cadeia do reformulvel.
Pcheux (1975: )define interdiscurso como "um todo complexo com dominante" das
FDs. Se ele submete a FD, por sua vez est submetido s formaes ideolgicas. O
interdiscurso determina materialmente tanto o efeito de encadeamento do pr-construdo
quanto o efeito de articulao. ainda, segundo o mesmo autor (1997:43), "saber que no
se transmite, no se aprende, no se ensina, e que no entanto existe produzindo efeitos"
O interdiscurso no dito seno veladamente pela formao discursiva:
"Toda formao discursiva dissimula, pela transparncia de sentido que nela se constitui, sua dependncia com respeito ao "todo complexo com dominante" das formaes
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discursivas, intrincado no complexo das formaes ideolgicas definido mais acima.
Vamos desenvolver: propomos chamar interdiscurso a esse 'todo complexo com dominante' das formaes discursivas, esclarecendo que tambm ele submetido lei de desigualdade-contradio-subordinao que, como dissemos, caracteriza o complexo das formaes ideolgicas" (p.162).
Neste trabalho, destaco o interdiscurso como o tempo longo de uma memria e
como o saber que produz efeitos sem ser transmitido. Ele remete ao que circula como fato
social, como um saber naturalizado, acessvel ao sujeito pela memria. Ele refletido no
intradiscurso, que a materialidade da lngua presente nos enunciados.
Heterogeneidade
Fundamento-me em Coracini (2001) para expor as diferentes concepes de
heterogeneidade dentro dos estudos da linguagem. O itinerrio terico de Coracini inicia na
Lingstica e Pedagogia, passa por Bakhtin e termina com Authier-Revuz.
Segundo a autora, nos estudos de Lingstica Aplicada e de Pedagogia (assim como
na prpria sala de aula), a heterogeneidade vista como diversidade indesejvel que
complicaria a vida do professor, devendo ser eliminada em nome de uma suposta igualdade
de direitos.
Bakhtin revela o carter polifnico (toda palavra habitada por outras vozes) e
dialgico (toda palavra se dirige a um outro) da linguagem. Apoiado no carter dialgico,
Benveniste postula a presena do outro no sujeito enunciador. Por sua vez apoiado no
carter polifnico, Ducrot estuda a presena de outra voz na constituio semntica de
certos vocbulos. Para Coracini (2001:139), em ambos os casos, rompe-se com a unidade
de um dizer monolgico, coincidente consigo mesmo (...) embora tanto em Ducrot quanto
em Benveniste se pressuponha um certo controle de vozes presentes em todo o dizer".
Coracini critica nestes estudos o fato de que a heterogeneidade vista como
exterior ao sujeito. Ela opta pela teoria de Authier-Revuz, que entende a heterogeneidade
como constitutiva do sujeito e do dizer (2001:139):
Essa heterogeneidade que constitui o sujeito e se revela pela linguagem, ou melhor, pelo discurso (tambm constitudo pelo atravessamento de outros discursos), se v camuflada, na superfcie
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do texto que se apresenta como uno, monolgico, intencional e, sobretudo, portador de significados autorizados por um autor consciente que escolhe bem suas palavras para melhor controlar o sentido que deseja imprimir ao texto. Tal camuflagem parece se explicar pelo desejo de unicidade, de homogeneidade, de controle que caracteriza a cultura ocidental em particular.
Authier-Revuz (1982:16) defende a presena diluda do outro em todas as partes do
discurso. Analisando por meio de oposies o novo paradigma proposto por Bakhtin, ela
afirma que
O que se diz de maneira insistente atravs dessa rede de oposies o lugar dado ao outro na perspectiva dialgica, mas um outro que no nem um duplo de um frente frente, nem mesmo o 'diferente', mas um outro que atravessa constitutivamente o um.
Para Courtine, a heterogeneidade se refere prpria constituio da formao
discursiva, na qual coexistem enunciados diferentes. No intradiscurso, essa condio se
mostra atravs do conceito de enunciado dividido.
Memria
Nenhuma memria pode ser um frasco sem exterior.
Michel Pcheux.
Janine Trevisan (2000:33) adverte que a memria no a simples lembrana de um
passado - o que considera uma concepo imobilista. Na sua viso (e na de Pcheux), o
acontecimento no discurso o ponto de encontro entre uma memria e uma atualidade.
Ao falar sobre o efeito de memria (na concepo de Courtine), a autora aborda a
relao entre interdiscurso (tempo longo de uma memria) e intradiscurso (tempo curto da
atualidade de uma enunciao). Na viso de Courtine, a memria discursiva "relaciona a
existncia histrica do enunciado aos sentidos das prticas discursivas reguladas pelos
aparelhos ideolgicos".
Trevisan (2000:35) sintetiza um roteiro metodolgico de trabalho que passa pela
memria discursiva:
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Em sntese, para se falar de memria discursiva, necessrio falar do processo de construo dos sentidos e do efeito de realidade que eles produzem, preciso buscar tambm pistas ou marcas que indiquem a presena do interdiscurso no intradiscurso, analisando a memria e sua relao com o esquecimento, buscando perceber, por exemplo, nas entrevistas realizadas neste trabalho, de que modo sentidos deslizam e redimensionam fronteiras de formaes discursivas.
Courtine afirma que ressoa no domnio da memria somente uma voz sem nome,
no encontrando o sujeito nenhum lugar assinalvel. Ele faz uma aluso ao carter social da
linguagem. Alm disso, ele considera memria e esquecimento indissociveis. De fato,
preciso esquecer de algum modo para poder lembrar. Tal como em Pcheux, a memria o
lugar do conflito, da tenso, da retomada. No h memria fixa. No h memria sem
esquecimento, pois s retomamos o que perdemos.
Para Pcheux (1999), a memria discursiva seria "aquilo que, face a um texto que
surge como acontecimento a ler, vem restabelecer os 'implcitos'(...) de que sua leitura
necessita: a condio do legvel em relao ao prprio legvel". Todavia, a memria no
seria um depsito de implcitos, pois o acontecimento discursivo novo desloca e desregula
os implcitos. A partir disso, o autor postula uma espcie de jogo de fora da memria entre
a regularizao (estabilizao parafrstica) e a desregulao da rede dos implcitos.
Pcheux (1999: 56) entende a memria como um espao mvel e no-homogneo:
(...)uma memria no poderia ser concebida como uma esfera plena, cujas bordas seriam transcendentais histricos e cujo contedo seria um sentido homogneo, acumulado ao modo de um reservatrio: necessariamente um espao mvel de divises, de disjunes, de desdobramentos e de retomadas, de conflitos de regularizao... Um espao de desdobramentos, rplicas, polmicas e contra-discursos.
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Letramento
Da escola eu passei apenas seis meses, somente. Com seis meses eu aprendi a ler, ento, dali por diante, meus professores foram os livros. Eu sou semi-analfabeto, posso dizer. Fui apenas alfabetizado (...) Fui um leitor assduo, cuidadoso, curioso para saber das coisas. Aprendi a ler e queria saber de tudo. Sabe o que que eu menos lia: os livros escolares. Curioso para saber, lia revistas, jornais, os poetas da lngua. At Cames, aquele Os lusadas, que uma coisa intrincada.
Patativa do Assar
Magda Soares (2001:39) define letramento como o "resultado da ao de ensinar e
aprender as prticas sociais de leitura e escrita. O estado ou condio que adquire um grupo
social ou um indivduo como conseqncia de ter-se apropriado da escrita e de suas prticas
sociais." Ela enfatiza que apropriar-se da escrita torn-la prpria, e no aprender
simplesmente a ler. Utilizo esta definio para caracterizar o grau de letramento de meus
alunos na oficina. Embora alfabetizados, muitos deles ainda no haviam se inscrito no
discurso da escrita a ponto de criarem a iluso de serem donos da lngua. Pelo contrrio,
predominava o sentido de dificuldade na leitura.
Soares acresce que as pessoas alfabetizadas pelo Mobral estavam "desalfabetizadas"
um ano depois: a ausncia de demandas de leitura e escrita os fez perderem tais habilidades.
Desse modo, a escolarizao no foi sinnimo de letramento. O inverso disso ocorreu com
o poeta Antnio Gonalves da Silva, vulgo Patativa do Assar. De pouca escolaridade, ele
soube explorar vrios tipos de texto - fora da escola! - configurando um caso raro de
letramento muito acima da escolarizao.
Leda Tfouni (1995) estabelece a distino entre escrita, alfabetizao e letramento.
A escrita definida como um produto cultural, enquanto alfabetizao e letramento so
processos de aquisio de um sistema escrito. A alfabetizao geralmente est ligada
instruo formal, e situa-se no plano individual. Por sua vez, o letramento
focaliza os aspectos scio-histricos da aquisio da escrita. Entre outros casos, procura estudar e descrever o que ocorre nas sociedades quando adotam um sistema de escritura de maneira restrita ou generalizada (...). Desse modo, o letramento tem por objetivo investigar no somente quem alfabetizado, mas tambm quem no alfabetizado, e nesse sentido desliga-se de verificar o individual e centraliza-se no social.
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Para Tfouni, no existe o grau zero de letramento, razo pela qual no se pode
falar em indivduo iletrado numa sociedade baseada na escrita. Com a recusa do
iletramento, ela prefere falar em diferentes graus de letramento. Ela critica a viso
etnocntrica acerca dos grupos no-alfabetizados. Nesta, somente os grupos alfabetizados
conseguiriam desenvolver raciocnio lgico-dedutivo, sendo o pensamento do no-
alfabetizado "pr-operatrio". Num caso limite, um desses autores chega a comparar os
membros analfabetos de uma comunidade civilizada a selvagens. A autora considera que
"uma forma de acabar com o etnocentrismo parece ser comear a considerar alfabetizao
e letramento como processos interligados, porm separados enquanto abrangncia e
natureza. Outro modo passar a considerar o letramento como um continuum."
Atualmente, a leitura adquiriu um consenso positivo em nossa sociedade,
sintetizado na expresso "ler bom". No entanto, o letramento no traz apenas
positividades. A respeito dos impactos negativos do letramento, Tfouni (1995:27) afirma
que tal processo leva alienao e ao abandono da cultura:
Existe, no entanto, o lado negativo, o lado da perda: esse desenvolvimento no ocorre custa de nada. Ele, na verdade, aliena os indivduos de seu prprio desejo, de sua individualidade, e muitas vezes de sua cultura e historicidade. A alienao, portanto, tambm um produto do letramento. A cincia, produto da escrita, e a tecnologia, produto da cincia, so elementos reificadores, principalmente para aquelas pessoas que, mesmo no sendo alfabetizadas, so no entanto 'letradas', mas no tem acesso ao conhecimento sistematizado nos livros, compndios e manuais. Muitas vezes, como conseqncia do letramento, vemos grupos sociais abrirem mo do prprio conhecimento, da prpria cultura, o que caracteriza mais uma vez essa relao como de tenso constante entre poder, dominao, participao e resistncia.
Este alerta significou de vrias maneiras no meu trabalho. Um professor de lngua
no pode ter a ingenuidade de que estar levando um remdio sem contra-indicaes para
todos os problemas do aluno. Contudo, ele tem a misso de formar alunos leitores,
garantindo o acesso ao discurso da escrita. Penso ter resolvido a questo ao incluir as
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histrias de vida na proposta do memorial. Dessa forma, o aluno pode afirmar ao mesmo
tempo sua insero no discurso letrado culto e sua identidade cultural.
Escrita e leitura
Solange Gallo, em texto oferecido aos participantes de curso ministrado na UFRGS
em 1999, afirma que a escrita est reduzida a grafismo no Discurso Pedaggico
Tradicional, atravs da crena na transparncia entre escrita e oralidade. Para ela, "essa
materialidade no de natureza lingstica (grafia ou oralizao), mas de natureza histrica
e ideolgica. Escrita e oralidade so materialmente distintas e a relao do sujeito com a
histria diferente nos dois casos". Essa considerao, alm de tornar a escrita uma questo
discursiva, estende-se por decorrncia leitura. Como a escrita, a leitura no uma questo
de grafismo ou de "interpretao" do que o autor teria pretendido dizer.
A autora considera a leitura enquanto produo de sentido: "produo porque h,
neste caso, o trabalho de interpretao que exige a mobilizao de sentidos e a constituio
do indivduo em sujeito, como qualquer outra produo". nesse sentido que falamos em
produo de leitura no presente trabalho. Tambm por essas vias, a produo de leitura
repercute na produo textual.
Leda Tfouni (1997:60) adverte que o Estado no sculo XVII ("distribuidor e
determinador dos sentidos") almejava a transparncia absoluta para "tornar controlvel o
cidado que pensa, atravs da domesticao das formas discursivas e da pregao do ideal
cartesiano da racionalidade". Alm da criao de regras do "bem escrever" no plano
estilstico, o que tal Estado buscava era a literalidade da escrita. Todavia, o efeito de
literalidade era apenas aparente: "A nica leitura (que restou) possvel era aquela que
tomasse o texto 'ao p da letra', ou seja, aquela que no 'subisse at a cabea', portanto, que
no fizesse pensar".
Ao opor-se ao conceito de transparncia ("que encaminha a uma leitura exclusiva
ou, no mximo, dualstica"), Tfouni oferece em troca a proposta de opacidade do texto. Nos
interessa por ora seus conceitos de subjetividade e de leitor (1997:61): "o conceito de
historicidade 'indizvel', inacessvel, cede lugar ao multifacetado e historicizado, e esta
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posio terica muda radicalmente a idia do texto escrito como um produto fechado, e do
leitor como algum inerte, passivo."
No ato de ler, o leitor interpreta, desloca sentidos, produz algo. Nem partida, nem
chegada, o texto constitui-se como etapa de um processo maior de estar-no-mundo, um
processo discursivo no qual a leitura se configura como uma maneira de o aluno se
inscrever numa modalidade especfica de nossa cultura - a prtica de leitura - e sociedade-
a comunidade de leitores.
Autor e leitor
Para Orlandi (1988:104), o leitor a funo enunciativo-discursiva correspondente
de autor. A funo-leitor, tal como a funo-autor na emisso do enunciado, a que mais
est determinada pelo social. O leitor aquele que se assume como tal no ato da leitura,
numa ordem social dada, em um lugar especfico. Ele ter sua identidade de leitura
configurada pelo seu lugar social, sendo em relao a esse "seu" lugar que se define "sua"
leitura.
Dessa maneira, h uma relao intensa entre leitura e autoria. Se concordamos que
ler produzir sentidos, torna-se possvel relacionar leitura e autoria como etapas do mesmo
processo (algo como leiturescrita). Ao ler, o sujeito cria uma interpretao do texto lido,
enquanto ao escrever, o sujeito revela o leitor que foi.
Histrias de vida
Moll (2000) considera os relatos de vida um instrumento metodolgico de
valorizao dos saberes e representaes dos sujeitos sociais. Os meios desse relatos seriam
a narrativa e outras fontes indicadas pelos sujeitos informantes (fotografias, cartas,
documentos). A autora cita como equivalente o termo histrias de vida.
Neste trabalho, utilizo o termo histria (e no relato) de vida, por consider-lo mais
abrangente e adequado ao nosso estudo. Valho-me da definio dada por Queiroz (citado
por Moll, 2000:33):
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(...) relato de um narrador sobre sua existncia atravs do tempo, tentando reconstituir os acontecimentos que vivenciou e transmitir a experincia que adquiriu e narrativa linear e individual dos acontecimentos que nele considera significativos.
As histrias de vida, quando contadas, admitem "fices" diversas, a cargo dos
sujeitos da linguagem. No pretendemos verificar a veracidade dos fatos narrados, pois o
que est em jogo a reflexo feita sobre eles. luz da Anlise de Discurso, o
acontecimento no o fato em si, mas a situao vivida pelo sujeito.
Histrias de leitura
Orlandi (1988:43) afirma que h um circuito de leitura de prestgio, baseado na
leitura de um crtico e disponvel ao professor no livro didtico. Desse modo, o professor
cede a terceiros a tarefa de interpretao, desincumbindo-se dela e simultaneamente "dando
nota baixa at o aluno 'mudar' " de opinio, submetendo-o ao julgamento de valor. Em
decorrncia, desliza-se da crtica para a censura.
A autora acresce que todo leitor tem sua histria de leituras. Por isso, as leituras
previstas para um texto so apenas um dos constituintes (e no o constituinte) das
condies de produo da leitura, asso