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    FUNDAMENTOS ANTROPO-FILOSFICOS DA EDUCAO

    Luiz Gonzaga Gonalves1

    Apresentao

    Voc convidado(a) agora a ingressar no universo da antropologia los ca da educao. As palavras podem parecer distantes, mas quando falamos da antropologia estamos trazendo para a discusso o ser humano, sua vida e seus modos de ser, pensar e agir em seus contextos vitais. Quando falamos de antropologia los ca queremos saber como o ser humano vai construindo seus processos de compreenso de si e do mundo e em que bases encontra sustentao para se pronunciar sobre seu saber e conhecimento.

    Na longa aventura humana sobre a terra temos dado provas de que somos capazes de aprender durante toda a vida, de crescermos em diferentes nveis e em diferentes profundidades de aprendizagem. As disponibilidades abertas de nosso crebro, os domnios da linguagem e da comunicao, as habilidades de nossas mos, o andar bpede, nossa longa infncia e adolescncia, entre outras caractersticas, permitiram que crissemos formas de organizao grupal e social complexas, supondo uma aprendizagem continuamente aberta. So essas disponibilidades humanas e sociais para aprender a ser e a conviver, que nos levam, como educadores, a indagar pelas vises de mundo que se zeram hegemnicas e pelos caminhos con ituosos de recepo e de integrao ativa na sociedade de todos os seus membros.

    Como voc ver, o convite para o Curso inclui um recuo no tempo, para revermos as heranas los cas que prevaleceram com suas concepes de mundo, de ser humano, de sociedade e de natureza, capazes de orientar modos de pensar e de agir. As incurses pretendem inspirar as buscas de hoje, quando as tarefas educacionais emergem dos espaos onde nos encontramos, da direo que pretendemos seguir e dos motivos que orientam nossas decises.

    Interessa-nos, de modo especial, como latino-americanos, como brasileiros, os vnculos entre educao e poltica, que demarcam con itos, e transformam diferenas em grandes desigualdades. No comeo do sculo XX 75% da populao brasileira eram analfabetos. Vamos rejeitar os saberes de coisas da vida que temos acumulado ao longo dos sculos ou vamos incorpor-los em nossas propostas pedaggicas? As pedagogias no conformistas se erguem das inquietaes em torno dos entendimentos que construmos acerca dos processos atravs dos quais so construdas as sociedades, e com elas os conhecimentos e saberes hegemnicos. Nem por isso vamos desconsiderar as vias inteligentes de aquisio de saberes, muitas vezes desprezadas.

    Uma loso a exionada a servio da educao e da vida de se esperar que corresponda a um pensamento complexo, aberto inovao e ao dilogo frente aos domnios vrios do saber e do conhecimento. Estar na vida ter a certeza

    1 Professor, mestre e doutor em educao, com graduao em loso a e pedagogia; vinculado ao Departamento de Fundamentao da Educao, do Centro de Educao, da Universidade Federal da Paraba.

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    de poder experimentar crises, superaes e busca de alternativas para pensar um mundo onde todos os seres humanos possam encontrar uma morada digna.

    Os objetivos que pretendemos alcanar

    Vamos trabalhar a partir de trs grandes objetivos. Queremos identi car as heranas los cas que prevaleceram com suas concepes de mundo, de ser humano, de sociedade e de natureza, capazes de orientar modos de pensar e de agir. Queremos examinar as orientaes que dizem respeito aos avanos do conhecimento, predominantes na civilizao ocidental, muitas vezes postos a servio de poucos. Por m, queremos contribuir para a a rmao de uma ao pedaggica voltada para a promoo do ser humano, de modo a fortalecer as buscas e intervenes a servio de um convvio social onde todos encontrem um lugar digno de habitar.

    As unidades temticas

    Vamos trabalhar com trs unidades temticas. Na primeira vamos nos deter no universo da antropologia los ca grega, procurando identi car seus pressupostos e preocupaes. Vamos mostrar como a loso a grega vai deixando para trs os domnios da sabedoria de vida, que no oferecem bases seguras para o conhecimento. Vamos nos deparar especialmente com as contribuies de Scrates, Plato e Aristteles.

    Na segunda unidade vamos ver como a loso a na modernidade desvenda novas necessidades e horizontes para o pensamento, redimensionando a pergunta sobre a capacidade humana para conhecer. Veremos alguns aspectos da contribuio de Descartes e Bacon e de Comenius. O ltimo procura desenvolver uma pedagogia aberta s novas idias de seu tempo.

    Na terceira unidade vamos ver como Rousseau abre caminhos para uma pedagogia da existncia, rompendo com a pedagogia da essncia, descortinando novas bases para uma educabilidade aberta ao universo da criana e importncia da aprendizagem. Vamos ver como a Escola Nova no sculo XX aprofunda as idias apresentadas por Rousseau. Vamos ver tambm que o sculo XX vai aos poucos inserindo efetivamente o Brasil nos problemas polticos e pedaggicos de seu tempo. Encerramos a terceira unidade fazendo um balano das heranas educacionais que nos alcanaram durante nossa formao escolar.

    Encaminhamentos e processos de avaliao

    O processo avaliativo incluir alguns exerccios para que voc, aluno(a) possa apropriar-se dos contedos e dos problemas levantados pelos textos selecionados. Voc far textos curtos que sero pedidos ao longo do curso, com os quais voc trar sua contribuio a partir das leituras propostas. Nessas atividades teremos no seu conjunto uma das trs notas nais.

    A avaliao incluir um convite para que voc tente inventariar a sua experincia discente, desde sua iniciao escolar. Interessar neste inventrio,

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    neste memorial discente, que voc avalie o alcance daquilo que comps as dimenses fundamentais do seu processo educativo escolar. Voc pode destacar aspectos positivos ou negativos presentes. Por exemplo, inventariar o que cou de marcante dos seus contatos, do seu manuseio dos livros didticos; o que cou de marcante de sua relao com as bibliotecas das escolas; o que cou de marcante dos recursos didticos utilizados pelos professores at aquilo que hoje chamamos de ensino fundamental, de ensino mdio. Voc convidado a inventariar as opes de avaliao da aprendizagem, inventariar aspectos marcantes do contexto da poca, no qual a(as) escola(as) estava(m) inserida(s).

    Com a produo do inventrio escolar, resvalando em saudades e vivncias, a meta a de tentar desvendar, com os olhos de hoje, os ns e objetivos muitas vezes implcitos que eram atingidos, com as orientaes pedaggicas e didticas dominantes vividas por voc, at chegar universidade. A primeira parte do trabalho que corresponde ao inventrio dos aspectos relevantes de sua aprendizagem escolar equivale a segunda nota nal.

    A partir desse inventrio discente, voc convidado a fazer uma segunda parte de seu memorial adotando um conceito de educao. Com esse conceito que pode ser seu ou buscado na literatura educacional, voc convidado a identi car as direes, as concepes de mundo que orientaram as opes pedaggicas e didticas vividas por voc como aluno(a) e as que voc apontaria como vlidas hoje para as novas geraes que chegam aos espaos escolares. Com a segunda parte crtica do seu memorial completaremos as trs notas.

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    UNIDADE I

    A FILOSOFIA GREGA ANTIGA: Pressupostos e Preocupaes

    1.1 Atividades Introdutrias

    Que tal quebrarmos o gelo, comeando por concentrar nossa ateno na etimologia de algumas palavras consagradas, que retratam a vida na escola, nossas conhecidas de longa data?

    A atividade los ca desenvolve um cuidado especial com as palavras que utilizamos. Quer saber o alcance que elas tm para descrever e dar signi cado para as coisas que se desdobram no mundo onde nos movemos. As atividades da loso a da educao tambm no se descuidam das palavras que podem nos ajudar a demarcar os caminhos, a coerncia das respostas perante os desa os educacionais, de ontem e de hoje. Querem nos ajudar a ver os horizontes demarcados, as compreenses acerca do que se espera da disponibilidade do ser humano para se educar. Uma antropologia los ca a servio da educao quer saber, portanto, qual compreenso decisiva de ser humano, de sociedade, de vida orienta as buscas, faz surgir os problemas considerados relevantes. A tentativa a de caminharmos prximos das teorias e prticas, que ontem e hoje disputam o poder de dizer o que deve ser a educao, para que e para quem ela serve.

    1.2 Etimologia das Palavras no Espao da Educao Escolar1

    - Aluno alumnus,.i;criana que se alimenta no peito; aquele que se alimenta dos bocados que provm do magistrio. Em decorrncia: pupilo, discpulo.

    - Aprender a) apprehendere: agarrar, apanhar, segurar, apoderar-se de algo, porque precioso e no se deve escapar. Em decorrncia: tomar conhecimento de, reter na memria. b) discere aprender, de onde deriva a palavra discpulo.

    - Educar a) educare: criar, amamentar. Em decorrncia: instruir, preparar para a vida. b) e-ducere: e: para fora; ducere: conduzir; dar luz; fazer surgir. Em decorrncia: ajudar a conduzir de uma situao outra; ajudar a modi car.

    - Ensinar: - insignire: assinalar, distinguir, colocar um sinal, mostrar, indicar. Em decorrncia: indicar o caminho para aprender.

    - formao: fromage, em francs: provm da ao de dar forma, de con gurar, como os moldes do forma aos queijos.

    - Instruo instructio,.onis: construo, edi cao.- Mestre - magister,.tri: o que sabe mais2 (magis), o que dirige, conduz.- Pedagogo do grego paidogogs (pais, paidos: criana! E agogs: guia,

    condutor): escravo que acompanhava as crianas escola; depois: mestre, preceptor.

    1Quando os vocbulos apresentados no tm origem no latim, sero destacados de onde se originam. Ver Maria Lucia ARANHA. Filoso a da Educao. So Paulo. Moderna. 1989. p. 58. Ver Ernesto Faria. Dicionrio Escolar Latino-Portugus. Reviso de Rute J. de Faria. 6 ed. Rio de Janeiro. FAE. 1991). Ver tambm Octavi Fullat. Filoso as da Educao. So Paulo. Vozes. 1994.

    2Esclarece Octavi Fullat (1994, p. 35) que o poderio fsico, moral e cultural do mestre fundou a concepo educativo-ensinante que prevaleceu durante sculos. A Escola Nova modi cou paulatinamente, e apenas em determinados ambientes, os signi cados desses signi cantes

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    6VOLTAIRE. Zadig ou o destino: histria oriental..Rio de Janeiro. Ediouro. S/d.

    - Saber sapere: ter sabor, agradar ao paladar; saber, conhecer, aprender.- Texto textum,.i: tecido, pano; obra formada por vrias partes reunidas.

    1.3 Um antigo conto fi losfi co oriental e a sabedoria da ateno

    Pudemos ver que os vocbulos que giram em torno do universo escolar brotam da vida, muito antes que a sociedade contasse com um espao especializado para a aquisio dos saberes considerados relevantes. Assim, iniciamos nossa caminhada com um longo recuo no tempo. Por isso, importa a ateno para algumas setas, alguns entalhes3 que apontam para antigas compreenses do que seja exercitar uma loso a de vida. Para realizar isso, voc ter ao seu dispor um conto4, sem autoria de nida, que poderia ser escrito em qualquer regio do planeta, inclusive em nosso nordeste rural brasileiro.

    Em seguida, voc ter a oportunidade de examinar alguns termos de origem muito antiga, heranas da cultura e da loso a grega, indispensveis at hoje. Graas contribuio da professora de loso a da Universidade de So Paulo, Marilena Chau, os termos los cos so apresentados com seus vnculos e dependncias com as experincias gregas mais humildes. Veremos, de incio, apenas seis desses termos los cos. Meu interesse principal com eles demarcar as despedidas que a loso a grega faz, de modo consciente e deliberado, do que h de melhor dos saberes do senso comum5. A loso a grega critica os riscos que envolvem tais saberes, seu alcance limitado, e especialmente as di culdades para reproduzir tais habilidades.

    Feito isso, voc ser convidado a ler a Alegoria da Caverna, de Plato. Trata-se de uma abordagem memorvel acerca da contribuio da loso a para o campo da educao. A alegoria quer ser um sinal de alerta sobre os enganos que podem submeter os humanos dotados de sensibilidade e razo. A alegoria quer ser abrangente o su ciente para oferecer algumas dicas para que no nos percamos nos espaos tateantes das sombras, da incerteza. Quando a narrativa apresenta sua opo pelos caminhos da razo, ela j detm um sentido pedaggico orientador.

    1.3.1 A experincia de Zadig, apresentada por Voltaire6

    Como j destacamos, trata-se de um texto de origem remota, sem autoria de nida, recuperado por Voltaire (1694-1778). A sugesto a de que voc faa sua leitura, com o compromisso de lembrar de alguma pessoa conhecida, dotado das astcias e habilidades parecidas com as do personagem principal do texto.

    Zadig convenceu-se de que o primeiro ms do casamento, como est escrito no livro do Zenda, a lua-de-mel, e que o segundo a lua-de-fel. Pouco tempo depois viu-se obrigado a repudiar Azora,que se tornara difcil de aturar, e procurou satisfao no estudo da natureza. Ningum mais feliz dizia ele, - que um lsofo que l o grande livro aberto por Deus diante dos nossos olhos. So suas as verdades que descobre: alimenta e educa a alma, vive tranqilo; nada receia dos homens, e sua meiga esposa no vem cortar-lhe o nariz.

    3Abertura ou corte feito na madeira ao alcance dos olhos para orientar o caminhante em meio a orestas onde no h trilhas perfeitamente delimitadas (cf. Arseniev, 1989: 46-49)

    4Voc ver que o conto paradigmtico, remete s origens longnquas do ser humano caador, que capaz de orientar-se e obter xito servindo-se apenas dos indcios, dos fragmentos de informao. Ver sobre isso Ginzburg (1989: 143-79)

    5 importante que voc saiba o que pensa seu professor: defendo e estou evidenciando isso, de que h uma sabedoria de vida re nada e disponvel para qualquer pessoa letrada ou no. Para isso a pessoa precisa ser capaz de desenvolver uma capacidade de se concentrar, de desenvolver um senso de ateno e de observao ativa, para no ser surpreendida facilmente pelos eventos futuros.

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    Cheio destas idias recolheu (sic) a uma casa de campo beira do Eufrates, onde no se ocupava a calcular quantas polegadas de gua correm por segundo sob os arcos de uma ponte, ou se no ms do rato cai uma linha cbica de chuva a mais do que no ms do carneiro. No cuidava de fazer seda com teias de aranha, nem porcelana com cacos de vidro, antes estudou sobretudo as propriedades dos animais e das plantas, no tardando a adquirir uma sagacidade que lhe apontava mil diferenas onde os outros homens viam s uniformidade.

    Certo dia passeando na orla de um bosque, viu aproximar-se um eunuco da rainha seguido de vrios o ciais que pareciam tomados da maior inquietao, e corriam de um lado para outro como pessoas extraviadas em busca da maior preciosidade perdida.

    - Moo perguntou-lhe o eunuco, - por acaso no viu o cachorro da rainha?

    Zadig respondeu modestamente:

    - Creio tratar-se de uma cadela e no de um cachorro.

    - Tem razo volveu o eunuco.

    - uma cachorrinha de caa que deu cria h pouco tempo; manqueja da pata dianteira esquerda e tem orelhas muito compridas.

    - Viu-a ento? Tornou o eunuco esbaforido.

    - No respondeu Zadig, - nunca a vi e nem mesmo sabia que a rainha tivesse uma cadela. Justamente nessa ocasio, por um capricho muito comum da sorte, o mais belo cavalo das coudelarias do rei fugira das mos de um palafreneiro para as campinas da Babilnia. O monteiro-mor e todos os outros o ciais andavam atrs dele com tanta apreenso quanto a do eunuco atrs da cadela. O monteiro-mor dirigiu-se a Zadig e perguntou-lhe se no vira passar o cavalo do rei.

    - o cavalo que melhor galopa - respondeu Zadig; - tem cinco ps de altura e os cascos muito pequenos; sua cauda mede trs ps de comprimento e as rodelas do seu freio so de ouro de vinte quilates; usa ferraduras de prata de onze denrios.

    - Que caminho tomou ele? Onde est? perguntou o monteiro-mor.

    - No sei respondeu Zadig; no o vi nem nunca ouvi falar nele

    O monteiro-mor e o eunuco caram certos de que Zadig tinha roubado o cavalo do rei e a cadela da rainha, e levaram-no presena do grande Desterham que o condenou ao knut, e a passar o resto do seus dias na Sibria. Mal havia terminado o julgamento, foram encontrados o cavalo e a cadela. Os juzes viram-se na desagradvel contingncia de reformar a sentena, mas condenaram Zadig a pagar quatrocentas onas de ouros por dizer que no vira o que tinha visto. Primeiro ele teve que pagar a multa, e s depois lhe permitiram defender a sua causa perante o conselho do grande Desterham onde falou nesses termos:

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    - Estrelas de justia, abismos da cincia, espelhos da verdade, que tendes o peso do chumbo, a dureza do ferro, o brilho do diamante e muita a nidade com o ouro: j que me consentido falar diante desta augusta assemblia, juro-vos por Orosmade que nunca vi a respeitvel cadela da rainha, nem o sagrado cavalo do rei dos reis. Aqui est o que me sucedeu: andava eu passeando pelo pequeno bosque onde depois encontrei o venervel eunuco e muito ilustre monteiro-mor. Percebi na areia pegadas de um animal, e facilmente conclu serem as de um co. Leves e longos sulcos, visveis nas ondulaes da areia entre os vestgios das patas, revelaram-me tratar-se de uma cadela com as tetas pendentes, e que, portanto, devia ter dado cria poucos dias antes. Outros traos em sentido diferente, sempre marcando a superfcie da areia ao lado das patas dianteiras, acusavam ter ela orelhas muito grandes; e como alm disso notei que as impresses de uma das patas eram menos fundas que as das outras trs, deduzi que a cadela da nossa augusta rainha manquejava um pouco, se assim posso me exprimir.

    Quanto ao cavalo do rei dos reis, sabei que estando a passear pelos carreiros desse bosque, avistei as marcas das ferraduras de um cavalo, todas colocadas a igual distncia. Eis aqui disse comigo, - um cavalo que tem o galope perfeito. A poeira das rvores. Num caminho no mais de sete ps de largura, mostrava-se um pouco revolvida a direita e a esquerda, a trs ps e meio do centro da rota. Este cavalo tornei a considerar nos seus movimentos para a direita e para a esquerda, varreu essa poeira. Vi depois sob as rvores, que formavam um docel de cinco ps de altura, alguns ramos cujas folhas tinham cado recentemente, e conclu que o animal as roara com a cabea, tendo, portanto cinco ps de altura. Seu freio deve ser de ouro de vinte e trs quilates, pois tendo batido numa pedra que veri quei ser uma pedra de toque, pode em seguida identi c-lo. En m, pelas marcas das ferraduras deixadas em pedras de outra espcie, deduzi que estava ferrado com prata na.

    Todos os juzes admiraram o profundo e sutil discernimento de zadig; a notcia chegou aos ouvidos do rei e da rainha. S se ouvia falar de Zadig nas antecmaras, nas salas e gabinetes; e embora alguns magos opinassem que ele devia ser queimado como feiticeiro, o rei ordenou que lhe devolvessem a multa de quatrocentas onas de ouro a que havia sido condenado. O escrivo, os o ciais de justia e os procuradores foram a sua casa em grande aparato levar-lhe as quatrocentas onas, das quais apenas retiveram trezentas e noventa e oito para as custas do processo, alm dos honorrios reclamados pelos servidores.

    Zadig compreendeu que s vezes era perigoso ser demasiado sbio, e prometeu a si mesmo no tornar a dizer o que porventura houvesse visto. A ocasio no tardou a apresentar-se. Um prisioneiro do Estado tendo fugido, passou por baixo das janelas de sua casa. Zadig interrogada nada respondeu, mas provaram-lhe que ele havia olhado pela janela. Por esse crime foi condenado a pagar quinhentas onas de ouro, e ainda agradeceu a benevolncia dos juzes, como costume na Babilnia. Santo Deus! Exclamou para si, - quanto lastimvel ir-se passear a um bosque onde passaram a cadela da rainha e o cavalo do rei! Como perigoso a gente chegar janela, e como difcil ser feliz neste mundo.

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    1.3.2 Uma suposta verso mais antiga do que a do conto de Zadig

    Um conto similar, e provavelmente mais antigo, narra a histria de trs prncipes de Serendip. Eles caminhavam pelo deserto at que chegaram a um osis. Enquanto descansavam foram abordados por um viajante que havia perdido um camelo e a carga que este conduzia. Os prncipes, quando abordados, perguntaram ao viajante se o camelo era cego do olho direito, se o animal seguia carregado de um tonel de mel, do lado esquerdo e de um tonel de manteiga, do lado direito. O dono do camelo sumido os condenou como ladres, quando disseram que no o haviam visto.

    No tribunal, os prncipes alegaram que tiveram ao alcance dos olhos apenas as marcas deixadas pelo animal fujo. No caso da cegueira do olho direito, perceberam que a relva do lado direito era mais abundante, mas o camelo insistia em comer a do lado esquerdo do caminho. Do lado direito do caminho notaram que as moscas pousavam sobre a relva em busca dos restos da manteiga, do lado esquerdo formigas vinham procura do mel. (cf. Gonalves, 2003: 92-93)

    1.3.3 Consideraes sobre a experincia de Zadig

    Zadig o lsofo annimo que aprendeu a ler os sinais sutis inscritos na natureza, cenrio onde se manifesta a presena dos seres vivos. Sua misso a de estar de olhos bem abertos para detectar as particularidades reveladoras que se manifestam no espao vital onde habita.

    O conto oriental apresente uma das mais antigas concepes acerca do trabalho do pensamento humano. A loso a de quem estuda a natureza, como Zadig, estar sempre sendo testada em sua capacidade explicativa, uma vez que ser sempre confrontada pela prtica. Os desa os so considerveis e arriscados porque preciso decidir acertadamente atravs da leitura de indcios incompletos e nem sempre ntidos.

    A leitura do texto permite identi car o que considerado como atividade relevante para o estudioso da natureza. Ao mesmo tempo esclarece de que modo Zadig desenvolveu seu mtodo de observao e de ateno. O protagonista nos surpreende, na medida em que se mostra apto para decifrar indcios a respeito de algo que nem mesmo estava procura. O lsofo que aparece no texto o mestre da ateno e da capacidade de desvendar sinais sensveis que desa am a acuidade de nossos olhos, sinais que para ele so deixados por Deus, no livro aberto da natureza. Zadig surpreende os emissrios da rainha e o leitor, pela maneira como informou a respeito dos animais que se haviam perdido.

    Umberto Eco (in: ECO E SEBEOK 1991: 242;236) considera que o conto de Zadig no de investigao, mas um conto los co, na medida em que permitiu vislumbrar como possvel alcanar uma coincidncia entre aquilo que era apenas suposio na mente daquele homem (a cadela e o cavalo de seu mundo textual) e aquilo que acontecia no mundo exterior, materializado nas buscas dos o ciais a servio da rainha. Isso se tornou possvel porque o protagonista do conto voltou-se para os estudos das propriedades dos animais e plantas no para reduzi-las aos seus esquemas mentais prvios, mas para pensar por alternativas, para arriscar a captar no que entende por livro aberto por Deus, aquilo que a vida mostra e esconde aos olhos humanos.

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    ATIVIDADE DO(A) ALUNO(A):

    Voc consegue lembrar-se de algum que domina a arte da ateno, da leitura de pistas, de pensar por alternativas como Zadig? Voc se sente prximo/a das habilidades desenvolvidas por Zadig? De que forma? Este endereo da net talvez possa servir de inspirao: h p://www.jangadabrasil.com.br/revista/ julho68/of68007c.asp

    1.4 Na mitologia grega h uma deusa poderosa que personifi ca os saberes de Zadig e dos prncipes de Serendip.

    a deusa Mtis7, personi cao da inteligncia prtica, do engenho e da astcia para solucionar di culdades, da prudncia, do expediente para enfrentar uma situao complicada, maquinar ardis e armadilhas. Deusa que incorpora uma qualidade psicolgica que combina intuio, rapidez, engenho e astcia. Um dos lhos de Mtis o deus Pros, que o engenho astucioso que soluciona di culdades encontrando caminhos. Pros encarna o meio ou o expediente para chegar a um m, recurso ou engenho para chegar a um m, para solucionar uma di culdade; ao de passar atravs de, trajeto. (CHAU, 2002: p.505;509-10).

    Jean-Pierre Vernant (2000: 40-41) escreve que:

    Zeus se casa com Mtis e esta logo ca grvida de Atena. Zeus teme que algum lho seu, por sua vez, o destrone. Como evitar? (...) Diz que s h uma soluo: no basta que Mtis esteja ao seu lado como esposa, ele mesmo tem de se tornar Mtis. Zeus no precisa de uma scia, de uma companheira, mas deve ser a mtis em pessoa. Como fazer? Mtis tem o poder de se metamorfosear, ela assume todas as formas, assim como Ttis e outras divindades marinhas. capaz de virar animal selvagem, formiga, rochedo, tudo o que quiser. Trava-se ento um duelo de astcias entre a esposa, Mtis, e o esposo, Zeus. Quem vai ganhar? H boas razes para supor que Zeus recorra a um processo que conhecemos tambm em outros casos. Em que consiste? claro que, para enfrentar uma feiticeira ou um mago extraordinariamente dotado e poderoso, o ataque direto estaria fadado ao fracasso. Mas, se escolher o caminho da artimanha, talvez haja uma chance de vencer. Zeus interroga Mtis: Podes de fato assumir todas as formas, poderias ser um leo que cospe fogo? Na mesma hora Mtis se torna uma leoa que cospe fogo. Espetculo aterrador. Zeus lhe pergunta depois: Poderias tambm ser uma gota dgua? Claro que sim. Mostra-me. E, mal ela se transforma em gota dgua, ele a sorve. Pronto! Mtis est na barriga de Zeus. Mais uma vez a astcia funcionou. O soberano no se contenta em engolir seus eventuais sucessores: ele agora encarna, no correr do tempo, antecipadamente os planos de qualquer um que tente surpreend-lo ou derrot-lo. Sua esposa Mtis, grvida de Atena, est em sua barriga. Assim, Atena no vai sair do regao da me, mas da cabea do pai, que agora to grande quanto o ventre de Mtis. Zeus d uivos de dor. Prometeu e Hefesto so chamados para socorr-lo. Chegam com um machado

    7 Ver sobre Mtis em Marilena Chau (2002: 505; 509-10)

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    duplo, do uma boa pancada na cabea de Zeus e, aos gritos, Atena sai da cabea do deus, jovem donzela j toda armada, com seu capacete, sua lana, seu escudo, e a couraa de bronze. Atena a deusa inventiva, cheia de astcias.(grifou meu)

    1.4.1 Consideraes sobre o texto

    Na enciclopdia Wikipedia8 encontramos que: a lha mais famosa de Mtis conhecida como Atena ou para outros Palas Atena. Freqentemente associada a um escudo de guerra, coruja da sabedoria ou oliveira. Ainda, de acordo com a enciclopdia, a deusa Atena, que nasce da cabea de Zeus, toda poderosa tanto nas habilidades de caa e pesca, como nas habilidades de guerra, tem seu poder maior na atividade mental.

    Atena parece personalizar o esforo grego de colocar a atividade racional a servio de um poder que sabe hierarquizar os esforos humanos, de modo a encontrar equilbrio e estabilidade. Atena domina as atividades humanas essenciais, desde as mais antigas, como a caa, a pesca, bem como a capacidade tcnica, de construir o arco e a echa, alm de saber costurar. No entanto, seu talento maior reside na atividade mental, herana direta de Zeus, senhor absoluto da arte de governar. Atena parece simbolizar muito mais a atividade mental que perseguida pelos lsofos do perodo clssico. Trata-se de um pensamento que domina e delimita o lugar subalterno das habilidades humanas mais antigas como a caa e a pesca, bem como as tcnicas e as artes da guerra. O ponto culminante o da sabedoria de quem exercita o poder a servio da equidade e da estabilidade.

    ATIVIDADE DO(A) ALUNO(A):

    Quando Zeus, o soberano, consegue sorver Mtis, a deusa da astcia, ele que encarregado de governar o mundo, qual a expectativa que tem a partir desta conquista? Como entender que a cabea de Zeus se fez to grande quanto a barriga ou o tero de Mtis? Elabore um texto com o objetivo de tentar interpretar o sentido da frase no contexto da narrativa.

    1.5 Um convite: que tal sentarmos mesa da fi losofi a e saborearmos seis termos gregos antigos?

    Este encontro em volta da mesa para alimentar nosso corpo, supondo que a cabea o corpo (agora h pouco a cabea era uma barriga, um tero). Entre o comer e beber dessa refeio, esperamos mostrar porque os lsofos gregos se despedem da sabedoria oriental, daquela que Zadig era o mestre.

    Neste movimento introdutrio aos fundamentos antropo- los cos da educao vamos analisar seis termos gregos de grande importncia para a loso a grega antiga e elucidativos at hoje. Atravs deles ser possvel acenar para algumas preocupaes bsicas que orientavam as formas como os gregos aprendiam a

    8 ver

    h p://pt. wikipedia.org/ wiki/Atena; ver tambm: h p://greciantiga.org.

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    interrogar o mundo natural, a presena humana no mundo, a organizao da sociedade e o papel de destaque que destinado atividade los ca.

    Vamos apreciar os termos gregos a partir da contribuio de Marilena Chau, num glossrio que ela elaborou no seu livro intitulado: Dos Pr-Socrticos a Aristteles (2002)9. A autora teve o cuidado de situ-los como parte da herana grega, que cultivada desde os tempos imemoriais, desde as sociedades grafas.

    1.5.1 Doxa:

    Opinio, crena, reputao (Isto , boa ou m opinio sobre algum), suposio, conjetura. Esta palavra possui dois sentidos diferentes por ser usada em dois contextos diferentes: o contexto poltico, no qual foi usada inicialmente, e o contexto los co, a partir de Parmnides e Plato. Deriva-se do verbo doko, que signi ca: 1. tomar o partido que se julga mais adequado para uma situao; 2. conformar-se a uma norma estabelecida pelo grupo; 3. escolher, decidir, deliberar e julgar segundo os dados oferecidos pela situao e segundo a regra ou norma estabelecida pelo grupo. Era este o seu sentido na assemblia dos guerreiros que deu origem assemblia poltica, na democracia. Como a escolha e deciso se davam a partir do que era percebido, dito e convencionado pelo grupo, dxa ganha tambm o sentido de uma modalidade de conhecimento, e agora, articula-se ao verbo doxzo que signi ca: ter uma opinio sobre algumas coisas, crer, conjeturar, supor, imaginar, adotar opinies comumente admitidas. neste segundo sentido que doxa pode ter o sentido pejorativo de conhecimento falso, preconceito, conjetura sem fundamento, sem conveno, arbitrria.

    Este termo doxa corresponde ao que entre ns relegamos aos domnios do senso comum ou tambm do bom senso. O termo decisivo para compreender o que a loso a decide rejeitar para rmar seu corpus de conhecimento e porque decide rejeitar. O problema da doxa que no oferece con ana, no oferece um conhecimento seguro. Se a palavra doxa deriva-se do verbo doko, que signi ca optar diante de uma situao aberta ou de acordo com a norma de um grupo ela est condenada incerteza, no podendo impor-se a todos, que a preocupao da loso a que vai rmar-se, sobretudo, a partir de Plato. A doxa ao mover-se no campo da opinio, do risco, da conjetura, no oferece segurana, nem fundamento. Assim, de acordo com as pretenses da loso a grega, o conto los co oriental de Zadig de pouco valor porque est preso doxa. Da mesma forma que o personagem acertou em suas conjeturas, podia ter errado. H uma nota importante aqui, a crtica que feita pelos lsofos aos saberes que so adquiridos nos domnios da doxa, estendida aos saberes da medicina grega. Na Grcia havia um tenso dilogo entre os lsofos e os mdicos. Alguns dos lsofos pr-socrticos eram tambm mdicos, o que in uenciava em seu trabalho los co. Os mdicos gregos entendiam sua pro sso como lotecnia (amor a um domnio tcnico sobre o corpo humano e a restaurao da sade). Isso enfrentava resistncia entre os gregos que desprezavam a tcnica como coisa no muito digna. Alm disso, a medicina no estava livre dos riscos e das incertezas que se apresentavam como obstculos para sua busca de rigor. A medicina no conseguia desvencilhar-se de seus vnculos com a doxa, uma vez que o mdico dependia de sua percepo sensvel para fazer o

    9 Cf. CHAU, Marilena. Dos pr-socrticos a Aristteles. Vol. 1. 2 ed. rev. ampl. So Paulo. Cia das Letras. 2002. p. 493-512.

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    diagnstico dos males que a igiam seus pacientes. O mdico estava sujeito a erros. Os mdicos/ lsofos, por sua vez, criticavam aqueles que partiam de grandes princpios explicativos, sem fundamentar de modo consistente suas a rmaes.

    1.5.2 Eidos e Ida:

    inicialmente, na linguagem comum dos gregos, signi ca o aspecto exterior e visvel de uma coisa: a forma de um corpo, a sionomia de uma pessoa. A seguir, na linguagem los ca (com Plato), passa signi car a forma imaterial de uma coisa, a forma conhecida apenas pelo intelecto ou pelo esprito, a idia ou a essncia puramente inteligvel de uma coisa. Signi ca tambm a forma prpria de uma coisa que a distingue de todas as outras, seus caracteres prprios; por exemplo, a doena um edos, uma forma que o mdico reconhece. A palavra edos vem de uma raiz que aparece sob trs formas:*eid-, oid- eid-. De ed forma-se, alm de edos, o verbo edomai, que signi ca: mostrar-se, fazer-se ver. De *oid forma-se oda (in nitivo eidnai) perfeito do verbo ser que signi ca saber (por ter visto), conhecer. De *id- forma-se o aoristo do verbo ver, iden e o substantivo ida, com o mesmo sentido de edos: aspecto externo, aspecto visvel, forma visvel, caracteres prprios de alguma coisa, maneira de ser. Com Plato, ida passa a signi car: princpio geral de classi cao dos seres, forma ideal concebida pelo pensamento. Com Aristteles, ida, signi ca conceito abstrato diferente das coisas concretas. Edos, a forma inteligvel, ida, o conceito, iden, ver, e oada/ eidnai, saber (por ter visto), conhecer, criam a tradio los ca do conhecimento como viso intelectual ou viso espiritual, e de verdade como viso plena ou evidncia. A idia a realidade verdadeira que o pensamento v. Em oposio a edos est edolon: imagem, reproduo, cpia, dolo, fantasma, simulacro.

    Logo de incio, na apresentao do termo ida, em grego, podemos v-lo como originalmente acessvel a qualquer pessoa, letrada ou no, acessvel at mesmo a uma criana. Quem no retm o aspecto exterior e visvel da sionomia de uma pessoa querida, de um determinado corpo visto todos os dias? A linguagem los ca cuida de garantir verticalidade ao termo, dotando-o de um signi cado que prioriza a forma imaterial de algo, passvel de ser conhecido apenas por um intelecto dotado da capacidade de se pronunciar sobre a essncia inteligvel das coisas. Para os lsofos gregos, o anseio de se chegar a uma realidade verdadeira concebida pelo pensamento est em oposio ntida ao saber comum, s opinies, quando no h condies seguras para vencer os domnios da sensibilidade, das falsas idias representadas pelas imagens, pelos dolos, pelos simulacros. Mais uma vez podemos ver que a loso a grega quer trabalhar com formas inteligveis, com conceitos que nos permitem pleitear o acesso a uma realidade verdadeira que o pensamento v, sem o risco de iludir-se.

    1.5.3. Episteme:

    conhecimento terico das coisas por meio de raciocnios, provas e demonstraes; conhecimento terico por meio de conceitos necessrios (isto , daquilo que impossvel que seja diferente do que ; o que no pode ser de outra maneira, ser

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    diferente do que ) e universais (isto vlidos para todos em todos os tempos e lugares). Ope-se a empeiria. O verbo epistamai, da mesma famlia de episteme, signi ca: saber, ser apto ou capaz, ser versado em (portanto, inicialmente, este verbo no distinguia nem separava episteme e empeiria, mas referia-se a todo conhecimento obtido pela prtica ou pela inteligncia, referia-se habilidade). A seguir, passa a signi car: conhecer pelo pensamento, ter um conhecimento por raciocnio e, com Aristteles passa signi car investigar cienti camente.

    O termo episteme, ou epistemologia vem do que enfatizado pelos gregos, enquanto aquele conhecimento que tem pretenso de universalidade, de verdade, de identidade. Para os gregos, o conhecimento seguro considerado possvel atravs do domnio terico das coisas, dos raciocnios, das provas e demonstraes que no se deixam enganar pelos sentidos. Na Modernidade h uma novidade, o pensamento que conhece racionalmente visto como de natureza distinta das coisas conhecidas, do que nos fornecem os sentidos, pois imaterial. Ento, preciso explicar como transformamos as coisas materiais em idias, sob a responsabilidade do sujeito que conhece. Da em diante a rma-se a necessidade de epistemologias que pleiteiam validade cient ca. Veja, porm, o que adverte Chau: o verbo epistemai, em suas origens mais antigas no distinguia ou separava episteme (saber racional) e empeiria (saber sensvel), abrangendo a todo conhecimento obtido pela prtica, pela inteligncia, pela habilidade. Como podemos ver, o termo episteme, com o trabalho da loso a grega vai ganhando um re namento que abandona as preocupaes nas quais se sobressaem habilidades prticas e tcnicas. Na Modernidade, por sua vez, fala-se em epistemologias porque no h mais a identidade e a harmonia e o lugar previamente dado ao ser humano na ordem do mundo, como queria a Antiguidade. O nosso planeta no visto mais como lugar de centralidade, ele ocupa um lugar entre outros no universo. Isso obriga o ser humano a se apresentar como sujeito, como quem ordena e organiza o mundo dentro dos limites de seus recursos racionais, tendo um mtodo e uma epistemologia como guia e orientao de pensamento e de ao.

    1.5.4. Mthodos:

    mtodo, busca, investigao, estudo feito segundo um plano. composta de met e ods (via, caminho, pista, rota; em sentido gurado signi ca: maneira de fazer, meio para fazer, modo de fazer) Mthodos signi ca, portanto, uma investigao que segue um modo ou maneira planejada e determinada para conhecer alguma coisa; procedimento racional para o conhecimento seguindo um percurso xado. Methodeo: seguir de perto, seguir uma pista, caminhar de maneira planejada, usar artifcios e astcias, um derivado de mthodos10.

    A visita de Marilena Chau aos termos gregos elucidativa para o entendimento dos estudos da loso a e da loso a da educao porque ela cuida de fazer dois movimentos essenciais. No primeiro, a autora apresenta o sentido que ainda hoje adotamos do termo, levando em considerao seu vnculo com o entendimento original da loso a grega antiga. No outro movimento, a autora surpreende o leitor quando remete o termo ao seu sentido experimentado no

    10 provvel que Chau tenha invertido os termos i n v o l u n t a r i a m e n t e , pois parece lgico que methodeuo preceda mthodos.

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    universo humano do saber comum, especialmente quando neste se identi cam procedimentos bastante desenvolvidos para a elucidao de problemas prticos. O pioneiro da pratica do mtodo o caador. Este o primeiro ser humano capaz de garantir a elaborao de planos para conseguir objetivos de nidos. Ele segue com inteligncia pistas, detalhes para alcanar o que procura. A palavra mtodo, para Chau, tem, portanto, sua vinculao primeira ao ofcio do caador, mestre na capacidade de seguir de perto uma pista, de planejar esforos e astcias para encontrar comida, gua e orientao, para escapar de inimigos e predadores. Somente sentidos altamente cultivados permitem em ambientes hostis, lograr xito e preservar a vida. Zadig, como vimos, o lsofo da ateno, da observao, que condio para a elaborao do mtodo. o lsofo/caador capaz de encontrar at mesmo o que no est procurando. Devo aqui fazer um alerta: trago de volta Zadig e sua loso a de vida, que a loso a grega vai jogar para um plano secundrio. Zadig alcana xito, mas poderia fracassar porque lida com situaes instveis e no tem como testar previamente suas explicaes provisrias. A loso a grega quer trabalhar com explicaes seguras e replicveis, o que nem Zadig, nem os prncipes de Serendip tem condies de garantir.

    1.5.5. Logos:

    Esta palavra sintetiza vrios signi cados que, em portugus, esto separados, mas unidos em grego. Vem do verbo lgo (no in nitivo lgein) que signi ca: 1. reunir, colher contar, enumerar, calcular; 2. narrar, pronunciar, proferir, falar, dizer, declarar, anunciar, nomear claramente, discutir; 3. pensar, re etir; ordenar; 4. querer dizer, signi car, falar como orador, contar, escolher; 5. ler em voz alta, recitar, fazer dizer. Lgos : palavra, o que se diz, sentena, mxima, exemplo, conversa, assunto da discusso; pensar, inteligncia, razo, faculdade de raciocinar, fundamento, causa, princpio, motivo, razo de alguma coisa; argumento, exerccio da razo, juzo ou julgamento, bom senso, explicao, narrativa, estudos; valor atribudo alguma coisa, razo ntima de uma coisa, justi cao, analogia. Lgos rene numa s palavra quatro sentidos: linguagem, pensamento ou razo, norma, ou regra, ser um realidade ntima de alguma coisa. No plural, lgoi, signi ca: os argumentos, os discursos, os pensamentos, as signi caes: -logia, que usado com segundo elemento de vrios compostos, indica: conhecimento de, explicao racional de, estudo de, dilogo, dialtica, lgica so palavras da mesma famlia de lgos. O lgos d a razo, o sentido, o valor, a causa, o fundamento de alguma coisa, o ser da coisa. tambm a razo conhecendo as coisas, pensando os seres, a linguagem que diz ou profere as coisas, dizendo o sentido ou o signi cado delas. O verbo lgo conduz idia de linguagem porque signi ca reunir e contar: falar reunir sons; ler e escrever reunir e contar letras; conduz idia de pensamento e razo porque pensar reunir idias e raciocinar contar ou calcular sobre as coisas. Esta unidade de sentidos o que leva os historiadores da loso a a considerar que, na loso a grega, dizer, pensar e ser so a mesma coisa.

    H na origem da palavra um entrelaamento de sentidos que podem ser identi cados nas tarefas da vida prtica e tambm nas tarefas do trabalho intelectual. A loso a grega cuida da verticalidade da compreenso do termo, de modo que se desembarace do universo inferior da doxa, do senso comum, e possa

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    traduzir o esforo da razo humana, que fornece critrios considerados seguros para saber das coisas, em busca de seu sentido e de seu signi cado profundo. Um aspecto importante: vamos ver -logia como segundo elemento de vrios compostos. Quais so as disciplinas, nossas conhecidas, com este complemento? Outra coisa importante para a loso a grega considerar que em seu domnio dizer, pensar e ser constituem a mesma coisa, a mesma realidade. Aqui esta posta a distncia do saber do lsofo do saber de quem se move no domnio da doxa.

    1.5.6. Tlos:

    m, nalidade, concluso, acabamento, realizao, cumprimento; resultado conseqncia; chegar a um termo previsto, ponto culminante, cume, cimo, alvo; formao e desenvolvimento completos, pleno acabamento; plenitude de poder de alguma coisa, soberania; o que deve ser realizado ou cumprido; o que completo em si mesmo. (...) O tlos o que permite avaliar ou determinar o valor e a realidade de uma coisa.

    O tlos muito importante para a loso a porque esta trabalha com mtodo (caminha sempre seguindo um plano previamente pensado). Para a loso a, a nalidade no conquistada por obra do acaso, mas pela capacidade de planejar, de antecipar racionalmente algo, de ver o alcance do que foi arquitetado na conscincia. O tlos, como o lugar de chegada projetado o que pode dar sustentao atividade loso ca. No entanto, o que dizemos aqui nos faz lembrar do caador, que foi o primeiro ser humano dotado da capacidade de perseguir um tlos, que nada mais era do que o alimento para si mesmo e para a continuidade de sua comunidade. Fica mais fcil agora entender porque a cabea de Zeus pde se fazer fecunda, para isso bastou estar impregnada da inteligncia e da astcia da Mtis.

    1.6. Parmnides(540-450 a.C) e Herclito(540-480 a.C) Dois Filsofos Pr-Socrticos11

    Para ns hoje (ver Chau op. cit. 103) muito claro que o pensamento se move de acordo com uma lgica que no a mesma lgica das coisas do mundo. Entendemos o pensamento como um movimento da nossa conscincia, esta que conhece e produz idias sobre os objetos do conhecimento. Porm, os gregos antigos desconheciam a separao entre o ato de conhecer e o objeto do conhecimento, entre o sujeito e o objeto.

    Parece estranho isso, mas do modo deles, os gregos mantinham um profundo vnculo com a ordem da natureza e da vida. Assim a linguagem, notadamente a linguagem elaborada, no se distinguia do sentido prprio das coisas. Os lsofos situavam seu pensamento como parte indistinta do cosmos, de um nico mundo, de um nico lgos (p.102).

    Sendo assim, passava a ser uma novidade admitir a existncia de um pensamento movendo-se com lgica interna apartada da experincia sensvel. Abria-se caminho para algo novo que permitia acesso via da verdade,

    11 Os lsofos pr-socrticos so chamados assim no porque necessariamente vieram antes de Scrates, mas porque se dedicaram a estudar o mundo, a ordem das coisas no mundo, a partir de um ou mais princpios explicativos. Os pr-socrticos no trabalham com o tema socrtico central: a vida humana, o auto-conhecimento e o agir moral.(Chau)

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    contra a via da opinio, da doxa. Esta a contribuio de Parmnides. Para ele necessidade, destino, justia passam a ser vistos como conceitos e no foras naturais, so por isso, exigncias do ser em sua inteligibilidade, em sua apreenso racional e lgica12. Esta contribuio abre caminhos para a loso a. No ser, todavia um caminho nico, uma nica maneira de situar o que essencial para o conhecimento do ser. Chau (2002: 104;105) esclarece:

    O que ser para Parmnides (a identidade estvel, imvel) iluso para Herclito. O que essencial para Parmnides o conhecimento do ser; o que essencial para Herclito o auto-conhecimento do ser humano. No entanto, ambos inauguram a mesma coisa, isto , a exigncia de fazer a distino entre a aparncia e a realidade e a a rmao que essa diferena s pode ser feita pelo pensamento, pela inteligncia e no pela experincia sensvel ou sensorial. Os sentidos permanecem prisioneiros da dxa. [grifo meu]

    [Para Herclito] o ksmos ser vivo. Por isso muda sem cessar. Assim como a polis vive da luta dos contrrios, assim tambm o ksmos, na tenso de seus opostos. Assim como o logos, a polis cria a lei (nmos) que faz existir a harmonia dos contrrios, sem excesso, por todo excesso, toda hbris punida pela justia (dik)

    ATIVIDADE DO(A) ALUNO(A): Faa um texto apresentando como voc entende esta frase: os sentidos permanecem prisioneiros da dxa?. Faa seu comentrio, estabelecendo uma conexo com o conto de Zadig e as novas descobertas que so feitas pelos lsofos pr-socrticos. De preferncia, volte ao termo dxa, anteriormente apresentado.

    1.7 O que podemos dizer de Scrates o medico/educador que examina a alma do aprendiz?

    tarefa difcil tratar da contribuio de Scrates (469/470-399 a.C.), que nada deixou por escrito. O que temos o legado obtido pelos escritos de discpulos e/ou pensadores interessados e ilustres como Plato e Aristteles, Temos ainda o legado de escolas menos conhecidas como a dos megricos, dos cirenaicos e dos cnicos, por admiradores e crticos de uma fase de sua vida, por estudiosos que vieram em perodos posteriores, como Ccero.

    Na sua poca, Atenas passa a ser o cenrio onde os campos de saber estaro sendo diretamente confrontados. No tempo de Scrates, Atenas, pela sua prosperidade, transforma-se num centro de cultura e de difuso de novas idias. Concretiza, pela primeira vez, a experincia de um governo democrtico sob o controle daqueles que usufruam dos direitos de cidadania. A cidade atrai pensadores que se dedicam a vrios ramos de especializao.

    Ao seu modo, Scrates, que se dizia um no especialista, compara seu ofcio ao do mdico clnico13. Este clnico geral, no entanto, no vai buscar seu metrn, sua medida, nos indicadores provenientes dos sentidos, como faz a medicina de seu tempo. A via de acesso aos saberes pelos sentidos como que perde sua

    12 Dik: justia, inicialmente signi cava o modo de ser e de agir, maneira de, ao modo de, costume, depois o modo de ser ou agir de acordo com uma regra de conduta, de uma norma. Moira: o destino de cada um, a necessidade que rege o curso das coisas (Cf. Chau, op. cit. 498;506)

    13 Para Nie sche, o feito de Scrates chega primazia do elemento apolneo-racional sem uma tenso, de fato, com o dionsico-irracional. Para ele, isso o mesmo que quebrar a harmonia grega. De resto, corpo e alma passam a no ser uma e mesma coisa, alm de se colocarem em uma ordem hierrquica com o privilgio da alma.

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    primazia na via socrtica, interessada pela sade da alma. Fica dispensada a apreenso sensvel da medicina hipocrtica, que, d sustentao fase diagnstica e diagnstico-comunicativa entre mdico e paciente, para se chegar teraputica considerada adequada.

    No se pode esquecer que, para Scrates, a sade da alma dependia de uma busca crtico-normativa e de um domnio tico-prtico, para quem aspira deixar-se guiar em direo ao que no est contaminado pelas instabilidades e incertezas dos embates cotidianos. O trabalho da conscincia no exime ningum de encontrar sustentao s prprias idias e assim chegar ao dever ser.

    Scrates investe contra o relativismo da linguagem, contra os saberes de ocasio, contra a decadncia moral e poltica da cidade. Ele indaga se existe um valor essencial de todas as virtudes particulares, como a coragem, a sabedoria, a justia. (ABRO: 1999:44)

    A medicina do corpo transita pelo campo dos possveis para apresentar, no mximo, uma via alternativa para a cura, cujo resultado s seria conhecido a posteriori. Scrates vislumbra para a medicina da alma uma possibilidade muito mais re nada do que uma percia que encontra uma via alternativa (acrescentar algo que falta ao corpo ou tirar algo que se encontra em excesso).

    Essa medicina da alma quer transitar pelo campo dos possveis e ultrapass-los atravs da atividade racional e da descoberta dos critrios vlidos para absorver cada caso e seus congneres. Nesse percurso, a razo arranca da avaliao dialogada do que est sendo (o campo dos acontecimentos na vida cotidiana com suas incertezas), costurando os critrios lgicos que mais prontamente superam as zonas de inde nio em direo s noes seguras e desimpedidas dos condicionamentos. Isso explica porque a medicina da alma alada a uma posio superior medicina do corpo.

    O pensamento que, com Scrates, redimensiona o alcance da inteligncia humana acaba sinalizando para uma posio muito mais con ante e segura da lgica que o alimenta. Nessa perspectiva, a atividade pensante humana no se contenta em se descobrir como parte instvel do cenrio que compe a realidade maior da physis. Caber ao pensamento humano, a uma conscincia corretamente cultivada, a possibilidade de julgar de modo mais seguro qual o seu lugar na ordem da vida.

    Apesar de estabelecer uma dicotomia corpo e alma, Scrates garante uma concepo de alma (psiqu) que vai trazer grandes inovaes no pensamento ocidental.

    Antes, com Homero, a psiqu era o duplo que tinha o poder de vagar provisioriamente durante o sono, ou desprender-se de nitivamente com a morte, mas ainda sem relao com a vida mental ou as faculdades da pessoa. Nos r cos, a alma era o princpio superior que poderia reencarnar-se depois de processo de puri cao e de reintegrao na harmonia universal. No corpo vivo, projetava-se de modo excepcional, em sonhos, vises, transes. Nos pensadores Jnicos do sculo VI a.C., a psiqu era parte do todo, poro do pneuma (ar) in nito que habitava o corpo at o ltimo alento, como concebia Anaxmenes de Mileto. Era poro de fogo a aquecer e animar o corpo, at o retorno ao Fogo-Razo, o Logos universal. A partir de Scrates (PEANHA, in SCRATES, op. cit. 29-30), ou na literatura referente a ele, surge a concepo de alma como sede da conscincia normal e do carter, a alma que no cotidiano de cada um aquela

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    realidade interior que se manifesta mediante palavras e aes, podendo ter conhecimento ou ignorncia, bondade ou maldade.

    A descoberta de que a alma o mesmo que a sede da conscincia de cada um, capaz de manifestar conhecimento ou ignorncia ou de fazer julgamento sobre o que verdadeiro ou falso, trouxe profundas alteraes sobre como podemos adquirir saberes e conhecimentos. Os rgos dos sentidos privilegiados acabaram sendo a viso (alada para alm de sua mediao sensvel) e a audio (sem ela o dilogo e a persuaso no superam a ignorncia).

    As conseqncias pedaggicas da descoberta da alma racional superior ao corpo abre perspectivas para a excelncia do fazer docente; a nal, habilitar-se a ver com os olhos da alma tarefa elevada, para inspirados, como era o caso de Scrates. Mas a via do dilogo uma grande idia porque favorece um canal concreto atravs do qual o aprendiz mais limitado, se for bem conduzido, pode orientar-se na arte de elaborar as prprias idias e de se conduzir pelos caminhos da perfeio.

    ATIVIDADE DO(A) ALUNO(A):O que voc destaca da contribuio do pensamento de Scrates para a compreenso do ser humano e da educao?

    1.8. Plato: o sbio o que aponta o caminho para a luz verdadeira

    Plato (427-347 a.C) vai introduzir uma mudana, ou melhor, um aprofundamento pessoal no que diz respeito ao modelo de investigao herdado de Scrates. Os textos que surgem a partir do Fdon acrescentam aos dilogos anteriores, preocupados em sondar a conscincia dos interlocutores, um mtodo dotado de caractersticas tericas, a serem de nidas pelos prprios problemas e por um repertrio argumentativo mais impessoal.

    Plato, na seqncia dos ensinamentos de Scrates, procura garantir uma investigao sistemtica dos fundamentos da conduta humana, porm ultrapassa a nfase nos dilemas psicolgicos e ticos da prtica, abordados conforme as circunstncias. Com isso, no se alteram apenas os temas da dialgia socrtica: a prpria trama do modelo dialogal e singularizante, que desencadeador da cincia tica, vai ser alterada. J no basta chegar, pelo exame acurado do caso, aos indicadores da ao. preciso situ-los numa explicao global da realidade, de onde examinar as condutas.

    Nos seus primeiros livros, Plato partir para dar inteligibilidade realidade, apoiando-se no que no depende nem do tempo nem das mudanas (dialtica descendente). Plato entra com uma racionalidade do esttico e das formas perfeitas para se sobrepor e dar inteligibilidade ao movimento, transitoriedade e precariedade da experincia sensvel.

    Fiel aos costumes gregos, ele est interessado em fundamentar aquilo que de maneira mais coerente permite agir sobre os homens. O lsofo-educador

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    vai dedicar-se ao pensamento sobre a poltica que, para ter p maisculo, deve superar o desencadeamento de aes movidas por interesses ambguos e pouco dignos. O desa o trazer as bases para uma ao submetida a critrios de verdade, que arraste consigo o cultivo da harmonia, da justia e da beleza.

    As referncias platnicas aos temas mdicos seguem, pelo menos, duas motivaes bsicas: primeiramente, contribuem para elucidar o inevitvel paralelo entre cuidados do corpo e cuidados da alma; em segundo lugar, a medicina, com sua longa experincia de chegar a um pensar normativo, a partir dos casos concretos, no deixa de ser, at mesmo, como recurso didtico, um degrau na escalada em busca da ordem das coisas e da norma imutvel.

    Plato, para ser coerente com sua idia das trs almas, defende que temos uma alma inferior ou concupiscvel, que reside no baixo-ventre e responsvel pela atividade digestiva. Temos tambm uma alma afetiva, melhor posicionada, que mora na regio que circunda o corao. Num lugar mais elevado, est a inteligncia que habita o crebro e convocada para comandar as almas inferiores. A atividade educacional consiste em evidenciar a posio de nossas trs almas de modo que a inteligncia seja desenvolvida para comandar de forma e ciente as almas inferiores. Haver processos educativos diferenciados. O rei deve saber guiar-se pela inteligncia para que seja justo, os guerreiros devem aprender a dominar sua vontade para que possam defender a cidade de seus inimigos os escravos e trabalhadores deveriam garantir os meios da subsistncia humana na cidade.

    H uma unidade que une as diferentes partes do organismo. Da mesma forma, cada homem e todos os homens fazem unidade com o cosmos, somos parte de um todo. Tais convices do sustentao sua biologia, siologia, patologia e teraputica. Admite-se que a fsica matemtica garante a idia de cosmos, como conhecimento possvel. A medicina eleva o corpo perecvel para a noo do todo, como possibilidade de ser um receptculo digno para o bem que o habita.

    Vamos ver agora um famoso trecho da obra de Plato (RIBERO,1988) conhecido como A Alegoria da Caverna. O texto extrado do Livro A Repblica, Livro VII, 514 a -517 e.

    Vamos imaginar- disse Scrates que existem pessoas morando numa caverna subterrnea. A abertura dessa caverna se abre em toda a sua largura e por ela entra a luz. Os moradores esto a desde sua infncia, presos por correntes nas pernas e no pescoo. Assim, eles no conseguem mover-se nem virar a cabea para trs. S podem ver o que se ca sobre um monte atrs dos prisioneiros, l fora. Pois bem, entre esse fogo e os moradores da caverna, imagine que existe um caminho situado num nvel mais elevado. Ao lado dessa passagem se ergue um pequeno muro, semelhante ao tabique atrs do qual os apresentadores de fantoches costumam se colocar para exibir seus bonecos ao pblico.

    - Estou vendo disse Glauco.

    - Agora imagine que por esse caminho, ao longo do muro, as pessoas transportam sobre a cabea objetos de todos os tipos. Levam estatuetas de guras humanas e de animais, feitas de pedra, de madeira, ou de qualquer outro material. Naturalmente, os homens que as carregam vo conversando.

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    - Acho tudo isso muito esquisito. Esses prisioneiros que voc inventou so muito estranhos disse Glauco.

    - Pois eles se parecem conosco comentou Scrates Agora me diga: numa situao como est, possvel que as pessoas tenham observado, a seu prprio respeito e dos companheiros, outra coisa diferente das sombras que o fogo projeta na parede sua frente?

    - De fato disse Glauco -, com a cabea imobilizada por toda a vida s podem mesmo ver as sombras!

    - O que voc acha? perguntou Scrates que aconteceria a respeito dos objetos que passam acima da altura do muro, do lado de fora?

    - A mesma coisa, ora! Os prisioneiros s conseguem conhecer suas sombras!

    - Se eles pudessem conversar entre si, iriam concordar que eram objetos reais as sombras que estavam vendo, no ? Alm do mais, quando algum falasse l em cima, os prisioneiros iriam pensar que os sons, fazendo eco dentro da caverna eram emitidos pelas sombras projetadas. Portanto prosseguiu Scrates os moradores daquele lugar s podem achar que so verdadeiras as sombras dos projeteis fabricados.

    - claro.

    - Pense agora no que aconteceria se os homens fossem libertados das cadeias da iluso em que vivem envolvidos. Se libertassem, um dos presos e o forassem imediatamente a se levantar e olhar para trs, a caminhar dentro da caverna e a olhar para a luz. Ofuscado, ele sofreria, no conseguindo perceber os objetos dos quais s conhecera as sombras. Que comentrio voc acha que ele faria, se lhe fosse dito que tudo o que observara at aquele momento no passava de falsa aparncia e que, a partir de agora, mais perto da realidade e dos objetos reais, poderia ver com a maior perfeio? No lhe parece que caria confuso se, depois de lhe apontarem cada uma das coisas que assam ao longo do muro, insistissem em que respondesse o que vem a ser cada um daqueles objetos? Voc no acha que ele diria que so verdadeiras as vises de antes do que as de agora?

    - Sim disse Glauco - , o que ele vira antes lhe parecera muito mais verdadeiro.

    - E se forassem nosso libertado a encarar a prpria luz? Voc no acha que seus olhos doeriam e que, voltando as costas, ele fugiria para junto daquelas coisas que era capaz de olhar, pensando que elas so mais reais do que os objetos que lhe estavam mostrando?

    - Exata mente concordou Glauco.

    -Suponho ento continuou Scrates que o homem s fosse solto quando chegasse ao ar livre. Ele caria a ito e irritado porque o arrastaram daquela maneira, no mesmo? Ali em cima, ofuscado pela luz do sol, voc acha que ele conseguiria distinguir uma das coisas que agora ns chamamos de verdadeiras?

    - No conseguiria, pelo menos de imediato.

  • 184

    - Penso que ele precisaria habituar-se para comear a olhar as coisas que existem na regio superior. A princpio, veria melhor as sombras. Em seguida, re etida nas guas perceberia a imagem dos homens e dos outros seres. S mais tarde que conseguiria distinguir os prprios seres. Depois de passar por esta experincia, durante a noite ele teria condies de contemplar o cu, a luz dos corpos celestes e a lua, com muito mais facilidade do que o sol e a luz do dia.

    - No poderia ser de outro jeito.

    - Acredito que, nalmente, ele seria capaz de olhar para o sol diretamente, e no mais re etido na superfcie da gua ou seus raios iluminando coisas distantes do prprio astro. Ele passaria a ver o sol, l no cu, tal como ele .

    - Tambm acho Disse Glauco.

    - A partir da, raciocinando, o homem libertado tiraria concluso de que o sol que produz as estaes e os anos, que governa todas as coisas visveis. Ele perceberia que, num certo sentido, o sol a causa de tudo o que ele e seus companheiros viam na caverna. Voc tambm no acha que, lembrando-se da morada antiga, dos companheiros de priso, ele lamentaria a situao destes e se alegraria com a mudana?

    - Decerto que sim.

    - Suponhamos que os prisioneiros concedessem honras e elogios entre si. Eles atribuiriam recompensas para o mais esperto, aquele que fosse capaz de prever a passagem da sombras, lembrando-se da seqncia em que elas costumam aparecer. Voc acha, Glauco, que o homem libertado sentiria cime dessas distines e teria inveja dos prisioneiros que fossem mais honrados e poderosos? Pelo contrrio, como o personagem de Homero, ele no preferiria ser apenas um peo de arado a servio de um pobre lavrador, ou sofrer no mundo, a pensar como pensava antes e voltar a viver como vivera antes?

    - Da mesma forma que voc, ele preferira sofrer tudo a viver desta maneira.

    - Imagine ento que o homem liberto voltasse caverna e se sentasse em seu antigo lugar. Ao retornar do sol, ele no caria temporariamente cego em meio s trevas?

    - Sem dvidas.

    - Enquanto ainda estivesse com a vida confusa, ele no provocaria risos dos companheiros que permaneceram presos na caverna se tivesse que entrar em competio com eles acerca da avaliao das sombras? Os prisioneiros no diriam que a subida para o mundo exterior lhe prejudicara a vista e que, portanto, no valia a pena chegar at l? Voc no acha que, se pudessem, eles matariam quem tentasse liberta-los e conduzi-los at o alto?

    - Toda essa histria, caro Glauco, uma comparao entre o que a vista nos revela normalmente e o que se v na caverna; entre a luz do fogo que ilumina o interior da priso e a ao do sol; entre a subida para o lado de fora da caverna, junto com a contemplao do que l existe, e entre o caminho da alma em sua ascenso ao inteligvel, eis a explicao da alegoria: no Mundo das Idias, a idia do bem aquela que se v por ultimo e a muito custo. Mas, uma vez contemplada, esta idia se apresenta ao raciocnio como sendo, em de nitivo,

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    a causa de toda a retido e de toda a beleza. No mundo visvel, ela geradora da luz e do soberano da luz. No mundo das idias, a prpria idia do bem que d origem verdade e inteligncia. Considero que necessrio contempl-la, caso se queira agir com sabedoria, tanto na vida particular como na poltica.

    Veja agora o comentrio de Heinz von Foerster (In Schnitman, 1996:67)

    Gostaria agora de ilustrar algumas de minhas a rmaes com uns poucos exemplos. O primeiro refere-se s explicaes, e o retirei de um relato de Carlos Castaeda. Como vocs recordaro, Castaeda foi ao povoado de Sonora, no Mxico, para conhecer um bruxo chamado Don Juan, a quem pediu que o ensinasse a ver. Assim Don Juan interna-se com Castaeda no meio da selva mexicana. Caminham uma ou duas horas e, de repente, Don Juan exclama: olha, olha o que h a! Viste? Castaeda lhe responde: No... no vi. Continuam caminhando e, uns dez minutos mais tarde Don Juan volta a deter-se e exclama: olha, olha ali! Viste? Castaeda olha e responde: No, no vi nada. Ah, a lacnica resposta de Don Juan. Seguem sua marcha e volta a acontecer a mesma coisa duas ou trs vezes, mas Castaeda nunca v nada; at que, en m, Don Juan encontra a soluo: Agora entendo qual teu problema! lhe disse: Tu no podes ver o que no podes explicar. Trata de esquecer de tuas explicaes e comears a ver.

    ATIVIDADE DO(A) ALUNO(A)

    1. A partir da leitura da alegoria da caverna e deste comentrio de Von Foerster faa um pequeno texto, tentando atualizar a discusso levantada pela alegoria de Plato.2. Assista o primeiro lme da srie sobre Matrix e avalie se h ali alguma inspirao na alegoria da caverna de Plato. Caso haja, em que parte do lme a inspirao pode se fazer presente de forma mais palpvel..

    1.9 Aristteles: a lgica evidencia a ordem das coisas

    Aristteles (384-322, a.C.) saiu da Macednia, por volta dos seus dezoito anos, rumo a Atenas14. Vinha atrado pelo que podia oferecer o grande centro geogr co, poltico, intelectual e cultural do mundo grego. Trazia duas heranas, a ascendncia jnica e a tradio mdica da famlia, inclusive a servio do reino da Macednia. Seu pai, Nicmacos, era mdico e amigo da famlia real, mas faleceu quando ele ainda era jovem, motivo pelo qual deve ter interrompido a tradio que naturalmente o levava direo da carreira do pai.

    Freqentou, por cerca de vinte anos, a academia de Plato. Mesmo convivendo com o matematismo da Academia, no perdeu o esprito proveniente da herana familiar. Demonstrava interesses pelas pesquisas biolgicas e pelo senso de observao e de classi cao, inerentes cultura mdica.

    14 Estagira, a cidade onde Aristteles nasceu cava na Calcdica. A cidade estava sob domnio da Macednia, mas era uma cidade grega, inclusive a lngua ali falada era o grego.

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    Depois que saiu da Academia, Aristteles elaborou sua objeo teoria platnica das idias. Contrape-se concepo cosmolgica de Plato, no Timeo, na qual o universo concebido como resultado da ao de um arteso divino ou demiurgo. Aristteles no seu livro intitulado Sobre a Filoso a, prope uma cosmoviso, na qual apresenta um organismo capaz de desenvolver algo que engendrado de dentro de si, que seria prprio de sua natureza ou physis.

    Aristteles v o universo em dois grandes espaos: o mundo acima da lua e o mundo sob a lua. No mundo supralunar, o movimento perfeito e eterno. No mundo sublunar, como queria Empdocles, encontra a composio dos quatro elementos: gua, ar, terra e fogo. Esses elementos se combinam para formar a causa material de tudo o que existe e a forma multivariada que os distinguem.

    O mundo sublunar o reino da imperfeio, pois ali as coisas esto submetidas gerao, decadncia e morte. Para Aristteles, os movimentos fsicos so sempre, de alguma forma, uma violncia contra seu lugar natural. Aquilo que pesado se lanado para o alto, tende a voltar para o cho, seu lugar natural, pois retornar sua causa nal. No caso humano, a causa nal chegar felicidade, que no deve ser atingida nem pelo excesso nem pela falta. O ideal chegar ao meio termo, o que s se consegue pelo hbito, pela atividade intelectual e pela distncia das perturbaes dirias. O mundo se explica pela sua causa nal, como se em tudo que existisse no mundo tivesse um propsito. Como se a madeira tivesse, de alguma forma, por destino virar mesa, cadeira, armrio para servir aos seres humanos, como se os animais e plantas existentes tivessem como m servirem de alimentos para ns, que ocupamos um lugar destacado na ordem da vida. Alis, a causa nal aponta para uma pr-destinao inscrita nas coisas do mundo.

    Pensando assim, vai defender que o corpo e a alma so partes de um mesmo ser e que esta viso integrada necessria para mtuo esclarecimento. A existncia particular no se d sem a forma (a alma) e sem a matria (o corpo). Como decorrncia a alma s existe no corpo e no pode ser imortal, no mximo uma forma comum a uma espcie. Esta interpenetrao entre o corpo e alma vai estar presente em seus trabalhos sobre a fsica, a metafsica e a lgica e particularmente sobre a medicina e a tica.

    Para ele, tudo leva em direo idia de ser, para tratar das coisas existentes. Sem o conhecimento do ser, faltariam bases slidas s cincias (Fsica, Astronomia, Biologia e outras) que estudam os aspectos particulares da realidade. Sem a idia do ser, no haveria cincia porque s haveria explicaes particulares para coisas particulares.

    Em sua idia do ser, recusa a soluo platnica das idias perfeitas e eternas, pela desnecessria duplicao da realidade sensvel. O que existe so seres singulares, com sua concretude e existncia emprica. A cincia vai recolher pelo conhecimento emprico o que vem da realidade, at chegar a de nies essenciais e atingir o universal, que seu objeto prprio. O caminho aristotlico o de quem se apropria dos dados sensveis que acenam para o individual e o concreto, de modo a chegar cincia das coisas, identi cando o que universal e necessrio.

    O grande projeto de Aristteles, discpulo e depois crtico de seu antigo mestre, Plato, era o de constituir uma cincia com critrios seguros. Isso o levou a considerar a dialtica, a conversao do mestre e discpulo em busca do

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    conhecimento como uma via imprpria para atingir a verdade. Ele a entendia, no mximo, como um exerccio mental capaz de expor a opinio das pessoas sobre as coisas, sem, todavia, oferecer garantia contra o relativismo e o jogo das probabilidades. Entendia que a dialtica tem valor como uma preparao para o conhecimento e aponta para a histria do pensamento los co. A histria testemunha o debate entre as opinies precedentes que permitem o acesso verdade que seria alcanada pela sntese aristotlica.

    Para realizar este projeto ambicioso de rigor cient co e conhecimentos seguros, o lsofo vai elaborar normas, procedimentos para guiar o pensamento. Vai concentrar-se na lgica e nas regras do raciocnio e tambm na anlise da linguagem para superar os equvocos que nela se fazem presentes. As cincias voltadas para o mundo fsico faziam sua parte encontrando suporte na especulao metafsica. Encontrariam nesta a garantia de chegar estrutura dos prprios objetos. Sendo que a lgica, aquela que trabalha com a utilizao cient ca dos conceitos, teria seu fundamento na prpria realidade, encontrando legitimidade para seu operar.15

    ATIVIDADE DO(A) ALUNO(A)

    Faa um pequeno texto, destacando o que considera de mais interessante no projeto Aristotlico voltado para a busca de rigor cient co e de procedimentos seguros para guiar o pensamento.

    15 Ver Aristteles (1999:22).

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    UNIDADE II

    A FILOSOFIA NA MODERNIDADE: NECESSIDADES E HORIZONTES

    Plato com sua loso a a rmava uma concepo de mundo atravs da qual era possvel pela razo seguir em direo ao real (a via da episteme) ultrapassando os domnios do aparente (a via da doxa). Aristteles, por sua vez, concebia um mundo, possvel de ser entendido identi cando a causa nal, como se todo o existente pudesse ser explicado a partir de um propsito, de uma predestinao inscrita na ordem do mundo.

    As loso as modernas passaram a no se contentar com as explicaes que se moviam na separao entre real e aparente, no nalismo pr-existente na ordenao do mundo. Experimentaram a exigncia de discutir a relao interioridade e exterioridade, quer dizer, o que era atribuio do sujeito (daquele que conhece) e o que era da ordem do objeto (do que conhecido). Experimentaram a exigncia de rediscutir as bases terico-metodolgicas que os levavam a examinar o lugar onde habitavam, quem o ser humano e o que este podia conhecer. O que aconteceu para que isso se impusesse na Modernidade?

    As discusses sobre o problema do ser humano e do conhecimento, no desenrolar da Idade Mdia vo incorporar discusses no valorizadas entre os gregos. Na Idade Mdia a herana judaico-crist apresenta o que Cassirer (cf.Ivan Domingues 1991: 26-28) chama de antropologia do homem pecador. Para esta antropologia insu ciente tentar esclarecer o lugar do humano na ordem do universo, utilizando-se apenas dos recursos da razo. Os recursos da razo podem ser aceitos desde que a servio de uma antropologia de quem se coloca diante dos mistrios da f e dos ensinamentos das sagradas escrituras (criao do mundo, queda de Ado, resgate atravs da vinda de Cristo).

    A re exo sobre o problema do ser humano na Idade Mdia vai cultivar caractersticas prprias. Uma loso a secular, como a dos gregos, da autonomia da razo humana, de um nalismo que no nos aproxima do Ser todo poderoso, responsvel por tudo o que existe, vai dar lugar a uma loso a de tipo religioso (pensar a partir de Deus). O ser humano no mais aquele que detm a iniciativa para ser senhor de si. Apresenta-se agora como uma criatura que se explica no mundo a partir da graa de Deus e no a partir de si mesmo. A loso a passa a ser servidora da teologia.

    Como ressalta Cassirer, citado por Domingues (op. cit.: 27), o grande princpio grego do conhece-te a ti mesmo ganha na Idade Mdia novas implicaes. Quando este princpio vem subordinado doutrina da criao deixa de pautar-se unicamente por preocupaes e orientaes tericas ou especulativas. Por se tratar de um preceito religioso, um imperativo de salvao e no um imperativo de conhecimento; o conhece-te a ti mesmo uma forma de questionar a auto-su cincia humana, sendo que cabe a cada pessoa reconhecer sua dependncia diante de Deus e de sua graa.

    Santo Agostinho (354-430), fundador da loso a medieval e da dogmtica crist e Santo Toms de Aquino (1221-1274), considerado o maior representante

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    do pensamento medieval, que concede maior poder a razo humana, ambos organizam seu pensamento a partir da tica da criao, da doutrina do pecado e da graa divina. (ibidem: 28)

    As loso as modernas, devido a toda esta elaborao crist, da auto-crtica, da acusao das fraquezas interiores, passaram a no se contentar com as explicaes que se moviam na separao entre real e aparente, a no aceitar a percepo dos sentidos como orientao para o ordenamento racional. Experimentaram a exigncia de discutir a relao interioridade e exterioridade, demarcando o que da ordem dos limites e das possibilidades do sujeito (daquele que conhece) e o que da ordem do objeto (do que conhecido). O que aconteceu para que isso se impusesse na Modernidade?

    PARA RECORDAR:

    No mundo grego a realidade a natureza, onde tudo se origina e nela esto inscritos os seres, entre eles os humanos e tudo o que elaboram e constroem. Como esto inscritos na natureza, os seres humanos podem conhec-la diretamente, uma vez que contm os elementos comuns que dela se originam e tambm da mesma inteligncia que inerente a ela e que a orienta. A ordem da natureza garantida por um ser superior, perfeito, distante, o que possvel de admitir com o uso da razo.

    2.1. A fi losofi a moderna: novas exigncias para o pensamento.

    Vamos agora discutir um pouco mais os problemas gerados no universo do pensamento cristo, que levaram as loso as modernas a se distanciarem da loso a grega antiga quanto ao acesso ao real. Distncia que est relacionada ao modo de perguntar sobre o mundo e de dar sustentao ao conhecimento produzido pelo ser humano.

    As preocupaes crists, conforme esclarece Chau (1997:113) exigiram dos modernos algumas distines que provocaram uma ruptura com a idia grega de uma vinculao direta entre o trabalho de nosso intelecto e da sensibilidade para o acesso verdade e ao mundo. O cristianismo ao fazer a distino entre f e razo, verdades reveladas por Deus e verdades racionais, matria e esprito, corpo e alma; considerou que o erro e a iluso faziam parte da natureza humana decada, do carter pervertido de nossa vontade, aps o pecado original.

    Chau (op.cit.: 114) lembra que, durante a Idade Mdia, a f era central para a loso a. Acreditava-se que com o auxlio da graa divina, a f ilumina o intelecto e guia a vontade permitindo razo chegar ao conhecimento que est ao seu alcance, do mesmo modo a alma recebe os mistrios da Revelao. A f permitia saber (mesmo que no pudssemos compreender como isso era possvel) que pela vontade soberana de Deus era concedido nossa alma imaterial conhecer as coisas materiais.

    A loso a emergente, incorporando questes que vinham sendo elaboradas inclusive durante a Idade Mdia, no via mais como se submeter s respostas

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    tradicionais. Para essa loso a era absolutamente necessrio rediscutir as possibilidades do conhecimento humano.

    Diante disso a loso a moderna precisava esclarecer pelo menos trs problemas:

    1. Se somos seres decados, pervertidos, como podemos conhecer a verdade?2. Se nossa natureza dupla (matria e esprito) como a inteligncia pode

    conhecer algo que diferente dela? Ou seja, como seres corporais podem conhecer o incorporal (Deus) e como seres dotados de alma incorprea podemos conhecer o corpreo (mundo)? (ibidem, 113)

    3. Os lsofos antigos partiam do princpio de que ramos entes participantes de toda a forma de realidade: graas ao corpo estvamos inseridos na natureza, graas a nossa alma participvamos, mesmo de forma limitada, da inteligncia divina. O cristianismo, caminhando em sentido contrrio, vai introduzir a noo de pecado original e da criao do mundo, vai introduzir uma separao radical entre os humanos (pervertidos e nitos) e a divindade (perfeita e in nita).Isso deu foras pergunta: como o ser humano ( nito) pode conhecer a verdade (in nita e divina)?

    PARA RECORDAR:

    Os gregos entendiam a verdade como aletheia presena e manifestao do verdadeiro aos sentidos e ao intelecto, assim a pergunta los ca central era sobre a possibilidade de haver erro ou iluso. Para os lsofos modernos a situao passa a ser outra: se a verdade vem da revelao divina, se nosso intelecto foi pervertido pela vontade pecadora como podemos conhecer a verdade? Se a verdade subordinada f e se experimentamos a fraqueza da vontade, como a razo humana poder conhec-la?

    O cristianismo, especialmente com Santo Agostinho (ibidem:114) investe na idia de que cada ser humano uma pessoa. Idia que vem do direito romano para o qual a pessoa um sujeito de direitos e deveres. Como pessoas, somos responsveis por nossos atos e pensamentos. Na Idade Mdia o relacionamento com Deus traz uma novidade desconhecida para os gregos, isso porque sua religio exigia pouco investimento no desenvolvimento da auto-re exo e da intimidade com suas divindades. Era estranho ao mundo grego o esforo da puri cao da alma, feito pelo exame interior e pela expiao da culpa, comum aos cristos.

    2.2. As tarefas dos fi lsofos modernos

    Para falar sobre este assunto apresento uma contribuio de Bernadete Siqueira Abro, que organizou e dirigiu o livro Histria da Filoso a que compe o primeiro livro da Coleo Os pensadores1

    1 Coleo lanada em 1999 pela Editora Nova Cultural Ltda. So Paulo, vendida em conjunto com edies de jornais.

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    Desde a Grcia Antiga, a razo pde pretender abarcar o mundo porque, de certa forma, o prprio mundo era concebido como racionalmente ordenado e uni cado. Nos tempos modernos, no entanto, essa imagem j no existe. No h mais a polis, o Imprio ou uma Igreja nica; a realidade apresenta-se dispersa, mltipla e relativa. Cabe razo a tarefa de reuni car o mundo, reproduzi-lo, representa-lo.

    O termo representao indica exatamente essa operao da razo: representar, tornar de novo presente. Mas tornar de novo presente a imagem uni cada do mundo tambm destruir o que se apresenta como disperso e desconexo. Por isso, a representao nega e ultrapassa a realidade visvel e sensvel, e produz um outro mundo, racionalmente compreensvel porque reordenado pela prpria razo. (grifo meu)

    A matemtica o grande modelo desse racionalismo. No que ela, propriamente dita, possa ser aplicada a toda espcie de investigao. Os pensadores modernos retomam o signi cado da expresso grega ta mathema, isto conhecimento completo, racional de ponta a ponta, de que a prpria matemtica o exemplo mais perfeito.

    Tomar a matemtica como modelo tambm signi ca dirigir a razo segundo determinados procedimentos precisos, como se faz na demonstrao de um teorema. Para no errar uma obsesso dos lsofos modernos escrevem-se tratados de mtodo. A comear por Descartes (1596-1650), autor de Discurso do Mtodo.

    A insistncia no problema do mtodo crucial, porque o mundo exterior no mais fornece a garantia da certeza do conhecimento. (...) a razo, e s ela, pode servir a si prpria como guia, critrio e condio da certeza do conhecimento. A razo no tem mais em que se apoiar a no ser nela mesma, e por isso precisa criar um mtodo seguro. (...) Mas mesmo essa relao desigual: a razo antecede s coisas exteriores e as subordina. autnoma, livre, independente do mundo. sujeito e a palavra latina subjectum indica aquilo que subsiste, o que est colocado sob, isto , o fundamento. A razo precisamente o fundamento do mundo transformado em objeto, objectum, ou seja, aquilo que est colocado diante de um sujeito, e que s pode existir tendo como referncia o sujeito. a partir do pensamento moderno que se pode falar propriamente em sujeito do conhecimento e objeto do conhecimento. Mas isso ir acarretar uma srie de di culdades e controvrsias (181-88).

    2.2.1 Fragmentos de textos que retratam as inquietaes do incio da modernidade

    O poeta ingls John Donne (DOMINGUES, 1991: 34), num poema publicado em 1611, incio da modernidade, consegue trazer a inquietude provocada pela perda da antiga ordem das coisas e as grandes di culdades para identi car as pistas para uma nova ordem:

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    A nova loso a pe tudo em dvida,O elemento do fogo est completamente extinto,O sol est perdido, e tambm a terra,E nenhum esprito humano tem com o que se orientar para A procurar E os homens confessam livremente que este mundo est em Runas, quando entre os planetas e o rmamento eles Procuram tantos mundos novos;Eles vem ento que tudo est de novo pulverizado emtomos,Tudo est em pedaos, toda a coerncia perdida (...).

    Ivan Domingues (op. cit. 34) escreve que, um pouco antes de Donne, Michel de Montaigne (1533-1592), na sua Apologia de Raymond Sebond, indaga:

    Que me explique pelo raciocnio em que consiste a grande superioridade que (o homem- ID) (sic) pretende ter sobre as demais criaturas. Quem o autoriza a pensar que o movimento admirvel da abbada celeste, a luz eterna destas tochas girando majestosamente sobre sua cabea, as utuaes comoventes do mar de horizontes in nitos, foram criados e continuem a existir unicamente para sua comodidade e servio? Ser possvel imaginar algo mais ridculo do que esta miservel criatura, que nem sequer dona de si mesma, que est exposta a todos os desastres e se proclama senhora do universo? Se no lhe pode conhecer ao menos uma pequena parcela, como h de dirigir o todo? Quem lhe outorgou o privilgio que se arroga de ser o nico capaz, neste vasto edifcio, de lhe apreciar a beleza?

    ATIVIDADE DO(A) ALUNO(A):

    Pesquisar na Internet e em outras fontes de leitura informaes complementares sobre Michel de Montaigne e apresentar um pequeno texto procurando apresentar a quem mais diretamente o autor dirige suas dvidas e questionamentos.

    2.3 Descartes e bacon investigam a capacidade humana de conhecer

    Conforme esclarece Abro (op. cit. 203), diante de um horizonte que se abre,

    Conhecer as coisas do mundo implica, ento, estabelecer-lhe uma nova ordem que no exatamente aquela que os sentidos captam, mas a que a razo impe. No homem, por exemplo, os sentidos fornecem primeiro a existncia do corpo, mas a razo evidencia antes a certeza do cogito.

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    Como, porm, possvel o conhecimento do mundo (e do corpo), se o cogito que conhece e as coisas que so conhecidas so de naturezas distintas? Em outras palavras, como encadear numa ordem de razes a coisa pensante (res cogitans) e a coisa extensa (res extensa), se ambas no apresentam uma medida comum? A nica soluo possvel transformar as coisas em idias dessas coisas, de tal modo que a cadeia de razes seja constituda pelo pensamento e as coisas pensadas. Substituir a ordem real pela ordem das razes corresponde exatamente a essa transformao das coisas em que objetos do conhecimento.

    A operao que converte as coisas em objetos a representao, cujo suporte isto , o sujeito precisamente o cogito. A cincia possvel, pois se baseia na certeza inabalvel do cogito, que, tendo como guia seguro o mtodo produzido a partir de si mesmo, reduz o mundo sua medida. Mas, com isso, a identidade e a harmonia entre o mundo e o homem buscadas desde a Antiguidade so rompidas. O homem torna-se sujeito, o eu pensa, e o mundo, seu objeto. Ele j pode pensar a si prprio como aquele que efetivamente reordena e reorganiza o mundo sua maneira. Os homens se tornam, segundo o Discurso do Mtodo, como que senhores e possuidores da natureza. (203)

    Era preciso fazer uma separao entre f e razo, considerando que cada uma delas est voltada para conhecimentos diferentes e sem qualquer relao entre si;

    1. Era preciso considerar que a alma-conscincia embora diferente do corpo pode conhec-lo porque capaz de represent-lo intelectualmente por meio das idias, imateriais como a prpria alma;

    2. Era preciso explicar como a razo e o pensamento podem elevar-se mais fortes do que a vontade e control-la para que evite o erro.

    Os dois lsofos que a partir do sculo XVI investigam a capacidade humana para conhecer Francis Bacon (1561-1626), que se volta para estudar de forma experimental os fenmenos exteriores, e Ren Descartes (1596-1650) que se volta para examinar a interioridade da razo em busca de uma via segura para o conhecimento.

    Luiz Alfredo Garcia-Rosa (1991:09;11)adverte que

    A subjetividade foi assim construda e transformada em referncia central e s vezes exclusiva para o conhecimento e a verdade. A verdade habita a conscincia o que proclamam racionalistas e empiristas. Desde Descartes, a representao o lugar da morada da verdade, sendo o problema central o de saber se chegamos a ela pela via da razo ou pela via da experincia. Racionalistas e empiristas diferem sobretudo quanto ao caminho a tomar, mas ambos j sabem onde querem ir, ao reino da verdade, da universalidade, da identidade. Plato , ao mesmo tempo, o grande inspirador e o guia infatigvel nessa caminhada.

    Pode parecer estranho a rmar agora que Plato seja considerado como inspirador e guia dos pensadores modernos como Francis Bacon e Ren

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    Descartes, depois de todas as diferenas apontadas com relao loso a grega. No entanto, Plato quando recusa o domnio da opinio, da aparncia (doxa) est a procura de um discurso los co que tem sua legitimidade centrado nele mesmo, como um discurso neutro, que no re ete desejo algum, mas que se impe como realizao da razo. exatamente isso que os pensadores modernos esto procura. Como esclarece Garcia-Roza (op. cit.:11): o objetivo nal do platonismo , portanto, a produo do Discurso Universal, que coincidir com a realizao plena da Razo e a revelao do Ser em sua totalidade.

    Alm disso, os lsofos, como Bacon e Descartes, antes de tratarem do conhecimento verdadeiro cuidaram de examinar cuidadosamente os caminhos do erro, procedendo a uma anlise dos preconceitos e do senso comum. Plato tambm procedeu da mesma forma, como pudemos veri car na alegoria da caverna.

    O que acontece que estamos falando de um tempo revolucionrio em que emerge uma nova cincia com rebatimentos em ganhos tcnicos. Com Bacon e Descartes o objetivo das cincias o de permitir que o ser humano possa se converter em senhor e possuidor da natureza. Para o novo esprito cient co o padro de racionalidade est centrado nas matemticas e na reduo da natureza aos seus elementos mensurveis e na busca de leis que a governam de acordo com a linguagem do nmero e da medida. H uma outra maneira de investigar a natureza que o do abandono das causas nais na explicao dos fenmenos da natureza, conforme pretendia Aristteles.

    Se Descartes tem sua inspirao em Plato na busca de um discurso universal, h uma grande diferena entre eles que preciso destacar. Plato estava certo do seu mtodo, do caminho em direo verdade, estava em dvida apenas se era possvel chegar a uma pedagogia guiada pela loso a e que orientasse as opes justas e equilibradas do governante. Descartes, por sua vez, descon ava de si mesmo, se, de fato seu conhecimento estava assentado sobre bases seguras. isso o que representa a novidade dos novos tempos, o ser humano tem que descobrir o seu lugar num mundo aberto, descentrado. Se pretende ser o senhor do seu destino tem de provar sua capacidade para tanto.

    Descartes elaborou seu mtodo de anlise, a partir da chama


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