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Revista de D i v u l g a ç ã o Cient í f ica do Mestrado e Doutorado em E d u c a ç ã o Fís ica

H E G E M O N I A E L E G I T I M I D A D E NAS CIÊNCIAS DOS ESPORTES 1

Hugo Lovisolo2

INTRODUÇÃO

Dois campos de problemas estruturam as discussões , por vezes altamente apaixonadas, sobre as c iências da Educação Física e dos esportes entre ds especialistas no B ra s i l 3 .

O p r i m e i r o problema, que chamaremos de q u e s t ã o da hegemonia ou ques tão paradigmát ica , remete às dificuldades, talvez mesmo à imposs ib i l idade , de c o n s t r u ç ã o de uma identidade disciplinar. Dificuldade de estabelecer acordos, portanto, sobre o objeto teór ico própr io e um consenso m í n i m o sobre as metodologias apropriadas para seu desenvolvimento. Em outros termos, a ques tão sobre a hegemonia, ou paradigma, expressa as dificuldades, e talvez a impossibilidade, de cons t rução de uma t radição ou área disciplinar, em sentido estrito, que ocupe o lugar da multiplicidade dos enfoques disciplinares atuantes no campo das ciências que estudam os esportes, a atividade corporal e a Educação F í s i c a 4 .

O segundo problema, o da legitimidade, implica o conjunto das ques tões derivadas e vinculadas com a regu lamen tação legal da vida profissional e com o reconhecimento social e cultural das profissões que envolvem o estudo e a or ientação da prát ica esportiva e corporal 5 . Os formados em Educação Física ou em ciências dos esportes manifestam, repetida e insistentemente, que es tão sendo pouco reconhecidos socialmente e que não contam com suficiente proteção legal para realizar suas atividades. Assim, pessoas leigas, e t ambém especialistas de outras áreas , podem realizar programas de

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i n t e r v e n ç ã o que " d e v e r i a m " estar legalmente reservados, e socialmente reconhecidos, como sendo de competência exclusiva dos formados em Educação Física e esporte 6 . A legitimidade, portanto, envia-nos para o campo da intervenção profissional, para os problemas do reconhecimento social e legal dos profissionais atuantes na área.

Os dois problemas em pauta exis tem em v á r i a s á r e a s profissionais (serviço social, pedagogia, comunicação e administração de empresas, apenas para c i t a r a lgumas) , e embora sejam recorrentemente confundidos, são produto de forças passadas e presentes diferenciadas. O problema da hegemonia resulta da vontade, por incidências da cultura universi tár ia e da valor ização da ciência no presente, de querer converter uma á r e a or ig inalmente de in tervenção profissional em uma área de pesquisa disciplinar. Essa vontade já resultou em vár ias propostas ideais que não conseguirão concretizar-se, tornar-se portanto t radição ou área disciplinar (por exemplo , c i ê n c i a da m o t r i c i d a d e humana) . O problema da legitimidade, por sua parte, resulta da vontade de se pretender construir uma imagem profissional diante da sociedade e de se conseguirem regulamentações legais que protejam o exerc íc io da profissão. A confusão num mesmo saco dos dois problemas provoca, por si mesma, efeitos negativos cons ide r áve i s , embora por momentos existam interessados em sua manu tenção .

Esses dois principais problemas englobam e se desdobram em um conjunto de questões , não menos problemát icas , porém derivadas ou de menor hierarquia. Trataremos de ambos os problemas de forma suficiente para obtermos alguns esclarecimentos, sem pretendermos ser exaustivos e conclusivos. Para efetivar o diálogo faz-se necessário produzir um determinado rodeio que, acreditamos, permitirá esclarecer e si tuar as q u e s t õ e s e p ropor c o n c l u s õ e s melhor fundadas. Contextualizaremos, os problemas em pauta, na dinâmica institucional da universidade e nas representações culturais.

T E N S Õ E S U N I V E R S I T Á R I A S Q U E A Q U I I N T E R E S S A M

O primeiro rodeio propõe-se partir da pré-compreensão de serem os problemas em debate apenas inteligíveis se partirmos do marco da universidade e de seus dilemas gerados na interação com a

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sociedade. A primeira hipótese de leitura afirma que a universidade atual configurou-se a partir de contingências que estruturaram dilemas, criando, como produto, uma estrutura tensa e contraditória já no nível dos objetivos que a definem como ins t i tu ição 1 . De suas tensões deriva-se tanto sua d inâmica quanto algumas das dificuldades de áreas específ icas de formação e pesquisa.

A universidade foi tradicionalmente uma instituição que operou guiada pelo ideal de desenvolver o saber e formar pessoas sábias. Sábios são os que a lcançam as verdades, embora as mesmas não sejam necessariamente produto da atividade que hoje entendemos por pesquisa 8 . Vives e Erasmo, por exemplo, foram pessoas sábias , embora não realizassem as atividades englobadas pelo conceito de pesquisa. Ambas funções ou objetivos, desenvolver o saber e formar pessoas sábias , são, ou deveriam ser, em termos ideais, d imensões de um mesmo processo. As pessoas tornar-se-iam sábias na procura intencional e intensiva da sabedoria e a esta resultaria das vontades de procura dos sáb ios . As pessoas, tanto alunos como docentes, estariam portanto na universidade para desenvolver o saber e tornar-se mais sábias no processo de desenvolvimento do saber 9. A função do docente, a lguém um pouco mais sábio, seria a de guiar e ajudar os menos sáb ios a acelerarem seus processos de aprendizado e de desenvolvimento do saber. No contexto de funcionamento medieval os livros e os laboratór ios são muito escassos, assim a expos ição , o d iá logo e a reflexão são os principais caminhos para se atingirem os objetivos.

Nesse ideal de universidade, as d i fe renças entre cursos e disciplinas, entre pesquisa e ensino, entre os objetivos de se obter um diploma e o saber não fazem muito sentido. Tampouco fazem sentido a s e l e ç ã o para a universidade, suas grandes estruturas administrativas, os sistemas de aval iação e tantos outros dispositivos da universidade do presente. A universidade seria centralmente formada por bibliotecas, laboratórios e grupos de docentes e alunos que se juntam por compartilharem interesses de conhecimentos, que conversam e pesquisam, falam e escrevem. O vetor estruturante estaria formado por um conjunto de valores que obrigam a procurar a verdade segundo determinados padrões ou t radições , a estabelecer portanto acordos sobre o valor relativo da verdade e os caminhos vál idos para a sua cons t rução . A auto-aval iação , sobre a capacidade de produzir

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saber e de tornar-se sábio, seria suficiente para produzir inclusões e exc lusões da vida universi tár ia . Sobretudo se, como nas origens, os alunos pagassem os gastos da universidade e contratassem aqueles que lhes ensinam. De tempos em tempos, haveriam rituais nos quais alguns passariam da categoria de aprendiz à de sábio, de aprender o saber em dependênc ia para a posição do sábio que aprende o saber ensinando a outros. Temos, assim, um modelo simples e ideal de universidade, sem compl i cações burocrá t icas nem administrativas, sem organogramas de i m p o s s í v e l m e m o r i z a ç ã o , sem n ú m e r o s crescentes de cursos e disciplinas, sem problemas de reconhecimento de diplomas nem de legitimidade de profissões. A universidade teria apenas que divulgar os saberes e seria responsabilidade das pessoas e de outras inst i tuições seu aproveitamento. Temos assim um ideal de universidade que não gera tensões . Temos en tão o tipo ideal de uma universidade ar is tocrát ica dedicada a desenvolver o saber ou cultura erudita.

Na universidade que nos toca viver as coisas são bem diferentes. A universidade passou a ter que atingir objetivos variados, no entanto conservando os tradicionais. Entre os objetivos da universidade na modernidade podemos destacar: p r o d u ç ã o de conhecimentos privilegiando a pesquisa, fo rmação de pesquisadores, formação das elites pol í t icas, empresariais e culturais; igualação de oportunidades sociais; fo rmação profissional; cont r ibu ição para o desenvolvimento e c o n ó m i c o e social, p rodução , conse rvação e d is t r ibuição de cultura e p rodução e dis t r ibuição de tecnologias entre outros. O tipo ideal de universidade moderna e democrá t i ca passa en tão a estar a serviço das demandas do Estado e do mercado. Embora esses objetivos variados fossem respostas e ofertas para conjunturas h i s tó r icas específ icas , a d inâmica universi tár ia parece acumulá - los , superpô-los, sem eliminar definitivamente nenhum deles. Estamos distante do ideal de apenas pesquisa e ensino que Humboldt propunha, no c o m e ç o do século X I X , para as universidades a l emãs e mesmo do elaborado por Nietsche, que retoma o ideal ar is tocrát ico da formação c u l t u r a l , j á Bem a v a n ç a d o o s é c u l o X I X , c o m o r e a ç ã o à prof iss ional ização e às funções da Universidade para com o Estado e o mercado.

Numerosos, dispersos e mal definidos, a multiplicidade de objetivos forma uma salada de difícil digestão e coloca a universidade

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moderna em tensão permanente. Da dupla tensão , entre os própr ios objetivos, e da derivada das dificuldades ou impossibilidades de sua real ização, emerge a ideia de crise da universidade. As lutas polí t icas multiplicam-se, quer para impor a hegemonia de alguns dos objetivos, quer para propor modelos de c o m p a t i b i l i z a ç ã o ou c o n c i l i a ç ã o t emporá r i a dos mesmos. De fato, quando se constata a crise, os salvadores se mult ipl icam.

Há, contudo, tendências mais ou menos nítidas para a real ização de objetivos que se demarcam e destacam na vida das universidades: pesquisa, fo rmação docente e formação profissional ' 0 . A rea l ização destes objetivos consome a maior parte dos gastos em recursos humanos e materiais das universidades e geram, eles sozinhos, um montante significativo de tensões e de esforços para compat ib i l i zá -los. O que concretamente es ta r íamos fazendo então é formar pessoas para que sejam docentes (sobretudo a nível secundár io e superior), atuem num campo ocupacional ou realizem pesquisa. T a m b é m realizamos pesquisas para produzi/ conhecimentos e sem as quais não seria possível a formação na atividade de pesquisa. Esses objetivos são , como é bem sabido, de difícil c o m p a t i b i l i z a ç ã o na prá t ica cotidiana".

Deter-me-ei sobre o objetivo da formação profissional por estar, no meu entender, estreitamente relacionado com os dois problemas mencionados, o da hegemonia e o da legitimidade, no campo da formação profissional e em especial no das ciências do esporte e/ou Educação Física. A prof iss ional ização é um vetor estruturante do tipo ideal de universidade democrá t ica .

OCUPAÇÕES TORNAM-SE PROFISSÕES

Procurando legitimar-se diante da sociedade e do Estado, e talvez t a m b é m como resposta adaptativa à crise de legitimidade, a universidade reforçou violentamente a formação de profissionais para ocuparem pos ições no mercado de trabalho e na rede complexa de funções crescentes do Estado 1 2. Para isso, muitas ocupações foram convertidas em prof issões . As o c u p a ç õ e s possuem suas his tór ias singulares e refletem a divisão social e técnica do trabalho em cada sociedade. De praxe, as ocupações implicam no domín io técnico aperfeiçoável que transmite-se entre as gerações . As técn icas são

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portanto anteriores às ciências e baseiam-se em diferentes tipos de conhecimentos, fundados frequentemente na observação e registro atento de re lações entre "var iáve i s" . Diferentes grupos humanos geraram respostas técnicas , isto é, engenhos que funcionam para se a t ingir objetivos espec í f i cos . Embora possamos explicar como funciona o arco e a flecha a partir da mecân ica clássica, os homens não esperaram por^efa para fabricar e aperfeiçoar arcos e flechas. Mais ainda, desenvolveram arcos e flechas segundo os objetivos a que estavam destinados atingir. Para aperfeiçoar é necessário realizar processos de o b s e r v a ç ã o , e x p e r i m e n t a ç ã o , r a c i o n a l i z a ç ã o e tecnif icação de engenhos. Tais processos estão presentes na ciência , contudo não são a ciência .

A ciência, como acredito que hoje é dominantemente entendida, significa formular teorias ou modelos que expliquem como funcionam os mecanismos. Formar um pesquisador significa capacitar uma pessoa para que possua os instrumentos que lhe permitam procurar exp l icações para mecanismos 1 3. Uma simples re lação é tão pouco científ ica como uma corre lação múlt ipla . As cor re lações são um problema a explicar, são o c o m e ç o da pesquisa e não seu resultado f ina l . As tabelas dos a s t r ó l o g o s estabeleciam regularidades e corre lações , um problema de Newton foi o de explicar essas relações. Os engenhos técnicos supõem então a observação de relações . Os engenhos científicos querem explicar as relações, formulando teorias, e t a m b é m os desvios que se produzem, ou seja, explicar porque há fenómenos que funcionam diferentemente do que a teoria diz que devem funcionar (anomalias).

Quando a universidade torna ocupações em profissões, está assumindo que ela de tém a competênc ia para formar pessoas que realizem os objetivos das ocupações de forma mais racional, mais técnica, menos intuitiva, menos informalmente ou coisas pelo estilo. Dou alguns exemplos para esclarecer o que estou querendo dizer. Durante muito tempo senhoras bem intencionadas ocuparam-se de realizar ações sociais para os pobres, fazendo caridade ou assis tência social. Suas ações foram racionalizadas, cientificizadas e tecnicizadas, na profissão de assistente social ou trabalhador social, cuja formação e t i tulação passou a ser de responsabilidade da universidade. Uma ação e ocupação espontânea tornou-se então profissão, demandando, daí em diante, currículos e regulamentações oficiais para seu exercício

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(legalidade), além de longas d iscussões sobre o objeto teór ico do serviço social (hegemonia). Conheço universidades que desenvolvem hoje cursos de hotelaria. Assim, ocupações de fo rmação prát ica tornam-se teór icas . A curto prazo, teremos discursos demandando o objeto teór ico e os procedimentos metodo lóg icos das ciências da hotelaria e sua inclusão nos programas nacionais de ciência e técnica, a lém de r egu l amen tações sobre os diplomas necessár ios para se trabalhar nos hotéis . Os formados em hotelaria, como os formados na maioria das profissões, devem ter uma formação mosaico bastante aleatória, indo da filosofia do hóspede à fisiologia da a l imen tação e do sono e, no meio, coisas tais como admin i s t r ação , economia, sociologia, l ínguas e linguística, arquitetura, decoração e recreação entre outras 4 . Além da ironia, o exemplo reproduz o que j á aconteceu com muitas ocupações que as universidades tornaram pro f i s sões ' 5 . A universidade substitui assim a ação de formação que, talvez, deveria ser realizada pelas associações de donos de hotéis ou pelos sindicatos de trabalhadores, de modo geral, pelos interessados em melhorar a qualidade da fo rmação dos que trabalham em um ramo determinado de negócios ou atividades humanas. Como resul+iido geral, os cursos profissionais multiplicam-se nas universidades, pois, embora criados à sombra de específ icas c i rcuns tânc ias do mercado ocupacional, possuem uma forte tendência a estabilizar-se. Assim nascem muito mais dos que morrem' 6 . Resultado, temos uma superpopu lação de cursos profissionalizantes, cuja contr ibuição para o desenvolvimento e c o n ó m i c o e social é q u e s t i o n á v e l , quando comparada com a contr ibuição da formação dada pelo própr io mercado de trabalho. Há uma poderosa t e n d ê n c i a a realizar no terceiro grau f o r m a ç õ e s profissionais que poderiam muito bem ser realizadas no segundo grau ou por meio de cursos técnicos , a lém, evidentemente, daqueles cuja melhor formação é a própria p rá t i ca ' 7 . A profissão de educador físico ou de especial ista em esportes, por exemplo , n ã o escapa à possibilidade de realizar-se no segundo grau ou em cursos de curta duração, de dois ou três anos, pós-secundár ios e sobretudo na própria prática, em alguns países assim acontece.

De modo geral, os formados nessas profissões organizam-se e pressionam os organismos p ú b l i c o s competentes para que regulamentem legalmente seu campo de a tuação e difundem para a sociedade a necessidade das pessoas recorrerem a eles diante dos

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problemas de suas respectivas áreas. Estamos assim diante das lutas pela legalidade e legitimidade social. Algumas pessoas denominam criticamente a esse processo e as suas atitudes como corporativismo, um vetor constitutivo da realidade polít ica e social da modernidade. Em cont rapar t ida , a a s s o c i a ç ã o e a ç õ e s r e iv ind ica t ivas dos profissionais pode ser a base de regulação ética-profissional. Há, tudo indica, significados e efeitos contraditórios na organização profissional e no corporat ivismo. A o longo da h i s tó r i a moderna, m é d i c o s , advogados e engenheiros, trilharam as sendas que hoje percorrem nutricionistas, educadores físicos, formados em turismo, formados

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em meios de comun icação , formados em hotelaria e tantos outros . Ass im, ao criarmos uma prof i s são na universidade abrimos as comportas para a re iv ind icação de sua regu lação legal e de seu reconhecimento social. Adiante retomarei este problema no campo da Educação Física.

A N E C E S S I D A D E D A H E G E M O N I A : M I T O O U R E A L I D A D E

À medida que a formação para as ocupações se tornam de nível superior ocorre um fenómeno paradoxal. Os docentes e alunos dos cursos univers i tár ios profissionalizantes entram na cultura da universidade que por t radição valoriza a p rodução do saber e, por c i rcunstâncias atuais, a pesquisa' 9. Os docentes e os alunos formados em cursos profissionalizantes, a partir, basicamente, de um mosaico de conhecimentos disciplinares aplicados e da s i s temat ização de conhecimentos empír icos da área de intervenção profissional, passam a sentir e declarar que necessitam de um objeto teór ico própr io e de metodologias de pesquisa adequadas ao mesmo. Pretendem, portanto, constituir um campo de conhecimento a u t ó n o m o . O motor dessa pre tensão é, de modo global, a valor ização da ciência e da pesquisa e sua r e a l i z a ç ã o , no caso do B r a s i l e de ou t ros p a í s e s , é o desenvolvimento das p ó s - g r a d u a ç õ e s (mestrados e doutorados). Observe-se que a pós-graduação em Educação Física e esportes não é um dado de natureza. De fato, vários países, não têm pós-graduações nesses campos e os graduados em Educação Física realizam suas pós-graduações em outras áreas disciplinares. Assim, estamos diante

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de opções e cons t ruções sociais e não de necessidades naturais. N o caso do Brasil, a adoção do modelo dos Estados Unidos, embora com var iações , parece ter sido a principal influência na es t ru turação das universidades.

Os profissionais desejam igualar-se em prestígio científico aos pesquisadores das áreas disciplinares tradicionalmente const i tu ídas . Como é de fato difícil para os formados com um programa mosaico terem os conhecimentos que demanda um campo disciplinar particular (física, qu ímica , fisiologia, sociologia ou filosofia, por exemplo), os resultados da pesquisa são, salvo exceções , de qualidade duvidosa para os representantes de campos disciplinares e spec í f i cos . Os soc ió logos e os físicos desconfiam das apl icações de suas disciplinas feitas nos cursos profissionalizantes e em suas pós-graduações . É comum, por exemplo, escutar de pesquisadores que as pesquisas realizadas pelos médicos em hospitais e clínicas é de qualidade fraca e mesmo de difícil acei tação como pesquisa. O prest ígio da pesquisa, entretanto, leva a muitos profissionais a se preocupar mais pela pesquisa do que pela fo rmulação de programas ou propostas de intervenção e, sobretudo, como rápidas conferências dos temas das disser tações e teses podem testemunhar, a concentrar seus interesses de pesquisa no exerc íc io da prof issão, nas modalidades de suas p r á t i c a s , nas t e m á t i c a s da legal idade e da l e g i t i m i d a d e e, excessivamente, no problema da definição do objeto teór ico próprio , da hegemonia.

Formados a partir de mosaicos de conhecimentos inclinam-se por dec larar que seus campos de conhec imen tos se r i am, multidisciplinares, interdisciplinares ou transdisciplinar, embora tais noções sejam de difícil definição consensual 2 2 . Às vezes confundem o objetivo da ciência, que é explicar, com o da profissão, que é intervir, para solucionar ou contribuir com a solução de um problema ou com a realização de valores operacionalizados como objetivos do processo de in te rvenção . E mais ou menos evidente que as c i ênc i a s s ão disciplinares e reducionistas. A biofísica não é uma integração de biologia e física, trata-se de um projeto de explicar f e n ó m e n o s biológicos com variáveis ou conceitos físicos, como Carlos Chagas Filho ensinou-nos. A sociologia procura a expl icação das ações JOU dos fatos sociais com variáveis sociológicas e assim por diante 2 ' .

A in te rvenção , em contrapartida, demanda naturalmente a

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cont r ibuição dos pontos de vista disciplinares. Na const rução de uma represa leva-se em cons ideração a posição do geólogo, do ecó logo , do economista, do soc ió logo , do físico e de diversos ramos da engenharia. O programa de intervenção elabora uma matriz com os parâmet ros que cada disciplina estabelece e que a cons t rução deverá respeitar. Trata-se, então, da apl icação articulada ou compatibilizada no programa de i n t e r v e n ç ã o de conhecimentos disciplinares e profissionais de áreas diversas.

Entre abundantes citações de filósofos, historiadores e cientistas sociais, para apoiar a formulação da hegemonia, esquece-se que a maioria das prof issões emergem para dar respostas a problemas práticos, sem preocupações sobre o desenvolvimento da ciência básica ou disciplinar. Esquece-se, portanto, que as profissões resultam da incorporação pela universidade de ocupações . O caso da Educação Física, ou das c iências do desporto, encaixa perfeitamente nessa d i n â m i c a gera l , como seus h is tor iadores t ê m demonstrado suficientemente. Basicamente, os historiadores da Educação Física insistem sobre a tecla de ser sua inst i tucional ização como ensino superior resultado das necessidades da intervenção militar, económica, social e polít ica. Em contrapartida, é muito difícil demonstrar que os conhecimentos científ icos emergem diante de problemas práticos da vida e c o n ó m i c a e social. Prova disso é que a teoria newtoniana, reguladora do dever ser da pesquisa científica, passou longas décadas sem que tivesse apl icação prática.

A área da Educação Física e dos esportes foi , na sua origem, campo de resposta a problemas práticos de formação corporal e moral dos indivíduos. Há uma longa t radição que visualiza na prática do esporte e da atividade física um caminho válido de formação de corpos sadios, fortes e resistentes, de atitudes e valores considerados como morais e necessár ios para os indivíduos e a sociedade, de controle social, de adaptação e integração social entre outros objetivos. Os objetivos podem ser mudados. Pode-se pensar, por exemplo, que novos objetivos novos e emancipadores devem ocupar o lugar dos antigos e dominadores. Contudo, não se estará modificando em nada o c a r á t e r de i n t e r v e n ç ã o da á r e a prof i ss ional , moldada pela "consc iênc ia" das necessidades ou dos problemas práticos que levam a intervir.

Durante muito tempo insti tuições e indivíduos, sem formação

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específica, dedicaram-se à p romoção do esporte e da atividade física. Criou-se, em d e c o r r ê n c i a , um campo ocupacional. Em algum momento, emergiu a ideia de que esse campo ocupacional deveria contar com prof i ss iona is , isto é, com i n d i v í d u o s formados sistematicamente para atuarem nele. Emergiram escolas de Educação Física e esportes e as universidades, mais cedo ou mais tarde, passaram a incorporar esse projeto de formação profissional 2" 2.

Em função dos valores e objetivos orientadores da intervenção criam-se os programas de formação profissional. No caso da Educação Física, tanto podem ser enfatizados os conheclirrentos derivados das áreas b iomédicas (b ioquímica , fisiologia, anatomia, fisiologia do esporte, psicologia e psicologia esportiva) quanto os humanís t i cos (filosofia, c iências sociais e pedagogia entre outros). O curso de Educação Física tanto pode estar situado na estrutura universi tária na área b iomédica quanto na de humanas ou na de pedagogia. Podemos no curr ículo tanto enfatizar os conhecimentos vinculados à saúde quanto os d idá t ico-pedagógicos vinculados ao ensino da Educação Física. Esta ambiguidade salienta que os valores e objetivos da formação profissional determinam o perfil do curso, suas ênfases e afinidades disciplinares. Os conteúdos do curr ículo são formulados sob o d o m í n i o da perspectiva de sua ap l i c ação na i n t e r v e n ç ã o profissional, decorre assim o caráter aplicado que os caracteriza. A intervenção da Educação Física demanda a apl icação de um mosaico de conhecimentos porque pretende atingir um mosaico de objetivos: higiene, saúde, disciplina física e moral, saúde ps icológica e social entre tantos outros. A prova está em que a Educação Física e os esportes foram promovidos poi a l ianças históricas particulares entre militares, méd icos , religiosos, moralistas, polí t icos, reformadores sociais e até sociólogos e antropólogos, como é o caso, bem conhecido no Brasil, de Fernando de Azevedo e, menos conhecido, de Gilberto Freire, preocupado na mocidade pelos brinquedos para cr ianças e a cons t rução de praças de jogos em Recife 2 ' .

Há indícios suficientes sobre o processo de crescimento dos investimentos, s imból icos e materiais, na p r o m o ç ã o da atividade corporal e dos esportes ao longo do sécu lo . Nesse processo, a m u l t i p l i c a ç ã o dos meios de c o m u n i c a ç ã o tornou o esporte um espetáculo , intensificado a partir da t ransmissão da imagem ao vivo. Os s ignif icados sociais das p r á t i c a s desportivas e corporais

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diversificaram-se. S a ú d e , e s t é t i ca , f o r m a ç ã o da personalidade, equi l íbr io ps icológico e físico são algumas das funções a t r ibuídas às prát icas corporais e aos esportes no plano da formação e regulação dos indivíduos . Os esportes foram associados com o espetáculo, com o prazer, porém t a m b é m com a fo rmação de identidades locais e nacionais, com a compe t i ção entre as nações e regiões e até como campo privilegiado de enfrentamento entre os participantes da dita Guerra Fria. Os campos de intervenção dos profissionais de Educação F í s i c a e esporte diversif icaram-se enormemente. De fato, os especialistas atuam formulando e realizando programas de intervenção que, tendo como base a atividade corporal, são tremendamente diferenciados em termos de seus objetivos, meios (entre os quais se destacam os conhecimentos que demanda cada programa em particular) e condições .

A importância social do fenómeno associada ao crescimento dos cursos de g raduação , sobretudo na década de oitenta no caso do Brasil, levou à cr iação de pós-graduações . Se a tendênc ia era a de criar as pós -g raduações , por que as áreas profissionalizantes e em especial a da Educação Física e dos esportes deveriam ficar de fora? Queriam ser reconhecidas como áreas praticantes da invest igação científica, então o modelo universitário as levava a criar suas próprias pós-graduações .

O modelo de pós-graduação no Brasil é perverso para os cursos que se definem a partir de áreas profissionalizantes, pois, privilegiando a pesquisa científica sobre a formulação de programas de intervenção ou de engenhos, leva a perguntar-se sobre o objeto teór ico, sobre a unidade então do campo da Educação Física e do esporte 2 4 . Qual é a c i ênc i a da qual somos seus praticantes, torna-se uma pergunta carregada de efeitos pessoais e globais para o conjunto da á rea profissional. A questão da hegemonia está assim fortemente amarrada com a ques tão da identidade. E quase como se fosse afirmado: sem objeto ou ciência própria não existimos, não somos, não temos unidade e, sobretudo, não estaremos num pé de igualdade com as c iências existentes, seremos portanto menores ou inferiores, não a lcançaremos nem a autonomia nem o esclarecimento.

Forniularam-se vár ias tentativas de respostas para a ques tão da hegemonia que logo mostraram sua inconsis tência . Na verdade, tratou-se, geralmente, de agrupar sob nomes tais como ciência do

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movimento humano, cinesiologia, c iênc ias do esporte, as á reas disciplinares que possuem sua própria t radição e que entendem, cada uma delas, o campo dos fenómenos das ações motoras, das atividades corporais e dos esportes, como lugar de expansão para a apl icação de seus modelos ou teorias geradas de forma independente. Ou seja, cada disciplina recorta os fenómenos segundo seu ponto de vista. Por mais que fisiologia e sociologia estudem o esporte, supostamente o mesmo fenómeno empír ico , as perguntas que se fazem são tão diferentes como os conceitos que util izam para formular e responder as suas ques tões específ icas. A pergunta, esse comando da pesquisa, faz-se dentro de cada t radição de pesquisa e é na t radição que gera seu significado. Cada disciplina interroga os fenómenos dos esportes a partir de sua própria autonomia. Assim, o fisiólogo não aceitaria uma expl icação sociológica, inexistente, para as curvas de lactato, nem o sociólogo uma expl icação bioquímica p á r a a atração do esporte ou a violência no futebol. Se tomarmos como exemplo o rendimento, veremos que as e x p l i c a ç õ e s fornecidas pelas distintas c i ê n c i a s (fisiologia, b iomecânica , mecânica , psicologia, sociologia e outras) podem chegar a justapor-se, colocar-se lado a lado, entretanto elas não se integram num modelo t eó r i co englobador. Denominar à ju s t apos i ção de c iências do esporte, c iência do movimento humano ou cinesiologia não nos faz, reconheçamos, avançar. Possui entretanto uma função bem prática: permite agrupar nas universidades praticantes de distintas disciplinas preocupados pelas atividades corporais e pelos esportes, quer como campo de intervenção para desenvolver e atingir valores sociais (de saúde, rendimento, disciplina, sociabilidade e tantos outros), quer como campo de desenvolvimento de suas respectivas disciplinas.

Que fazer, en tão? A resposta não é tão complicada. Abandonar como quem se libera de um peso a ques tão ou mito da hegemonia. Reconhecer que a atividade corporal e o esporte são um campo de fenómenos empí r icos , socialmente significativos, que permitem as mais diversas perguntas e respostas, que permitem a entrada de abordagens disciplinares bem diferentes sobre o ponto de vista da pesquisa. Aceitar que, no agregado disciplinar das escolas ou institutos de Educação Física e esporte, podem conviver desde o colega que se pergunta sobre os significados s i m b ó l i c o s e m i t o l ó g i c o s das o l impíadas àquele que se pergunta sobre como controlar a curva de

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lactato no desempenho do atleta. Reconhecer que isto tem um lado positivo que merece ser enfatizado: permite ao praticante de uma d isc ip l ina ter uma e x p e r i ê n c i a direta com os das outras, uma exper iênc ia preciosa de convívio intelectual cada vez mais rara nas universidades onde pratica-se o isolamento dos cursos, dos departamentos ou das escolas. Além disso, podemos tentar fazer, por exemplo, que pesquisas na área da fisiologia do esporte sejam reconhecidas como boas pesquisas t ambém em fisiologia, e isto vale para qualquer disciplina aplicada ao esporte. É a qualidade da pesquisa o único caminho para sair da menoridade ou da inferioridade. Podemos estabelecer, embora com dificuldades, uma hierarquia entre as boas pesquisas e as más . Entretanto, não podemos estabelecer nenhuma hierarquia entre as boas pesquisas de diferentes áreas disciplinares. Newton não é nem inferior nem superior a Kant, ambos nos enchem de orgulho intelectual, ainda quando erram, nem Romár io inferior ou superior a Magic Johnson, estes t ambém nos emocionam e nos orgulham com suas artes. Estamos diante de coisas incomensuráveis . R e c o n h e ç a m o s suas virtudes como diriam os gregos. Hoje podemos dizer: r econheçamos a qualidade das respectivas formas de pensar e agir.

Dever í amos reconhecer t ambém que nenhuma disciplina em particular pode formular sozinha um programa de intervenção no campo das atividades corporais e desportivas. A intervenção médica a v a n ç o u consideravelmente pela p a r t i c i p a ç ã o dos engenheiros sanitários. O símbolo da pluralidade da participação são as olimpíadas, para serem realizadas exigem a c o o r d e n a ç ã o e pa r t i c ipação de inúmeros especialistas e, sobretudo, dos atletas.

Reconhecer, por úl t imo, que aquilo que nos separa são as va lor izações que fazemos das atividades corporais e dos esportes. Ass im, o colega, que considera a modelagem do corpo como al ienação, pecado ou desvio da boa senda, cont rapõe-se ao colega que desenvolve programas de intervenção com o objetivo de modelar o corpo. O colega que acredita que o esporte profissional é a queda do esporte, não pode perdoar o colega que se dedica a gerar programas para aumentar o desempenho dos atletas profissionais. O soció logo que não consegue entender o sentido das pesquisas bioquímicas separa tanto como o b ioquímico que apenas pode falar de c iência quando a linguagem do experimento é dominante. São esses tipos de diferenças

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(polí t icas, de valores ou de ideologias, como se preferir denominar) que nos separam e, por vezes, nos levam a guerras verbais e. em vár ios casos, poucos por sorte, a guerras t a m b é m corporais. A cont rapos ição das valor izações é uma caracter ís t ica saudável das sociedades plurais e não será superada pela exis tência de um objeto teórico definido de natureza fantástica. Depois de tudo, nossos colegas os físicos e os geneticistas t a m b é m se enfrentam no terreno das va lor izações dos engenhos tecno lóg icos gerados a partir de suas teorias.

LEGITIMIDADE: CASTIGO E SONHO

Os profissionais da E d u c a ç ã o F í s i ca , especialmente os educadores f í s i c o s , t r ansmi t em a imagem de serem pouco reconhecidos socialmente e pouco protegidos legalmente. No caso do Brasil, os educadores físicos são legalmente protegidos para o ensino no sistema nacional de e d u c a ç ã o . Esse é um mercado considerável , embora mal pago e que não estabelece dis t inções em termos de formação disciplinar dos docentes. T a m b é m pareceria ser alto o percentual de academias de ginást ica que funcionam apenas com professores titulados, a partir de escolhas sócio-cul turais , de legit imidade, portanto, e não de regulamentos legais. É dif íci l , consequentemente, estabelecer a justeza das c renças , fortemente vinculadas, entre desva lor ização social, legitimidade, e despro teção legal.

Para sentir-se menos ou mais reconhecido é necessár io possuir algum padrão comparativo. Digamos que os profissionais da Educação F í s i ca e dos esportes comparam-se com os m é d i c o s , com os administradores, com os advogados, com os professores de outras disciplinas e sentem-se menos reconhecidos socialmente que os praticantes dessas outras próí issõès . Talvez se escolhessem como pad rão comparativo os professores de m ú s i c a ou de dança , os resultados da c o m p a r a ç ã o seriam diferentes. Sabe-se que mús ica e dança são ensinados, habitualmente, por praticantes destacados, mas que não possuem nenhuma ti tulação. Fenómeno semelhante acontece no ensino de esportes como ténis , karatê, judo, ioga, equi tação e tantos outros 2 5 .

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Universidade Gama Filho

Acred i to que as p r o f i s s õ e s p r i o r i t á r i a s e concretamente escolhidas para comparação são a medicina e o professorado das outras disciplinas do sistema educativo. Ambas as escolhas refletem o cruzamento e a dependênc ia dos profissionais da Educação Física e das c iênc ias dos esportes. Dependênc ia no sentido que, histórica e organizacionalmente, a Educação Física situa-se, nas universidades, quer na área biomédica quer na área da educação. Cruzamento porque, no campo da saúde e das prát icas esportivas, interagem fortemente, até em termos competitivos, com os méd icos . T a m b é m cruzamento com o professorado de outras disciplinas, num complexo jogo de atitudes e expectativas recíprocas onde, tudo indica, ao educador físico corresponderia o " fác i l" papel de animar as cr ianças e, aos outros professores, o "dif íc i l" papel de ensinar 2 6.

Nessa es t ru tura de c o m p a r a ç õ e s é mais ou menos compreens íve l que os profissionais da Educação Física pensem que os outros profissionais são mais respeitados, mais ouvidos, mais levados a sér io. Pensam que a sociedade acredita que quem estuda Educação Física ou é um esportista ou é a lguém que não tem cabeça para estudar outra coisa. Estas observações podem estar adequadas às represen tações sociais.

Vamos então supor a pior das hipóteses: os educadores físicos são pouco valorizados pela cultura 2 7 . O que fazer? N ã o vejo outra resposta senão a de tentar modificar as representações a partir de elementos que sejam considerados verdadeiros. Exemplos: é possível demonstrar que as médias do vestibular dos alunos de Educação Física ou de ciências do esporte não são menores que as médias de outros cursos mais prestigiados? N o caso de serem semelhantes, as organizações e os cursos de Educação Física poderiam tornar públicos esses dados. Sendo inferiores, deveria ser repensada a imagem pública e o tipo de significado que para os candidatos o curso possui e que leva a uma escolha dos "piores". Um papel importante de revalorização pode ser desempenhado pelo educador f ís ico escolar. Ele pode revalorizar sua imagem se a partir de seu trabalho mostrar que a Educação Física escolar é capaz de contribuir generosamente com a d inâmica escolar tornando a escola mais atraente, valorizando-a 2 8.

De modo geral, o único caminho é o trabalho de qualidade. Esta é uma senda difícil e, para sua cons t rução e caminhada, o papel das o rgan izações que agrupam os profissionais da Educação Física e

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das c iências dos esportes é fundamental. N ã o há outra so lução que organizar-se e trabalhar a partir de verdades, por certo que relativas, e de valores socialmente compartilhados. O desejo de valorizar a profissão exige esforços. Exige, sobretudo, abandonar o autocastigo verbal e agir. Profissionais de muitos campos fizeram e continuam a fazer esforços para valorizar suas profissões, a história e o própr io presente apresentam-nos exemplos de seus agires 2 9 . Contudo, é t ambém necessár io desconfiar das re ivindicações de va lor ização dos corpos profissionais, ou pelo menos levar em conta a possibilidade de que no fundo das mesmas pode haver muita disputa de poder, de prestígio e de mercado. Alguns dirão: exercícios da vontade de poder.

Acredito que, para fechar, seria bom estarmos então conscientes da armadilha montada pelas cont ingências . Quando os profissionais se organizam e lutam pela legalização e legitimação de suas atividades são suspeitos de corporativismo. Um termo que hoje possui uma carga forte de c r í t i ca moral . Se não o fazem, podem ver seus investimentos em ded i cação e fo rmação co r ro ídos pela falta de proteção legal e pelo descrédi to social. N ã o serpessoalmente como desmontar essa armadilha estruturada na sociedade moderna. Acredito que deveria ser um tópico de reflexão coletiva e que, por bastante tempo, obr igará os profissionais a caminhar pelo fio da navalha. Entretanto, há um limite natural para as lutas de legal ização: não afetar os interesses de grupos ocupacionais j á const i tuídos e atuantes, embora seus níveis de formação possam ser não-univers i tár ios ou de terceiro grau, nem afetar negativamente os domínios que os indivíduos detêm sobre seus destinos. Fácil de ser dito, difícil de ser praticado.

Notas:

Considero este texto como a expressão de pontos de vista pessoais gerados na minha interação com os profissionais da Educação Física e dos esportes. Acreditei, quando escrevia, que minha argumentação estaria mais despojada e mais aberta, com melhor disposição para o diálogo e a crítica, não estando respaldada em citações para provocar efeitos de autoridade. Abro as portas, portanto, para que as criticas sejam realizadas em termos de argumentos e experiências pessoais, mais do que em fundamentos bibliográficos. O texto possui várias notas que, acredito, têm por função minorar mal-entendidos. 2

Professor da Universidade Gama Filho.

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Tratar em bloco a Educação Física c os esportes, ou as ciências que se ocupam de ambos tipos de atividades, não significa desconhecer as propostas para a sua diferenciação. Contudo, no nível de análise no qual nos situaremos, as diferenças não parecem afetar o caráter mais geral da discussão.

^ Ocupam-se de aspectos parciais ou recortes do esporte e da atividade física disciplinas tais como: filosofia, sociologia, história, antropologia, psicologia, economia, fisiologia, bioquímica, biomecânica, psicologia da aprendizagem, psicomotricidade entre aquelas que mais rapidamente são lembradas. Assim, o esporte e a Educação Física são, tudo indica, campos de aplicações nos quais as disciplinas realizam esforços específicos de explicação e interpretação. Quando a fisiologia ou a antropologia operam, no campo fenomênico dos esportes e das práticas corporais não criam novos objetos teóricos nem novos conceitos nem metodologias específicas, embora possam colocar questões teóricas e metodológicas a partir desses campos para suas próprias disciplinas. Usam, de praxe, seus marcos teóricos e metodológicos para resolver problemas que se colocam no campo das práticas esportivas e corporais a partir de suas respectivas tradições disciplinares. Dito negativamente, a expressão fisiologia do esporte ' não tem o mesmo estatuto epistemológico que a expressão 'física atómica

~* Os dois problemas não estão logicamente relacionados. Observe-se, por exemplo, que não há objeto teórico da engenharia no sentido que há objeto teórico da física. A engenharia formula programas de intervenção em campos específicos do social a partir das ciências da natureza, aplicação, e do acúmulo de racionalização de experiências geradas no processo de intervenção. A ausência de objeto teórico não afeia nem a regulamentação legal das atividades do engenheiro nem sua legitimidade social. Ou seja. a legitimidade da intervenção não depende de se possuir um 'objeto teórico '. Não é necessário conhecer os mecanismos (objeto da atividade de pesquisa) que geram as deformações arteriais para que se realizem cirurgias substitutivas de segmentos arteriais em estado crítico. Em contrapartida, c possível possuir um objeto teórico sólido e uma intervenção quase nula, talvez seja esse o caso da física cosmológica. A procura de explicações, de verdades, pela física cosmológica é uma atividade altamente valiosa. Também é altamente valiosa a intervenção dos engenheiros para solucionar problemas sociais, dos artistas para produzir beleza e de tantas outras contribuições.

^ O problema da legitimidade situa-se claramente na ação de intervenção, não existe no campo da pesquisa onde os profissionais de outras áreas são, de praxe, benquistos. Trata-se, então, de problemas baseados principalmente na regulação e reconhecimento social de delimitação de mercados de trabalho. Sobre as características da intervenção na Educação Física ver; LOVISOLO, H. (1995). Educação física: a arte da mediação. Rio de Janeiro: Editora Sprint - Capítulo I .

Di/emas típicos são, por exemplo, pretender formar a elite dirigente e ao mesmo tempo aluar como mecanismo significativo de igualação social ou desenvolver o ensino de massas ao mesmo tempo em que pretende-se realizar pesquisa de ponta.

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Talvez esteja chegando o momento de pensarmos que precisamos desenvolver instituições diferenciadas para atingirmos objetivos socialmente valiosos, contudo de difícil realização por uma instituição. Podemos chegar a entender a Universidade como o conjunto das universidades.

Reduzir todas as diversas formas de geração de verdades à forma de geração de verdade da pesquisa é uma atitude totalitária. A verdade da pesquisa sendo importante e significativa não se justifica quando pretende ser a única tradição de verdade. Há vários caminhos para a sabedoria e para a formação do sábio. Por outro lado, aqueles que pretendem validar suas verdades dizendo que são científicas, vestindo a carapuça da ciência quando na realidade são produto de outras tradições de geração de verdade (religiosas, artísticas, empíricas entre outras) colaboram para que os totalitários da redução, de todas as verdades a verdades científicas, saiam de suas tocas armados com seus porretes epistemológicos e metodológicos. Neste final de século, precisamos muito mais do diálogo das tradições de geração de verdades do que da guerra entre elas. É fundamental a recusa aos fundamentalismos, quer científicos quer religiosos.

9 O leitor pode-se perguntar o que é sabedoria e que é uma pessoa sábia? Ambas

as definições dependem do marco valorativo que as fundamenta. Pessoalmente, definiria a sabedoria como o conjunto de conhecimentos e atitudes que permitem reduzir a violência, a crueldade e a humilhação nas relações enl^e os homens, de cada homem consigo mesmo e nas relações dos homens com o mundo natural. Sábio é quem segue os preceitos da sabedoria. 10

Ainda no plano desta redução nos objetivos os problemas de compatibilização são enormes. Nada indica, por exemplo, que a vinculação da pós-graduação, onde se realizariam as pesquisas, com a graduação para a formação de docentes e profissionais, seja de fato realizável em níveis significativos. No cotidiano da vida universitária temos numerosos exemplos que apontam na direção contrária, em especial as tendências das pós-graduações para ganharem autonomia em relação às graduações.

No contexto das universidades brasileiras, tomadas aqui como campo de reflexão, a compatibilização entre graduação e pós-graduação: entre ensino de graduação e pesquisa é tensa, difícil e conduz a conflitos diversos.

1 2 A r , ~ A profissionalização crescente e correntemente associada ao processo de

modernização, posta em relação com a urbanização, a autoridade burocrática-legal, a racionalização do domínio sobre a natureza e a sociedade, entre outras dimensões do processo de modernização. Em circunstâncias históricas nas quais o desenvolvimento económico e o emprego tornam-se questões socialmente relevantes a universidade l-egitima-se, e obtém, recursos, situando-se como instituição que pode colaborar em ambos os planos. A formação de profissionais para o mercado de trabalho tornou-se um vetor forte de legitimação da universidade na construção da modernidade. As novas condições do que alguns denominam pós-modernidade, pós-materialidade, pós-industrialização poderão redefinir o

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papel das universidades e diminuir a importância da profissionalização, embora continuem a existir diferenças consideráveis entre países e regiões.

13 Uso o termo mecanismo em sentido metafórico. A ciência se ocupa de explicar

mecanismos tais como o movimento dos planetas, a evolução das espécies, a ordem social ou a ordem do caos, a formação da identidade psíquica ou sua desorganização. Em todos os casos as regularidades são apenas um ponto de partida, dados a serem explicados. 14

Sobre os significados e lógicas da formação disciplinar e mosaico, ver LOVISOLO (1995), Capítulo l.

Embora valorize profundamente a ciência como explicação de mecanismos, considero anticientíficos os esforços para apresentar qualquer programa de intervenção minimamente racionalizado como científico. A pretensão das profissões serem científicas é de modo geral uma inverdade e colabora para um péssimo entendimento da atividade científica. Devemos valorar as profissões pelo que são, respostas a problemas práticos, pela sua contribuição social e não pelo fato de serem científicas. Nada é tão ridículo quanto, por exemplo, o discurso religioso que se diz científico. Uma intervenção adequada para solucionar problemas definidos pelos atores sociais é altamente valiosa e os profissionais dessa intervenção merecedores de reconhecimento social.

• Criar um curso é bastante fácil nas universidades. Reduz-se principalmente a uma questão de interesses e recursos financeiros e pode ser feito num ano. Fechar um curso, paradoxalmente, implica que a decisão deve ser tomada, pelo menos, com cinco ou seis anos de antecedência, possibilitando a conclusão daqueles que estão dentro do curso. O problema do que fazer com o corpo docente e de funcionários do curso é, de praxe, de solução conflitiva e difícil, podendo transitar pelos caminhos da Justiça no Brasil, como numerosos exemplos testemunham.

' ^ O problema da formação prática é tão sério que todos os cursos profissionalizantes se estruturam em três partes: a) disciplinas de formação teórica de outras áreas disciplinares, b) disciplinas práticas que sistematizam a experiência acumulada no exercício das ocupações e c) estágio ou prática no campo ocupacional. O problema da prática ' é grave que a maioria dos cursos profissionalizantes é criticada por não dar suficiente formação prática. Esta é uma crítica corrente no campo da Educação Física, como várias dissertações e pesquisas têm salientado.

18 As demandas por regulação são sempre recolocadas na arena política ainda

pelos profissionais mais antigos. Faz poucos anos os advogados pressionaram para que sua assistência fosse obrigatória em juízo e realizaram uma forte campanha publicitária. Se não estou mal lembrado essas coisas aconteceram no

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contexto da constituinte. Mais recentemente, o corpo médico Jogou duro para a regulamentação da acupuntura, submetendo-a ao domínio dos profissionais da ciência médica ocidental, embora essa terapêutica nada tenha a dever à tradição que passa a dominá-la. O poder dos advogados é tão grande que a OAB é mencionada várias vezes na Constituição do Brasil.

19 Valorização claramente observável no sistema de avaliação da pós-graduação

e na distribuição dos financiamentos para os programas universitários. 20

No campo da Educação Física, e de outras profissões, valoriza-se o enfoque holístico, integrado ou não fragmentário. Habitualmente critica-se o enfoque fragmentador e reducionista que caracteriza as disciplinas legitimadas no campo da pesquisa científica. Ou seja, afirma-se que poderia existir um modo de desenvolvimento da ciência alternativo ao modo histórico e efetivo pelo qual a ciência desenvolveu-se. A intencionalidade holística, unitária ou não fragmentária ainda não validou suas razões com produções de conhecimento que levem a modificar o modo tradicional de operação da ciência. No campo da Educação Física, o enfoque alternativo ainda não produziu nenhuma teoria, modelo, explicação ou interpretação válida e significativa. Assim, a desconfiança do cientista tradicional, disciplinar, fragmentador e reducionista, continua forte diante das propostas superadoras.

A distinção entre as disciplinas não desaparece quando constatamos que utilizam linguagens epistemológicas ou matemáticas semelhantes. Assim, várias disciplinas podem utilizar a linguagem determinista de causa-efeito e outras a linguagem funcionallsta. Também, várias disciplinas podem utilizar equações lineares para pensar os problemas de suas áreas. A comunalidade das linguagens não elimina suas identidades. A identidade pode permanecer ainda quando as disciplinas passem a utilizar novas linguagens, como a das equações não lineares ou a da fractalidade.

22 Nada indica que a formação profissional na universidade seja superior à

formação profissional em instituições ou escolas isoladas. É também altamente discutível que a formação profissional obrigatoriamente sefa situada como formação de terceiro grau ou superior e, mais discutível ainda, que qualquer estudo pós-secundário deva ser obrigatoriamente ministrado em universidades. Os estudos comparativos permitem relativizar ambas crenças que, no caso do Brasil, estão amplamente difundidas.

23 Consultar as memórias de G. Freyre. Tempo morto e outros tempos.

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24 Podemos encontrar vários exemplos de sistemas universitários nos quais a

Educação Física ou as ciências dos esportes não possuem pós-graduações próprias. Os formados na profissão realizam suas pós-graduações em outras áreas disciplinares. Assim, não há nenhuma necessidade, naturalidade ou determinação para que o modelo tenha que ser o nosso.

Parece-me de bom senso supor que o ensino de qualquer técnica ou arte pode aperfeiçoar-se na medida que os instrutores detêm uma cultura geral mais ampla e rica e também conhecimentos gerais e específicos sobre a interação entre as pessoas c os processos de ensino-aprendizagem. A sociedade moderna exige, sob o ponto de vista cultural, formações mais prolongadas e amplas, decorrendo o direito ao ensino superior. Porém, essa condição, é de tipo geral, não significando que um instrutor específico deva deter um título universitário para ensinar eficientemente uma específica arte.

^ A sociedade oferece crescentes oportunidades de realização de atividades corporais fora da escola. Assim, o próprio papel da Educação Física escolar, quando meramente vinculado ao desenvolvimento físico e psicomotor, é fortemente relativizado, embora as crianças gostem da Educação Física escolar. Em contrapartida, as matemáticas devem ser aprendidas na escola, gostem ou não as crianças. Talvez esteja nesse gostar das crianças um dos pontos de atrito nas relações entre educadores físicos e outros educadores dentro da escola.

27 Caso a imagem dos profissionais da área sobre o reconhecimento social fosse

falsa, ou seja, caso a sociedade os valorize, estaríamos diante de um caso de irrealismo colelivo ou de falsa consciência coletiva. Se fosse esta a situação deveria ser outro o teor da análise ou da 'psicanálise '. Embora esta possibilidade mereça ser melhor analisada, aceito em minha argumentação a 'imagem de desvalorização ' como adequada à realidade cultural.

28 Para maiores especificações sobre o papel da educação escolar, conferir

LOVISOLO (1995), acima citado. 29

Se interrogados sobre a automedleação, possivelmente os médicos respondam que essa conduta é produto da desvalorização da profissão médica, da ignorância do público, da ação dos balconistas ou dos laboratórios. Seja qual for a causa, concordam em realizar campanhas, declarações e muitos outros tipos de ações encontra da automedicação. Uma leitura desconfiada sempre poderá insistir no fato de ser automedicação contrária aos interesses económicos dos médicos e apresentar, então, suas condutas como falsamente morais.

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E E F E - U 3 P B I B L I O T E C A

POR U M A TEORIA D A P R Á T I C A

Mauro Betti

INTRODUÇÃO

Vou estabelecer inicialmente um debate com autores que, nos ú l t i m o s anos, e no meu exc lus ivo ju lgamento , c o n t r i b u í r a m significativamente para a const i tu ição de uma teoria da Educação Física de matizes brasileiras, com/propos ições bastante criativas e desafiadoras à inteligência. São eles: Bracht ( l 993), Tani ( l 988, 1989), Lovisolo (1994) e Kolyniak Filho (1994, 1995a 1995b). Depois, apresentarei m i n h a p r ó p r i a p ropos ta , que já se e s b o ç a r á embrionariamente na primeira parte.

A d iscussão académica no âmbi to da Educação Física sempre foi presa fácil dos dualismos: Educação Física versus esporte; esporte versus jogo; teoria versus prát ica, etc. A sofis t icação teór ica dos úl t imos anos superou alguns idealismos e ingenuidades da década de 80, mas gerou uma nova "macro-dicotomia", que detecto na d iv isão dos atuais discursos sobre a Teoria da Educação Física em duas grandes matrizes: uma, que vê a Educação Fís ica como área de conhecimento científ ico; outra, que a vê como prát ica pedagógica .

A matriz científica constituiu-se no Brasil a partir da influência norte-americana, com a p r o p o s i ç ã o da E d u c a ç ã o F í s i ca como disciplina académica inicialmente feita por Henry (1978) 2 ; e europeia, mediante o filósofo por tuguês Manuel Sérgio (Sérgio , 1987, 1991), que, por sua vez, foi assumidamente influenciado pelos franceses Pierre Parlebas e Jean Le Boulch. A influência da Alemanha, com sua " C i ê n c i a ( s ) do Esporte" fo i mais marginal e local izada, possivelmente por dificuldades de interpretação semânt ica . Citarei diretamente trechos de alguns destes autores, e sem muitas explicações

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