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FORMAS DE SER LEITOR NA EDUCAÇÃO INFANTIL: DIÁLOGOS COM
UM RELATÓRIO DE ESTÁGIO
Cláudia Pimentel-UFAL
Resumo:
Esse texto apresenta alguns resultados de pesquisa realizada sobre as produções infantis
a partir de propostas desenvolvidas com acervos de livros de literatura infantil. Como
metodologia, adotou-se a análise de relatórios de estágio supervisionado no curso de
Pedagogia, material produzido a partir da disciplina prática de ensino, em duas escolas
de educação infantil, da rede pública municipal de ensino de Maceió, Al. Com o olhar
instrumentalizado a partir de debates sobre a produção da criança em interação com
seus pares e com a cultura (SARMENTO e GOUVEA, 2008), os estudantes estagiários
descrevem o desenrolar das sessões planejadas, procurando destacar as produções
infantis. A partir da análise dos relatórios, foi possível perceber que os registros gráficos
realizados pelas crianças podem fazer emergir diferentes interpretações das leituras
realizadas para elas, pois a criança relaciona o que percebeu do texto ao seu contexto
imediato ou às suas memórias. Com os livros nas mãos, as crianças reproduzem as
leituras feitas para elas, pedem que repitam as histórias, cantam trechos presentes nas
narrativas, evidenciando a importância da imitação e da repetição como formas de lidar
com a cultura. Os registros feitos pelas famílias sobre como foi a experiência em suas
casas com os livros emprestados demonstram que essas estratégias de lidar com a
cultura também podem ser observadas em casa, estendendo o ambiente de letramento
literário presente na escola às relações com as famílias. A literatura é campo da estética
e da ética, o que pressupõe novas práticas em que os sujeitos tenham oportunidade de
revelar suas estratégias para lidar com a cultura, desde a Educação Infantil.
Palavras-chave: Linguagem; infância; literatura infantil.
Introdução
Viver exigia legendar o mundo. Cabia-me o trabalho exaustivo
de atribuir sentido a tudo. Dar sentido é tomar posse dos
predicados. Trabalho incessante, este de nomear as coisas.
Chamar pelo nome o visível e o invisível é respirar consciência.
Bartolomeu Campos de Queirós
Esse texto apresenta alguns resultados de pesquisa realizada sobre as produções
infantis a partir de propostas desenvolvidas com acervos de livros de literatura infantil.
Como metodologia, adotou-se a análise de relatórios de estágio supervisionado no curso
de Pedagogia, material produzido a partir da disciplina prática de ensino em duas
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escolas de educação infantil da rede pública municipal de ensino de Maceió, Alagoas,
no período entre o segundo semestre de 2010 e o ano letivo de 2011. As interações
iniciais durante a disciplina entre professor-pesquisador e docentes em formação
possibilitou o desenvolvimento de intervenções nas escolas campo de estágio a partir
dos acervos de literatura infantil disponíveis para o trabalho com as crianças da
educação infantil nestas instituições. Os relatórios de estágio contemplam as
caracterizações das instituições e suas demandas, o planejamento feito a partir desta
primeira etapa do estágio, assim como descrições e análises de dez a quatorze sessões
de intervenções promovidas por duplas de estagiários. Com o olhar instrumentalizado a
partir de debates sobre a produção da criança em interação com seus pares e com a
cultura (SARMENTO e GOUVEA, 2008), os estudantes estagiários descrevem o
desenrolar das sessões planejadas, procurando destacar as produções infantis. As
interações com os estudantes estagiários feitas em grupo contemplam tanto questões
sobre observação, registro, análise e escrita dos relatórios - nos encontros preliminares-,
quanto orientações sobre o planejamento posto em ação – nos encontros no próprio
campo do estágio.
Neste texto, serão apresentadas análises a partir de um dos relatórios em que se
pode observar o que as crianças produzem quando são propostas atividades de: a) leitura
para elas seguida de registros gráficos realizados; b) escolhas de livros para
empréstimos – pré-selecionados no acervo da escola pelos estagiários; c) registros feitos
pelas famílias sobre como foi a experiência em suas casas com os livros emprestados.
Optou-se por destacar esse relatório por contemplar esses três eixos do trabalho com os
livros, pois muitas vezes observa-se, nos relatórios analisados, ênfase em sessões de
leituras para as crianças, sem que se garantam o livre acesso das crianças aos livros nem
os empréstimos para as famílias.
A leitura de diferentes relatórios de estágio revela a presença de livros de
literatura nas escolas de educação infantil que são campos de estágio; evidencia que os
acervos são organizados a partir de diferentes estratégias e mostra que o fato de haver
sala de leitura, nem sempre garante o trabalho com os livros. Numa das escolas,
construída para atender apenas crianças da educação infantil, há uma sala de leitura com
grande quantidade de livros no acervo, com destaque para os livros doados pelo Itaú
Social. Contudo, muitos desses livros são destinados a leitores experientes, dos anos
finais do ensino fundamental e do ensino médio e não para a primeira etapa da educação
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básica. Os livros destinados às crianças da educação infantil, em termos de estado de
conservação, dividem-se entre livros com aparência de antigos e aqueles que se
sobressaem pelo fato de serem recém-chegados ao acervo. Nesta escola, houve demanda
de que os estagiários cadastrassem esses livros novos, a título de organização do acervo.
Com esta atividade, pode-se observar que, entre os livros novos, havia grande
quantidade de livros do Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE). Como o
acervo dessa escola, mesmo inadequado à faixa etária, é grande, esses livros se diluem
na sala de leitura, que também abriga os brinquedos da escola. Observou-se que as
crianças têm livre acesso aos brinquedos na hora do recreio, ao passo que o acesso aos
livros depende dos adultos. Durante os períodos de observação nessa instituição, este
acesso não se constituía como uma rotina na escola, tendo sido desenvolvido pelos
estagiários.
Na outra escola de educação infantil observada, percebeu-se interesse em
ampliar o acervo de livros para as crianças, pois o material disponível para o trabalho
com a literatura infantil resumia-se a livros em péssimo estado de conservação
distribuídos pelas salas de aula, nos “cantinhos da leitura” e a livros do PNBE para a
educação infantil, que ficavam na sala da coordenação. Nessa escola, houve a demanda
de se formar um espaço de livros na brinquedoteca, o que foi feito por uma dupla de
estagiários, com a construção de um display para que os livros ficassem com as capas
expostas e na altura das crianças. Também foi feita uma listagem dos livros do PNBE a
título de cadastro. Esses livros ficaram organizados em duas caixas coloridas, guardadas
na sala da coordenação, para que fossem retirados e devolvidos após o uso nas salas de
aula e também para que se realizassem empréstimos para as famílias.
Da comparação entre os acervos dessas duas escolas, de suas demandas e dos
espaços de guarda dos livros, pode-se perceber que: a) mesmo quando os livros são
guardados em caixas na sala da coordenação, pode-se encontrar a demanda de leitura e
empréstimo dos livros; b) a existência de sala de leitura não garante que as crianças
tenham livre acesso aos livros; c) os acervos do PNBE se destacam em termos de estado
de conservação, qualidade gráfica e literária, com temática pertinente ao segmento da
educação infantil.
Os livros infantis e o estágio na educação infantil
No caso do relatório de estágio aqui analisado, houve demanda da escola para
que os estagiários trabalhassem com livros, o que garantiu a possibilidade de realização
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e sistematização dos empréstimos a partir de seu acervo. A leitura intensiva dos livros
pelos estagiários favoreceu o conhecimento do acervo e uma seleção prévia para a
realização do projeto. Os estagiários escolheram histórias ambientadas na floresta como
fio condutor das sessões com as crianças e selecionaram livros para a ciranda de
empréstimos.
Para os empréstimos dos livros, foi elaborada uma carta para as famílias
participarem da proposta, que constava de leitura com as crianças em casa e realização
de registros sobre a experiência de leitura. Para registros dos empréstimos e devoluções,
os estagiários fizeram uma tabela de dupla entrada com os nomes das crianças e os
títulos dos livros, para controle coletivo da turma dos empréstimos e devoluções dos
livros. Os estagiários também organizam sessões de leitura e muitas vezes usavam
elementos descobertos a partir dos interesses das crianças como fantoches, mas sempre
davam destaque ao livro. As crianças também foram convidadas a narrar histórias com
os livros, podendo manuseá-los, fazendo suas seleções a partir dos livros pré-
selecionados. Também realizaram registros gráficos das leituras com utilização de
diferentes materiais tais como colagem, desenho, pintura e massa de modelar.
A produção infantil
Para Sarmento (2008), as crianças desenvolvem suas próprias explicações sobre
o mundo, criando juízos, interpretações e condutas infantis que contribuem para a
configuração e a transformação das formas sociais. Não são só os adultos que intervêm
junto às crianças, mas elas também intervêm junto aos adultos. “As crianças não
recebem apenas uma cultura constituída que lhes atribui um lugar e papéis sociais, mas
operam transformações nessa cultura seja sob a forma como a interpretam e interagem,
seja nos efeitos que nelas produzem a partir de suas próprias práticas” (SARMENTO e
GOUVEA, 2008, p.29).
Gouvêa (2007) destaca alguns aspectos da gramática infantil tais como a função
simbólica, o brincar, a imitação, a imaginação, a repetição, a beleza e as interações com
seus pares. Alguns aspectos dessa gramática da infância puderem ser observados
durante a realização do projeto de estágio e serão aqui analisados, a partir do que foi
registrado no relatório do estágio.
Nesse contexto, destaca-se a sessão em que foi realizada a leitura do livro “O
lobo e os três cabritinhos” para as crianças. Foi solicitado que elas reproduzissem com
massa de modelar algo que as lembrassem da história. É possível observar elementos
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distintos em cada produção (figuras 1, 2 e 3 em anexo). Conforme registro do relatório
de estágio:
Na figura 1, a criança representou os três cabritinhos tal como descritos na história: um
pequeno, um médio e um grande. Na figura 2, outra criança representou os três
cabritinhos do mesmo modo que a primeira, porém ela acrescentou uma chuva, pois no
dia da leitura estava chovendo e ela queria representar a história de acordo com o
fenômeno natural que o dia apresentava. Na figura 3, a criança reproduziu a casa dos
três cabritinhos, mas com alguns detalhes como nuvens e um jardim. É possível
perceber que há crianças que trazem memórias de outros espaços para sua produção,
bem como utilizam elementos que não aparecem na leitura para dar outra roupagem à
narrativa, em sua confecção. Com esses registros, pode-se notar a ressignificação que as
crianças fazem da leitura.
Nos registros gráficos das leituras literárias feitos pelas crianças, notam-se sua
criatividade e capacidade de expressão, o que sugere diferentes interpretações, histórias
de vida, observações das crianças
Memórias de leituras ouvidas, livros ilustrados e a leitura na educação infantil
As crianças podem analisar textos já conhecidos através da tradição oral e das
mídias contemporâneas, ou através de leituras feitas por leitores experientes, utilizando-
se de livros ilustrados. O livro ilustrado está a meio caminho entre a tradição oral e a
tradição da escrita alfabética. A passagem de uma tradição a outra é situada em
horizontes culturais. As autorizações dadas a determinadas interpretações e produções
de sentidos a partir da leitura recuperada pela memória apoiada em ilustrações dos
livros passam por uma tutela cultural não tão explícita como no ensino da escrita
alfabética. Para as crianças na escola, não se trata apenas de ler os livros escolares, mas
ler com a escola que delimita horizontes culturais. Nesse sentido, a oportunidade de as
crianças lerem a seu modo a partir de livros ilustrados tem se revelado um caminho para
se constituírem leitores, no caso de serem aceitas suas interpretações e ressignificações.
Quando são autorizadas, as crianças fazem suas leituras, demonstrando interesse
também pelas leituras dos colegas. Utilizam-se dos livros para fazerem narrativas,
recuperando enredos, formas de dizer, blocos de significados, apoiando-se na memória e
nas ilustrações. Como isso, também aprendem a considerar a linearidade da escrita, as
características da arte sequencial que é o livro, o folhear das páginas, além de “fazer de
conta” que são leitores. Através da brincadeira de ler, aprendem sobre a leitura e sobre o
uso dos livros
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Considerando as leituras feitas em livros de literatura infantojuvenil, as imagens
garantem parte do horizonte cultural, apoiando a produção de determinados sentidos.
Antes de ler as palavras, as crianças leem com as imagens. Os livros e suas ilustrações
dão suporte semântico, permitindo a partilha de significados. Ao compartilhar
significados com o texto escrito, a ilustração dá oportunidade às crianças de se
aproximarem da leitura das palavras com uma senha de entrada:
Se uma imagem acompanha um texto e continua a mostrar-se nessa apreensão global
que implica toda a mensagem icônica, ela pode se tornar a garantia da permanência de
um sentido no nível das unidades semânticas amplas (tema principal, temas secundários,
episódios da narração, etc.). Ela representa, portanto, a coerência textual no próprio
momento em que o trabalho de segmentação necessário à aprendizagem [da escrita]
tende a destruí-la. (HEBRARD, 2001, p.62)
Recontos de histórias feitos pelas crianças com os livros ilustrados tem-se
revelado uma estratégia importante para elas se perceberem leitoras e se aventurarem no
processo de apropriação das relações fonográficas. Nesse ambiente de letramento, as
funções da escrita e da leitura podem ser apropriadas pelas crianças, que se permitem
fazer leituras, quando são aceitas suas formas de ler (figura 4 em anexo).
A imitação e a repetição dos gestos de leitura
A criança procura imitar não para repetir mecanicamente o que observa, mas
para apreender significados. A imitação revela a necessidade de intercambiar ações e
conhecimentos. É uma ação interpessoal. A imitação é uma forma de construir um
universo simbólico partilhado. A criança não imita aleatoriamente, mas através de um
diálogo com aquilo que pretende compreender e que está na sua cultura. Imitar é uma
característica da relação que a criança estabelece com o mundo. Outra é a repetição: por
meio dela, a criança pode compreender e se apropriar do novo, do angustiante, do
prazeroso: “não é apenas o que lhe dá prazer que é repetido, mas aquilo que deseja
experimentar e compreender” (GOUVEA, 2007, p.127).
O registro feito por uma criança e sua mãe a partir de leitura com livro
emprestado pelos estagiários revela a importância de repetição e da imitação para as
crianças: “Neto leu comigo e gostou muito da história e pediu para repetir comigo (mãe)
e cantou a musiquinha.” (figura 5 em anexo).
A criança e seu grupo de pares na hora de escolher livros
A ação infantil tem caráter coletivo. As crianças interagem, conversam, se
relacionam nos grupos de pares. Na participação em atividades coletivas, as crianças
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aprendem e criam regras. A observação atenta daquilo que outras crianças fazem, o
caráter assistemático das aprendizagens entre os pares e a participação em atividades
coletivas tem sido destacados por diversos autores como necessários à produção de
conhecimento na infância (SARMENTO, 2008; CORSARO, 2009). Como implicação
pedagógica, é preciso planejar situações de aprendizagem em grupos. Nas ações de
empréstimos de livros, as crianças puderam fazer suas escolhas a partir de um acervo
disponibilizado para este fim. Essas escolhas foram feitas considerando-se as
negociações entre as crianças como pode ser observado na figura 6 (em anexo) e
contaram com a mediação dos estagiários.
Reflexões sobre os livros selecionados
Algumas considerações sobre os livros usados nesse caso são necessárias, pois
eles estão ou deveriam estar em todas as escolas de educação infantil. Ao longo da
história do Programa Nacional de Biblioteca da Escola (PNBE), a distribuição dos
livros de literatura tem sido realizada por meio de diferentes ações. As remessas de cada
edição do PNBE para todas as escolas da rede pública de ensino do país são de pequena
quantidade de livros, quando se considera o que cada escola recebe. No entanto, os
números são elevados, quando se consideram os acervos, obras e coleções distribuídos
pelo país afora. Ao longo da história do PNBE, alguns critérios sobre a qualidade dos
livros de literatura infantil e juvenil foram elaborados por equipes responsáveis pela
seleção dos livros, a partir de editais do MEC (ANDRADE e CORSINO, 2007).
Em 2005, entendeu-se que os acervos de livros que seriam enviados para as
escolas deveriam ser compostos por uma diversidade de propostas literárias, tais como:
poemas (trava-língua, advinha, parlendas, prosa rimada, contos cumulativos), narrativas
curtas (contos, crônicas, lendas, textos da tradição oral, mitologia, fábulas, apólogos),
narrativas longas (romances e novelas), textos teatrais, livros de imagem. Além disso,
foi considerada a elaboração da linguagem literária - seus recursos linguísticos e efeitos
estéticos. Também se entendeu que a pertinência temática deveria ser avaliada através
do foco dado ao interlocutor e em sua produção de sentidos. Os aspectos gráficos dos
livros também foram considerados, tendo em vista tanto a função da ilustração que pode
afetar o universo significativo da obra, acrescentando possível valor estético, como o
projeto gráfico, no que tange ao formato do livro, da capa, da relação entre mancha do
texto e da ilustração, papel, tipo de letra e diagramação.
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Em 2008, foram selecionados acervos de livros de literatura também para as
escolas de educação infantil. Nessa ocasião, foi mantido o critério da diversidade de
propostas literárias, da qualidade textual e seus aspectos estéticos e éticos, e a qualidade
gráfica (PAIVA, 2008, p.9). Também foram consideradas as formas de acesso das
crianças aos livros:
Foi ainda critério para a constituição dos acervos a seleção, entre obras consideradas de
qualidade nas três categorias (prosa, verso e imagem) daquelas que representassem
diferentes níveis de dificuldade, de modo a atender a crianças em diferentes estágios de
compreensão dos usos e funções da escrita e de aprendizagem da língua escrita,
possibilitando formas diferentes de interação com o livro: a leitura autônoma pela
criança (de livros só de imagens, de livros em que a imagem predomina sobre o texto
verbal, quando este é reduzido a poucas palavras) e a leitura mediada pelo professor.
(MACIEL, 2008, p.16)
Paiva (2008) aponta para a importância das editoras e daqueles que se dedicam a
seleção de livros para a formação de acervos para as escolas públicas ampliarem o
investimento em obras que buscam o “enfrentamento de questões fundamentais da
existência humana que atingem crianças com intensidade semelhante à que atinge os
adultos” (id, p.44), sem que se perca de vista a qualidade textual. Segundo a autora,
temas como morte, medo, abandono, separação e sexualidade confrontam a criança em
seu cotidiano e são banidos da escola que “coíbe a discussão dos enigmas da existência
humana e da complexidade das relações sociais que poderiam ser problematizadas por
meio da ficção” (id, p.45).
Considerando que a literatura infantil pode tratar dos enfrentamentos humanos,
os contos clássicos selecionados para o projeto “Histórias no caminho da floresta”
trouxeram o ambiente das histórias de heróis que enfrentam os enigmas do ambiente em
suas aventuras, o que tradicionalmente é associado ao processo de individuação e de
entrada na sociedade, narrativas simbólicas que ajudam as crianças a enfrentarem seus
medos.
A didática da leitura
No cenário atual da escolarização da leitura parece haver um abismo entre a
didática e a literatura, faltando investimentos em produção de conhecimento sobre uma
possível reconciliação, para que a didática não signifique o fim da literatura. O trabalho
com a literatura pressupõe o desenvolvimento da linguagem como um todo: a expressão
oral, a experiência estética, a capacidade de narrar, o questionamento de valores, o que
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significa trabalhar com as dimensões estética, ética, humana. Ao passo que a literatura é
uma arte que lida com as palavras, o que está em jogo quando trabalhamos com ela na
educação infantil é a imaginação, a criação, a beleza, a experiência com os sentimentos
e com a linguagem verbal escrita em relação com a visual das ilustrações.
Considerar a função simbólica da criança, produzida na interlocução com a
cultura mais ampla, resulta em concepções de criança e de infância subjacentes a
propostas didáticas na educação infantil, principalmente quando tratamos de livros de
literatura para as crianças. Considerando que a criança não pode ser percebida fora da
cultura, é preciso analisar os acervos e as relações que são estabelecidas nos espaços
escolares.
Quando se está trabalhando com crianças da educação infantil, uma série de
objetivos didáticos podem ser atingidos por via de ações simbólicas, representativas e
contextualizadas em narrativas de forma mais efetiva do que pela via da mera exposição
de informações. Por isso, a leitura literária tanto é possível como necessária, no sentido
de que a linguagem verbal, tanto oral como escrita, deve ser experimentada de diversas
formas desde a primeira infância como garantia de serem usadas nas ações
representativas e interpretativas das crianças. A linguagem verbal, narrativa ou poética,
amplia a capacidade de compreender o mundo: nas palavras de Bartolomeu Campos
Queirós: “Chamar pelo nome o visível e o invisível é respirar consciência”.
A linguagem verbal, contudo, não é a única expressão que a criança pode ter
acesso na escola, sendo importante garantir outras manifestações como os registros
corporais, gráficos, musicais, além de brincadeiras de faz de conta. Nesse sentido, a
metodologia de projetos com leitura que contam com as etapas da pré-leitura, leitura e
pós-leitura tem se revelado eficaz para o desenvolvimento da linguagem como um todo,
e da oralidade particularmente, quando se garante o tempo para que as crianças possam
produzir cultura, utilizando-se de diferentes formas de expressão. O diálogo com as
crianças e a aceitação de suas interpretações e de seus registros compõem estratégias
importantes nas três etapas dos projetos com os livros.
Algumas considerações a título de conclusão
Ouvir as crianças tem sido um caminho importante para a formação docente. O
trabalho com a literatura em escolas de educação infantil ainda é campo de investigação,
contudo a partir dos relatórios de estágio realizados no curso de Pedagogia em questão,
é possível perceber que novas concepções de infância resultam em implicações para a
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prática pedagógica. Nesse sentido, a abordagem da sociologia da infância tem
contribuído para que as crianças sejam percebidas na interlocução com a cultura. As
relações pessoais, o respeito às diferentes interpretações e as práticas dialógicas nas
salas de aula são elementos importantes para a formação docente e podem ser
experimentados durante o processo de estágio.
A análise revelou que os registros gráficos realizados pelas crianças podem fazer
emergir diferentes interpretações das leituras realizadas para elas, desde que haja
liberdade de expressão, uso de diferentes materiais e principalmente que não sejam
utilizados modelos ou cópias prontas que antecipem e padronizem suas respostas. A
literatura desperta situações de vida, a criança relaciona o que percebeu do texto ao seu
contexto imediato ou a suas memórias. As escolhas das crianças a partir de livros
selecionados no acervo da escola pelos estagiários para empréstimos são atividades não
apenas tuteladas pelos adultos, mas que envolvem negociações entre as crianças. Com
os livros nas mãos, as crianças reproduzem as leituras feitas para elas, pedem que
repitam as histórias, cantam trechos presentes nas narrativas, evidenciando a
importância da imitação e da repetição como formas de lidar com a cultura. Os registros
feitos pelas famílias sobre como foi a experiência em suas casas com os livros
emprestados demonstram que essas estratégias de lidar com a cultura também podem
ser observadas em casa, estendendo o ambiente de letramento literário presente na
escola às relações com as famílias. Considerando que muitas vezes as crianças de
escolas públicas não tem acesso ao livro em casa, os empréstimos de livros feitos pelas
escolas são significativas estratégias de ampliação da experiência da criança com a
cultura.
A partir da análise dos relatórios do estágio, foi possível perceber o que as
crianças produzem quando são propostas atividades de interação com os livros.
Contudo, destacam-se as formas de interações entre adultos e crianças. Para que sejam
percebidas as produções infantis, é preciso criar um clima de escuta, de observação e de
registro, indo na contramão do que se tem observado em termos de práticas
pedagógicas, nas quais predominam a tutela e o controle do que as crianças fazem. A
literatura é campo da estética e da ética, o que pressupõe novas práticas em que os
sujeitos tenham oportunidade de revelar suas estratégias para lidar com a cultura, desde
a educação infantil.
Referências:
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ANDRADE e CORSINO. Critérios para a constituição de um acervo literário para as séries
iniciais do ensino fundamental: o instrumento de avaliação do PNBE 2005. In: PAIVA et alli
(orgs). Literatura – saberes em movimento. Belo Horizonte: Ceale: Autêntica, 2007. p.79-91.
QUEIRÓS, Bartolomeu Campos de. Vermelho Amargo. S. P.: Cosac Naify. 2001.
BRASIL. Literatura na infância: imagens e palavras / PAIVA [et all] – Brasília: MEC-SEB.
Belo Horizonte: UFMG, CEALE, 2008.
CORSARO, William. A reprodução interpretativa e a cultura de pares. In.: MULLER, F. &
CARVALHO A. M. A. (orgs.). Teoria e pratica na pesquisa com crianças: diálogos com
Willian Corsaro. S.P.: Cortez, 2009. pp. 31-50 .
GOUVEA, M.C. A criança e a linguagem: entre palavras e coisas. In: PAIVA et alli (org).
Literatura: saberes em movimento. Belo Horizonte: Autêntia, 2007.
MACIEL, F. O PNBE e o CEALE: de como semear leituras. In: PAIVA e SOARES. (orgs.).
Literatura infantil: políticas e concepções. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008. p. 7-20.
HEBRARD, Jean. O autodidatismo exemplar. Como Valentin Jamerey-Duval aprendeu a ler?
In: CHARTIER, R (org.). Práticas de leitura. São Paulo: Estação Liberdade. 2001. p. 35-73.
SARMENTO e GOUVEA (orgs.). Estudos da Infância: educação e práticas sociais.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2008. (Coleção Ciências Sociais da Educação).
ANEXOS
Figura 1: Os três cabritinhos. Figura 2: Os cabritinhos em dia de chuva.
Figura 3: Os três cabritinhos numa casa diferente.
Figura 4: Criança recontando a história lida.
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Figura 5: Registro da criança e escrita da mãe sobre livro lido em casa no projeto de empréstimo de livros (texto: O
Gilberto Neto leu comigo e gostou muito da história e pediu para repetir comigo (mãe) e cantou a musiquinha.).
Figura 6: Crianças escolhendo o livro emprestado para levar para casa.
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