ano 1 - março 2009 - n º 3
FUNDAÇÃO MARIO COVASem revista
acervos depersonalidades
Em rEvista
editorial
dançando com acervos
Detalhista, minucioso, perfeccionista, Mario Covas não tomava decisões sem ter
estudado a fundo o assunto. Não importava se fosse a construção de um viaduto ou o
enfrentamento de um adversário político, a recepção a um chefe de Estado ou o rumo
de uma campanha política. Pedia constantemente informações a seus assessores diretos
e não aceitava meias respostas, dados incompletos. Era um exigente assumido. Mas,
ao mesmo tempo em que desesperava o pessoal de gabinete, Covas gerava um volume
enorme e importante de documentos em todo cargo público que exercia. O resultado
desse detalhismo é o acervo que a Fundação Mario Covas tem o prazer de preservar.
E se o acervo Mario Covas tem a marca da minúcia, o que caracterizaria outros arquivos
pessoais? Como a Fundação poderia aprender com a experiência de outras instituições
de preservação de memória? Como poderia compartilhar sua experiência? Assim nasceu a
ideia do Seminário Acervos de Personalidades, que realizamos nos dias 20 a 22 de agosto
de 2008, na sede da Fundação, reunindo arquivistas e historiadores responsáveis por
acervos diversos, de vários Estados do país e até de Portugal.
Nos três dias do evento, conhecemos o trabalho do Centro 25 de Abril com os documentos
sobre a Revolução dos Cravos, que devolveu a democracia a Portugal. Aprendemos com
a abordagem organizacional adotada pela Casa de Oswaldo Cruz para os arquivos dos
cientistas. Descobrimos porque o desprendimento do escritor Erico Verissimo complica a
montagem de seu acervo literário e a Fundação Energia e Saneamento tem tantas fotos
de São Paulo. Nos entristecemos com as dificuldades do Centro de Memória da Bahia em
obter recursos para manter suas preciosidades históricas. E nos alegramos com a bem-
sucedida iniciativa da Unicamp de preservar a memória da região de Campinas.
O olhar de cada palestrante sobre o patrimônio histórico, cultural, científico ou
arquitetônico que cuida é o que veremos nas próximas páginas. Cada um com sua
trajetória, suas peculiaridades, suas marcas. Inclusive o nosso.
Antonio Carlos Rizeque Malufe
Presidente da Fundação Mario Covas
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S 3
Índice
Fotoclip 6
Em debate, os arquivos 8
Tudo em ordem no acervo Covas 12
Lei Rouanet viabiliza Centro de Memória 16
Enfim, a sede própria 18
O fio condutor de uma vida 22
“Temos de ir mais fundo no acervo” 26
Quando a pessoa é maior que o cargo 30
A minúcia dá o tom do arquivo 32
Luz, gás, água e preservação 36
No 25 de Abril, o particular é público 38
Revolução com cravos 42
Existe arquivo inocente? 43
Todo documento é importante 44
A COC na rota dos cientistas 48
Dos prédios aos documentos 53
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S4
108 anos de saúde 54
Facilidades para o pesquisador 56
CMU, o guardião da memória de Campinas 58
Francisco Glicério contra o rei 61
Adolfo Gordo e a primeiras leis da República 63
Grama e Izalene, prefeitos com acervo preservado 64
A memória da Bahia 66
Uma história de persistência 70
O palácio Rio Branco 72
Pedro Calmon, filho de Amargosa 73
Erico Verissimo reúne o acervo 75
Em busca de um espaço 79
Da farmácia à glória literária 81
“Lidar com o ALEV é um privilégio” 83
Créditos 86
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S 5
fotoclip
Profissionais arquivistas discutem os desafios da Preservação de acervos de Personalidades em seminário da fundação mario covas
em debate, os arquivos
Raquel Freitas, coordenadora do Centro de Memória da Fundação Mario Covas, em palestra no seminário
Como preservar os documentos pessoais da melhor forma possível e, com eles,
registrar a trajetória das personalidades que fizeram história na política, nas
artes, na ciência e em outras áreas? A questão foi discutida em profundidade
por profissionais arquivistas de várias entidades nos dias 20, 21 e 22 de agosto de
2008, durante o Seminário Internacional Acervos de Personalidades: Desafios e
Perspectivas. Promovido pela Fundação Mario Covas (FMC) em sua sede, o evento
marcou a inauguração do Centro de Memória e o lançamento do Guia do Acervo.
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S8
A atuação das entidades dedicadas à manutenção
de acervos de personalidades ainda é pouco
difundida no Brasil, mas o seminário realizado
pela Fundação Mario Covas mostrou a importância
de ações de preservação da memória como legado
para as gerações futuras e o aperfeiçoamento
da cidadania. Na grande maioria dos países
europeus, iniciativas como as empreendidas
pela FMC têm tradição e contam com respaldo
governamental, como se pode constatar ao
conhecer a bem-sucedida experiência do Centro
de Documentação 25 de Abril, de Portugal.
De volta à democracia
No primeiro dia de palestras do seminário, a
professora Natércia Coimbra, coordenadora do
Centro de Documentação 25 de Abril, falou sobre
acervos de personalidades públicas em Portugal.
A instituição, ligada à Universidade de Coimbra,
reúne cerca de 3 milhões de documentos
referentes ao movimento que restabeleceu a
democracia no país, em 1974, após décadas de
convivência com o regime ditatorial salazarista.
“Ao longo dos anos, o 25 de Abril se tornou
o principal depósito documental da história
recente de Portugal. É nosso dever não esquecer
e não deixar perder a memória contida em nossos
arquivos”, afirmou em sua palestra.
O arquivista, segundo Natércia Coimbra, tem um
papel crítico e fundamental na construção da
narrativa sobre a trajetória da personalidade:
“Mais do que um relato histórico e imparcial,
os nossos arquivos precisam ser transparentes”,
disse à audiência da Fundação Mario Covas.
O 25 de Abril foi o primeiro centro de memória
português a ter uma página na internet e a
Natércia Coimbra fala sobre a preservação de acervos de personalidades públicas em Portugal
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S 9
primeira biblioteca do país – com 8 mil volumes
– a oferecer sua base de dados via web.
Experiência brasileira
Profissionais de centros de memória sediados em
diferentes Estados brasileiros deram inestimável
contribuição ao seminário. Maria da Glória
Bordini, professora da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul, falou de sua experiência
com o acervo literário do escritor gaúcho Erico
Verissimo, na ocasião ainda sem sede definitiva
e condição de ser aberto à pesquisa pelo público.
Paulo Roberto Elian dos Santos, vice-diretor
da Casa de Oswaldo Cruz, da Fiocruz, no Rio de
Janeiro, discorreu sobre os acervos dos cientistas
brasileiros. Dadas as especificidades dos arquivos
desses profissionais, a entidade adotou a
organização dos documentos por função exercida
pelo cientista, numa abordagem inovadora.
Os desafios e perspectivas de instituições de
memória foram o tema da palestra de Consuelo
Novais Sampaio, da Fundação Pedro Calmon. A
entidade cuida do acervo político do Estado da
Bahia e vivia, na ocasião, o drama da redução de
recursos e da mudança de sede.
Numa situação mais confortável, Fernando
Antonio Abrahão falou do trabalho do Centro de
Memória Unicamp, órgão de uma universidade
pública estadual dedicado à preservação de
acervos pessoais de personalidades da região de
Campinas, interior paulista.
Raquel Freitas, coordenadora do Centro de
Memória Mario Covas, e Marcia Pazin, especialista
em organização de arquivos, falaram de sua
experiência na organização da memória Covas,
suas dificuldades e vitórias. Há atualmente no
Centro de Memória milhares de documentos
textuais, 3.639 audiovisuais, 1.918 tridimensionais
Luis Sergio Matarazzo, diretor secretário da FMC, abre o evento com Natércia Coimbra e Raquel Freitas
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S10
Profissionais arquivistas e historiadores compõem a audiência do Seminário Acervos de Personalidades
Integrantes da equipe do Centro de Memória
participam do evento como ouvintes
e outros 11.402 documentos fotográficos. Seu
acervo conta a trajetória política de Mario Covas,
desde a militância na cidade de Santos, onde
nasceu, até o período em que governou o Estado
de São Paulo, passando pela atuação como
deputado federal, prefeito nomeado da cidade
de São Paulo e senador da República.
Contando com uma audiência de mais de cem
profissionais ligados à preservação de memória,
o seminário atingiu plenamente seus objetivos.
Em primeiro lugar, o evento abordou temas
relevantes para a área, entre eles experiência
de organização de acervos de personalidades,
construção da memória e potencial de pesquisa,
acervos literários e de cientistas, desafios e
perspectivas de instituições de preservação da
memória. O seminário também funcionou como
um meio de divulgação das metodologias de
trabalho e estabeleceu um canal de comunicação
entre o Centro de Memória Mario Covas e
as outras instituições, fundamentais para o
desenvolvimento das técnicas arquivísticas.
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S 11
em um ano e meio, a equiPe do centro de memória organizou o arquivo, Publicou o guia do acervo e abriu as Portas Para a Pesquisa
tudo em ordem no acervo covas
Criada em 21 de abril de 2001, a Fundação Mario Covas passou três anos em fase de garimpagem de documentos. Ex-assessores, amigos e familiares do ex-governador recolheram a documentação para formar o acervo. Em seguida, realizaram-se vários estudos para a captação de recursos que viabilizassem a organização do material coletado. Um projeto estribado na Lei Rouanet (leia texto na página 16) foi então elaborado, encaminhado ao Ministério da Cultura e aprovado em meados de 2006. Seis meses depois, os primeiros aportes foram feitos, e Raquel Freitas, contratada.
A documentação inicial do acervo Mario Covas foi recolhida nas diversas áreas de apoio ao ex-governador do Palácio dos Bandeirantes, como a secretaria particular, as assessorias de imprensa, de gabinete e a especial, além do núcleo de gerenciamento de informações administrativas responsável pelo protocolo do gabinete. Posteriormente foram incorporados documentos doados pela esposa, dona Lila, a filha, Renata Covas, e outros familiares. Toda a coleta foi feita por um grupo de assessores que davam suporte às ações de Mario Covas, buscando as informações necessárias para ele tomar decisões.
A organização
Com o primeiro aporte de recursos, no final de
2006, iniciaram-se os trabalhos de organização
Técnico do Centro de Memória trata fotografia
do material. “Tínhamos um ano para montar o
acervo, um prazo muito corrido”, disse Raquel
Freitas à audiência do seminário. “Até porque
o arquivo sofreu três mudanças de local, o que
dificultou bastante o nosso trabalho.”
Para começar, Raquel fez a leitura das atas
da Fundação Mario Covas para entender sua
formação, como o acervo chegou, os relatórios
produzidos nesse processo e sua transferência
para a sede, além do material sobre a trajetória
política do ex-governador. Depois, tratou de
conhecer o projeto Cultura, Política e Cidadania, a
Organização da Memória Covas. Após dois meses
se inteirando dos fatos, traçou as diretrizes para
a execução dos produtos definidos no projeto.
Com o apoio de patrocinadores, foi possível
instituir o Centro de Memória, cuja missão é
resgatar, preservar, organizar e tornar disponível
o acervo, que constitui ação relevante para
preservar a história brasileira e oferecer novas
fontes de pesquisa. “Queremos ser referência
em centro de memória, organizar e tornar
acessível ao publico o patrimônio documental,
desenvolver projetos culturais e educativos
voltados para a responsabilidade da preservação
patrimonial, incentivar e apoiar ações no âmbito
da preservação dos acervos de caráter relevante
Preservar, organizar e dar acesso público ao legado do ex-governador Mario Covas é a missão cumprida com muito trabalho e persistência pela Fundação Mario Covas. Mas como foi que isso se deu? Quem contou a história à audiência do Seminário Acervos de Personalidades foi Raquel Freitas, profissional com 13 anos de experiência na preservação e montagem de acervos, que chegou em março de 2007 à Fundação para executar o projeto de implementação do Centro de Memória.
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S12
para a história brasileira e fortalecer a imagem
da Fundação”, disse Raquel Freitas.
O segundo passo foi a formação de equipe técnica.
“Nos preocupamos em contratar pessoas com boa
formação, introduzi-las nas teorias de arquivística
e trabalhar muito pontualmente. Foram quase
quatro meses e meio de leitura, reuniões sobre
a história de Mario Covas e de como trabalhar
com a norma de descrição arquivística ISAD(G)”,
afirmou. Foram contratados inicialmente dois
técnicos documentalistas, que passaram por um
processo de integração e treinamento. Diversos
profissionais, entre pesquisadores, consultores
ligados à organização e à preservação de acervos,
deram sua contribuição ao projeto.
As quatro fases
O trabalho foi dividido em quatro fases de
organização: o acervo textual, o audiovisual,
o fotográfico e o tridimensional. O registro
topográfico foi feito já no banco de dados, o que
possibilitou atender aos pedidos de consulta dos
pesquisadores, abrir o acervo para o público. “Em
um ano e meio saímos do zero em instrumentos
de controle da documentação para números
significativos: 1.167 caixas de documentos
textuais, 3.639 documentos audiovisuais – fitas
Trainéis deslizantes acomodam os diplomas e títulos recebidos por Mario Covas em sua vida pública
VHS, cassete, Betacam –, 1.918 objetos e 11.042
documentos fotográficos”, disse a coordenadora
do Centro de Memória. O registro topográfico
desses documentos possibilitou uma visão
panorâmica do acervo, importante para a
concepção do Guia do Acervo. “Agora nós estamos
caminhando para o inventário e o catálogo. Até
o início de 2009 vamos disponibilizar o acervo
fotográfico e o de honrarias em catálogo no
nosso banco de dados.”
A rotina de atendimento de pesquisa foi colocada
no módulo de atendimento do sistema, de forma
a manter o controle das informações liberadas
para consulta, de que forma elas serão utilizadas,
a quem estão sendo cedidas e o que o usuário fará
com elas. O módulo de atendimento à pesquisa
estabelece as etapas para o cadastramento e o
controle das informações abertas aos usuários.
O Guia do Acervo foi o primeiro instrumento de
pesquisa elaborado para os acervos organizados.
“Mais do que isso, foi um mecanismo de
conhecimento da documentação e do acervo
de um modo global, permitindo a análise do
ponto de vista de sua criação e acumulação,
das características físicas e do suporte dos
gêneros documentais. Foi possível encontrar
até negativo fotográfico de vidro e as cartas
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S 13
que Mario Covas escreveu quando esteve preso
no DOPS (Departamento de Ordem Política e
Social), resgatando todos os sentimentos que
ele relata ali”, disse Raquel. Um material muito
interessante, segundo a coordenadora do Centro
de Memória, é o que abrange os dois períodos de
doença do ex-governador. “A população mandou
muitas cartas para ele, quase 14 mil cartas. Dá
até para fazer um estudo sociológico sobre a
comoção popular em relação à doença dele, os
conselhos que davam. Há cartas em que relatam
que tiveram um sonho, que tudo iria dar certo.”
Após a abertura do acervo à pesquisa, foram
atendidas até o primeiro dia do seminário 46
consultas, mesmo sem divulgação. “Agora temos
a ajuda de uma assessoria de imprensa para
divulgar que o Centro de Memória existe e está
aberto à consulta, que é possível consultar o Guia
online. Com isso, acreditamos que esse número
cresça e muito.” Afinal, trata-se de um acervo de
interesse geral, organizado com recursos públicos
e que tem como meta ser aberto à população.
Durante sua exposição, Raquel mostrou uma foto
do acervo em fase de organização na antiga sede.
Era um verdadeiro quebra-cabeças. “Mas a equipe
se empenhou e nós conseguimos organizá-lo”,
disse Raquel, lembrando que toda a organização
feita no Palácio dos Bandeirantes era de arquivo
corrente e possuía uma ficha catalográfica muito
próxima da utilizada em biblioteconomia.
“Nós tivemos todo o trabalho de analisar essas
fichas do Palácio para saber qual ação iríamos
colocar adiante em relação à formatação do
Guia do Acervo. Depois, com recursos obtidos
com os patrocinadores, conseguimos chegar
à sala climatizada, equipada com iluminação
correta, arquivos deslizantes, material de
acondicionamento adequado, material de
proteção para os nossos técnicos documentalistas,
e comprar os trainéis para pendurar os quadros.
Por fim, com a compra da sede, conseguimos ter
uma sala exclusiva para o acervo.”
Na sala de triagem, explicou Raquel, é feito todo o
tratamento técnico do acervo, como tirar cola de
foto, limpar documento. Há uma sala de reserva
técnica, onde todos entram de avental, trabalham
de luva e máscara e limpam as mãos com álcool.
“Tivemos problemas com cupins nos quadros, o
que nos obrigou a chamar um especialista para
eliminá-los. Há uma série de critérios que temos
de obedecer e fazer valer os princípios para que
nosso trabalho seja a cada dia mais qualificado.
Temos de lutar por esses princípios, mostrar que
nós temos qualidade técnica e disponibilizar esses
acervos para consulta”, finalizou a coordenadora
do Centro de Memória da FMC.
Na sala climatizada, técnicos do Centro de Memória da Fundação Mario Covas arquivam documentos
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S14
a fundação mario covas organizou
é o número de cartas enviadas pela população desejando melhoras a Covas, todas integrantes do acervo da FMC
14mil
1.918objetos
1.167caixas de
documentos textuais
11.042fotos
3.639documentos audiovisuais
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S 15
Projeto aProvado Pelo ministério da cultura Permitiu a caPtação de recursos Para a organização do acervo mario covas
lei rouanet viabiliza centro de memÓria
O Centro de Memória da Fundação Mario Covas
contou com recursos captados por meio da Lei
Rouanet para organizar seu acervo e torná-
lo acessível à pesquisa do público. O projeto
Memória Mario Covas, elaborado com esse fim,
foi aprovado pelo Ministério da Cultura no dia
23 de maio de 2007, permitindo que a Fundação
captasse na iniciativa privada 1,071 milhão de
reais até o final do mesmo ano.
Os objetivos iniciais do projeto eram a criação de
infraestrutura, a realização das primeiras etapas
de organização, a implementação do sistema de
informatização e da recuperação da informação,
Troféus, salvas, honrarias, esculturas e outros presentes diplomáticos integram o Acervo Mario Covas
1,071milhão de reais foi quanto
a FMC pôde captar na iniciativa privada
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S16
o lançamento do primeiro instrumento de
pesquisa - o Guia do Acervo -, a realização de um
seminário e o lançamento de cinco publicações
relacionadas ao acervo, além de abri-lo ao público
em geral. Todos foram cumpridos, incluindo esta
revista, uma das cinco publicadas pela Fundação
Mario Covas em março de 2009.
A ideia por trás do projeto era compartilhar o
legado, sob a guarda da Fundação, da trajetória
de 40 anos de atuação pública de um líder que,
com extremo senso de justiça, dedicou sua vida
ao bem comum. A Fundação tem como preceito
básico preservar e propagar o ideário de Covas,
mediante a sustentação dos princípios da ética
e da transparência que balizaram sua trajetória.
O acervo é composto por documentos que mostram
o cotidiano de um homem público, atuando no
cenário do Legislativo, à frente da municipalidade
e na gestão do principal Estado brasileiro.
São cartas, relatórios, estudos, atos, cartazes,
programas de governo, prestações de contas,
discussões temáticas, coberturas fotográficas de
ações oficiais, campanhas políticas, entrevistas,
publicações, artigos e matérias jornalísticas,
fotografias, vídeos, correspondências e outros
tantos e diversos documentos.
Acervo fotográfico
Mais um projeto da Fundação Mario Covas encontrou
amparo na Lei Rouanet. Em 1º de dezembro de
2008, o Diário Oficial da União publicou a aprovação
do projeto de Doação e Digitalização do Acervo
Fotográfico de Mario Covas pelo Ministério da
Cultura, durante a 155ª reunião do Conselho Nacional
de Incentivo à Cultura (CNIC). Com a aprovação na
categoria de Patrimônio Cultural, no art. 18 da lei, a
Fundação poderá captar 1, 073 milhão de reais com
100% de isenção fiscal para os patrocinadores.
Os recursos serão aplicados para digitalizar,
classificar e tratar mais de 330 mil cromos,
doados pela A2 Comunicação. Está prevista
ainda a produção de DVDs, além de um livro e
uma exposição. A FormArte Projetos, Produção
e Assessoria Ltda., sob a responsabilidade de
Rosana Dellelis, e o Centro de Memória Mario
Covas estão produzindo uma publicação especial
de apresentação do projeto, que irá auxiliar na
captação dos recursos necessários.
O que é a Lei Rouanet
Decretada em 23 de dezembro de
1991 pelo presidente da República
Fernando Collor de Mello, a Lei
Federal de Incentivo à Cultura (nº
8.313/91) prevê incentivos fiscais a
empresas e indivíduos que desejem
financiar projetos culturais. Entre
outras medidas, permite deduzir do
Imposto de Renda até 100% do valor
investido em um projeto cultural, de
acordo com o enquadramento.
É conhecida também por Lei Rouanet
porque sua criação se deve a Sérgio
Paulo Rouanet, secretário de Cultura
de Collor. Rouanet é diplomata,
filósofo, antropólogo, tradutor,
ensaísta e membro da Academia
Brasileira de Letras desde 1992.
o mecenatoProjetos com caPtação de recursos Por ano, no brasil
Ano Nº de projetos
2000 1.0952001 1.2122002 1.3712003 1.5422004 2.0412005 2.4712006 2.9082007 3.1722008 1.863
Fonte: Ministério da Cultura
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S 17
Busto de Mario Covas
no saguão da sede
própria da FMC
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S18
enfim, a sede prÓpria
lamentava não ter feito durante sua passagem
pela prefeitura paulistana (1983-1985) nem em
sua vida parlamentar como deputado e senador.
Essa foi a origem do projeto Escriba, organizado
por Lúcia Maria dal Médico. O material coletado
em todas as secretarias servia a dois objetivos.
O primeiro deles era alimentar o “Você sabia?”,
um informativo destinado ao grande público.
O segundo era a constituição de um acervo. Os
recortes da imprensa, vídeos e fitas de áudio eram
todos guardados. Os que Mario Covas considerava
especialmente importantes eram merecedores de
uma classificação especial.
Do Palácio dos Bandeirantes, onde estava, esse
material foi transferido para uma pequena casa
alugada pela Fundação Mario Covas enquanto
reformava-se a sede. Verificou-se logo que,
apesar de extensa, essa documentação referia-
se exclusivamente aos anos de governo. Todo o
resto encontrava-se espalhado com a família e
os amigos e nos arquivos da Câmara, do Senado
e da Prefeitura. Graças à boa vontade de todos,
esse material começou a afluir à Fundação.
Além da troca de toda a instalação hidráulica
e elétrica, as obras incluíam novos espaços
destinados a um auditório, salas de reunião e
banheiros. Um dos locais mais atraentes era o
chamado Bar da Praia, um quiosque coberto
de sapé, no quintal dos fundos, ambiente
informal, onde surgiram várias idéias para o
desenvolvimento da Fundação.
A sede provisória foi inaugurada em abril de
2002, com uma exposição fotográfica intitulada
“A Ação Conforme a Pregação”, que mais tarde
se tornaria itinerante, percorrendo inúmeras
cidades paulistas. A exibição documentava
passagens significativas da vida de Covas, desde
a formatura na Escola Politécnica, em 1955, até
as últimas realizações de sua segunda gestão no
governo de São Paulo, 45 anos mais tarde.
Instalada a sede, começou a organização do
acervo. A ideia do acervo partira do próprio
Mario Covas. Entre o final da campanha vitoriosa
em 1994 e o início de sua gestão do Estado de
São Paulo, ele externara sua preocupação em
preservar a memória de seu governo, algo que
a fundação mario covas mudou várias vezes de endereço até chegar ao definitivo, no coração de são Paulo
Dois andares de um prédio na rua 7 de Abril, no centro de São Paulo, abrigam
a sede própria da Fundação Mario Covas desde o início de 2008. Encontrar o
endereço definitivo foi uma longa batalha, iniciada logo após a criação da
entidade, em 21 abril de 2001. Dentre as possibilidades analisadas pela diretoria,
na época, a preferida foi o aluguel de uma instalação provisória, enquanto se
estudava a viabilidade de compra de uma sede definitiva ou de um terreno
onde construí-la. Conseguiu-se algo melhor: a cessão, a título gratuito, de
um casarão à rua Tavares Bastos, no bairro paulistano da Pompéia. O imóvel
necessitava uma reforma, e ela foi realizada.
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S 19
Trecho de discurso de Covas destaca exposição permanente
Na sede da rua Tavares Bastos, cuidou-se de
organizar os cursos sobre política. Destinavam-se
a preencher uma lacuna na educação dos jovens
entre 16 e 18 anos. Essa faixa etária não conhecera
as lutas em prol de democracia conduzidas pelas
gerações anteriores. E também desconhecia, pois
ainda não haviam chegado aos livros escolares,
as conquistas da Constituição de 1988, como o
Estatuto da Criança e do Adolescente, o Código
de Defesa do Consumidor ou o fortalecimento do
Ministério Público.
Além desses cursos realizados de forma
permanente, a Fundação Mario Covas passou
a realizar seminários sobre a administração
pública baseada na eficiência, nos postulados da
democracia e no respeito ao contribuinte. Quando
a Notre Dame Seguros S/A, empresa proprietária
do imóvel da rua Tavares Bastos, solicitou a
sua devolução, a entidade se transferiu para o
edifício Bandeira, antigo Joelma, no centro da
cidade, onde ficou por seis anos, até a compra da
sede definitiva, no início de 2008.
As novas instalações ocupam dois andares de um
prédio da rua 7 de abril. A aquisição foi conduzida
por Antonio Carlos Malufe, presidente da
Fundação desde abril de 2006, em substituição
a Osvaldo Martins. O contrato assinado com a
Fundação Porto Seguro, do Colégio Porto Seguro,
proprietária do imóvel, estabelece um preço de
300 mil reais, sendo 40 mil de entrada e 26 parcelas
mensais de 10 mil reais cada. Essas quantias
foram asseguradas por doações de empresas e
associações, cada uma delas se comprometendo
com 10 mil reais. Todas as reformas necessárias
foram novamente efetuadas.
Nas instalações definitivas da nova sede, mais
amplas e apropriadas, foi possível dar acesso
ao público, organizar exposições e seminários.
Ao abrir essa massa de documentos para a
população, a Fundação presta um serviço não
apenas à memória de Mario Covas, mas a todos
os interessados na história e nos seus reflexos
atuais na vida política do Brasil.
Painel com os fatos mais marcantes da trajetória de Mario Covas na entrada da sede da Fundação
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S20
o fio condutor de uma vidao guia do acervo reconta a história de mario covas desde antes de seu nascimento até Pouco dePois de sua morte
O Guia do Acervo, primeira publicação do Centro de Memória da Fundação
Mario Covas, foi lançado no dia 20 de agosto de 2008. Elaborado com base
nas normas estabelecidas pela ISAD (G) – International Standard of Archival
Description (General) e pela Nobrade – Norma Brasileira de Descrição Arquivística,
o Guia descreve a estrutura do acervo e traz textos complementares sobre sua
implementação, além do perfil e da cronologia de vida de Mario Covas.
Capa do Guia do Acervo, primeira publicação do Centro de Memória da Fundação Mario Covas
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S22
O Acervo Mario Covas é composto, principalmente,
por documentos de ordem familiar e privada,
além daqueles produzidos e acumulados nos
gabinetes de trabalho, durante os mandatos
exercidos como deputado, prefeito nomeado,
senador e governador.
O maior volume de documentos refere-se aos
últimos anos da vida de Mario Covas, durante
os dois mandatos à frente do governo do Estado
de São Paulo, uma vez que a documentação
foi recolhida inicialmente no gabinete do
governador. Posteriormente, foram incorporados
ao acervo os documentos familiares doados pela
esposa, Florinda Gomes Covas, e a filha, Renata
Covas, com destaque para os álbuns de fotos.
Documentos pessoais1901 - 2001
Fazem parte do grupo de documentos pessoais
e familiares as certidões de nascimento,
casamento, óbito e do processo de divórcio
dos pais de Mario Covas. Há também a carteira
de identidade, o comprovante de registro no
Cadastro de Pessoas Físicas da Receita Federal,
os passaportes (diplomático e pessoa física),
carteiras funcionais, carteiras de sócio de clubes,
documentação relacionada ao status maçônico,
boletins escolares e diplomas, entre outros. O
acervo dispõe ainda de um número expressivo
de fotografias de família, formaturas, jantares e
outros eventos sociais de caráter privado.
Raquel Freitas e Antonio Carlos Malufe mostram diplomas e certificados de Covas a visitantes da FMC
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S 23
Campanhas eleitorais 1961 – 2000
A documentação refere-se aos períodos de: 1961,
quando Mario Covas candidatou-se à Prefeitura
de Santos; 1962, ao concorrer a deputado
federal, e 1966, pleiteando a reeleição; 1982, ao
candidatar-se a deputado federal, após o período
de cassação; 1986, quando disputou uma vaga
no Senado; 1989, com a campanha presidencial;
1990, ao candidatar-se ao governo do Estado de
São Paulo; 1994, em que foi novamente candidato
ao governo, e, em 1998, à reeleição. Da campanha
de 2000, há documentos sobre ao apoio de Mario
Covas a candidaturas municipais.
Administração de campanhas
Os documentos abrangem planilhas de custos,
pesquisas, comprovantes e relatórios de apuração
do Tribunal Superior Eleitoral, relatórios, alguns
com registros fotográficos, de acompanhamento
dos serviços prestados às campanhas, cadastros
de contribuintes de campanhas, listagens com
endereços de diretórios e comitês eleitorais,
crachás utilizados em comícios, carimbos e
papéis em branco timbrados com logomarcas de
campanha, correspondência entre diretórios.
Documentos partidários e planos de governo
O acervo conta com estatutos e diretrizes
partidárias, nos quais são condensadas
orientações políticas, além das propostas de
governo, tanto em escritos preliminares que se
caracterizavam por textos sujeitos à discussão
nos conselhos partidários, como em brochuras
para a divulgação das propostas nas campanhas.
Promoção de campanhas
Os materiais promocionais utilizados em
campanhas políticas apresentam-se em variados
suportes e formatos. Dos materiais impressos,
o acervo dispõe de folhetos, cartazes, adesivos,
calendários e jornais de campanha – publicações
divulgando as realizações do candidato em
cargos públicos exercidos anteriormente.
Constam também bandeirolas, bonés, bottons,
leques, camisetas, brincos, bexigas, chaveiros,
saca-rolhas, réguas, apitos, caixas de fósforos,
lixas de unha, flanelas, aventais, copos, batons,
frasco contendo pó de guaraná e canetas.
Cargos públicos
Dos três mandatos de Mario Covas como
deputado federal, o acervo possui preciosidades,
como a documentação referente ao processo de
cassação. Entre os pronunciamentos do deputado,
destaca-se o discurso realizado em defesa de
Márcio Moreira Alves às vésperas da edição do Ato
Institucional nº 5. Há também projetos de lei,
emendas, pareceres e requerimentos.
O conjunto de documentos da gestão de Covas
na Prefeitura de São Paulo (1983 – 1985) contém
sua indicação pelo governador Franco Montoro e
o processo de nomeação. Mario Covas foi o último
prefeito “biônico” da cidade.
A documentação referente à atuação como
senador (1987 – 1994) inclui registros da
Assembléia Nacional Constituinte, na qual
exerceu a liderança da bancada do PMDB, além da
participação na CPI que culminou no processo de
impeachment do então presidente da República
Fernando Collor de Mello.
Da gestão no governo do Estado de São Paulo
(1988 – 2001), constam tanto os documentos
produzidos no gabinete como aqueles coletados
e armazenados com objetivo de acompanhar as
atividades desenvolvidas pelos órgãos e empresas
públicas, além do acompanhamento de serviços
prestados por empresas privadas contratadas.
A íntegra do Guia do Acervo está disponível na
internet, no endereço www.fmcovas.org.br.
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S24
“temos de ir mais fundo no acervo”a catalogação de honrarias e 17 álbuns de fotos é o Próximo Passo de raquel freitas, coordenadora do centro de memória mario covas, na organização do acervo
Depois de identificar cada peça, o
Centro de Memória Mario Covas começa
a aprofundar a organização do acervo.
“Estamos catalogando primeiro as
honrarias, porque são peças delicadas”,
diz Raquel Freitas, coordenadora do
Centro. Em entrevista após o seminário,
Raquel avalia a contribuição do evento
para a FMC e conta quais são seus planos
para o acervo e os maiores desafios
que enfrentará para estar com tudo
catalogado até 2011. Acompanhe.
Comendas recebidas por Covas em
exposição permanente na sede da FMC
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S26
FMC – o que o seMinário trouxe de Contribuição para o Centro deMeMória Mario CoVas?
raQUEL FrEitas – Foi uma troca de informações muito rica. Cada palestrante expôs uma realidade de trabalho muito diferente da dos outros. A professora Consuelo Novais Sampaio, da Fundação Pedro Calmon, por exemplo, está numa situação delicada, porque o governo da Bahia diminuiu a verba destinada ao projeto. Como se não bastasse, ela terá de deixar o palácio onde fica o centro de memória, porque pediram o prédio. A professora Maria da Glória Bordini, dona de uma formação belíssima na análise da literatura de Erico Verissimo, não tem um lugar definitivo para o acervo. Os documentos estão numa sala fechada, não há como organizar.
FMC – quais aCerVos estão eM Melhor situação?
raQUEL FrEitas – O Centro de Memória da Unicamp é um deles. Fica dentro da universidade, que reconhece a importância do centro de preservação da memória. Além disso, gera pesquisa, porque vende prestação de serviço. Achei isso muito legal. A Casa de Oswaldo Cruz vive de pesquisa. Lá é tudo bem organizado, com uma equipe estruturada. Na Fundação Mario Covas, nós temos a infraestrutura. Agora, o desafio é ampliar as possibilidades de pesquisa, ver o que a gente pode tirar de informação desse acervo.
FMC – eM relação às realidades que o seMinário expôs, eM que MoMento está a Fundação Mario CoVas? VoCê aCha que o CaMinho adotado está Correto?
raQUEL FrEitas – Acho que sim. A primeira coisa que nós fizemos aqui foi abrir o acervo para a consulta, democraticamente. É um legado para todos os brasileiros. O primeiro passo foi dado. Mas, em termos de organização, foi um pequeno passo. Há ainda muita coisa por fazer, temos de ir mais fundo. Já sabemos o que está aqui, temos os registros, o controle sobre o acervo, mas é só o primeiro passo.
FMC – e qual é o próxiMo?
raQUEL FrEitas – O próximo passo é a catalogação desse acervo, entrar fundo nele. Na verdade, é o que já começamos a
fazer. Estamos catalogando as honrarias, porque são peças delicadas. Muitas estavam quebradas, não havia o mínimo controle. Então estamos tratando das comendas com um cuidado maior. Depois de catalogar todas as honrarias, passaremos para as fotos doadas por dona Lila Covas. São quase 17 álbuns com fotos belíssimas. Em seguida, vamos mexer nos conjuntos documentais, catalogar cada um. É importante detalhar, porque há quem acredite que o acervo está pronto.
FMC – o que são Conjuntos doCuMentais?
raQUEL FrEitas – Conjunto documental é tudo aquilo que conseguimos referenciar a um dado período. No caso da trajetória política de Mario Covas, reunimos num conjunto, por exemplo, toda a documentação que faz referência ao período em que ele foi deputado federal. Integram esse conjunto a campanha, a propaganda política, os projetos etc. Agora, vamos pegar esse conjunto e decidir como dividi-lo, seguindo critérios de datação, de catalogação de cada documento. O acervo deve estar todo catalogado em 2011, porque há todo um trabalho de pesquisa a ser feito. As pessoas precisam entender que trabalhar com um arquivo envolve muita metodologia e pesquisa, não é simplesmente pegar e cadastrar. É preciso posicioná-lo dentro do conjunto em que está inserido.
FMC – o teMpo da organização é diFerente.
raQUEL FrEitas – Exato. É preciso ter uma
equipe mínima para projetar um prazo.
Catalogar um acervo enorme em duas pessoas
é muito mais demorado do que com nove.
FMC – a equipe da Fundação Mario CoVas é ForMada por quantas pessoas?
raQUEL FrEitas – Quatro pesquisadores, dois técnicos documentalistas e dois estagiários. Todos são da área de História, com treinamento em arquivística realizado internamente. Daqui para a frente, o desenvolvimento da equipe vai depender do interesse de cada um. Todos os integrantes descobriram que essa é uma outra área em que o profissional formado em História pode atuar, não precisa ser só professor, e estão buscando aperfeiçoamento. Para nós é muito importante esse interesse, porque pegamos o
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S 27
acervo da Fundação Mario Covas num estágio
ruim, com muitas mudanças de espaço. O
maior desafio era entender o caos dessa massa
documental e definir como faríamos a primeira
organização, que gerou o Guia do Acervo. Foi
um desafio constante e, para eles, muito mais.
FMC – VoCês estão na sede própria desde qual data?
raQUEL FrEitas – Desde 7 de março de 2007.
O projeto foi aprovado em maio de 2006,
e o primeiro aporte de recursos entrou em
dezembro de 2006. A criação do Centro de
Memória foi oficializada no dia 27 de abril
de 2007 e, em maio, começamos a traçar as
diretrizes de como iríamos trabalhar. O acervo
ganhou o espaço que ele merece, tem sala
climatizada, arquivos, tudo o que era essencial
para começarmos a organizar a documentação
considerando os instrumentos de pesquisa que
o banco de dados nos dá. O banco foi montado
em níveis de descrição. Qual foi o nível maior? O
Guia. Agora é a vez do inventário e, depois, do
catálogo. Está fácil, porque temos tudo o que
precisamos, infraestrutura, computador.
FMC – o seMinário Mostrou diVersas realidades nos diFerentes Centros de MeMória. VoCê aCredita que o brasil está pronto para esse tipo de trabalho?
raQUEL FrEitas – Que pergunta difícil. Acho
que o Brasil está no processo. Quando temos
uma associação de arquivistas, criada na
década de 1970 em São Paulo, movimentos
iniciados pela própria gestão pública, como o
arquivo do Estado, criam-se procedimentos
para o tratamento de tudo isso. O Seminário
mostrou também que tudo esbarra na vontade
política. Eu costumo dizer que trabalhar com
acervos é abraçar causas, é justificar que aquilo
é importante, é correr atrás de patrocínios,
batalhar para ter uma infraestrutura mínima.
FMC – preserVar a MeMória é algo noVo, as pessoas não entendeM Muito beM o que isso Vai ser lá na Frente.
raQUEL FrEitas – É verdade. O trabalho do arquivista é de pesquisa, delicado, preciso. Um acervo carece de aprofundamento e tempo para se organizar. A Fundação foi criada em abril de
2001, demorou dois anos para definir o que seria o acervo Mario Covas, levou mais dois anos para definir um projeto começarmos a executá-lo. Está tudo pronto? Não, não está tudo pronto. Estamos no processo.
FMC – o que o pesquisador enContra atualMente no site da Fundação Mario CoVas?
raQUEL FrEitas – Nós temos o Guia do Acervo disponível no nosso site. Isso não estava previsto no projeto original. Mas como tínhamos o banco de dados e a infraestrutura de pesquisa em ambiente web, decidimos oferecer o Guia no site. Foi uma decisão importante porque ampliou o acesso à informação para além dos 3.000 exemplares do Guia impresso. Também foi um meio de descobrirmos o perfil das pessoas interessadas em consultar o acervo.
FMC – o site gerou deManda por pesquisa?
raQUEL FrEitas – Atendemos a cerca de 50 pedidos de pesquisa no período de um ano.
FMC – os pesquisadores já publiCaraM alguMa obra baseada no Material da Fundação?
raQUEL FrEitas – O livro Políticos ao Entardecer, organizado pelo cientista político Ney Figueiredo. Recebemos até um convite para ir ao lançamento, que ocorreu em novembro de 2007, na livraria Cultura, do Conjunto Nacional. Essa publicação trata do final de vida de oito políticos brasileiros de expressão. O capítulo O Político Linha Reta, escrito pelo jornalista Francisco Viana, fala de Mario Covas. A pesquisa foi realizada por Tiago Abra, que passou uma semana no Centro de Memória lendo os documentos pessoais, discursos, declarações de Imposto de Renda, tudo o que foi publicado no período da doença de Covas. Em outros casos, o pesquisador nem precisou vir à sede. Nós digitalizamos os documentos e entregamos o material pronto.
FMC – o aCerVo deVe CresCer na internet?
raQUEL FrEitas – Exatamente. Vamos oferecer mais ferramentas de pesquisa via
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S28
RAQUEl FREiTAS
Bacharel em História pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, Raquel
Freitas é pós-graduada em Gestão do
Conhecimento (SENAC-SP), com cursos na área
de organização de acervos históricos. Desde
1992 atua na implantação e organização de
centros de documentação e memória. Foi
coordenadora do Centro de Memória Bunge e
curadora de exposições comemorativas, tais
como: Exposição Memória Bunge, São Paulo
450 anos, A História da Responsabilidade
Social no Brasil, dentre outras. Desde 1995
é membro da Associação dos Arquivistas de
São Paulo. Atualmente é coordenadora do
Centro de Memória Mario Covas.
internet. Mais adiante, vamos agregar ao Guia do Acervo a documentação doada por Rose Neubauer, secretária da Educação do governo do Estado de São Paulo na gestão Mario Covas. Agora, precisamos divulgar mais o acervo, mostrar sua utilidade, para atrair cada vez mais pesquisadores.
FMC – de que ForMa o Centro de MeMória pretende atrair pesquisadores?
raQUEL FrEitas – Temos de trabalhar muito a pesquisa, a coisa mais séria a fazer com esse acervo. Precisamos criar instrumentos de pesquisa pontuais e, ao mesmo tempo, desenvolver ações como a do seminário, que foi uma proposta legal. Nós abrimos espaço para a discussão, para a troca de informação e para avaliar que caminho a Fundação deve tomar com o Centro de Memória.
FMC – VoCê teVe alguM retorno das pessoas que FizeraM parte da
audiênCia? CoMo elas aValiaraM o seMinário?
raQUEL FrEitas – Muitos vieram nos cumprimentar, agradecer a iniciativa. A Ana Luísa Correia Ferrari, da Associação dos Funcionários Públicos do Estado de São Paulo, por exemplo, me disse que viu coisas aqui tão importantes sobre a conduta de trabalho e a trajetória de cada palestrante, que iria repensar a condução de suas atividades. Claro que há um certo padrão. Você tem de manter o acervo dentro dos padrões de conservação e preservação. É preciso ter um banco de dados, pessoas disponíveis para a pesquisa e a organização interna. O que muda é como nos posicionamos nesse acervo, e temos que estar ali como pesquisadores. No caso do Centro de Memória Mario Covas, falta cumprir a etapa que eu considero a mais difícil, que é ver quais são as temáticas possíveis que o acervo pode oferecer ao pesquisador.
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S 29
a Personalidade forte de mario covas influenciou a organização do arquivo, diz a consultora márcia Pazin
quando a pessoa é maior que o cargo
Privado x público
Sempre que falamos de arquivo pessoal,
lembramos das relações privadas, mesmo que os
relacionamentos aconteçam no desenvolvimento
de uma atividade profissional ou acadêmica. É
no âmbito privado que nos relacionamos. Mas
quando se trata do acervo pessoal do titular de
um cargo público é preciso considerar que as
suas decisões e realizações possuem abrangência
oficial. Para a formação do acervo Mario Covas,
por exemplo, vieram documentos de uma série de
fontes, como assessoria particular, de imprensa e
núcleo de documentação do governo do Estado.
Na maior parte das vezes, não nos damos conta
do coletivo que está por trás do arquivo pessoal.
O titular do cargo público, por sua vez, é uma
pessoa com referências culturais próprias,
personalidade, desejos e interesses particulares.
Mesmo atuando na administração pública, as
características pessoais é que farão com que
seu governo seja diferente. Ao mergulhar na
dicotomia entre público e privado, nas relações
entre um e outro, chegamos à cultura que
envolve a formação desses arquivos.
Características pessoais
A personalidade do indivíduo influencia muito
seu trabalho. Ele vai produzir um arquivo pessoal,
mesmo atuando num cargo público, porque
suas ações são escolhas pessoais que se tornam
oficiais. As decisões estão nos arquivos das
secretarias, dos ministérios, de todos os órgãos
O que é público e o que é privado em um arquivo pessoal? Que
importância têm as peculiaridades do indivíduo na formação do acervo
do homem público? Essas questões foram levantadas pela historiadora
e arquivista Márcia Cristina de Carvalho Pazin, em sua palestra no
Seminário Acervos de Personalidades. Consultora na Fundação Mario
Covas, Márcia vem auxiliando na organização do acervo desde 2007, e
foi nas encruzilhadas organizacionais que emergiram das discussões
sobre o que era a memória Mario Covas que ela centrou sua exposição.
Veja a seguir os tópicos tratados pela historiadora.
Mario Covas em entrevista coletiva
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S30
governamentais. Mas tudo o que foi feito antes
da tomada de decisão, da transformação de um
projeto de lei em decreto, do que quer que seja o
documento que oficializou um ato, não está em
lugar nenhum ou está no gabinete.
Os papéis de gabinete têm uma diferença
fundamental em relação à documentação
institucional. Num arquivo institucional, de uma
empresa ou de um órgão público, há funções
predeterminadas que encaminham a produção
do arquivo. Na realização dessas funções é que se
descortina que tipo de arquivo vai nascer ali. As
mudanças são um pouco mais lentas, culturais,
institucionais, de estrutura, mas elas têm uma
regularidade maior do que no arquivo pessoal,
porque ele vai crescer com a vida dessa pessoa.
Gabinete, uma instituição
Formado por um grupo de assessores a serviço
da pessoa e do país, do Estado, da coletividade,
o gabinete é uma dificuldade a mais no arquivo
do político. O grupo de assessores diretos é uma
instituição a serviço de uma pessoa, que acaba,
ela própria, virando uma instituição. Não é só
com políticos que isso acontece. Artistas têm
assistentes, cientistas têm alunos e assistentes.
Aliás, os cientistas mesclam as atividades de
laboratório com as de pesquisa individual, uma
mistura muito complicada. O gabinete particular
é uma instituição política no Brasil. Juízes,
parlamentares, qualquer titular de cargo público
tem um gabinete a seu serviço, e o arquivo
resultante é considerado seu, pessoal.
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S 31
Márcia Pazin durante palestra na FMC
Nos arquivos correntes de algumas instituições,
no momento em que ocorre a troca de gabinete
ou de presidência ou de juiz responsável, há
uma coleta geral, um esvaziar de armários e um
carregar de caixas para deixar o espaço liberado
para o próximo ocupante. Essa memória segue
com os indivíduos. Não temos visto a formação
de acervos com esse material frequentemente.
Essa documentação ainda está muito espalhada,
mas há uma infinidade de titulares de cargos
públicos que têm documentação abundante e
que não sabe para onde enviar esse material.
No Brasil, somente os acervos documentais
privados dos presidentes da República são
regulados por lei (decreto presidencial nº 4.344,
de 26 de agosto de 2002, que regulamenta a
lei nº 8.394/91). Pela legislação, eles devem ser
preservados, organizados e ter acesso público.
Sede de informação
Mario Covas tinha muitos assessores que o acompanharam pela maior parte de sua vida pública e foram responsáveis por garantir a existência desse acervo. Nas condições em que ocorreu a morte do ex-governador, esse material poderia ter se perdido facilmente. Mas por que
esses assessores se preocuparam com isso? Por uma característica pessoal de Mario Covas.
Tanto Osvaldo Martins, que foi secretário de Comunicação Social, quanto Antonio Carlos Malufe, secretário particular do governador, disseram-me que Mario Covas tinha obsessão pela informação. Não era para saber mais ou menos o que estava acontecendo, mas para obter detalhes concretos, objetivos e exatos sobre os acontecimentos. São até folclóricas as brigas entre Covas e os assessores, quando a informação vinha pela metade. Assim, os assessores adquiriram a cultura de coletar e arquivar dados sobre qualquer decisão a ser tomada.
Por tudo isso, devemos prestar atenção redobrada quando existem arquivos privados dessas pessoas que são entidades. Que cultura existe em torno dessa pessoa? Quem são as pessoas que tiveram influência no arquivo, que acabam fazendo com que ele seja maior, menor, mais ou menos complexo? Isso conta muito de quem é a pessoa. Pesquisei e descobri que não há muita literatura no Brasil a respeito da cultura de gabinete. Uma pena. Existem muitas questões envolvidas na produção de um arquivo, que, para compreender, é necessário que se investigue como ele nasceu, como foi formado. São várias as condições que dão característica específica a um arquivo.
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S32
Márcia Pazin durante palestra na FMC
a consultora márcia Pazin fala das características dos acervos da fmc e da fundação energia e saneamento
a minúcia dá o tom do arquivo
FMC – qual é a prinCipal CaraCterístiCa
do Fundo Mario CoVas?
márcia Pazin – O fundo Mario Covas é um
arquivo pessoal de alguém que foi, durante
muitos anos, titular de cargos públicos no
poder Legislativo ou no poder Executivo.
A característica mais forte desse fundo é o
grande volume de acervo da atividade política
no período em que ocupou os mandatos. A
maior parte do acervo é composta desse
material. Já o material privado, que são as
coisas dele como participante da família,
as peças pessoais, tem um volume muito
pequeno. A principal característica desse
acervo, portanto, é ser de um homem que fez
da vida pública a sua vida.
FMC – qual Foi o Critério adotado para
a organização?
márcia Pazin – O arquivo é pessoal, mas de
Covas como ocupante de um cargo público,
em grande parte. Assim, nós dividimos o
acervo em alguns grandes grupos, para
facilitar a diferenciação entre o público e o
privado. Não são documentos que deveriam
estar numa secretaria. Não são documentos
essencialmente públicos no sentido de que
foram publicados ou que são resultado de
alguma decisão de um órgão público. São
documentos dele, que ele produziu para
dar origem a outros documentos que são
verdadeiramente públicos. De todo modo, os
documentos são resultado de toda a atividade
pública de Mario Covas. Primeiro, separamos
a vida familiar, privada. Depois, dividimos
toda a documentação pública pelos cargos
que ele ocupou. Há um grupo de documentos
relativos ao Mario Covas senador, outro dele
como deputado federal, como prefeito e
assim por diante. Foi organizado dessa forma
para podermos visualizar a atividade pública
de Covas e a sua importância.
FMC – CoMo a personalidade de Mario
CoVas inFluenCiou na organização e na
ForMação do arquiVo?
Detalhista e completamente dedicado aos cargos públicos que exercia, Mario Covas gerou documentos de gabinete que espelham sua personalidade. Essa seria a síntese do arquivo do ex-governador, segundo Márcia Pazin, consultora da Fundação Mario Covas e supervisora técnica do acervo da Fundação Patrimônio Histórico da Energia e Saneamento. Na entrevista a seguir, Márcia fala das peculiaridades de materiais tão distintos.
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S 33
márcia Pazin – Mario Covas era um homem
minucioso, ligado a detalhes. Quando pedia
uma informação, os assessores tinham
de correr atrás de todos os detalhes. As
informações vinham em dossiês, relatórios,
estudos. Essa necessidade de saber de tudo
pormenorizadamente fazia com que se
produzissem muitos documentos, e nisso os
assessores têm um papel muito importante.
O arquivo não existe somente pelo Mario
Covas, mas também pelos assessores, que
eram muito próximos dele e garantiram a
preservação do material, pois sabiam de
sua importância num momento posterior. A
característica minuciosa de Covas contribuiu
para que o acervo fosse tão detalhado.
Para cada lei elaborada no período em que
esteve no Senado, ele tinha um estudo
anterior. Para cada problema que surgia em
uma das secretarias do Estado, ele tinha um
dossiê sobre aquele assunto para embasar
sua decisão. Nas campanhas políticas, ele
tinha estudos bastante completos sobre os
adversários. Só o material sobre o (Paulo)
Maluf, por exemplo, enche armários. Para
Covas, era importante ter informações para
comparar com o que ele próprio estava
produzindo. Na hora de organizar esse volume
enorme de documentos, a necessidade de
associar cada dossiê a um contexto correto dá
muito mais trabalho. O arquivista é obrigado a
pesquisar de onde aquilo veio para saber que
função estava ocupando. É preciso descobrir o
meandro e a lógica das informações.
FMC – VoCê aCredita que os aCerVos
de personalidades públiCas estejaM
sendo beM tratados no brasil?
márcia Pazin – Não. Nós temos pouquíssimos
casos de personagens públicas, como
presidentes e governadores, que estão
recebendo algum tipo de tratamento e se
tornando públicos para a pesquisa. No Brasil
nós não temos a tradição de preservar arquivos
de gabinetes, como o que a Fundação Mario
Covas está fazendo. O que o homem público
usa em seu cotidiano de trabalho para tomar
decisões vai com ele onde quer que vá.
E isso tem um razão de ser. Terminado
mandato, o titular precisa ter algum material
para comprovar ou justificar as decisões que
tomou. É uma forma de proteção. Embora ele
exerça um cargo público, o arquivo é privado
porque contém documentos que subsidiaram
decisões que se tornaram material público.
Acredito que é possível criar um espaço que
possa receber esse material. Essa é uma
proposta da Fundação Mario Covas, que está
abrindo uma oportunidade para que outros
titulares possam deixar lá o seu material para
ser tratado adequadamente.
FMC – qual o Maior desaFio da
organização do arquiVo Mario CoVas?
márcia Pazin – É a própria identificação
do acervo, saber a qual caixinha aquele
documento pertencia. Vieram coisas de
lugares diferentes, e passou muito tempo até
que se conseguisse ter uma sede estável. A
cada mudança local, algumas coisas somem
ou quebram e se desorganizam. Para remontar
a história de Mario Covas foi necessário fazer
muita pesquisa. Além de desafiadora, a
identificação foi a coisa mais enriquecedora,
do ponto de vista da necessidade de entender
a pessoa e o envolvimento de várias outras na
composição do arquivo de gabinete. O papel
do assessor político é muito importante.
FMC - Falando agora do aCerVo da
Fundação energia e saneaMento, que
VoCê Cuida Mais de perto, quais são as
diFerenças entre os arquiVos pessoais
de lá e o de Mario CoVas?
márcia Pazin – Na Fundação Energia e
Saneamento nós temos tanto acervos de
empresas privadas, quanto arquivos pessoais
de profissionais, que normalmente são
técnicos, que trabalharam e foram influentes
no setor durante muito tempo. É um acervo
mais privado, mais individual do que o de
Mario Covas. A exceção é o acervo de Catullo
Branco, um engenheiro que foi deputado
constitucionalista em 1946 e um homem muito
importante no setor elétrico. Além disso, o
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S34
mÁRCiA PAZiN
Doutoranda em História Social (Historiografia e
Documentação) pela FFLCH/USP, Marcia Cristina
de Carvalho Pazin é especialista em organização
de arquivos pelo Instituto de Estudos Brasileiros
da Universidade de São Paulo (IEB/USP). Há vários
anos atua como consultora na implantação de
sistemas de arquivo e organização de acervos
históricos em instituições públicas e privadas.
Desde 2002, é docente no curso de Especialização
em Organização de Arquivos do Instituto de
Estudos Brasileiros IEDB/USP e em diversos cursos
de extensão cultural. Atualmente, é supervisora
técnica de serviços e projetos especiais da
Fundação Patrimônio Histórico da Energia e
Saneamento (FPHES).
acervo dele uma peculiaridade. Quando ele
morreu, em 1980, a família decidiu dividir
o material. Para a Fundação Energia vieram
documentos da atividade profissional como
engenheiro. Para o IEB (Instituto de Estudos
Brasileiros), da USP, foi a biblioteca. E para
a Unesp, foram documentos relacionados à
atividade política, como deputado. Com essa
divisão, perdeu-se um pouco da característica
do arquivo. O que está conosco é bem técnico.
FMC - qual Fundo sob a guarda da
Fundação energia e saneaMento VoCê
Considera o Mais preCioso?
márcia Pazin – O fundo mais precioso que
nós temos é o da Light/Eletropaulo. A Light
chegou a São Paulo em 1899 para implantar
todo o sistema de bondes e iluminação
elétrica na cidade. Para isso, fotografou as
obras na cidade toda. O pessoal da Light
adotava um procedimento de trabalho muito
organizado. Temos séries de documentos
que vão desde o final do século XIX até a
década de 1960. Eles registravam as obras e
as ações em relatórios e em fotografia. É um
acervo enorme, riquíssimo, com cerca de 170
mil imagens diferentes desde 1899. Alguns
fotógrafos bastante importantes fizeram
registros de São Paulo a serviço da Light.
Temos muitas fotos aéreas de São Paulo, de
diversos períodos, para mapear a topografia
dos locais onde iriam passar as linhas de
transmissão. Dá para ver, por exemplo, que
o curso dos rios Pinheiros e Tietê era muito
diferente originalmente, tinha muito mais
curvas. Podemos visualizar também o que
aconteceu com os bairros no entorno desses
rios após a retificação do curso.
FMC – e qual é o aCerVo Mais Curioso?
márcia Pazin – Um acervo curioso é o de
fotografias de um supermercado que a Light
mantinha para os funcionários poderem
comprar mercadorias a preço de custo. Temos,
por exemplo, o acervo de promoções que eles
faziam para os eletricitários. É algo que foge
totalmente da atividade da empresa.
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S 35
a fPhes guarda e divulga o Patrimônio histórico e cultural dos setores de energia e saneamento ambiental
luz, gás, água e preservação
Em 1890, a empresa dos Guinle gerava energia
por usina a vapor em pleno centro de São
Paulo, abastecendo a área comercial. Uma
década depois, a combinação de brechas na
legislação e uma concorrência implacável jogou a
distribuidora de energia no colo da Light, dando
aos ingleses domínio sobre o setor por décadas.
Essa é uma pequena parte da história, contada
pelos documentos guardados pela Fundação
Patrimônio Histórico da Energia e Saneamento
(FPHES), que esteve representada no seminário
da FMC por sua supervisora técnica, Márcia Pazin.
A FPHES é uma instituição privada, sem fins
lucrativos, criada em 1998 com a missão de
preservar e divulgar o patrimônio histórico e
cultural dos setores de energia e saneamento
ambiental. Abriga um acervo arquivístico,
bibliográfico, museológico e ambiental,
referência importante para a história paulista e
brasileira, especialmente no que diz respeito à
industrialização e à urbanização.
Sob a guarda da FPHES estão 34 fundos e coleções,
institucionais e pessoais. Esse material soma
cerca de 2.500 metros lineares de documentos
textuais, 254 mil imagens e 8 mil pranchas
contendo documentos técnicos e cartográficos.
Para assegurar o adequado tratamento de seu
patrimônio e potencializar a divulgação, a
Fundação mantém um Núcleo de Documentação
e Pesquisa, na capital paulista, e um sistema de
Museus da Energia implantados nas cidades de São
O negócio de fornecer energia elétrica para São Paulo e cidades do interior paulista
gera muita cobiça e história há mais de um século. A Empresa Paulista de Eletricidade,
por exemplo, criada em 1886 pela Marques, Moutte & Cia., acabou engolida pela
Companhia de Água e Luz do Estado de São Paulo, da família Guinle, a mesma que
construiu o famoso Hotel Copacabana Palace, no Rio de Janeiro.
Estudantes em visita ao Museu da Energia de Itu (SP)
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S36
Paulo, Itu e Jundiaí. Além disso, quatro pequenas
hidrelétricas, localizadas nos municípios de
Rio Claro, Brotas, Santa Rita do Passa-Quatro e
Salesópolis, estão sendo recuperadas para voltar
a gerar energia. Nesses espaços, a FPHES promove
atividades culturais, educativas e de ecoturismo.
O mais abrangente instrumento de pesquisa da
FPHES é o Guia da Documentação Arquivística,
que traz informações gerais sobre os fundos e
coleções custodiados, possibilitando o acesso
à pesquisa e funcionando como norteador da
utilização do acervo para os mais diversos fins.
A composição do acervo
A maioria dos documentos sob a responsabilidade
da FPHES foi recolhida ou doada pelas empresas
que a instituíram, por intermédio de seus
departamentos de patrimônio histórico ou
centros de memória. Três grandes conjuntos,
da Eletropaulo, da CESP e da Comgás, foram
recolhidos na criação da FPHES e depois
analisados de forma a manter a individualidade
de empresas que estiveram ligadas a elas, mas
que haviam tido existência jurídica individual.
Fazem parte do acervo arquivos pessoais, como o
do engenheiro mecânico italiano Paolo Zingales
(1920-1955), que participou de projetos das usinas
de Barra Bonita e Funil, entre várias outras, o de
Georges Seylaz (1911-1951), superintendente da
The San Paulo Gas Company, Limited, empresa
que deu origem à Comgás, e o de Raul Almeida
Prado (1896-1945), fotógrafo amador.
A FPHES vem desenvolvendo inúmeros projetos
visando a organização de seu acervo. Para
assegurar a qualidade desse trabalho, foram
feitas pesquisas sobre as empresas do setor
energético paulista, tomando como ponto
de partida as companhias instituidoras. As
pesquisas enfocaram dados sobre a trajetória
administrativa de cada empresa, a formação
dos monopólios, holdings e trustes e as
relações de subordinação administrativa e/ou
comercial entre companhias do mesmo grupo.
Levantaram-se as datas de criação, autorização
de funcionamento de empresas estrangeiras,
incorporação, fusão e de encerramento de
atividades, as alterações de competência e áreas
de concessão, entre outros dados.
Turbinas no Museu da Energia Usina Parque do Corumbataí, em Rio Claro, integrante do acervo da FPHES
Luminárias no Museu da Energia de São Paulo
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S 37
no 25 de abril, o particular é público
com doações de arquivos Pessoais, o centro de documentação da universidade de coimbra construiu o PrinciPal e mais democrático acervo sobre a história recente de Portugal
Cartaz comemorativo da Revolução dos Cravos
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S38
O dia 25 de abril de 1974 é caro aos portugueses. Nessa data, eclodiu a Revolução dos Cravos, o movimento que interrompeu um longo período de regime ditatorial e recolocou Portugal nos trilhos da democracia. Muitos documentos foram produzidos desde então. Boa parte desse material, proveniente de arquivos privados de personalidades políticas e militares, vem sendo coletada, organizada e preservada no Centro de Documentação 25 de Abril, da Universidade de Coimbra. Em mais de duas décadas de existência, o Centro transformou-se no principal repositório das memórias da história portuguesa recente. Para falar de sua experiência na construção e preservação do acervo do Centro 25 de Abril, a Fundação Mario Covas convidou Natércia Coimbra, coordenadora da instituição, para participar do Seminário Acervos de Personalidades.
O trabalho de Natércia Coimbra começou com
o Centro de Documentação, há 24 anos, por
inspiração de Boaventura de Sousa Santos,
responsável pela criação do órgão. Sociólogo e
professor da Universidade de Coimbra, Boaventura
Santos costumava viajar muito, visitando os
centros de estudos portugueses nos Estados
Unidos. Numa dessas visitas, segundo Natércia,
a arquivista da Universidade de Wisconsin-
Madison quis mostrar a ele os documentos
portugueses que comprara recentemente num
leilão em Londres, mas ele se recusou a ver ali
algo que deveria estar em seu país de origem.
Ao retornar a Portugal, Santos propôs a criação
de um centro de memória, com o objetivo
principal de reunir materiais únicos e permitir a
investigação científica séria e profunda sobre a
vida política e social portuguesa do período que
vai de 25 de abril de 1974 à posse do primeiro
governo constitucional, em 1976. “Era um período
muito limitado no tempo e exigia ação rápida,
para proteger a documentação rara ou única e
evitar que ela saísse de Portugal”, disse Natércia
Coimbra à audiência do seminário.
O Centro de Documentação 25 de Abril foi
oficialmente criado em 1984, como entidade
diretamente ligada à reitoria da Universidade
de Coimbra. A universidade, por sua vez, é
uma instituição pública dotada de autonomia
administrativa e financeira, tutelada pelo
Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior
de Portugal. Desde a sua criação, o Centro tem
recuperado material disperso, na posse de
pessoas, organizações sociais, políticas, culturais
e religiosas. De acordo com Natércia, tornou-se
pioneiro em seu país na coleta sistemática de
arquivos e fundos documentais privados, não
previstos na legislação por causa da questão da
propriedade. “Apenas esporadicamente é que
podem entrar no Centro arquivos e papéis oficiais,
que, por lei, ficam sob a guarda do Estado. Até
então, não havia qualquer entidade voltada para
a localização e pesquisa de arquivos privados, de
pessoas que quisessem doá-los ao Estado”, disse
a coordenadora do 25 de Abril.
Um documento puxa outro
No início dos trabalhos, a equipe do Centro era
muito pequena. “Escrevíamos cartas às pessoas
para saber onde estavam os arquivos que nos
interessavam, porque os oficiais, mal ou bem,
sabíamos que estavam preservados por lei”,
relatou Natércia. A Constituição de Portugal
prevê que os arquivos oficiais podem incorporar
documentos privados, mas como sua missão não
é essa, o 25 de Abril tomou a tarefa para si. Ao
coletar os arquivos, a pequena equipe percebeu
que parte da documentação sobre o período
de 1974 a 1976 recuperava muita informação
referente a movimentos sociais e políticos ativos
na oposição política e na resistência organizada
à ditadura. “Na busca que fizemos, deparamo-
nos com muita gente que viveu anos exilada
na França, na Holanda ou no Brasil, que tinha
papéis, jornais, correspondência da época e
não sabia o que fazer com esse material”, disse
Natércia em sua palestra. “A todos, pedimos que
levassem seus documentos ao Centro.”
Os destinatários das cartas eram, principalmente,
militares e políticos de presença forte naqueles
anos importantes, além de ativistas sociais.
Nas cartas, Natércia e equipe propunham: “Se
algum dia você quiser se desfazer de seus papéis
políticos, não os jogue fora, nós os queremos”.
A estratégia funciona até hoje. “Alguns chegam
até nós dizendo que receberam o pedido há dez
anos, que talvez este seja o momento de doar
os papéis.” Em outros casos, os motoristas da
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S 39
Soldados e crianças
em pleno 25 de abril
reitoria iam buscar os documentos, quando
não ia Natércia mesmo, em seu próprio carro,
carregando caixotes e caixotes de papéis.
A busca por determinados documentos
acabou trazendo outros. Se a personalidade
foi importante e atuante no pós-25 de abril,
certamente tinha convicções políticas construídas
muito antes. Poderia ter passado por um período
de exílio ou participado de grupos de resistência.
Seus arquivos, portanto, continham papéis
sobre o que fez antes e depois do 25 de abril,
apresentando conexões com outras temáticas,
como o apoio à luta de libertação colonial em
Angola, Moçambique e Cabo Verde.
O fato de o Centro ser uma instituição pública
universitária, segundo Natércia, estimula
as doações de documentos, embora haja
em Portugal outras instituições privadas
credenciadas, como a Fundação Gulbenkian e a
Fundação Mário Soares. “Imbuídas do espírito do
25 de abril, muitas pessoas preferem doar a uma
instituição pública que possa tratar, organizar,
catalogar e difundir a informação, abrindo o
acervo à consulta gratuitamente”, afirma a
coordenadora. Como o trabalho de construção de
um arquivo é moroso e caro, Natércia considera
correto que os contribuintes paguem pela
conservação das diferentes memórias. Outra
garantia que a instituição pública oferece ao
doador é o pessoal qualificado. Na Universidade
de Coimbra, segundo Natércia, ninguém é
contratado sem ter um curso de especialização. É
necessária uma licenciatura de base e cerca de 60
horas de especialização em Ciências Documentais
e Arquivísticas. Além disso, oferece a garantia
de isenção ideológica ou partidária. “Há sempre
a tentação de controlar. Mas todos os partidos
podem lá deixar os seus arquivos, com a garantia
de que tudo será preservado”, afirmou.
Raramente chegam ao Centro arquivos
organizados. Em geral, são papéis de pessoas
que desempenharam funções na administração
pública, por exemplo, ou em instituições privadas
das quais tenha decorrido a produção de um
conjunto de documentos que faz sentido só no
exercício dessa atividade. Mas, com essa pequena
porção de coisas, vêm quase sempre os livros, as
revistas e a correspondência pessoal. Os pôsteres
e adesivos de campanha, por exemplo, são coisas
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S40
que foram muito importantes para a história
da arte em Portugal, porque vários artistas
plásticos ajudaram a confeccioná-los. “Quando
chega uma coleção, as coisas mais improváveis
a acompanham: documentos pessoais, carteira
de identidade, carteira de sócio de agremiações,
óculos de grau. Por essa razão, já temos cerca
de oito mil livros e fazemos uma seleção. O que
não nos interessa, enviamos para bibliotecas de
outras especialidades”, afirmou.
Internet e história oral
O catálogo da coleção de livros está disponível no
site do 25 de Abril (www1.ci.uc.pt/cd25a/), numa
base de dados pesquisável. São cerca de 17 mil
registros bibliográficos entre artigos de revista
e monografias. O Centro tornou-se também
uma espécie de museu, porque possui objetos
raros, como bandeiras dos países colonizados
por Portugal, fantoches usados em comícios e
o brasão militar de Otelo Saraiva de Carvalho,
estrategista do 25 de abril. Há ainda uma sala
com cerca de 1.500 pastas com recortes de jornais
e revistas, um minucioso trabalho de clipping
realizado de 1976 a 1986 pelo Ministério do
Trabalho e Solidariedade Social e o Conselho da
Revolução. A leitura seletiva feita pelos órgãos
oficiais é, atualmente, uma fonte importante de
informação para os pesquisadores.
O acervo foi crescendo e, com o tempo, ficaram
evidentes partes nebulosas da história. Para
esclarecê-las, o Centro criou, em 1990, o projeto
de história oral, que entrevista personalidades
integrantes da mesma lista montada no início
dos trabalhos da instituição. Em 1994, as novas
tecnologias entraram em ação. “A primeira
decisão que tomamos no 25 de Abril foi de não
ter máquinas de escrever. Começamos com o
computador, com tudo automatizado desde o
início. A única coisa que mantivemos manual
foram as fichas dos nossos doadores, porque era
mais simples para nós”, contou Natércia. Depois,
passou-se à catalogação informatizada da
biblioteca, uma das primeiras de Portugal a ter
acesso online. “Criamos uma página na internet
em 1994, quando o browser disponível ainda era
o Mosaic.” Daí em diante, muita documentação
foi digitalizada, especialmente a partir de 2005,
quando o órgão obteve financiamento do Estado
para esse fim. Embora defenda o uso de novas
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S 41
tecnologias, Natércia recomenda cautela com
a digitalização, para que o documento que se
quer preservar não acabe se perdendo com a
obsolescência da tecnologia adotada.
No arquivo online, há o guia de fundos, área
em são descritas cerca de 300 doações. Basta
um clique para chegar ao inventário do acervo
doado, pesquisável em texto livre. Quase todo
o acervo é liberado para a pesquisa. “Exigimos
credencial apenas para uma documentação que
não pode ser entregue a qualquer um. Quando o
interesse é defensável, quando a pessoa chega,
já encontra as pastas separadas.”
No 25 de Abril, os limites ao acesso são a reserva
da vida privada e o segredo de Estado. Quando
há alguma dúvida sobre as questões da vida
privada, o Centro de Documentação segue a
legislação portuguesa, dado que a maior parte da
correspondência arquivada lá é de teor político.
Se o problema for de caráter pessoal, é feita uma
fotocópia do documento, e a parte preocupante
é riscada. Quando os direitos de privacidade
e acesso à informação estão em conflito, a
ponderação é feita caso a caso. “Se o interesse
público for superior ao da vida privada, nós
damos acesso ao conteúdo”, afirmou Natércia. É
esse o critério que fala mais alto no 25 de Abril.
Revolução com cravos
Passava da meia-noite em lisboa, quando a rádio renascença começou a tocar a canção grândola vila morena, de josé afonso. a música, transmitida nos primeiros minutos de 25 de abril de 1974, era a senha de confirmação do golpe de estado militar que livraria Portugal do regime salazarista, em vigor desde 1926.
o golpe, coordenado e comandado pelo capitão otelo saraiva de carvalho do quartel da Pontinha, na capital portuguesa, teve a colaboração de vários regimentos militares e encontrou quase nenhuma resistência. ao amanhecer, as pessoas começaram a juntar-se
nas ruas, solidárias com os soldados revoltosos. até o meio da tarde, os golpistas haviam ocupado a emissora nacional, a rádio clube Português, o aeroporto de lisboa, o estado maior do exército, o ministério do exército e o banco de Portugal. marcello caetano, então chefe de governo, rendeu-se no final do dia, entregando o poder ao general antónio de spínola.
o movimento ficou conhecido como a revolução dos cravos. reza a lenda que o cravo vermelho tornou-se seu símbolo porque uma florista, que levava cravos para a abertura de um hotel, distribuíra as flores aos soldados. um deles encaixou o cravo no cano da espingarda e logo foi seguido pelos demais.
Às vésperas da revolução, Portugal era o último império colonial do mundo ocidental. fazia seus jovens cumprir serviço militar de quatro anos e mandava-os lutar na áfrica contra os movimentos de libertação de angola, guiné-bissau e moçambique. opiniões contrárias ao regime e à guerra eram reprimidos.
no dia seguinte ao do golpe, formou-se a junta de salvação nacional, responsável pelo governo de transição. entre as medidas imediatas dos militares revolucionários estavam a extinção da polícia política e da censura, a liberação dos sindicatos e a legalização dos partidos. os presos políticos foram libertados, e os líderes políticos no exílio começaram a voltar para casa. em alguns meses a guerra colonial terminou, dando lugar à independência das ex-colônias.
Foto de pintura mural do acervo do Centro 25 de Abril
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S42
Lidar com registros do passado requer constantes questionamentos no presente. Partindo dessa premissa, Natércia Coimbra convidou a audiência do seminário a uma reflexão sobre conceitos e preocupações que permeiam o trabalho de arquivistas, bibliotecários e documentalistas.
O primeiro conceito avaliado foi o de arquivo, mais comumente entendido como um lugar onde se guarda documentos ou materiais diversos relacionados a uma pessoa, um acontecimento ou uma época. Aprofundando a análise, Natércia citou o filósofo francês Michel Foucault, que usou o termo arquivo para designar o sistema de formação de afirmações, um conjunto de regras que determina o que pode ser dito num determinado contexto. Uma outra abordagem identifica o arquivo como um lugar de poder que se manifesta pelo ato de reunir, estruturar e interpretar signos. “De acordo com essas teorias, as normas técnicas estabelecidas estão longe de ter um papel inocente no processo de arquivagem”, ressaltou a coordenadora do Centro 25 de Abril. Embora a atitude de conservação e de reunião seja sempre intelectualmente muito ponderada e muito rigorosa, segundo Natércia, a arquivagem visa fins, bons ou maus, que determinam o conteúdo do próprio arquivo.
“O que se reúne, a seleção que se faz, nunca é inocente, visa objetivos, e nesse momento temos ainda um maior desafio, que não são só os papéis, os materiais iconográficos, suportes de tipologia variada, mas o mundo virtual”, assinalou. As discussões em torno do conceito de arquivo, segundo Natércia, evoluem no final da década de 1990, princípio dos anos 2000, entre dois diferentes pólos. O arquivo é atual ou virtual? Será ele um lugar ou um conjunto de princípios e orientações?
Ou será, simultaneamente, o lugar e o princípio? Constitui-se para documentar determinados acontecimentos históricos ou cria os fatos a partir da própria narrativa dos documentos? Qual a sua ação sobre os documentos que reúne? “Creio que essas questões apontam para respostas que têm a ver com três conceitos: história, memória e democracia”, afirmou Natércia.
O acesso público aos arquivos históricos é uma conquista dos regimes democráticos. Já o conceito de memória remete ao dever de não esquecer, o dever de preservar. “É muito difícil perceber, num determinado momento, o que é história ou não. É fácil para as instituições que querem controlar e manipular a história. Portanto, o dever de não esquecer é extensível a todo o legado histórico”, afirmou a coordenadora do 25 de Abril.
Os arquivistas, segundo Natércia, desempenham um importante papel como mediadores na seleção dos documentos a preservar e da colocação das coleções à disposição dos pesquisadores. Ao identificar e ultrapassar os obstáculos criados por grupos com poder de influência, os arquivistas conseguem manter uma característica do passado mais equilibrada e permitem às gerações futuras examinar e avaliar a atividade e a contribuição das diferentes vozes que se fazem ouvir numa determinada época. “O arquivista deve chamar a atenção para documentos incômodos e preservá-los”, afirmou Natércia. “Até pode evitar que eles sejam vistos, ouvidos ou lidos em determinada
época, mas deve sempre preservá-los.”
existe arquivo inocente?
Criança põe cravo em arma de soldado, em
pôster do acervo do Centro 25 de Abril
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S 43
Procure casar texto com foto quando possível
todo documento é importantePequenos jornais de sindicato Podem ser tão úteis ao Pesquisador quanto um manuscrito estratégico, defende natércia coimbra, do centro de documentação 25 de abril
FMC – eM sua palestra, VoCê disse que a ForMa CoMo se reúne o Material não é inoCente. CoMo o Centro 25 de abril lidou CoM essa questão?
natércia cOimBra – O Centro 25 de Abril está à disposição do investigador e da ciência, e a ciência não pode ser partidária. Desse ponto de vista, tentamos recolher tudo o que vier até nós, documentos repetidos ou não, o mais possível sem censura. Tudo é importante, do menor jornal de bairro a um manuscrito de Otelo Saraiva de Carvalho, estrategista da revolução, da crônica de jornal feita por um jornalista antifascista aos panfletos distribuídos por partidos políticos nas primeiras eleições livres. Não podemos fazer distinção do que é ou não importante para o investigador. Se temos problemas de espaço, evitamos os documentos repetidos. Mas tudo o que diz respeito àquela época, seja a visão de esquerda seja a anarquista, de direita, da política militar ou da civil, para nós é documentação que pode ser útil ao pesquisador e ao historiador. Não podemos descuidar de documento nenhum, suporte nenhum, como vídeo, papel, manuscrito, revistas e jornais. Temos pequenos jornais representativos de lutas sociais muito importantes, como os de sindicatos e sobre a reforma agrária. Esses movimentos sociais em luta produziram publicações que duravam um ou dois números. Ninguém mais tem senão nós. Não é o tipo de material que iria para
a Biblioteca Nacional. Se não fôssemos nós a recolher esse tipo de documentação de acesso mais restrito e efêmero, teria se perdido. E hoje se sabe de muita coisa a partir desses pequenos testemunhos.
FMC – do período anterior, salazarista, taMbéM há doCuMentos?
natércia cOimBra – Infelizmente, em Portugal, sobre o Estado Novo só há o arquivo oficial. Toda a produção burocrática do Estado, o governo guarda nos arquivos nacionais. Nem todos os arquivos pessoais dos políticos do regime autoritário estão guardados. Há alguns dispersos em bibliotecas municipais, porque esse tipo de arquivo muitas vezes ia parar nas terras onde as pessoas tinham nascido. Não há em Portugal a prática do recolhimento sistemático de arquivos privados. Daí que, em relação ao Estado Novo, temos que adotar critérios de escolha. Nós procuramos preservar sobretudo os arquivos dos militantes políticos que foram importantes para a mudança do regime. Quando, por acaso, aparece outro tipo de documentação, nós guardamos. Um exemplo disso são os documentos sobre militares e campanhas na África. Chegaram a nós muitas fotografias da guerra colonial, documentos de propaganda do regime sobre o funcionamento das instituições, discursos de Salazar e de Marcello Caetano e de planos de fomento do governo da época. Mas isso não é para nós a parte mais importante.
O mais importante num arquivo histórico é tentar localizar o documento que falta
e, localizando, é bom ter condições de conservar, porque se não fizermos mais
nada, já fizemos muito. Palavras de Natércia Coimbra, coordenadora do Centro de
Documentação 25 de Abril, da Universidade de Coimbra. No caminho da preservação
da memória, proatividade é a palavra de ordem. “Temos de procurar incessantemente,
pôr anúncios pedindo doações, aproveitar todas as nossas iniciativas para pedir:
traga as suas coisas, tudo tem valor”, disse Natércia em entrevista à Fundação Mario
Covas, após sua palestra no seminário. Veja alguns trechos dessa conversa.
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S44
FMC – o que o Centro Faz para atrair as pessoas para a pesquisa no aCerVo?
natércia cOimBra - O instrumento mais importante, sem dúvida, é nossa página na internet. Temos uma política de difusão seletiva de informação digital que faz com que muita gente que pesquisa encontre o que procura e chegue até nós. O resultado é impressionante. Nós somos o site mais visitado da Universidade de Coimbra, possivelmente porque temos conteúdo, cerca de duzentas mil páginas digitalizadas online. São arquivos iconográficos, texto integral. Embora nossa sala de leitura seja muito pequena, com seis lugares, há sempre gente lá. Mas a nossa maior valia é o apoio à distância através do arquivo e da biblioteca digital. Nós colocamos à disposição informação estruturada e tratada. Quem lá procura artistas plásticos encontra os muros da revolução, as fotografias, os textos, o 25 de abril contado aos mais jovens com uma cronologia. Temos online o Pulsar da Revolução, uma obra ilustrada que editamos em 1997, esgotou e reeditamos, mostrando o 25 de abril hora a hora até 1976.
FMC - as Fotos dos Muros pintados, Cada uM CoM uMa ForMa de representação diFerente do CraVo, ChaMaM MesMo a atenção.
natércia cOimBra - Os artistas plásticos tiveram uma participação importante no movimento. Nós estávamos muito sujeitos à ditadura, à censura, e com o 25 de abril houve uma explosão de informação. Nessa altura, Portugal era um país muito pobre, com muitas fachadas estragadas. Então os artistas utilizaram a pintura mural como forma de comunicação de uma mensagem política. Todos os partidos tinham os “pintores de parede”. É possível encontrar ainda hoje, olhando para os diferentes partidos, a mão e o traço de alguns de nossos grandes artistas.
FMC – o site reCebe quantas Visitas por ano? qual área é a Mais Visitada?
natércia cOimBra – Em 2007, tivemos 6.800.000 visitantes únicos, um número enorme em se tratando de Portugal. Os conteúdos mais visitados são o que nós chamamos de arquivo eletrônico da democracia portuguesa. Há documentos
iconográficos e textos. Os estudantes buscam esses conteúdos para fazer os trabalhinhos da escola. Temos também muitos pesquisadores que utilizam o guia do acervo online.
FMC - e quanto por Cento do aCerVo já está digitalizado?
natércia cOimBra - Temos neste momento 300 doações de grandes espólios, dos quais 240 já estão catalogados. Disponíveis online há cerca de cinco grandes arquivos.
FMC - os pesquisadores que utilizaraM o aCerVo ConseguiraM extrair uM olhar noVo sobre a história? geraraM publiCações releVantes?
natércia cOimBra - No início do projeto, tínhamos sobretudo investigadores estrangeiros, porque em Portugal ninguém queria tratar da história portuguesa recente. Tivemos, por exemplo, a professora Norrie MacQueen, que trabalhou lá e publicou, em 1997, o livro The Decolonization of Portuguese Africa: metropolitan revolution and the dissolution of empire (A Descolonização da África Portuguesa: revolução metropolitana e a dissolução do império), que se tornou uma referência sobre a descolonização portuguesa na África. Uma pesquisadora norte-americana fez no Centro grande parte de sua investigação sobre a história do partido socialista em Portugal. Há duas obras publicadas recentemente sobre práticas
Militar revolucionário e o cravo em cartaz
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S 45
culturais da juventude muito baseadas na nossa documentação sobre os movimentos estudantis em Portugal na década de 1960. Entre os estrangeiros temos um italiano muito engraçado, que está comparando a tradição democrática de Itália, Espanha e Portugal. Todos os anos saem livros publicados tendo como referência a documentação vista no Centro. Agora vai sair uma sobre os exilados políticos em Argel, da doutora Suzana Martins. Ela finaliza também sua tese de doutorado e publicará uma obra sobre a oposição política portuguesa na década de 1960 em Argel.
FMC - do aCerVo inteiro, o que é para VoCê o beM Mais preCioso?
natércia cOimBra – Manuscritos do estrategista Otelo Saraiva de Carvalho, porque foi o plano de operações que permitiu a derrubada do regime. Outro manuscrito importante é o livro de apontamentos da revolução. À medida que os alvos iam sendo conquistados, eram anotados pelos militares que estavam na sede clandestina do movimento, no quartel da Pontinha. Esse livro tem muito valor por ter ficado perdido durante dez anos. Um dia, apareceu-nos um dos militares que atuaram no 25 de abril com os livros nas mãos. Estavam todos manchados, alguns roídos de ratos, mas os recuperamos, digitalizamos, editamos em livro e o conteúdo está disponível na internet. Esses são os principais do ponto de vista do valor exterior.
Agora, o que é muito importante para o estudo da formação política das elites portuguesas é a correspondência privada, entre políticos. Por exemplo, as cartas de Fernando Piteira Santos, que foi jornalista, historiador, militante comunista e exilado político. A correspondência dele com outros intelectuais é fundamental para percebermos como se procedia em Portugal nas décadas de 1930, 1940, 1950 e 1960.
Também temos fotografias que ninguém mais tem. São coleções que estavam nas casas das pessoas e teriam sido perdidas porque as fotos descoram ao longo dos anos. Foi possível recuperar uma coleção de 1.200 murais, hoje disponíveis na internet. Muita gente esquece como Portugal viveu os dois primeiros anos após a revolução. As pessoas estavam nas ruas, queriam participar, viver
depois de muito tempo de ditadura, de ficar cada um em seu casulo. O que é importante nesse período é a explosão de ideias. As pessoas sabiam o que queriam e criaram movimentos, associações de moradores, creches, clínicas para o povo, habitações populares. São hoje grandes nomes, todos muito bem pagos, os arquitetos que fizeram a primeira construção social com qualidade em Portugal, num projeto muito conhecido e que foi logo desmantelado por acreditar-se que era demasiado luxo para os pobres. Nós temos muitos documentos sobre essas assembléias populares, são coisas únicas.
FMC – preserVar a MeMória é tareFa que deManda reCursos, eM geral esCassos. aléM disso, a teCnologia de arMazenaMento de inForMações Muda ao longo do teMpo. CoMo o Centro enFrenta essas questões?
natércia cOimBra - Nós lidamos sempre com
otimismo, porque falta de meios e recursos
humanos há sempre. O mais importante é
tentar localizar o documento e, localizando,
é bom ter condições de conservar, porque se
não fizermos mais nada, já fizemos muito. A
prioridade é encontrar o que anda perdido,
ir atrás de uns e outros, contatar pessoas e
dizer o que é que nos falta ainda. Agora nos
chegam muitas coisas repetidas e sempre
que isso acontece, as encaminhamos para
arquivos nacionais. A primeira questão é
mesmo localizar, procurar incessantemente,
pôr anúncios de vez em quando pedindo
doações, aproveitar todas as nossas
iniciativas para fazer apelo à doação: traga as
suas coisas, nós vamos buscar se não as quiser
trazer, tudo tem valor, não jogue nada fora
sem nos perguntar, porque uma das coisas
que as pessoas mais fazem é jogar fora, não
têm noção do valor do documento.
Como as pessoas consumiram cultura naquela
época, quais espetáculos viam, quais filmes.
Sabemos que correram todos ao cinema
para ver o que antes era proibido. Seria tão
importante ver os ingressos de cinema, por
exemplo. Sempre dizemos para mandar tudo
o que tiver, que é para saber o que foi feito
depois de 25 de abril. Procuramos avançar no
caminho também da divulgação, por meio
da construção de instrumentos de pesquisa,
colocando guias na internet e catalogando.
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S46
NATÉRCiA COimBRA
Maria Natércia Coimbra é licenciada em Direito e pós-graduada em Ciências Documentais pela Universidade de Coimbra,
Portugal. Em 1985 foi convidada pelo sociólogo e professor da Faculdade de Economia de Coimbra, doutor Boaventura
de Sousa Santos, para coordenar a instalação e dirigir os serviços técnicos do recém-criado Centro de Documentação 25
de Abril, organismo ligado à reitoria da Universidade de Coimbra, do qual é diretor. Tratava-se de um projeto pioneiro
e inovador de localização, preservação, tratamento técnico e disponibilização ao público de documentos integrados em
espólios privados de políticos cujo papel tenha sido relevante para a história da revolução de 25 de abril de 1974 e da
transição portuguesa para a democracia.
Desde então, Natércia Coimbra tem trabalhado nesse projeto como adjunta do diretor e responsável pela negociação
e orientação técnica da catalogação de cerca de 300 incorporações de coleções e espólios privados de políticos que o
Centro de Documentação 25 de Abril possui em seu acervo documental.
Integrou durante dez anos o conselho técnico da Porbase – Base Nacional Portuguesa de dados Bibliográficos. Assumiu
diversos cargos na Associação Portuguesa de Bibliotecários Arquivistas e Documentalistas – BAD, tendo sido presidente
do Conselho Regional do Centro entre 1992 e 1996. Desde essa data faz parte da subcomissão nacional de Normalização
e Catalogação. Coordena desde 1995 a página oficial do Centro de Documentação 25 de Abril na internet.
FMC - e a digitalização?
natércia cOimBra - Partimos sempre do princípio de que primeiro temos que organizar. Só depois de tudo organizado é que podemos criar as seções e digitalizar.
FMC – que tipo de Mídia VoCês esColheraM para o arMazenaMento das inForMações?
natércia cOimBra - Vamos conservando e mudando. Tivemos muita fita VHS e passamos para o CD digital. Agora estamos migrando para grandes discos rígidos, onde cabem grandes filmes compactados. Mas é muito caro e não temos pessoal qualificado para isso. Assim, além das doações de documentos, procuramos voluntários para fazer esse trabalho. Temos um especialista na conversão de arquivos digitais, que nos faz esses trabalhos de cópia e passagem para DVD. Apesar do orçamento pequeno, com o trabalho voluntário conseguimos fazer muita coisa. Nós envolvemos a comunidade no nosso trabalho. Procuramos fazer com que as pessoas trabalhem conosco, gostem tanto do Centro quanto nós e o considerem delas.
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S 47
a coc na rota dos cientistasconstruído em grande Parte com arquivos Pessoais, o acervo da casa de oswaldo cruz adota a organização Por funções exercidas Pelas Personalidades
Contar a história da saúde pública
no país e preservar sua memória
passa pelos arquivos pessoais
de personagens eminentes da
área, mesmo que os teóricos da
arquivística clássica torçam o nariz
para esse tipo de documento. A
organização desses acervos, por
sua vez, tende a ser mais eficiente
se a classificação dos arquivos
for feita por conjuntos de funções
exercidas pela personalidade em
questão. Essa é a posição de Paulo
Elian dos Santos, vice-diretor de
informação e patrimônio cultural
da Casa de Oswaldo Cruz (COC),
exposta no Seminário Acervos de
Personalidades, realizado pela
Fundação Mario Covas.
Foto autografada de Oswaldo Cruz
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S48
A Casa de Oswaldo Cruz (COC) é um centro de
pesquisa, documentação e informação dedicado
à memória e à história das ciências biomédicas e
da saúde pública e à educação e divulgação em
ciência e saúde. A COC é responsável pelo arquivo
permanente da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz),
instituição pública vinculada ao Ministério da
Saúde, da qual faz parte.
O acervo da Casa de Oswaldo Cruz possui,
atualmente, 2 quilômetros de documentos de
texto. No arquivo institucional permanente da
Fiocruz há perto de 1,5 quilômetro de documentos
recolhidos. O restante é composto por cerca de
80 arquivos pessoais de cientistas, médicos,
sanitaristas, dirigentes e técnicos com atuação
no campo das ciências biomédicas e da saúde.
A forma como os arquivos pessoais eram
organizados estava em discussão na COC quando
Paulo Elian dos Santos ingressou na Fiocruz,
em 1996, vindo de uma experiência no Arquivo
Nacional. “O modelo tradicional estava esgotado”,
disse o vice-diretor de informação e patrimônio
cultural em sua apresentação no Seminário
Acervos de Personalidades. “Era possível pensar
aqueles arquivos de outra maneira.”
Na busca de uma abordagem inovadora no
tratamento desses acervos, Santos revisitou a
literatura arquivística sobre a classificação de
documentos e a descrição de arquivos pessoais,
um trabalho que deu origem ao seu projeto de
dissertação de mestrado na Universidade de São
Paulo, em História Social, sobre Organização de
Arquivos Pessoais de Cientistas.
Oposição e contraposição
A literatura arquivística clássica, expôs Santos,
trata as diferenças entre arquivos institucionais e
pessoais, estabelecendo uma oposição: enquanto
O Pavilhão Mourisco, prédio central da Fiocruz, no Rio de Janeiro, começou a ser construído em 1904
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S 49
os primeiros representam conjuntos orgânicos,
homogêneos e resultados de uma atividade
administrativa, os arquivos pessoais são produto
da intenção de perpetuar uma determinada
imagem, portanto fruto de uma seleção arbitrária.
São apresentados como agrupamentos artificiais
e antinaturais, desprovidos de objetividade e,
portanto, do sentido próprio dos arquivos. Em
contraposição a essa idéia, Santos encontraria
um bom material brasileiro.
Um texto da professora Ana Maria de Almeida
Camargo, da USP, por exemplo, publicado em 1988,
discutia arranjo e descrição de arquivos pessoais,
com base na experiência obtida com o arquivo
do integralista Plínio Salgado. “Ali começou a
reflexão para trazer os arquivos pessoais para a
arquivística. Ou seja, o documento pessoal não
é não-arquivo, é arquivo também”, afirmou o
vice-diretor da Casa de Oswaldo Cruz.
Três aspectos a observar
Na avaliação de Ana Maria, os arquivos pessoais
oferecem uma variedade de peculiaridades que
obrigam o arquivista a rever seus conceitos. Para
ela, são três os pontos a observar. O primeiro,
a recontextualização dos documentos operada
pelo titular do arquivo ou por seus sucessores.
O segundo, a constituição do universo coberto
pelo arquivo, que envolve, além das ações que
o vinculam às instituições sociais, outras cujas
regras são menos visíveis, como as relações de
amizade, opções intelectuais, obsessões etc.
O terceiro aspecto ressaltado pela professora
Ana Maria de Almeida Camargo é a inexistência
de parâmetros normativos que transformem o
trabalho de classificação e descrição num esforço
em que o levantamento das funções e áreas
de ação, como categorias classificatórias dos
documentos, é também a construção de uma
biografia. “Na base da reflexão da Ana Maria está
a idéia de construir uma biografia, como meio de
pensar como classificar os arquivos pessoais”,
afirmou o vice-diretor da COC.
Outro trabalho considerado importante por Santos
tem como autora Priscila Fraiz, que integrou a
equipe do CPDOC da Fundação Getúlio Vargas,
instituição que criou uma metodologia de como
organizar arquivos privados. É uma dissertação de
mestrado sobre o arquivo de Gustavo Capanema,
ministro dos mais importantes de Getúlio Vargas,
responsável pela estruturação da área de cultura
durante o Estado Novo. Uma parte do arquivo de
Capanema foi construída para contar a biografia
do ministro, mostrar sua obra.
O indivíduo e sua trajetória
Um dado comum nos arquivos pessoais é
a presença de documentos produzidos por
instituições, na maioria das vezes públicas, nas
quais o titular exerceu funções e atividades ao
longo de sua trajetória profissional. Nos arquivos
de políticos e de cientistas isso é muito comum.
Segundo Santos, a professora Ana Maria sugere
tratar, sob o ponto de vista da arquivística,
dos contextos e das relações, os materiais não
arquivísticos, bibliográficos e museológicos,
embora fisicamente tenham um tratamento
específico na biblioteca, reserva técnica ou área
de museologia. “Eles devem ser pensados na
concepção única do acervo e contextualizados
como documentos”, afirmou Santos.
Pensar a organização desses arquivos é pensar a
trajetória do indivíduo da forma mais completa.
Aí valem os contratos, viagens, momentos mais
significativos, eventos que devem ser organizados
de forma cronológica, com o detalhamento que
merecem. “Muitas vezes, nas biografias, algumas
coisas estão encobertas. Olhando o arquivo
pessoal, descobrimos os fatos e eventos da vida
da instituição e do personagem.”
O interesse do vice-diretor da COC sobre o tema
levou-o a mergulhar na literatura da Sociologia
da Ciência, especialmente no livro A Vida de
Laboratório, do filósofo, antropólogo e sociólogo
francês Bruno Latour. Escrito no final dos
anos 1970, o livro é um trabalho antropológico
realizado dentro de um laboratório de pesquisa
em neuroendocrinologia, nos Estados Unidos.
A obra descreve a vida cotidiana de um
laboratório de pesquisa, a cultura dos cientistas
e da instituição a que pertencem. Para Santos,
que trabalha numa instituição que possui mais
de 500 laboratórios, a abordagem de Latour
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S50
caiu como uma luva. “Os arquivos de cientistas
que nós temos, institucionais e pessoais, trazem
essa realidade. Fichas, cadernos de laboratório,
diários de pesquisa de campo, algumas coisas
absolutamente incompreensíveis. Conhecer bem
esse material significava conhecer o que faz um
cientista no laboratório e fora dele”, disse em sua
palestra. Entre as atividades extra-laboratório,
o cientista pode fazer política, buscar recursos,
estabelecer cooperações no país ou no exterior,
ocupar cargos em organismos internacionais, daí
a necessidade de conhecer esse mapa.
Foi também fonte de inspiração para Santos
o trabalho da pesquisadora Helen Samuels no
MIT (Massachusetts Institute of Technology)
sobre organização e avaliação de documentos
de instituições científicas. Ela parte da idéia de
que os cientistas, em geral, desempenham um
conjunto de funções, que seriam uma primeira
aproximação de classificação dos arquivos
pessoais. “Tenho sempre a dimensão da vida
pessoal, da formação e da administração da
carreira. Não entra no acervo apenas aquilo que diz
respeito à formação e à titulação como cientista,
mas tudo o que se refere à administração da
carreira. A carreira é fundamental, é a essência
do trabalho do cientista”, disse Santos.
Pesquisa administrada
Uma outra função, que o diretor da COC chama
de administração da pesquisa, envolve a
questão dos recursos necessários para o cientista
desenvolver a pesquisa, toda a produção de
laboratório e a comunicação do conhecimento,
artigos, participação em congressos, tudo o que
se pode chamar de comunicação da ciência.
Conta também a docência, sobretudo para
aqueles que estão na universidade ou em
institutos que têm programas de pós-graduação.
Aqui entram desde as atividades de orientação
de teses e participação em bancas de seminários
à gestão de instituições e políticas científicas.
Fazem parte do pacote os circuitos em que
esses cientistas atuam, o conjunto de redes
de relacionamento que eles estabelecem em
comitês, grupos de trabalho, missões oficiais,
conselhos editoriais científicos, redes informais,
prestação de serviços, consultorias das mais
diversas, sociedades e associações científicas.
“Tal conjunto de funções serve de base para
pensar como organizar os arquivos, e, a partir
delas, chegamos aos documentos e às séries
documentais”, afirmou Santos.
A nova proposta de organizar os arquivos teve uma
primeira aplicação no arquivo de Frederico Simões
Barbosa, um sanitarista da Fiocruz, que trabalhou
em várias instituições, universidades e outros
centros de pesquisa. “Temos discutido algumas
adaptações na organização dos arquivos. No caso
da investigação científica, trabalhamos com tudo
o que diz respeito às grandes áreas de pesquisa
em que o cientista esteve. Na gestão da pesquisa,
reunimos tudo o que diz respeito à gestão dos
projetos, desde a solicitação de recursos, bolsas,
aprovação, relatórios de aprovação até a infra-
estrutura necessária.” Gestão de instituições,
relações entre funcionários e intergrupos com os
subgrupos de filiação profissional, consultoria e
aconselhamento também estão contemplados.
Atualmente, a COC trabalha em dois arquivos: o
Carlos Chagas em seu laboratório na Fiocruz
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S 51
O Pavilhão da Peste ou Prédio do Relógio abriga a Casa de Oswaldo Cruz e seu acervo
do cientista Carlos Chagas, um dos nomes mais
importantes das ciências biomédicas no Brasil,
da própria Fiocruz, e o do Carlos Chagas Filho, que
também se tornou um cientista.
Entre os documentos pessoais que compõem o
acervo da COC, Santos destacou as cartas escritas
por Oswaldo Cruz a seus pares, como o pesquisador
Rocha Lima, e sua esposa, Emília. “No arquivo de
Oswaldo Cruz, a correspondência é expressiva e
muito significativa”, disse Santos. “Não existe
limite entre o que é correspondência pessoal
e o que não é. Como ele passou muito tempo
em expedições no Norte do Brasil, combatendo
doenças, em boa parte das cartas escritas para
a esposa ele trata de assuntos profissionais.
São dúvidas, questionamentos, o tempo todo
presentes nessa correspondência intensa.”
Do arquivo de Carlos Chagas, um dos destaques é
o diário de campo, escrito pelo pesquisador numa
das expedições que fez à Amazônia, no começo
da década de 1910. A viagem resultou em extensa
documentação fotográfica, relatórios e diários.
2 Km
de documentos de texto compõem
o acervo da Casa de Oswaldo Cruz
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S52
dos Prédios aos documentosA Casa de Oswaldo Cruz foi criada em 1986, na esteira do trabalho do grupo de preservação do patrimônio arquitetônico da Fiocruz. Boa parte do campus da fundação é tombada, por conta dos prédios construídos no começo do século 20, sob a direção de Oswaldo Cruz, e pela arquitetura modernista de alguns pavilhões erguidos nos anos 1950. O grupo responsável pela preservação do patrimônio arquitetônico agregou-se ao projeto da COC e, depois, criou a área de Educação e Divulgação em Ciências, da qual faz parte o projeto Museu da Vida.
Em 1994, a COC criou a revista História, Ciência
e Saúde em Manguinhos, disponível no SciELO
(Scientific Electronic Library Online, www.scielo.
org), bilioteca online de trabalhos científicos
de vários países. A revista abriu possibilidades
de trabalho para pesquisadores da história da
saúde, da ciência e da medicina no Brasil, tanto
do Brasil quanto da América Latina, Europa e
Estados Unidos. Começou com periodicidade
quadrimestral, atualmente é trimestral e possui
uma demanda que supera a publicação, segundo
Paulo Elian dos Santos, vice-diretor.
Aos poucos, a Casa de Oswaldo Cruz foi formando,
nos seus quadros, doutores em História, Sociologia
e Ciência Política. Quase que naturalmente, em
2001, a instituição criou um programa de pós-
graduação em História das Ciências e da Saúde,
com a perspectiva de formar pesquisadores nessa
área. A COC, assim, em pouco tempo titulou cerca
de vinte pesquisadores, que, ao longo de dez
anos, tornaram-se doutores.
A direção da COC é apoiada por três vice-diretorias.
A que cuida de informação e patrimônio cultural,
comandada por Santos, responde por todas
as macropolíticas nas áreas de informação e
documentação, tudo o que diz respeito aos
acervos e aos produtos e serviços realizados pela
instituição, sobretudo na internet.
Três serviços estão ligados a essa vice-diretoria:
gestão da informação, biblioteca e tecnologia
da informação. Há ainda dois departamentos, o
de arquivo e documentação e o Museu da Vida,
com áreas responsáveis pela guarda, tratamento
e acesso a esses acervos. O departamento de
arquivo oferece dois serviços, um de arquivo
histórico e outro de gestão de documentos.
Arquivo permanente
Responsável pelo arquivo permanente da Fiocruz,
à COC cabe a guarda e o tratamento do sistema
de arquivos das 14 unidades da instituição.
Além do centro de pesquisa do Rio de Janeiro,
a fundação conta com cinco outros distribuídos
em Manaus, Curitiba, Recife, Salvador e Belo
Horizonte. O serviço de arquivo histórico cuida
da sala de consulta, dos arquivos pessoais e de
uma área de preservação de documentos. Seu
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S 53
laboratório realiza procedimentos preventivos
de conservação e pequenas restaurações.
“Temos a higienização como tarefa permanente
e constante para a manutenção desses acervos”,
disse Paulo Elian dos Santos. É o caso do Museu da
Vida, que conta com um serviço de museologia,
responsável pelo armazenamento dos objetos,
dos instrumentos e equipamentos médicos e
científicos mais diversos.
No âmbito do departamento de arquivo e
documentação, há o serviço de arquivo histórico,
com a atribuição de reunir, organizar, referenciar
e dar acesso ao acervo arquivístico permanente
da Fiocruz e aos arquivos institucionais e pessoais
sob sua guarda e responsabilidade.
Além de tratar e se responsabilizar pelo acervo
permanente da Fiocruz, esse arquivo histórico
recebe doações de arquivos pessoais, inclusive
de outras instituições, que não têm condições
de abrigar e guardar esses acervos de antigos
diretores sobre dermatologia, pediatria, as mais
diversas áreas da medicina. Nesses casos, a COC faz
convênios de cooperação, para que a instituição
crie as condições de tratar, organizar, preservar
e dar acesso ao acervo. “Em casos excepcionais,
se houver o interesse da instituição, a COC pode
receber o acervo mediante um contrato que
estabeleça cláusulas que garantam a guarda e
a disponibilização. Mas, fundamentalmente,
trabalhamos com arquivos pessoais”, diz Santos.
A COC recebe arquivos de cientistas, médicos,
sanitaristas, dirigentes e técnicos com atuação
no campo das ciências biomédicas e da saúde.
Parte do acervo da COC está tratada, disponível
para pesquisa e é bastante demandada.
“Tentamos lidar com isso da melhor maneira,
porque nós não temos uma área que tenha
sido pensada para abrigar um arquivo”, disse
Santos. A COC funciona num prédio ainda com
muita improvisação, embora tenha havido
investimentos em sistemas de climatização
e arquivos deslizantes. O laboratório de
conservação, por exemplo, é ainda uma solução
de adaptação. “Estamos pensando num projeto
de um prédio construído especificamente para
abrigar o arquivo”, disse Santos.
108 anos de saúde A peste bubônica era um caso tão sério no Brasil,
em 1899, que Cesário Alvim, então prefeito da
cidade do Rio de Janeiro, encarregou o barão
de Pedro Affonso de providenciar os soros para
combatê-la. Mas onde produzi-los rapidamente?
O barão escolheu a Fazenda Manguinhos, às
margens da baía de Guanabara. A área abrigara
o incinerador de lixo da cidade, e os dois prédios
em que moravam os operários dos fornos podiam
ser usados como laboratórios improvisados.
Assim, em 25 de maio de 1900, foi inaugurado ali
o Instituto Soroterápico Federal, que deu origem
à Fundação Oswaldo Cruz.
Oswaldo Cruz era diretor técnico do instituto e,
dois anos depois, assumiu a direção-geral com
grandes planos: produzir remédios e vacinas,
realizar pesquisa científica e atividades ligadas
à saúde pública, seguindo o modelo do Instituto
Pasteur. Em 1903, Rodrigues Alves, então
presidente da República, nomeou o cientista
como diretor-geral de saúde pública do país, com
a missão de combater a febre amarela, a peste
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S54
bubônica e a varíola. Daí em diante, o instituto e
a importância de Oswaldo Cruz só fizeram crescer.
Em 1970, o Instituto Soroterápico Federal e
outros institutos de pesquisa e órgãos da área
de saúde passaram a fazer parte da recém-
criada Fundação Instituto Oswaldo Cruz. Uma
das entidades reagrupadas na época é a Escola
Nacional de Saúde Pública. Fundada em 1954,
a Escola desempenhava um papel importante
na formação de profissionais de saúde pública
no Brasil. Nesse mesmo ano, a ditadura militar
que governava o país recrudesceu. Dez cientistas
ligados à fundação tiveram seus direitos políticos
cassados, foram aposentados compulsoriamente
e impedidos de trabalhar em qualquer instituto
que tivesse ajuda do governo federal.
Memória preservada
Nos anos 1980, sob a gestão do médico sanitarista
paulista Sérgio Arouca, a idéia de preservação da
memória e da história ganha espaço, na esteira
da redemocratização do país. Arouca e um grupo
de sanitaristas da Fiocruz defendiam a criação
de uma área que unisse as ciências sociais e
biológicas, dando uma nova perspectiva à saúde.
A idéia da convivência de biólogos e médicos
sanitaristas com sociólogos, historiadores,
antropólogos, bibliotecários e arquivistas causou
estranhamento, mas o projeto foi em frente.
Em 1986, foi criada a Casa de Oswaldo Cruz,
unidade dedicada à preservação da memória da
instituição e às atividades de pesquisa, ensino,
documentação e divulgação da história da saúde
pública e das ciências biomédicas no Brasil.
Atualmente, a Fiocruz é uma das maiores
instituições não-universitárias do país formadoras
de pesquisadores das áreas de saúde, ciência,
tecnologia e educação. Oferece 15 cursos de pós-
graduação, mestrado e doutorado e possui uma
escola politécnica que forma profissionais para
atuar no Sistema Único de Saúde (SUS).
Desenvolve atividades de pesquisa e
desenvolvimento tecnológico, prestação de
serviços hospitalares, ambulatoriais de referência
em saúde, fabricação de vacinas, medicamentos,
kits de diagnóstico e reagentes, informação e
comunicação em saúde, ciência e tecnologia e
controle de qualidade de produtos e serviços.
Emprega cerca de 7.500 servidores e outros
profissionais em 14 unidades, entre institutos de
pesquisa, escolas, hospitais e fábricas.
Oswaldo Cruz usa
o microscópio em
seu laboratório na
Fiocruz, observado
pelos assistentes
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S 55
Paulo elian dos santos, vice-diretor da casa de oswaldo cruz, fala dos Produtos e serviços que a instituição oferece via web
facilidades Para o Pesquisador
FMC - eM sua palestra, o senhor ChaMou a atenção para a organização dos aCerVos de Cientistas por Funções exerCidas. esse tipo de organização pode ser apliCado a aCerVos de polítiCos? quais seriaM os beneFíCios dessa abordageM?
PaULO ELian – Pode ser aplicado sim a personalidades políticas, uma vez que elas exercem cargos diversos ao longo da vida pública. São várias as vantagens dessa abordagem, que eu resumiria em apenas
uma: a garantia de respeito ao contexto de produção dos documentos que estão relacionados às atividades e funções desempenhadas pelo titular.
FMC - por qual razão a Construção de biograFias seria FaCilitada pela organização do aCerVo por Funções?
PaULO ELian - A organização dos arquivos pessoais não pode prescindir de um exaustivo levantamento biográfico com os eventos que ocorreram na trajetória pessoal e profissional
Saúde pública, vacinas, psicologia. O pesquisador que quiser ir fundo em algum
desses grandes temas e em outros ligados à medicina e à pesquisa científica vai
encontrar farto material de consulta na Casa de Oswaldo Cruz. Para facilitar a vida do
pesquisador, a COC oferece uma série de recursos via internet, como o Guia do Acervo,
fontes de informação bibliográfica e bibliotecas virtuais. Nesta entrevista, Paulo Elian
dos Santos, vice-diretor da COC, fala um pouco desses recursos, entre outros assuntos.
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S56
PAUlO EliAN DOS SANTOS Bacharel e licenciado em História pela Universidade do
Rio de Janeiro (PUC/RJ), Paulo Elian dos Santos é mestre
e doutorando em História Social pela Universidade de
São Paulo (USP). Como tecnologista sênior da Casa de
Oswaldo Cruz, da Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz,
coordena o sistema de gestão de documentos e
arquivos. É membro do Conselho Nacional de Arquivos
(CONARQ), integra o conselho editorial da revista
Arquivo&Administração da Associação dos Arquivistas
Brasileiros (AAB). Acumula experiência em Arquivologia,
com ênfase em organização de arquivos, atuando
principalmente nas seguintes áreas: classificação
e descrição em arquivos permanentes, sistemas de
arquivos, arquivos pessoais e gestão de arquivos de
instituições de ciência, tecnologia e saúde.
do titular. Esse levantamento fornece aos responsáveis pela organização do arquivo elementos para conhecer as grandes áreas de ação/atuação do titular. Posteriormente, por meio dos instrumentos de pesquisa elaborados, os pesquisadores terão acesso ao resultado desse trabalho, que deve procurar respeitar o contexto de produção do material documental encontrado no arquivo.
FMC - todos os arquiVos pessoais sob a guarda da CoC estão disponíVeis para a pesquisa? há alguMa restrição?
PaULO ELian - Nem todos os arquivos estão organizados. As possíveis restrições que existam estarão sempre relacionadas aos limites da legislação arquivística quanto à proteção da intimidade e da vida privada e aos casos em que determinado documento ou conjunto de documentos necessite de cuidados especiais quanto à conservação.
FMC - CoMo a CoC estiMula a deManda por pesquisas?
PaULO ELian - De diversas formas, sobretudo por meio de serviços e produtos que disponibilizamos na internet. Entre eles temos o Guia do Acervo da Casa de Oswaldo Cruz, inventários, catálogos de depoimentos orais, repertórios de fontes e bases de dados. As fontes de informação bibliográfica encontram-se acessíveis nas bases de dados COC e HISA (Base Bibliográfica em História da Saúde Pública na América Latina e Caribe).
Um programa de bibliotecas virtuais vem se desenvolvendo, tendo como primeiros produtos a Biblioteca Virtual Carlos Chagas, a Biblioteca Virtual Oswaldo Cruz, a Biblioteca Virtual Vital Brazil e a Biblioteca Virtual de Museus e Centros de Ciências. Essa linha de atuação se consolida com a elaboração do Dicionário Histórico e Biográfico da Saúde Pública e das Ciências Biomédicas, em sua versão online, e da Biblioteca Virtual em História da Saúde e da Medicina.
Outro produto na internet é o site História dos Saberes PSI e Cultura Brasileira, que disponibiliza artigos, resumos de teses e dissertações, resenhas de livros e outros links, além de funcionar por meio de listas de discussão. Realizamos exposições, como A Revolta da Vacina, sobre a revolta popular ocorrida no Rio de Janeiro em 1904, devido a uma lei federal que obrigava a a população a vacinar-se contra a varíola, e diversas
publicações, entre elas a revista História, Ciências, Saúde - Manguinhos.
FMC - CoMo a Fundação Mario CoVas poderia aproVeitar a experiênCia da Casa de oswaldo Cruz?
PaULO ELian - Por meio da troca de experiências. O instrumento mais adequado para viabilizar possíveis parcerias é o convênio de cooperação técnica.
FMC - quais são as preCiosidades do aCerVo da CoC?
PaULO ELian - É difícil falar de preciosidades. Seria uma arbitrariedade da minha parte.Mas eu poderia destacar o conjunto da correspondência do arquivo Oswaldo Cruz, os livros de registro dos primeiros grupos de funcionários do Instituto Oswaldo Cruz no início do século XX, e alguns conjuntos de fotografias que encontramos, por exemplo, no arquivo pessoal Belisário Penna (médico sanitarista brasileiro participante da Revolução de 1930), e nos arquivos do próprio Instituto, da Fundação Rockefeller, e da Fundação Serviços Especiais de Saúde Pública.
FMC - há ainda alguM doCuMento iMportante Faltando ao aCerVo?
PaULO ELian - Ainda nos falta, no acervo, os conjuntos de documentos que ainda não recolhemos dos institutos da Fiocruz.
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S 57
o centro de memória da unicamP Preserva documentos que recontam a história da região desde a escravatura
cmu, o guardiãoda memória de camPinas
Preencher a lacuna deixada pelo poder público, que pouco valor dava aos
arquivos permanentes. Esse foi o mote para a criação do Centro de Memória
Unicamp (CMU), que preserva a memória não só da universidade, mas de toda
a região de Campinas, no interior paulista. “Nada mais correto do que salvar
da destruição esse patrimônio, e nada melhor para historiadores, demógrafos,
sociólogos e demais pesquisadores do que ter à disposição um acervo de fontes
originais de pesquisa no próprio ambiente universitário”, defendeu Fernando
Abrahão, diretor da área de arquivos históricos do CMU, durante sua palestra
no Seminário Acervos de Personalidades, da Fundação Mario Covas.
Fernando Abrahão, diretor da área de arquivos históricos do Centro de Memória Unicamp (CMU)
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S58
O CMU nasceu da vontade de um grupo de
professores do Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas da Unicamp, liderado por José Roberto
do Amaral Lapa. Desde o final dos anos 1970,
esse grupo acalentava a idéia de levar para
dentro da universidade uma significativa parte
do patrimônio documental preexistente na
região de Campinas. Vários fatores justificavam
essa proposta. A cidade e as áreas vizinhas
assistiram a uma das mais altas concentrações
do trabalho escravo no país e acompanharam
o fluxo expressivo de imigrantes desde meados
do século XIX. Depois, engajaram-se nos setores
de ponta da economia desde o ciclo da cana-
de-açúcar até o café, definindo sua estrutura
fundiária e projetando suas forças políticas, que
contribuíram decisivamente para a mudança
de regime de governo do país em 1889. Para
completar, essa tradição acabou formando uma
cultura, que avançou até a fase industrial que
marca a atualidade.
“As agendas das reuniões daquele grupo de
professores estão repletas de críticas quanto ao
estado de conservação da documentação e de
severas preocupações com o sucesso das futuras
pesquisas”, disse Abrahão. Para fazer frente a
esse problema, o professor Amaral Lapa propôs
um convênio entre a universidade e a Prefeitura,
para que a Unicamp assumisse os arquivos
permanentes do poder Legislativo e do poder
Executivo campineiro.
A proposta de Lapa não encontrou reciprocidade
na administração pública, por ser uma antítese
do princípio arquivístico, que preconiza a
guarda no próprio local de produção. Travou-
se uma batalha entre o professor Amaral Lapa
e os especialistas em arquivologia, que, em
apoio aos profissionais de Campinas, foram à
Unicamp para brecar o convênio. Os arquivistas
convenceram a administração pública a não fazer
a doação, embora a Prefeitura não tivesse todas
as condições para manter o arquivo histórico.
Lapa não desistiu de preservar o patrimônio
documental da cidade. Negociou com o
Tribunal de Justiça de São Paulo e trouxe para a
universidade, sob custódia, o arquivo do Tribunal
de Justiça de Campinas, composto de 50 mil
processos, datados de 1793 até 1940. E foi esse
arquivo que deu início ao Centro de Memória
Unicamp, em julho de 1985. “Os processos cíveis e
criminais são uma fonte riquíssima para qualquer
historiador. Rendem teses de mestrado e
doutorado na universidade até hoje, reafirmando
que um arquivo de porte é uma fonte inesgotável
de produção do conhecimento”, disse Abrahão.
Impostos e feridos de guerra
Na pequena e empoeirada sala do centenário
prédio da Cúria Metropolitana de Campinas
estava guardada, num canto, a documentação
da Coletoria de Rendas, de 1831 a 1890. “Entre os
registros de coleta de impostos, há o que incidia
sobre o comércio de escravos. Também havia
imposto sobre o abate de rezes para a venda
de carne, o tráfego de carroças e seges, aquela
carroça mais chique, a produção e o comércio
de aguardente”, disse Abrahão. Em seguida, foi
incorporado o arquivo do Corpo de Bombeiros
municipal, quando foi extinto.
Outros arquivos foram chegando, como o do
Tribunal de Justiça. “Nós estendemos o convênio
com o Tribunal de Justiça de São Paulo e trouxemos
os documentos de Jundiaí, porque Campinas
fez parte da Comarca de Jundiaí durante um
bom período. Esses documentos estavam num
cartório. Se o cartório precisar deles, vamos
devolver em melhor estado do que recebemos”,
afirmou o diretor do CMU.
Além dos documentos públicos, interessavam
ao CMU os acervos pessoais e os de instituições
de caráter público, mas mantidas pela iniciativa
privada. Por exemplo, o arquivo da Santa
Casa de Misericórdia de Campinas, que possui
documentos desde 1876. “Entre os registros da
Santa Casa estão os das pessoas que se feriram
em batalha na época da Revolução de 1932 e
deram entrada no hospital. A febre amarela, em
1889, em Campinas, está toda documentada. Tem
relatório dos provedores, prestações de contas,
registros do cotidiano médico-hospitalar, é bem
interessante. Só os prontuários médicos ficaram
na própria Santa Casa”, relatou Abrahão.
O acervo do CMU conta também com alguns
documentos de fazendas produtoras de café, de
antigas indústrias e de associações de classe, como
a dos ferroviários, muito fortes em Campinas. A
estrada de ferro Mogiana, que passava pelo Sul
de Minas e ia até Brasília, saía de lá.
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S 59
Cartas e receitas culinárias
Arquivos pessoais não apareciam com freqüência
no Centro de Memória Unicamp, por conta da
desconfiança das pessoas sobre a qualidade
do trabalho, segundo Fernando Abrahão. “Não
vencemos a insegurança da sociedade sem
mostrar o nosso trabalho. Quando você mostra o
que faz, a sociedade reconhece.” Com o tempo, a
resistência foi sendo vencida.
Na fase inicial, dois importantes arquivos
pessoais chegaram ao CMU. Um é o de Nelson
Backer Omegna, ministro do Trabalho nos quase
três meses do governo Nereu Ramos (de 11 de
novembro de 1955 a 31 de janeiro de 1956), que
antecedeu ao de Juscelino Kubitscheck. Nelson
Backer Omegna foi jornalista e professor, antes
de exercer diferentes funções públicas, como
vereador e deputado federal. O outro conjunto
relevante é o de Francisco Glicério de Cerqueira
Leite, um republicano abolicionista (leia texto
na página ao lado). “Não é o arquivo completo
do Glicério, mas são documentos de riqueza
inestimável”, afirmou Abrahão.
Com a confiança que o CMU foi ganhando, outros
arquivos pessoais e familiares agregaram-se ao
acervo: os documentos da família Faber, dona de
uma indústria de fundição de 1880; de Antonio
Ferreira Cezarino Junior, advogado do trabalho;
de Teodoro de Souza Campos Junior, membro de
uma família tradicional da cidade. “Do acervo
das famílias Quirino dos Santos e Simões, nós
resgatamos cadernos de receita antigos, lá
de 1860, e fizemos um livro”, disse Abrahão à
audiência do seminário.
Presente e futuro
Ao assumir o papel de um dos principais
guardiões da memória de Campinas, o Centro
de Memória Unicamp procurou modernizar suas
dependências e aumentá-las. Para isso, obteve
o apoio da própria Unicamp e da Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo -
Fapesp, em 1998 e 2000.
No final dos anos 1990, o CMU contava com a mais
completa biblioteca especializada em história
regional, uma área para guarda e tratamento
dos documentos fotográficos, um laboratório de
história oral e um laboratório de restauração de
documentos, fundamental para a preservação
de papéis com mais de 200 anos, como os que
estão lá. Há uma sala de pesquisa, áreas de
processamento técnico e conservação, e a sala
de acervo, ocupando 80 metros quadrados com
estantes deslizantes.
O acervo está todo descrito num banco de dados
informatizado. A digitalização está em discussão.
“Se eu for digitalizar os 50 mil processos do
Tribunal, cada um com duzentas páginas,
são milhões e milhões. Tenho de escalonar
prioridades, e isso é complicado”, disse Abrahão.
A existência do Centro de Memória Unicamp,
para seu diretor, revela que a universidade
é capaz de atender à demanda da sociedade
por uma nova cultura de preservação de seu
patrimônio documental e de acesso a ele. Mas há
desafios a vencer. “Não podemos captar todos os
documentos. Por isso, estabelecer uma política
de captação é fundamental, por contraditório
que pareça. O nosso espaço físico é limitado e não
é mais possível ampliá-lo. Então, promovemos
cursos, treinamentos e elaboração e execução
de projetos de preservação de acervos junto às
empresas públicas e privadas”, afirmou.
Técnico do CMU trata documento datado de 1900
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S60
francisco glicério contra o rei
O arquivo pessoal de Francisco Glicério de
Cerqueira Leite sob a guarda do Centro de
Memória Unicamp é pequeno e rico. São
pouco menos de mil manuscritos, entre
cartas, ofícios, telegramas e bilhetes
recebidos de vários correligionários
republicanos, entre eles nada menos
que Rui Barbosa, Prudente de Morais,
Campos Salles, Quintino Bocaiúva, Júlio de
Mesquita e Herculano de Freitas.
As cartas de Glicério trazem detalhes
importantes acerca das batalhas políticas
travadas entre os defensores do regime
imperial e os republicanos, e entre os
escravagistas e os defensores da abolição,
a partir do terceiro quarto do século XIX.
Glicério participou, em 1868, da fundação
do partido republicano em Campinas.
Pouco depois, com Quirino dos Santos e
Campos Salles, fundou o jornal A Gazeta
de Campinas. Assinou o manifesto
republicano de 1870 e, em 1873, participou
da Convenção de Itu.
Francisco Glicério foi para São Paulo
estudar Direito na faculdade do Largo São
Francisco, mas, no meio do curso, o pai
morreu, e ele teve de voltar a Campinas
para cuidar da mãe e dos nove irmãos.
Volta, não consegue concluir o curso, mas
trabalha como auxiliar de advogado.
Como rábula - aquele que advoga sem ter
o diploma -, Glicério é reconhecido e cria
uma clientela enorme, que permite a ele
trabalhar no movimento republicano e
nos processos de liberdade de escravos. “O
Glicério era aquele cara que apaziguava os
ânimos e tinha uma atuação importante.
Ele propôs, no caso da morte de um
imperador, que o povo fosse convocado
para opinar sobre um terceiro reinado ou
a República. É claro que não foi adiante
a idéia dele”, disse Fernando Abrahão,
diretor do Centro de Memória Unicamp.
Em 1888, Glicério foi indicado para uma
vaga no Senado pelo Partido Republicano.
Obteve uma votação superior ao dobro
de seu adversário, mas D. Pedro não o
indicou para o cargo, por motivos óbvios.
A República acabou sendo proclamada, em
1889. Glicério foi então ministro interino
dos Negócios da Justiça, ministro dos
Transportes e da Agricultura (1890-1891),
deputado federal e senador da República
Velha (1902-1916).
Francisco Glicério faleceu em 1916 como
senador e está enterrado em Campinas.
A principal avenida do centro da cidade
tem o nome dele, dado 15 dias depois da
proclamação da República. De suas cartas,
200 foram reunidas pelo CMU num livro.
“Reunimos as mais significativas para a
compreensão do movimento republicano
e do abolicionismo. Incluímos índices
temático e onomástico, para facilitar a
busca”, disse Fernando Abrahão.
Carta de Campos Salles a Francisco Glicério datada de 1882
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S 61
Processo de inventário de 1896, uma das peças da Justiça de Campinas preservada pelo CMU
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S62
adolfo gordo e as Primeirasleis da rePública
Francisco Glicério escreve a Adolfo Gordo em 1914
Uma nova leva de arquivos públicos pessoais
de políticos chegou recentemente ao Centro de
Memória Unicamp. Um dos mais interessantes é
o do senador Adolfo Afonso da Silva Gordo, um
republicano contemporâneo de Francisco Glicério
Cerqueira Leite. Adolfo Gordo incorporou ao
sobrenome o apelido do pai, um cidadão robusto,
chamado de gordo pelos fregueses do armazém
que mantinha em Piracicaba.
Bacharel em Direito, foi nomeado governador do
Rio Grande do Norte pelo governo provisório da
República, ficando no cargo apenas três meses.
Como deputado federal e senador, legou seu nome
a duas leis que fizeram história. A primeira, de
1907, dispunha sobre a expulsão de estrangeiros.
A segunda, também conhecida como Lei Adolfo
Gordo, de 1923, foi a primeira lei de imprensa
brasileira, que tentava silenciar. Os adversários e
jornalistas a chamavam de lei infame.
No arquivo do senador há material sobre a lei de
expulsão de estrangeiros e o direito das mulheres
ao voto. “Tem um cartão postal comemorativo
com a professora Júlia Barbosa, a primeira mulher
a ser alistada pela Justiça Eleitoral. Adolfo Gordo
participa com ênfase nessa lei”, diz Fernando
Abrahão, diretor do CMU. O senador atuou
também em causas importantes, combatendo
vendas fraudulentas de imóveis da antiga estrada
de ferro Araraquarense. Gordo morreu atropelado
em 1929. “Morrer atropelado em 1929, imagina-
se que tenha sido um atentado, porque, naquela
época, os carros não deviam andar tão rápido.
Ocorre que estavam atravessando a rua cinco
senadores, e só ele faleceu”, conta Abrahão.
O arquivo de Adolfo Gordo está organizado em
três grupos: a vida pessoal, a profissional e a
política. No primeiro, estão documentos pessoais,
correspondência familiar, recordações de
formatura, guias de viagem, títulos hipotecários.
No segundo, da vida profissional no escritório de
advocacia, estão as publicações sobre legislação
e disposições gerais. No terceiro grupo, estão
os documentos da vida política, como material
das eleições, as nomeações, correspondência,
pedidos de votos que ele mandava, leis e decretos,
eventos, finanças e toda a documentação que ele
gerou para a produção das leis que propunha, as
primeiras da República. “Esse arquivo já foi fonte
de uma tese de doutorado defendida na USP por
Alice Beatriz Lang, descendente de Adolfo Gordo
que passou o arquivo do senador para o Centro
de Memória Unicamp”, afirma Abrahão.
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S 63
grama e izalene, Prefeitos com acervo Preservado
Gaveteiro de peças do Centro de Memória Unicamp
Dois arquivos pessoais de ex-prefeitos de
Campinas ampliaram, recentemente, o acervo do
Centro de Memória Unicamp: o do tucano José
Roberto Magalhães Teixeira, conhecido como
Grama entre os amigos do PSDB, e o da petista
Izalene Tiene, que assumiu o cargo porque
o prefeito eleito, Antonio da Costa Santos,
o Toninho, foi assassinado um dia antes dos
atentados terroristas ocorridos em 11 de setembro
de 2001, nos Estados Unidos.
Grama começou a carreira política militando
nos grêmios estudantis da PUCCamp, onde
estudava Odontologia no final dos anos 1950 e
início dos 1960. Em 1977, elegeu-se vice-prefeito
de Campinas, ocupando também o cargo de
secretário da Cultura. Entre 1978 e 1981, foi
suplente do senador André Franco Montoro,
período em que se tornou amigo do ex-presidente
Fernando Henrique Cardoso. Assumiu a Prefeitura
de Campinas em 1982, no mesmo período em que
Mario Covas foi indicado a prefeito em São Paulo
pelo então governador Franco Montoro.
Em 1990, Grama elegeu-se deputado federal
com o maior número de votos na história de
Campinas. “Na ocasião, idealizou o programa
Bolsa-família, que a gente conhece hoje”, disse
Fernando Abrahão, diretor do CMU. Em 1992, foi
eleito para o segundo mandato como prefeito,
que não chegou a concluir. Como Covas, de quem
era amigo, também morreu vítima de câncer.
Faz parte de seu currículo a coordenação da
campanha presidencial de Fernando Henrique,
em 1994. A parte do arquivo de Grama que
chegou ao CMU é composta pela hemeroteca e
a videoteca de suas campanhas eleitorais e de
suas administrações como prefeito. “Veio tudo
organizadinho, encadernado. O nosso trabalho
foi o de catalogar”, observou Abrahão.
Izalene Tiene assumiu a Prefeitura de Campinas
em meio a grande tristeza no CMU. Toninho,
um dos fundadores do PT, foi também um dos
fundadores do Centro de Memória. Quando
Izalene chegou à Prefeitura, encontrou todos os
documentos dos nove meses da gestão Toninho.
Para começar a administração dela, teve de fazer
a transição. Assim, o arquivo de Izalene está
dividido entre a gestão dela e a do Toninho.
“Pelos documentos da gestão de Izalene Tiene,
ficamos sabendo que as mulheres representavam
64% do funcionalismo público em Campinas, por
exemplo”, diz Abrahão. Esse arquivo ainda está
em fase de organização.
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S64
Consuelo Novais em palestra na FMC
o centro de memória da fundação Pedro calmon Preserva cerca de 34 acervos de homens Públicos do estado
a memÓria da bahia
O arquivo privado do governador baiano Otávio Mangabeira foi a peça fundamental
do Centro de Memória da Bahia, da Fundação Pedro Calmon, que guarda, atualmente,
cerca de 34 acervos de homens públicos do Estado. No total, são 135.515 documentos,
computados por páginas, segundo afirmou sua diretora, Consuelo Novais Sampaio,
durante palestra no Seminário Acervos de Personalidades. Parte dos documentos foi
cedida por deputados durante a execução do projeto Dicionário Histórico Biográfico
da Bahia. Do total recolhido, 43.160 estão digitalizados.
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S66
As atividades do Centro de Memória da Bahia
podem ser resumidas, de acordo com sua diretora,
em duas ações: a preservação e a difusão da
memória histórica do Estado. A preservação
da memória compreende todo o processo de
higienização dos documentos.
“O primeiro processo é o de desinfetação. Os
documentos são colocados num saco plástico, e
o ar é retirado com um aspirador. O saco com o
documento vai ao freezer por 15 dias, para matar
todos os microorganismos. Após esse período, o
freezer é desligado e fica dois dias sem abrir, para
que não haja o choque térmico. Depois disso, o
documento vai para a mesa, onde um técnico,
com a escova, remove os fungos mortos no
congelamento. É uma fase que precede qualquer
tratamento que se queira dar posteriormente aos
documentos”, explicou Consuelo.
No Centro de Memória da Bahia, são os
estagiários que fazem a desinfetação. A
higienização prossegue, numa mesa específica,
com um aspirador que vai sugando todos
os microorganismos. A fase seguinte é de
cadastramento em formulário criado no próprio
Centro de Memória. O cadastramento envolve
a organização dos documentos em ordem
cronológica, a classificação em séries, e a
codificação através de ementas e descritores.
Todos os colaboradores da instituição são
terceirizados. “Um deles é Alvito, bisneto do
Barão de Jeremoabo, que está nos ajudando na
transcrição das cartas do primeiro governador
constitucional da Bahia, José Gonçalves da Silva,
que era muito amigo do Barão de Jeremoabo,
e a letra dele é terrível. Alvito lê e um outro
colaborador transcreve, facilitando a consulta
pelos pesquisadores”, disse a diretora do Centro
de Memória da Bahia à audiência da FMC.
O Centro utiliza três tipos de formulário: um para
documentos textuais, outro para iconografia
e fotos e um terceiro para recortes de jornais.
“Nós adaptamos esses formulários à nossa
necessidade, mas os temos cedido a várias
entidades da Bahia, inclusive para a organização
do Arquivo Privado Mário Mendonça, que é um
homem importantíssimo na evolução da cidade.”
A recuperação desse arquivo é um projeto da
Faculdade de Arquitetura, com apoio do CNPq.
A higienização do acervo iconográfico é realizada
com flanelas especiais. Depois disso, é feita
a triagem e a organização das fotografias por
período. “Nessa fase, principalmente, pedimos a
colaboração de pessoas que conheceram aqueles
personagens. Mesmo assim, não conseguimos
ainda identificar todas as fotos. Tem sido um
processo lento”, disse Consuelo. Finalizado o
processo de preservação, a documentação está
preparada para ser digitalizada, microfilmada
em duas cópias, uma para o Centro de Memória
e outra para a imprensa pública, colocada num
cofre de segurança e cadastrada.
“A elaboração e a publicação do catálogo de cada
acervo tem sido muito lenta, por falta de apoio,
mas a Fundação Pedro Calmon está trabalhando
para integrar esse banco de dados à internet.
Encontra-se instalado um banco de dados no
servidor da própria Fundação. Assim, as imagens
que o pesquisador escolhe para a pesquisa dele
só podem ser recuperadas no nosso Centro de
Memória. Não está ainda ao alcance de todos,
mas chegaremos lá”, afirmou.
Difusão da memória
A atividade de difusão da memória histórica da
Bahia envolve a promoção de cursos, palestras,
exposições e pesquisas que resultem na
produção do conhecimento. O Centro de Memória
realiza anualmente o curso Conversando com a
sua História, que abrange os períodos colonial,
imperial e republicano da Bahia. “Priorizamos
como palestrantes aqueles jovens mestres
e doutores que fizeram suas teses e pouca
oportunidade têm de exibir seu trabalho.” Depois
da apresentação do palestrante, há um debate.
“Na última apresentação do curso, em 2006,
o professor Charles Almeida falou sobre as
filarmônicas baianas. Depois, a filarmônica de
Santo Antônio de Jesus fez uma bela exibição em
frente ao palácio. Raramente temos menos de
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S 67
cem espectadores, todos intervêm. Em 2008, a
apresentação da filarmônica Amantes da Lira, de
Santo Amaro, encerrou o curso”, disse a diretora.
De nove a dez palestras do curso costumam
ser selecionadas, transformadas em artigos
e publicadas na revista História da Bahia, da
Fundação Pedro Calmon. Segundo Consuelo
Novais, a revista teve muito boa aceitação, foi
distribuída por todo o Estado, mas deixou de
circular por falta de recursos.
O projeto Mostra Memória estabeleceu uma maior
identidade do público com o acervo. Realizaram-
se exposições com documentos e objetos de
várias personalidades, entre elas o patrono,
Pedro Calmon, e o governador Otávio Mangabeira.
“Um outro projeto que eu gostaria que fosse
levado à cabo é o Dicionário Biográfico Histórico
da Bahia, que vai desde a proclamação da
República até 2006, abrangendo um total de
1.510 homens públicos”, disse Consuelo. Foram
feitos 415 verbetes com recursos do Fundo de
Cultura do Estado da Bahia. Outros cem foram
possíveis com recursos da FAPESB, que deixou
de colaborar em 2008. “As ações da secretaria
de Cultura, sob a qual fica a Fundação Pedro
Calmon, estão sendo carreadas para a construção
de outro modelo, mais voltado para as artes e
ações populares.” Até a realização do seminário,
o Centro de Memória da Bahia construíra 520
verbetes biográficos e 20 verbetes temáticos, que
se encontram disponíveis para o pesquisador em
cópias digitalizadas em volumes de DVD.
A publicação das cartas que Otávio Mangabeira
escreveu e recebeu em dois exílios – de 1930 a
1934 e de 1937 a 1945 – é um outro projeto em
pauta. “É emocionante ler as cartas dele. A
correspondência espontânea revela muito do que
a documentação oficial esconde. Conseguimos
a aprovação de uma parte do projeto, para
trabalhar as cartas do primeiro exílio.”
Aula do curso Conversando com a sua História, promovido anualmente pelo Centro de Memória da Bahia
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S68
Muitos desafios
Para Consuelo Novais, os desafios de gerir um
acervo público são muitos, principalmente
quando há uma mudança de governo, que tem
um poder maior do que o da instituição e outras
prioridades. Um dos grandes desafios, em sua
opinião, é fazer com que a memória histórica
seja entendida pelos gestores das instituições
mantenedoras como fenômeno coletivo social, e
não algo que seja relativo apenas às elites. “O
objetivo maior desses acervos em que nós estamos
trabalhando é a produção do conhecimento, é
impulsionar o homem para a frente.”
“Pessoalmente, gosto muito de uma citação de
Jung (Carl Gustav, psiquiatra suíço): ‘o homem
que cresce sem conhecimento histórico é como se
tivesse nascido sem olhos nem ouvidos e tentasse
perceber o mundo exterior com exatidão’. Assim,
o que fazemos com os acervos é constituir
Reunião de toda a equipe de pesquisadores e colaboradores do Centro de Memória da Bahia
uma visão de mundo.” A diretora do Centro de
Memória da Bahia considera que os arquivos
privados têm a vantagem de conter escritos no
calor do acontecimento e, por isso, estão menos
sujeitos à preocupação do personagem com a
imagem que dele se faz ou faria.
Lembrou ainda que a instituição foi criada
para estancar a sangria de valiosas fontes
documentais baianas, recuperar acervos perdidos
e disponibilizar para a pesquisa o material sob sua
guarda. “Mais de 14 ou 15 arquivos importantes da
Bahia estão no CPDOC, da Fundação Getúlio Vargas,
inclusive o de Juracy Magalhães (governador em
três mandatos), por não confiar no tratamento
que receberia na Bahia”, lamentou.
“Somente preservando a memória poderemos
contribuir para o progresso do conhecimento e
para a afirmação da identidade da sociedade
baiana, assegurando-lhe o desenvolvimento que
tanto tem buscado”, finalizou Consuelo Novais.
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S 69
uma história de Persistência
A história do Centro de Memória da Bahia,
da Fundação Pedro Calmon, é praticamente
indissociável da trajetória acadêmica de sua
diretora, Consuelo Novais Sampaio. A dificuldade
de obter dados para a sua tese de mestrado,
em 1973, sobre o Poder Legislativo - Partidos
Políticos da Bahia, levou a baiana de Jequié aos
professores Kátia Matoso, Johannes Ioguel e João
José Reis. Os quatro, juntos, decidiram criar um
centro de memória para reunir as informações
perdidas, disse a diretora, em sua palestra no
Seminário Acervos de Personalidades.
“Na condição de coordenadora, fui ao Rio de
Janeiro buscar recursos na Ford Foundation, então
administrada pelo professor Richard Morse. Ao
analisar o nosso projeto, Morse recomendou que
eu fosse à Fundação Getúlio Vargas ver o projeto
da Celina do Amaral Peixoto, que era semelhante.
Fui ao CPDOC, conversei com a Celina, combinamos
de trocar idéias e voltei à Bahia”, disse Consuelo.
Como ainda não era reconhecida pela sociedade
acadêmica baiana, os professores bloquearam o
projeto. Morse, então, recomendou que ela se
candidatasse ao doutorado. E foi o que fez.
O tema escolhido para a tese, defendida na The
Johns Hopkins University, nos Estados Unidos,
foi Crise no Sistema Oligárquico Brasileiro. “Eu
objetivava uma comparação da biografia coletiva
do Legislativo de antes e depois de 1930, e vim à
Bahia coletar dados. Reuni pesquisadores, mas a
dificuldade continuou a mesma. Para identificar
as datas de nascimento e morte de um deputado,
em Belmonte, tivemos de ir ao cemitério ver a
lápide, porque o filho dele não sabia”, disse
Consuelo. Resultado: não saiu a biografia, a tese
não ficou com a comparação que ela queria fazer.
A frustração foi ainda maior porque um colega
de departamento na universidade americana
tinha uma proposta de dissertação semelhante,
também de comparação de biografias coletivas,
do Estado de New Jersey. “Para fazer a biografia,
ele teve apenas de ir à biblioteca da própria
universidade e tirar os livros com todos os dados.
E o Legislativo de estudo dele era de 1783, século
XVIII. O meu era de pleno século XX, e não tinha
nada. Ele conseguira dados biográficos dos
deputados, o que eles fizeram”, contou Consuelo.
De volta à Bahia, iniciou uma pesquisa que
estudava o período entre o golpe de Getúlio
Vargas, de 1937, e o militar, de 1964. Mais uma vez,
deparou-se com a dificuldade em colher dados
de deputados. “Comecei a fazer entrevistas com
os remanescentes e seus descendentes. Numa
delas, com o já falecido senador Josafá Marinho,
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S70
falei das minhas tentativas de criar um centro
de memória da Bahia e ele resolveu dar forma
jurídica a ele.” Assim, criou-se a Fundação Pedro
Calmon, com a colaboração de Jorge Calmon,
irmão de Pedro Calmon, que foi deputado e
romancista. Era 1986, ano de eleição, e todos os
cargos foram distribuídos a políticos.
Consuelo assumiu a direção em 2003, depois que
a Fundação Pedro Calmon incorporou os arquivos
estaduais, municipais e também a biblioteca e
passou a denominar-se Fundação Pedro Calmon,
Centro de Memória e Arquivo Público da Bahia.
Assim, passou a funcionar efetivamente como
repositório da memória política do Estado,
guardando arquivos privados de políticos e ex-g
CONSUElO NOVAiS SAmPAiO A História é o cerne da vida acadêmica de Consuelo
Novais Sampaio. Graduou-se e licenciou-se em
História pela Universidade do Brasil (1958), é mestre
pela Universidade Federal da Bahia (1973) e pela
The Johns Hopkins University (1977). Doutorou-
se pela The Johns Hopkins University (1979) e fez
pós-doutorado na University of California Los
Angeles (1986). Atualmente, é diretora do Centro
de Memória da Bahia da Fundação Pedro Calmon.
Sua experiência na área de História tem ênfase em
História Latino-Americana, com destaque para
economia regional, oligarquias, regionalismo,
poder político e história da Bahia.
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S 71
o Palácio rio branco
O Centro de Memória da Fundação Pedro Calmon
foi instalado no Palácio Rio Branco, antiga sede
do governo do Estado da Bahia e um dos mais
velhos do Brasil. Localiza-se em Salvador, na
Praça Tomé de Sousa, onde também estão os
prédios da Prefeitura da cidade e da Câmara
Municipal e o Elevador Lacerda.
O palácio começou a ser construído pelo
primeiro governador-geral do Brasil, Tomé de
Sousa, em meados do século XVI, para servir
como o centro da administração portuguesa.
No início, era feito de taipa de pilão, recebendo
posteriormente pequenas ampliações.
A sede da Academia Brasílica dos Esquecidos,
a primeira Academia de Letras fundada no
Brasil, em 23 de abril 1724, abrigou-se em um
de seus salões. Fora formada com o propósito
de reunir informações sobre a Nova Lusitânia,
que seriam enviadas para a Corte e anexadas à
História de Portugal, que estava sendo redigida
pela Academia Real de História Portuguesa.
Funcionou como quartel e prisão e abrigou Dom
Pedro II, quando esteve na Bahia, em 1859.
No final do século XIX, o Palácio Rio Branco
ainda ostentava a velha fachada colonial
portuguesa, símbolo de decadência na
nascente República Federativa do Brasil. O
prédio recebeu, então, uma reforma radical,
finalizada em 1900, na gestão do governador
Luís Viana. Reformado, passou a exibir um
imponente estilo neoclássico. Internamente,
agregou uma sofisticada escadaria de ferro
inglês com vidro francês.
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S72
Em 10 de janeiro de 1912, o palácio foi um dos
pontos atingidos pelo bombardeio ordenado
pelo presidente da República, Hermes da
Fonseca, em Salvador. O ataque destruiu o
acervo de livros raros, que ficava na parte
térrea. Começou a ser reconstruído no mesmo
ano e foi reinaugurado pelo governador Antônio
Ferrão Moniz de Aragão, em 1919.
O palácio reconstruído recebeu o nome de Rio
Branco, em homenagem ao Barão do Rio Branco.
Mais recentemente, em 1984, o prédio passou por
uma restauração completa, devido ao péssimo
estado de conservação em que se encontrava.
Em 2009, a pedido do governo Jaques Wagner,
o prédio histórico deixará de abrigar o Centro
de Memória da Bahia. Seu novo endereço será a
Biblioteca Central, na avenida Sete.
Sede da administração portuguesa nos
tempos do Império, o Palácio Rio Branco
abrigou o Centro de Memória da Bahia
Pedro calmon, filho deamargosaPedro Calmon Moniz de Bittencourt, patrono
do Centro de Memória da Bahia, nasceu em
Amargosa, interior baiano, em 23 de dezembro
de 1902, filho de Pedro Calmon Freire Bittencourt
e Maria Romana Moniz de Aragão Calmon de
Bittencourt. Foi professor, político, historiador,
biógrafo, ensaísta e grande orador.
Em 1920, Pedro Calmon ingressou na
Faculdade de Direito da Bahia. Dois anos
depois, transferiu-se para o Rio de Janeiro,
para secretariar a Comissão Promotora dos
Congressos do Centenário da Independência,
continuando seus estudos na Universidade do
Rio de Janeiro, atual Faculdade Nacional de
Direito da UFRJ, diplomando-se em 1924.
Foi secretário particular do ministro da
Agricultura no governo Artur Bernardes,
habilitando-se, em 1925, no concurso de
provas para conservador do Museu Histórico
Nacional. No Museu, realizou ampla reforma
administrativa e criou a cadeira de História da
Civilização Brasileira, para a qual escreveu um
livro com o mesmo título.
Em 1927, ingressou na política como deputado
estadual pela Bahia. Em 1935, foi eleito
deputado federal e, de 1950 a 1951, assumiu o
comando do Ministério da Educação e Saúde,
no governo do presidente Eurico Gaspar Dutra.
Seu primeiro trabalho jurídico data de 1926
– Direito de Propriedade –, inicialmente
destinado à tese de doutorado. Em 1935,
publicou o primeiro volume da História Social
do Brasil, uma das obras que o habilitaram
a candidatar-se à Academia Brasileira de
Letras. Elegeu-se em 16 de abril de 1936 para
a Cadeira nº 16, cujo patrono é Gregório de
Matos, da qual foi o terceiro ocupante. Ocupou
a presidência da Casa, em 1945. Foi orador
oficial do Instituto dos Advogados do Brasil, em
dois períodos; delegado do Brasil à conferência
Interamericana do México, em 1945. Morreu no
Rio de Janeiro, em 16 de junho de 1985.
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S 73
a natureza desPrendida do escritor gaúcho é uma das Pedrasno caminho da organização de seu arquivo
O escritor
Erico Verissimo
na juventude
erico verissimo reúne o acervo
Mafalda Verissimo olhava todo santo dia para a papelada deixada pelo marido, o escritor
gaúcho Erico Verissimo, e não se animava e mexer. Doía lembrar dele ali, no escritório de casa,
em plena atividade. Doía lembrar de sua partida deste mundo. Em 1982, sete anos após a
morte de Erico, Mafalda tomou coragem e convidou Maria da Glória Bordini, então professora
de Teoria da Literatura na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), para
organizar tudo. Começou assim a se formar o acervo literário do autor de O Tempo e o Vento,
como contou a professora à audiência do Seminário Acervos de Personalidades.
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S 75
O convite de Mafalda devia-se ao fato de Maria
da Glória Bordini ter sido secretária editorial da
Editora Globo e trabalhado com Erico Verissimo
no período de 1969 a 1975, últimos anos da vida
do escritor. “Tínhamos uma relação profissional
muito boa”, afirmou Maria da Glória. O emprego
na editora fora o próprio Erico quem conseguira
para ela, ao ser expurgada da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, em 1969, por conta
de arbitrariedades do regime militar.
Maria da Glória começou a montagem do acervo
com o básico: seleção do material e organização
por tópicos ou por espécies. “Era muita coisa,
estava tudo revirado, não havia uma ordem
deixada pelo escritor porque muitos anos haviam
se passado.” Na época, a coordenadora não
sabia coisa alguma de arquivologia, mas tinha
experiência editorial e era formada em Letras.
Como não conhecia arquivologia, tratou de
aprender. Visitou o Museu Nacional, no Rio
de Janeiro, a Biblioteca Nacional, observou
como é que as coisas se organizavam e criou
uma ficha de catalogação básica para poder
trabalhar com o material. Tais fichas permitiram,
O escritor gaúcho Erico Verissimo e sua biblioteca particular, em Porto Alegre
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S76
dois anos depois, que ela apresentasse, como
professora convidada da PUC-RS, um projeto de
organização do acervo ao Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Esse projeto e um outro, sobre Guimarães Rosa,
foram aprovados em 1984. “Foram pioneiros,
porque o CNPq não trabalhava com esse tipo de
pesquisa científica”, disse Maria da Glória.
O acervo continuou sediado na casa de Erico
Verissimo, mas foi crescendo com o trabalho de
coleta, organização e catalogação. “Muita coisa
chega até hoje. Um acervo é uma coisa viva,
que nunca termina e nunca está totalmente
organizado, é um trabalho sem fim.” Os sistemas
de recuperação da informação foram sendo
aperfeiçoados aos poucos, com o tempo.
Quando o acervo literário de Erico Verissimo passou
a ser muito procurado pelos pesquisadores,
ficou inviável sua permanência na residência
da família. Foi então transferido para a PUC,
onde Maria da Glória era ainda professora e
colaboradora. Quando ela se aposentou na
UFRGS, ficou um período na PUC como professora
titular de Teoria da Literatura, e o acervo foi junto
com ela. Na universidade, organizaram-se, nos
mesmos moldes do material de Erico Verissimo
outros acervos de escritores gaúchos, como
Dionélio Machado, Mário Quintana e Dalila Ripol.
A informatização do catálogo do acervo foi
realizada com um software desenvolvido
especialmente para o acervo do Erico. Em 2007,
quando fechou o centro de memória da PUC-RS, o
acervo de Erico foi para a casa do filho, o também
escritor Luís Fernando Veríssimo.
A estrutura do acervo
O acervo de Erico Verissimo é constituído de
dezesseis séries ou classes de documentos.
A classe um reúne os originais, englobando
material que não foi publicado ou a última versão
de manuscritos ou prototextos.
Na classe dois, enquadra-se a correspondência
ativa e passiva, do escritor e de outras pessoas
para ele. Já a série três reúne publicações na
imprensa, desde os recortes que o escritor
guardava até entrevistas, qualquer material
que saiu na mídia impressa, seja notícia de
lançamento de livro seja resenha. Há a classe
Esboços e Notas, que contém todos os prototextos
que o Erico deixou de algumas obras.
“O Erico não guardava muito material. Muita coisa
ele pôs fora. Muitos originais ele encadernou e
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S 77
deu de presente. Vamos descobrindo isso aos
poucos, quando morre quem ganhou a obra de
presente, e os filhos ou colocam à disposição
ou leiloam por altos preços. Não temos todos os
originais por esse motivo, eles vão aparecendo
aos poucos. Compramos dois, mas custaram caro.
Somos contra aquisições e, portanto, sempre
pedimos doações”, disse Maria da Glória. A
categoria Esboços e Notas inclui desde fichários
até esboços em folhas datilografadas, com
emendas em vários estágios de realização.
Erico Verissimo tinha uma vocação frustrada para
desenhista. Por isso, há uma classe Ilustrações,
no acervo. “Ele desenhava muito, às vezes em
folhas brancas, nas margens dos originais, dos
esboços. Há muitas caricaturas e caligramas.” A
classe seis comporta os documentos audiovisuais,
como fotografias, fitas cassete, discos e vídeos.
“A discoteca dele era basicamente clássica. Temos
vídeos de programas em que ele apareceu.”
Na classe Memorabília, que honra a memória
do escritor, estão honrarias, como diplomas,
medalhas, troféus, prêmios e também souvenirs
de viagem, presentes recebidos, homenagens
públicas de governantes, parlamentares e
homenagens particulares. “Tem muita gente que
manda para os autores uma obra ou carta ou
desenho. Incluímos nessa classe os monumentos,
ruas e edifícios que têm o nome de personagens
do Erico. Como há muitos, apenas fotografamos.”
Os comprovantes de edição foram reunidos na
classe oito do acervo, que não possui todas as
primeiras edições das obras de Erico. “Ele não
guardava mesmo, dava os livros de presente.
Mas nós temos muitos comprovantes de várias
edições das muitas editoras que publicaram a
obra dele e também os comprovantes das edições
estrangeiras, desde o Japão até a Finlândia.”
Uma outra classe, muito procurada pelos
pesquisadores de literatura brasileira, traz
os comprovantes de crítica acadêmica em
livros, revistas, periódicos científicos e jornais,
principalmente nos suplementos literários.
A adaptação da obra do escritor para outras
linguagens tem uma série própria. Lá estão
“cartazes ou fotos de uma peça de teatro ou de
um filme, a letra do samba enredo da Escola de
Samba X, programa de balé, tem de tudo”. Outra
classe é a pinacoteca, com os quadros que Érico
comprou ou recebeu de presente, incluindo
outros objetos de arte. Em história editorial
estão os contratos, como prestação de contas
para ver a circulação da obra em determinados
períodos. “Tentamos manter isso atualizado, mas
é difícil porque as editoras não costumam nos
enviar. A série inclui elementos voltados para a
produção de livros, como o esboço de uma capa,
um desenho que ele mesmo faz para dizer para o
capista como é que ele gostaria que fosse a capa
do livro X, que às vezes não é aproveitada.”
Uma classe problemática é a Biblioteca. “A
biblioteca sempre esteve na casa dele, e a família
usa, empresta, somem os livros.” Como a biblioteca
do pai se misturou com a do filho, que é enorme,
decidiu-se que os livros até 1975 eram do Erico.
Na classe Vida, ficaram as coisas não literárias,
documentos pessoais, objetos como óculos,
canetas, máquina de escrever, comprovantes de
atividades profissionais não ligadas à literatura.
“Ele foi diretor do departamento de assuntos
culturais da Organização dos Estados Americanos
(OEA). A parte diplomática está preservada,
um material que conseguimos há muito pouco
tempo, uns dois anos.”
Uma das classes do acervo literário tem um
catálogo para descrever as obras. Com o tempo, a
ideia de Maria da Glória é linkar os comprovantes
de edição para saber quantas edições cada
obra teve e fazer cruzamentos com outros itens
do catálogo. A última é a classe História do
Acervo, destinada a guardar a memória de quem
trabalhou nele e dos eventos e publicações que
foram realizados sobre o arquivo.
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S78
em busca de um esPaço
As várias mudanças de lugar dificultaram o
trabalho de organização do acervo de Erico
Verissimo, iniciado em 1982. Primeiro, o material
foi da casa do escritor para a PUC-RS, numa
instalação provisória. Depois de algum tempo,
houve uma reforma no prédio da universidade,
que criou um espaço específico para o centro de
memória. “As coisas melhoraram, mas nós nunca
tivemos, por exemplo, um laboratório para fazer
a conservação adequada do material”, disse
Maria da Glória Bordini, coordenadora do acervo.
As tentativas de obter a sede definitiva foram
muitas. “Procuramos conseguir recursos com a
Petrobrás, para reformar um prédio e instalar ali
o acervo. Fizemos todo o trâmite, mas não deu
certo, porque mudou o presidente da empresa
na hora em que nós estávamos terminando.”
Mais adiante, tentou-se obter um prédio com
a Associação Rio-grandense de Imprensa, mas
também não deu resultado.
Mais algum tempo, e surgiu a oportunidade de
fazer o Centro Cultural CEEE Erico Verissimo. O
prédio, na região central de Porto Alegre, foi
construído entre os anos de 1926 e 1928 pelo
engenheiro Adolfo Stern, ocupando 2.775 metros
quadrados. Em estilo eclético, mas com influência
francesa do início do século XX, foi tombado em
1994 pelo Instituto de Patrimônio Histórico e
Artístico do Estado do Rio Grande do Sul.
A reforma do edifício, também conhecido por
Força e Luz, por abrigar as concessionárias de
energia gaúchas, foi patrocinada pela Companhia
Estadual de Energia Elétrica - CEEE, por meio da
Lei de Incentivo à Cultura, custou 4,4 milhões de
reais e durou dois anos. “O prédio tem laboratório,
auditório, projeção digital, copiadoras potentes
para fazer a reprodução, arquivos deslizantes,
mas nós nunca usamos”, disse Maria da Glória.
Discordâncias entre o Estado e os Verissimo sobre
a gestão do Centro teriam influído na decisão.
No prédio do Centro Cultural funcionam salas
de exposições, teatro, biblioteca, o Museu da
Eletridade do RS, além de um espaço permanente
de exposição de acervo de Erico Verissimo,
atualmente composto de primeiras edições de
livros do escritor, 26 fotografias da década de
70 e manuscritos, segundo Sabrina Lindemann,
coordenadora cultural do Centro.
Quando Maria da Glória saiu da PUC-RS, o acervo
voltou para a casa de Luís Fernando Verissimo.
Está numa situação mais precária, mas com a
promessa de uma nova sede, desta vez definitiva.
Fachada do Centro Cultural CEEE Erico
Verissimo, em Porto Alegre
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S 79
O retrato do escritor gaúcho, de 1956, faz parte do Acervo Literário Erico Verissimo
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S80
dinheiro curto, inconveniências Políticas, cargo diPlomático e mais de uma dezena de obras comPõem a trajetória deerico verissimo
da farmácia À glória literária
Seus contos e desenhos foram publicados pela
primeira vez nos jornais Correio do Povo e Diário
de Notícias, de Porto Alegre. Em 1930, mudou-
se para a capital gaúcha e passou a conviver
com escritores renomados. No final do ano, foi
contratado para ocupar o cargo de secretário de
redação da Revista do Globo e, no dia 15 de julho
de 1931, casou-se com Mafalda.
Erico Verissimo começa a publicar suas obras.
Fantoches, livro de contos, vai para as prateleiras
das livrarias em 1932. Um ano depois, é a vez do
romance Clarissa. Em 1935, ano do nascimento
de sua primeira filha, Clarissa, lança Caminhos
Cruzados. No mesmo ano, com o livro Música ao
Longe, obtém o primeiro lugar no Grande Prêmio
de Romance Machado de Assis, da Companhia
Editora Nacional para obras inéditas, e publica a
biografia A Vida de Joana D’Arc.
No ano de 1936, nascem o filho Luis Fernando,
seu primeiro livro infantil, As Aventuras do Avião
Vermelho, e Um Lugar ao Sol, um retrato dos
O escritor brasileiro Erico Verissimo nasceu em Cruz Alta, interior do Rio Grande do Sul,
em 17 de dezembro de 1905, filho do farmacêutico Sebastião Verissimo e da dona-de-
casa Abegahy Lopes Verissimo, ambos de tradicionais famílias gaúchas. O pai queria
que fosse estudar na Universidade de Edimburgo, na Escócia, mas ao completar 18
anos, a difícil situação financeira da família não permitiu.
Erico foi então estudar em Porto Alegre e, de volta a Cruz Alta, trabalhou num armazém
e, depois, num banco. Fez um pé de meia e aplicou o dinheiro na sociedade de uma
farmácia. Os negócios com remédios não iam nada bem, mas serviram para conhecer
Mafalda Halfen Volpi, com quem se casaria. Montou nos fundos da farmácia uma
escola de inglês, que se tornou ponto de encontro de pensadores, dando a Erico a
chance de ter contato com o que gostava: literatura e arte.
tempos de Cruz Alta. No ano seguinte, lança o
livro infantil Aventuras de Tibicuera.
O romance Olhai os Lírios do Campo, um de seus
maiores sucessos, é publicado em 1938. Conquista
sua primeira noite de autógrafos com Saga, um
ano depois. Em 1941, Erico passa três meses nos
Estados Unidos, a convite do Departamento de
Estado, e faz conferências em várias cidades.
Publica Gato Preto em Campo de Neve e, no ano
seguinte, O Resto é Silêncio. A discordância com
a ditadura Vargas faz o escritor aceitar o convite
para lecionar Literatura Brasileira na Universidade
da Califórnia, nos Estados Unidos, e muda-se
com toda a família para Berkeley.
Seus romances Caminhos Cruzados, O Resto é
Silêncio e Olhai os Lírios do Campo são editados
nos Estados Unidos. Mais tarde suas obras
seriam traduzidas para os idiomas francês,
alemão, espanhol, finlandês, holandês, húngaro,
indonésio, italiano, japonês, norueguês, polonês,
romeno, russo, sueco e tcheco, o que fez de Erico
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S 81
Verissimo um dos escritores brasileiros mais lidos
no mundo todo. No retorno ao Brasil, lança A
Volta do Gato Preto, um livro de observações
sobre a vida em terras americanas.
O Tempo e o Vento, a obra que tanto sonhara,
começa a ser escrita em 1947 e se transforma na
trilogia apontada pela crítica como seu maior
sucesso. Em 1953, a família Verissimo volta aos
Estados Unidos e Erico assume, em Washington,
a direção do Departamento de Assuntos
Culturais da União Panamericana, na Secretaria
da Organização dos Estados Americanos. Com a
mulher Mafalda e o filho Luis Fernando, viaja, em
1959, para a Europa. Faz palestras em Portugal,
defendendo a democracia, e entra em choque
com a ditadura salazarista. Publica O Ataque. Em
1961, quando escrevia a última parte da trilogia O
Tempo e o Vento, sofre um infarto.
Durante o período de recuperação, de quase um
ano, faz as correções de O Arquipélago. O golpe
militar de 1964 inspira O Senhor Embaixador,
lançado em 1965. Erico faz uma visita a Israel, que
rende mais um diário de viagem: O Prisioneiro, de
1967. Em 1971, publica Incidente em Antares. Em
28 de novembro de 1975, não sobrevive a mais um
infarto e deixa inacabado Solo de Clarineta.
Página inicial de O Continente, volume um da trilogia O Tempo e o Vento, de Erico Verissimo
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S82
maria da glória bordini, coordenadora do acervo literário de erico verissimo, fala de sua exPeriência no trato da memóriado escritor gaúcho
“lidar com o alev é um privilégio”
Um acervo é uma obra viva. A cada momento surgem descobertas, confirmações
ou refutações do conhecimento acumulado ao longo do tempo dedicado ao
arquivo, e isso permite ao organizador realizar um trabalho de memória e
história ou memória e crítica, impossível em outras circunstâncias. Essa é a
visão de Maria da Glória Bordini, coordenadora do Acervo Literário de Erico
Verissimo (ALEV), exposta na entrevista à Fundação Mario Covas.
Maria da Glória Bordini, coordenadora do acervo de Erico Verissimo, durante palestra na FMC
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S 83
FMC - o aCerVo literário de eriCo VerissiMo Mudou Várias Vezes de lugar. alguM doCuMento iMportante se perdeu ou estragou nessa MoViMentação?
maria Da GLÓria BOrDini - O ALEV primeiro
foi organizado na residência dos Verissimo e,
depois, foi posto sob a guarda da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul
(PUC-RS), onde ocupou dois espaços em
andares diversos, sendo por fim devolvido
à residência dos Verissimo. Até onde pude
constatar, não houve perda de nenhum
documento importante, fundamental, apenas
os descartes usuais de material insignificante
para a memória de Erico Verissimo ou para a
pesquisa acadêmica.
FMC - qual é a Maior preCiosidade desse aCerVo, na sua opinião?
maria Da GLÓria - Sem dúvida, os datiloscritos
e os esboços das obras, em especial de O Tempo
e Vento, Incidente em Antares, O Senhor
Embaixador, O Prisioneiro e Solo de Clarineta,
entre outros. E não se podem esquecer as
cartas de Erico e seus correspondentes.
FMC - qual doCuMento lhe deu Mais satisFação reCuperar?
maria Da GLÓria – Foi uma enorme satisfação
recuperar os textos datilografados de O
Retrato, segunda parte de O Tempo e o
Vento, completando o que tínhamos da
trilogia. Também foi muito bom obter a cópia
fotográfica do datiloscrito de Olhai os Lírios do
Campo, doada por José Mindlin (empresário e
colecionador de livros raros), as cartas trocadas
com Herbert Caro (bibliotecário e tradutor
do alemão) e Vianna Moog (romancista e
ensaísta), doadas pelas respectivas famílias,
e os discursos e outros documentos de Erico
na Organização dos Estados Americanos (OEA),
coletados em Washington pela então minha
doutoranda Ana Letícia Fauri.
FMC - as pessoas presenteadas CoM originais e priMeiras edições de eriCo VerissiMo não se sensibilizaM eM doar
esse Material ao aCerVo e dar aCesso aos pesquisadores?
maria Da GLÓria - Normalmente não temos
notícia dos destinatários das doações que
Erico Verissimo costumava fazer aos amigos.
Só sabemos delas quando a pessoa que
recebeu entra em contato conosco ou quando
há algum leilão de manuscritos. Erico não
deixou registros de suas doações, e a família
também não os possui.
FMC - alguM trabalho de Coleta Mais inCisiVo do Material Foi realizado?
maria Da GLÓria - Fizemos anúncios
em jornais e programas de televisão nos
primeiros anos de funcionamento do ALEV,
sem resultados. Através de exposições e
publicação de artigos, o ALEV tornou-se
conhecido, e então começamos a receber
cartas, fotografias e edições raras, bem como
críticas sobre sua obra.
FMC – por ter ForMação eM letras e espeCialização eM teoria da literatura, a senhora Fez alguMa espeCialização eM arquiVologia para lidar CoM o aleV?
maria Da GLÓria - Minha experiência
com arquivos literários é essencialmente
autodidata. De início, para aprender sobre
a organização de arquivos, visitei o Museu
Nacional e o Museu de Literatura Brasileira
da Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro,
o Instituto de Estudos Brasileiros (IEB-USP),
em São Paulo, a Fundação Jorge Amado, em
Salvador, e fui fazendo contatos e observações
em cada local por onde passei.
Fiz apenas um estágio no ITEM/CNRS (Instituto
de Textos e Manuscritos Modernos do Centro
Nacional de Pesquisa Científica) de Paris,
graças à colaboração dos colegas do IEB e à
CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior do Ministério da
Educação), mas dedicada à crítica genética.
Em Paris, visitei outras instituições dedicadas
ao patrimônio material de escritores. Na
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S84
Brown University, nos Estados Unidos,
estudei brevemente o sistema de arquivos da
Biblioteca John Carter Brown.
FMC - CoMo é para uMa pessoa dediCada à obra literária passar tantos anos na MontageM da MeMória do autor?
maria Da GLÓria - Trabalhar com fontes
primárias é um privilégio que poucos
pesquisadores têm, em especial quando
se trata de organizar e manter um acervo
pessoal inteiro. A cada momento surgem
descobertas, confirmações ou refutações do
conhecimento estabelecido sobre o autor,
dados novos, permitindo um trabalho de
memória e história, ou de memória e crítica,
como não se pode realizar em outro local.
O Acervo Literário também me proporcionou
pensar teoricamente sobre a materialidade
da literatura, assunto que ainda é muito
pouco explorado no Brasil. Afora o fato de
que tive a grande oportunidade de conhecer
Erico Verissimo num nível de profundidade
que outras áreas não possibilitam.
FMC - o aCerVo, MesMo sediado na Casa de luis Fernando, está aberto à Consulta dos pesquisadores? CoMo eles FazeM para ter aCesso?
maria Da GLÓria - No momento, o ALEV está
fechado a consultas. Só podemos atender
interessados em parte da fortuna crítica e
parte do material fotográfico e epistolar,
de que temos exemplares extras ou cópias
digitalizadas. O acesso é feito através do meu
e-mail, como coordenadora do ALEV.
FMC - a senhora disse que teríaMos surpresas sobre a sede do aCerVo. o noVo endereço está deFinido? CoMo está sendo o proCesso?
maria Da GLÓria - A definição da futura sede
do Acervo Literário de Erico Verissimo está em
fase de finalização. No momento, estamos
envolvidos nas tratativas contratuais e não
podemos adiantar mais detalhes.
mARiA DA GlÓRiA BORDiNi
Doutora em Letras pela PUC-RS, Maria da Glória
Bordini especializou-se em Teoria da Literatura.
Atualmente, é pesquisadora do CNPq e professora
colaboradora do programa de pós-graduação em
Letras da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul. Foi professora titular do programa de pós-
graduação em Letras da PUC-RS, onde coordenou
o Centro de Memória Literária, atualmente
extinto, que reunia acervos de dez escritores
sul-rio-grandenses, e organizou cinco edições
dos Encontros Nacionais de Acervos Literários
Brasileiros. Desde 1991, é editora associada
da revista binacional Brasil/Brazil Revista de
Literatura Brasileira, publicada em nova fase
pela Associação Cultural Acervo Literário de Erico
Verissimo e pela Brown University, dos Estados
Unidos. Coordena, desde 1982, o Acervo Literário
de Erico Verissimo. Publicou Fenomenologia e
Teoria Literária, pela Edusp, Criação Literária em
Erico Verissimo, pela L&PM, e Caderno de Pauta
Simples: Erico Verissimo e a Crítica Literária, pelo
IEL/RS, entre outras obras em co-autoria, além de
traduções e artigos sobre literatura em livros e
em periódicos nacionais e estrangeiros.
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S 85
fundação mario covasDirEtOria
Presidente da Fundação Mario Covas Antonio Carlos Rizeque Malufe
Diretor Secretário Luis Sergio Serra Matarazzo
Diretor Tesoureiro Marcos Martinez
CONSELHO CURADOR
Presidente Bruno Covas Lopes
Vice-Presidente Belisário dos Santos Junior
Secretário Marco Vinício Petrelluzzi
Membros Vitalícios Florinda Gomes Covas
Mario Covas Neto
Renata Covas Lopes
Rubens Naman Rizek
Membros Eletivos Edson Tomaz de Lima Filho
Edson Vismona
Fernando Padula Novaes
José da Silva Guedes
Luiz Carlos Frigério
Marcos Arbaitman
Marco Ribeiro de Mendonça
Mauro Guilherme Jardim Arce
Michael Paul Zeitlin
Osvaldo Martins de Oliveira Filho
Sami Bussab
Administração Rosangela Lopes Moreno Baptista
Eduardo Strabelli
Odair Aparecido Ribeiro Campos
cEntrO DE mEmÓria mariO cOvas
Coordenação Raquel Freitas
Consultora Arquivística Maria Cristina de Carvalho Pazin
Técnicos Documentalistas Gustavo Molina Turra
Noubar Sarkissian Junior
Tiago Silva Rodrigues Navarro
Wesley Cunha Soares
Pesquisadores Pedro Rodrigues de Albuquerque Cavalcanti
Renato de Mattos
Gestão de Projeto Cultural FormArte – Projetos, Produção e Assessoria Ltda.
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S86
fundação mario covasem revista
Coordenação Editorial Atelier de Imagem e Comunicação
Teresa Cristina Miranda - MTb 12.170
Editora Lucia Reggiani - MTb 11.479
Redação Teresa Cristina Miranda
Lucia Reggiani
Administração Cláudia Sardinha
Projeto Gráfico e Diagramação Anibal Sá Comunicação & Design
Fotografia A2 Fotografia
Edição Angelo Perosa
Produção Rosana Jerônimo Ribeiro
Ana Paula de Oliveira Silva
Fotógrafo Milton Michida
AGRADECIMENTOS
A Fundação Mario Covas agradece aos Centro de Documentação 25 de Abril, Centro de Memória
Unicamp, Fundação Patrimônio Histórico da Energia e Saneamento, Casa de Oswaldo Cruz-
Arquivo Fiocruz, Centro de Memória da Bahia e Acervo Literário Erico Verissimo por terem
cedido gentilmente as reproduções de documentos e fotografias que ilustram os textos
sobre seus respectivos acervos, produzidas pelos fotógrafos:
Juca Ferreira
Salomon Cytrynow
Leandro Melo
Paixão Esteves
Luiz Rodrigues
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S 87
patrocÍnio
apoio
FUNDAÇÃO M AR IO COVAS EM RE V I S TA A cER V o S dE p ER S on A l Id A dE S88
FUNDAÇÃO MARIO COVAS
RUA 7 DE ABRIL, 59 | 2º E 3º ANDARES | CENTRO | SÃO PAULO | SP | CEP 01043-090 TEL/FAX: 55 11 3129-7341 / 55 11 3129-7657
www.fmcovas.org.br
FUNDAÇÃO MARIO COVAS