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© Green Death Volume 1 - 2013 Organização: Alfer Medeiros Capa: Silvio Medeiros Revisão: Alfer Medeiros Texto:
Adrianna Alberti
Alastair Dias
Chico Pascoal
Douglas Eralldo
Franklin Lima
Leon Nunes
Verônica Freitas
Wellington Novaes
O e-book Green Death - Ecoterrorismo Licantrópico (volume 1) é publicado sob uma Licença Creative Commons - Atribuição -
NãoComercial - SemDerivados 3.0 Não Adaptada.
Índice
Apresentação da Série .................................................................... 3
OOKAMI (Chico Pascoal) ................................................................ 6
CANAVIAIS DE MORTE (Douglas Eralldo) .................................. 22
YÄ FERAS (Leon Nunes) ............................................................... 26
BRIGA DE CACHORRO GRANDE (Alastair Dias) ....................... 34
UM BREVE ENCONTRO A TRÊS (Verônica S. Freitas) .............. 54
DESCOBERTAS (Adrianna Alberti) .............................................. 81
SANTO ARNALDO (Wellington Novaes) ..................................... 97
QUEIMADURAS (Franklin Lima) ................................................. 104
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Apresentação da Série
Bem-vindo, leitor, a uma realização pessoal. Quando escrevi o livro Fúria
Lupina Brasil um tempo atrás, não fazia ideia das proporções que o projeto
tomaria. Meu livro de estreia não só abriu muitas portas, como também me
permitiu conhecer pessoas fabulosas entre leitores, escritores e críticos (ou
tudo isso ao mesmo tempo).
Nesse livro, lançado em 2010, foi apresentada pela primeira vez a
organização Green Death, e muito ouvi falar dela nos feedbacks dados pelos
leitores. Da conclusão de que esse grupo ecoterrorista foi marcante para
muitas pessoas durante a leitura do Fúria Lupina, surgiu uma ideia
interessante: por que não fazer um spinoff com contos de diversos autores, que
trouxesse a visão particular de cada um deles sobre a Green Death?
Diversos convites foram feitos, alguns foram atendidos, e aqui temos o
volume inicial deste projeto coletivo licantropo. Sou muito agradecido a todos
que aceitaram o desafio de criar contos dentro do universo de uma outra
pessoa, tarefa não muito simples, apesar de algumas liberdades criativas terem
sido cedidas.
Antes de partirmos para a leitura dos contos dos meus companheiros de
letras, seria interessante mostrarmos um pouco do que é esse cenário dentro
do qual foram produzidas as histórias:
Contexto
Conforme dito anteriormente, a Green Death faz parte do universo da
série Fúria Lupina, onde lobisomens vivem e atuam em um contexto
histórico/cultural real. Assim como na nossa realidade, os lobisomens são tidos
como um mito. Isso quer dizer que é da preferência dos homens-lobo que as
coisas permaneçam assim, ou seja, as ações do grupo são planejadas de
modo a não deixar pistas da existência de tais seres. Aparições em público dos
licantropos são evitadas a todo custo.
Os Lobisomens
São todos bípedes, um meio-termo entre a forma humana e a lupina.
Possuem a força de aproximadamente dez homens quando na forma lupina, e
na forma humana têm força e habilidade correspondentes ao mais exímio
atleta. Seus sentidos são extremamente aguçados ao se transformarem em
lobisomens, e algo disso é preservado ao voltarem à forma humana. Alguns
paradigmas universais dos lobisomens não existem nesta realidade: a prata
não é o único material que pode causar danos a estas criaturas, e a lua cheia
não provoca transformações involuntárias. Não são imortais, apenas
extremamente resistentes. Sua pele é grossa como a de um rinoceronte e seus
ferimentos são cicatrizados mais rapidamente. Possuem a capacidade de se
comunicar mentalmente com os de sua espécie. A organização hierárquica
entre os lobisomens que vivem em alcateia segue o padrão tradicional dos
lobos, determinada pela força e poder de liderança, em três níveis: alfa (os
mais fortes e com melhores capacidades de persuasão e comunicação), beta
(totalmente capacitados, porém com algum ponto negativo que os diferenciam
dos alfas) e ômega (não conseguem se transformar em lobisomem e somente
mantém suas capacidades de comunicação mental).
A Organização
Surgiu no final dos anos 80 e, de início, baseava-se em pequenas
sabotagens em instalações de fábricas poluidoras na Polônia e na Alemanha.
Atualmente, sua base de operações é na Holanda, local onde os
coordenadores das células terroristas se reúnem secretamente e transmitem as
instruções aos seus subordinados. Sua área de ação é global, mantida por
doações de simpatizantes da causa. Quando em campo, atuam em células de
3 a 6 indivíduos, sempre com um alfa coordenando as ações. Os betas são
utilizados em confrontos diretos, e os ômegas trabalham no apoio e transporte.
Sempre chegam aos lugares dos ataques sob disfarce; possuem conexões no
submundo do crime que fornecem todos os documentos falsos necessários
para fazerem os ecoterroristas passarem por equipes de TV, membros de
ONGs de ajuda comunitária, entre outros. O modo de agir é bem simples:
ataques rápidos e violentos, de modo a causar baixas e deixar os inimigos com
uma tremenda sujeira para limpar e ter de se explicar com as autoridades
locais.
Bem, acredito que me estendi demais nas explicações, mas procurei
mostrar de forma sucinta o que vem por aí. Fico à disposição para ouvir
qualquer dúvida, elogio ou crítica. Agradeço mais uma vez pelo interesse
mostrado por este e-book, desejo uma ótima leitura e já me adianto a convidá-
lo a ler outros volumes da série (o volume zero já foi lançado, e os restantes
vão surgindo quando menos se espera), caso tenha apreciado este volume.
A natureza lupina liberta. A natureza humana destrói!
Alfer Medeiros [email protected] www.AlferMedeiros.com.br
OOKAMI (Chico Pascoal)
Permitam-me uma rápida apresentação: meu nome completo é Mario
Yukio Lopes Tsukimori. Sou brasileiro, sansei, terceira geração de
descendentes de japoneses. Tsukimori é o meu sobrenome pelo lado paterno;
o Lopes é do lado da minha mãe, que descende de imigrantes portugueses
açorianos aportados há cem anos na Ilha de Santa Catarina, no sul do Brasil.
Nasci em Bastos, interior do estado de São Paulo, cidade com forte presença
da imigração nipônica, para onde meus pais se mudaram logo após se
casarem.
Há um provérbio antigo na província de Niigata, na ilha de Honshu, terra
dos meus avós japoneses, que diz: "Um lobo pode se esconder até mesmo
atrás de um junco". Lembro-me que, em certas ocasiões, eu costumava ouvi-
los repeti-lo, sempre na sua língua mãe, mas à época era pequeno demais
para atinar o seu real significado. Mais tarde, já na minha adolescência, meu
pai me explicou como seus pais conseguiram, durante a Segunda Guerra
Mundial, escapar das perseguições perpetradas pelo Estado Novo contra os
súditos de Sua Majestade o Imperador Japonês, e também àquelas
promovidas pelos sanguinários militantes nacionalistas do Shindo Remei contra
membros da colônia que ousavam duvidar da vitória do Japão: meus avós se
utilizavam da ancestral Estratégia do Ookami, que significa lobo em japonês.
Que estratégia era essa? Fiquei curioso. Achei em princípio que tivesse a
ver com artes marciais, e quis saber maiores detalhes; porém, meu pai, que era
um homem introvertido e de pouca conversa, podou-me o ímpeto juvenil como
fazia com os seus bonsais; apenas me pediu que tivesse paciência, que
esperasse, pois quando chegasse o momento certo me seria dado conhecê-la.
Sou por natureza um sujeito apreensivo, detesto esperar. Então, em
desacordo com o conselho do meu pai, atirei-me de corpo e alma à pesquisa
na Internet, em bibliotecas, nos arquivos do Museu da Imigração no Bairro da
Liberdade, e descobri, por exemplo, que os Tsukimori descendemos de uma
antiga casa notável desde a Era Meiji por fabricar o molho de soja missô que
provia os castelos de Daimyos, Shoguns e Imperadores. Fuçando ainda nos
pertences do meu pai, chamou-me a atenção em uma fotografia antiga do
casamento dos meus avós um símbolo bordado nas mangas do belíssimo
quimono de seda do noivo. Tratava-se de um círculo com uma lua cheia no
centro, rodeada por sete árvores. Aquele era o brasão da nossa família, cujo
significado correspondia ao seu nome: Tsuki (lua) e Mori (floresta, bosque).
Porém, por mais que procurasse qualquer referência à tal Estratégia do Lobo,
nada pude encontrar. Como a busca se mostrava infrutífera, com o tempo
passei a direcionar meus interesses para outros assuntos comuns aos garotos
da minha idade: estudo, esportes, garotas, entre outros.
Somente dois anos atrás, depois de ter emigrado ao Japão como o
fizeram milhares de brasileiros nipo-descendentes, por conta de mais uma crise
econômica que assolava nosso país, é que um acontecimento insólito trouxe-
me de volta aquele assunto que eu considerava encerrado.
Uma noite eu havia sido o último a sair da fábrica nos subúrbios de
Gunma onde dava duro montando autopartes, e pedalava sozinho e sem
pressa aproveitando os declives da estradinha sinuosa e bem cuidada, rumo ao
conjunto habitacional em que dividia um minúsculo apartamento com mais dois
amigos brasileiros. Após dez horas de trabalho, estava extremamente
extenuado. Tudo o que eu mais almejava naquele momento era um bom banho
morno, uma sopa Udon fumegante, e uma cerveja bem gelada.
Aquela era uma noite quente, úmida e abafada que, todavia, havia sido
recompensada com a presença de uma lua cheia e esplendorosa flutuando
qual um balão de prata em um céu de imaculada limpidez. Estrelas, se havia,
eram meninas tímidas, pois não as vi.
Eu fazia diariamente aquele percurso exceto aos domingos, porque
ninguém é de ferro; e confesso que tanto pela manhã, na ida para o trabalho,
ainda com resquícios de sono a me entorpecer os sentidos, como à noite, ao
voltar para casa, eu não me atinha a certos detalhes do caminho. Naquela hora
erma, porém, depois de cruzar a pequena ponte adornada com lanternas de
pedra sobre o riacho de águas límpidas, e internando-me no bosque de
pinheiros que se estendia a partir da encosta da elevação conhecida como
Kitsuneyama, ou Montanha da Raposa, me senti apossado de uma estranha
sensação. De um momento para o outro aceleravam-me sobremaneira as
batidas do coração. Taquicardia, pensei. E com razão apavorei-me crente que
houvesse chegado a minha hora.
Logo as veias das minhas têmporas latejavam com tamanha pressão e
intensidade que minha cabeça converteu-se em uma bomba prestes a explodir.
Ao mesmo tempo todos os músculos do meu corpo contraíram-se em terríveis
câimbras. Larguei a bicicleta na beira da estrada e corri aos tropeções em
direção a um tronco apodrecido de pinheiro, onde me sentei na vã esperança
de que aquela crise passasse. Faltava-me ar. Meus pulmões ardiam como os
altos-fornos de uma siderúrgica. Eu não tinha dúvida de que algo ruim estava
prestes a me ocorrer.
Isso foi só o começo, pois imediatamente, sem que eu pudesse impedir,
uma força sobrenatural irrompeu impetuosa de dentro de mim e, à guisa de um
daqueles perversos instrumentos medievais de tortura usados para
desmembrar hereges, agiu de forma violenta a alongar-me os ossos, a
distender minha coluna cervical, a rasgar-me a pele, moldando-me em uma
nova criatura. Partes de mim rapidamente se avolumavam e assumiam outros
formatos. Articulações rompiam-se e se recompunham de modo que o meu
macacão de operário já não me cabia. Isso sem falar no pandemônio que
confundia totalmente os meus sentidos. A audição, assim como o olfato, tinham
se ampliado sem qualquer controle e eu era capaz de ouvir diálogos íntimos
travados a quilômetros dali, assim como a queda suave de uma folha no fundo
do bosque, o pio solitário de ave noturna, o cheiro do arroz servido em uma
refeição tardia, o odor dos feromônios de alarme de uma lebre ameaçada por
um predador. Desesperado tateei minha faces, e constatei com assombro que
o meu nariz tinha se alongado ao mesmo tempo que, dentro da minha boca,
minha arcada dentária se convertera em poderosa mandíbula. No lugar das
mãos, agora eu tinha garras afiadíssimas, e os pelos de tonalidade cinza
brotavam espessos da minha epiderme como milhões de agulhas fincadas de
dentro para fora.
Não foi como se me arrancassem de mim, mas uma sobreposição. O
selvagem sobre o domesticado. O feroz sobre o dócil. Não suportando mais
tamanha dor, em um dado momento caí ao solo a me debater, a me contorcer
em violentos espasmos e convulsões, babando e transpirando em profusão,
como se fora um portador de epilepsia ou um endemoninhado que carecesse
de um providencial rito de exorção. Rios de lava incandescente corriam em
minhas veias.
Mas a tortura não se prolongou por mais tempo. Já metamorfoseado em
outro ser, ergui-me num salto testando a capacidade das minhas pernas
vigorosas. Erguendo os olhos febris, perscrutei através das ramagens dos
galhos altos dos pinheiros os contornos de uma lua desnuda e perfeita,
testemunha única da minha transformação. Como é inerente aos da minha
espécie, senti-me impelido a reverenciá-la e libertei o aulido primitivo que
estivera reprimido em minhas entranhas desde que eu viera ao mundo. Sim, eu
era um lobisomem de quase três metros de altura e de invejável envergadura.
Eu era um Ookami. O segredo da estratégia do lobo, aquela que os meus
ancestrais recorriam em momentos de dificuldade, tinha enfim se revelado. E
tive a certeza de que aquela era a hora da verdade à qual meu pai se referira.
Sentidos apurados, eu podia agora sentir mais intensamente e em toda
sua plenitude a natureza à qual de forma instintiva me integrava. O cheiro da
terra úmida, o farfalhar das folhas, o ruído das águas escorrendo por entre as
pedras do leito do riacho… Comecei então a estudar o território, a familiarizar-
me com sua topografia, a definir seus limites.
Orelhas e focinho em alerta, captei claramente em meio à balbúrdia de
sons e odores um pedido silencioso e desesperado por socorro. Um pedido
que não saíra de nenhuma garganta, mas que se fazia claro à minha nova
percepção. O metabolismo do aminoácido aromático e a tensão arterial
provocada pela adrenalina dele derivada que secretava uma presa acuada
diante de um predador me fez enveredar em alta velocidade pela mata
fechada. O chamado procedia do outro lado da montanha, e se eu tivesse que
seguir a estrada vicinal para chegar até lá, mesmo desenvolvendo uma
velocidade surpreendente para os padrões humanos, demonstrar-se-ia inútil.
Galhos, troncos, espinhos, pedras, ravinas... Aquele era o meu meio, o
habitat do lobo. Nada havia que pudesse me impedir de chegar aonde me
propunha. Sem perda de tempo fiz meu próprio atalho com desenvoltura, e em
questão de minutos alcancei um descampado que na época das férias
escolares servia como área de camping. No centro da clareira, formando um
círculo, fachos de luz de faróis e o ronco ameaçador de motores. Uma gangue
de motoqueiros.
Eram Bosozoku. Uma praga no Japão moderno. Hordas de delinquentes
juvenis em suas motocicletas envenenadas que se juntam para transgredir as
duras regras da sociedade nipônica e praticar barbaridades, principalmente
contra trabalhadores imigrantes. É nesses grupos de desordeiros que a máfia
japonesa, a temível Yakuza, recruta seus membros.
Encurralado pela gangue, identifiquei um grupo composto de cinco
rapazes e duas moças. Estavam em estado de pânico, paralisados pelo medo.
Vestiam o uniforme cinza da fábrica de autopartes, o mesmo que eu usava
antes da transformação, e do qual eu já nem me recordava. Não os reconheci,
mas algo em mim dizia que eu devia ajudá-los.
“Filhos da puta!”, berrava a plenos pulmões um dos motoqueiros, com
elmo no estilo samurai, brandindo um taco de beisebol. De imediato
identifiquei-o como sendo o líder do bando. Vociferava em português. As
ofensas, mesmo pronunciadas com forte sotaque, me soavam familiares.
“Vamos lá, guerreiros! Vamos detonar os vermes!”, exortava colérico,
agora em japonês, os seus comandados. “Alguém tem que livrar o nosso país
dessa praga!”
A resposta do resto do bando ao chefe foi imediata. Entre urros, palavras
de ordem e gritos de guerra, tomados de coletiva histeria, eles ergueram suas
correntes e tacos e avançaram contra os trabalhadores indefesos. Nesse
instante eu intervim.
Do alto do pinheiro onde me encarapitara para observar melhor o campo
em que teria de lutar, empreendi um salto magistral, aterrissando diante do
comandante Bosozoku. Antes que ele pudesse atinar sobre o que estava
acontecendo, testei o fio das minhas garras arrancando-lhe com um só golpe a
cabeça. Com potência e precisão o golpe atirou-a longe, enquanto o corpo
decapitado prosseguiu, ainda por alguns metros, pilotando a moto
desgovernada . E o consequente cheiro adocicado de sangue despertou meu
apetite.
A maioria dos motoqueiros que vinha na empolgação do ataque em
massa, ao se dar conta do que sucedera ao seu líder tentou, retroceder e
acabou se atropelando mutuamente, o que facilitou meu trabalho. De dois
deles, que por azar caíram justamente aos meus pés, dilacerei sem esforço
suas gargantas. O barulho do sangue gorgolejando, de ossos partindo, o odor
nauseabundo dos excrementos vazados de seus corpos eviscerados, os gritos
alucinados de pavor, tudo me excitava enormemente.
O espírito kamikaze de lealdade de alguns daqueles caras para com o
líder fazia com que não se importassem em se atirar em direção à morte certa,
desde que pudessem infligir algum dano ao oponente. Um, de notável
habilidade com sua máquina, empinou-a de forma a me atingir. A pancada forte
da roda dianteira da moto contra o meu costado fez com que eu perdesse o
equilíbrio e dois outros aproveitassem para me acertar. A corrente com que um
deles me chicoteou enrolou-se no meu braço e eu o puxei para mim. Dava para
ver o pavor instalado em seus olhos miúdos. Deu para sentir a urina
encharcando as pernas do seu jeans apertado. Este eu tomei pelos pulsos, um
com cada garra, e abri seus braços, aproximando o seu rosto das minhas
mandíbulas. Então os estiquei até que a pele se rasgasse e os ligamentos se
rompessem, desmembrando-o.
Antes que começasse a debandada geral, avancei como um raio sobre os
restantes distribuindo dentadas a torto e a direito, rachando cabeças,
massacrando-os, estraçalhando-os. Fez-se o inferno na Terra. O às da
motocicleta foi o último que liquidei. Apanhei-o antes que alcançasse a estrada,
onde talvez levasse vantagem sobre mim, e prendi-o pela nuca como é comum
aos lupinos e felinos quando carregam seus filhotes. Era um rapaz musculoso.
Ele seria o que primeiro eu devoraria. Fibras. Sua energia e sua juventude
haveriam de me revigorar.
Olhei em volta. Os trabalhadores já não estavam presentes para
testemunhar meu suculento repasto. Aterrorizados, tinham se aproveitado da
confusão para cair fora pedalando rapidamente em suas bicicletas em direção
à cidade. Aquelas cenas de terror e extrema violência tinham sido impressas
em suas mentes de tal forma que, até o dia em que desencarnassem, as
carregariam consigo.
Sozinho com meus doze cadáveres, deliciei-me mastigando com
voracidade incomum as suas melhores partes. Sangue e carne à vontade – era
tudo o que me importava naquele momento. E ai de quem ousasse me
interromper! Sentia-me absoluto, senhor dos meus instintos, embora, de algum
recôndito do meu turvo inconsciente, às vezes aflorasse um resquício de
náusea, de repúdio. O inevitável conflito com o meu lado humano, com o meu
outro Eu.
Ao terminar o meu farto banquete, por volta da meia-noite, espessos
edredons de nuvem agasalhavam a Lua. Roia ainda alguns fêmures quando o
meu sentido auditivo concentrou-se em uma voz suave e feminina que se
sobrepunha às tantas que a minha audição privilegiada conseguia captar. Esta
voz, porém, não vinha através de ondas sonoras, mas mentais. E dirigia-se
diretamente a mim.
“Irasahimasse, irmão Ookami! Seja bem-vindo!”
Desconfiado, agucei o olfato e varri os arredores com minha visão.
“É inútil, irmão. Concentre-se e entraremos em perfeita sintonia”,
aconselhou a voz. “Vamos, faça um pequeno esforço.”
“Quem...?”, respondi mentalmente.
“Muito bem! Aos poucos irás perceber que não é tão difícil dominar esta
técnica. Deixe que eu me apresente: Meu nome é Eucyon. Temos mais em
comum do que possa imaginar. Também sou uma mulher-lobo.”
“Pensei que eu fosse...”
“O único?”, riu-se. “És muito pretensioso. Saiba que somos uma grande
alcateia. Não estamos apenas no imaginário popular, na cultura de cada povo.
Fazemos-nos presentes em todos os continentes.”
“Todos sujeitos a esta... Maldição?”
“Se me permite, irmão Ookami, prefiro encarar como sendo uma benção.”
A minha misteriosa interlocutora então me revelou que estivera o tempo
todo a me observar, tendo inclusive elaborado um relatório completo sobre a
minha primeira transfiguração e o meu comportamento diante de uma situação
de risco. O objetivo era avaliar se eu realmente tinha potencial para fazer parte
dos quadros da organização que ela representava.
“Relatório? Organização?”, estranhei. “Uma organização composta por
lobisomens, você quer dizer?”
“Licantropos. Militamos na Green Death. “
“Nunca ouvi falar...”
“Porque não usamos do recurso da visibilidade como o Greenpeace, a
WWF ou os Médicos sem Fronteiras. Pelo contrário: acreditamos que quanto
mais invisíveis, melhor. Quanto mais acreditarem que somos apenas uma
lenda, uma supertição, menos complicado será atingirmos nossos objetivos.”
“Uma organização com fins ecológicos?”
“A natureza é o nosso meio. Cabe-nos retaliar e vingar as agressões por
ela sofridas. Não impomos a ninguém que se junte à nossa causa, mas lhe
estendemos o convite. Fique a vontade para pensar a respeito. Dentro de uma
semana entrarei novamente em contato. Ah, um conselho, se permite, antes
que crie sérios problemas para o decasségui Mario Yukio, cuja forma daqui
alguns minutos terá de reassumir: comece a limpar o terreno. Desapareça com
todo e qualquer vestígio que possa indicar a presença de um lobisomem nessa
região. Sayonara!”
A conexão com a minha preceptora interrompeu-se, e em seguida me vi
recolhendo os despojos daqueles infelizes, assim como suas motos e armas, e
atirando-os em uma fenda estreita e profunda aberta por antigo sismo no alto
da montanha. O forte odor de enxofre que emanava das águas termais que
corriam nas entranhas da terra disfarçaria o cheiro decorrente da putrefação.
Fi-lo com tanta naturalidade, que era como se já o tivesse feito outras tantas
vezes.
Horas mais tarde, de volta à minha forma humana, cheguei seminu ao
alojamento onde encontrei meus companheiros ainda em estado de choque.
– Mario! Pensamos que estivesse... – abraçou-me chorando minha amiga
Yukari, visivelmente abalada.
– Estou bem, Yuka – tranquilizei-a. Embora ela não me dissesse, eu
percebia a extensão dos seus sentimentos em relação a mim. O que eu ainda
não tivera coragem de lhe contar é que tinha me desgastado muito com uma
desilusão amorosa antes de vir para o Japão (um dos motivos que pesou na
minha decisão de partir), e que não estava disposto a tão cedo me envolver
emocionalmente com alguém.
– Os Bosozoku... A criatura...
– Já passou. Estamos todos bem agora, não estamos? Foi só um
pesadelo.
O restante do pessoal também estava aterrorizado e confuso com os
estranhos acontecimentos daquela noite. Alguns cogitavam até largar tudo e
embarcar imediatamente para o Brasil. Então lhes pedi calma. Sugeri que o
melhor a fazermos era dar por encerrado o assunto. Não que fosse tarefa fácil
apagar das nossas mentes aquelas cenas medonhas que os que os nossos
olhos tinham presenciado. Mas que devíamos tentar tocar normalmente as
nossas vidas, continuar, apesar de tudo, correndo atrás dos nossos sonhos.
Dos sonhos bons.
A semana seguinte foi de angustiante apreensão. Temíamos, e com
razão, que a imprensa ou a polícia pudesse levantar qualquer suspeita sobre a
o desaparecimento daqueles infelizes. Era como se o homem-lobo que viera
em socorro dos trabalhadores decasséguis fosse apenas fruto da sua
imaginação.
Aqueles dias eu andei meio avoado, disperso. No trabalho cheguei até a
ser advertido duas vezes pelo meu supervisor. Yukari e os outros colegas,
contudo, não estranharam, já que eles próprios ainda não se haviam
recuperado plenamente do choque emocional decorrente do episódio com o
lobisomem e os Bosozoku.
Depois de analisar minuciosamente, pesar os prós e os contras da
proposta apresentada pela Green Death, voltei ao bosque da Montanha da
Raposa. O fato de poder me transformar em lobisomem, a princípio me
assustara; mas por outro lado não tive dificuldade em aceitar a minha condição
de “diferente”. Era uma herança dos meus antepassados, um presente raro. E
eu não podia simplesmente renegá-la. Dispor deste dom e não utilizá-lo para
um propósito que não fosse apenas a autodefesa, como o fizeram meus avós,
me parecia uma atitude puramente egoísta. Então novamente assumi a forma
de lobo e contatei Eucyon para comunicar-lhe a minha decisão.
Minha preceptora é, na hierarquia da Green Death, uma fêmea ômega.
Seu forte é justamente a comunicação mental; e o seu papel dentro da
organização é identificar, recrutar, treinar e monitorar agentes. A sede da
Green Death está secretamente localizada em algum lugar nos Países Baixos.
Eucyon pertence a uma das cinco células terroristas no Continente Asiático e
sua base é a ilha de Okinawa, ao sul do arquipélago japonês. Não nos
conhecemos pessoalmente.
– Ficamos muitíssimo honrados que tenha aceitado, irmão Ookami.
Ontem mesmo, em reunião extraordinária, o Conselho da organização reunido
na Holanda fez comentários muito positivos em relação ao meu trabalho, ou
seja, à sua avaliação; o que significa que oficialmente você já pertence ao
quadro da Green Death. Dentro da nossa hierarquia você foi considerado um
homem-lobo em nível beta: o que o qualifica para atuar diretamente em
confrontos e ações de risco. Meus parabéns. Irashaimasse, irmão Ookami
Aquela mesma noite fui informado de que teria o meu batismo de fogo.
Fora-me confiada uma missão, e eu teria a oportunidade de finalmente mostrar
o meu valor. Em princípio fiquei pensando que tipo de desculpa daria para
poder me ausentar do trabalho, ou mesmo o que diria aos meus colegas de
alojamento. Mas o pessoal da Green Death era de uma eficiência ímpar e já
tinha pensado em tudo.
No dia seguinte, na fábrica, mal assinei o ponto digital, o supervisor de
serviços da área à qual eu pertencia, Senhor Murakami, chamou-me à sua
sala.
– Senhor Tsukimori, volte para o alojamento e arrume as suas coisas.
Precisamos que viaje imediatamente a Okinawa. Vai ficar uns dias por lá, a
trabalho.
Eu estava surpreso. Tratasse-se de um alto executivo, vá lá. Mas eu era
um simples peão naquela linha de produção, e além do mais um imigrante. Ser
destacado para prestar serviço em outra unidade daquela renomada fábrica de
autopartes, era algo, senão inédito, quase inimaginável. Pensei no mal estar
que causaria, na inveja que despertaria principalmente entre os funcionários
efetivos.
– Está ficando importante, hein garoto! – parabenizou-me Yukari quando
lhe contei.
– Nem sei bem porque me escolheram – disfarcei.
– Sem falsa modéstia, Mario – brincou Orlando, um paranaense já
veterano – De nós, você é que se vira melhor em japonês. Isso conta muito
para eles.
No dia seguinte ao desembarcar o sul do arquipélago, em Naha, capital
de Okinawa, Eucyon me esperava no aeroporto. Minha preceptora era bem
diferente da imagem que dela eu fizera dela. Era quase uma adolescente,
tingia o cabelo de azul e vestia-se de modo despojado, ao estilo das
mundialmente famosas lolitas do distrito de Harajuku.
– Tsukimori-san?
– Sim. Você deve ser...
– Meiko. Meiko Ogata. Seja bem-vindo a Okinawa – Curvou-se numa
reverência.
Os codinomes, ela tinha me alertado, não deviam ser usados em público.
Tomamos um taxi para um bairro localizado nos subúrbios da cidade
onde ficava o apaato que Meiko dividia com seu namorado, um americano alto
e ruivo. Clarence Sttummer era correspondente de um jornal do Havaí, e
também fazia parte da Organização. Era um lobisomem da categoria alfa, e o
seu codinome era Red Wolf.
– Prazer em conhecê-lo, irmão Ookami – saudou-me o americano
estendendo-me gentil sua mão forte. – Sou o responsável pelo planejamento e
pela logística da missão. Eucyon me falou muito bem de você.
– Obrigado. Vocês são muito gentis.
Mais tarde, depois do jantar, o simpático casal explicou-me em detalhes
que tipo de ação nós iríamos empreender e como deveríamos proceder.
– Há aproximadamente uma semana um navio de bandeira japonesa
procedente do porto de Kobe transportou secretamente, para uma região rural
do Timor Leste, um enorme carregamento de lixo hospitalar que seria
enterrado nas montanhas próximas a Dili, colocando em risco os mananciais
que abastecem aquele país. A informação, que nos foi passada dias atrás por
nossos alcaguetes, é que a família Yakuza Yamaguchi-gumi e um chefe
político timorense estariam por trás do negócio que há de lhes render alguns
milhões de dólares.
– O ideal seria que tivéssemos conseguido impedi-los antes que os
contêineres fossem desembarcados – reforçou Meiko. – No entanto, cremos
que ainda há tempo hábil para fazermos algo de modo a evitar a ocorrência de
um terrível desastre ambiental.
– É do nosso conhecimento que já saltou de paraquedas antes – disse-
me o alfa. E tive a certeza de que haviam vasculhado a minha vida como que
revira um armário.
– Uma vez apenas – admiti – Com uma turma de amigos em um
aeroclube no Brasil. Por puro exibicionismo.
***
O pequeno avião sobrevoou a cidade de Dili mas, contrariando as
orientações de pouso fornecidas pelo operador de tráfego do aeroporto, seguiu
em frente sempre margeando a costa, até se internar e tomar o rumo dos
montes Matebian, elevações consideradas sagradas pelos timorenses.
– Casa dos Mortos. É o que Matebian significa na língua nativa de Timor,
o Macassai – explicou Red Wolf enquanto eu me preparava para o salto –
Desça lá Ookami-san, e faça com que aquela corja se sinta em casa.
Entendi o recado e fiz sinal de OK.
Lá embaixo, em meio à uma densa névoa, visualizei duas magníficas
formações geológicas de aparência tumular. Matebian Mane e Matebian Feto.
Homem e Mulher. Era ali, no seio daquela natureza que me pareceu
extremamente hostil, que a minha capacidade seria posta à prova.
Dentro das coordenadas traçadas por meus preceptores, saltei de modo a
aterrissar em uma pequena clareira localizada no meio da selva. E, fora um
friozinho na barriga decorrente da ansiedade, não tive qualquer tipo de
problema.
Aterrissei em meio ao capim alto e, após recolher o paraquedas e ocultá-
lo sob as raízes de uma árvore antiga, retirei um apito do bolso e soprei forte
por três vezes. Era o sinal combinado para que o guia que me aguardava me
localizasse. Esperei ao longo de alguns minutos, atento a qualquer movimento
ou ruído, mas ninguém apareceu; então comecei a temer que tivesse entrado
numa fria.
A sombra que assomou qual uma projeção cinematográfica em meio à
neblina, não obstante fosse gigantesca e em princípio aterradora, pertencia a
um homem de baixa estatura, a um pequeno guerreiro descalço que se
materializou na minha frente.
– Senhor Lopes? – perguntou-me em perfeito português. A voz vigorosa
contrastando com a sua débil compleição física.
– Sim, sou eu – respondi.
Ele aproximou-se para que eu pudesse vê-lo melhor.
Era um homem de meia idade. As cãs e a barba grisalhas, a pele morena
e curtida, davam-lhe uma aparência venerável. Trazia a tiracolo um embornal
de lona e um velho fuzil com o número de série do exército português na
culatra.
– Olá, como vai? – cumprimentou-me estendendo mão magra e calosa –
Sou Isidoro de Souza. Ex-combatente da FRETILIN e veterano das guerras da
independência de Timor. Fui designado para guiá-lo ao Covil da Serpente.
– Imagino que conheça esta região como a palma da sua mão.
– Pode apostar – riu, abrindo um sorriso desdentado de gengivas
escuras. – Nasci aqui, aos pés dos Matebian. E aqui pretendo descansar meus
ossos, quando a velha da foice me chamar. Mas creia-me, senhor Mario, não
estou com pressa nenhuma.
Rimos. Isidoro era realmente um sujeito espirituoso e caiu de imediato
nas minhas graças. Achei que nos daríamos muito bem e que faríamos ótima
parceria.
Enquanto seguíamos rumo às montanhas o velho timorense me contou
episódios e fatos ocorridos ali durante a guerra, lembrando os companheiros
que haviam morrido defendendo a soberania de Timor Lorosae, sua pátria.
Explicou também que faríamos uma marcha por cerca de duas horas ao longo
de uma trilha escondida na mata, e que se tudo corresse conforme tinha
planejado chegaríamos ao nosso objetivo antes do anoitecer.
Por volta das cinco da tarde alcançamos uma garganta de quase um
quilômetro de extensão, que de tão estreita mal dava para passar um homem.
Felizmente sou de compleição delgada, mas mesmo assim tive de percorrê-la
inteira de lado.
Superado esse obstáculo natural, detivemos-nos finalmente no topo de
uma pedra enorme, uma espécie de mirante.
– O Covil da Serpente está logo ali embaixo – apontou para um ponto
invisível no meio da indevassável neblina. – Foi uma antiga base do exército
indonésio. E tem esse nome por causa da estrada sinuosa como uma cobra
que conduz até lá.
Isidoro, como eu já desconfiava, era um ômega, o único em todo o
território Timorense. Sem seu precioso apoio, mesmo para um agente
experimentado o que não era o meu caso, a missão se tornaria praticamente
inviável. O fato de falar português tinha pesado na minha escolha. Talvez
tivesse sido mesmo uma sugestão do meu guia.
– Aproveite para descansar, rapaz – sugeriu o veterano – Logo mais,
quando a neblina amainar e a luz dos faróis dos caminhões se fizerem visíveis
lá no rabo da Serpente, você vai até lá mostrar a que veio.
Retirando do embornal de lona um rolo de corda de fibra vegetal, firmou
uma das pontas com um nó no galho de uma pequena árvore arraigada nas
rochas da encosta, e atirou-a no precipício.
– É através desta corda que você vai poder descer até o próximo
patamar. Dali em diante vai ter que confiar nos seus instintos de lobo. Ficarei
aqui, mas estaremos conectados mentalmente. Caso precise de ajuda, não se
faça de rogado. Chame-nos, e eu e a Sonia Braga aqui iremos em seu socorro.
– Sonia Braga? – ri.
– É como eu a batizei – apontou para a carabina cruzada sobre suas
pernas – Um amor antigo, seu Mário. Um casamento. Não desgrudamos um do
outro.
Naquela bem-humorada comparação, pude comprovar o enorme poder
de penetração das telenovelas brasileiras mundo afora.
Às sete horas em ponto ouvimos finalmente o rosnado dos motores
enfrentando o desafio dos aclives. Vistos do alto, os fachos dos faróis dos
veículos eram como lâminas brancas de luz fatiando o fumo da cerração.
– Dois camiões trucados e dois veículos menores, provavelmente
servindo de escolta – observou Isidoro colocando a mão no meu ombro. –
Agora não há mais tempo a perder. Vá!
Encaminhei-me relutante à beira do precipício e coloquei as luvas de
couro e o equipamento de rapel. Lembrei-me de um tempo em que praticava
esportes radicais, e que vencer cachoeiras ou descer rios caudalosos em uma
boia era o meu maior desafio.
Deixe a mochila comigo – disse o guia. – Não vai precisar dela por
enquanto.
Desci cerca de dez metros por entre a bruma que se dissipava e alcancei
a plataforma inferior, o ponto que Isidoro me havia indicado. Ali, mesmo com a
temperatura despencando rapidamente, despi-me e me concentrei. Ouvi um
zumbido crescer dentro do silêncio e aos poucos fui entrando em sintonia com
o veterano timorense, que me orientaria na minha primeira transformação
induzida.
Isidoro com a sua experiência e conhecimento do terreno faria com que
as coisas se tornassem bem mais fáceis para mim. Em questão de segundos,
minha musculatura contraiu-se resistindo à expansão violenta da minha
estrutura óssea. Pelos grossos brotavam abundantes em minha derme, e o
tremor que agora tomava conta do meu corpo, eu sabia, não era provocado
pelo sopro gelado do vento sudoeste que assobiava nas ravinas e saliências
rochosas. Urrei, antevendo a imensa e inevitável dor que precederia a pujança
e o prazer incomensurável de me libertar da minha forma humana,
domesticada, assumindo a condição primitiva e feroz de um homem-lobo.
Imagino que tudo tenha ocorrido muito rapidamente. Apenas imagino,
pois a cada dolorosa transformação meus neurônios explodiam como se
fossem átomos em processo de fissão, e o meu nível de consciência
simplesmente inexistia.
Logo eu era um lobisomem novamente. Um lobisomem vigoroso e feroz
com garras afiadas e mandíbulas de aço. Com focinho alongado e olhos
raiados e brilhantes. Meus instintos superdimensionados agora captavam com
nitidez os sons mais discretos da montanha, o rumor das águas, o temor
noturno dos pequenos animais, o sussurro lamurioso das almas dos
combatentes que ainda vagavam por aquelas paragens. E também os cheiros.
Principalmente o odor fétido que exalava dos contêineres trazidos pelos
caminhões, e que infectava o ar puro dos Matebian.
“Jovem Ookami, o momento é este”, ouvi Isidoro me aconselhar dentro da
frequência estabelecida entre nós. “O elemento surpresa é seu trunfo. Os
facínoras estão fortemente armados, e confiam que ninguém se atreverá a
atrapalhar os seus planos. Agora vá, garoto! Ah, se puder, poupe os
motoristas. Eles serão úteis para conduzir os veículos de volta à costa.”
Não levei mais que dez minutos para alcançar a clareira rodeada de
palmeiras conhecidas por Tali Metan, onde ficava a base. Da escuridão, divisei
a silhueta dos dois homens que montavam guarda naquela velha construção
de arquitetura portuguesa.
Interpretando as conversas captadas pelos meus ouvidos, Isidoro
identificou-os como sendo de origem indonésia. O primeiro era gordo, falador e
cheirava a comida picante; o segundo era monossilábico e, nervoso, fumava
um cigarro atrás do outro. Não lhes dei chance para entender o que se
passava: avancei dentro das sombras sem que percebessem e, juntando suas
cabeças, bati uma contra a outra com uma força que eu ainda não dominava.
Um ruído de vasos que se quebrassem. A massa encefálica morna é uma
iguaria que não se deve desperdiçar. Considerei-a como a entrada para o
banquete que iria apreciar logo em seguida.
“Muito bem, rapaz!”, elogiou Isidoro. “Agora chega. Não deve se
desconcentrar nem deixar-se desviar do seu objetivo.”
Grunhi contrariado, mas as palavras do velho tinham o estranho poder de
me dobrar. Obedeci. Isidoro sabia que, uma vez despertado, o meu apetite de
besta interferiria de forma negativa prejudicando minhas ações, forçando a
saciedade.
Não se passaram nem dez minutos e um jipe de fabricação japonesa,
sem capota e com tração nas quatro rodas, antecipou-se ao comboio e entrou
na clareira. Nele havia três homens: um ao volante e os outros dois, um do lado
do carona e outro no banco traseiro, armados com rifles.
– Halo! – gritou um deles, ainda antes do veículo estacionar. –
Chegamos!
Não obtendo qualquer resposta, nem esperou pelos outros. Escalou
rapidamente os degraus antigos da velha base e empurrou com o cano da
arma a porta entreaberta.
– Ei! Se o vagabundos encheram a caveira de Arrack, podem se preparar:
o chefe vai comer vocês vivos!
Vivos? Exceto os pequenos insetos da noite, não havia mais ninguém
vivo lá dentro. A cena com que deparou jogou-o para trás como um coice de
uma carabina de grosso calibre após um disparo: à luz pálida e oscilante de
uma lâmpada a querosene jaziam os corpos inertes dos dois infelizes.
– Puta que pariu! – disse, enquanto retrocedia tropeçando nos pés, sem
se arriscar a dar as costas para quem ou o que pudesse vir da escuridão dos
cômodos contíguos.
Cruzando de volta o umbral da porta de entrada, trôpego, correu em
direção ao jipe, para junto dos seus companheiros. Contra o facho dos faróis,
porém, não os enxergava, embora acreditasse que estivessem ali.
– Fudeu! Algo deu errado! Os caras estão mortos – deu o alerta, o pânico
estampado na voz.
Suas palavras perderam-se no vazio como tiros a esmo, sem surtir o
efeito desejado. Logo ele descobriria que os que haviam permanecido no carro
também estavam igualmente mortos, desmembrados, os corpos cruzados um
sobre o outro. E teria a indigesta e angustiante certeza, talvez a última, de que
aquele terrível fim também lhe estava reservado.
Suas pernas curtas, antes mesmo que o cérebro alarmado emitisse
qualquer comando, arrastaram-no em tresloucada fuga estrada abaixo, mas
não o levaram muito longe: poucos metros à frente esbarrou em um largo
paredão de músculos sob pelos, contra o que reagiria disparando furioso a sua
arma – se pudesse. Gritaria também se uma garra de aço não o prendesse
pelo pescoço, apertando-o até quebrá-lo, emitindo um estalo seco.
O silêncio da morte pousou outra vez sobre a noite como uma enorme
ave de mau agouro.
“Bom trabalho, Ookami-san”, elogiou o ômega, através da frequência das
ondas cerebrais. “Primeira fase concluída com sucesso.”
Os caminhões basculantes, cada um com dois pequenos contêineres,
vencendo o cascalho da estrada estreita com os motores a rugir, apontaram na
entrada da clareira cerca de quinze minutos depois. O jipe estava lá. O motor
ainda se encontrava ligado, mas não havia sinal dos batedores nem dos
homens contratados para montar a guarda no local.
Entrementes, na retaguarda, os ocupantes do segundo jipe eram
surpreendidos pela minha forma escura e amedrontadora que desabara do alto
das enormes palmeiras que ladeavam a estrada.
– Meu Deus! – ainda teve tempo de pronunciar em vão a primeira vítima,
antes que o fio das minhas garras estraçalhasse a cartilagem da sua garganta,
matando-a instantaneamente.
O segundo homem, típico sicário arregimentado na periferia pobre de
Jacarta, mostrou ótimo reflexo ao sacar de uma pistola automática e disparar
duas vezes contra mim. Atirava bem, mas não pôde confirmar jamais se
conseguira acertar o alvo. Os estampidos de sua arma, contudo, serviram para
alertar os condutores dos caminhões de que algo não corria bem.
Aproveitando-se de um segundo de retardamento que representou a inútil
resistência oposta pelo seu companheiro atirador, o chofer do jipe abandonou o
volante e tentou escapar. Quando percebeu que eu, terrível predador, viria nos
seus calcanhares e o alcançaria, tentou uma última e desesperada cartada:
atirou-se no abismo. Talvez pensasse que partindo a cabeça nas pedras ou
quebrando o pescoço em consequência da queda tivesse uma morte menos
traumática.
Tiros. O alarme fora dado. E ainda antes de abandonarem as cabines dos
caminhões, os homens que as ocupavam já engatilhavam suas reluzentes
automáticas. Mera formalidade, pois confiavam ingenuamente que seu poder
de fogo pudesse defendê-los de minha ameaça inumana.
“Restam quatro”, informou o preceptor. “Posso vê-los através do binóculo
para visão noturna.”
Eu sabia o que fazer. Difícil mesmo ia ser controlar minha inata ferocidade
de modo a poupar a vida de dois daqueles infelizes. Galgando num salto
silencioso os contêineres do primeiro caminhão, pousei sobre os escolhidos
minha visão. O poder de vida e de morte daqueles homens estava nas minhas
garras. Os que saíam pelo lado do carona não veriam jamais a luz do dia
seguinte.
Gritos angustiados, lamentos sufocados, sangue gorgolejando, ossos
partindo, tiros esparsos... Uma batalha que mal começava já se dava por
perdida. Os sobreviventes, encurralados entre os dois veículos, não atinavam
por que a besta sanguinária, depois de trucidar com extremada fúria seus
desditados companheiros diante dos seus olhos, de repente, como se uma
mão invisível o impedisse, se contentasse apenas em tomar suas armas.
– Agora a parada é comigo, Ookami-san – disse uma voz, proveniente
das sombras. A contragosto, me afastei.
Carabina em punho, o timorense intimou os prisioneiros. Em japonês, pois
eram nipônicos. Com o pouco que sabia do idioma, consegui compreender sua
frase seguinte:
– Vocês vão ter que levar toda esta imundície de volta, seus bastardos!
Só por isso é que estão vivos. Alguma objeção?
Nem precisavam responder. Aqueles eram os termos da rendição. Não
havia mais o que se pudesse negociar além de suas vidas. Sob a mira do ex-
guerrilheiro e o meu olhar faminto, os motoristas desceram a serra em grande
velocidade, amedrontados, e mais preocupados em se safar daquele pesadelo
infernal que propriamente cumprir com o que lhes fora determinado.
Acompanhando o desenrolar da ação pelo binóculo, Isidoro assistiu
satisfeito quando, minutos depois, uma patrulha de capacetes azuis interceptou
ambos os veículos.
“Relaxa, garoto. Coma alguma coisa.”
Não me fiz de rogado e me atirei voraz sobre os cadáveres que jaziam
ainda mornos no solo poeirento da clareira, extraindo de ambos seus órgãos
internos. Corações e rins eram as iguarias que mais satisfaziam o meu paladar.
Mantendo uma razoável distância, Isidoro esperou. Sabia do perigo que
significava se aproximar de uma fera quando esta estivesse a se alimentar.
Como posteriormente me disse ele, homem-lobo não sujeito à metamorfose
corporal, não raro era tomado pelo desejo de provar de carne humana. Quando
isso acontecia, porém, seu estômago embrulhava de puro asco e ânsia; e a
vontade do homem acabava se impondo à vontade do lobo.
Meia hora mais tarde, a bordo de um dos jipes da escolta (o outro fizemos
deslizar para o fundo de um precipício, juntamente com os despojos do
infelizes mortos), Isidoro e eu, já de volta à forma humana, tomamos o rumo de
Díli, a capital timorense. Isidoro conhecia um atalho que nos permitiria evitar a
abordagem por parte dos soldados da Força de Paz. Se a estratégia falhasse,
no entanto, tínhamos um álibi preparado: eu seria um jovem fotógrafo e
ornitólogo com credenciais de uma importante revista brasileira, que ali me
encontrava com o intuito de documentar as belezas naturais do país; Isidoro
fora contratado como seu guia.
Entretanto tudo correu sem maiores incidentes. Quando o sol iluminou o
dia, pudemos avistar ao longe as palmeiras que ladeiam o aeroporto de Dili.
***
O Hotel Lorosae era uma construção moderna e aço e vidro situado na
Avenida Portugal, nas proximidades do porto. Era ali que Red Wolf e Eucyon
tinham marcado de me encontrar. A um quarteirão de distância, porém, Isidoro
parou o jipe no acostamento e se despediu.
– Daqui seguirás sozinho, meu jovem amigo – disse o velho timorense. –
O hotel é aquele ali adiante. Por precaução, é bom que não nos vejam juntos.
– Foi uma honra combater ao seu lado, comandante Isidoro. Obrigado por
tudo – falei, estendendo-lhe a mão.
– Não há de que, meu rapaz. Provaste ser um combatente de valor. Vá
com Deus.
Os sinos da Igreja Matriz de Díli dobravam solenes à distância,
anunciando a missa das seis horas quando avancei pelo saguão do Hotel
Lorosae. Sentia-me um trapo humano. Sono, fome, tensão haviam me
desgastado a tal ponto que não pensava em outra coisa senão em convencer
Meiko e Clarence a não embarcarem imediatamente rumo ao Japão.
Necessitava de pelo menos mais um dia na capital timorense, para recuperar
as baterias.
A magnífica manhã do dia seguinte veio nos saudar, três jovens
licantropos estrangeiros em uma praia na belíssima Ilha de Ataúro, localizada a
cerca de trinta quilômetros de Díli. A natureza ali, quase intocada, com suas
águas calmas e translúcidas, peixes coloridos, revoadas de pássaros marinhos
das mais diversas espécies e um povo simples e hospitaleiro, parecia de
alguma forma agradecer por termos atuado providencialmente em seu socorro
quando mais precisava, livrando-a dos tentáculos traiçoeiros que estiveram a
ameaçá-la.
~ * ~
Contato com o autor:
http://microrelatosdocheeko.blogspot.com
CANAVIAIS DE MORTE (Douglas Eralldo)
A criatura arrastava vagarosamente os pés carcomidos na estrada de
terra, fazendo uma poeira fina soltar-se do chão. Do rombo em sua barriga
desprendia-se um cordão de vísceras que se enrolava pelas pernas e caía ao
chão como um pequeno rabo que, arrastado, desenhava na terra uma linha
tortuosa. Sem qualquer coisa que fizesse sentido, a criatura grunhiu
chorosamente, como se fosse um lamento fúnebre por seu trágico destino.
Seus pares que a acompanhavam na marcha repetiram o grunhido. Ansiavam
todos por carne e água. Mas à frente tinham apenas o canavial e uma estrada
desértica e solitária.
Quando a criatura que ia mais a frente, tomada por seu instinto selvagem
de uma fera próxima à morte, parou a caminhada intencionando comer das
carnes dos outros caminhantes, o farfalhar vindo do meio do canavial distraiu-a
de seus planos.
E o que já era macabro ficou ainda pior.
Do meio da plantação, um gigantesco lobo de cor marrom saltou contra o
pequeno grupo. No salto, feito em uma parábola perfeita, com um único golpe
violento, a cabeça de uma das criaturas voou como uma bola acertada por um
taco de baseball. Com agilidade surpreendente, ficando sobre duas patas, o
lobo deu um giro em trezentos e sessenta graus, e enfiando uma de suas
garras no peito de outra criatura, arrancou-lhe o coração febril, cujo pulsar era
ritmado e lento.
Atordoadas pelo ataque surpresa, as criaturas que até dias atrás eram
homens e mulheres trabalhadores do canavial, giravam em círculos, tontas
pelo que acontecia. E sem qualquer remorso, o lobo, cujos olhos eram
estranhos e temerários, foi uma a uma retirando-as daquele meio termo de
sobrevivência, libertando as criaturas da febre mortal que os atingira.
Em menos de dois minutos de ataque, o lobo estava no centro de um
círculo de corpos decompostos e mutilados. Não havia restado um único
zumbi. Mas para não deixar vestígios, ainda como lobo, a fera arrastou os
restos mortais dos inimigos para um buraco, que logo depois foi entupido com
terra. Mesmo com fome, por via das dúvidas preferiu não comer nenhuma das
pessoas zumbificadas. Tinha medo de transformar-se num homem-lobo-zumbi.
Eliminado os vestígios dos corpos, o homem-lobo regressou novamente à
sua forma humana. Seus constantes problemas de memória deram-lhe o
apelido de Jay Bourne. Era um rapaz viril, de porte atlético, rosto quadrado e
olhos penetrantes. Os cabelos cortados no estilo militar conferiam a ele um
aspecto de força e violência, que quando humano não se confirmava, porém
quando licantropo, era um espelho de sua ira.
Com a missão ainda pela metade, Jay Bourne seguiu solitário e nu pelo
caminho de terra. A sua volta apenas o verde intenso do canavial que tomava
grandes proporções do terreno ondulado. E, muito distante no horizonte, o
cintilar brilhante do aço da pequena usina.
Enquanto caminhava na forma humana, o jovem lembrava-se de como
encontrara a Green Death. Sua cabeça parecia querer explodir a cada
despertar de suas noites de lobo, das manhãs nas quais acordava com o gosto
agridoce do sangue em seus lábios, e com o corpo dolorido pela metamorfose.
Foi buscando por respostas para sua identidade como lobisomem que o
rapaz, cujo nome sempre esquecia, acabou por ser encontrado pela Green
Death através da internet, pelo histórico de pesquisas que fazia na grande
rede. Desde então encontrou um objetivo para sua vida, quando soube que não
era lobisomem, mas sim um homem-lobo, e principalmente, quando foi alistado
para salvar o planeta de seus piores inquilinos: os humanos.
Foi na Green Death que recebeu treinamento, e o codinome Jay Bourne.
E também aquela primeira missão que serviria para comprovar seu valor
perante a organização ecoterrorista.
Na região sudeste do Brasil, a organização havia sido informada de que
usineiros estavam testando perigosos produtos químicos em seus canaviais,
poluindo as águas e o ar. Em alguns dos relatos, os estranhos elementos
estavam provocando uma febre mortal nos trabalhadores da região, colocando-
os num estado de inconsciência, e ainda pior, degenerando células e tecidos.
E Jay Bourne podia ver de perto o tamanho do mal que o veneno poderia
significar para o planeta. Não teria pena alguma de matar os usineiros e seus
capangas.
A menos de um quilômetro da usina construída no meio do nada, e
protegida por uma alta cerca de tela, Jay Bourne retornou a sua forma de
homem-lobo. Iria atacar com rapidez e força.
No entanto, os recentes problemas com zumbis e com trabalhadores sem
terra tinham feito os usineiros tomarem medidas de prevenção a ataques.
Havia homens armados para todos os lados, e nem bem o homem-lobo entrou
no campo de visão dos seguranças, uma saraivada de balas tomou o
ambiente. Jay Bourne esquivava-se de cada um dos tiros, mas não raro ouvia o
zumbir das balas passar raspando por sua pelagem.
Com as garras afiadas e cheio de ira, rasgou a tela e penetrou o
perímetro de segurança. Um dos capangas tinha-o na mira, porém Bourne deu
uma cambalhota lupina surpreendendo seu algoz, e num só golpe rasgou a
garganta do homem, de onde emanou um pequeno chafariz carmesim.
Por um instante Jay Bourne pôde contar com a incredulidade dos homens
ao ver o lobo de mais de dois metros e meio de envergadura. Eles esperavam
por zumbis zonzos, ou algum sem-terra de foice e facão. Jamais um lobo.
O homem-lobo aproveitou o pequeno instante de pânico para rasgar meia
dúzia de barrigas, e decepar outra dúzia de cabeças. Não tardou para as balas
retornarem o ataque, mas contando com a péssima pontaria dos capangas, um
a um foi tombando, deixando para trás um rastro de carne, ossos e sangue.
A fúria de Jay Bourne só fazia aumentar, e quando entrou no pequeno
escritório, encontrou os dois usineiros, com os olhos arregalados pelo terror
que presenciavam. Um deles, o mais magro, empunhava um revólver, no
entanto o tremor em suas mãos não o permitiria atirar.
– Se quiser pode ficar com tudo isto – disse o outro usineiro mostrando
uma pilha de dólares sobre a mesa. – Apenas nos deixe viver – falou
gaguejando, sabendo que a fera da qual projetava-se a assustadora sombra
podia compreendê-lo.
Mas Jay Bourne não deu mais tempo para súplicas. Rasgou o pescoço
dos dois num único golpe. Faminto depois de tanta ação, como vingança
saboreou cada pedaço de carne dos dois usineiros, deixando ao fim apenas os
ossos brancos como marfim.
A tarde caía sobre a usina, e os abutres se aproximavam atraídos pelo
cheiro de sangue e carne morta.
Jay Bourne retornou á forma humana depois de se certificar que não
restara mais ninguém vivo em todo o complexo industrial no meio do canavial.
Dos mortos, roubou uma calça, e um telefone celular. No aparelho discou um
número de nove dígitos.
– Pode mandar a equipe de limpeza – disse ele ao telefone. – Há muitas
pistas a serem apagadas.
Sentando-se num tronco caído no pátio, Jay Bourne apenas olhava os
corpos espalhados. De um deles havia roubado também um pacote de fumo e
papel. Enrolou o artefato e tragou a fumaça. Era sua ode particular por enfim
ser um soldado da organização ecoterrorista.
O Sol punha-se alaranjado no horizonte, e a fumaça do tabaco dançava
no ar, enquanto Jay Bourne aguardava o restante da equipe de limpeza da
Green Death. Seus pensamentos formavam um turbilhão de sentimentos,
sentindo na boca o gosto amargo da carne, e na consciência dezenas de
ponderações a respeito do que fizera naquele dia. As últimas horas tinham-lhe
rendido muitas novidades.
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Contato com o autor:
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YÄ FERAS (Leon Nunes)
I. A Visita
A intenção de Teo, membro da Green Death Brasil, era de preparar um
relatório completo acerca das ocorrências pós-embate que resultou na
carnificina ocorrida no final de 2009, alguns meses depois do ocorrido. Fora
sozinho tanto à Amazônia, onde teve contato com informações mais
relevantes, quando à Santa Maria Psiquiatria de modo a completar os dados
faltantes. Não era sua responsabilidade, todavia, minuciar os acontecimentos;
cria que com o relatório completo, uma vez obtido êxito, ocuparia uma posição
mais privilegiada na organização. Era mês de fevereiro, época de carnaval em
2010. A loucura, a confusão e a balbúrdia carnavalesca passavam longe
daquelas paredes, o que contribuía para o êxito de sua tarefa, seus objetivos.
Teo adentrou a sala do médico psiquiatra do S.M.P. com o crachá no
peito escrito “visitante”. Fábio recebeu-o com certa dose de entusiasmo e
desconfiança, por se tratar de um suposto colega de profissão mais novo e
também pelo assunto a ser discutido: o paciente do Quarto 239. Sem muitas
delongas, depois de uma rápida apresentação, Teo incontinenti pediu
autorização para falar com o paciente. Fábio, por seu turno, apesar de não ter
relutado à ideia, fez questão de explicar certas coisas antes de permitir a
entrada do colega; mal sabia que o verdadeiro motivo era outro, cuja
necessidade e urgência daquela simples visita não visavam estudos
acadêmicos.
– Ele balbucia coisas como “fera” – começou a explicar Fábio, um olhar
professoral. – Às vezes “dentes pontiagudos salivantes” – informou, enquanto
anotava o número do quarto em um papel. – “E.”, como o chamaremos para
preservar sua identidade, chegou em estado de choque, devo dizer. Coisas
desconexas – deu de ombros.
– Também sou um médico, embora residente. Minha área é a
psiquiatria, como bem sabe – disse Teo, velhaco. – Quando ouvi falar deste
caso, sobre eventos envolvendo licantropia, achei um campo muito rico para
estudos. Pensei que o fato de sermos colegas de profissão pudesse abrir
algumas portas. Enfim. Parece que ocorreu algo violento na Amazônia.
Digamos uma carnagem – disse, arqueando o sobrolho.
– Foi encontrado este livro com “E.” – falou Fábio, mostrando algumas
fotos tiradas no dia da chegada do paciente ao S.M.P. Estavam dentro de um
envelope pardo, que por sua vez repousava intocável dentro da última gaveta
da mesa.
– E o que significa? – perguntou Teo.
– “E.” não quis dizer – respondeu Fábio – Não exatamente. Não sei
explicar, mas captei se tratar de algo mais impalpável – falou, com um ponto-
de-interrogação na face. – Não é este o termo exato. Bem, de súbito atinei o
nome: Necronomicon – deu de ombros. – Não faço ideia do significado, ignoro;
também nada mais sei do caso.
– Eu me viro lá dentro. O resto eu faço sozinho. A pesquisa, digo.
Fábio conduziu Teo direto ao 239. Diante da porta com uma pequena
janela retangular foi possível ver o paciente de costas. Fábio fez questão de
frisar que, se precisasse de ajuda, bastava chamar. Viria rápido porque ficaria
próximo dali, no corredor. Teo não achava que precisaria de ajuda, saberia
lidar com a situação a seu talante. Assim que ficou sozinho com “E.”, o barulho
do ferrolho indicou que a porta fora novamente fechada.
O relato seria certamente algo que nunca se ouviu no mundo lupino.
II. REVELAÇÕES
– Um mês. Aqueles dentes pontiagudos salivantes – falou “E.”,
quebrando seu longo silêncio. – Os horrores. Horrores duplos, eu digo. A
Amazônia. Naquele sítio arqueológico. Na Amazônia. Descobrimos o que
aquela floresta tem... um portal. Para os Grandes Antigos! Eles viriam;
passariam. Nós os invocaríamos. Foi Sandro quem descobriu: o portal na
Amazônia. Poderes vindos de antes da juventude da Terra. Antes da própria
Terra; do Cosmos como ainda não conhecemos. YÄ! YÄ. Clamaríamos o
retorno dos Old Ones; Nyarlathotep o mais rumorejante... Eu já falei sobre
isso? Sobre ser Nyarlathotep o mais rumorejante? Onde estou? É Teo, não?
Eu sei. Queríamos o retorno de Cthulhu. Estávamos preparados para invocá-
los. Eu temi pelo resultado; fui o único. Sandro me convenceu, co’a ajuda de
Miguel, convidamos Joca também. Ele era louco por natureza. He-He. Louco.
Louco. Sandro, Miguel, Joca, Fabrício. Edgar, o temeroso. Eu temi. Eu. Temi.
Pelas nossas vidas; pela minha vida, minha sanidade! Foi um alívio ter saído
daquele lugar – falou “E.” batendo a mão na cabeça. – Alívio. Ter vindo para
cá. Mas ‘inda escuto rumores. Aqui. Na cabeça. É Nyarlathotep. Foi apenas um
contratempo. Oras! Apenas. Eu não tenho medo como você pode imaginar.
Você sente. Eu sinto. Você escuta? Eu escuto.
“Preparamos ainda em São Paulo nossa bagagem. Carregávamos
algumas peças de roupas para o caso de rasgarmos a que vestíamos. Dentro,
levávamos o livro. O Necronomicon. Que espécie de medo você acha que
senti? Pergunta tola. Pelo que vi, a ansiedade pelo que iria encontrar.
Confusão que não se apaga. Fomos dar no Aeroporto de Santarém, acho. Dali,
estradas ruinosas, esburacadas, precárias. Até o local determinado por Sandro.
Vi nele obstinação. Fui a marca do receio naquele grupo, do medo. Depois do
que ocorreu perdi completamente a noção da realidade; entrei em outra. Queria
ter esquecido. Queria... Como queria. Mas cada dia que passa, cada hora,
minuto, segundo... Tudo! Eu lembro. Eu quero esquecer. Eu lembro. Só o que
apagou de minha memória foi como cheguei aqui. Quanto ao resto... Eu já
falei? Horror. Fúria. Dentes.
“Havíamos transposto o Rio Amazonas num barco alugado; quase nem
cabíamos dentro dele. Foi o que deu o dinheiro. Não lembro a cidade em si;
quando chegamos ao local, quilômetros de uma área de extração ilegal de
madeira, preparamos o terreno, Joca nos guiava com a bússola. Cobrimos a
pedra com a alfombra e começamos nosso ritual. YÄ CTHULHU! Empunhei o
Necronomicon, pronto para abri-lo. A esta hora a voz de Nyarlathotep vinha
atravessando a mata fechada em derredor. O céu quis escurecer mais; ainda...
ainda era dia? O tempo era estranho. Quanto tempo se passou? Não sei.
Minutos? Não, eu não sei. Horas? Eu apenas estava lá para despertar. Queria
ver Cthulhu passar pelo portal... O que vi foi coisa feia. Coisa de outro mundo.
Dos filmes, dos livros. De um lugar da imaginação. AH! Eu gritei... gritei. Ouvi
os estalos, vi a maldita metamorfose. Fera. Os pelos. As feras.
“Eu não sei nem fiz menção de perguntar a Sandro como ele soube
daquele lugar, da pedra, um monólito inteiriço em meio à mata. Talvez a marca
que ele tinha, um queloide bastante grosso na palma da mão, explique. Ele
sempre disse que o sangue é o elo; eu nunca entendi. É Teo, não? Você sabe
do que estou falando? Sabe de Cthulhu? Dos Grandes Antigos? Da Amazônia?
Deste último com certeza. Sabe. Não sei como, mas sabe. Estávamos lá para
abrir o portal e achei ter visto a cauda de Dagon no Amazonas. Parecia um
sinal. De repente a aproximação dos homens-peixes... Nunca entendi direito a
relação. Não. Foi apenas impressão; o livro ainda estava fechado. Mas na mata
eles já estavam prontos. As Crias respondentes. YÄ! Era aquilo e nada mais.
Deveria, pelo menos. Sandro estava certo que o portal se abriria. No céu ou no
altar, não importava. Ele mesmo se doaria aos esfaimados Seres que haveriam
de ser despertos. O sono. A letargia daria lugar a uma nova realidade, porque
foi só com o sono Deles que nós, humanos, sobrevivemos e proliferamos e
vivemos. Daríamos de volta o que era Deles por direito; esta era a nossa ideia.
A ligação. O Necronomicon era a chave; nele estava o encantamento, o
chamamento cósmico do não-tempo. Me recuso a responder qual era o
conteúdo do livro. Não confio. Não. A tarefa era despertar... E esperar. Pelo
resultado. E baseado nos rumores e cicios de Nyarlathotep, seria imediato.
Seria. Dentes. Dentes pontiagudos salivantes.
“Sandro começou, diante da pedra, o ritual. Havia pousado uma faca
que trouxera sem que soubéssemos; pelo menos eu não sabia. Fui o primeiro a
escutar, mais ao fundo e quase imperceptível em relação ao som vindo de
Nyarlathotep, estalos na mata. Ele recitou. YÄ CTHULHU FTAGHN. Do céu o
guincho de Yog-Sothot escutamos... Eu era o único a continuar a ouvir os
estalidos anômalos na mata. Sem chances de serem os Mi-Go ou os Tcho-
Tcho. Sandro me admoestou. Me havia dispersado um pouco com os barulhos
e acabei esquecendo de fazer minha parte. Vamos. Disse ele. Vamos. Miguel.
Joca. Fabrício. Fizeram o mesmo, só que com o olhar. Eu abri o
Necronomicon, as páginas... As páginas já estavam marcadas. O sangue. Eu
falei que o sangue é o elo? Pois então. HE. HE. O elo. O elo. Joca foi quem
pegou a faca. Eu vi nos olhos de Miguel uma ponta de desespero.
“Sandro sentou na pedra coberta pela alfombra. Acho que não falei
sobre o cheiro do chão úmido e apodrecido que ainda sentíamos... Mata
fechada... Muito calor... Não sei exatamente como tudo aconteceu, porque,
afora o fato de eu ter sido o único a escutar algo anômalo na mata, foi tudo
muito... Rápido. Rápido! Mas foi possível ver perfeitamente, pedaço por
pedaço, sangue por sangue, o que ocorreu. Sandro vagarosamente deitou. Eu
recitava palavras profanas e Miguel posicionava a faca sobre o peito do
desmiolado Sandro. Vez ou outra ele a balançava levemente, quase solta na
mão. Quando cheguei na parte do chamamento, os olhos de Miguel reviraram
e suas mãos cravaram a faca com força, movidas por uma força que não se
explica. Incontinenti Joca e Fabrício, não mais eles, vez ou outra gemiam Yä,
esclera dos olhos também a mostra. Aquele era nosso objetivo a despeito de
meus medos internos.
“Eu senti uma agitação cada vez maior dentro daquela mata. Fui o único
que não entrou em transe porque não quis o sinal impresso em minha pele. De
todos eles, menos em mim – pôs a mão no peito ao falar –, vi o sinal da
Elderich. Brilhoso. Ofuscante. E dos céus, além das vozes e cicios e sussurros,
a presença maior dos Grandes Antigos. Aquela era a apoteose de Cthulhu! A
Amazônia nunca vira coisa igual! De toda forma algo aconteceu que também a
Amazônia nunca viu. Errado? Não importa. Aconteceu e somente eu vi. Vi
talvez porque em meus olhos refletiam meu medo interior. Deveria ter aceitado
o sinal, afinal.
“Sandro mal conseguia respirar, estava praticamente morto quando o
ataque ocorreu. Aqueles ruídos na mata, eu sabia que algo estava errado.
Somente eu escutei os ruídos. Eles aumentavam de intensidade. Os sons, os
estalos, o barulho da recomposição corpórea. Eu vi. Ouvi. Como se ossos
fossem esmagados; ou melhor, quebrados sem nem mesmo ficarem fora do
corpo. Não era os Mi-Go. Os Tcho-Tcho. Eu sabia que não. O ataque foi
repentino. Aquelas feras. Dentes pontiagudos salivantes. Os corpos; os pelos
dos corpos! Eram malditos cachorros grandes. Focinhos avantajados, dentes
pontiagudos. Dois deles, pelagem cinza. Eu... eu me acaçapei a um canto
enquanto... O barulho dos ossos triturados. De meus amigos, os ossos. O
ataque foi cruel. O primeiro abocanhou Miguel, diante da pedra que Sandro
repousava morto; arrancou o braço dele. O segundo pulou em cima de Joca.
Pulou. Eu disse que pulou. Pulou. Com uma força animal – ‘E.’ se encolheu um
pouco mais. – Dentes salivantes, pontiagudos... E os pedaços dos corpos de
Miguel e Joca no meio daqueles dentes pontiagudos e salivantes. Muito
sangue. Vi que eles estavam entretidos demais co’a caça. Me aproximei da
pedra usada como altar. Segurei firme o Necronomicon. Perdido, voltei à minha
posição de antes. Eles, mortos. Aqueles malditos lobisomens. O ataque. Muito
sangue; aquelas garras que prendiam os corpos que devoravam com uma fúria
inumana. A própria fúria, não sei se irracional, de bestas das selvas brasileiras.
Animais que faziam aquilo por prazer. Eu vi. Nos olhos. Deles. Os brilhos
daqueles olhos lupinos. Possuídos por irracionalidade dançavam uma dança
macabra. O ataque em si, as mordidas, a saliva. As bocas fedorentas. Os sons
dos corpos sendo devorados. Os barulhos daquelas bestas sobrepujando os do
rumorejante Nyarla. Maiores em meus ouvidos do que os vindos do céu.
Aquele banquete.
“Eu... não sei. Talvez não me viram. Não. Me viram sim. Em minha
cabeça um turbilhão de coisas passava. Era tanto medo que já não sabia do
que mais eu tinha medo. As bestas com pelos; as garras. Quando todos
haviam sido mortos... Sandro, mesmo morto, foi igualmente devorado;
experimentei o que talvez tirou de mim o pouco de sanidade. Acho que já
estava sem, por isso os escutei em minha cabeça. Quando todos haviam sido
mortos por aqueles lobisomens, ouvi deles um uivo que penetrou meu coração
e ficou gravado no fundo de minha alma para meu cérebro nunca mais
esquecer. Que eles existem, os lobisomens. Os lobisomens, eles existem;
acredite. Um uivo gélido. Penetrou fundo em meu coração e na noite
emprestada que se havia formado para o retorno dos Grandes Antigos. Não
sei. Dizer que espécie de uivo, não sei. Se ouvi ou se estava em minha cabeça
fora do juízo tido como normal, nunca saberei. Apenas fiquei acaçapado.
Dentes pontiagudos salivantes. Dentes... feras. Lobisomens! E o ataque. Como
aqui cheguei? Dentes pontiagudos salivantes. Eu não quero mais ver – ‘E.’
disse, balançando um pouco o corpo acaçapado no canto, imitando aquela
noite. – Não quero.
“Isso foi tudo. Do ataque, pelo menos. Feio; muito feio. Os lobisomens,
feios. Um deles se metamorfoseou em humano. Eu o olhei sem querer olhar.
Aquele que devorara Joca. Não sei mais de Fabrício, talvez foi devorado igual
aos outros... Eu não vi, não quis ver. Aquele que devorou Joca. Uma... mulher.
Nua. Loura, forte. A mulher-lobo metamorfoseada olhou para mim. Olhos azuis
reluzentes, aqueles olhos profundos reluzentes. Ela... ela me disse. Me falou!
Sem voz. Em minha cabeça, sequer moveu os lábios sujos de sangue. Corpo
sujo do sangue de meus amigos. Aqui! Aqui! Em minha cabeça. A voz dela,
ainda em minha cabeça. Não vamos parar. Até o último de vocês. Não vamos.
Uma ameaça em minha cabeça; uma voz doce, mas cruel. Na sequência ela
voltou ao corpo lupino; os pelos. As garras. Você não acredita, não? Fera.
Dentes pontiagudos salivantes.
“Mais nada. Assim como chegaram, foram. Hipnotizados. Os dois.
Lobisomens; na forma. Não lembro – ‘E.’, ofegante, quase indo às lágrimas
pela lembrança. – Acho que foi porque eu carregava o Necronomicon... Algum
encantamento... Me salvou... Não sei. Como cheguei aqui, não lembro. Eu senti
quando você chegou. Quem... Agora entendo... Quem? Você. Agora eu sei...
Você é um deles! A fera! As feras! Saia daqui! O ataque. Dentes pontiagudos
salivantes. Muito sangue. Sai. Sai! Eu sei o que você é! Não abriu a boca um
só instante para falar. Sai lobisomem! – ‘E.’, agressivo, gritou, cuspindo saliva;
uma careta de horror no rosto. – Sai. Sai. SAI! – ‘E.’ continuou aos gritos,
encolhendo-se mais, cabeça encaixada nos joelhos. – Fera. Fera. Presas. Os
dentes. Dentes pontiagudos salivantes e sangue. Sai!
III. REPORTE À GREEN DEATH
Tudo leva a crer que a testemunha de fato encontrou nossos agentes
Berserkr e Fênix. O único sobrevivente sustenta que chegaram à Amazônia
para a prática de rituais, a princípio nada que fosse ofensivo à região senão a
eles próprios. Nossos colegas da Green Death acabaram por confundir aquele
grupo de jovens suicidas aos desflorestadores na prática ilegal de extração de
madeira. Talvez o fato de terem-no deixado vivo esteja ligado ao nefasto livro,
o tal Necronomicon. Não é possível comprovar, todavia – do livro apenas uma
foto foi possível ver, o artefato sumiu depois do ocorrido. Não é sabido
exatamente se foi ou não usado algum encantamento; convém, apesar de algo
menor, considerarmos as possibilidades sem, contudo, as contestar. Tal
reporte comprova, sem deixar dúvidas, que o grupo da testemunha-
sobrevivente não foi o responsável pela morte de Berserkr tampouco pelo
estrago da missão passada. E a despeito desta confusão, nada atravancará
nosso caminho. Nenhum empecilho cessará a continuação de nossas
atividades. O ideal não feneceu. Nossa batalha continua.
~ * ~
Contato com o autor:
http://leonnunesescritor.blogspot.com
BRIGA DE CACHORRO GRANDE (Alastair Dias)
O homem encarou a bela jovem que entrava na lanchonete. Era capaz de
detectar aquele odor peculiar dos lobos por baixo do perfume que ela usava;
uma mistura de vida e de artificialidade, de um espírito selvagem preso no
corpo de uma mulher sedutora e independente. Ela não era como os outros,
abençoados com o dom de mudar de forma, de ser uma criatura tão perfeita
que poderia decidir sobre a vida dos homens que cruzassem seu caminho
agitado. O cheiro dela era de impureza, de hormônios tão humanos quanto os
daquelas pessoas que estavam ali ao redor, tão frágeis e fúteis quando o mais
insignificante dos seres rastejantes. Captados pelo raro espécime, traços
psíquicos fortes, alarmados, frases que não eram de sua mente, apesar de a
garota se esforçar para contê-los em sua mente.
Ele sorriu, desviando o olhar para a rua movimentada lá fora, arranhando
de leve a mesa de madeira, escutando os passos da ômega a se aproximar.
Era capaz de detectar as batidas cardíacas aceleradas; ela o temia tal como
uma presa teme um caçador, mas havia certa confiança, algo ímpar até aquele
momento para sua experiência com aquela raça orgulhosa de sua natureza.
Algo lhe proporcionava segurança, e era por isso que estava ali.
O primeiro encontro com Cassandra foi uma semana antes, durante um
encontro entre ele e o Green Death. Se não fosse o pedido dela, aqueles três
licantropos estariam mortos por ousar se meter em sua área de atuação. Um
brilho em seus olhos azulados o deteve, e aquela súplica mental foi tão intensa
que o coração do homem-cão se condoeu de alguma forma; farejando-a antes
de partir, dedicou algum tempo a observá-la. Não tardou para que ele quisesse
conversar com ela.
“Encontre-me na lanchonete perto de um canil, daqui a dois dias!”, pediu
ele, ao passar pela ômega numa manhã. “Vá sozinha ou matarei você e quem
mais a acompanhar!”
O convite foi aceito.
– Sente-se, por favor! – pediu o homem, cuja cabeça careca reluzia pela
luz da lâmpada do estabelecimento, fitando-a com gentileza. – Juro que não
mordo moças lindas.
Seu sorriso foi estranho e assustador, mas Cassandra não identificava
qualquer sinal de segundas intenções. Hesitou um pouco, mas atendeu ao
pedido.
– Por que implorou para que eu não matasse seus companheiros, que me
atacaram naquela rinha? – surpreendeu-a, pondo as mãos grandes perto das
dela, que as recolheram para junto de seu busto. – Era meu direito natural
revidar e me vingar, contudo você me impediu. Por quê?
– Eu o impedi?
– Sim. Eu não pude atacá-los, e tive de sair correndo. Você me impediu
de fazer aquilo que venho fazendo há anos com quem se mete em meu
caminho.
A jovem ajeitou os fios negros que caíam sobre seus olhos, surpresa por
aquela revelação tão brusca vinda de uma criatura desconhecida e perigosa.
Os relatórios dos encontros com aquele monstro que se denominava Licurgo
eram todos repletos de sangue e crueldade; mortes de homens-lobo ocorriam
quase sempre, e quem escapava era mutilado sem piedade, servindo de aviso
sobre a força descomunal e descontrolada do único espécime de uma nova
raça agressiva e indomável, que nutria ódio tanto pelos humanos quanto por
aqueles que eram seus semelhantes.
– Eu apenas queria que não os matasse... só isso – respondeu ela, com a
voz suave.
– Muitos clamaram para viver, e eu os abati sem pestanejar. Não me
envergonho em ter matado mulheres mais poderosas do que você, as quais eu
nunca estuprei, ao contrário do que pensam os da sua espécie. Não sou um
monstro. Você, entretanto, salvou todos eles. Consegue entender o motivo de
eu a querer hoje aqui?
Cassandra balançou a cabeça em negativa, sem compreender aquela
conversa.
– Sempre achei os lobisomens tão parecidos com os homens que me
distanciei justamente de quem era tão próximo a mim – começou ele, com
seriedade. – Matei muitos de vocês sem perguntar seus motivos, suas causas;
eu era apenas levado pelo desejo de provar ser o melhor, ser acima de tudo
aquilo que eu odiava, de pertencer à raça humana. Compreende?
– Acho que sim – respondeu a garota, buscando localizar nas ondas
mentais do interlocutor sinais de verdade ou de mentira.
– Ensine-me sobre vocês, sobre quem são e como surgiram. Quero
entender quem eu sou e o motivo de ser assim, uma fera meio homem, meio
cão. Por favor, me ajude!
Havia sinceridade naqueles olhos castanho-avermelhados. Nem lembrava
a besta tão robusta daquela madrugada que quase assassinou o seu irmão;
estava ali um homem confuso quanto ao belo dom dado pela vida, uma dádiva
que o tornava diferente, e ainda assim impuro. Era um cão assustado entre
homens e lobos, contudo disposto a se abrigar junto aos seus parentes puros.
– Como posso ter certeza de que não está me enganando? – questionou
ela, olhando-o com desconfiança.
– Não pode – respondeu Licurgo, levantando-se com firmeza –, mas juro
que não a matarei ou a seus companheiros num próximo encontro, pois é certo
de que nos veremos novamente.
Ele revirou o bolso da calça jeans e retirou algumas notas amassadas,
pondo-as sobre a mesa.
– Obrigado por ter vindo, Cassandra – concluiu, antes de se afastar.
“Foi um prazer imenso conhecê-la.”
A ômega ficou surpresa com aquela atitude. E sabia que havia perdido
uma oportunidade única e irrecuperável. Abaixando a cabeça, pensou nas
longas explicações que teria de dar aos seus superiores.
***
“À esquerda, cinco homens drogados”, avisou Cassandra, fazendo o
irmão cessar os passos largos e silenciosos.
O grande homem-lobo de pelos castanhos e grossos moveu-se com
sutileza pela sombra, seguindo a direção indicada pela irmã, cujo poder
telepático era além do normal entre os ômegas, conseguindo ser precisa até
em mapear quantos humanos estavam ali. Não à toa, as missões das quais
participava eram aplaudidas por aqueles holandeses burocratas, e tal
habilidade preveniu o grupo quanto ao ataque do homem-cão meses antes.
Ele andou sobre as quatro patas, atento ao ambiente, afinal a jovem não
poderia prever ações, apenas alertar. Esgueirou-se com agilidade, enxergando
os alvos mencionados pela companheira; detectou os odores de tabaco,
cocaína, maconha, urina e suor em quantidades tão altas que causavam
repulsa. Aguardou o momento oportuno, saltando sobre os dois capangas que
estavam mais perto da moita alta em que se escondia; suas garras foram
precisas na degolação, e um movimento para frente estripou o terceiro, que
tombou de joelhos tentando conter as vísceras de escapar pelos cortes que
iam de um lado a outro do corpo, horizontalmente; o quarto foi abocanhado
pela cabeça, que explodiu em uma massa sangrenta de ossos quebrados e
miolos; e o último teve o pescoço torcido como se fosse uma galinha que
serviria de almoço numa data festiva.
“Oriente os demais!”, ordenou o líder da missão para a garota dentro de
um jipe, quilômetros antes do local, largando os corpos mutilados e subindo a
parede adjacente num pulo fenomenal.
“Certo”, respondeu Cassandra, antes de passar as coordenadas aos
outros dois agentes que seguiam para a rinha em direções opostas.
Ela estava explicando para a mulher-lobo como chegar a um ponto em
que um dos capangas transava com uma viciada que vendia seu corpo em
troca de drogas, quando um rastro forte e agitado a fez olhar instintivamente
em volta. Nenhum sinal de movimentação.
“Ele está aqui”, informou imediatamente, direcionando seus pensamentos
aos três companheiros em campo. “Tomem cuidado!”
Era evidente que a criatura estaria em uma rinha onde cães de todas as
raças se enfrentavam para o divertimento das pessoas sádicas que tinham
muito dinheiro. Aquela fazenda era bem situada, distante da cidade, longe de
olhos indesejados; o proprietário tinha muitos amigos na prefeitura e na polícia,
o que permitia fazer o que bem entendesse, desde tráfico de drogas a ponto de
prostituição, de rinha de animais a comércio clandestino de espécies raras –
muitas vindas de outros países – para colecionadores e caçadores que
pudessem pagar.
Ali era um terreno que interessava tanto ao Green Death quanto a
Licurgo.
Os sinais mentais dos quatro em ação eram fortes, entretanto somente
três estavam amedrontados pela presença do intruso. Com concentração,
Cassandra conseguiu contatar o homem-cão, questionando suas intenções.
“Jurei não matar você e seus companheiros”, retrucou ele, enquanto
escalava com rapidez uma árvore alta e farejava melhor o ar, localizando os
alfas ativos. “Costumo cumprir meus juramentos.”
Seus olhos ferozes vasculharam toda a área, fixando-se onde as luzes
eram constantes. Latidos, uivos, rosnados e a gritaria bestial de seres humanos
eram ouvidos. Emitiu um rosnado baixo, saltando para o chão, caindo de uma
altura de vinte metros apenas sobre as patas traseiras musculosas. O sangue
ardia em suas veias.
“Nada de ferrar tudo!”, orientou a ômega, interpretando as ondas
psíquicas que ele espalhava sem o mínimo controle. “Nossa existência deve
ser mantida em segredo.”
– Eu sei – resmungou Licurgo, ao mesmo tempo em que enviava sua
resposta. – Eu sei.
Correndo com fúria, surgiu entre três homens bêbados que gargalhavam
de forma patética enquanto tentavam urinar. Sua bocarra arrancou o braço de
um deles, que urrou de dor, sob os olhares surpresos dos outros; ainda
mastigando aquele pedaço generoso, agarrou os dois pelos pescoços,
cravando as garras negras e afiadas sem misericórdia, estalando os ossos e os
encarando com um prazer sádico. Estraçalhou suas gargantas, largando-os
apenas quando engoliu uma porção satisfatória de carne.
O som da música eletrônica invadiu seus ouvidos quando a ira diminuiu.
Pondo-se de quatro, moveu-se cautelosamente rumo para o casebre perto do
rio; ali ficava todo o equipamento que produzia a eletricidade da fazenda. Valeu
a pena aquela visita investigativa durante o dia sob o pretexto de ser uma
pessoa em busca de trabalho, embora as súplicas dos animais presos quase o
fizessem atacar logo e pôr fim a tudo aquilo.
“Onde estão seus amigos?”, perguntou para a ômega, conforme se dirigia
para o local em que estava o gerador de energia. “Eu não consigo detectar os
pensamentos deles.”
“Não confio ainda em você.”
“Ainda acha que quero matá-los?”
“Você já tentou isso uma vez.”
“E tentaria de novo, quando vocês chegaram meia hora atrás, num jipe, e
minha mente estava bloqueada. Eu estava sobre um galho, observando. Vi
quando aquele sujeito magro se insinuou para você e sei o que pensou quando
identificou os pensamentos e sentiu os hormônios dele. Eu poderia tê-los
matado facilmente em qualquer momento, mas preferi não fazer isso.”
Cassandra arfou, pega de sobressalto.
“Então, ainda acha que quero matá-los como farei com cada humano que
encontrar esta noite?”, indagou ele, enquanto socava o peito de um homem
armado com uma carabina, afundando seus ossos torácicos.
Tomando a arma da vítima, golpeou na cabeça um que saiu do casebre
que vigiava, nocauteando-o. Entrando na casa do gerador, desviou de um
disparo com destreza e arremessou uma ferramenta no meio da testa do
atirador, que caiu com o objeto transpassado em seu crânio, estremecendo.
Ele começou a destruir a fiação, desligando toda a energia elétrica. Sem perder
tempo, saiu dali, seguindo em sua ânsia por sangue.
O local em que ocorriam as lutas de cães era no outro extremo, num
casarão reformado especialmente para aquela finalidade. Era um espaço
amplo, comportava até mil pessoas ao redor de uma rinha circular cercada por
grades. No piso inferior, como um calabouço, estavam os animais e os
treinadores; seis portinholas e uma porta maior davam acesso ao ponto em que
as pobres criaturas se enfrentavam, sendo que as primeiras eram exclusivas
aos combatentes e a outra ao responsável em retirar o derrotado, que em geral
era morto e incinerado.
Os três agentes do Green Death receberam a mensagem da ômega com
desconfiança, pois era muito suspeito alguém com um histórico de assassino
de homens-lobo agora querer ajudar. Trocaram breves informações entre si,
tomando cuidado para que a criatura não soubesse sobre o que conversavam.
Agiriam juntos, preparados para qualquer trapaça que pudesse acontecer.
“Ele está indo para a rinha”, avisou Cassandra, assim que o homem-cão
reportou seus passos. “O local está sem eletricidade, o que irá nos favorecer
por um tempo.”
Licurgo rosnou e uivou como um cão raivoso, atiçando os cachorros
cativos, que o imitaram. Foi uma algazarra ensurdecedora e medonha, que fez
os frequentadores se entreolharem com hesitação. Alguns disparos bastaram
para todos correrem para fora, apavorados.
De um lado a outro, como anjos da morte, as feras espalhavam corpos e
sangue, desmembravam e estripavam, escapando dos tiros como se fossem
fantasmas oriundos do inferno, bebendo e comendo indiscriminadamente. O
horror de olhos desacostumados com aquelas bestas híbridas logo era
substituído por outro, o de ter parte de seus corpos arrancados por garras e
presas furiosas; os mais afortunados, contudo, morriam sem conhecer seus
assassinos sobrenaturais, sem testemunhar os olhos rasgando as trevas.
As pessoas fugiam em carros e motocicletas, apenas ouvindo gritos de
ordem e rosnados ferozes, disparos e gritos horrendos de quem encontrava
seus destinos de maneira grotesca.
Os homens-lobo e o ser canino se encontraram dentro do casarão,
encarando-se como oponentes. Todos cobertos de sangue e vestígios de carne
e entranhas, ofegantes e poderosos. Três lobos, um castanho e dois negros, e
um cão, muito semelhante a um rottweiler, embora maior do que os seus
parentes. Inimigos naturais que se viam depois de algum tempo ou raças
distintas que possuíam uma origem comum?
***
Ninguém no Green Death acreditava que o famigerado Licurgo estava na
sala com Loki, conversando calorosamente sobre sua união ao grupo. Por
precaução, seis agentes estavam na sala de espera, aguardando qualquer
sinal de ameaça; entre eles, a responsável por aquela façanha, Cassandra,
cuja habilidade extraordinária de telepatia com licantropos e humanos se
mostrou capaz de domesticar aquela fera canina feita de músculos, fúria e
desejo vingativo.
Na manhã em que o grupo retornou com Licurgo, os olhares foram
inevitáveis, e a ômega pôde identificar cada rastro mental. Ódio, surpresa,
admiração, frustração, decepção, curiosidade, dor. Eram tantas emoções
reunidas que ela precisou bloquear sua mente para aquilo tudo ou
enlouqueceria; era como se a presença do homem-cão despertasse neles
instintos primitivos e selvagens, contaminando sua natureza lupina, aquilo que
eles tanto valorizavam.
Mas, para o homem loiro e sorridente, que os parabenizou pela missão
tão bem executada e a chegada do provável integrante da causa, havia apenas
motivos para comemorar. Ele cumprimentou um a um, e seu aperto de mão foi
firme quando tocou a mão grande do espécime raro.
– Então, você é o quase lendário Licurgo, o “caçador de lobos”? –
questionou o líder das operações da organização em terras brasileiras, com um
sorriso desdenhoso.
– E presumo que seja você um deus da mentira – retribuiu o careca, sem
emitir qualquer expressão que demonstrasse estar brincando –, afinal, você se
considera digno de ser chamado de Loki, não?
Houve alguns risinhos, mas os olhos verdes e sombrios de Loki os
abafaram.
– Conhece algo de mitologia nórdica? – estranhou ele, ainda mantendo o
sorriso, embora com resquícios de irritação.
– De trapaceiros e mentirosos também – retorquiu Licurgo, sem alterar
seu tom de voz ou o modo de pronunciar aquelas palavras audaciosas.
Um esgar brotou da face do homem, e muitos acharam que ele avançaria
contra aquele atrevido. Contudo, com certa calma, pediu que o convidado o
acompanhasse até sua sala, onde acertariam alguns detalhes cruciais.
E já havia se passado meia hora desde que ambos se fecharam; parecia
que a conversa estava sendo produtiva e interessante, pois nenhum membro,
alfa, beta ou ômega, detectou o menor sinal de estresse ou alteração que
representasse alguma desavença, embora houvesse um aumento de
hormônios e elevações de pensamentos, mas tão confusos que era impossível
distinguir a quem pertenciam.
Quando saíram, foram observados com expectativa por todos, que não
puderam disfarçar a curiosidade quanto ao resultado de toda aquela novela
que se tornou os encontros e confrontos com aquele espécime há anos. Muito
se falava entre os licantropos a respeito do “cachorrosomem”, como ele
pejorativamente passou a ser chamado por quem desdenhava de sua natureza
canina.
– Bem, quero que saúdem o agente Licurgo! – exclamou Loki, com
orgulho no tom de voz, tocando no ombro esquerdo daquele homem tão alto e
forte, que emitiu um som gutural baixo e mantinha-se sério. – Quero que vocês
mostrem a ele o que for preciso, preparem-no quanto ao regulamento e o
treinem para que possa estar apto para as missões futuras!
“Parabéns, Licurgo!”, pensou Cassandra, concentrando-se para que
apenas ele recebesse a mensagem.
“Fiz por você, moça”, foi tudo o que o novo integrante respondeu.
Os dias seguintes foram de trabalho árduo para os treinadores. Não tanto
por terem de ensinar tudo ao novato, que apresentava dominar como poucos
seus pensamentos, isolando-os a ponto de que ninguém mais acessasse sua
mente, exceto quem ele permitisse; a ômega que o recrutou era capaz de
sondar parte de todo aquele oceano de recordações e vontades, mas era mais
complicado decifrar e repassar ao seu superior, que parecia cada vez mais
fascinado com os avanços do homem-cão.
O problema maior da criatura era controlar tanta impulsividade, o que
explicava os ataques cruéis e sangrentos aos agentes do Green Death quando
se encontravam. Com a ajuda certa, no decorrer do treinamento, ele foi
aprendendo sobre a hierarquia, a obedecer ordens e a agir em prol do grupo.
Passeando pela madrugada através de ruas desertas e matas densas, onde
caçava pequenos animais com a alcateia, Licurgo foi adquirindo os hábitos
lupinos, voltando ao estado puro e original. Entretanto, o motivo para sua
aceitação em ser recrutado ainda era um mistério que precisava ser
desvendado, afinal a suspeita ainda pairava sobre ele.
– Os lobos são superiores aos homens – falou um dos agentes, no
refeitório, para três amigos, quando a jovem ômega e o recruta passaram por
perto – e aos cães também, claro.
Todos riram, exceto os dois que iam transitando com suas bandejas.
“Ignore-os!”, pediu ela, percebendo o olhar frio do outro para o quarteto.
“Sim, vou ignorar esses filhos da puta que se borram de medo quando me
veem como realmente sou”, concordou o homem-cão, permitindo aos quatro
engraçadinhos captar seus pensamentos.
Um deles fez menção de se levantar, mas ao encontrar os olhos
provocativos do outro, sentou-se de novo.
– Eles são uns idiotas – falou Cassandra, quando eles se sentaram ao
redor de uma mesa desocupada. – A maioria aqui tem orgulho de ser homem-
lobo, sabe? Eu, infelizmente, nasci uma ômega, para a desgraça de meus pais.
– Isso é o que a torna diferente desses patetas, moça – consolou Licurgo,
quando viu os olhos azulados dela se encherem de lágrimas. – Se você fosse
uma alfa ou uma beta, eu a teria matado há muito tempo. Mas, como nunca
conheci alguém assim, uma ômega, dei uma chance a seu povo.
– E o que tem achado de nós? Mudou algo em relação ao que pensava
sobre a gente?
– Bem – começou ele, cortando um bife com paciência –, há muito
lobinho metido aqui, mas me parece um bom grupo, bem organizado e treinado
para todos serem os melhores. Apenas não sei se me aceitariam como sou.
– Por que acha isso?
Ele olhou em volta, fixando o olhar no quarteto que se mostrou
preconceituoso.
– Não acho – concluiu. – Tenho certeza, moça.
E levou o pedaço de carne mal passada à boca, mastigando-o com
calma.
***
Licurgo agarrou o infeliz pelo pescoço, quebrando os ossos como se
fossem gravetos secos. Virou-se para o homem encolhido num canto da sala,
tremendo de medo e balbuciando palavras sem sentido. Andou até ele,
abaixando-se e encarando-o com seriedade.
– Bom dia, doutor – sussurrou, carregando a voz com um tom rouco e
animalesco, apesar de estar na forma humana. – Por que o medo de mim?
Do lado de fora do laboratório, os agentes do Green Death destruíam
todos os equipamentos, libertando os macacos, gatos, cães, ratos e pássaros
que serviam de cobaias. Pelos corredores havia corpos mutilados e muito
sangue nas paredes; o trabalho estava completo ali.
Um pouco antes, na forma humana, aquele homem alto e careca matou
com a força bruta seguranças armados, numa demonstração agressiva de que
era uma máquina natural perfeita, permitindo aos companheiros de missão
adentrar o prédio sem serem descobertos. Ágil e mortal, socava, chutava,
nocauteava e fraturava com uma facilidade impressionante, e um dos alfas na
missão parou por um instante vendo-o derrubar dois homens com golpes de
capoeira e afundar seus peitos com cotoveladas.
“Você gosta disso, não? De triturar ossos?”
“É a graça de ser um predador no topo da cadeia!”, riu o recruta, antes de
correr para uma sala, onde houve alguns disparos e mais mortes.
– O que vocês fazem aqui? – indagou Licurgo, olhando algumas
fotografias sobre a mesa. – Que tipo de experiências?
O velho cientista estava apavorado para responder.
– Diga, caramba! – urrou o homem-cão, agarrando o pobre humano e o
jogando sobre aqueles papéis e fotografias. – Não posso matá-lo sem saber o
motivo!
A testa da vítima se chocou com o aço frio da mesa. Foi uma dor intensa.
– Diga-me o que vocês faziam aqui! – tornou a gritar o agente,
ensandecido, esfregando o rosto do cientista em todos aqueles arquivos.
– Eu... eu... – atrapalhou-se o infeliz.
Os demais adentraram a sala, testemunhando a cena. Com um salto
ligeiro, um deles tentou dar cabo da vida do velho, contudo o homem-cão
antecipou o movimento, pondo-se entre os dois, esticando a mão espalmada
sobre o peito peludo do colega.
– Se não quiser ter o peito arrombado e o coração removido, aconselho a
não ficar entre mim e este homem – avisou ele, num sussurro gutural.
“Você nos deve obediência, cão!”, rosnou outro licantropo, caminhando
até a mesa. “Portanto, deixe-nos decidir as coisas por aqui.”
– Só quero saber o que eles estavam fazendo aqui.
“Loki nos informou!”, apontou o homem-lobo detido pela ameaça do ser
canino.
– Não acredito nele, e deviam me ouvir quando digo que há algo errado.
“Chega disso!”
O líder da missão empurrou os dois para o lado e segurou o humano com
ambas as mãos, erguendo-o e levando-o para fora, onde o matou de forma
dolorosa.
“Você deve explicações a Loki por sua desobediência”, sentenciou o lobo
ruivo, saindo da sala, acompanhado pelos demais.
Licurgo rosnou, voltando seus olhos castanhos para toda aquela
papelada. Algo ali o intrigava. Era como se algo o alertasse de que havia
alguma coisa estranha acontecendo, uma peça fora do lugar ou faltando. Não
acreditava nas explicações dadas pelo seu superior sobre aquele local ser um
laboratório clandestino que modificava os genes dos animais em busca de uma
suposta cura para alguma doença. Voltou a rosnar, caminhando em direção a
saída.
Definitivamente, não confiava naqueles lobos.
***
Loki havia lido o relatório e interrogado seus agentes, além de ter acesso
aos documentos das pesquisas realizadas no laboratório. O único que se
negou a dar explicações foi o homem-cão, que se dirigiu ao seu alojamento
assim que chegou, ignorando os olhares severos de seu superior ou o de
repreensão dos colegas; era um cão orgulhoso o bastante para se recusar a
encarar aquelas criaturas lupinas que se achavam superiores a ele, mas que
podiam ser facilmente mortas.
– Preciso saber o que aquele vira-lata anda pensando – disse ele, fitando
a ômega responsável pelo recrutamento de Licurgo.
– Mas, eu... Ele bloqueia seus pensamentos para mim, Loki.
– Sempre?
– Na maioria das vezes.
– Descubra alguma maneira de entrar na mente dele, ora! O importante é
sabermos a razão de ele ter aceitado nosso convite. Isso acalmaria nossos
companheiros, traria um pouco de tranquilidade. Ele a respeita, pelo que
parece, e isso é muito bom. Use isso a seu favor!
Cassandra moveu os olhos para o lado, entendendo o que deveria fazer.
Era algo repugnante, mas de alguma maneira inexplicável ela não receava ter
de fazer; apenas não se sentia preparada.
– Entendi – disse, por fim, respirando fundo. – Eu farei o que for preciso.
***
Licurgo estava quase dormindo quando a jovem ômega o chamou na
porta.
– Muito tarde para conversarmos? – perguntou ela, com a voz suave, ao
ver o rosto marcado por cicatrizes do homem.
– Não muito.
– Posso entrar?
Ele abriu mais a porta, confirmando.
De todos os aposentos, o do homem-cão era o mais simples: uma cama,
uma mesinha com um caderno e uma caneta, uma mochila com roupas que ele
trouxe no dia seguinte ao que foi integrado ao Green Death e o banheiro. Era
evidente que para aquela criatura rara no mundo o luxo não importava, contudo
mais evidente ainda era a forma como os demais o tratavam; ele era um
cachorro no meio de lobos, e nada mudaria aquela condição, nem mesmo se
representasse um novo passo na evolução da raça híbrida.
– Infelizmente não tenho cadeiras, mas pode se sentar na cama – falou
Licurgo, fechando a porta e indicando a cama.
Cassandra sentou-se, vendo o amigo se acomodar no chão frio mesmo,
olhando-a com um leve sorriso.
– Vai me repreender também? – indagou ele, com simpatia.
– Não.
– Então?
– Por que você aceitou estar aqui?
– Por você, eu já disse.
– Só por minha causa?
– Sim, só por você. Você é o elo entre mim e esses lobos arrogantes.
– Portanto, seu ódio pelos de minha raça continua?
– Não é mais ódio, e sim desprezo. E eles não são de sua raça. Você não
é da raça deles. Em momento algum vi uma amostra de superioridade em
como você me trata, mas sim a sinceridade, o companheirismo. Os cães e os
lobos não são tão diferentes como se pensa, sabe? O que os separa é o
orgulho. Eu me orgulho de ser mais forte e independente do que eles, e eles de
serem mais numerosos do que eu. Somos seres divergentes, de naturezas
similares, mas opostas. Eles nasceram para viver nas matas, perto do contato
com suas origens, e eu para estar aqui, no meio da poluição, das cidades,
apesar de nós detestarmos os humanos.
– Eu não detesto os humanos – cortou a ômega, sentindo-se ofendida. –
Só não concordo com a forma que eles tratam a natureza.
– Percebe por que a admiro e a respeito, Cassandra? Você é diferente de
qualquer lobisomem que conheci. É única.
Ele aproximou-se dela antes que os olhos azulados dela percebessem
seus movimentos.
– Há sangue lupino em suas veias, mas há um coração bondoso também
– continuou, tocando a mão espalmada no peito arfante da garota. – Você não
é nem loba, nem mulher, e sim uma combinação perfeita de ambas. Há uma
pureza de espírito que me atrai... Que me encanta...
A jovem se sentia perdida por aquelas palavras, sem qualquer reação. A
mão pesada de Licurgo contornou seu rosto delicado, arrepiando a sua pele
clara, surpreendendo-a. Antes que pudesse esboçar qualquer ação ou impedir
aquele ser enigmático, seus lábios finos foram tocados pelos do homem-cão.
Foi um beijo suave no início, entretanto logo ganhando uma intensidade
selvagem e ardente.
Ela não tentou recuar, afastar-se daqueles braços que a envolveram com
volúpia. Fechou os olhos e se entregou ao desejo, ao prazer, a algo que nunca
se permitiu experimentar, que nenhum dos homens-lobo que conheceu foi
capaz de ter.
***
A nova missão era muito complicada. Por isso, Loki e os melhores
agentes foram designados para a tarefa. Entre eles, Cassandra e Licurgo, que
evitavam despertar nos demais a desconfiança de terem passado algumas
noites juntos; ambos eram bons em esconder seus pensamentos e agir com
naturalidade, sem que houvesse a mínima suspeita do que acontecia. Eram
oito membros. O homem-cão, dois ômegas e os maiores e mais destemidos
alfas, sendo o chefe de operações nacionais o mais importante de todos.
Iriam atacar um centro em que ocorria abate ilegal de animais; por ser
uma área longe de tudo o que era tido como civilização, o único meio de
chegarem até lá era de helicóptero, o qual foi arranjado depois de alguns
contatos e subornos do líder da missão. Quando sobrevoavam a mata, ainda
na forma humana, os alfas e o homem-cão pularam na relva, correndo para se
ocultar entre as árvores. O plano era que eles iriam avançar em terra e depois
dar o sinal para que os outros fossem buscá-los.
Com pressa, percorreram a floresta fechada com destreza; o olfato lupino
orientava o grupo. Ninguém parecia valorizar o parente canino, embora
também não demonstrasse menosprezá-lo; apenas o ignoravam como podiam,
mantendo-se concentrados no trabalho que deveria ser feito.
– Conhecem aquela piada sobre o lobo e o cordeiro? – questionou um
dos alfas, um ruivo que Licurgo reconheceu como um dos engraçadinhos do
refeitório.
– Acho que sim... você vive contando suas piadas sempre, não é? –
respondeu outro, o único ali que compartilhava do humor sem graça do colega.
– Bem, deixe-me contar. Vai ajudar a passar o tempo.
Eles começavam a atravessar uma região alagada.
– Uma vez um cordeiro foi beber num rio quando um lobo apareceu
reclamando que o sedento havia sujado as águas que ele beberia. O cordeiro
se defendeu, dizendo que se o lobo bebesse um pouco antes, contra a
correnteza, encontraria a água limpa. Irritado, o lobo argumentou que o
cordeiro falava mal dele no ano anterior, mas novamente o sedento se
defendeu, dizendo que nunca o viu em sua vida e que havia nascido naquele
ano. Ainda mais zangado, o lobo acusou o irmão do cordeiro, que se defendeu
dizendo que não tinha irmãos, pois era o primeiro filho. Furioso, o lobo gritou
que pouco importava, pois foi outro cordeiro, um pastor de ovelhas ou um cão
que o havia ofendido, mas o caso era que aquele pobre coitado pagaria pela
afronta. E o matou e devorou, pois estava muito faminto.
Somente os dois riram, olhando aos demais, que se mantinham sérios.
– Não é uma piada, e sim uma fábula – interveio o homem-cão, rosnando
com desprezo. – E a moral é que “a razão do mais forte é sempre a melhor”.
Aquele comentário provocou uma sensação incômoda no grupo.
A jornada ainda durou algumas horas, e era fim de tarde quando
avistaram as cercas elétricas da propriedade. Cada um dos homens-lobo foi
assumindo a forma lupina, passando por uma transformação dolorosa,
contorcendo-se e controlando o desejo de gritar. Quando chegou a vez de
Licurgo, este se manteve em pé, sem se retorcer ou demonstrar sentir dor.
“Não vai se transformar?”, questionou Loki, espantado ao vê-lo andando
rumo à cerca, com naturalidade.
– Já estou me transformando – respondeu ele, com a voz rouca.
Seus músculos dilataram com uma força impressionante, rasgando as
roupas que ele vestia; os pelos castanhos e negros, de comprimento curto,
surgiram conforme os tecidos eram reduzidos a trapos. Sua altura aumentou
incrivelmente, adaptando-se à massa muscular exagerada; as pernas
adquiriram uma aparência mais canina, com coxas grossas e patas potentes;
os braços alongaram em proporção ao porte monstruoso; e a cabeça assumiu
a forma da de um rottweiler, com orelhas curtas, presas poderosas e uma
mancha sobre o olho.
Não havia chegado ainda na cerca quando concluiu a metamorfose,
livrando-se da calça que apertava seu quadril. Com um salto, sem pegar muito
impulso, passou para o outro lado, sob os olhares surpresos dos companheiros
de missão, que não tinham tal destreza.
Os seis galgaram adjacentes à cerca, aproveitando o início da noite para
não serem avistados. Loki, cujos pelos acinzentados diferiam dos demais, ia à
frente, orientando a pequena alcateia com instruções rápidas quanto ao papel
de cada um; numa bifurcação, ele convocou dois para irem à esquerda com
Licurgo e os demais com ele, na direção oposta.
Tomando a frente, o homem-lobo de pelos castanhos avermelhados fez
um movimento displicente que quase o levou de encontro à cerca elétrica; mas,
com um movimento ligeiro, o enorme cão o puxou para trás, derrubando-o com
impacto.
– Cuidado, idiota! – rosnou o homem-cão, encarando-o antes de voltar a
correr.
Erguendo-se com irritação, o licantropo se apressou em reassumir a
dianteira, tomando mais cuidado. Como queria ensinar para aquele maldito a
hierarquia que ele insistia em não seguir!
Não demorou muito para que o trio derrubasse alguns pistoleiros sem
ruídos, seguindo pelo caminho, vasculhando o terreno para evitarem surpresas
desagradáveis. A comunicação mental com os outros três era mínima, e eles
lamentavam por não poder ter o apoio necessário dos ômegas chamados para
a tarefa; só contariam com o auxílio deles quando fosse a hora certa, após o
cumprimento da missão.
“Socorro! Ajuda!”
Era um pedido desesperado, direcionado a quem pudesse captá-lo.
“Loki está em perigo!”, alertou um dos agentes veteranos, atiçando os
outros a irem ao socorro do líder do grupo.
Embora parecesse que eles foram descobertos, tudo estava quieto
demais, sem a movimentação típica dos humanos atirando, correndo ou
gritando, dos rosnados e do choque entre os corpos. Era como se os
agressores da natureza soubessem do ataque e estivessem se preparado.
Aquilo não estava certo.
Uma explosão trouxe Licurgo de volta de seus pensamentos, a tempo de
fazê-lo desviar de um disparo de fuzil que teria perfurado seu crânio; caindo
sobre um dos colegas de missão, saltou em seguida para trás de uma casa,
escapando dos novos disparos. O pobre infeliz que ele derrubou nem teve
tempo de reagir, tendo o corpo despedaçado pelos tiros consecutivos.
– Só o cachorrão, porra! – gritou alguém, em algum lugar, repreendendo o
atirador que acertou o aliado.
Pulando para dentro da casa, o homem-cão arrastou-se com pressa,
enquanto as paredes e as janelas eram destruídas por uma saraivada de balas.
Ele moveu-se com destreza, compreendendo que havia caído numa armadilha;
chegou numa porta que dava acesso a um pequeno pomar, correndo para fora,
sumindo nas trevas das árvores.
Loki estava ao lado do bando de assassinos que havia sido contratado
para exterminar o “cachorrosomem”. Dias antes, com o atrevimento do
desgraçado em questioná-lo sobre a missão no laboratório, o homem-lobo
cobrou um favor a um humano conhecido por atos terroristas na América
Central e assassinatos de alguns lobisomens, apesar de ter abandonado as
caçadas após alguns incidentes. Claro que uma recompensa em dólares
também foi necessária, mas valeria cada centavo. Ele apenas precisou inventar
aquela missão, contando com a colaboração dos seus subordinados.
Quando as armas descarregaram, num intervalo pequeno de uma para a
outra, Licurgo avançou contra dois dos atiradores próximos a uma parede em
ruínas, agarrando-os pelas cabeças e os arrastando para a escuridão,
chamando a atenção dos outros para onde se escondeu. Novos disparos foram
feitos sem, contudo, acertar o alvo, que corria de um lado a outro, sob os
olhares dos licantropos que eram incapazes de se comunicar com os humanos.
– Óculos de visão noturna! – urrou o chefe daquela operação, pondo o
equipamento no rosto.
O homem-cão atacou mais uma vez, chutando o tórax de um dos agentes
que o traiu e estripando um dos assassinos que se preparava para usar os
óculos. Ainda na investida, pegou algumas granadas do cinto de sua vítima
agonizante, arrancando os pinos e as lançando para todos os lados, perto dos
seus oponentes. Sem recuar, sem temer a morte, ele se atracou ao homem-
lobo de pelos castanhos avermelhados, socando sua cabeça lupina até que a
boca se abrisse; sem piedade, enfiou a última granada em sua goela, fechando
as presas com ambas as mãos. Enquanto o infeliz se debatia, os explosivos
detonavam um após o outro, destruindo equipamentos e mutilando pessoas;
apenas os agentes corruptos do Green Death saíram ilesos. No segundo
seguinte, Licurgo pulou para o lado, sendo banhado pelo sangue e miolos do
lobisomem que explodiu.
Prevenido quanto à retaliação, ele bloqueou o ataque de um dos traidores
desesperados, socando-o no estômago; movendo o corpo para o lado
esquerdo, aplicou uma cotovelada em sua espinha dorsal, levando-o ao chão,
urrando de dor, com os ossos fraturados. Ouvindo alguém preparar um rifle,
avançou com fúria ao único assassino ainda vivo; sem misericórdia, segurou-o
pelo pescoço e apertou até que não houvesse mais sinal de vida.
Dois licantropos caíram em cima dele antes que tivesse tempo de se
esquivar ou se defender. Caído no chão, tentou se recuperar, agitando-se
como podia, incapaz de planejar um ataque decente aos malditos covardes. A
dor das mordidas e arranhões o irritavam, e a ira pela vil traição o motivou a
também agir com desonestidade. Golpeando os testículos de um dos
atacantes, abriu uma pequena brecha para escapar; livre, cabeceou o inimigo
que se contorcia, jogando-o contra os cadáveres dos humanos destroçados.
Concentrando-se no outro, latiu e rosnou enraivecido, intimidando-o.
– A razão do mais forte é sempre a melhor – falou ele, com um tom
gutural demoníaco.
O homem-lobo ousou uma investida, de forma patética, apenas para ter a
garganta rasgada, tombando em agonia, com as mãos em volta do ferimento,
numa tentativa ainda mais tola de deter a hemorragia.
– Eis a ovelha sendo sacrificada para um cão – disse Licurgo, voltando-se
ao agente que se recompunha da dor que sentia.
Aqueles malditos lobos não mereciam seu perdão.
***
Loki aguardava com ansiedade o retorno do helicóptero. Sabia que os
demais estavam mortos, afinal aquele monstro era um exterminador de
licantropos, e cada nova experiência o tornava ainda mais mortal e eficiente.
Havia cometido um erro muito grande em subestimar o “cachorrosomem”, em
julgar que algumas pessoas treinadas dariam conta. Foi um erro grave.
Ele estava no alto de um prédio, olhando em volta, ciente de que logo
Licurgo viria atrás dele, determinado a concluir sua vingança por aquela
traição. Sentia-se um covarde, alguém temendo o adversário, mas preferia
viver mais um dia a morrer ali, quando estava tão perto de obter o que tanto
queria. Arfou, percebendo a aproximação do inimigo.
Ambos se encararam.
– Eu confiei em vocês – rosnou o homem-cão, lançando a cabeça com
expressão retorcida de sua última vítima para os pés do outro. – Pensei que
pudessem ser capazes de coisas melhores.
O homem-lobo não recuou.
– São iguais aos humanos – continuou Licurgo. – Ou ainda piores.
“E você, que mata os seus semelhantes?”
– Vocês não são semelhantes a mim!
Era impressionante como aquele ser canino e violento conseguia manter
o dom da fala com tanta perfeição, com um tom potente e monstruoso.
Ninguém era capaz daquela façanha. Realmente a natureza havia dado a
alguém ingrato e inferior uma habilidade inacreditável.
O helicóptero sobrevoou o terraço, causando uma ventania.
“Vai me matar e deixar de cumprir sua promessa para Cassandra?”
– Matá-lo não purgaria o mundo de uma praga – respondeu o homem-
cão.
“Praga? Somos a esperança de um mundo melhor!”
– Se forem a esperança, eu serei o caos.
Licurgo olhou para o alto, vendo a ômega observar o que acontecia lá
embaixo. Lamentou por não poder mais ficar ao seu lado, por ter de voltar a ser
um andarilho; rosnou baixinho, enviando uma mensagem exclusiva a ela, que
se emocionou. Em seguida, encarou mais uma vez o agente corrupto,
desejando que não houvesse feito aquele juramento para Cassandra. Por fim,
uivando, correu para longe, com uma dor no peito.
***
Nos dias seguintes, como um ritual sagrado, Cassandra ia pela manhã e
no final da tarde para a lanchonete em que teve uma breve conversa com o
homem-cão pela primeira vez. Permanecia ali por uma hora ou mais, quando
podia, tomando café ou chá, olhando cada pessoa que entrava, lendo cada
pensamento que era capaz de vislumbrar. Mas ninguém ali era ele, nunca
conseguia detectar qualquer traço da presença daquele homem peculiar. Havia
tanto a perguntar, tanto a entender. Não acreditava que ele havia traído o
grupo sem um forte motivo, sem que algo o incentivasse a isso, apesar de Loki
ter sido muito sincero ao relatar os fatos. Se assim fosse, a promessa foi
quebrada e aquele amor que ela sentia pela criatura canina era uma mentira.
Cinco agentes mortos. E ela era parcialmente culpada, sobretudo por ter
se envolvido sexualmente com Licurgo. Como queria não ter acreditado em
todas aquelas coisas, seguido sua intuição. Deveria ter sido mais fria, mais
insensível, capaz de separar a verdade da mentira, de perceber que tudo era
um truque, uma armadilha com a finalidade de captar informações sobre o
Green Death e humilhar a organização.
Era um fim de tarde chuvoso quando ela decidiu não mais esperar por
alguém que provavelmente estava longe. Pagou pelo café e os biscoitos,
saindo e abrindo o guarda-chuva. Segurou as lágrimas que queriam percorrer
seu rosto; abaixou a cabeça e se afastou dali. Queria esquecer.
Do alto, num terraço, Licurgo a acompanhou com os olhos tristonhos. Era
o melhor a fazer; era bom ficar distante dela. Agora ele era caçado pelos
lobisomens, temido por seus crimes contra aqueles idiotas que se achavam
superiores. Era um criminoso. Desviou o olhar por um segundo somente, ciente
de que deixava para trás o restante de sua humanidade...
~ * ~
Contato com o autor:
http://alastairdias.blogspot.com.br
UM BREVE ENCONTRO A TRÊS (Verônica S. Freitas)
Para manter o bem em plenitude, às vezes precisamos combater o mal com o mal.
Ulisses Mantovani
I
Tarde de sábado.
O céu estava carregado de nuvens e o clima era gélido do lado norte das
Ilhas Britânicas. Mas esse frio não atingia aquela que corria fugitiva pela relva
úmida. Ela olhou para trás temendo os perseguidores, fios de um louro
prateado escapavam pelo capuz que a ocultava na paisagem deserta.
Confusa, percorreu a esmo lugares que nunca vira, não sabendo o que
fazer. Não conseguia pensar racionalmente, era apenas instinto, medo e
desespero. Queria sair o mais depressa dali, e por isso desenfreadamente
procurava uma proteção que já sabia perdida. Como fugir daquilo?
Tropeçou, caindo no vale denso de neve. Sentiu sob os dedos nus o frio
que tornava o ar branco e o caminho irreconhecível. Procurou levantar-se o
mais depressa possível, imaginando ter ouvindo de algum lugar na cortina de
névoa um rugido animal.
– Não...
Em pânico, voltou a lutar contra a adversidade do tempo e do medo, e
obrigou seu corpo a resistir. Com as pernas tremendo e ameaçando vacilar,
não parou mais por um bom tempo.
O som do alarme que vibrava de algum lugar ficou para trás, mas ainda
confundia seu cérebro quanto a distância que percorrera. Parecia que ainda
estava tão perto do perigo que a única solução era continuar, sem parar. As
pernas podiam estar congelando, mas ela não se atreveu a descansar nem por
um segundo, nem para tomar fôlego.
O problema é que perder o ar não era a única coisa que poderia pará-la.
– Droga – caiu de joelhos, contraindo a barriga, o corpo reagindo sem
perdão à fuga desenfreada. Sangue escorreu pelas suas mãos ao apertar o
abdômen. Estava ferida. Tentou ignorar isso enquanto a explosão de pânico a
disparava para longe da área de risco da qual fugira a tempo de seus
perseguidores não a destroçarem, mas agora já se esforçara demais... Não
podia parar, não podia... Mas...
Tão logo seu corpo tocou o chão, de lá não conseguiu mais se levantar.
Apesar do terror que o alarme ainda despertava em sua mente, da simples
imagem deles farejando-a até ali, estava perdida e ferida naquele nevoeiro, e o
sangue escorrendo da ferida minou suas forças para fugir. Desmaiou antes de
fechar completamente os olhos, caindo no limbo.
Vidro estilhaçando. Quietude. Passos sobre os cacos. Olhos atentos
vigiando a presa no escuro. O coração tentando se manter no ritmo enquanto
ela sentia seu controle se esvair pelo medo. Um olho vermelho em sua direção,
passando por ela sem a ver, imóvel num canto. Conter a respiração era um
esforço temporário de preservação. Eles logo a encontrariam, precisava fugir
dali.
O primeiro passo que deu não chamou a atenção, o segundo e o terceiro
a levaram até a porta adjacente. Quando a mão encontrou a maçaneta, ouviu
os gritos, a confusão, o barulho. Os pelos eriçaram, as pernas congelaram. E
naquele segundo de paralisia, o olho vermelho a encontrou novamente...
Interferência. Arrepios subiram pela espinha como um choque elétrico
direto das lembranças violentas de uma hora atrás, como espasmos fantasmas
dos ferimentos. Em meio à confusão de sua mente, sutis linhas de consciência
que sumiam e voltavam a aparecer se insinuaram, interrompendo os
pesadelos.
Abriu os olhos lentamente, sentindo a neve desfragmentando-se em
suas pálpebras. Suspirou e uma nuvem condensada se formou em frente ao
seu rosto gelado. Tentou se movimentar, porém sentia-se petrificada.
Desmaiou com medo e com medo novamente acordou. Fechou os olhos e
continuou mais um tempo assim, talvez desacreditando que estivesse
realmente acordada. Ou talvez com medo que tivesse sido alcançada naquela
condição vulnerável.
– Mãe, olha!
A linha voltou a pipocar no mar escuro.
“O quê? Quem...”
– Nossa, parece que alguém congelou ali. – uma voz de mulher soou em
meio à névoa, e som de passos começaram a chegar perto dela. – Meu Deus,
será que morreu? Filho, fica aí! – a voz pediu quando passinhos começaram a
segui-la. Ele se frustrou por não poder ver de perto.
Cautelosa, ela olhou para o corpo envolto em um sobretudo preto. Os
cabelos prata espalhados pela neve, mesclando-se à brancura, e as botas
indicavam ser uma mulher, embora o rosto estivesse oculto por um capuz.
Aproximou-se um pouco mais, agarrando-se ao seu próprio agasalho
para conter o frio. Seus lábios tremiam. Viu a mancha congelada de sangue no
chão.
– Moça...?
Chegou a mão enluvada perto dela, mas antes que pudesse tocá-la, a
pessoa contraiu-se. Rolou para o lado e começou a tossir novamente, fazendo
força nos braços para levantar-se.
– Nossa, você vai congelar aqui, graças a Deus não está... – e enquanto
falava, com o filho maravilhado por ver a moça se levantar, segurou-a pelos
ombros, achando que a ajudaria.
– Não me toque! – grunhiu, como se não conseguisse usar sua voz.
Cambaleou para o lado quando ela fez força para se soltar de suas mãos. A
moça caiu no chão, atrapalhando-se com a neve. Por um segundo a mulher
que tentou ajudá-la viu seus olhos por baixo do capuz, em pânico. Em seguida
ela levantou-se e se pôs a correr aos tropeços para longe deles, como se
dominada pelo desespero, deixando-os atônitos.
E querendo se afastar deles percebeu que a névoa minguava a sua
frente. Parou, diante do que antes ela julgara muros altos, mas na verdade
apenas imponentes pinheiros, altas agulhas verdes escuras. Tentou se
esconder neles, recuperando o fôlego, porém assim que deslizou por suas
folhas densas e minúsculas, viu o que escondiam e não foi capaz de conter a
respiração. Uma trilha pavimentada. Finalmente estaria segura? Encontraria
alguém que pudesse ajudá-la? Ou era questão de tempo para o que estivera
atrás dela também aparecer ali?
Hesitou, mas não tinha outra alternativa. Sua mão tremeu, apertando o
ferimento que rasgara sua pele. A única coisa ainda quente em seu corpo era o
sangue.
***
Ela ainda tinha a mão molhada, depois de se lavar do sangue em uma
torneira abandonada em um beco. Os passos, dessa vez em um perímetro
mais urbano, não sabiam para onde iam. Apenas seguiam os estouros em sua
mente, aquelas linhas pipocantes de presenças ao seu redor. Não sabia se era
prudente fazer isso ou se afastar, porém, quando deu por si, algo mais intenso
veio a seu encontro, como uma lanterna passando pelo nevoeiro dos seus
sentidos obscurecidos.
Deu com um homem. Não o via de frente, ele parecia preocupado em
fazer funcionar um equipamento eletrônico, de modo que ficasse na direção de
uma grande antena próxima. Algo nele queria lhe dizer alguma coisa, algo
urgente, vital. Mas quando deu mais um passo na sua direção, a dor em seu
ferimento lhe mordeu a carne e novamente o medo envenenou sua percepção,
ao mesmo tempo em que ele se afastou, atravessando a rua para ficar mais
perto dos receptores de rádio.
A moça se desviou da atração e seguiu o fluxo, trôpega, entrando no
primeiro lugar que sua mão conseguiu alcançar, quase perdendo os sentidos
mais uma vez.
A porta abriu, silenciosa, mas ela não passou despercebida quando,
tentando dar passos para dentro, seu corpo pesado trombou com uma mesa,
derrubando os copos deixados pelos últimos ocupantes.
– Moça, você tá bem? Moça! – a garçonete mais próxima a acudiu antes
que caísse no chão.
– Meu Deus, como está pálida, parece que dormiu num banco de neve –
falou outra, chocada, do outro lado do balcão. Pediu que a trouxesse para perto
do calor do forno elétrico. – O que houve, meu bem? Está perdida?
Ela apenas a olhou, sem responder, mas era como se seu olhar
angustiado dissesse que sim, estava. A mulher disse que lhe faria uma bebida
quente, enquanto se acalmava e que poderia usar o telefone se quisesse. Mas
ela não queria. Encolheu-se em seu sobretudo, fechando-o bem para que não
vissem que estava ferida e aconchegou-se no banco. O calor a envolveu,
assim como os odores de toda espécie: café, muito café, a gordura dos
alimentos emanando da quentura do micro-ondas. De uma forma bizarra sentia
que isso a mantinha acordada e alerta, embora não mais tranquila.
A garçonete ainda a olhava preocupada, talvez se certificando de que não
iria desmaiar, enquanto lentamente preparava o leite, quando um homem veio
até o balcão pedir outra xicara de café.
A moça prendeu a respiração. Não conseguia explicar o que era, mas ao
ouvir sua voz, o tom estranhamente simpático e formal, seu corpo todo se
arrepiou. Escondeu-se mais dentro do capuz, fingindo indiferença, mas era
principalmente para que ele não a notasse.
– Muito frio aqui, não? Qualquer um passaria mal lá fora se não soubesse
andar por aqui sozinho.
Não quis olhá-lo diretamente. Só senti-lo já lhe dava arrepios.
– Bem, acho que isso é seu. – e empurrou o copo fumegante após a
atendente ter colocado duas canecas sobre o balcão.
– O-obrigada. Mas foi o senhor quem pediu café... – foi a única coisa que
lhe veio a mente para dizer, numa voz trêmula e sumida.
– Oh, desculpe, troquei os copos. – e colocou na frente dela a bebida de
odor adocicado que, se ela não estivesse tão na defensiva, teria reconhecido
de imediato a diferença. – Tome, vai se sentir melhor. – Ela se arrepiou ainda
mais com suas maneiras gentis. Havia algo de muito falso nisso. Passou a mão
hesitante pela asa da caneca e murmurou uma espécie de agradecimento,
engolindo a seco a vontade imediata de ir embora dali. Sentia que ele tentaria
outra forma de chegar perto, ouvir sua voz, e logo ver seu rosto. Tentou não
demonstrar o quanto estava aterrorizada, embora seu corpo estivesse
paralisado e o rosto quente e vermelho.
Como sair dali agora?
– Ma chérie, finalmente te encontrei!
Ela, apreensiva, assustou-se quando uma mão pousou sobre a dela com
certa intimidade. Teve vontade de repeli-la, mas a força com que ele agiu sobre
seus dedos era como um recado para continuar quieta. Suas sobrancelhas
franziram, enquanto sentia os dedos enregelados dele sobre os seus. Viu que
ele encarava o homem.
– Tudo bem? – foi uma pergunta que, embora para ela, pareceu também
direcionada ao estranho do seu lado. Ele, surpreso com a presença súbita,
apenas lhe deu um sorriso enviesado.
– Ela chegou morrendo de frio, parecia perdida.
– Ela se perdeu. – ele explicou simplesmente e segurou com mais força a
mão da atônita moça. – Mas, ainda bem, já a encontrei.
E o observou, sério, por trás das lentes dos óculos escuros. Fez um
aceno de cabeça cumprimentando-o, entrelaçou seus dedos nos dela enquanto
a levava para uma mesa, deixando claro para o homem que a abordou e para
quem os estivesse observando a ideia de que eram um casal.
Mas isso também fez com que o contato entre suas mãos estabelecesse
o que ela precisava para uma conexão se iniciar, a mesma que a levara a
percebê-lo na calçada, antes que atravessasse a rua e sumisse de vista.
Ruídos vieram à sua mente como estática de rádio.
Falha... Segurança... Sistema inoperante... Encontrar com urgência...
Judity Dominique Evans... Urgência... Urgência...
Um arrepio subiu por sua pele suada ao ouvir seu nome. Sua mão entre a
dele afrouxou vacilante e ela quase parou de seguir seus passos, o coração
pulsando, entorpecendo a audição.
Ele voltou-se para ela e, como se fazendo um carinho, passou a mão
pelas suas costas. Ela podia sentir a força disfarçada que ele exerceu para que
ela continuasse andando.
“Calma, eu não sou seu inimigo. Só continue fingindo que está comigo e
poderemos sair bem daqui.”
A incredulidade durou mais um momento. Ela o olhou e apertou bem sua
mão, agora mais interessada no contato.
“Frentzen Clermont... O francês.” – pensou como se para si mesma, mas
a conexão entre eles já estava estabelecida. Ele ouviu.
“É, você é boa mesmo. Devo dizer que estou surpreso pelo olho da
organização ter vindo ao meu perímetro me visitar.”
“Por que está falando desse jeito comigo?”
“Não posso falar desse jeito com você, grande papisa da Green Death?”
Os dedos dela apertaram com força a mão dele, pretendendo machucá-
lo, mas ele não sentiu mais do que um leve incômodo. Sorriu pelo canto dos
lábios, como se achasse graça do esforço. Acharam uma mesa do lado oposto
da lanchonete e ele tirou uma cadeira para ela, que continuou de pé esperando
uma resposta.
“Não adianta ficar aborrecida, chérie, você não está no seu habitat
protegida por vigilância computadorizada. Não sabe como as coisas funcionam
aqui fora.”
Ela continuou impassível, olhando com cara feia para o francês. Ele
suspirou, engolindo a seco e fez parecer que a demora era proposital. Desta
forma, ao invés de insistir, ele tirou seu capuz e em seguida todo o sobretudo.
– Olha, você está toda molhada, meu Deus, eu falei para você tomar
cuidado ou iria se perder nesta neve! – encenando, ele tirou o capuz da cabeça
dela, mas ela não deixou que continuasse a tirar seu agasalho. Ele roçou seu
rosto nos cabelos prateados dela. Como não reconhecer aquele aroma quase
mítico de um ser que ele julgou por algum tempo irreal, de tão misterioso e
inacessível? Era como se estivesse de volta ao forte, recém-chegado da
França, entrando inadvertidamente numa sala restrita, sentindo o cheiro de
uma loba e não de componentes eletrônicos e descobrindo que ela era real.
“O que você está fazendo?”
“Me certificando! Hoje o dia está muito violento para que eu acredite na
minha primeira impressão”, e segurou os ombros dela, com uma falsa
gentileza. A boca aproximou-se de seu ouvido e, escondido pelos fios prata,
ninguém perceberia que não movia os lábios. “Se você não confiar em mim, vai
ter que pensar num plano B sozinha, aqui não há uma equipe para protegê-la
como no seu forte e, se eu morrer agora, a próxima vai ser você, porque aquele
cara ali tem uma Boito 12 muito boa pra exterminar lobos, que é o que ele
pretende se você quiser perder sua cabeça. Você quer?”
Ele sentia a respiração contida dela e o olhar irritado.
– Senta!
Ela o fez a contragosto. Ele sentou-se em seguida do seu lado, passando
um braço em volta de sua cadeira, aconchegando-se para que a impressão
ficasse mais autêntica.
“Me chame de Judity. O que está acontecendo?”
“Você que deveria me dizer, afinal, é de lá que você está vindo, do
estouro do forte. Só tenho informações desencontradas, estamos no escuro e
agora eu sei por quê. A única forma de deixá-lo fora do ar seria cortando a
conexão. Ou seja, você. Só não entendo como conseguiram.”
A informação apenas deixou-a mais tensa, como se mexer nas
lembranças e nos motivos dos últimos acontecimentos a fizesse se fechar. Ele
não insistiu.
“Perdi contato neural com alguns vigilantes próximos e isso não é um bom
sinal. Não acredito que eles ainda estejam vivos. Mas encontrar você em meu
perímetro me faz ver que a situação é ainda pior do que imaginei. Não são só
alguns caras querendo matar um grupo nosso, é alguém inteligente que
descobriu nosso ponto fraco vital e quer nos destruir de dentro para fora. E eu
nem mesmo achei que você fosse de carne e osso, achava que devia ter algo
de robótico em você para controlar todos aqueles computadores e
comunicação por satélite. Talvez eles também tivessem achado que estavam
indo destruir uma super máquina que controlava tudo e não uma alfa psíquica.
Foi assim que te deixaram escapar, desconhecendo quem você era?”
Ele estava quase zombando dela, o que a irritou. O olhar se tornou
mortificante para o francês e em segundos ele fez uma careta, sentindo sua
cabeça zunir. Irritado, Frentzen tirou os óculos e ela surpreendeu-se com o
cristalino azul de seus olhos. Se os tivesse visto antes, mesmo que num
vislumbre na rua, o teria reconhecido imediatamente.
“Tente usar menos intensidade para falar. Você não esta lidando com
satélites e sistemas computadorizados. Vai acabar estourando meu cérebro, e
acredite, você não está preparada para ficar sozinha em uma situação como
esta, não uma alfa que nem mesmo se transforma!”
Dessa vez, o zunir na cabeça foi extremo, fazendo com que ele gemesse
e um filete de sangue escorresse de seu nariz.
“Já disse para me chamar de Judity. E você não tem nada a ver com o
que sou, se eu quisesse poderia...”
“Não, você não poderia!” – ele pegou um guardanapo e limpou o sangue
discretamente, aconchegando-se mais nela para que ninguém percebesse,
mas na verdade com outra intenção. “Não ferida deste jeito.” - E puxou uma
das abas de seu sobretudo, vendo que o uniforme todo preto que ela usava
tinha um rasgo manchado com uma cor mais intensa.
“Seu... Tire as mãos de mim!”
– Shhhh! – Ele aproximou ainda mais seu rosto do dela, fechando
novamente o sobretudo e não deixando que ela se afastasse como queria.
“Quando um lobo é ferido seus sentidos ficam confusos. Seria como as
panes em seu sistema. Estou no escuro há quase duas horas, sentindo meus
companheiros ao redor se apagando do meu cérebro. Com a força mental que
você tem, seria impossível não te perceber com a varredura neural que tenho
feito com todos ao redor, a não ser que você estivesse ferida e não
conseguisse estabelecer uma conexão e me confundisse também.”
“E como foi que você me achou, então? Pura sorte?”
“Não. Ele. Assim que ele chegou perto de você, você sentiu, ele é como
os que invadiram o forte, certo? Só algo assim te faria entrar em pânico e
exalar esse odor de medo que senti longe. A conexão por rádio voltou ao
normal por alguns segundos, só de você estar por perto. E aí eu soube que tipo
de ataque tínhamos sofrido. Talvez um pouco de sorte te guiou até aqui, ou
talvez inconscientemente você estivesse seguindo a trilha de outro da sua
espécie que estivesse o mais perto. Ou pelo menos o vivo mais próximo. E eu
também tive sorte de te encontrar. Ele veio aqui para me matar. Não esperava
encontrá-la também. Acho que todos já te julgam morta, como um peixe que
morre fora d'água. Ainda estamos ambos vivos porque encontramos um ao
outro e, enquanto estivermos aqui, ele não irá nos atacar, não na frente de
humanos. Assim temos tempo para pensar.”
Ficaram em silêncio por um tempo, pensando. Até que ele recomeçou.
“Na verdade, eu acho que eles sabiam que havia alguém como você
controlando as missões, nos dando cobertura. Foi por isso que te afetaram
mentalmente não é? Para deixá-la vulnerável e assim nos invadir. Foram
espertos.”
“Não preciso que você me diga isso!” – seus olhos estavam mareados,
com raiva. Sentiu a mão dele apertando seu ombro do outro lado.
“Já falei, pega leve!” – ele apertava os olhos com força. Ela se sentiu
ainda mais angustiada em não consegui controlar toda sua potência em um
ambiente externo, desconhecido.
“Se essa for uma crise passageira, vou pedir uma licença especial para
ensinar a você bons modos lupinos, alguém tem de ver que você não tem
prática nenhuma com a sua verdadeira natureza e pode fazer estragos aqui
fora.”
Teve de encarar seus olhos raivosos mais uma vez, o que não fez
diferença, mesmo com a dor que pipocava em sua cabeça cada vez que a
alfinetava.
“Usam você inibindo sua evolução para usurparem seu outro dom, ou é
você que tem medo de evoluir?”
Agora que estava perto daquela figura da qual só ouvira falar, queria
entender sua natureza, enquanto ganhava tempo.
“Não vou lhe responder nada.”
Evitou olhá-lo, pois sua mente voltava a trabalhar, ficando mais límpida à
medida que conversavam. Os sentidos voltavam aos poucos. Ainda pensando
em como iriam fazer para fugir dali, levou a xícara à boca, e sem preocupação
tomou um grande gole de seu chocolate.
“Ele pareceu gentil comigo quando cheguei aqui, será que ainda não
sabia quem sou?”
“Acho que é o contrário. Ele veio se certificar do que você era.”
“Mas como, ele não fez nada...”
Então, sem aviso, aconteceu. Como se uma faísca tivesse iniciando um
incêndio dentro dela, algo veio queimando pela garganta, dando-lhe a urgente
vontade de vomitar. Levou a mão à boca e o olhou angustiada. Ele, que estava
pensando em como responder sua pergunta, espantou-se com a súbita reação
da moça depois de um gole daquela bebida. Para sua surpresa, ela acabava
de responder sua própria pergunta.
Judity levantou-se com dificuldade, correndo para o banheiro feminino.
Frentzen não hesitou em segui-la, notando, pelo caminho, que aquele homem
saía do estabelecimento com um estranho ar de satisfação.
***
Uma garota se aprontava para sair do box que usava. Porém, enquanto
abotoava a calça, sua atenção foi atraída para o respingar vermelho no piso do
box ao lado. Depois ouviu o som do vômito, da porta do banheiro se abrindo e
passos apressados indo em direção ao sanitário.
Frentzen, ao abrir a porta do reservado, se deparou com a garota
vomitando uma mistura amarela e vermelha. O vermelho, rapidamente,
predominou. Ao cessar, ela encostou-se na parede com os lábios lambuzados
de sangue e os olhos começando a ficar opacos. Sua pulsação acelerava.
Então, a pele empalideceu, as veias de sua face se irrigaram como linhas
pintadas de roxo. Seus olhos se inundaram de vermelho, as pupilas dilataram.
O rosto foi aos poucos se deformando, os dentes ganhando uma angulosidade
afiada, a pele se enchendo de impossíveis pelos cor prata. A musculatura dos
braços sobressaltou-se, tornando-a muito mais forte do que a garota delicada
de um minuto atrás, e como ela evitava se transformar, a pelagem lupina ainda
brotava como a de um filhote, parecendo plumagem. Balbuciou, gemendo
angustiada, se contorcendo confusa, querendo quebrar a louça sanitária entre
a fúria e a quase perda dos sentidos.
– Droga garota, o desgraçado te fez engolir acônito!
Ela ainda teve lucidez para perceber quando o rapaz deu-lhe algo para
engolir e de como tudo ficou um pouco mais escuro depois disso.
A garota no box vizinho finalmente saiu para ver o que estava
acontecendo, pronta para disparar em direção à porta se fosse algo em que
não devia se meter. Porém, era curiosa e sempre acabava no meio do que não
devia.
Deu de cara com um homem alto de olhos azuis que não pareciam nada
do que ela já tivesse visto antes. Viu as pernas da moça ao lado estendidas no
chão, as calças estranhamente estufadas, rasgadas nos joelhos, com uma
pelagem prata saindo dos furos.
Seu sangue gelou. Por mais curiosa que fosse, tinha certeza que essa era
uma daquelas situações nas quais devia passar reto e fingir não ter visto nada.
Frentzen ficou imóvel com Judity enquanto sentia a humana passar
rapidamente por eles, trêmula, o coração disparado. Não tinha tempo para lidar
com humanos curiosos e agradeceu por aquela não ter sido burra em
perguntar o que estava acontecendo.
Por alguns segundos só houve silêncio. Ele esperou que a medicação
fizesse efeito, e realmente fez. O coração dela recomeçou a bater,
preenchendo o vazio. As veias de seu rosto foram voltando ao normal, assim
como seu tom de pele. Parou de tremer e murmurou palavras estranhas,
enquanto tentava abrir os olhos. Eles tinham uma coloração amarelada.
Tirou seus óculos escuros do bolso e colocou no rosto dela quando seu
corpo amoleceu e voltou ao chão. Ela demoraria a acordar agora, mas talvez
quando despertasse, não fosse prudente andar entre os humanos com aqueles
olhos lupinos. E agora sua preocupação era outra. Sentia aquele estranho
sumir do radar. Não, ele não estaria esperando pelos dois lá fora. A intenção
dele era desencadear uma transformação em Judity, de modo que ela se
denunciasse aos humanos. Logo eles se encarregariam de matá-la, mesmo
que em sua fúria ela matasse todos ali. A polícia viria, e apesar de ineficiente,
revelaria seu segredo. E logo eles estariam sendo caçados e exterminados
pela própria comunidade que eles vulgarmente defendiam.
E pelo modo como o cheiro dele ainda se insinuava, mesmo que fraco e
distante, se apreendia por onde suas coordenadas o levavam.
Olhou-a novamente.
Sentou-a no canto do box e fechou a porta. Ninguém a perturbaria ali.
Pelo menos ele esperava. Mas com a pressa que tinha para chegar ao lugar
onde o estranho se dirigia antes dele, não podia levá-la como carga. Nem
mesmo seria seguro.
As garçonetes não o perceberam saindo, apesar de terem ficado curiosas
com o mal súbito da moça. Ele se esgueirou pela porta dos fundos e, antes que
alguém pudesse virar os olhos para ver quem havia saído, ele já sumira.
Na mesa em que se sentaram só havia a caneca já fria do chocolate
envenenado. Frentzen podia achar que sabia como era uma alfa psíquica, mas
se enganara acreditando que sua força vinha apenas da mente. Judity também
tinha uma grande resistência e muitas outras habilidades que não
desenvolvera, mas estavam ali, ocultas. E aquela carga involuntária de
adrenalina em seu sangue pareceu ligar algo nela, que ela não mais conseguia
ignorar. E com isso sua inconsciência durou pouco tempo. Mesmo com o corpo
amortecido, conseguiu levantar-se, lavar-se e perceber que estava sozinha. Se
ainda tinha dúvida, o objeto pessoal que o francês deixara com ela lhe
confirmava que ele se fora, tentando mantê-la em segurança.
Judity voltou-se para a mesa do homem que os vigiava, e ele também não
estava lá. Afastou-se, sentindo um calafrio agourento e uma forte impressão
deixada no ar. Queria perguntar algo às duas garçonetes que vieram saber se
estava bem, mas seria inútil, eles eram espertos o suficiente para que
nenhuma das duas conseguisse perceber como se ausentaram.
Enquanto seguia por um caminho que se distanciava do perímetro urbano
e das pessoas, Judity ouviu um murmurinho vindo da lanchonete. Alguém
dizendo com horror que o banheiro estava cheio de sangue. Estremeceu
encolhendo-se em seu agasalho, a ferida que a atordoara, agora uma
lembrança quase cicatrizada pela carga da pseudo-transformação. Aspirou
forte o ar e sentiu. Parou e o cheiro dele veio muito forte, se prolongando.
Apertou o passo, cerrou os dentes e adentrou a mata nevoenta, distraída
com o cheiro que agora evidentemente reconhecia e seguia, sem perceber que
não era a única a acompanhar a mesma trilha.
II
Claire olhou seu relógio, vendo que nem eram cinco da tarde e o dia já
parecia minguado em meio às árvores centenárias. Sentia cheiro de mistério
não solucionado há um bom tempo com acontecimentos estranhos na região,
envolvendo principalmente os arredores daquela floresta e os lugares mais
ermos da cidade: mortes, desaparecimentos... Ela queria entender as coisas,
principalmente depois do que presenciou. Talvez, se seguisse a estranha,
pudesse ter as respostas... Só lamentou não ter trazido uma câmera, um
gravador ou até mesmo um bloco de anotações para registrar o achado que há
tanto procurava.
Quanto mais fundo ia na trilha, mais a neve parecia densa. Judity temeu
que, mesmo com seu olfato e a energia acumulada vinda do contato que
tiveram, o rastro se perdesse entre a imensidão branca e cruel, hostil para ela,
desacostumada ao ar livre. Porém, mesmo com esta ameaça e correndo contra
o tempo para manter viva a linha que lhe mostrava o caminho, em certa
ocasião parou e olhou para trás:
– Ei, garota!
Claire, escondida atrás de uma árvore, se apavorou. Sentiu algo como se
a voz a chamando estivesse bem do seu lado. Com o coração disparado e a
boca seca, não sabia o que fazer e temia que, se ficasse ali, a próxima
pergunta seria dirigida ao pé de seu ouvido. Assim como não ouvia o som de
seus passos enquanto ela caminhava, possivelmente não os ouviria se ela
chegasse perto.
Respirou fundo e saiu de seu esconderijo. Ela a olhava à distância e, para
seu espanto, seus olhos brilhavam tal o de um animal no escuro.
– Porque está me seguindo? – estremeceu com o som da voz dela. Não
quis responder de longe e aproveitou o percurso para controlar a respiração e
parecer que as bochechas coradas tinham a ver apenas com o frio intenso.
– Porque... - como ela poderia explicar que estava atrás de uma história
que, se confirmada, poderia se tornar o trunfo para concluir seu curso de
jornalismo com chave de ouro?
Judity a olhou incrédula, farejando o que não poderia ver nem sentir: a
varredura mental sobre as intenções da garota que a seguia. Achou o motivo
um pouco mais insano do que julgava normal para um ser humano.
– É melhor voltar para sua casa, garota – na situação em que estavam,
não lhe importava que uma humana estivesse atrás do segredo da Green
Death, mas que ela fosse mais um corpo deixado no confronto deles com os
invasores. Não lhe deu mais atenção, pois sentia que precisava continuar
seguindo sua trilha, porém, Claire a segurou pelo braço obstinada, com algo
irritando-a o suficiente para se comportar assim:
– Estou aqui porque vi o que aconteceu!
Ao ter sua marcha interrompida, Judity sentiu um arrepio perturbador na
nuca, característico de quando começava a se irritar. Sabia dominar-se
habilmente quando estava entre suas paredes cheias de dispositivos
eletrônicos. Lá, eram poucas as razões para se irritar. Ali, em um ambiente
hostil que a ameaçava, tinha apenas o instinto a lhe guiar as ações. E assim
como lembrara Frentzen, ela não o dominava tão bem.
Girou os olhos para Claire, que a desafiava com aquela mesma
determinação boba.
Ela estremeceu ao ver a coloração sobrenatural, dura e assustadora dos
olhos da moça que seguia. Teve certeza de ter sido um erro segui-la. Mas não
conseguia mais se mexer.
Semicerrando os olhos amarelados como se estivesse numa pose de
ameaça, Judity aproximou seu rosto e segurou o braço dela, paralisando-a.
– Você deve esquecer o que viu e voltar para sua casa, humana – e
soltou-a, baixando os olhos para a mão que ainda segurava seu sobretudo
esperando que ela fizesse o mesmo.
– Quem é você afinal? – mesmo com a voz falhando, após soltá-la, Claire
ainda teve coragem de perguntar, sem conseguir conter-se. – Uma alienígena,
uma entidade inteligente que veio se instalar aqui, no corpo de uma garota
indefesa ou... – a sobrancelha erguida de Judity e seu olhar diante das
sugestões a fez se calar. Por um momento achou que seria pulverizada.
– Sua compreensão humana não entenderia o que eu sou.
– Arrisque – sugeriu Claire, com sua imprudência natural.
Notou que seus olhos iam ganhando uma coloração mais forte, num
alaranjado que aos poucos se avermelhava. Seus pelos se arrepiaram e ela
teve impulso de dar passos para trás à medida que a moça ia perdendo o
controle da respiração, vibrando de leve, muito irritada.
Porém, no momento em que pareceu iminente que ela a atacaria sem
permitir qualquer pedido de ajuda naquele deserto branco, foram interrompidas
pelo som de disparos. As duas olharam para frente, pois o eco vinha dos
confins da trilha, não muito distante. Judity não precisou esforçar-se muito para
sentir que a linha que seguia havia sofrido um intenso abalo. Já podia imaginar
quem fora o alvo.
– Ei, foram tiros? – perguntou Claire, quando viu a moça seguir em frente
analisando os vestígios de odor que seu olfato ainda podia captar do estranho,
tentando se concentrar em um ponto difuso nas vibrações neurais que
confundiam o caminho que antes seguia. Quase podia sentir gosto de sangue
em sua língua.
– Tenho que encontrá-lo. – falou consigo mesma, mas antes de sair em
disparada, olhou uma última vez para a garota e lhe deu um aviso. – Vá
embora, Clarice Wiggins, você não entende como corre perigo aqui.
Claire parou e, bestificada, ficou olhando a moça rapidamente se afastar
pela neve. Havia muitas interrogações em sua mente extremamente curiosa de
futura jornalista, mas duas delas se sobressaíram, enquanto seu rosto era
castigado pelo vento gelado do final da tarde.
Como ela conseguia correr tão rápido num terreno onde seus pés
facilmente afundavam entre uma passada e outra e...
...como diabos ela sabia seu nome de batismo?
***
Judity estava surpresa com o modo como seu corpo se adaptava pouco a
pouco ao ar livre. Era como poder finalmente andar e se movimentar sem bolas
de ferro presas aos pés e braços. Aos poucos, não só seu corpo, como a
mente apreciavam a liberdade. Ampliavam-se, absorvendo a energia contida
ao redor. Era seu combustível para enxergar uma trilha vermelha em sua
mente, diante de um caminho que poucos se aventurariam a percorrer
sozinhos.
Quando percebeu, estava diante de uma casa entre grandes árvores
escuras. Havia uma moto caída em frente a um carro preto, ambos amassados.
Respirou e fechou os olhos. Nem seria preciso fazer isso. Antes mesmo que as
pálpebras cerrassem completamente, já podia sentir a frequência pipocando
em tons intensos. Sua mente trabalhava como nunca antes. Precisava
controlá-la apenas com sua própria força de vontade num momento critico.
Tremeu, mordendo os lábios e fechando as mãos em punho. Teria que conter-
se, ou eles perceberiam que estava ali.
Não seria necessário bater, o trinco da porta estava arrombado. O arrepio
levantou alguns pelos de seus braços aos sentir as presenças hostis que
passaram por ali antes de sua entrada. Abriu cautelosamente, já com os
instintos atiçados. Cerrava os dentes para conter o que ela não sabia o limite
certo de parar. O grunhido do animal dentro dela.
“Vamos, papisa, você consegue fazer isso.” – pareceu ouvi-lo dizer em
algum ponto de sua mente.
“Me chame de Judity, seu animal!”
Abriu a boca para chamar o nome do homem, mas também parou.
Poderia ser um erro. Aspirou o ar, porém até a atmosfera estava confusa, como
se o aroma das presenças que antes estiveram ali fosse capaz de confundir
seus sentidos.
Esquivou-se dos móveis revirados, procurando habilmente com os pés os
degraus da escada. Sentiu, num eriçar dos pelos da nuca, que o tumulto vinha
de lá, onde estava tudo escuro. Ouviu, muito no fundo, um grunhido. Teve o
impulso de se atirar escada acima ao perceber a agonia, porém, conteve-se.
Havia algo de muito errado naquela escuridão.
Farejou novamente, buscando algum vestígio, e mais uma vez seus
sentidos se confundiram e ela só teve a opção de seguir adiante às cegas.
Havia uma porta aberta no corredor de cima. Uma fina linha de luz saía
por ali, e ela seguiu cautelosamente, em absoluto silencio. Estremeceu com o
som que veio no fundo de seu ouvido, tão baixo que poderia ser emitido
apenas pela garganta sem chegar à boca. Eram gritos de dor sufocados.
Aproximou-se mais e olhou pela porta. A tênue claridade que via era um
abajur caído no chão, com a louça quebrada. Subiu os olhos para o lençol
desarrumado sobre uma cama ensanguentada. Neste momento o gemido saiu
de sua própria garganta e ficou a um passo de novamente se descontrolar.
Suas unhas enterraram-se nas palmas das mãos.
O homem no chão parecia tão atordoado com a dor que nem se deu
conta que tinha companhia. Esticava o braço para o criado mudo,
ensanguentado pelas tentativas de seus dedos o tocarem. Sem forças, era
como se estivesse cimentado no chão, impossibilitado de chegar perto de algo
que estava ao seu lado.
A gaveta se abriu num rompante e ele olhou para cima assustado. Porém,
não mais que ela.
O que ela via eram ferimentos que imediatamente fizeram seu cérebro se
ativar numa busca que normalmente só executava diante de um computador.
Ali estava um homem meio lobo, numa transformação abortada no limiar do
processo. Um homem cujos ferimentos sujavam suas roupas com uma mistura
de sangue e fluidos de uma cor que ela conhecia, que, como se tivessem uma
vida maligna, se enraizavam lentamente pelos buracos de bala, e entre a
pelagem negra. Assim perto, ela podia sentir a dor de uma maneira quase
irracional, palpável. Não era uma dor normal, via em seus olhos quase em
choque que não...
O que era aquilo, o que era...
Ele se contorceu, e mais uma vez Judity ouviu seu grito vindo do fundo da
garganta. E ela entendeu, num estalo.
Acônito!
Olhou novamente para o líquido que se enraizava na carne do homem e
entendeu que ele não estaria agonizando por ferimentos de bala. Ele estava
sendo envenenado pelo acônito nelas da mesma forma que ela quase fora na
lanchonete, por aquele homem. Aquele homem...
– Vá embora... – ele conseguiu balbuciar, tentando fazer algum
movimento que só tornou a lhe estourar em agulhadas de dor. A mão
semilupina agarrou o tapete, torcendo-o como se fosse papel. – Você n-não
devia estar... Aqui...
Ela apontou um dedo para a própria cabeça e depois o levou à frente dos
lábios em sinal de silêncio.
“Você achou mesmo que iria me tombar com isso? Você não sabe tanto
quanto acha ao meu respeito” – e enquanto falava, ela ministrava uma dose
grande de um líquido azulado numa seringa tirada das roupas do companheiro
de organização. Olhava seu rosto deformado entre a face de um homem e o
focinho meio espichado para fora, com dentes afiados que, no meio da arcada,
voltavam a ser apenas de um homem.
Puxou o braço que não tinha sido transformado e sentiu uma vibração
que arrepiou seus próprios pelos. Ele quase urrou de dor, se não tivesse
engolido mais este grito. Mas ela sentiu-o em sua mente e estremeceu.
Procurou a veia em seu pulso, tentando manter a precisão em meio à angústia.
“Não achei que... você recuperaria os sentidos... com tanta força e
rapidez... a verdade é que eu precisava afastar aqueles que... estavam atrás de
você...”
“Porque estão atrás de nós?”
“Nós mexemos com... pessoas muito... poderosas. Uma hora eles iriam
querer... nos parar. Talvez você não saiba disso porque sua função é... nos
manter seguros enquanto... vamos atrás deles. Eles são... apenas nomes e
dados para... você.”
Ela pensou sobre isso e em como, dolorosamente, era verdade. Olhou-o
esperando que o remédio que levava consigo fizesse efeito e espantou-se em
como, pela primeira vez, fazia algo parecido. Não seriam apenas as
habilidades físicas que queria desenvolver após aquele incidente. Ela queria
saber de tudo.
Seu pensamento foi interrompido por um grito. Judity levantou-se de
pronto, sentindo claramente o cheiro de um humano. Como não percebera
antes? Pulou a cama, correndo para a porta, mesmo com o homem tentando
buscar forças para dizer que não fosse.
Quando ela desapareceu, o grito foi silenciado com um disparo, depois
outro e outro. O ultimo causou um lamentar lupino.
Foi muito rápido. Saindo porta afora, Judity sabia que já era muito tarde,
mas não conseguiu conter seu corpo da transformação, estava tudo por um fio
desde que saíra da segurança do forte, era questão de tempo para seu corpo
explodir, libertando a fera dentro de si.
Mas não houve tempo para que essa emersão ganhasse forma e cor. Tão
logo sentiu suas mãos virando garras, o rosto alongando-se, os músculos
destruindo as roupas, sentiu também dois choques profundos em sua carne,
que a fez gritar como um lobo sendo ferido em caça.
Cambaleou, urrou feroz, desnorteada. Viu, sem entender, a humana caída
no chão e, segundos depois, ela também tombou, sentindo seu corpo
esvaindo-se ao lado da poça de sangue do ferimento na cabeça da garota.
Sua mente estava um turbilhão, e a completa falta de controle a
atordoava. Como manter seus músculos daquela forma, como não sentir a dor
dos ferimentos à bala? O que deveria fazer?
Seu focinho roçou no linóleo tentando levantar-se, ela sabia que só tinha
alguns segundos. E então sentiu, em meio ao caos, o cheiro do sangue da
garota morta.
Aquilo lhe deu a iluminação que precisava, o suficiente para tirar a dor da
frente de seus sentidos.
Eram dois homens, de terno, inexpressivos, tão governamentais e sisudos
que nada de bom poderia vir dali. E não veio, debaixo dos ternos bem
cortados, armas e munição.
Um deles voltou ao quarto onde estava Frentzen, o segundo engatilhou
novamente o revólver e apontou para a loba prateada no chão. Iria terminar o
serviço, quando subitamente ela deu um grunhido sobrenatural e levantou-se
em postura ofensiva, arrancando a arma da mão do atirador e destroçando seu
braço. Quando ele começou a gritar, ela lhe deu uma mordida que levou parte
de seu rosto. Ela sentiu o sabor do sangue, mas também repulsa. Cuspiu a
carne e os miolos, confusa. O homem caiu no chão, morto.
O outro, que estava preparado para atirar no primeiro e principal lobo de
sua matança na casa, virou-se surpreso pelo ataque. Como aquela peste
poderia ainda estar de pé se descarregaram duas cargas de acônito nela?
Preparou para usar sua própria arma, achando que fosse um ataque
involuntário de fúria de uma moribunda. Não seria difícil matá-la. Disparou
assim que viu sua pelugem.
– Idiota, eu disse para tomar mais cuidado na hora de... – ele ia dizendo
olhando para o comparsa ensanguentado no chão, achando que neste novo
disparo, a loba cairia de vez. Mas não foi isso o que aconteceu. Ela, mesmo no
chão, ainda parecia ameaçadora, e era diferente dos outros, tinha algo de
estranho nela. Preparou-se para descarregar tudo o que tinha logo de uma vez,
sendo que, na busca, eliminaram dois outros nos fundos da casa e aquela
parecia ser a última. Pretendia usar este momento de atordoamento, em que
não parecia que ela iria se levantar.
E não ia mesmo. Doeu, ela não entendia porque, mas doía de forma fria.
Havia algum mecanismo lupino para parar aquilo, algo que só ela ativaria? Não
fazia a menor ideia, não entendia como seu corpo se comportava durante a
transformação, estava tudo um caos, mas sentia uma resistência, parecia que
seu organismo lutava contra o veneno. Apesar disso, não teria tempo de se
recuperar antes de seu algoz acabar com sua vida...
No instante final antes de apertar o gatilho, o homem foi nocauteado por
um violento golpe na cabeça. Pego de surpresa, caiu por cima do corpo do
comparsa. O pedaço de madeira de um dos móveis destruídos caiu no chão
em seguida, ensanguentado. As mãos que o manusearam com tanta força
perderam a agilidade assim que viu o resultado do golpe.
Ela olhou incerta para a loba prateada, e seus olhos vermelhos por um
segundo pareceram encontrar uma réstia de reconhecimento nela. Mas não
seriam os olhos quem a tinham captado antes dela entrar em cena. Era o
olfato. O cheiro de seu sangue, que não tinha nada a ver com a garota morta
minutos antes. Mas o que o nariz reconhecia os olhos ainda tinham dificuldade
em compreender e assimilar, de modo que Claire, ciente de que ficar ali seria
burrice, correu escada abaixo. Judity grunhiu e num salto desajeitado, correu
atrás dela.
A garota se escondeu no vão embaixo da escada, com o coração na
boca, entupindo os ouvidos, desesperada, sentindo o suor escorrer, em
pensamentos desenfreados: “Não não ela não pode fazer nada comigo, eu
acabei de ajudá-la, ela tem de entender isso, meu deus, que loucura é essa,
desde quando pessoas viram lobos e...”
Mas a sombra e o rosnar de uma bocarra assustadora se precipitava em
sua direção. Ela teve vontade de chorar, de se molhar, de morrer sem sentir
dor alguma. Mas aí se lembrou do homem tendo metade de seu rosto
simplesmente arrancado pela boca dela. A lembrança de seu cérebro caindo
aos pedaços só piorou a frequência de seus batimentos cardíacos, e em pânico
ela não percebeu que a presença ameaçadora tinha ido embora.
***
Subiu, sentindo um aroma mais apetitoso que o da menina. O do sangue
do carrasco. Escorria pelo ferimento na cabeça e ele tentava se levantar
confuso, enquanto gotas quentes caíam no seu olho. Nem mesmo tomou
noção que apoiava-se sobre uma poça feita pelos miolos do seu companheiro,
pois um grunhido as suas costas foi a ultima coisa que percebeu.
Os gritos retraíram o corpo trêmulo de Claire. A fizeram querer se mesclar
à parede e ser tão gelada quanto ela, pois só assim o calor da sua pele, o suor
convulsivo em seu corpo não atrairia o olfato faminto daquela fera.
Antes que pudesse ter tempo de chorar seus nervos abalados a fizeram
desmaiar.
III
A luz fazia mal, embaçava tudo. Não, não era luz, eram seus olhos, olhos
não acostumados a acordar do torpor do corpo refeito em carne humana,
esvaziado, enfraquecido como pele vaporizada. Pela primeira vez se sentiu em
seu corpo refeito, não sabendo ao certo o que devia ser ela de verdade.
Virou a cabeça, tudo girou, o estômago contorceu-se e só sentiu uma
única vontade: o que estava dentro dela tinha de sair.
– Oh, meu Deus! – o homem, ainda com indícios da transformação lupina,
pediu calma, embora não pudesse esperar que fosse suportável para uma
humana ver aquela cena. Abalada pelo que passara, pelo simples fato de ter
presenciado toda a bizarrice do qual eles poupavam boa parte dos humanos,
ainda tremia depois do despertar forçado por um odor forte e químico vindo de
um frasco que ele lhe enfiara no nariz. Tinha pressa, por isso também não
deixara que Judity descansasse depois do trauma de uma primeira
transformação completa, com direito à refeição que ela agora despejava no
chão do quarto, com o estômago a rejeitar o que para eles podia ser apetitoso.
O lençol no qual ela estava envolta, após perder suas roupas rasgadas pelos
músculos desproporcionais, deslizou deixando seu corpo nu e arrepiado.
Frentzen não a acudiu dessa vez, pois ministrava uma nova seringa com
líquido azulado. Claire, sem coragem para estar tão perto, olhou o que o
francês fazia e a quantidade de seringas que ele já usara na moça para fazê-la
voltar ao normal.
Pensou em dizer que aquilo podia ser perigoso, mas não verbalizou. O
que ela sabia afinal sobre aquelas criaturas? Nada daquilo podia se comparar à
resistência humana. Preferiu ficar quieta onde estava, ainda aterrorizada
demais para emitir opinião.
Frentzen esperou que a crise de tosse passasse e cobriu-a, não deixando
de reparar em meio ao caos que ela escondia uma incrível beleza por baixo
das roupas. Quando conseguisse se controlar melhor, seria uma loba
formidável. Gostaria de estar presente nesta transformação.
Pediu-lhe o braço e injetou a dose que preparara.
“Esta é a ultima?”
Ele ficou surpreso com a pergunta.
“Sim, é, a menos que...”
“A menos que nada. Esta é a última. Não me dope, não podemos nos dar
a este luxo. Precisamos voltar” – e olhou-o, decidida. Depois desviou seus
olhos para a porta, mas a garota não estava mais lá. Havia se escondido atrás
da parede, trêmula, com medo daqueles olhos.
***
Claire não se lembrava de já ter trafegado dentro de um carro tão grande
e tão escuro. Ou de ter passado um dia tão traumático. Com tantas
informações e crenças quebradas não sabia o que pensar, era como se tivesse
entrado naquela floresta com dezenove anos e saído com mais de trinta.
Estava taciturna dentro do veículo que não possuía nenhuma identificação,
mas ela sabia fazer parte do grupo deles, fosse qual fosse. Ele abrangia
aquelas pessoas que arrastaram para o fundo da casa, num galpão
abandonado, para serem conservados pela neve até que pudesse ter algum
tipo de funeral mais digno. Até mesmo a humana, que nada tinha de lobo e que
Claire lembrava-se de já ter visto na cidade, acreditando ser membro de
alguma gangue, mas os ajudava em sua causa, ficara entre eles. Já os restos
mortais dos capangas foram deixados em sacos de lixo. Frentzen pensou em
queimá-los, mas logo lhe pareceu uma má ideia: a fumaça poderia atrair
outros.
Ambas estavam no banco de trás, obscurecidas pela noite, pelos vidros
embaçados e escuros. O carro estava parado, com o motor ligado e Frentzen
havia corrido a uma loja de conveniência após abastecer o tanque. Claire,
ainda tensa, abraçava a sua mochila e não pensava mais como não trouxera
nada para registrar aquelas informações. Agora talvez tudo o que queria era ter
um jeito de esquecer.
– Tem medo que eu vire um monstro e te coma?
A voz de Judity a assustou. Virou para o lado, aquele ponto que estava
tentando evitar por medo. Não respondeu, mas isso não foi empecilho para a
moça continuar.
– Tudo bem. Até eu tenho medo do que aconteceu.
Isso fez Claire olhá-la novamente, começando a ficar curiosa.
– Por quê?
Judity se acomodou melhor no banco, enrolando-se mais ao cobertor
preto, embora frio não fosse exatamente o que sentia.
– Eu nunca fiz isso... – começou, em tom de confidência. Olhou entre o
vão da porta aberta se o motorista não estava voltando. Não queria falar aquilo
na frente dele. – Me... Transformar... Não é esse meu papel na Gr... no lugar
onde trabalhamos. Eu... Tenho algo diferente, meu sangue não é igual dos
outros, não é 100% de lobo. Acho que tem algo a ver com a mãe que nunca
conheci. Dizem que ela era uma espécie de demônio... – ela riu, amarga,
balançando a cabeça e olhando para o nada entre o vidro embaçado da janela,
como se vendo alguma longínqua memória. – Enfim, posso usar minha mente
de forma ampliada, e assim monitorar o que está acontecendo com a nossa
espécie e onde o perigo está. Foi por isso que eles... Eles me pegaram.
– Como eles te pegaram? Não pareceu fácil fazer isso – e pensou nela
massacrando aqueles homens como se fossem feitos de papel. Não imaginava
que uma dúzia deles pudesse fazer algo melhor.
– Mas é. Se você pensar num lobisomem como músculos, dentes e
garras talvez ache que nada consegue nos parar, exatamente como deve ter
visto agora. – Claire arrepiou-se com a descrição de seu pensamento. Não
sabia o que era mais assustador naquela moça, sua fúria lupina ou seus dons
mentais. Ambos eram inconcebíveis em sua cabeça até aquela tarde. – Mas a
fraqueza do lobo está nos seus sentidos, justamente naquilo que ele tem de
mais aguçado. E aí, fica fácil nos desnortear. A minha fraqueza era justamente
meu desconhecimento em relação a muita coisa que deixei de lado seguindo
meu condicionamento. Eles usaram isso para me deter. E um dia com a luz
apagada e sem olhos, nós ficamos vulneráveis. Eles vieram, e começaram a
nos caçar e não sabíamos mais onde eles estavam para nos proteger a tempo.
– Porque caçar vocês, o que vocês fazem?
Mas Judity não pretendia lhe dar aquela resposta.
– Se você ficar sabendo, aí até eu teria que te matar.
Os pelos de Claire subitamente se arrepiaram. Remexeu-se incomodada
no banco, não gostando do que ouvira.
– Digamos apenas que nós somos mais enérgicos com relação ao mal
que alguns fazem ao planeta. Mas sabemos que estamos mexendo com
pessoas poderosas e com muito dinheiro, então às vezes eles vem nos
procurar também, e de alguma forma, nos acham.
Claire pensou numa briga literal de cachorros grandes, com dinheiro e
sangue voando. Seria um bom mote para iniciar uma matéria em seu jornal na
faculdade, o boom que precisava para que suas suspeitas deixassem de ser
infantis e infundadas para se tornarem coerentes. Mas não. Há algumas horas
atrás poderia ser facilmente atraída por isso, mas agora, depois do que viu, não
parecia mais valer a pena.
Quando tornou a olhar, Judity não precisou de sua expressão sagaz para
saber o que estava pensando. Um sorriso leve, quase imperceptível figurou em
seu rosto enigmático.
– Que bom que a experiência também te fez compreender. Sei que você
trabalha com notícias e pode ficar tentada a falar sobre isso.
– Eu não vou falar nada, juro...
– Realmente. Porque se fizer, eu saberia onde lhe encontrar.
Imediatamente o coração de Claire disparou e sua boca ficou seca.
– Você é arquivo sobre nós, e seria melhor que soubesse pouco e não
descobrisse para onde vamos.
Os lábios da garota agora tremiam quase convulsivos. Só conseguia
pensar “Eles vão me matar, meu Deus, é claro que eles vão!” – mas
surpreendeu-se novamente com o sorriso enigmático da loba ao seu lado.
– Seria o mais óbvio, mas não o mais inteligente. Desde o começo eu lhe
falei “volte para casa garota”, mas pessoas como você não escutam esse tipo
de conselho. É quase como falar “bem, vamos lá, continue me seguindo”. Eu
poderia deixar você ir embora agora, mas estaria correndo mais riscos sozinha
com tanta informação do que se fosse com a gente agora. Nem consigo
imaginar como te torturariam para ter algo sobre nós, e depois, por
simplesmente ter estado conosco.
Ela ainda a olhava com olhos chocados.
– O que você está dizendo? Não vou poder voltar para casa?
A porta do carro se abriu. Frentzen estava de volta e apressado, voltava a
ligar o carro, pondo-o em marcha. Olhou-as pelo retrovisor, ainda tentando
conter sua vontade de queimar aquele arquivo ali mesmo. Se aquela menina
fugisse, se falasse algo sobre eles...
“Confie em mim, eu sei o que estou fazendo. Não precisamos de mais
ninguém em nosso encalço além deles e da bagunça que eles nos causaram.
Ainda estou aprendendo a fazer isso, então temos que nos ajudar, certo? Não
vamos agir como nossos inimigos” – Os olhos do francês se desviaram do
espelho retrovisor para o caminho escuro.
“Vamos para o forte, estão precisando de nós, eu posso sentir.”
“Eu também, Judity.”
Ela o olhou surpresa. E estranhamente satisfeita.
“E se conseguirmos passar por essa crise, eu prometo deixar que você
me ensine como lidar com... isso.”
Ele iria responder, também surpreendido, mas foram interrompidos pelo
estranho toque em cordas de baixo vindo de algum lugar. O som chamou-lhes
atenção, assim como lhes era agradável aos ouvidos. Era irônico, mas o toque
do celular de Claire lembrava o lugar para onde eles iriam.
Os três se olhavam. Ela estava apreensiva, quase com medo de dizer que
era a mãe. Como se fosse possível esconder algo daquela antena psíquica ao
seu lado. E sentiu o breve trocar de informações entre eles, daquela forma
incrivelmente silenciosa. O francês a olhou pelo retrovisor e sentiu-se presa ao
olhar cristalino dele prestes a lhe dar uma ordem.
– Atenda. Diga que esta com amigos. E que vai passar a noite fora. Todo
o final de semana.
Ela iria abrir a boca para perguntar o que faria se a confusão já tivesse
chegado às zonas urbanas e ela estivesse preocupada, querendo que voltasse
para casa. Judity foi rápida em sentir sua intenção misturada ao medo.
– Estamos indo para um lugar bem longe do perigo, Claire. Tranquilize-a.
E depois vamos embora.
Foi o que ela fez. Palavra por palavra. E como se enfeitiçada pelo
discurso montado pelos dois seres fantásticos a mãe acreditou que a filha
estava indo para longe do perigo que tornava os noticiários um pouco mais
violentos aquela noite. Desligou, as mãos tremendo e suando frio.
Ela quase não pode acreditar. Mas também compreendia perfeitamente.
Como não percebeu que aquele caminho nada tinha a ver com a estrada de
volta para sua casa. Estavam indo, na verdade, rumo aos lugares mais ermos
da cidade, justamente de onde as histórias que tanto lhe interessavam
começavam. Sem caneta ou caderno, achou que seu amanhecer seria como
ter acordado de um pesadelo sem saber se realmente tudo aquilo acontecera.
Mas agora...
– Você tem essa música no seu celular? Nós gostamos desse tipo de
música. Flui bem aos nossos ouvidos e seria um bom relaxante antes de...
Vermos o que esta à nossa espera.
Claire sentia-se estranhamente distante da sua realidade, aquela
realidade deixada para trás ao desligar sua última conexão com o mundo
pacato que conhecia. E ao encontrar a canção e fazê-la tocar aos lobos, era
quase como sentir-se dentro dos versos sombrios de Robert Smith.
Eu ouço a sua voz chamando meu nome... O som é profundo na
escuridão...
Quando a loba virou seu rosto para si, sentiu que não tinha mais tanto
medo quanto antes de seus olhos amarelos. Era quase como começar a sentir
alguma espécie de união entre eles, muito tênue, mas rapidamente se
formando.
– Claire?
– S-sim?
Ela olhou-a mais um pouco e começou:
– Meu nome é Judity. E nos chamamos Green Death.
E deu-lhe um sorriso de confiança.
~ * ~
Contato com a autora:
http://brisanoturna.blogspot.com.br
DESCOBERTAS (Adrianna Alberti)
Sudão, Parque Nacional Dinder.
Alim e Banri estavam confortáveis em conjuntos cáqui, duas felizes
turistas que pela primeira vez realizavam o sonho de um safári africano.
Esperavam poder conferir de perto as zebras, os leões. Extasiadas com o
safári particular, elas sorriam para tudo e todos, acompanhadas pelo guia, um
troncudo e simpático senhor de idade que falava mal o inglês.
As mulheres eram bem diferentes uma da outra, tanto em postura como
em aparência. Alim era doce, delicada, o tom da voz sempre abaixo do
esperado, a pele alva, os cabelos ondulados negros e o olhar sempre distante
de todos; Banri, ao contrário, era enérgica, a pele de um tom chocolate, os
olhos atentos a tudo combinavam perfeitamente com a personalidade ativa e
curiosa.
O guia fez questão de desviar algumas rotas, principalmente as próximas
à mata mais fechada. Alim percebeu o cheiro característico de adubo em um
trecho, havia certo foco de desmatamento e preparação da terra para
pastagem. Pôde ouvir o guia murmurar algumas pragas, as pessoas que
cuidavam do parque não gostavam daqueles fazendeiros ali. Banri enxergou
algumas estruturas de madeira improvisadas e, em determinado ponto entre a
floresta e a savana, ouviu o som de metal e madeira a se chocar. Seria
imaginação sua ou ouvira o grunhir inquieto ao longe? Haveria animais
enjaulados ali?
Fora das imediações do parque havia uma pequena cidade. Nela ficava
localizado o hotel e alguns pontos comerciais, mas o que mais chamava
atenção era a sede da organização dos fazendeiros locais, em um terreno
afastado, uma construção cara e chamativa com dois grandes elefantes
empalhados na entrada e dois galpões ao fundo. As jovens turistas
conseguiram permissão para entrar na sede, para poderem tirar algumas fotos
com os animais empalhados. Entre olhares de surpresa, contaram quase
cinquenta animais entre elefantes, zebras, leões, leopardos, rinocerontes e até
bois. Compunham uma coleção amedrontadora.
***
Alim aguardava no saguão do hotel, suada. Sentia precisar de água
fresca e um pouco de brisa, trazia nas mãos um envelope pardo grosso.
Aquele recanto do mundo era realmente bonito, mas o calor era incômodo,
mesmo para ela.
– Senhorita Alim? – disse o mensageiro com um sotaque engraçado, e
ela sorriu de volta.
– Sim. Estou com este envelope cujo conteúdo deve ser transmitido via
fax urgentemente, não o perca, não o desvie, por favor. Confio em você – e
piscou um olho como para fechar o acordo silencioso.
Cavin recebeu o envelope com prazer. As mãos delicadas da jovem, ao
roçar as suas, lhe provocavam singulares arrepios que ele contava as horas
para sentir. Todos os dias era o mesmo ritual, ao voltar de seus passeios, ela o
chamava e lhe entregava um envelope.
Na sala contígua ao saguão ele apressou-se em cumprir seu dever,
sentou em frente à máquina de fax e transmitiu o conteúdo das folhas brancas
manuscritas. De tudo o que tinha sob seus olhos, apenas o número de destino
faria sentido para alguém que por acaso visse o conteúdo, o resto eram frases
pouco claras, com termos estranhos.
***
Cavin fora enviado especialmente ao quarto número oito. Banri abriu a
porta e o convidou a entrar.
– Senhoritas, recebi uma mensagem urgente para ser entregue a vocês. –
colocou na mesa um papel impresso.
Belo passeio. Chego na próxima terça feira para orientá-las a revelar as fotos,
assim poderemos voltar para casa satisfeitos. Oscar.
– Nunca esperam que façamos nada sozinhas.
Alim riu da própria brincadeira, mas um tom de desprazer e melancolia
denunciavam seus mais secretos sentimentos. Nunca confiavam apenas nela
nem para a mais simples das atividades. A prova disso era que Banri havia
sido mandada junto para o levantamento de alguns dados de localização e
atividade realizada. A Green Death ainda não confiava inteiramente em suas
capacidades.
– Vamos, novata – falou Banri. – Um dia você revelará as fotos sozinha e
não precisará de cães sarnentos como nós dois para auxiliá-la.
Cavin ficou quieto, sabiamente. Não havia pior apelido que cão sarnento
para ele. Mas Banri era terrível e definitivamente sabia colocar todos em seus
devidos lugares.
***
“Bom trabalho aos três. Foi uma tarefa simples, mas bem feita, e agora
temos muito que fazer e precisamos ser rápidos. Nunca trabalhamos juntos,
mas todos conhecem o protocolo.”
A voz de Oscar ecoava em suas mentes. O líder trouxera consigo
Fernand, sujeito astuto, experiente e feroz, que fazia o trabalho de forma rápida
e objetiva, apesar de ter um ar meio perturbador. Havia ainda Malcon, um
rapaz extremamente violento.
“Acontece que esse é um trabalho simples”, interrompeu Malcon, ríspido e
impaciente. “Temos dois pontos de ataque: a sede da organização dos
fazendeiros, a leste daqui, e um ponto de tráfico de animais selvagens no
centro do parque. Vamos nos dividir em duas equipes e nenhuma falha será
aceita.”
– Já chega Malcon! – reverberou a voz do líder, sobressaltando o grupo,
que estranhou a transição da comunicação mental para a verbal. – Vocês
conhecem a hierarquia, não me amolem com seus egos!
Malcon amuou com a trovada que era a voz de Oscar. Não aceitava ser
colocado no mesmo patamar dos betas e ômegas presentes. Os outros eram
incompletos, apenas mão de obra e isca, caso algo desse errado. Não, ele não
deixaria que Oscar o rebaixasse.
***
Um toque leve na porta. Ela vinha desde o seu quarto repassando o que
queria lhe falar, a honra de trabalhar com ele. O líder riu com os pedidos
infantis e a mandou entrar. Banri estava radiante por conseguir conversar a sós
com ele.
– Obrigado, por tudo o que disse em pensamento, não sei se sou digno
de todas as honrarias, mas obrigado.
Banri ficou encabulada pela primeira vez na vida, pois tivera seus
pensamentos de admiração captados involuntariamente por Oscar. Ele deu-lhe
a permissão de se sentar na cadeira à sua frente, e serviu um grande copo de
água gelada.
– Eu já ouvi falar de você também, menina. Só não é uma líder porque
não se transforma, correto? – Banri anuiu desanimada. – Seria uma grande alfa
com esses sentidos que possui. E sua mira? Já ouvi falar que não erra um tiro.
Ah! Claro, e dizem que é tão persuasiva que até mesmo um alfa fica inseguro
quando você está na equipe.
Banri não pôde deixar de sorrir, não era tão persuasiva assim, mas
gostava das coisas nos eixos, a hierarquia, as missões, não admitia falhas. E
Oscar deveria saber disso agora, afinal lia seus pensamentos.
– Mas como não posso contar contigo ao meu lado para lutar, preciso que
cuide das outras coisas para mim na sede dos fazendeiros. É realmente mais
simples essa ação: Fernand cuida dos guardas e você e Cavin cuidam de vigiar
os galpões, é ali que os fazendeiros se reúnem com os caçadores. Usaremos
explosivos para acabar com os imóveis, e os agentes alfa e beta darão conta
dos sobreviventes, garantindo que não sobre um caçador sequer vivo. Nós
temos uma missão simples, mas uma equipe difícil. Alim é novata e ainda não
sabe seu lugar. E ainda há o Malcon, o real motivo de eu ter vindo nesta
missão. Ele é mais do que impulsivo, é cruel, mesmo com os da sua raça.
Banri ouviu atenta. A história de Malcon era cheia de baixas, ouviu como
ele havia desobedecido todos os líderes de suas missões e na última delas
chegou ao ponto de expor um ômega e sacrificá-lo, ninguém ainda sabia dizer
por que ele fizera isso, mas ela desconfiava que fosse por prazer.
– Sim, senhor.
– E prepare dois veículos de fuga com armas, kits de sobrevivência,
coloque muita água. E também acrescente esses passaportes com visto para o
Egito para seu grupo e esses com visto Etiópia para os que ficaram no meu
grupo.
– Egito? Mas senhor, a melhor opção de fuga daqui é Eritréia ou Etiópia.
– Em Abu Simbel há uma sede da Green Death onde vocês poderão pedir
abrigo caso algo venha a dar errado. Procure este senhor.
Ao passar o olho de relance Banri só pôde apreender o nome de um
importante arqueólogo da cidade. Oscar sabia que aquela missão seria a mais
importante de sua vida e não poderia lidar com todos os problemas que viriam
a ter, e só poderia contar com Banri, esperou a mulher sair do quarto e quando
ficou novamente sozinho desfez os bloqueios mentais para os outros membros
da alcateia.
***
Era noite de reunião geral dos fazendeiros e caçadores a serviço na sede.
Confiantes, não costumavam reforçar a segurança do local, pois achavam-se
os donos do país, intocáveis. Por causa disso, a invasão da Green Death foi
rápida, silenciosa e sem maiores complicações. Primeiro implantaram
explosivos na construção da sede e nos veículos ali estacionados, depois de
Fernand esmagar as cabeças dos dois únicos guardas do lugar. Preparavam-
se para seguir na direção dos galpões, quando algo inesperado aconteceu.
Malcon emitiu um grande uivo, no limite entre o parque e a cidade, em um
volume que certamente denunciaria sua presença.
Fernand se prontificou a conter a saída dos homens dos galpões, Banri já
ligava o motor do seu jipe, em um morro próximo, e Cavin sentava-se no banco
do passageiro.
“Iremos nos reposicionar para oferecer cobertura a vocês, isso certamente
fará soar o alarme.” – Banri soava rápida na mente de Oscar. – “O que deu no
Malcon?”
Oscar também não sabia. O agente insubordinado estava ao seu lado, e
um instante depois, deixou seu posto sorrateiramente e uivou ao longe.
Precisava seguir em frente, junto com Alim, antes que os inimigos
conseguissem organizar alguma estratégia de defesa. A beta era uma boa
lutadora, uma fera bruta, mas menos veloz, menos perspicaz. Por conta disso,
não percebeu a armadilha que fora armada no seu caminho até ser tarde
demais. Os lança-chamas foram acionados e a mulher-lobo foi presa por uma
rede de prata, queimando viva.
Oscar tentou ajudá-la, mas uma movimentação na mata o alertara,
estavam cercados. Foram traídos! Foi necessário um segundo para que os
fazendeiros surgissem, não dos galpões onde eram esperados, mas dos limites
do terreno. Malcon sorriu em seu esconderijo, enquanto o líder se ocupava em
atacar os homens que foram surgindo, totalmente preparados para eles.
Fernand ficou isolado em meio a outro grupo de inimigos. A estratégia dos
caçadores era não permitir que a Green Death atuasse em grupo,
enfraquecendo sua defesa.
***
Banri e Cavin estavam estarrecidos, a mata queimava, animais gritavam
de dor, corriam desesperadamente para todos os lados. Seus companheiros se
contorciam em lutas de vida ou morte. Aqueles homens eram traiçoeiros e não
mediam esforços para aniquilá-los. Era tarde demais, não se deixaria levar
pelos sentimentos humanos, não havia brecha para mais falhas, já haviam
cometido todas as possíveis. Oscar estava preso entre dois grandes caçadores
que o atiçavam com espetos de prata, Malcon observava tudo com grande
prazer do alto de uma grande árvore. Como não haviam visto a clara
armadilha?
Um novo plano de contingência foi elaborado rapidamente. Precisavam
contar com a ajuda do líder, que mesmo antes de toda a ideia ser repassada
mentalmente já a aceitou de pronto. Banri não poderia deixar os gritos de
agonia de Alim tomarem conta de sua mente agora, respirava fundo, enchia os
pulmões com a fumaça enegrecida da queima das árvores ao redor. Ar quente,
cheiro ruim.
O líder foi rápido, reagiu à espetada do caçador à suas costas ferindo-o
de morte com a própria arma enquanto Banri, com sua espetacular mira,
acertava o outro no meio da testa com um tiro certeiro. Cavin não era tão bom
de mira, mas acertara a árvore em que Malcon observava de longe,
assustando-o temporariamente, fazendo-o descer.
Malcon reagiu rápido, empurrando Oscar para a sombra, usando-o como
escudo na direção de alguns homens que atiravam a esmo nos dois
lobisomens. Acertaram o líder, que caiu grunhindo após receber as balas
revestidas de prata em seu corpo e sentia o sangue escorrer. Tinha uma
vontade insana de matar não só os caçadores, mas Malcon também. Os
homens eram experientes, usavam prata, ácido e fogo para causar dor e
sofrimento nos grandes lobisomens.
Cavin e Banri esperavam os caçadores se reagrupar. A mulher com sua
mira ia diminuindo a quantidade de homens na luta, Cavin apenas feria um ou
outro, desperdiçando parte da munição. Oscar rolou no chão com um caçador
enquanto o outro esperava para atirar nele. Malcon impelia o líder na direção
dos homens armados. Mais dois tiros certeiros acertaram as pernas de Oscar,
e o lobisomem traidor acreditou ter concluído sua missão como agente duplo.
Banri tinha encontrado uma posição privilegiada em cima de um barranco,
de onde podia ver claramente a luta que se desenrolava na clareira depois do
pequeno riacho que cortava o parque Dinder. Cavin não tinha mais munição
em sua arma. Alim, já de volta à sua forma humana, sequer emitia ruído,
apenas uma agonia terrível escapava em sua mente. Fernand tentava alcançar
a companheira, mas era cada vez mais afastado dos outros por saraivadas de
balas.
A ômega gritava mentalmente a Oscar o que estava prestes a fazer, sabia
que Malcon não mais tentava interceptar suas mensagens. A resposta do líder
veio com um olhar profundo de resignação e um uivo soprado em sua mente.
Ele aproveitou a ligeira distração de Malcon e o agarrou pelas costas, seus
urros sendo ouvidos por todos os presentes em meio ao campo de batalha.
Mais caçadores chegavam, era vital se apressarem. Ao subir a luz
avermelhada do sinalizador, os homens mudaram seu foco de atenção. Cavin
jogou algumas granadas, que explodiram atrás dos caçadores mais próximos a
ele, matando um imediatamente e fazendo o outro voar, mutilado. Malcon se
revirava nos braços de Oscar, tentando fugir, mas Banri fora perfeita, acertando
um tiro no coração do traidor. O corpo do traidor perdeu as formas de lobo e
caiu nu. Um segundo depois, o corpo do líder caiu ao chão, pois o tiro vazara e
matara a ambos, risco assumido por ele como única alternativa.
Banri não teve tempo para chorar as perdas, um tiro ecoou em seu
ouvido, atordoando-a. O carro que garantiria a fuga dali explodiu. Foram
alcançados pelos inimigos.
A mulher atordoada fugiu correndo pela cerca do parque e seguiu por
mais meia hora até encontrar seu veículo de fuga perto de uma árvore
retorcida. Via a floresta pegar fogo ao longe, o incêndio se espalhava
rapidamente na noite, respirava com dificuldade, aspirara muita fumaça. As
imagens se cruzavam em sua mente, lembranças confusas. Tudo dera errado.
Demorou até Cavin encontrar Banri escorada na árvore. Trazia nos
braços o corpo queimado de Alim, resgatada escondida na mata, onde tiveram
de esperar algum tempo até todos os caçadores passarem por eles. Alim logo
foi colocada no banco de trás, desacordada.
“CORRAM!”
Um grito atordoante estourou em suas mentes. Fernand emitia a
mensagem e corria ao encontro deles. Cavin só teve tempo de ligar o carro e
começar a acelerar, Banri mal conseguiu fechar a porta quando um solavanco
interrompeu a corrida desenfreada do carro.
“Continuem, não parem”, dizia o lobisomem beta em suas mentes.
Um tiro foi ouvido por todos. O carro, mesmo com a direção habilidosa de
Cavin, desviou para a esquerda, ouviram em suas mentes o grito de dor de
Fernand que ainda estava transformado e segurava o hack do carro. Estavam
sendo perseguidos por mais caçadores.
– Esses vermes com certeza são especialistas em lobisomens – teve
tempo de bradar a mulher.
Banri pegou a pistola do porta-luvas, e mandou Cavin diminuir a
velocidade, se pendurou pela janela aberta e aguardou. Acertaram outro tiro
em Fernand, que aguentava firme ainda em forma de lobo. Concentrou-se e
mirou. O tiro acertou em cheio a cabeça do motorista, o carro desgovernou e
logo bateu em uma árvore. Não havia mira melhor, não havia olhos mais
eficazes que o dela.
– Para onde vamos? – Cavin se dirigiu à mulher que se sentava
novamente.
– Nossa rota de fuga é Abu Simbel, no Egito.
“Temos o Sudão inteiro para percorrer!” – Fernand apontou em suas
mentes.
– Então é melhor sermos rápidos – Banri olhou para Alim adormecida,
queimada e machucada no banco de trás. – Pare o carro. Vamos ver o que
temos.
“Preciso tirar essas balas do meu corpo para cicatrizar, colocar uma roupa
e seguir com vocês. Um lobo no teto do carro vai chamar atenção demais.”
***
Alim acordou gritando, seu corpo coberto de graves queimaduras expelia
um líquido viscoso, não tinha forças para se transformar, não queria sentir mais
dor. Cavin sofria com a dor dela mais que todos, nutria um sentimento secreto
pela mulher.
– Estou dando três doses por vez para ela. Precisamos de mais morfina.
Fernand, como está? – Banri aplicava a injeção em sua companheira, sentia
por ela, por Cavin, pela perda do líder.
– Estou bem, mas a cicatrização está muito demorada e dolorida, percebi
duas costelas quebradas e o braço incomoda também.
Tinham dinheiro para o combustível, e além de encherem o tanque,
também armazenaram o precioso líquido em galões no porta-malas do carro.
Careciam apenas de um item, inesperadamente necessário. Banri entrou
sorrateira no hospital de uma cidade no caminho, e não sobrara nenhum
resquício de morfina depois de sua passagem. Alim ficaria dopada até o final
da viagem.
Cavin ficou responsável pela alimentação, e ao passar em uma loja com
uma televisão ligada estremeceu, mal conseguiu concluir a compra de
mantimentos. Diversos jornais estampavam notícias trazendo foto dos
passaportes falsos de Oscar e Malcon. Comprou três dessas publicações e
saiu apressado.
– Ouçam – Fernand lia uma das reportagens no carro. – A polícia foi ao
Parque Dinder e, com ajuda do dono do hotel e do líder dos fazendeiros, foram
descobertos os supostos responsáveis pelo ataque e incêndio ao parque e à
sede dos trabalhadores. Desconfiam de um grupo de turistas estrangeiros no
hotel. Na mata do Parque Dinder foram encontrados dois corpos pertencentes
a esse grupo, dois homens nus com marcas de ácido, balas e queimaduras.
– Fomos expostos!
O tom de voz de Banri ao pronunciar essas palavras era indescritível, mas
os dois sentiram um enorme arrepio percorrer a espinha e um medo brotar em
seus corações.
“Foi encontrado um carro equipado com armas, comida, roupas e outros
itens a leste do Parque Dinder. Nele também havia passaportes e identidades
falsas de três dos membros do grupo de falsos turistas envolvido no atentado
do Dinder. Outro item que despertou atenção foi o cartão octógono com o
crânio de um lobo no centro e na parte de trás os dizeres: GD–EL. Os policiais
não sabem informar qual a ligação desse com outros, mas sabe com certeza
que esses três membros, dos quais dois foram encontrados mortos, são
responsáveis pelo assassinato de pelo menos cinco fazendeiros, dois guardas
e dois funcionários do hotel. Surge ainda a hipótese de terem matado os outros
dois membros do grupo ao qual diziam pertencer, já que o paradeiro deles
ainda é um mistério.”
– Malcon, filho de uma cadela sarnenta! Ele é o responsável. Seu alerta
desarticulou toda a nossa estratégia. Desde o início era uma armadilha.
– Os galpões estavam vazios, eles sabiam que esse era nosso alvo.
Apenas alguns caçadores estavam escondidos no limite do terreno, para nos
cercar. Quando o uivo de Malcon deu o sinal, os grupos surgiram, tive de lidar
com alguns inimigos sozinho e só pude fugir. Quando finalmente me vi livre, fui
ao ponto onde vocês estavam, mas só havia morte e fogo – Fernand se sentia
obrigado a justificar suas ações isoladas.
Suas palavras pesaram e um silêncio profundo tomou conta da viagem,
estavam quase chegando ao Egito, não havia mais caçadores à suas costas.
Só precisavam chegar lá vivos.
***
Banri queria pensar que só aquela bala mataria os caçadores à sua
sombra, queria dizer que eles não viram o carro quebrado escondido atrás das
dunas, queria dizer que estava no deserto a passeio. Queria dizer que o nome
da Green Death não fora exposto. Mas não podia.
Ouvira o alerta em sua mente vindo de Cavin, Fernand se transformava,
havia três caçadores a pé visivelmente cansados em seu encalço. Não seria
difícil, Banri precisava ser perfeita como sempre, teria poucos segundos de
reação, dois tiros pelo menos. Fernand deveria cuidar do último.
E foi com espanto que ouviram os uivos agudos dos chacais, um enorme
grupo avançava pelas dunas do deserto egípcio. Banri sentia os corações de
pelo menos vinte animais. Agradeceu aos deuses daquela terra.
Os animais assumiam uma formação perigosa de ataque, rosnavam para
os caçadores. O homem mais próximo de Cavin sofreu o ataque do lobisomem,
pernas e braços logo foram abocanhados.
Era o que Banri precisava, o primeiro tiro acertou em cheio a cabeça de
um caçador, e fora em um átimo de segundo que o último caçador reagiu, o tiro
da bala de prata atingiu o lobisomem que devorava o seu companheiro, a
mulher atirou em seguida. Caçador e lobisomem caíram mortos no mesmo
instante.
Cavin e Banri aguardaram o banquete dos chacais, choravam por mais
uma perda, observaram de longe seus primos distantes, esfomeados e gulosos
se alimentarem. Era apenas o ciclo da vida, e os ômegas observavam a cena
com profunda reverência.
***
Samyr não costumava andar a esmo pelo deserto, ninguém em sã
consciência o fazia. Mas algo em sua alma pedia urgência, era acostumado a
esses rompantes de intuição e quase sempre acertava. Já chegara a salvar
alguns turistas perdidos em pleno deserto escaldante. Em seu carro, sempre
levava litros de água, alguns alimentos e curativos, pois não sabia o que
encontraria. Naquele instante não tinha o melhor dos pressentimentos.
E novamente sua intuição não lhe enganara. Encontrou um carro
abandonado no meio do nada, atolado na areia. Dentro dele, uma mulher muito
machucada e queimada revirava os olhos de dor. Próximos ao carro, sentados
no alto de uma duna a observar um grupo de chacais, um homem e uma
mulher pareciam deslumbrados com a cena selvagem que se desenrolava.
Com certeza os animais acharam algum outro bicho grande, havia muito
sangue espalhado pela areia.
Banri levantou rápida, apontou a arma para o estranho que se
aproximava, assustando Cavin, que não o tinha percebido. Samyr estreitou os
olhos negros e disse suavemente que estava ali em paz, porém seu árabe
pouco foi compreendido por Banri ou Cavin. Arriscaram falar em inglês que
precisavam de abrigo, Samyr também não os compreendia, mas sentia em seu
íntimo que aquele grupo precisava de ajuda. Nenhuma conversa fora
compreendida de todo, mas as impressões em um e outro eram tão claras
como comunicações mentais.
Samyr encontrou uma construção abandonada, provavelmente um templo
esquecido nas areias. Havia sombra suficiente para se esconderem do sol. O
egípcio deu de beber e comer aos estranhos, ao ver Banri medicar a mulher
sentiu uma dor excruciante em seus músculos.
***
Quando Banri acordou, Samyr já havia ido embora. Cavin medicava Alim,
cujo corpo se recuperava lentamente, a morfina era um recurso necessário, as
dores ainda eram terríveis.
– Ele foi embora antes do sol nascer. Não sei o que disse, mas acho que
voltará – Cavin tirava Barin de seus pensamentos.
– Você não acha estranha essa impressão que ele nos causa, como uma
comunicação mental discreta?
– Um dos nossos? Você acha?
Samyr surgiu com o sol se pondo, trazia consigo duas pessoas, um rapaz
mais novo muito parecido com ele e uma mulher muito mais velha, com as
rugas a saltar no rosto. Trouxeram mais alimentos e água, assim como
gasolina, roupas apropriadas para o deserto e curativos, além de um kit que
montado virava uma grande tenda.
Banri tentou se comunicar com Samyr, disse-lhe que precisava ir a Abu-
Simbel e, arriscando, entregou o cartão do arqueólogo que Oscar lhe indicara.
A resposta de Samyr surgiu clara como o céu em sua mente, ele lhe ajudaria,
conhecia o lugar, sabia exatamente onde a levar.
Masood era um velho amigo de Samyr, que já acostumado com suas
aventuras salvadoras não estranhou o pedido de ajuda. Foi ele quem se
incomodou primeiro com a sensação abafada que a noite trouxe.
– Samyr, algo está errado. Sinto essa opressão, esse mal estar.
O egípcio não havia sentido até o amigo apontar o fato, e logo que seus
pensamentos puderam pressentir o mesmo problema é que Banri ficou em
alerta, a sensação vinha de Samyr, e não da atmosfera.
***
Estavam bem longe do refúgio quando os primeiros tiros foram ouvidos no
deserto. A velha Izza ficou com Alim e uma arma carregada, apesar de não
saber manuseá-la direito. Samyr e Masood ficaram no meio do caminho,
escondidos entre as dunas, armados e se arriscando por estranhos. Não havia
explicação, só queriam participar daquilo.
Cavin e Banri se apressaram e encontraram os caçadores a quase uma
hora de distância do acampamento: eram dois carros, e o cheiro de sangue
preenchia o nariz de Banri quase a fazendo vomitar.
A mulher não queria esperar pelo confronto, ela e seu companheiro
estavam extenuados, queriam terminar logo e fugir de vez daqueles vermes.
No capô de um dos carros havia um pequeno pássaro empalhado, Banri sentiu
nojo de toda aquela situação. Ajoelhou e mirou. Novamente foi perfeita. Dois
tiros, e os motoristas dos carros foram alvejados. O primeiro carro acelerou e
parou ao bater em um banco de areia, o segundo só parou ao encontrar a
traseira do outro.
Foi uma pequena guerra de trincheiras, Banri e Cavin posicionados no
alto de uma duna, com os corpos escondidos e os caçadores atrás do carro
que logo ficou crivado de balas.
– Poucos tiros – Banri informava.
Contando mais com a sorte do que com sua mira maravilhosa, a ômega
acertou mais um caçador. Era a última bala. Os dois levantaram e, correndo,
seguiram em direção à posição de Samyr e Masood. Cavin levou alguns
segundos para levantar e correr, tempo suficiente para um dos caçadores
acertar um tiro em seu ombro. Tropeçou, caiu, mas não havia tempo para dor.
Agora só contariam com as poucas granadas.
Quando os fugitivos se jogaram aos seus pés, cansados e arrasados,
Samyr se adiantou com uma das granadas na mão. Ao ver o primeiro caçador
avançar através da duna, atirou com uma força que não conhecia em si, e a
granada caiu atrás do homem, levantando-o do chão com parte das pernas
mutiladas ao explodir.
Tiros zuniam em suas orelhas. Os caçadores procuravam acabar com
tudo aquilo, tentavam ser certeiros, esperavam. Estavam em visível vantagem,
bastava paciência para acabar com as vidas daqueles sujeitos. Masood rezava
encolhido, respirava com dificuldade com o rosto quase inteiro enterrado na
areia quente. Samyr temia pela vidas de seu amigo e daqueles estranhos. Uma
ira crescente surgia em seu interior, aquela era sua terra, os invasores não
tinham o direito de estar ali, fossem caçadores de animal ou de gente. Aquela
era uma terra sagrada.
O caçador da dianteira estava estático. Ouviu primeiro um grito
ensurdecedor, depois viu surgir entre as areias do deserto um ser de corpo
esquelético, meio mumificado, com a pelagem negra e o focinho fino, as
orelhas em riste pontiagudas e atentas. Anúbis, o deus da morte, viera buscá-
los! Sabia no fundo da alma que ali seria morto, pois ousou incomodar um
deus, ninguém mais acreditava em maldições de faraós, mas ali estava Anúbis.
E a visão daqueles dentes foi a última de sua miserável vida.
O deus chacal voltava para guiar os mortos, seu uivo ecoou nas dunas e
até mesmo em suas casas os egípcios se arrepiaram ao pressentir a volta de
um dos antigos. Izza tremeu ao ouvir o lamento da divindade, fez um antigo
sinal que sua avó lhe ensinara para afugentar os espíritos malignos. Era tempo
de pedir perdão pelos pecados.
Cavin balbuciava confuso com a aparição da fera, não precisava de
ninguém para lhe dizer que deveria segui-la a qualquer lugar. O chacal
enfrentou os tiros do caçador que encarava, este já não cumpria uma missão,
tentava salvar sua própria vida, a urina em suas calças eriçava de nojo os
pelos das costas de Samyr, e fora o sangue de sua presa que o satisfez e
acalmou sua ira.
Masood ergueu o rosto da areia, cuspia a que engoliu, era curioso
demais, precisava ver o que acontecia. Um tiro que o acertou no ombro o fez
gritar, e Banri logo tentou estancar o sangramento, ouvia os gritos de Masood e
uma ira pungente tomava conta de sua alma. Levou algum tempo para
perceber o que ocorria – a pele de Masood desprendia de suas mãos, o
sangue se misturava à pele e, ao apertar os olhos, via os ossos se deformando
e pelos brancos curtos surgindo.
O levantar do ser metamorfoseado jogou Banri longe. Era igualmente
esquelético, com pelagem branca e marrom, com um focinho alongadíssimo e
um uivo estridente. “Upuaut”, ecoava na mente da mulher, “outro deus egípcio”,
ela pensou. E em uníssono o uivo fez arrepiar a pele de todos na nação dos
chacais.
Os dois seres míticos se ocuparam dos caçadores restantes que, sem
balas, assustados e perdidos entre as areias, foram mortos de forma cruel.
Masood abriu o tórax de um, se alimentando avidamente do corpo. Samyr
saltou em cima do último caçador e estraçalhou seu rosto com as garras.
Banri observava a lua extasiada, aproximou-se de Cavin e percebeu que
os dois deuses egípcios dividiam com um enorme contingente de chacais
selvagens dos corpos dos caçadores mortos. A areia do deserto tingiu-se de
vermelho.
***
Foi apenas no nascer do sol do dia seguinte que Izza pôde observar Banri
e Samyr surgirem no horizonte com Cavin carregado nos ombros de Masood.
Suspirou aliviada, apesar do imenso terror que sentia em sua alma.
– O arqueólogo que devemos procurar vai gostar de saber que Anubis e
seu filho Upuaut eram originalmente metamorfos.
Cavin não pôde deixar de rir da observação de Banri e de sentir o sorriso
de Samyr em sua mente. Ele finalmente havia compreendido todas as suas
intuições estranhas, não era apenas um homem-chacal, era ligado àquela
terra. Anúbis guiava os mortos, mas mais do que isso era um deus valoroso.
E no final do dia Samyr trouxe ali o arqueólogo que Banri indicou, com
eles vieram cerca de dez homens-lobo para auxiliar na remoção deles do
deserto. O chefe de célula da Green Death no Egito ouviu espantado todo o
relato dos ômegas, desde a traição de Malcon até a caçada de mais de trinta
caçadores dos fazendeiros e traficantes de animais do Sudão.
– A história repercutiu! Recebemos sinais de alerta, a Green Death está
sendo procurada com afinco e não somente pelos sudaneses. Cada dia que
passa aparece um relato sobre aparições de lobisomens.
E o que mais intrigava o chefe egípcio eram as figuras de Samyr e
Masood ali ao seu lado, que rapidamente se transformaram na personificação
dos deuses antigos e correram pelo deserto.
– Isso é um achado e tanto – confidenciou para Banri. – Nunca havia
nascido um metamorfo no Egito, era o que eu pensava. Não havia lobisomens
oriundos dessa terra. Quanto aos feridos, a menina terá de ser submetida a
tratamento severo, principalmente porque sua regeneração é deveras lenta. O
seu companheiro ali se prontificou a ficar comigo aqui e tratá-la.
– Com toda essa repercussão, como não nos acharam? – Cavin
questionou o chefe.
– Nossa base não estava envolvida em sua missão e as informações que
chegaram da imprensa e polícia informavam sobre passaportes para Etiópia,
imaginamos que estavam para aquele lado. Cheguei a destacar uma missão
para procurá-los na Etiópia, mas não encontramos nem rastro. E estavam tão
próximos...
Banri sabia de todos os problemas, o que deveriam resolver, mas estava
cansada, triste e arrasada pela missão falha. Sabia que havia feito tudo que
estava em seu alcance, Cavin ainda fez questão de reiterar ao chefe egípcio
que sem sua mira perfeita não haveriam sobrevivido sequer à traição de
Malcon, mas ela estava arrasada. A imagem de Samyr, que sumia no
horizonte, a confortava. Agradeceu àqueles dois deuses poderosos, Anúbis e
Upuaut permaneceriam ali no deserto para guiar os mortos e guardar as areias,
estavam ligados ao Egito de forma profunda. Os deuses retornaram e não
sairiam dali tão cedo.
~ * ~
Contato com a autora:
http://meuinutil.blogspot.com.br
SANTO ARNALDO (Wellington Novaes)
Fogo. Tiros. Gritos. Botas em marcha. Através de um par de binóculos,
Morto observava as ações. Um incêndio voraz avançava sobre os barracos da
favela de Santo Arnaldo. Uma história bem comum – pessoas sem amparo
social migravam para as regiões mais remotas da cidade, desmatavam o que
encontrassem pela frente e criavam novas comunidades. Tudo ficava bem, até
o terreno valorizar e atrair a atenção de grandes empreendedores. Então
entravam em cena os incêndios, que atuavam como as queimadas utilizadas
no interior, a forma mais barata e rápida de se “limpar” uma grande área.
Escondido dentro da floresta do parque estadual, o observador oculto
estava cada vez mais impaciente, mas não faria nada sem que Luperca
mandasse uma mensagem para o seu celular. Os olhos fundos no rosto com
formato de caveira, junto com a pele ressecada e esbranquiçada, justificavam
seu apelido. Tinha altura mediana, quem o visse na rua acharia que era só
mais um homem de meia idade, perdido em um mar de rostos. Em menos de
meia hora o fogo alcançaria os limites mata. Morto finalmente ouviu o som que
tanto ansiava – o bip de mensagem recebida. “CARTA BRANCA, SEJA
RÁPIDO”, leu no visor. Tirou com calma sua roupa, dobrou-a e a pôs no chão,
em cima dela ficaram os binóculos e o celular.
Uma tímida lua minguante subia ao céu. Era chegada a hora, e Morto
soltou um urro. Não importava quantas vezes acontecesse, sempre doía muito.
Caiu no chão de quatro, a dor na barriga era intensa, sentia sua pele esticar e
ao mesmo tempo ser queimada, como se um ferro em brasa pousasse sobre
toda sua extensão. Vomitou uma gosma negra, sua língua ficou amarela e
começou a crescer, sangue descia de seus olhos, suas narinas queimavam.
Urrou novamente, de sua boca escorria uma baba vermelha, pelos começavam
a cobrir todo seu corpo e garras substituíram as unhas. Estava feito. O
lobisomem havia tomado vida.
A fera soltou um uivo feroz, antes de saltar para frente e correr em
disparada na direção da favela. Sentidos, desejos e pensamentos ganharam
mais força. Antes de galgar um grande barranco e chegar aos limites da
comunidade em chamas, molhou todo o corpo em um pequeno trecho alagado.
Avançava com velocidade pelas passagens estreitas entre os barracos, usando
a fumaça como trunfo para sua chegada furtiva. Em pouco menos de três
minutos, o lobisomem se encontrava no centro do caos. Uma verdadeira cena
infernal se projetava diante de seus olhos. Escondido pelas sombras de um
barraco que caía aos pedaços, viu um grupo de seis homens armados vestidos
de negro, empunhando fuzis AK-47, que aguardavam em frente à saída de
uma estreita viela, a pouco menos de sete metros de distância. Com
expressões sisudas, empunhavam os fuzis em disciplinada formação, como se
há muito tempo fizessem isso. A aspereza de seus olhares, a respiração calma
e parcimoniosa e a harmonia de suas posturas táticas revelavam que eram
soldados bem treinados. Corpos mutilados pela fúria das rajadas de tiro
espalhavam-se pelo chão. Aquela era uma das principais vias de fuga dos
moradores, pois dava para a rua principal da comunidade de Santo Arnaldo.
Um grupo de pessoas, formado principalmente por mulheres e crianças, corria
nessa direção e, mais uma vez, o barulho dos tiros se fez ouvir. Em um piscar
de olhos, mais vidas foram abreviadas.
Morto observou a cena com uma calma digna de um deus, frio e distante.
Após a chacina, antes mesmo de recarregarem as armas, saltou em direção
dos executores num lampejo de fúria vermelha, fazendo brilhar garras e
dentes. Rapidamente, suas vidas foram tomadas, sem chances de poderem
encarar a morte, ou de esboçarem arrependimento pelos seus atos. Com um
pequeno riso gutural, a fera demonstrou estar satisfeita com sua ação. Não se
importava com os humanos, mas sentia uma estranha necessidade de oprimir
o opressor, derrotar os que se achavam fortes. Esse desejo o inebriava com
uma doce satisfação. Mas não havia tempo para divagações, e com um urro
seguido de um ribombante uivo, o lobisomem avançou.
Não demorou muito para encontrar outra viela onde mais um grupo de
seis soldados avançava, de costas para ela, atirando a esmo com fuzis AK-47.
Tinham o rosto coberto por máscaras de gás e, como bons soldados, não se
diferenciavam fisicamente entre si. Quando estavam no meio da viela, uma
mulher saía de sua humilde moradia, que havia sido tomada pela fumaça. Em
meio a acessos violentos de tosse, tentava encontrar o marido. Ao encostar o
pé na viela, foi puxada pelos cabelos e jogada violentamente no chão. Gritou
de pânico e foi silenciada com uma pisada no meio da testa. Sua nuca não
resistiu à pressão e estourou. Tudo aquilo que ela fora desapareceu, de mais
nada servia seu nome, seus medos, suas qualidades.
Risadas sádicas chegaram aos ouvidos de Morto, e isso o fez rir também.
Estava na hora de atacar. Em um grande salto, suas garras perfuraram o
capacete do soldado mais próximo a ele. Em outro movimento rápido, decepou
a cabeça do outro soldado da retaguarda. A fumaça diminuía, e uma visão
aterradora se apresentou para os quatro membros remanescentes do pequeno
pelotão. Um ser todo negro, com pelos molhados, caninos enormes e olhos
carmesim, estava parado atrás deles. O soldado que havia matado a mulher
começou a tremer e uma sensação de mal estar se apossou de seu corpo.
Tirou a máscara e vomitou no chão. Os outros três sentiram algo parecido, mas
conseguiram manter uma compostura. O medo era a única sensação que
dominava seus corpos. O demônio em pessoa tinha vindo buscar suas almas
e, antes que pudessem expressar qualquer reação, um turbilhão de fúria
insana e garras dilaceraram seus corpos. A besta continuou seu avanço na
comunidade de Santo Arnaldo.
Por mais vinte minutos, o lobisomem agiu rápida e silenciosamente, em
tocaias e saltos certeiros. Já havia matado mais de cinquenta milicianos, e de
acordo com o que Luperca passou, faltava apenas o pequeno grupo do líder
que comandava a chacina. Seu nome era Alvarenga. Metade da favela estava
consumida em uma pira de chamas assustadora, e em pouco tempo o fogo se
alastraria pela mata. Não demorou muito para localizar o alvo.
Alvarenga estava a dez metros de distância, em um beco sem saída.
Tinha o corpo opulento, barba mal feita, movimentos todos desengonçados.
Uma figura deplorável, que graças á pouca luz que havia na viela, aproveitava
para satisfazer seus sadismos espancando com o cassetete uma jovem
grávida. A garota beirava a inconsciência, não gritava mais, esperava apenas
morrer de forma rápida. Um grande volume de sangue escorria de sua vagina,
havia perdido o seu bebê, e agora perderia a vida. Deitada no chão, decidiu
entregar sua alma a Deus, mas um pensamento veio-lhe à mente: Deus não se
importava com ela, a condenou à morte pelas mãos de um demônio em forma
de homem. Triste fim para uma jovem que queria ter vivido uma vida feliz com
seu filho. Não houve um último suspiro, pois o golpe final acertou-lhe o
pescoço, esmagando completamente a traqueia e toda chance de levar ar aos
pulmões. Alvarenga sorriu, amava a sensação de poder.
A risada gutural da besta às suas costas paralisou o carrasco. Tomado
pelo horror, Alvarenga não queria se virar, lágrimas e suor escorriam por sua
face, geladas como uma chuva de inverno. Passos foram ouvidos, sua língua
inchou, a garganta parecia se fechar como se duas mãos a estrangulassem.
Queria que aquilo acabasse, esperou imóvel pelo que pareceram horas, até
sentir o hálito fétido da besta sanguinária na nuca. Os olhos do homem
esbugalharam e sua urina escorreu pelas calças. Em um abraço mortal foi
estripado, órgãos internos voaram junto com fezes e sangue por todo muro da
estreita viela.
Alvarenga, o ex-capitão da tropa de choque da polícia, que durante
muitos anos cometera atrocidades e, após ser julgado de forma branda por
uma corte militar, escapara ileso e passara a chefiar uma milícia, agora não
mais respirava. Sob as garras impiedosas do agente da Green Death, de nada
lhe adiantou ter sob seu comando ex-militares e bandidos fortemente armados,
nem o dinheiro recebido de pessoas poderosas para fazer trabalhos sujos e
sangrentos, como aquele em Santo Arnaldo.
Morto conhecia muito bem esses personagens e suas histórias. O caso
de Santo Arnaldo há tempos era investigado pelos Cães do Mato,
destacamento da Green Death do qual fazia parte. Uma reintegração de posse
seria um processo muito demorado e dispendioso, então era mais fácil utilizar
grupos de extermínio que, além de utilizarem incêndios criminosos para liberar
a área, ainda matavam e amedrontavam os moradores, afastando-os
permanentemente dali. Se algo vazasse para a mídia, seria tratado como
acidente ou guerra de traficantes. A finalidade disso tudo era construir um novo
aterro sanitário, onde boa parte do lixo industrial da cidade – que é caro demais
para ser adequadamente tratado – seria descartado em um local ermo e de
difícil acesso, longe da fiscalização.
As divagações de Morto deram lugar ao senso de urgência. Faltava
apenas mais um detalhe para terminar seu trabalho ali, depois de se livrar de
todos os milicianos. Seguiu à procura dos últimos soldados, guiado
principalmente pelos seus instintos, através das sombras e da fumaça, e
chegou à paróquia de Santo Arnaldo. Os dois homens estavam dentro do
recinto, de costas para a entrada, sentados em um dos poucos bancos que
restaram, depois da destruição causada pelos tiros. Bebiam uma garrafa de
vinho e riam. O chão estava lavado de sangue das dezenas de cadáveres ali
caídos, moradores que nem em terreno sagrado puderam se refugiar. Um urro
ecoou, e antes que percebessem o que ocorria, com um rápido movimento
Morto cortou-lhes as cabeças com suas garras.
Uma sensação de dever cumprido preencheu o coração do lobisomem.
Um objeto caído no chão chamou sua atenção, envolto em um pequeno pano
surrado, sujo de sangue e cinzas. Morto se aproximou e o pegou, pois
enxergara uma utilidade para ele. Virou as costas e novamente mergulhou no
mar de fogo e fumaça.
Não demorou muito para chegar ao lugar onde havia deixado seus
objetos pessoais. Lentamente voltou à forma humano, vestiu-se, pegou o
celular e enviou uma mensagem para Luperca: “FEITO. ESTOU A CAMINHO”.
***
Luperca era magra, alta, de cabelos cor de fogo, e não aparentava ter
mais de vinte e cinco anos. Por onde quer que passasse era notada, e isso a
incomodava um pouco, pois não gostava de chamar atenção. Dentro de seu
carro, estacionado junto ao meio-fio em uma rua residencial deserta, observava
os documentos dentro de um envelope pardo e o objeto entregue a ela por
Morto, horas antes. Eram peças-chave para concluir aquela missão com êxito.
Era por volta das onze horas da noite e tudo estava tranquilo, pois a
vigilância particular acabara de passar por ali, em sua ronda relaxada. Luperca
saiu do carro com uma mochila nas costas e dirigiu-se até o porta-malas, de
onde retirou um pé-de-cabra. Andou até o outro lado da rua e parou em frente
a um muro de três metros e meio de altura. Olhou para a câmera de
segurança, que estava na parte alta da esquerda. Desligada, servia apenas de
enfeite. Luperca saltou, vencendo facilmente a barreira que se interpunha em
seu caminho, e pousou suavemente num gramado bem aparado. Um pouco à
frente havia dois cães de guarda a da raça pitbull, mas com um simples olhar e
um rosnado baixinho, a intrusa fez com que ambos se afastassem, sem latir.
A casa era grande, tinha uma grande piscina, uma ala espaçosa para a
churrasqueira, e por dentro era lotada de todo o conforto que o dinheiro podia
oferecer. Conforme passado pelo serviço de inteligência da organização, os
empregados estavam todos de folga naquela noite. Detalhes como este
justificavam o tempo de espera pelos relatórios das observações da Green
Death. Correu silenciosamente até a entrada da cozinha.
Forçou a trinca de uma porta lateral com o pé-de-cabra e com pouco
esforço arrombou-a, atravessando a cozinha e dirigindo-se ao saguão principal,
em direção às escadas que levavam aos dormitórios. Como havia estudado
minuciosamente a planta da casa, chegou à porta do quarto desejado sem
errar. O único ruído no local era um ronco forte, que escapava pela porta
entreaberta. Sorrateiramente espiou e conseguiu ver a silhueta avantajada de
Plínio, sobre a cama de casal.
Ele era um poderoso juiz que liberava os alvarás e quaisquer outras
solicitações que a empresa que desejava as terras de Santo Arnaldo queria. A
agente entrou sorrateiramente no quarto, sem que a porta fizesse barulho, e
prostrou-se ao lado do homem. Teve vontade de matá-lo, mas sabia que isso
seria pior, que outro juiz o substituiria e possivelmente seguiria com a rede de
corrupção. A ruiva soltou um sorriso amargo e delicadamente pôs o objeto em
cima da cama de Plínio, ao lado de seus pés.
No dia seguinte, o juiz acordou aos berros, ao ver um embrulho que fedia
a sangue sobre sua cama. Pensou ser o pedaço de algum bicho, ou mesmo de
uma pessoa, e uma tempestade de lembranças que envolviam seus primeiros
anos como juiz envolvido a máfia saltaram em sua mente. Ao se levantar e
averiguar o que era, percebeu que o caso era pior do que pensava. Uma
imagem de Santo Arnaldo, coberta de sangue e fuligem, o encarava. Mal se
recuperara do susto e seu celular tocou. Com a respiração falhando, atendeu.
Era Milena, sua secretária. Ligou avisando que há poucos instantes uma pilha
de documentos confidenciais fora entregue no seu gabinete por um motoboy.
Plínio desligou o celular sem se despedir e pôs as mãos no rosto, esfregando-
o. Havia entendido o recado.
Mais tarde, o mesmo juiz que gritara de medo ao acordar, gritava com
convicção em alto e bom som em uma coletiva de imprensa. Dizia que a
reintegração de posse da favela de Santo Arnaldo estava cancelada, por
descobrir que tudo não passava de uma armação de uma empresa, que queria
usar o terreno como depósito clandestino de lixo industrial, e que os incêndios
foram todos forjados por ela. Exigia o fim da empresa e a prisão de todos os
altos executivos dela. Também esbravejou que a mesma empresa, contratara
um grupo de extermínio para poder dar fim à vida dos moradores. Porém, não
soube explicar como esse mesmo grupo, que possuía armamento pesado,
havia sido encontrado aos pedaços em meio aos corpos carbonizados.
Morto viu todo discurso pela televisão enquanto tomava um suco de
laranja e Luperca comia um pastel de frango, dentro de um bar “pé sujo”.
Ambos com um sorriso no rosto, dessa vez de satisfação. Ao eliminar o grupo
de extermínio, Morto conseguira deixar provas incontestáveis do massacre que
acontecera em Santo Arnaldo, pois sem esses corpos, a mídia não seria
forçada a expor a verdade, e uma forte investigação em cima da polícia não
seria feita. Tinha cumprido seu papel brilhantemente. Luperca estava feliz com
tudo, mas não se importava muito, de qualquer forma, o pastel estava
delicioso. Após terminarem seu breve café da manhã, pagaram a conta e
saíram para a rua, à caça de seu próximo destino.
~ * ~
Contato com o autor:
QUEIMADURAS (Franklin Lima)
Acordei com dor de cabeça. Os olhos também doíam, por isso decidi
deixá-los fechados. Só pensava em sofrimento e morte. Sofrimento da minha
esposa Keila, internada em uma instituição psiquiátrica. Morte do meu irmão, o
único laço de sangue que eu tinha na vida. A terrível missão que levou sua vida
aconteceu há mais de dez anos, mas ainda me assombra. Eu era o líder da
operação na Rússia e me sinto responsável por isso, apesar de não termos
como adivinhar que caminhávamos para uma armadilha. O cansaço voltou, e
praticamente desmaiei.
O segundo despertar foi mais real e doloroso. Só então percebi que
estava preso a uma maca de aço com correntes. No braço direito, um tubo
conduzia uma espécie de sedativo que me paralisava, deixava meus
pensamentos confusos, mas não entorpecia meus sentidos. Quem diria que eu,
Kaleu Wittler, outrora líder de uma célula da Green Death, um dia cairia em
outra emboscada e viraria uma vítima indefesa.
Pesca predatória de tubarões. Deram um jeito de me infiltrar no navio dos
bandidos, mas pelo jeito eles sabiam quem eu era, como aconteceu com os
contrabandistas de peles russos, uma década atrás.
A droga me dava enjoo. Ou seria o balanço contínuo da embarcação em
alto mar? Tentei me transformar em lobo, mas foi inútil. Sempre que fazia isso,
minha cabeça doía e o corpo não respondia. Quem quer que tenha me
aprisionado, sabe com quem está lidando. Um homem entrou na sala, usando
macacão preto, luvas de couro e uma touca ninja. Nem seus olhos eram
visíveis, pois usava óculos escuros. Arrastava um carrinho de aço, cujo
conteúdo eu não consegui ver, por causa da minha posição e da paralisia que
limitava o movimento da minha cabeça.
De costas para mim, ele preparava alguma coisa no carrinho que trouxe.
Um odor de algo queimando se misturava ao cheiro de água salgada. Quando
se virou, tinha um ferro em brasa nas mãos. Ficou clara sua terrível intenção.
Tortura.
Por horas e horas ele me queimou com o ferro nos braços, no peito e nas
pernas. Fazia pequenas pausas de vez em quando, apenas o tempo suficiente
para aquecer o ferro e continuar com a tortura. As queimaduras me faziam
lembrar da missão na Rússia, do fogo imenso que chamuscou minha pelagem
lupina. Aguentei o quanto pude, sem um único gemido, não daria essa
satisfação ao maníaco.
– Me mata logo! – gritei, cansado de suportar tanto sofrimento.
– Então você prefere a saída mais fácil? – disse o torturador. – Pensei
que fosse mais valente.
A voz era terrivelmente familiar, mas pensei estar com alucinações por
causa das drogas e da dor. De novo uma cena terrível da Rússia voltou à
minha mente, nós entrando em um galpão onde estaria acontecendo uma
reunião dos contrabandistas, a explosão súbita, minha mulher e meu irmão
voltando à forma humana, inconscientes. Fogo por todos os lados, a pelagem
do meu corpo de lobo em chamas. Terror. Precisava sair dali. Ele estava preso
sob algumas caixas de aço, ela estava mais perto, a meus pés. Uma escolha
difícil em meio ao medo: levei-a comigo na fuga desesperada no meio do fogo
e deixei meu irmão para trás.
Depois disso, Keila nunca mais participou de missões, e vive sob os
cuidados médicos cedidos pela Green Death. Carrega pelo resto da vida as
cicatrizes desse desastre e perambula pelos cantos, deprimida. Perdeu a
vontade de viver. Ela não assume, mas me culpa pela morte do meu irmão.
Voltando ao presente, percebi que o torturador retirou os óculos e a touca,
confirmando a suspeita na qual eu não queria acreditar: era Taylon, meu irmão
supostamente morto! No rosto e pescoço, cicatrizes de queimadura terríveis
que o deformavam.
– Achei que a purificação pelo fogo surtiria em você o mesmo efeito que
surtiu em mim, o fortalecimento.
– Você está vivo...
– Sim, e não é graças a você! – ele estava alterado. – Você me deixou
para morrer, como a Green Death tentou fazer com todos nós.
– O que... O que quer dizer? – a dor das queimaduras atrapalhava meu
raciocínio.
– Você não desconfiou de nada nestes dez anos? Como destacaram o
trio rebelde, que sempre questionava ordens estranhas que pareciam ir contra
a ideologia da organização, e mandaram a uma missão "especial" onde fomos
abatidos como cordeirinhos? – só então percebi que a organização me enviou
a missões cada vez mais suicidas nos últimos anos. – Keila é uma casca vazia,
por causa do bondoso “tratamento médico” que eles ministram. Eu sobrevivi
por pura insistência, para vingar essa injustiça. Montei meu plano com
paciência, enquanto me curava. Tenho ex-agentes ao meu lado, que também
estão contra os diretores da Green Death que recebem suborno de grandes
corporações. Graças a esses companheiros incorruptíveis fui resgatado. Para
tudo ficar completo, eu precisava apenas encontrá-lo e fazer sentir na pele
parte do que senti.
– M-mas a Green Death nos acolheu, nos tirou da rua...
– Esses safados querem mão-de-obra cega e burra, só isso. Seu
recrutamento não tem nada de boa ação! Nós servimos muito bem à
organização, enquanto fomos soldados que cumpriam ordens sem questionar.
Logo que mostramos capacidade de raciocínio e inteligência para notar que
havia grana rolando nos bastidores, fomos eliminados. Só você permaneceu na
ativa porque, sejamos honestos, fraquejou totalmente com minha suposta
morte e a depressão da sua mulher...
– É tudo... Confuso. Não consigo raciocinar...
– Seja rápido, pois agora você vai mostrar quem é de verdade. Suas
queimaduras o farão voltar para eles como um cachorrinho machucado, ou
você se tornará mais forte e abraçará minha causa contra eles? Para mim o
fogo ajudou a clarear a realidade. E para você?
Naquele momento, a dor da realidade era maior que a das queimaduras.
Eu amava a Green Death por tudo que fez por mim, por ter me oferecido um
lar, alimento e treinamento, mas tudo o que Taylon disse fazia sentido, eu só
precisei de alguém para abrir meus olhos para as coisas que não percebi
antes. Eu senti que meu irmão falava a verdade sobre a missão suicida, já que
a organização nunca deu a atenção que a morte de Taylon merecia. Isso não
me alegrava, pois eu ganhei duas opções e uma escolha, ficar do lado do meu
irmão que daria a vida se fosse necessário, ou unir forças com um grupo que
almejava a morte de Taylon, e provavelmente arquitetaria a minha logo em
seguida.
– Eu escolho seguir com você!
Ele mandou uma mensagem via rádio, e naquele mesmo instante seus
aliados libertaram minha esposa de sua internação. Daquele dia em diante,
minha vida de foragido se tornou um inferno, mas pelo menos tenho Taylon e
Keila ao meu lado, cada um com seus traumas e cicatrizes, nesta luta sem fim.
Aos poucos estamos retomando a força e a união de outros tempos. Ainda
havia muita podridão na Green Death, e estávamos prontos para combatê-los
com as mais traiçoeiras táticas de guerrilha. A guerra estava apenas
começando!
~ * ~
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