UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO
CENTRO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
KATIA FEIJÓ DA SILVA
FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES EM
SERVIÇO COMO GESTÃO DEMOCRÁTICA DA
FORMAÇÃO DOCENTE: UMA POSSIBILIDADE DE
EMANCIPAÇÃO?
VITÓRIA 2008
KATIA FEIJÓ DA SILVA
FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES EM SERVIÇO
COMO GESTÃO DEMOCRÁTICA DA FORMAÇÃO DOCENTE:
UMA POSSIBILIDADE DE EMANCIPAÇÃO?
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para obtenção do Grau de Mestre em Educação. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Janete Magalhães Carvalho.
VITÓRIA 2008
Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil)
Silva, Kátia Feijó da, 1963- S586f Formação continuada de professores em serviço como gestão
democrática da formação docente : uma possibilidade de emancipação? / Kátia Feijó da Silva. – 2008.
265 f. Orientador: Janete Magalhães Carvalho. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Espírito
Santo, Centro de Educação. 1. Professores - Formação. 2. Gestão democrática. 3.
Comunidades interpretativas. I. Carvalho, Janete Magalhães. II. Universidade Federal do Espírito Santo. Centro de Educação. III. Título.
CDU: 37
AGRADECIMENTOS
À Professora Doutora Janete Magalhães Carvalho, minha professora
orientadora, por ter caminhado comigo durante o tempo que eu precisei.
Aos Professores do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFES, em
especial a Carlos Eduardo Ferraço e Regina Helena Silva Simões, pelo carinho
e apoio e por me terem ajudado a caminhar nessa experiência de formação
sempre contínua.
Ao meu esposo, Jailson, meu patrocinador, minha agência financiadora, meu
companheiro, por torcer por mim em todos os momentos.
Aos meus filhos, Conrado e Mariana, pelo amor e compreensão, por terem
agüentado meu “stress”.
Aos meus pais, Jorge e Catarina, pelo apoio e pela educação que me deram.
Às minhas amigas irmãs, Mônica, Doris e Magda.
Aos parentes e amigos, por terem tido paciência de me ouvir sempre falando
desse mestrado.
Às minhas amigas Nicéia e Kelen, pelo companheirismo e amizade.
À minha comadre Vera e à Dôra, minhas primeiras “orientadoras”.
Às minhas amigas do “Agenor de Souza Lé” e aos professores estaduais.
À Professora Doutora Eliza Bartolozzi Ferreira, cujo trabalho na SEDU me
inspirou a investigar a formação continuada de professores em serviço.
“[...] podemos pensar a formação continuada nesse movimento de tessitura e ampliação das redes de saberesfazeres dos educadores e, por conseqüência, dos alunos, tendo como ponto de partida e chegada o cotidiano vivido por esses sujeitos encarnados e complexos. Com isso, defendemos um processo de formação continuada que aconteça em meio às redes cotidianas, evocando questões específicas, mas que não se reduzem ao local, e assumindo o cotidiano vivido enquanto espaçotempo de análise da complexidade da educação”.
Carlos Eduardo Ferraço.
RESUMO
Este estudo investiga, numa abordagem bibliográfica documental, dentro de
um quadro que se forma em torno das questões da formação continuada de
professores e da gestão democrática da escola, as condições e as
possibilidades epistemológicas e políticas de a formação continuada de
professores em serviço configurar-se como um processo de gestão
democrática da formação docente, contribuindo para a autonomia e
emancipação desses profissionais. Considera que a gestão democrática deve
trabalhar para a ampliação da democracia e para a superação de
autoritarismos na busca por transformar as relações de poder em relações de
autoridade partilhada; que a formação continuada de professores em serviço é
uma modalidade de formação que, quando desenvolvida a partir de grupos de
estudo e para a solução de problemas, tendo em vista projetos locais, por meio
da solidariedade e da argumentação entre seus membros, se aproxima da
noção de comunidades interpretativas (SANTOS, 2005a), sendo, portanto,
potencialmente produtora de conhecimento-emancipação; as noções de
sujeitos praticantes, em Certeau (2005), e de subjetividades rebeldes, em
Santos (2005a), se aproximam na ação inconformista e na luta por diminuir ou
eliminar os processos de dominação. Nesse sentido, volta-se para a pesquisa
acadêmica, para a legislação brasileira, para as propostas de formação
continuada de professores em serviço e de gestão democrática de escola, no
período de redemocratização no Brasil, na busca por evidências que apontem
a correlação entre esses processos. Conclui que os princípios orientadores do
ensino no Brasil têm contribuído para pensar em processos alternativos de
formação de professores que instituem o docente como sujeito atuante e gestor
de sua formação, e que é válida a proposta de pensar a formação continuada
de professores em serviço como processo de gestão democrática da formação
docente.
Palavras-chave: Formação continuada de professores em serviço. Gestão
democrática. Comunidades interpretativas. Emancipação.
ABSTRACT
This paper investigates, in a documented bibliographic approach, within a
context that gathers around questions about the continual training of teachers
and the democratic management of the school, the conditions and
epistemological and political possibilities of configuring the continual on-the-job
training of teachers as a process of democratic management of training,
contributing to the autonomy and emancipation of these professionals. It
considers that democratic management must work for the enlargement of
democracy and to overcome authoritarianism in search of transforming
relationships of power into relationships of shared authority; that the continual
on-the-job training of teachers is a modality of training that, when developed
based on study groups and towards the solution of problems, aiming at local
projects, by means of the solidarity and discussion among its members, it
comes close to the notion of interpretative community (SANTOS, 2005a),
being, therefore, a potential producer of knowledge-emancipation; the notions
of training subjects, in Certeau (2005), and of rebellious subjectivities, in Santos
(2005a), are similar in the nonconformist action and in the struggle to diminish
or eliminate domination processes. In this aspect, one turns to academic
research, to the Brazilian legislation, to proposals of continual on-the-job
training for teachers and democratic school management, during the
redemocratization period in Brazil, in search for evidence that point to a
correlation between these processes. It concludes that the orienting principles
of teaching in Brazil have contributed to thoughts of alternative processes for
the training of teachers that institute the teaching staff as acting subject and
manager of its own training, and that the proposal of accepting continual on-the-
job training of teachers as a process of democratic management of training is
valid.
Key words: Continual on-the-job training of teachers. Democratic management.
Interpretative communities. Emancipation.
SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ............................................................................................... 9
1.1 COMPONDO A PESQUISA .......................................................................16
2 A QUESTÃO DA DEMOCRACIA: DAS CONDIÇÕES PARA A
PARTICIPAÇÃO CIDADÃ EM BUSCA DA EMANCIPAÇÃO SOCIAL .... 25
2.1 A DEMOCRACIA E AS CONDIÇÕES PARA A PARTICIPAÇÃO
CIDADÃ ...................................................................................................... 26
2.2 PENSANDO A POSSIBILIDADE DE EMANCIPAÇÃO: FORMAS DE
CONHECIMENTO E GESTÃO .................................................................. 38
2.2.1 A questão do conhecimento na transição paradigmática
segundo Santos ............................................................................... 39
2.2.2 O conhecimento-emancipação e a democratização do
conhecimento nas comunidades interpretativas .......................... 58
2.2.3 Gestão democrática, conhecimento e emancipação.................... 71
3 FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES EM SERVIÇO COMO
PROCESSO DE GESTÃO DEMOCRÁTICA DA FORMAÇÃO
DOCENTE................................................................................................... 94
3.1 A FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES COMO UM
PROCESSO............................................................................................... 95
3.2 A FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES E A FORMAÇÃO
DE SUBJETIVIDADES ............................................................................. 97
3.3 A FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES COMO GESTÃO
DEMOCRÁTICA DA FORMAÇÃO DOCENTE ........................................ 100
3.4 USO, TÁTICA, ESTRATÉGIA, SUJEITOS PRATICANTES: UMA
POSSÍVEL AÇÃO POLÍTICA DOS PROFESSORES NOS ESPAÇOS
TEMPOS DO COTIDIANO ESCOLAR .....................................................103
4 A ANÁLISE BIBLIOGRÁFICA DOCUMENTAL NO PERÍODO DE
REDEMOCRATIZAÇÃO DO BRASIL......................................................118
4.1 CONTEXTO SÓCIO-HISTÓRICO E POLÍTICO ..................................... 118
4.2 O PROCESSO DE REDEMOCRATIZAÇÃO NACIONAL NA DÉCADA
DE 1980 E A EDUCAÇÃO NA CONSTITUIÇÃO DE 1988 .......................120
4.3 A DÉCADA DE 1990 E A GESTÃO DEMOCRÁTICA NA LDB ................127
4.4 A POLÍTICA DE FORMAÇÃO E VALORIZAÇÃO DOCENTE
A PARTIR DA LDB ...................................................................................143
4.5 A FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES EM SERVIÇO
E O PLANO NACIONAL DE EDUCAÇÃO ...............................................148
4.6 A FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES EM SERVIÇO
E A REDE NACIONAL DE FORMAÇÃO CONTINUADA DE
PROFESSORES DE EDUCAÇÃO BÁSICA ..............................................165
5 A FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES EM SERVIÇO NA
PESQUISA ACADÊMICA BRASILEIRA ...................................................192
5.1 A FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES EM SERVIÇO E
O “ESTADO DA ARTE DA FORMAÇÃO DE PROFESSORES NO
BRASIL (1990–1998)”................................................................................192
5.2 A FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES EM SERVIÇO E
A “FORMAÇÃO DE PROFISSIONAIS DA EDUCAÇÃO (1997– 2002)”....206
6 A FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES EM SERVIÇO NA
POLÍTICA PÚBLICA EDUCACIONAL DO ESTADO DO ESPÍRITO
SANTO .......................................................................................................224
6.1 O DOCUMENTO BASE “POLÍTICA EDUCACIONAL DO ESTADO
DO ESPÍRITO SANTO – A EDUCAÇÃO É UM DIREITO” ...................... 227
6.1.1 A formação continuada e a valorização do magistério no
Documento Base .................................................................................... 229
6.2 O LIVRO COLETÂNEA DE TEXTOS “POLÍTICA EDUCACIONAL
DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO – A EDUCAÇÃO É UM
DIREITO” ................................................................................................. 236
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................... 251
8 REFERÊNCIAS .......................................................................................... 256
ANEXO A .................................................................................................... 262
9
1 INTRODUÇÃO
A formação continuada de professores em serviço foi um tema que surgiu em
nossa caminhada quando, num curso de especialização, estagiando em uma
Superintendência Estadual de Educação, em Vila Velha- ES, cidade em que
residimos e atuamos como Supervisora Escolar da Rede Estadual de Ensino,
nos deparamos com o Documento Base “Política Educacional do Estado do
Espírito Santo – A Educação é um Direito” (ESPÍRITO SANTO, 2003).
Esse documento serviu de base para debates e seminários que se realizaram
com a participação de um grande número de professores estaduais e de uma
variedade de instituições educacionais e entidades, tais como sindicatos e
outros membros da comunidade escolar, sob a iniciativa da Secretaria de
Estado de Educação e Esportes do estado do Espírito Santo (SEDU/ES).
Desse processo originaram-se várias diretrizes e ações para a política
educacional de nosso Estado, entre elas a formação continuada de professores
em serviço. Mas, o que seria “formação em serviço”? Foi em busca de
respostas que começamos nossa caminhada nesse campo.
Podemos dizer que esta pesquisa retrata essa caminhada e investiga a
formação continuada de professores em serviço buscando ampliar cada vez
mais a compreensão sobre o tema e as inúmeras relações que se foram
estabelecendo a partir daí. É certo, no entanto, que não temos a pretensão de
abarcar todos os fios que foram puxados, até porque isso, não seria possível
dentro de uma dissertação e, nem desejável. Nesse sentido, é preciso dizer
que pretendemos abordar o tema dentro de um quadro que se forma em torno
das questões da formação continuada de professores em serviço e das
questões da gestão democrática da escola, em um período pós-ditadura militar
e de redemocratização pelo qual vem passando o Brasil, de forma a
estabelecer correlação entre esses dois processos.
10
Esse foi um período marcado por grande influência dos movimentos sociais em
que a democracia se constituiu, dentro de um projeto de emancipação social,
como um princípio necessário para a superação da lógica capitalista
excludente e do ideário tecnoburocrático e repressor que se instalou dentro das
escolas e de outras instituições, um ideal a ser alcançado em todos os campos
sociais, entre eles o da educação.
A democratização da escola e do ensino, instituída na Lei de Diretrizes e Base
da Educação Nacional (LDB n° 9.394, de 20 de dezembro de 1996), toma
como base princípios democráticos para ministrar o ensino, tais como
igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; liberdade de
aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o
saber; acato ao pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas; respeito à
liberdade e apreço à tolerância; coexistência de instituições públicas e privadas
de ensino; valorização da experiência extra-escolar; vinculação entre a
educação escolar, o trabalho e as práticas sociais; gestão democrática do
ensino público, na forma da lei e da legislação dos sistemas de ensino. Esses
princípios têm-se revertido em objetivos a serem alcançados pelas propostas
educacionais. Outros, ainda, reafirmam a educação como direito: a gratuidade
do ensino público em estabelecimentos oficiais, a valorização do profissional
da educação escolar e a garantia do padrão de qualidade de ensino.
Embora caiba à União a coordenação da política nacional de educação quando
exerce função normativa, redistributiva e supletiva em relação às demais
instâncias educacionais, os sistemas de ensino têm liberdade de organização
para elaborar e executar políticas e planos educacionais, em consonância com
as diretrizes e planos nacionais de educação, integrando e coordenando as
suas ações nos termos da lei (Lei nº 9.394/96).
Algumas das tentativas para a democratização da escola são exemplificadas
na proliferação de órgãos colegiados, que permite que certas decisões possam
ser tomadas nos vários níveis e sistemas, inclusive na unidade escolar,
11
descentralizando ações e responsabilidades, prevendo a participação da
comunidade escolar, regulada e incentivada pelo Poder Público, nos conselhos
escolares, municipais, estaduais e outros; bem como a participação dos
profissionais da educação na elaboração do projeto pedagógico da escola.
No campo da formação e da valorização docente, a LDB prevê que os
sistemas de ensino devem assegurar, inclusive nos termos dos estatutos e dos
planos de carreira do magistério público, o ingresso exclusivamente por
concurso público de provas e títulos; o aperfeiçoamento profissional
continuado, inclusive com licenciamento periódico remunerado para esse fim;
piso salarial profissional; progressão funcional baseada na titulação ou
habilitação, e na avaliação do desempenho; período reservado a estudos,
planejamento e avaliação incluído na carga de trabalho; condições adequadas
de trabalho. Além disso, estabelece a experiência docente como pré-requisito
para o exercício profissional de quaisquer outras funções de magistério, nos
termos das normas de cada sistema de ensino.
No campo da formação continuada de professores mais especificamente,
observamos várias ações de iniciativa do Poder Público no sentido de habilitar
os professores que ainda não possuíam o grau de formação exigido em lei
para o exercício de suas funções. Essas ações, em sua maioria,
caracterizavam-se pela implantação de cursos de formação continuada a
distância e de processos muitas vezes acelerados de formação, tendo em vista
o aumento da demanda de professores habilitados devido à recente conquista
de nosso País, qual seja, a de atingir, quase em sua totalidade, a
universalização das matrículas do ensino fundamental.
Voltamos nosso olhar para a formação continuada de professores em serviço
porque, a nosso ver, essa modalidade de formação representou uma inovação
em termos de processo de formação que estávamos acostumados a ver, como
cursos de especialização, seminários, capacitação, reciclagens, encontros e
tantos outros que aconteciam espaçadamente, fora do local de trabalho, longe
12
de nossos pares, e que, embora proporcionassem crescimento e trocas de
experiências, não se debruçavam sobre os problemas do cotidiano nem sobre
a singularidade que cada escola, cada professor, cada turma de alunos ou
cada aluno. Eram cursos planejados e elaborados a priori, por grupos de
especialistas, sem a participação direta do professor.
De modo geral, a proposta da formação continuada em serviço não se
apresenta com a oferta de cursos pontuais do tipo reciclagem ou capacitação,
mas propõe, em tempo espaço garantido dentro da escola, a formação de
grupos de estudos, em torno de temas e problemas do cotidiano. Enfim, é uma
proposta de formação comprometida com as necessidades e projetos locais,
que leva em consideração os problemas, as dificuldades e as potencialidades
da escola, dos alunos e dos professores, assim como proporciona de forma
mais efetiva a formação de laços de solidariedade entre os professores como
membros de cada comunidade escolar. Sendo assim, podemos supor que
esses processos de formação, com o auxílio do princípio da descentralização
participativa, chave de todo processo democrático, é um caminho que nos “[...]
convida ao exercício de uma responsabilidade decisória, criadora e
compartilhada por aqueles que constituem o corpo permanente do Estado”
(LINHARES, 2006, p. 29), e contribui para a autonomia e emancipação desses
profissionais da educação.
No entanto, muitas são as dificuldades a serem superadas para a implantação
de políticas públicas democratizantes na escola. Avaliando o período que
sucedeu a aprovação da LDB e de outras leis, como a que instituiu o Fundo de
Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do
Magistério (FUNDEF), por exemplo, Mendonça (2000, p. 81) argumenta que o
mesmo Estado que expandiu enormemente o acesso à escola pública
brasileira, permitiu que ela se degradasse ao longo do tempo, não aplicando
recursos financeiros adequados à manutenção da rede física e ao
desenvolvimento do ensino, não investindo na formação, na capacitação e na
13
condigna remuneração dos docentes, reduzindo os profissionais da educação
a condição aviltante.
Problematizando ainda mais essa situação, trazemos o alerta que nos faz
Santos (2005a) sobre a impossibilidade, dentro de uma nova teoria da
democracia, de se determinarem os rumos dos processos de transformação
social, o que nos leva a pensar que, mesmo que conseguíssemos implantar
políticas democráticas na escola, por exemplo, como uma solução
emancipatória, isso, por si só, não seria garantia de emancipação.
O autor parte do pressuposto de que sabemos muito mais o que não queremos
e pouco daquilo que queremos. Então, em vista dos riscos e catástrofes e da
negatividade de que a emancipação pode ser investida, é preciso levar em
conta que “[...] a emancipação não é mais que um conjunto de lutas
processuais, sem fim definido. O que a distingue de outros conjuntos de lutas é
o sentido político da processualidade das lutas” (SANTOS, 2005b, p. 277). O
autor sugere que, para que a emancipação se complete como uma solução
“verdadeiramente” emancipatória, isto é, distante da negatividade de que pode
estar investida, as soluções emancipatórias devem estar acompanhadas não
só do pensamento emancipatório, mas também da vontade de emancipação,
como em subjetividades rebeldes, aptas a lutar pela diminuição/extinção de
processos de dominação e para aprofundarem as lutas democráticas em todos
os espaços estruturais da prática social.
A nosso ver, trabalhar nessa linha de pensamento que liga conhecimento,
subjetividade, democracia e emancipação, presente nas teses de Santos
(2005a) e citadas por Oliveira (2006), quanto à democracia e às suas
condições, e à necessária democratização dos conhecimentos e das
subjetividades, das relações e práticas sociais, permite-nos estabelecer uma
relação entre dois importantes processos: 1 – os processos de gestão
democrática, como aqueles em que a democracia se instala como princípio
organizador das relações e práticas sociais, na busca por diminuir
autoritarismos e constituir relações de autoridade partilhada, já que a
14
democracia depende da democratização das práticas e relações sociais, assim
como dos saberes em todos os espaços estruturais; 2 – os processos de
formação, como aqueles voltados para a formação de subjetividades
inconformistas, rebeldes, no sentido de lutar pela emancipação social, já que a
democratização das relações requer a democratização dos saberes e é
condição para a democratização das subjetividades.
Daí a importância de, no campo da educação, de se democratizarem os
processos de formação de professores, assim como a gestão na e da escola,
de forma a contribuir para a autonomia e a emancipação social. É nesse
sentido que ressaltamos a importância de se pensar a formação continuada de
professores como um processo de gestão democrática da formação docente,
de modo a promover a autonomia dos sujeitos em formação e contribuir para
que processos de emancipação se realizem nesse campo.
Essa seria uma das formas de pensar a escola como um campo social
privilegiado para a formação de cidadãos, espaço tempo de construção e
disseminação de conhecimentos e de práticas sociais democráticas, de
inclusão, trabalhando para ampliar a participação dos membros da comunidade
escolar nos processos decisórios, proporcionando, assim, maiores
possibilidades de emancipação dos sujeitos. Acrescentamos, ainda, a
necessidade de se pensar a escola como espaço tempo de formação não só
de alunos, mas também de professores, a fim de contribuir para que sejam
subjetividades democráticas. Essa busca por minimizar diferenças, no sentido
de lutar para que não impeçam a participação efetiva e cidadã, configura-se
como um processo de gestão democrática e pode configurar-se também como
um processo que estimula e forma subjetividades democráticas, necessárias
para o sustento de processos de decisão e de autoridade partilhada.
Para Oliveira (2006), as questões que têm sido colocadas para a educação
nessas reflexões vão ao sentido de se saber de que modo ela pode contribuir
15
para a formação de subjetividades democráticas, para a democratização das
práticas sociais e do conhecimento, também democratizado.
Considerando esse quadro epistemológico e político que se forma em
torno das questões da formação continuada de professores em serviço e
da gestão democrática da escola, propomos, numa abordagem
bibliográfica documental, investigar a legislação educacional, os
documentos de pesquisa acadêmica e propostas que abordam o tema na
busca por evidências que nos permitam configurar a formação
continuada de professores em serviço como um processo de gestão
democrática da formação docente, tendo, por isso, grande potencial
emancipador.
Nessa pretensão, consideramos que o professor é sujeito de sua própria
formação; o processo de gestão democrática possibilita a horizontalização das
relações e o desenvolvimento de práticas de autoridade partilhada contribuindo
para que o professor atue ativamente, individual ou coletivamente, com seus
pares e no ambiente escolar; os processos de gestão democrática devem
trabalhar para a ampliação da democracia na educação e na escola, o que
implica a superação de autoritarismos na busca por transformar as relações de
poder em relações de autoridade partilhada. Também consideramos a
possibilidade de aproximação entre as noções de sujeitos praticantes, em
Certeau (2005), e de subjetividades rebeldes, em Santos (2005a), na ação
inconformista e na luta por diminuir ou eliminar os processos de dominação,
proporcionando maior ou menor grau de autonomia e emancipação dos
sujeitos e da escola em relação ao sistema em que se inserem. Além disso,
consideramos que a formação continuada de professores em serviço é uma
modalidade de formação que, quando desenvolvida em grupos de estudo para
a solução de problemas tendo em vista projetos locais, por meio da
solidariedade e da argumentação entre seus membros, se aproxima da noção
de comunidades interpretativas (SANTOS, 2005a). É, portanto, potencialmente
produtora e/ou articuladora de conhecimento-emancipação, assumindo, assim,
16
uma relevância nos processos tanto de formação docente como nos de gestão
democrática da escola. Consideramos, ainda, que propostas feitas para a
formação continuada de professores tendem a ter mais sucesso quando
consideradas as redes de subjetividades que somos e as que se formam no
cotidiano escolar, e o projeto educacional local, com suas necessidades,
dificuldades e potencialidades.
Nesse sentido, nossa investigação volta-se para o campo educacional da
gestão democrática e da formação continuada de professores em serviço, na
busca por evidências que nos permita correlacionar esses processos na
legislação educacional, na pesquisa acadêmica e nas propostas de formação
continuada de professores em serviço.
1.2 COMPONDO A PESQUISA
Nesta pesquisa, procuramos investir na análise das noções de democracia,
gestão democrática, formação de professores em serviço, emancipação, dentro
de um referencial teórico que nos permitisse correlacioná-las buscando
evidências dessa correlação na legislação educacional brasileira, em
documentos acadêmicos e oficiais que abordam a questão da formação
docente no Brasil, nas propostas para formação continuada de professores e
gestão democrática da escola, de forma a compor o estudo numa abordagem
bibliográfica documental.
Dentro desse referencial, podemos citar Boaventura de Souza Santos (2005a,
2005b e 2007), Oliveira (1999, 2003, 2006) e Chaui (2006) por suas
contribuições para a formulação de uma concepção mais ampliada de
democracia, de sociedade democrática, para, então, pensarmos a questão da
gestão democrática na educação, em especial, na formação de professores.
17
Baseando-nos nos estudos de Carvalho (2002) sobre as diferentes
perspectivas da profissão docente na atualidade, nas importantes noções de
Certeau (2005), tais como as de sujeitos praticantes, uso, táticas e estratégias,
cotidiano, e em outros autores, como Ferraço (2002a, 2002b, 2005), Barros
(2005), Oliveira (2003, 2005), ampliamos um pouco mais a questão da
formação de professores, com contribuições no campo da pesquisa no/do
cotidiano.
Iniciamos a investigação bibliográfica documental procurando documentos que
nos servissem de fontes relativas aos aspectos históricos, políticos e sociais
mais significativos sobre o tema no e para o Brasil, situados no período de
redemocratização pelo qual vem passando o nosso País após o fim da ditadura
militar. Documentos podem ser considerados “[...] quaisquer materiais escritos
que possam ser usados como fonte de informação sobre o comportamento
humano” (PHILIPS, 1974, apud LÜDKE; ANDRÉ, 1986, p. 38), os quais, no
caso desta pesquisa, incluíram as leis, documentos acadêmicos e propostas
oficiais para formação de professores. Os documentos que utilizamos em
nossa pesquisa foram:
1. a Constituição da República Federativa do Brasil (BRASIL, 1988);
2. a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as Diretrizes e
Bases da Educação Nacional (BRASIL, 1996);
3. a Lei nº 10.172, de 9 de janeiro de 2001, que aprova Plano Nacional de
Educação (PNE) e dá outras providências (BRASIL, 2001);
4. o documento Rede Nacional de Formação Continuada de Professores da
Educação Básica (BRASIL, 2006);
5. o n° 6 da série Estado do Conhecimento, intitulado “Formação de
professores no Brasil (1990 – 1998)” (ANDRÉ; ROMANOWSKI, 2002);
6. o nº 10 da série Estado do Conhecimento, intitulado “Formação de
profissionais da educação (1997 – 2002)”; (BRZEZINSKI; GARRIDO, 2006);
7. o documento-base intitulado “Política Educacional para o Estado do Espírito
Santo: A Educação é um Direito”. (ESPÍRITO SANTO, 2003);
18
8. a coletânea de textos denominada “Política Educacional para o Estado do
Espírito Santo: A Educação é um Direito” (ESPÍRITO SANTO, 2004).
Esses materiais foram assim agrupados: grupo A – leis e documentos
nacionais que abordam a educação, de modo geral, e/ou, especialmente, a
formação docente e a gestão democrática da escola, os quais se apresentam
nos itens de número 1, 2, 3, e 4 da lista; grupo B – documentos
acadêmicos/oficiais, que nos auxiliaram na compreensão do que seja formação
continuada de professores na pesquisa acadêmica no Brasil, documentos
esses que estão representados pelos números 5 e 6; grupo C – propostas
oficiais educacionais que abordam a formação docente e a gestão democrática
da escola no estado do Espírito Santo, os quais constam nos itens 7 e 8.
Na análise da legislação, abordada no grupo A, buscamos apreender o
conceito de gestão democrática da escola, que se firmou como princípio
constitucional, e a questão da formação e valorização do magistério. Por isso,
nossa reflexão se ateve aos aspectos referentes à educação, buscando
observar a existência de harmonia entre as legislações quanto aos princípios
democráticos e de valorização do magistério, a forma de organização proposta
para o trabalho na escola, a gestão democrática, as atribuições dos docentes,
o que se previa para a formação e valorização do magistério. Também
buscamos evidências que nos permitissem correlacionar os processos de
formação continuada de professores em serviço com os de gestão democrática
da formação docente.
No grupo B, que se constitui num panorama da pesquisa sobre formação
docente no Brasil, buscamos ampliar nossa percepção do que seja a formação
continuada em serviço no pensamento dos pesquisadores, e qual a reflexão
que têm feito sobre o assunto, suas implicações para a gestão democrática da
escola e as políticas públicas educacionais, e as possibilidades de a formação
continuada em serviço se configurar como gestão democrática da formação
docente.
19
A análise do grupo C levou em consideração a proposta para formação
continuada de professores em serviço no estado do Espírito Santo, buscando,
como nos outros grupos, por princípios organizadores, concepções de
formação docente e formação continuada em serviço em sua possível
correlação com a gestão democrática da formação docente.
Assim, passamos a apresentar a composição final de nossa pesquisa pelo
Capítulo 2 – “A questão da democracia: das condições para a
participação cidadã em busca da emancipação social”, em que
ponderaremos sobre democracia e suas condições com base no pensamento
de Santos (2001, 2005a, 2005b e 2007) e de autores afins, de modo a
abranger as condições epistemológicas e políticas para a participação cidadã,
a democratização das relações e do conhecimento na transição paradigmática,
e as possíveis contribuições de um processo de gestão democrática para a
emancipação social.
A reflexão se faz sobre o regime democrático como uma tendência que se tem
consolidado na maior parte dos países, mas que, quando adotado estritamente
como um sistema político, no seu aspecto formal, muitas vezes se sustenta
sobre formas de exclusão, de discriminação e de dominação ampliadas.
Para Santos (2005a, 2007), essa é uma situação de democracia de baixa
intensidade, de cidadania bloqueada, em que não se garantem as condições
materiais de participação, entre elas a condição de sobrevivência (fome); a
liberdade (ameaças) e o acesso à informação. A falta dessas condições, que
são tanto políticas quanto epistemológicas, faz com que participemos cada vez
mais do que é menos importante e banal para a reprodução do poder, sem
poder para discutir as regras de participação.
Baseando-nos no pensamento dos autores e na interligação entre as teses de
Santos de que não há democracia sem condições, a democratização das
relações sociais depende da democratização dos saberes é condição para a
20
democratização das subjetividades, concluímos que a democracia social
pressupõe um equilíbrio entre liberdade e igualdade e envolve a participação
individual e coletiva dos sujeitos em sociedade nos processos de decisão que
dizem respeito à vida cotidiana. Por conseguinte, “[...] uma determinada
sociedade será tão mais democrática quanto mais intensos e efetivos forem os
mecanismos e processos decisórios sobre os quais se funda” (OLIVEIRA,
2003, p. 16).
Também tratamos da questão do conhecimento na transição paradigmática, do
conhecimento-emancipação e a democratização do conhecimento nas
comunidades interpretativas e da relação entre gestão democrática,
conhecimento e emancipação.
A sociedade democrática depende do sucesso que obtiver para garantir que as
condições necessárias à democracia se estendam a toda sociedade. Nesse
sentido, é de extrema importância que a busca por sustentar a democracia
como princípio regulador das relações sociais nos espaços constitutivos das
redes de subjetividades, saberes e práticas reais que tecemos e nos tecem,
alcance a educação, a escola e os processos de formação como possibilidade
de autonomia e emancipação docente.
No Capítulo 3 – “A formação continuada de professores em serviço como
processo de gestão democrática da formação docente”, procuramos
correlacionar gestão democrática e processos de formação continuada de
professores em serviço, a fim de analisar as possibilidades de a formação
continuada de professores em serviço se configurar como processo de gestão
democrática da formação docente, proporcionando condições de emancipação
e autonomia desses profissionais.
Nesse sentido, começamos a compor a noção de formação continuada de
professores em serviço como processo contínuo que se realiza em diversos e
complexos contextos de formação identitária, em que as subjetividades
21
individuais e coletivas são formadas, ao incorporarem tanto “saberes” formais e
cotidianos quanto valores e crenças com os quais entramos em contato,
definindo as possibilidades de ação dos sujeitos sobre e no mundo (OLIVEIRA,
2006, p. 117). Conseqüentemente, dentro de um projeto pedagógico
emancipatório, esse processo deve desenvolver-se buscando torná-las mais
aptas a lutar pela emancipação social e pela democracia.
Esse também é um processo que resiste a prescrições, que cria redes de
cooperação, e se desenvolve a partir do “[...] debate de normas, gestão do
instante e, implica escolhas que se situam no plano dos valores que não pode
ser deduzida de uma generalização científica objetiva” (BARROS, 2005, p. 78).
Sendo assim, a formação continuada de professores em serviço configurar-se-
ia como um processo de gestão democrática.
Por fim, chegamos à noção de formação continuada de professores em serviço
como um processo de contínuas aprendizagens que se realizam na
formação/gestão de redes de subjetividades compartilhadas por sujeitos
praticantes no cotidiano escolar, o qual, adotado como um processo
democrático, possui grande potencial emancipador.
“A análise bibliográfica documental no período de redemocratização do
Brasil” constitui o Capítulo 4, no qual procuramos contextualizar o período em
que foram elaboradas as leis e os documentos nacionais analisados, buscando
evidências que nos permitissem correlacionar os processos de formação
continuada e os de gestão democrática, configurando a formação continuada
de professores em serviço como um processo democrático de formação de
professores que contribui para a emancipação desses profissionais.
A Constituição de 1988 incorpora princípios democráticos para a organização
do ensino e da educação assumida como direito de todos. Dentre esses
princípios destacamos a valorização dos profissionais do ensino, garantidas na
forma da lei, planos de carreiras para o magistério público, com piso salarial
22
profissional e ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos,
e a gestão democrática do ensino público também na forma da lei. Mas nada
prescreveu sobre a formação continuada de professores.
A LDB adota os princípios constitucionais de gestão democrática na
organização do ensino realizado nas escolas públicas prevendo a participação
dos professores na elaboração da proposta pedagógica e a participação da
comunidade escolar em órgãos colegiados, conselhos ou similares. Aborda a
questão da formação de professores em exercício, inclusive por meio do
recurso da educação “a distância” como uma de suas possibilidades. Também
aborda os processos de estudo, planejamento e avaliação com tempo previsto
em calendário e horário escolar separados do processo de “aperfeiçoamento
contínuo”. Porém não fecha questão sobre a impossibilidade de conciliá-los, o
que seria interessante para a proposta de se considerar a formação de
professores em serviço como processos de gestão democrática, unindo assim
dois princípios de gestão democrática da escola e conferindo a eles grande
potencial emancipatório. Mas, diante da sobrecarga de incumbências, da
descentralização de responsabilidades e da falta de algumas condições de
trabalho, questiona-se a possibilidade de o princípio de gestão democrática
efetivar-se na prática.
O PNE preocupa-se em manter os princípios democráticos e destaca a
valorização dos profissionais da educação como uma de suas prioridades, à
qual prevê dar particular atenção, discriminando a importância de se interligar a
formação profissional inicial, as condições de trabalho, salário e carreira e a
formação continuada.
Faz referência a “curso de qualificação em serviço”, mas ainda não discorre
sobre a possibilidade de essa formação realizar-se dentro do espaço tempo da
escola e fora do formato de curso. Usa o termo “formação em serviço”, prevê
destinar entre 20 a 25% da carga horária dos professores para preparação de
aulas, avaliações e reuniões pedagógicas e faz menção ao compromisso social
e político do magistério para a consecução das metas previstas. Também
23
propõe princípios para a elaboração de propostas de formação docente que
nos permitem correlacionar a formação de professores em serviço com o
processo de gestão democrática da formação. Quanto à possibilidade de isso
acontecer na prática, dependeria de elaboração e aprovação de um programa
de formação continuada de professores em serviço.
Sobre a Rede Nacional de Formação Continuada de Professores da Educação
Básica (BRASIL, 2006), podemos dizer que se concretiza numa parceria entre
o Ministério da Educação (MEC) e algumas de suas secretarias, tais como a
Secretaria de Educação Básica (SEB), o Departamento de Políticas de
Educação Infantil e Ensino Fundamental (COPFOR). Constitui-se a partir daí
convênios entre o MEC e as universidades credenciadas para institucionalizar
a formação docente, articular a formação continuada com a pesquisa e com a
produção acadêmica das universidades em conformidade com o sistema
federativo brasileiro, propondo adesão dos sistemas de ensino a essa
modalidade de formação.
De modo geral, nota-se a preocupação dos colaboradores em refletirem
criticamente sobre a participação dos educadores brasileiros e do Poder
Público na proposição de soluções para os problemas educacionais, sobre a
situação educacional no Brasil atual, e sobre a necessidade de se criar uma
rede nacional de formação continuada para professores. Esse documento
caracteriza-se, portanto, por essa proposta: a formação de uma rede nacional
de formação continuada de professores como resultado de um esforço coletivo
e com o objetivo de melhorar a qualidade da educação, de forma integrada
com as universidades, os sistemas de ensino e MEC.
Talvez pela grandiosidade do desafio que é elevar a qualidade da educação no
Brasil, tendo a melhoria da formação dos professores como uma das
estratégias para se alcançar o sucesso, a necessidade de flexibilidade que tal
empreitada exige diante de realidades tão diversas no contexto nacional, a
vantagem que as novas tecnologias nos permitem alcançar como um
24
instrumento potencializador na formação de redes, a proposição dos cursos a
distância tenha sido colocada, não como a única solução, mas com a única
proposta, embora o próprio documento considere que não seja a única opção
para a formação continuada de professores. Porém, a discussão que se
estabeleceu sobre os princípios organizadores para a formação dessa Rede
revelou-se um campo fértil para discussões que abarcam outras propostas
para a formação continuada de professores em serviço e para a criação e
fortalecimento de novas redes que se podem formar nessas experiências.
Finalmente, no Capítulo 5 – “A formação continuada de professores em
serviço na política pública educacional do Estado do Espírito Santo”, para
analisar os aspectos concernentes ao tema consideremos dois importantes
documentos que resumem uma proposta para a política pública educacional
estadual, estabelecida a partir dos debates com a comunidade escolar nos
anos de 2003 e 2004: o documento base “Política Educacional do Estado do
Espírito Santo – A Educação é um Direito” (ESPIRITO SANTO, 2003) e o
volume 1 da Coletânea de Textos “Política Educacional do Estado do Espírito
Santo: A Educação é um Direito” (ESPÍRITO SANTO, 2004).
Deles procuramos destacar os aspectos relevantes para o tema pesquisado e
evidenciar possibilidades de correlacionar os processos de formação
continuada de professores em serviço e de gestão democrática da formação
docente de modo a potencializar e emancipação do professores.
Nas Considerações Finais, chegamos à conclusão de que há evidências nas
leis e propostas que nos permitem configurar a formação continuada de
professores em serviço como um processo de gestão democrática da formação
docente.
25
2 A QUESTÃO DA DEMOCRACIA: DAS CONDIÇÕES PARA A
PARTICIPAÇÃO CIDADÃ EM BUSCA DA EMANCIPAÇÃO SOCIAL
“A democracia não é apenas um sistema político ou uma forma de
organização do Estado. Uma sociedade democrática não é, portanto,
aquela na qual os governantes são eleitos pelo voto. A democracia
pressupõe uma possibilidade de participação do conjunto dos membros
da sociedade em todos os processos decisórios que dizem respeito à sua
vida cotidiana, sejam eles vinculados ao poder do Estado ou a processos
interativos cotidianos, ou seja, em casa, na escola, no bairro etc.”
Inês Barbosa de Oliveira.
Nosso País constitui-se como um Estado Democrático de Direito (Art. 1° da
Constituição Federal, 1988) que tem como fundamentos a soberania, a
cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da
livre iniciativa, o pluralismo político, onde todo poder emana do povo, que o
exerce diretamente ou por meio de representantes eleitos, nos termos da Lei
(BRASIL, 1988).
São objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil conforme
estabelece o Art. 3º da Constituição: I – construir uma sociedade livre, justa e
solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a
marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o
bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer
outras formas de discriminação (BRASIL, 1988).
Nesse sentido, vivemos em um país de regime democrático, regime que se tem
consolidado na maior parte dos países. A democracia formal, porém, quando
26
adotada estritamente como um sistema político, muitas vezes se sustenta
sobre formas ampliadas de exclusão, discriminação e dominação.
Oliveira (2006), ao comentar a obra de Santos (2005a) fala de algumas idéias
desse autor sobre a democracia e sobre a possibilidade de considerarmos a
indissociabilidade entre as teses: a) não há democracia sem condições de
democracia; b) há necessidade de democratização das relações sociais em
todos os espaços estruturais; c) a democracia das práticas sociais não é
suficiente se o conhecimento que as orienta não é democrático.
Nesse sentido, buscamos pensar o conceito de democracia a partir dessas
reflexões de modo a abranger as condições epistemológicas e políticas para
participação cidadã, a democratização das relações e do conhecimento na
transição paradigmática, e as possíveis contribuições desse processo para a
emancipação social.
2.1 A DEMOCRACIA E AS CONDIÇÕES PARA A PARTICIPAÇÃO CIDADÃ
Santos (2007) observa que, nos anos de 1960, havia vários modelos de
democracia, entre eles os de democracia representativa liberal, democracia
popular, democracia participativa, democracia de países que se desenvolviam
a partir do colonialismo. Na discussão que envolvia a questão das condições
políticas, sociais e econômicas para a existência da democracia, percebia-se
que ela só se fazia possível em um pequeno pedaço do mundo. No entanto,
segundo o autor, havia uma tensão criativa entre democracia e capitalismo,
porque a democracia era um processo que, por meio da metáfora do contrato
social e seus dois grandes princípios, igualdade e liberdade, lutava por uma
inclusão mais ampla, por alguma forma de redistribuição.
Para o autor, esse modelo entrou em uma crise enorme nos últimos vinte anos
porque a tensão entre democracia e capitalismo desapareceu, passando a
27
existir um regime que, em vez de produzir redistribuição, a destruía, fazendo
com que só restasse um modelo de democracia: a democracia liberal
representativa. Essa é uma forma de democracia de modelo neoliberal,
imposto pelo Consenso de Washington, que não promove a redistribuição
social e que não se opõe ao capitalismo, ao contrário, o legitima. Nesse
sentido, “[...] perdemos “demodiversidade”: perdemos a diversidade de formas
democráticas alternativas em que o jogo, a competição entre elas de alguma
maneira dava força à teoria democrática” (SANTOS, 2007, p. 87).
Para Santos (2007), essa é uma situação de cidadania bloqueada, isto é, não
se garantem as condições materiais de participação, entre elas: a condição de
sobrevivência (fome), a liberdade (ameaças) e o acesso à informação. A falta
dessas condições faz com que participemos cada vez mais do que é menos
importante e banal para a reprodução do poder, assim como participarmos sem
poder para discutir as regras de participação. Santos (2005a) tem-se referido a
essas democracias contemporâneas como democracias de baixa intensidade.
Para Chaui (2006), a peculiaridade liberal está em tomar a democracia
estritamente como um sistema político que repousa sobre os postulados
institucionais como condições sociais da democracia:
1) A legitimidade do poder é assegurada pelo fato de os dirigentes serem obtidos pela consulta popular periódica, onde a ênfase recai sobre a vontade majoritária. As condições aqui postuladas são, pois, a cidadania e a eleição.
2) A eleição pressupõe a competição entre posições diversas, sejam elas de homens, grupos ou partidos. A condição aqui postulada é a existência de associações cuja forma privilegiada é o partido.
3) A competição pressupõe a publicidade das opiniões e liberdade de expressão. A condição aqui postulada é a existência da opinião pública como fator de criação da vontade geral.
4) A repetição da consulta em intervalos regulares visa proteger a minoria garantindo sua participação em assembléias onde se decidem as questões de interesse público, e visa proteger a maioria contra o risco de perpetuação de um grupo no poder. As condições aqui postuladas são a existência de divisões sociais (maioria/minoria) e de parlamentos.
5) A potência política é limitada pelo judiciário, que não só garante a integridade do cidadão face aos governantes, como ainda garante a integridade do sistema contra a tirania, submetendo o
28
próprio poder do direito público e privado, a lei como defesa contra a tirania e, por conseguinte, a defesa da liberdade dos cidadãos (CHAUI, 2006, p. 147-148, grifos nossos).
A autora ainda pondera que esses critérios políticos e sociais configuram a
democracia como uma forma de vida social que se manifesta apenas no
processo eleitoral, na mobilidade do poder e, sobretudo, em seu caráter
representativo. Dessa forma, destaca o que diz a crítica marxista quanto ao
fato da a democracia, modelada sobre o mercado e sobre a desigualdade
socioeconômica, ser uma farsa bem sucedida, visto que os mecanismos por
ela acionados se destinam apenas a conservar a impossibilidade efetiva da
democracia, tornando-se óbvia sua fragilidade no capitalismo.
Santos (2007) argumenta que a manutenção da democracia representativa
sem redistribuição social faz com que vivamos em sociedades politicamente
democráticas, mas socialmente fascistas, e, ainda, que a facilidade de se
passar de um sistema de desigualdade para um sistema de exclusão está
produzindo uma situação nova de brutais desigualdades sociais que são
invisíveis, aceitas e naturalizadas, embora mantenham a idéia de Estado
democrático.
Nesse sentido, como nos alerta Oliveira (1999), para considerarmos uma
determinada formação social como democrática é preciso refletir sobre as
relações e práticas desenvolvidas em todas as instâncias de inserção de seus
membros nessa mesma sociedade, tendo a escola como uma de suas
instituições, trazendo consigo a questão da educação de qualidade e o seu
possível papel para a emancipação social. Existem para isso condições e
princípios gerais que podem servir de guia para pensar a construção da
democracia como uma utopia possível.
A autora é de opinião que os conceitos de igualdade e liberdade, chave nas
concepções democráticas, nunca puderam formar um par real em função tanto
da falta de liberdade nos sistemas sociais socialistas quanto da ausência de
29
igualdade nas democracias ocidentais. Ocorre, também, que a liberdade nas
democracias ocidentais e a igualdade nos países comunistas não estavam
presentes como se queria fazer crer. Conseqüentemente, as sociedades que
conhecemos estão mais distantes dos ideais democráticos do que o desejável.
Nesse sentido, a autora propõe a oposição dos dois termos, igualdade e
liberdade, em sua reflexão:
Quando se defende uma sociedade mais igualitária, na qual as oportunidades e direitos sejam os mesmos para todos, não se está considerando que uma sociedade democrática é aquela na qual as pessoas levam uma mesma vida. A igualdade de oportunidades não significa identidade nos caminhos trilhados, nem nas escolhas políticas, profissionais, ou pessoais. A igualdade pretendida é a de possibilidades de se escolher um caminho de vida próprio, de poder ser respeitado nessas escolhas e de poder se viver de modo digno e satisfatório em qualquer alternativa, de acordo com as próprias aptidões, desejos e valores. Concebendo-se a igualdade deste modo, não se pode aceitar a modelização da vida e o cerceamento da liberdade de escolha vivida nos regimes comunistas, nem as desigualdades nas oportunidades e direitos das sociedades capitalistas atuais, e nem, finalmente, a valorização excessiva de determinadas escolhas e talentos em detrimento do valor de outras (OLIVEIRA, 1999, p. 17).
A conclusão a que se chega é de que para que haja igualdade é necessário
haver respeito à diferença. Para a autora, embora seja claro que todas as
pessoas e os grupos sociais são diferentes, o tratamento desigual que as
sociedades capitalistas lhes têm dispensado, em função de suas escolhas e de
suas histórias, pode ser entendido como uma redução significativa do direito à
diferença. Algumas características culturais, físicas ou intelectuais, ou mesmo
comportamentos são considerados superiores a outros, e a diferença se
estabelece com base na criação de modelos que causam perdas, prejuízos
diretos vinculados ao caráter antidemocrático quanto às desigualdades e
“indiretos” quanto à diferença. O preço a pagar por ser diferente é
excessivamente alto. “Cabe, ainda, ressaltar: racismos e preconceitos outros
com os quais convivemos cotidianamente, se fundamentam precisamente no
entendimento da diferença/diversidade como desigualdade” (OLIVEIRA, 1999,
p. 18). Dessa forma, seja naturalizando as diferenças, seja igualando pela
30
identidade, os sistemas acabam afastando-se da construção de uma sociedade
igualitária e democrática.
Chaui (2006) também levanta, resumidamente, algumas condições para que a
democracia possa consolidar-se. No âmbito econômico, por exemplo, a
igualdade socioeconômica. Essa obviedade teórica pode dissimular um risco
histórico inscrito na noção de igualdade: a homogeneidade coletiva sob o
império de certas “racionalidades” imprescindíveis ao “bom” funcionamento da
economia (planejamento da organização, dirigismo e burocracia). Assim,
defende que recolocar a economia como condição social da democracia
passaria pelo questionamento da racionalidade econômica (maximizar os
ganhos e minimizar as perdas) e seus efeitos e soluções. É preciso perguntar o
que é, como, por que, e o que maximizar. Se a resposta a essas perguntas
ignorar a exploração da mais-valia, a tendência será de encontrar soluções nos
mecanismos empresariais de organização, que perpassam, paulatinamente, a
organização social em seu todo. Sem se questionar a qualidade das perdas e
dos ganhos, a igualdade socioeconômica fica reduzida à noção de uma
organização racional da produção e da distribuição.
Oliveira (1999) reflete sobre o pensamento marxista clássico, que via nas
questões de ordem econômica o principal problema social a ser resolvido para
a democratização da sociedade: a abolição da propriedade privada dos meios
de produção seria a questão central na construção da democratização social.
Por outro lado, nas sociedades capitalistas, a democratização se daria pelo
sufrágio universal. Nesse sentido, a autora posiciona-se dizendo que, se
podemos ainda supor que a socialização dos meios de produção seja
importante para a construção de uma sociedade democrática, é sob a condição
de que esta seja concebida como uma redistribuição mais igualitária desses
meios entre aqueles que trabalham e produzem. No entanto, a detenção mais
importante estaria sobre os meios de decisão e controle da atividade produtiva.
31
No que se refere ao sufrágio universal, Oliveira (1999) defende que é preciso
levar em consideração uma série de fatores que influenciam o “jogo” eleitoral,
tais como a eqüidade representativa na esfera parlamentar, acesso dos
segmentos às discussões antes das eleições; as desigualdades quanto ao
acesso às informações e peso político dos diversos grupos sociais; a
manipulação midiática e papel desempenhado pelo poder econômico, e outros.
“Em poucas palavras, esquece-se que a dominação pode ser legitimada
eleitoralmente, mesmo que seja uma dominação da maioria sobre a minoria – o
que com freqüência é confundido com democracia” (OLIVEIRA, 1999, p. 21).
Na esfera político-institucional, Chaui (2006) também levanta a questão do
pluralismo, da democracia como uma forma política aberta aos conflitos, com
capacidade de conviver com eles e acolhê-los, legitimando-os pela
institucionalização dos partidos e pela eleição. Seu questionamento se dá
justamente porque se omite, levando-se em consideração a esfera econômica,
a questão da qualidade: o elogio ao pluralismo como essência da democracia
pode dissimular o fato de que um partido, seja ele qual for, carrega dentro de si
a sociedade como um todo, exprimindo-a dentro de um ponto de vista
determinado (uma classe, uma fração de classe, um grupo).
A defesa dessa multiplicidade de posições como um signo da democracia não
significa a efetividade democrática: pode não haver na organização dos
partidos uma democracia interna. Nesse sentido, na medida em que as
desigualdades econômicas são transportadas para dentro dos partidos, é
preciso questionar como se dão as relações de autoridade internamente,
distinguindo seus membros quanto ao poder, ao saber e à informação.
Também é preciso saber em que medida os objetivos manifestos no plano
político (tomar o poder ou pressioná-lo), social (reunir e organizar setores
determinados da população) e ideológico (um teoria, um programa para a
maioria dos cidadãos) se coadunam com os objetivos latentes (tomar o poder e
redistribuí-lo clientelística, hierárquica e igualmente), verificando-se se seus
32
militantes vêem essas relações como provisórias ou como protótipo de uma
nova sociedade democrática.
Oliveira (1999) considera importante destacar que, na medida em que se
consideram legítimas e democráticas as decisões tomadas pelos governantes
eleitos, se fecha a porta para as discussões políticas, sociais e éticas que
poderiam justificar ou questionar tais decisões, pois adquirem legitimidade
imediata, visto que decorrem de discussões “democráticas”, e a legalidade
deixa de ser conseqüência da legitimidade. Nesse sentido, legalidade também
pode servir de dominação.
A autora leva seu pensamento sobre legitimidade e legalidade ao ponto de
rever a idéia de direitos individuais e direitos coletivos diante de equívocos com
que têm sido tratados: questiona a legitimidade de alguns direitos individuais
como privilégios. Para ela, a hipertrofia dessa noção nas sociedades ocidentais
contemporâneas tem levado a um crescente afastamento das noções de
solidariedade, cooperação, coletividade, porque as pessoas têm trabalhado
para garantir seus próprios direitos, sem considerar a validade social ou ética
intrínseca, provocando o desrespeito ao outro, legitimando poderosos,
prejudicando a democracia. Do ponto de vista dos direitos coletivos, existe a
mesma lógica, pela qual o direito à livre associação tem legitimado toda sorte
de associacionismo corporativista na ausência de discussão sobre a
legitimidade das reivindicações de diversos grupos legais. Nesse sentido,
tornam-se direitos de autodefesa de interesses, que, legitimados a priori,
asseguram a dominação de grupos de pressão mais bem situados em relação
a outros.
Dessa maneira, alerta para o risco que corre o pluralismo, cada vez mais
neutralizado pela modelização de idéias e parâmetros dominantes. “O
pluralismo verdadeiro pressupõe e exige liberdade e autonomia de ação e
pensamento e, principalmente, respeito mútuo das diferenças [...]” (OLIVEIRA,
33
1999, p. 24), o que, segundo a autora, não tem sido regra das sociedades
ocidentais contemporâneas.
Para Chaui (2006), uma das condições mais prementes da democracia é o
direito ao saber, à informação, porque incide sobre as outras
Seja qual for o estatuto econômico, a posição dentro de um sistema global de dependências sociais, um indivíduo participa da vida social em proporção ao volume e à qualidade das informações que possui, mas, especialmente, em função de sua possibilidade de acesso às fontes de informação, de suas possibilidades de aproveitá-las e, sobretudo, de sua possibilidade de nelas intervir como produtor do saber. Isso significa que nas discussões acerca das condições sociais da democracia algumas questões merecem ser focalizadas: a) Como os indivíduos recebem a informação? b) Quais as informações que lhes são dadas? c) Quando são? d) Quem as dá? e) Com que fim as recebem – para serem fixados em certos pontos determinados do sistema social ou para dar-lhes liberdade de trânsito entre um setor e outro? f) Podem os indivíduos tirar igual partido das mesmas informações, ou a homogeneidade serve apenas para ocultar uma desigualdade social e econômica reforçada pela própria “igualdade” de informações, aceita como algo de que nem todos poderão tirar frutos? (CHAUI, 2006, p. 153).
A autora continua sua análise, dizendo que, em sociedades não democráticas
uma fórmula rege o processo da informação e poder: “[...] não é qualquer um
que pode dizer qualquer coisa a qualquer outro em qualquer lugar sob qualquer
circunstância. Há, portanto, regras de interdição quanto ao emissor, ao
receptor, à mensagem, seu tempo e seu lugar” (CHAUI, 2006, p. 153).
Chaui (2006) questiona a noção de competência em sociedades que
desenvolveram a idéia de cultura de massa, criando duas poderosas
abstrações gêmeas: o discurso competente (a fala do saber do especialista) e
a massa (o agregado amorfo e sem fisionomia dos receptores do
conhecimento).
A noção de competência tem a função precisa de marcar a desigualdade numa esfera que não é mais aquela tradicional da ideologia burguesa (a desigualdade natural das capacidades e talentos), mas uma outra, produzida pela sociedade planificada e organizada: a desigualdade entre os detentores do saber e os despossuídos. Todavia, este aspecto não seria tão poderosamente
34
conservado não fosse compensado por um outro: a magia dos meios de comunicação que prometem a todos a possibilidade de alcançar e deter esse saber. O efeito desse procedimento consiste, na verdade, em recriar novas barreiras e desigualdades, porém muito mais sutis: agora, as barreiras e distâncias são erguidas entre cada indivíduo e sua própria experiência. Com efeito, a noção de competência invade toda a sociedade” (CHAUI, 2006, p. 154).
Na visão da autora, a noção de competência acrescenta à regra da interdição,
que pesa sobre o saber, a regra da exclusão. Dessa forma, entre o professor e
o aluno, por exemplo, interpõe-se o saber pedagógico; entre o indivíduo e seu
corpo, o discurso sexológico; entre a mãe e a criança, a puericultura e a
pediatria... Revistas de divulgação cultural, a televisão “educativa”, os livros de
“ciência” não só reforçam a idéia de competência como intimidam
violentamente a “massa” dos incompetentes, pois ser não-competente é ser
mais do que “menor”, é ser a-social. Acrescenta-se a essas duas regras, uma
terceira: o monopólio da informação e, conseqüentemente, do saber e sua
manipulação. Sua gravidade anuncia a possibilidade de uma caricatura de
democracia no plano da cultura: a cultura popular, sua manipulação
demagógica, que exibe a criatividade das “ordens inferiores” fazendo delas um
repositório das “tradições nacionais”; a cultura como coisa pública e fazer do
coletivo, como algo a que todos têm acesso, todos comunicando-se com todos.
Assim, Chaui (2006) conclui que, se pudéssemos resumir a questão das
condições sociais da democracia, talvez devêssemos recuperar o conceito de
alienação e reificação, reabrindo a discussão sobre a divisão social do trabalho
como divisão de classe para e pela exploração da mais-valia, realizada não
pelo Estado, mas através do Estado. Para a autora, de um lado das
discussões, reduz-se a democracia à esfera estrita político-institucional e se
fixam transformações do aparelho de Estado, feitas “pelo alto”, sob a lente dos
dominantes. Do lado socialista, o foco no econômico parece fazer com que a
discussão se realize “de baixo”, enfatize a igualdade, contrapondo-se a
discussão liberal que enfatiza a liberdade, em termos estritamente históricos.
35
Nos dois casos, a liberdade defendida por uns e a igualdade defendida por
outros, deixam de fora a questão do poder.
Nesse sentido, Oliveira (1999), ao trabalhar o conceito de liberdade real
estabelece uma relação entre liberdade e poder de participação nos processos
decisórios.
A liberdade pode ser concebida como uma aquisição efetiva do poder de autodeterminação da própria existência, em tudo que esta comporta. Neste caso, ela só pode ser efetiva se todo indivíduo livre puder intervir nos processos decisórios relacionados a todos os aspectos de sua vida pessoal e social. Esta liberdade só é possível numa organização social na qual as relações socais sejam construídas a partir de discussões abertas a todos os interessados e, na qual, as normas de interação social sejam estabelecidas por meio de um acordo real entre os participantes, sem nenhum tipo de coerção. A validade destas discussões requer que os indivíduos que delas participam estejam conscientes das questões em jogo, das regras da discussão e dos diferentes interesses dos participantes. É preciso, ainda, que todos possam agir de modo autônomo, o que exige a ausência de mecanismos coercitivos e de dependência pessoal: política, social, psíquica ou intelectual entre uns e outros. Se é assim, a liberdade não pode ser confundida com um conjunto de direitos proclamados na legislação. Além disso, esses direitos proclamados precisam ser efetivamente exercidos pelo conjunto dos membros e grupos sociais da sociedade e outros, atualmente negligenciados, precisam passar a integrar a legislação. Cabe ainda dizer que a liberdade não deve ser confundida com suas “expressões físicas” como a liberdade de ir e vir etc. Ter liberdade é, antes de mais nada, dispor de possibilidades pessoais de autodeterminação da própria existência. A sua efetivação supõe, portanto, a formação de uma vontade de autodeterminação que possa encontrar na realidade uma possibilidade de concretização, tanto no nível material, quanto sob os aspectos intelectual, político e psicológico. Essa liberdade só pode ser construída se as condições materiais de vida forem minimamente satisfatórias, se o sistema político assegurar as liberdades formais e estiver aberto à realização de discussões a respeito de questões relacionadas à vida cotidiana da população, e, finalmente, se a educação e as condições sociais de seu desenvolvimento favorecerem o desenvolvimento das capacidades intelectuais, interativas e subjetivas dos indivíduos. Cabe ressaltar que tudo isso não se pode restringir a alguns segmentos da população – como é o caso na maior parte dos países ditos desenvolvidos – mas precisa se estender a toda a população (OLIVEIRA, 1999, p. 25-26).
Para que a democracia se realize toda a população deve ser contemplada com
as condições necessárias a que ela se efetive como fruto de conquistas
36
históricas em que a idéia de liberdade sempre caminha ao lado da idéia de
democracia e de autonomia, no sentido de autodeterminação. Assim, Oliveira
(1999) concluí que a democracia além de ser um sistema estatal, incorpora-se
à lógica cotidiana de indivíduos e grupos sociais em interação na sociedade.
A democracia é, portanto, um sistema de vida no qual a organização e a regulamentação dos processos de integração social são fundamentados no princípio da liberdade, entendida como direito à autodeterminação. É um sistema de vida, um modo cotidiano de efetivação das interações interpessoais que guia e orienta o conjunto das atividades de uma determinada comunidade. Deste modo, a construção da democracia exige não apenas a socialização dos meios de produção econômica como também a dos meios de decisão política, além da democratização dos sistemas de autoridade em todas as esferas da vida social. Subentende-se aqui que as condições de realização de uma democracia efetiva são dadas em função das possibilidades de participação autônoma dos diversos segmentos da sociedade nos processos decisórios e interativos. Entretanto, para interagir de modo autônomo, é preciso que os membros desses diversos grupos sociais possam ter desenvolvido alguma autonomia como indivíduos, o que torna o processo de construção da democracia uma espiral crescente – embora não linear – na qual as conquistas individuais vão potencializar novas conquistas coletivas e vice-versa (OLIVEIRA, 1999, p. 27).
Nesse sentido, Oliveira argumenta que a democracia pressupõe uma
possibilidade de participação ativa dos cidadãos “[...] no conjunto dos
processos decisórios que dizem respeito à sua vida cotidiana, sejam eles
vinculados ao poder do Estado ou a processos interativos nos demais espaços
estruturais nos quais estamos inseridos” (OLIVEIRA, 2003, p. 16).
Fechando a discussão sobre as condições da democracia tendo em vista os
objetivos de uma nova teoria de democracia sob o ponto de vista de Santos
(2005b), Oliveira resume como sendo os seguintes:
[...] alargar e aprofundar o campo político em todos os espaços estruturais da interação social, considerando que isso requer uma imaginação social que inclua novos exercícios de democracia, e novos critérios democráticos para avaliar as diferentes formas de participação política. A necessidade de ampliação do conceito de cidadania para além do princípio da reciprocidade e simetria entre direitos e deveres (p. 276) está também subentendida nesse processo. A cidadania passa a ser identificada não só como obrigação política vertical entre cidadãos e Estado mas também como
37
uma obrigação política horizontal entre cidadãos, o leva à revalorização do princípio de comunidade e, com ele, a idéia de igualdade sem mesmidade, a idéia de autonomia e a idéia de solidariedade (p. 278). Mais do que isso, a idéia de obrigação política horizontal é presente em todos os processos de interação social nos diferentes espaços estruturais pode ser considerada como uma das bases da construção da democracia social (OLIVEIRA, 2006, p. 69, grifos da autora).
Concluímos que a democracia social pressupõe um equilíbrio entre liberdade e
igualdade, e envolve a participação individual e coletiva dos sujeitos em
sociedade nos processos de decisão que dizem respeito à vida cotidiana. Por
conseguinte, “[...] uma determinada sociedade será tão mais democrática
quanto mais intensos e efetivos forem os mecanismos e processos decisórios
sobre os quais se funda” (OLIVEIRA, 2003, p. 16). O autora completa dizendo
que
A utopia da democracia como sistema social pressupõe o alargamento da eqüidade em todos os domínios da vida, o que torna necessária a repolitização global das práticas sociais para o seu desenvolvimento, entendendo-se que politizar significa identificar relações de poder e imaginar formas práticas de as transformar em relações de autoridade partilhada (SANTOS, 1995, p. 271). É nesse sentido que a luta em todos os espaços estruturais nos quais estamos inseridos se impõe como condição de construção democrática (OLIVEIRA, 2006, p. 137, grifos da autora).
Tendo em vista a reflexão feita com base no pensamento desses autores e a
indissociabilidade entre as teses de Santos de que não há democracia sem
condições democráticas, a democratização das práticas sociais requer a
democratização dos saberes e é condição para a democratização das
subjetividades, podemos concluir que as condições para a existência de uma
democracia mais democrática e participativa são, portanto, políticas e
epistemológicas. A sociedade democrática, assim como a participação cidadã,
depende do sucesso que obtiver para garantir que essas condições se
estendam a toda sociedade, na busca por sustentar a democracia como
princípio regulador das relações sociais nos espaços constitutivos de nossas
redes de subjetividades, saberes e práticas reais, que tecemos e nos tecem,
38
sendo de extrema importância que os processos de gestão democrática
alcancem a educação, a escola e a formação como uma alternativa para
promover a emancipação social.
2.2 PENSANDO A POSSIBILIDADE DE EMANCIPAÇÃO: FORMAS DE
CONHECIMENTO E GESTÃO
A nova teoria de democracia proposta por Santos (2005b, p. 271), em que “[...]
politizar significa identificar relações de poder e imaginar formas práticas de
transformá-las em relações de autoridade partilhada”, envolve, portanto, uma
repolitização global da prática social, tornando claras novas formas de
opressão e de dominação e cria novas oportunidades para o exercício da
democracia, da cidadania, e para a emancipação social.
Mas a possibilidade de se pensar uma nova teoria de democracia deve
considerar a impossibilidade de se determinar os rumos dos processos de
transformação social. É preciso levar em conta que “[...] a emancipação não é
mais que um conjunto de lutas processuais, sem fim definido. O que a
distingue de outros conjuntos de lutas é o sentido político da processualidade
das lutas” (SANTOS, 2005b, p. 277).
Então, o autor, ao mesmo tempo em que defende que as práticas sociais
alternativas gerarão formas de conhecimento alternativas, também defende
que, a fim de contribuírem para a ampliação da democracia, da cidadania e a
emancipação social, as soluções emancipatórias devem estar acompanhadas
não só do pensamento emancipatório, mas também da vontade de
emancipação, como em subjetividades rebeldes na luta contra os processos de
dominação e para que se aprofundem as lutas democráticas em todos os
espaços estruturais da prática social. Nesse sentido, emancipação envolve a
luta por diminuição/extinção de processos de dominação.
39
Essa é a ligação que se faz entre conhecimento e subjetividade: o conflito
epistemológico desdobra-se num conflito psicológico, o e que nos leva a
pensar que, se as alternativas existem, não devemos ater-nos somente às
condições objetivas que nos conduzem à desmoralização da vontade de
transformação, mas investir para fazer com que a vontade permaneça forte
como em subjetividades rebeldes. A ampliação da democracia implica a
superação de autoritarismos na busca por transformar as relações de poder em
relações de autoridade partilhada. Para que esses processos promovam a
emancipação social, devem ser protagonizados por subjetividades que
busquem a emancipação de uma forma processualmente democratizada.
Poderíamos dizer que, para Santos (2005a), a utopia da democracia social e,
por conseguinte, da emancipação social se assenta em duas condições: uma
nova epistemologia que recusa o fechamento de horizontes de expectativas e
possibilidades e cria alternativas, e uma nova psicologia que recusa
subjetividades conformistas e cria a vontade de lutar por alternativas.
Consideramos que essa linha de pensamento liga subjetividade, democracia,
gestão democrática e emancipação, e dois processos se destacam: o processo
de formação e o processo de gestão democrática. Nesse sentido, buscamos
explorar o pensamento de Santos (2001, 2005a, 2005b, 2007) e de outros
autores, com o intuito de abordar a questão da democratização das relações e
do conhecimento na transição paradigmática como condição para a
democratização e a emancipação social e suas implicações para a correlação
entre os processos de formação continuada de professores e de gestão
democrática da formação docente.
2.2.1 A questão do conhecimento na transição paradigmática segundo
Santos
O autor argumenta que estamos a passar por uma transição entre um
paradigma, que chama de dominante, moderno, advogando em favor de um
40
novo paradigma, o paradigma emergente, designado como “paradigma do
conhecimento prudente para uma vida decente”. Para essa compreensão,
sugere darmos continuidade às reflexões empreendidas pelos movimentos
sociais, entre eles os dos anos de 1960 sessenta, que representaram um dos
primeiros movimentos a questionar os excessos de regulação da modernidade
por meio de uma nova equação entre subjetividade, cidadania e emancipação.
Ao se concentrar na questão da democracia e suas características sob a
perspectiva da teoria crítica, Santos (2007, p. 17) argumenta que o problema
da emancipação social, como conceito absolutamente central da modernidade
ocidental, está no fato de ela ter sido organizada por meio de uma tensão entre
regulação e emancipação social. O autor faz uma crítica à epistemologia
dominante, dizendo:
[...] o que mais nitidamente caracteriza a condição sócio-cultural deste fim de século é a absorção do pilar da emancipação pelo da regulação, fruto da gestão reconstrutiva dos défices e dos excessos da modernidade confiada à ciência moderna e, em segundo lugar, ao direito moderno (SANTOS, 2005a, p. 55).
O desenvolvimento do pensamento de Santos (2005a) caminha no sentido de
considerar que a modernidade é sustentada por dois pilares: o pilar da
emancipação e o pilar da regulação, que deveriam funcionar em perfeito
equilíbrio e harmonia para a solução dos problemas que surgissem no decorrer
do desenvolvimento da sociedade moderna. O pilar da emancipação é
subdividido em três racionalidades: a racionalidade cognitivo-instrumental
(representada pela ciência), a racionalidade estético-expressiva
(representada pela arte e pela literatura) e a racionalidade moral-prática
(representada pela ética e pelo direito). O pilar da regulação é composto por
três princípios: o princípio do Estado (como pensado por Hobbes), que
consiste na obrigação vertical entre cidadãos e Estado; o princípio do Mercado
(como pensado por Locke), que consiste na obrigação horizontal individualista
e antagônica entre os parceiros do mercado; e o princípio da Comunidade
41
(como pensado por Rosseau), que consiste na obrigação política horizontal
solidária entre membros da comunidade e entre associações.
No entanto, segundo Santos (2005a), a racionalidade cognitivo-instrumental
gradualmente colonizou as outras duas (as racionalidades estético-expressiva
e a moral-prática), e, por sua vez, foi colonizada pelo princípio regulador do
mercado. A ciência tornou-se a principal força produtiva da sociedade
capitalista, levando a emancipação moderna a render-se à regulação, que não
promoveu a emancipação. Como conseqüência disso, segundo o autor,
encontramo-nos na situação de expandir nossa capacidade de agir, mas não
de prever as conseqüências de nossos atos, “[...] e, por isso, a previsão das
conseqüências da acção científica é necessariamente muito menos científica
do que a acção científica em si mesma” (SANTOS, 2005a, p. 58).
Para o autor, existem duas leituras dessa situação: 1) a ciência como “défice”,
visão que prevaleceu até agora, defendendo que nossa capacidade de prever
é deficitária diante da capacidade de produzir, por isso é preciso mais
progresso científico; 2) a ciência como “excesso”, uma leitura ainda marginal,
mas que tende a ganhar credibilidade, que põe em causa a noção de
progresso científico, em que a capacidade de agir é excessiva em relação à
capacidade de prever as conseqüências. Diante dessas duas leituras se
pergunta: Qual estaria certa? Porém responde a si mesmo que ambas e
nenhuma. Essa seria a ambigüidade da situação presente.
Seguindo em seu raciocínio, afirma que estamos de novo perplexos, diante da
perda de confiança epistemológica no potencial da ciência para resolução dos
problemas da humanidade. Nesse sentido, o autor propõe questionar as
contribuições positivas e negativas da ciência e a sua relação com a virtude,
pois é urgente darmos respostas a perguntas simples, como as de Rosseau,
que são capazes de lançar luz nova à nossa perplexidade. É preciso
questionar o valor do conhecimento dito ordinário ou vulgar, que nós, sujeitos
42
individuais e coletivos, criamos para dar sentido às nossas práticas e que a
ciência teima em considerar irrelevante, ilusório e falso.
Na visão de Santos (2001 e 2005a), o paradigma dominante ou moderno está
alicerçado no modelo de racionalidade da ciência moderna, constituída a partir
da revolução científica do século XVI, e foi desenvolvido nos séculos seguintes
basicamente no domínio das ciências naturais. Quando esse modelo de
racionalidade se estendeu às ciências sociais emergentes, então se passou a
falar de um modelo global (isto é, ocidental) de racionalidade científica que
admite variedade interna, mas que se defende ostensivamente de duas formas
de conhecimento não científico: o senso comum e as chamadas humanidades
ou estudos humanísticos (em que se incluiriam, entre outros, os estudos
históricos, filológicos, jurídicos, literários, filosóficos e teológicos).
Como um modelo global, a nova racionalidade científica “[...] é também um
modelo totalitário, na medida em que nega o caráter racional a todas as formas
de conhecimento que se não pautarem pelos seus princípios epistemológicos e
pelas suas regras metodológicas” (SANTOS, 2005a, p. 61). Esse é um
paradigma que admite só uma forma de conhecimento verdadeiro e revela uma
extrema e serena arrogância na atitude mental de seus protagonistas, em sua
confiança epistemológica, que os conduz a lutas contra todas as formas de
dogmatismo e de autoridade. Essa visão do mundo e da vida distingue
conhecimento científico de senso comum, homem de natureza e configura-se
como o que Santos (2005a) chamou de Primeira Ruptura (entre conhecimento
científico e senso comum).
Em seus pressupostos, a ciência moderna desconfia sistematicamente das
evidências, e o conhecimento científico opõe a razão entregue a si mesma à
razão da experiência ordenada. As idéias que resistem são as idéias
matemáticas, e o que não é quantificável é cientificamente irrelevante. O
método científico assenta-se na redução da complexidade: conhecer é dividir e
classificar para depois estabelecer relações sistemáticas entre as partes. O
43
conhecimento gerado é causal. Leis são criadas para prever o futuro, a
começar da observação de regularidades, partindo-se do pressuposto de
posição e tempo absolutos. Esse determinismo mecanicista é a base de um
conhecimento que se pretende utilitário e funcional, reconhecido mais pela
capacidade de dominar e transformar do que de compreender profundamente o
real.
O prestígio de Newton e das leis simples, que reduziam a complexidade da
ordem cósmica, converteu a ciência no modelo de racionalidade hegemônica,
transpassando os estudos das leis da natureza para o estudo das leis da
sociedade. Essas leis determinariam a evolução das sociedades e tornariam
possível prever os resultados das ações coletivas. “A consciência filosófica da
ciência moderna, que tivera no racionalismo cartesiano e no empirismo
baconiano as suas primeiras formulações, veio a condensar-se no positivismo
oitocentista” (SANTOS, 2005a, p. 65).
Daí a divisão do conhecimento científico em duas formas: a lógica matemática
e as ciências empíricas, de acordo com as quais, segundo o modelo das
ciências naturais, em sua vertente dominante, as ciências sociais nasceram
para ser empíricas, aplicando-se a elas os princípios epistemológicos e
metodológicos daquelas. Para Santos (2005a), há, no entanto, uma vertente
marginal cada vez mais seguida, que reivindica para as ciências sociais um
estatuto epistemológico e metodológico próprio, com base na especificidade
humana e na sua distinção radical em relação à natureza. Para o autor,
embora essas vertentes tenham sido consideradas antagônicas, uma sob o
jugo do positivismo e outra que dele se liberta, ambas reivindicam o monopólio
do conhecimento científico-social.
Porém Santos (2005a) apresenta uma leitura diferente dessas duas vertentes:
a primeira, representada pelos estudos científicos da sociedade sob o ponto de
vista epistemológico da “Física Social”, parte do pressuposto de que as
ciências naturais são uma aplicação de um modelo de conhecimento
44
universalmente válido, o único válido. Reconhece-se a diferença entre os
fenômenos naturais e os sociais, sendo necessária a redução dos fatos sociais
às dimensões externas, observáveis e mensuráveis. Assim, por maiores que
sejam as diferenças entre os fenômenos naturais e os fenômenos sociais, seria
sempre possível estudar os últimos como se fossem os primeiros, pois não
haveria diferenças qualitativas no processo científico. No entanto, esse
processo não é fácil, existindo ainda um longo caminho a percorrer para se
compatibilizar com os critérios das ciências naturais. Nasce daí a idéia de
atraso das ciências sociais em relação às ciências naturais, que pode ser
vencida com tempo e dinheiro.
Na segunda vertente, as ciências sociais reivindicam para si um estatuto
metodológico próprio, pois os obstáculos entre as duas ciências seriam
intransponíveis. Seu argumento central é que a ação humana é radicalmente
subjetiva, e o comportamento humano não pode ser descrito e explicado com
base nas suas características exteriores e objetiváveis. Um mesmo ato externo
pode corresponder a sentidos de ação muito diferentes. O conhecimento a que
se chega é intersubjetivo, descritivo e compreensível e seu método, é
qualitativo.
Para Santos (2005a), no entanto, embora a segunda vertente assuma uma
postura antipositivista e sua tradição filosófica seja fenomenológica, as duas
vertentes compartilham a distinção natureza/ser humano, visão mecanicista da
natureza, subsidiária das ciências naturais, que mais tarde se sobrepôs como
distinção entre natureza/cultura, a distinção homem/animal, o que deixa revelar
a prioridade cognitiva das ciências naturais, pois, “[...] se por um lado, se
recusam as condicionantes biológicas do comportamento humano, pelo outro
usam-se argumentos biológicos para fixar a especificidade do ser humano”
(SANTOS, 2005a, p. 67). Conclui-se que ambas pertencem ao paradigma da
ciência moderna (o paradigma dominante), mesmo que a segunda vertente
contenha componentes da transição paradigmática que estamos a viver.
45
O autor descreve a crise do paradigma dominante como resultado de uma
pluralidade de condições sociais e teóricas, em que o próprio aprimoramento
do conhecimento permitiu ver a fragilidade dos pilares em que se funda. Esses
pilares começaram a ser abalados em virtude de quatro condições teóricas, a
começar pelo primeiro rombo, representado pela teoria da relatividade de
Einstein, que revolucionou nossas concepções de espaço e de tempo,
revelando que não há simultaneidade universal. O tempo e o espaço absolutos
de Newton deixaram de existir, influenciando as leis da Física e da Geometria,
que se baseiam em medições locais. Dessa forma, o autor destaca que o rigor
da medição é posto em causa pela Mecânica Quântica, resvalando no rigor do
veículo formal em que a medição é expressa, isto é, a Matemática.
O segundo rombo está relacionado ao princípio da incerteza de Heisenberg,
quando diz que “[...] não conhecemos o real senão o que nele introduzimos, ou
seja, que conhecemos do real senão a nossa intervenção nele” (SANTOS,
2005a, p. 69). Assim, existe uma interferência estrutural do sujeito no objeto
observado.
Oliveira (2006) destaca três idéias que emergem do princípio heisenberguiano:
Em primeiro lugar, se o rigor do conhecimento é estruturalmente limitado, os resultados a que se pode chegar serão sempre aproximados, levando à conclusão de que as leis da Física são apenas probabilísticas. Em segundo lugar, devido ao fato de que a totalidade do real não se reduz à soma das partes em que ela foi dividida para ser observada e medida, a hipótese do determinismo mecanicista é inviabilizada. Finalmente, aprende-se que a distinção sujeito/objeto é muito mais complexa do que parecia à primeira vista (OLIVEIRA, 2006, p. 21-22).
O terceiro rombo surge a partir daí e de outras inovações teóricas, quando foi
possível questionar o rigor da Matemática como também “[...] redefini-lo
enquanto forma de rigor que se opõe às outras formas de rigor alternativo, uma
forma de rigor cujas condições de êxito na ciência moderna não podem
continuar a ser consideradas como naturais e óbvias” (SANTOS, 2005, p. 70).
46
A quarta condição teórica é constituída pelos movimentos científicos que, junto
com as inovações teóricas, proporcionaram uma profunda reflexão
epistemológica sobre o conhecimento científico que enfocou seu conteúdo e
sua forma.
Particularmente relevante é o trabalho de Ilya Prigogine, segundo o qual, em sistemas abertos, que funcionam nas margens da estabilidade, a evolução se explica por flutuações de energia, que, em momentos nunca inteiramente imprevisíveis, desencadeiam reações, por via de mecanismos não-lineares, que transformam irreversivelmente o sistema anterior através de uma lógica de auto-organização. Assim, essa irreversibilidade indica que os sistemas abertos são produto de sua história (OLIVEIRA, 2006, p. 23).
Oliveira (2006) resume que a imprevisibilidade do comportamento do sistema,
os mecanismos não-lineares que presidem sua transformação e a
irreversibilidade desta última são três fortes argumentos para a formação de
um novo paradigma científico, menos cientificista e mais adequado às
realidades sociais, educativas e escolares. Para autora, essas idéias
ressaltadas na obra de Santos (2001, 2005a) têm grande possibilidade de
aproveitamento para a educação, na medida em que permitem recolocar em
debate os modos de pesquisar a escola e produzir conhecimentos sobre as
práticas e saberes que lhe são específicos:
A substituição da idéia de lei universalmente válida pela idéia da probabilidade [...] permite conceber possibilidades de práticas para além daquilo que os modelos fechados podem explicar e considerar. A idéia de que a realidade é mais do que a soma das partes em que foi/é dividida para fins analíticos implica a consideração não só dos elementos perceptíveis e organizáveis para se pensar o real, mas também das relações entre eles. [...] Fragmentar o real e tentar entendê-lo mediante a compreensão de suas partes é, portanto, procedimento impróprio para captar a complexidade da realidade social e, portanto, escolar. Finalmente, a impossibilidade da cisão absoluta entre sujeito e objeto põe em questão a própria idéia do pesquisador/observador neutro da realidade e o coloca dentro daquilo que pesquisa, voluntariamente ou não, impossibilitando, portanto, de tecer conhecimentos totalmente neutros e objetivos a serem validados em virtude dessas supostas características (OLIVEIRA, 2006, p. 22).
47
A análise de Santos (2005a) sobre o conhecimento científico na modernidade
questiona o conceito de lei e de causalidade que lhe está associado e aponta a
impossibilidade de separar, de modo perfeito e inequívoco, as condições
iniciais que dão origem aos fenômenos. Nesse sentido, é possível dizer que
todo conhecimento é imperfeito.
No que diz respeito ao conteúdo desse conhecimento, o autor conclui que,
porque se fecha a outros saberes, esse é um conhecimento desencantado e
triste, quantificador e aviltante da natureza e do próprio cientista, um ser
humano. Além disso, a simplicidade das leis “[...] constitui uma simplificação
arbitrária da realidade que nos confina a um horizonte mínimo para além do
qual outros conhecimentos da natureza, provavelmente mais ricos e com
interesse humano, ficam por conhecer” (SANTOS, 2001, p. 32). É um
conhecimento que ganha rigor, mas perde em riqueza, ou seja,
[...] ao conceder todo o poder ao investigador, considerando seu campo de ação como objeto apenas, o rigor científico de inspiração matemática e quantitativa retira das práticas sociais toda a sua riqueza e politicidade, visto ser impossível quantificar a intencionalidade política (OLIVEIRA, 2006, p. 27, grifos nossos).
Decorre daí a idéia de que a precisão do conhecimento é precária, porque nem
os limites qualitativos nem os quantitativos são superáveis, visto que a precisão
é estruturalmente limitada por diversas razões, não sendo possível superá-las
nem por maiores quantidades de investigação, nem por maior precisão que os
instrumentos de medida consigam alcançar: a experiência rigorosa seria
irrealizável.
Segundo Santos (2001), a precariedade do conhecimento científico também se
evidencia no caráter “distorcivo” do conhecimento centrado na observação das
partes: se o conhecimento só sabe avançar pela via da progressiva
parcelização do objeto, bem representada nas crescentes especializações da
ciência, é também por essa via que se confirma a irredutibilidade das
totalidades às partes que as constituem. As fronteiras entre sujeito e objeto e
48
os fatos observados têm escapado ao regime prisional a que a ciência os
sujeita, sendo possível pensar, segundo Oliveira (2006), numa teia complexa
de relações entre objetos, às vezes mais importantes do que o objeto em si.
O autor caracteriza a situação intelectual do tempo presente dizendo:
Depois da euforia cientista do século XIX e da consequente aversão à reflexão filosófica, bem simbolizada pelo positivismo, chegamos a finais do século XX possuídos pelo desejo quase desesperado de complementarmos o conhecimento das coisas com o conhecimento de nosso conhecimento das coisas, isto é, com o conhecimento de nós próprios. A segunda faceta desta reflexão é que ela abrange questões que antes eram deixadas aos sociólogos. A análise das condições sociais, dos contextos culturais, dos modelos organizacionais da investigação científica, antes acantonada no campo separado e estanque da sociologia da ciência, passou a ocupar papel de relevo na reflexão epistemológica (SANTOS, 2005a, p. 71).
Em seu parecer, esse é um cenário de crise paradigmática que está longe de
ser um pântano cinzento, mas acena com a possibilidade de um paradigma
emergente trazer consigo um otimismo e uma racionalidade mais plural. Nesse
sentido, advoga em favor de um novo paradigma: o paradigma de um
conhecimento prudente para uma vida decente. Mas, como o próprio autor
afirma, isso só pode ser obtido por via especulativa.
Eu falarei do paradigma de um conhecimento prudente para uma vida decente. Com esta designação, quero simplificar que a natureza da revolução científica que atravessamos é estruturalmente diferente da que ocorreu no século XVI. Sendo uma revolução científica que ocorre numa sociedade ela própria revolucionada pela ciência, o paradigma a emergir dela não pode ser apenas um paradigma científico (o paradigma de um conhecimento prudente), tem de ser também um paradigma social (o paradigma de uma vida decente) (SANTOS, 2005a, p. 74).
Para maior compreensão do conhecimento no novo paradigma proposto por
Santos (2001, 2005a), trataremos dos dois tipos de conhecimento identificados
pelo autor no paradigma moderno ou dominante.
49
Embora o autor sustente que “[...] não há um conhecimento geral; tampouco há
uma ignorância geral. Somos ignorantes de certo conhecimento, mas não de
todos” (SANTOS, 2007, p. 52) e que, sendo assim, “[...] todo saber é saber
sobre uma certa ignorância e, vice-versa, toda ignorância é ignorância de um
certo saber” (SANTOS, 2005a, p. 78), ele nos fala sobre a existência, na matriz
da modernidade, de dois tipos de conhecimento: o conhecimento-regulação e o
conhecimento-emancipação. Eles diferenciam-se entre si pela trajetória que
perfazem entre um ponto A, designado por ignorância, para um ponto ou
estado B, designado por saber.
O conhecimento emancipação é a trajectória entre um estado de ignorância que designo por colonialismo e um estado de saber que designo por solidariedade. O conhecimento-regulação é uma trajetória entre um estado de ignorância que designo por caos e um estado de saber que designo por ordem (SANTOS, 2005a, p. 78, grifos nossos).
Se o primeiro modelo de conhecimento progride do colonialismo para a
solidariedade, o segundo progride do caos para a ordem.
O colonialismo consiste na ignorância da reciprocidade e na incapacidade de conceber o outro a não ser como objecto. A solidariedade é o conhecimento obtido no processo, sempre inacabado, de nos tornamos capazes de reciprocidade através da construção e do reconhecimento da intersubjectividade. A ênfase na solidariedade converte a comunidade no campo privilegiado do conhecimento emancipatório (SANTOS, 2005a, p. 81, grifos nossos).
Nos termos do paradigma da modernidade, a vinculação recíproca entre o pilar
da regulação e o pilar da emancipação implica que esses dois modelos de
conhecimento se articulem em equilíbrio dinâmico. Isso significa que o poder
cognitivo da ordem alimenta o poder cognitivo da solidariedade, e vice-versa.
Porém, quando a racionalidade cognitivo-instrumental da ciência e da
tecnologia foi-se impondo às demais, esse equilíbrio foi quebrado. O
conhecimento-regulação conquistou primazia sobre o conhecimento-
50
emancipação: a ordem transformou-se na forma hegemônica de saber e o
caos, na forma hegemônica de ignorância. A solidariedade foi recodificada
como caos (estado de ignorância), e o colonialismo foi recodificado como
ordem (estado de saber).
Para sair dessa situação, Santos (2005a) diz ser preciso reavaliar o
conhecimento-emancipação e conceder-lhe primazia sobre o conhecimento-
regulação. Veremos, no entanto, que isso implica, de um lado, que se
transforme a solidariedade numa forma hegemônica de saber, e de outro lado,
que se reafirme o caos como uma forma de saber e não de ignorância.
O autor apresenta-nos o paradigma emergente como um paradigma de um
conhecimento prudente para uma vida decente através de quatro teses:
1ª tese – Todo conhecimento científico-natural é científico-social. A
distinção dicotômica entre as ciências naturais e as ciências sociais deixou de
ter utilidade e sentido. O conhecimento do paradigma emergente é não-
dualista, “[...] fundado na superação das distinções entre natureza e cultura,
natural e artificial, vivo e inanimado, mente e matéria, observador e observado,
sujeito e objeto, coletivo e individual, animal e pessoa” (OLIVEIRA, 2006, p.
29). O reconhecimento do colapso dessa dicotomia repercute nas disciplinas
científicas que sobre ela se fundavam e revaloriza o papel do sujeito na
produção do conhecimento, assim como aproxima as ciências naturais das
sociais.
Santos (2001) observa uma crescente apropriação dos modelos explicativos
das ciências sociais por parte das ciências naturais, o que poderia caracterizar
que essa transição se dá sob a égide da primeira. No entanto, isso não seria
suficiente para caracterizar o conhecimento no paradigma emergente, porque
não basta apontar a tendência para tal superação. É preciso conhecer o
conteúdo e o sentido dessa superação.
51
No contexto desse novo paradigma, os estudos humanísticos emergem desde
que sejam transformados, pois resistiram à separação entre sujeito e objeto,
preferindo a compreensão do mundo ao invés da sua manipulação. Oliveira
(2006) acentua que a nova concepção humanística dos conhecimentos sociais,
para ser catalisadora da progressiva fusão entre ciências naturais e ciências
sociais, “[...] precisa colocar, além da pessoa no centro do conhecimento, a
natureza dentro da pessoa” (OLIVEIRA, 2006, p. 31).
2ª tese – Todo conhecimento é local e total. No paradigma emergente, o
conhecimento é total, porque tem como horizonte a totalidade. Seu rigor não se
assenta na separação arbitrária que espartilha o real, como proposto pela
ciência moderna, em que o aumento do rigor do conhecimento caminha
paralelamente à crescente arbitrariedade e à necessidade de proteção e
controle das fronteiras entre os diferentes conhecimentos. Esse conhecimento
é disciplinar e disciplinado na medida em “[...] que segrega uma organização
do saber orientada para policiar as fronteiras entre as disciplinas e reprimir os
que quiserem transpor” (SANTOS, 2001, p. 46). A excessiva especialização e
disciplinarização do conhecimento acaba por tornar o cientista um ignorante
especializado.
O conhecimento, sendo total, também é local, pois “[...] constitui-se a partir de
temas que em dado momento são adoptados por grupos sociais concretos
como projectos de vida locais [...]” (SANTOS, 2001, p. 47). Nesse sentido, no
paradigma emergente, a fragmentação do conhecimento é temática e não
disciplinar, como se os temas fossem galerias por onde os conhecimentos
progridem ao encontro dos outros. “Desse modo, entender-se-á que o
conhecimento avança à medida que o seu objeto se amplia, pela diferenciação
e pelo alastramento de raízes em busca de novas e mais variadas interfaces”
(OLIVEIRA, 2006, p. 32-33).
Sendo local, o conhecimento “[...] é também total porque reconstitui os
projectos cognitivos locais, salientando-lhes a sua exemplaridade, e por essa
52
via transforma-os em pensamento total ilustrado” (SANTOS, 2001, p. 48). Isso
se dá porque, para Santos (2001), a ciência no paradigma emergente é
análoga e tradutora, ou seja, “[...] incentiva os conceitos e as teorias
desenvolvidos localmente a emigrarem para outros lugares cognitivos, de
modo a poderem ser utilizados fora do seu contexto de origem” (SANTOS,
2001, p. 48). Diferente do conhecimento científico moderno, que concebe pela
operacionalização e generaliza pela quantificação, o conhecimento pós-
moderno concebe pela imaginação e generaliza pela qualidade e pela
exemplaridade. O autor destaca:
O conhecimento pós-moderno sendo total, não é determinista e, sendo local, não é descritivista. É um conhecimento sobre as condições das possibilidades da acção humana projectada a partir de um espaço-tempo local. Um conhecimento deste tipo é relativamente imetódico, constitui-se a partir de uma pluralidade metodológica. Cada método é uma linguagem e a realidade responde na língua em que é perguntada. Só uma constelação de métodos pode captar o silêncio que persiste entre cada língua que pergunta. Numa fase de revolução científica como a que atravessamos, essa pluralidade de métodos só é possível mediante transgressão metodológica (SANTOS, 2001, p. 48 – 49, grifos nossos).
Essa transgressão metodológica assim como a tolerância discursiva na ciência
pós-moderna já se encontram em sinais visíveis no estilo, critério e imaginação
pessoal do cientista.
3ª tese – Todo conhecimento é autoconhecimento. Santos (2001), no
decorrer de sua análise, defende a idéia de que o ato e o produto do
conhecimento são inseparáveis. “Todo conhecimento é auto-conhecimento. É
criação, e não descoberta. Assim, os pressupostos metafísicos e sistemas de
crenças e valores não vêm antes nem depois da explicação científica; são
parte integrante dela” (OLIVEIRA, 2006, p. 36).
Para o autor, a ciência moderna consagrou o homem como sujeito epistêmico
e o expulsou como sujeito empírico, pois, um conhecimento dito objetivo e
rigoroso não toleraria a interferência de particularidades humanas. Foi nessa
base que se consolidou a separação sujeito/objeto e que têm implicações e
53
contradições ocultas pela sua linearidade. No entanto, essa distinção nunca foi
pacífica nas ciências sociais. A distinção epistemológica e a distinção empírica
tiveram que se articular metodologicamente, e, com a consolidação de uma
nova dignidade da natureza, em que se percebeu que a exploração da
natureza era também a exploração do homem, o desconforto sentido nas
ciências sociais, provocado pela distinção sujeito/objeto, propaga-se às
ciências naturais e sujeito regressa na veste de objeto.
Santos (2001) completa seu pensamento dizendo que hoje nada há de
científico em privilegiarmos uma forma de conhecimento que se assente na
previsão e no controle dos fenômenos naturais e considerarmos a ciência
como a única forma de explicação. Para o autor, isso é um juízo de valor. “A
explicação científica dos fenómenos é autojustificação da ciência enquanto
fenómeno central da nossa contemporaneidade. A ciência é, assim,
autobiográfica” (SANTOS, 2001, p. 52). Ela está estreitamente ligada à
trajetória de vida do cientista e da comunidade científica que produz os
trabalhos científicos. Ela legou-nos um conhecimento funcional que alargou
extraordinariamente as nossas perspectivas de sobrevivência, mas, hoje,
precisamos de um conhecimento compreensivo e íntimo, que não nos separe,
mas nos una àquilo que estudamos.
A incerteza do conhecimento, vista antes como uma limitação da ciência,
convida-nos à prudência diante de um mundo que, embora domesticado, nos
mostra a precariedade do sentido de nossa vida. Assim sendo, a ciência
emergente é mais contemplativa do que ativa; sua qualidade afere-se menos
pelo que controla ou faz funcionar do que pela satisfação pessoal que dá a
quem a ela acede ou com ela partilha; a criação do cientista no paradigma
emergente assemelha-se à criação artística, porque pretende que a dimensão
ativa da transformação do real seja subordinada à contemplação do resultado
da obra.
54
Essa dimensão estética do conhecimento também aproxima o discurso da
ciência do discurso da crítica literária, que anuncia a subversão da relação
sujeito/objeto. Para Santos (2001), na crítica literária, o autor é o objeto de
estudo diante do qual o crítico não passa de um sujeito secundário. Ao tentar
sobressair no confronto com o autor estudado, pode-se falar de uma batalha
entre sujeitos, e não entre um sujeito e um objeto. Um é a tradução do outro e
ambos são criadores de textos escritos em línguas distintas, mas conhecidas e
necessárias para aprender a gostar das palavras e do mundo, como um
conhecimento nos ensina a viver e traduz-se num saber prático.
4ª tese – Todo conhecimento científico visa constituir-se em senso
comum. O autor reafirma que a ciência produz conhecimentos e
desconhecimentos, transforma o cientista em um ignorante especializado e o
cidadão comum em um ignorante generalizado. Mas “[...] a ciência pós-
moderna sabe que nenhuma forma de conhecimento é, em si mesma, racional;
só a configuração de todas elas é racional” (SANTOS, 2001, p. 55). Por isso
tenta dialogar com outras formas e se deixa penetrar por elas, principalmente
pelo senso comum.
O senso comum é tido pelo autor como a mais importante de todas as formas
de conhecimento, pois, sendo prático e vulgar, é o que orienta as nossas ações
e dá sentido à nossa vida no cotidiano. Oliveira (2006) acrescenta que para
Santos, o senso comum é “[...] o menor denominador comum daquilo em que
um grupo ou um povo colectivamente acredita, ele tem, por isso, uma vocação
solidarista e transclassista” (SANTOS, 1989, p. 40, apud OLIVEIRA, 2006, p.
44). Nesse sentido, a ciência é que se torna conservadora, quando se
apresenta como a única forma de conhecimento válida. Além disso, é preciso
levar em consideração que as sociedades produzem diferentes sensos
comuns, dependendo dos contextos em que são produzidos (se democráticos
ou não, se mais ou menos democráticos, classistas, solidários, entre outros).
Essa noção permite ver o senso comum para além da oposição que propôs a
ciência moderna (racionalidade, ciência/irracionalidade, senso comum).
55
Embora o senso comum tenha sido considerado superficial, ilusório e falso pela
ciência moderna e tenda a ser um conhecimento mistificado, mistificador, e
conservador, a ciência pós-moderna procura reabilitá-lo por suas virtualidades
que enriquecem nossa relação com o mundo. Ele “[...] tem uma dimensão
utópica e libertadora que pode ser ampliada através do diálogo com o
conhecimento científico. Essa dimensão aflora em algumas das características
do conhecimento do senso comum” (SANTOS, 2001, p. 56). São elas:
O senso comum faz coincidir causa e intenção; subjaz-lhe uma visão do mundo assente na acção e no princípio da criatividade e da responsabilidade individuais. O senso comum é prático e pragmático; reproduz-se colado às trajetórias e às existências de vida e de um dado grupo social e nessa correspondência se afirma fiável e securizante. O senso comum é transparente e evidente; desconfia da opacidade dos objectivos tecnológicos e do esoterismo do conhecimento em nome do princípio da igualdade do acesso ao discurso, à competência cognitiva e à competência lingüística. O senso comum é superficial porque desdenha das estruturas que estão para além da consciência, mas, por isso mesmo, é exímio em captar a profundidade horizontal das relações conscientes entre pessoas e entre pessoas e coisas. O senso comum é indisciplinar e imetódico; não resulta de uma prática especificamente orientada no suceder quotidiano da vida. O senso comum aceita o que existe tal como existe; privilegia a acção que não produza rupturas significativas no real. Por último, o senso comum é retórico e metafórico; não ensina, persuade (SANTOS, 2001, p. 56, grifos nossos).
Santos (2001) argumenta que essas são características do senso comum que
servem para pensarmos a sua potencialidade libertadora. Seguindo o
pensamento do autor, Oliveira (2006) aponta que o próximo passo a ser dado é
na direção da promoção da dupla ruptura epistemológica “[...] que reaproxime,
pela sensocomunicação da ciência, o conhecimento científico do conhecimento
do senso comum e, portanto, do cidadão comum” (OLIVEIRA, 2006, p. 41-42).
Essa seria uma compreensão ampliada da ciência como prática social de
conhecimento.
À luz do que ficou para trás sobre o paradigma emergente, o senso comum
interpretado pelo conhecimento científico pode estar na origem de uma nova
racionalidade feita de racionalidades. O rompimento como a primeira ruptura,
56
que permitiu à ciência moderna separa-ser do senso comum é o que Santos
(2005a) chama de dupla ruptura, isto é, um segundo ato epistemológico
importante a fazer a fim de transformar o conhecimento científico num novo
senso comum.
Na ciência moderna a ruptura epistemológica simboliza o salto qualitativo do conhecimento do senso comum para o conhecimento científico; na ciência pós-moderna o salto mais importante é o que é dado do conhecimento científico para o senso comum. O conhecimento pós-moderno só se realiza enquanto tal na medida em que se converte em senso comum. [...] A ciência pós-moderna, ao sensocomunicar-se, não despreza o conhecimento científico que produz tecnologia, mas entende que, tal como o conhecimento se deve traduzir em autoconhecimento, o desenvolvimento tecnológico deve traduzir-se em sabedoria. A prudência é a insegurança assumida e controlada (SANTOS, 2001, p. 57).
Para o autor, o conhecimento-emancipação “[...] tem de romper com o senso
comum conservador, mistificador, não para criar uma forma autónoma e
isolada de conhecimento superior, mas para se transformar a si mesmo num
senso comum novo e emancipatório” (SANTOS, 2005a, p. 107), pois o
conhecimento-emancipação só se constitui enquanto tal na medida em que se
converte em senso comum. Ao tornar-se senso comum, “[...] não despreza o
conhecimento que produz tecnologia, mas entende que tal como o
conhecimento deve traduzir-se em autoconhecimento, o desenvolvimento
tecnológico deve traduzir-se em sabedoria de vida” (SANTOS, 2005a, p. 108).
É importante destacar que o senso comum emancipatório é um senso comum
“[...] discriminatório (ou desigualmente comum, se preferirmos), construído para
ser apropriado privilegiadamente pelos grupos oprimidos, marginalizados ou
excluídos, e, de facto, alimentado pela prática emancipatória destes”
(SANTOS, 2005a, p. 109).
Isso implica transformar a solidariedade numa forma hegemônica de saber, a
reafirmação do caos como uma forma de saber e não de ignorância. Assim,
“[...] a solidariedade enquanto forma de conhecimento é a condição necessária
da solidariedade enquanto prática política” (SANTOS, 2005a, p. 108).
57
As ponderações do autor sobre a reinvenção do senso comum vão no sentido
de considerá-la como incontornável, dado o potencial dessa forma de
conhecimento para enriquecer a nossa relação com o mundo. Nesse sentido,
para Oliveira (2006), a ciência pós-moderna faz-se necessária para transformar
a ciência em algo mais próximo e familiar e, mesmo não falando a língua de
todos os dias, é capaz de nos comunicar as suas valências, seus limites e
objetivos que se realizam aquém ou além deles, isto é, para além da
consciência ingênua ou oficial (dos cientistas ou das instituições científicas),
com o objetivo de aprofundar o diálogo entre as diversas práticas de
conhecimento que se tecem na sociedade.
Considerando a necessidade de atribuir sentido aos conteúdos escolares para que ocorra aprendizagem efetiva, parece evidente que o diálogo entre os conhecimentos do educando e os conhecimentos escolares – os primeiros associáveis, mas não idênticos ao senso comum, e os segundos, ao conhecimento científico – a possibilidade de atribuir sentidos aos últimos depende do seu próprio potencial de diálogo com os primeiros, o que, aliás, já sabia Paulo Freire (OLIVEIRA, 2006, p. 39).
A potencialidade do diálogo e da interpenetração entre diferentes formas de
conhecimento pode servir para pensarmos a educação, a escola, assim como
a formação de professores ou a ação pedagógica. Nessa reflexão, é preciso
levar em conta que o conhecimento pós-moderno se constitui a partir de temas
que são adotados por grupos sociais concretos, como projetos de vida local, e
que progridem ao encontro de outros conhecimentos na busca por novas e
variadas interfaces. Seus conceitos e teorias produzidos localmente são
incentivados a ser utilizados fora do seu contexto original, generalizados
através da qualidade e da exemplaridade, com destaque para o caráter
tradutor da ciência pós-moderna. Esses grupos são representados pelas
comunidades interpretativas, os auditórios relevantes, locais de produção do
conhecimento-emancipação. Sendo assim, à semelhança da comunidade
interpretativa, a escola, com seus professores e alunos, pode produzir
conhecimento-emancipação.
58
Nesse novo modo de produção de conhecimento, destacam-se os aspectos: o
local e o retórico dos conhecimentos; a não dualidade dos conhecimentos, já
que todo conhecimento científico-natural é científico-social, com a
revalorização do papel do sujeito na produção do saber, não o separando de
seu objeto; a consideração de que todo conhecimento é autoconhecimento, e o
ato e o produto do conhecimento são inseparáveis, num processo de criação
em que as crenças e valores são parte integrante da explicação científica.
Com base em Santos podemos entender que as condições para a existência
da democracia são epistemológicas e políticas. Essas condições envolveriam a
compreensão ampliada da ciência como prática social de conhecimento (a
dupla ruptura que transforma o senso comum num novo senso comum pela
sensocomunicação da ciência) e a solidariedade (como forma de conhecimento
e prática política).
2.2.2 O conhecimento-emancipação e a democratização do conhecimento
nas comunidades interpretativas
Para restabelecer as energias emancipatórias, o autor sugere que é preciso um
novo desequilíbrio, que penda a favor da emancipação e que explore as
representações inacabadas ou abertas da modernidade: no domínio da
regulação, o princípio da comunidade, e, no domínio da emancipação, a
racionalidade estético-expressiva. Conforme o autor, essas são as
representações mais negligenciadas pela regulação, e, por isso, capazes de
estabelecer uma dialética com o pilar da emancipação. Assim, não se busca
um novo equilíbrio entre regulação e emancipação, pois isso seria uma solução
moderna, cuja falência intelectual é hoje evidente. A esse posicionamento o
autor chamou de pós-modernidade de oposição.
Nesse sentido, é possível superar a modernidade a partir da própria
modernidade:
59
[...] em cada um dos espaços estruturais, o paradigma emergente constrói-se a partir de si mesmo através de uma tripla transformação: a transformação do poder em autoridade compartilhada; a transformação do direito despótico em direito democrático; a transformação do conhecimento-regulação em conhecimento-emancipação (SANTOS, 2005a, p. 334).
A aceitação e a revalorização do caos são uma das duas estratégias
epistemológicas que tornam possível desequilibrar o conhecimento a favor da
emancipação. Isso já começa a acontecer em teorias do caos, no seio da
própria ciência moderna: em vez de transcender o caos, a ordem coexiste com
ele numa relação mais ou menos tensa. Para Santos (2005a), a revalorização
do caos (teorias do caos) é uma das estratégias que possibilitam perceber a
complexidade da realidade em que vivemos, onde o caos deixa de ser algo
vazio, informe e negativo para ter uma positividade em relação à ordem. Essas
teorias levam-nos a ver a discrepância entre a capacidade de ação e a
capacidade de previsão, ao considerarem a idéia da não-linearidade, isto é, a
possibilidade de as ações terem conseqüências para além das intencionais
(lineares), revelando a falta de controle absoluto. Para o autor, “[...] o controlo
das causas, sendo absoluto, é absolutamente precário (SANTOS, 2005ª, p.
80).
Segundo o autor, as teorias do caos põem à prova a idéia de transparência
entre causa e conseqüência e nos convidam à prudência, a um conhecimento
prudente, fazendo-nos uma dupla exigência: primeiro, diante dos limites da
nossa capacidade de prever, devemos perscrutar as conseqüências negativas
em detrimento das positivas, não como um comportamento pessimista, mas,
em decorrência de um virtualismo utópico tecnológico, hoje sabemos melhor o
que não queremos, sendo de bom senso concentrar nosso conhecimento
emancipatório nas conseqüências negativas, ou seja, naquelas que não
queremos; segundo, devemos ter as conseqüências duvidosas, mas possíveis,
como certas. Assim, “[...] quando está em risco a sobrevivência da humanidade
tal como a conhecemos, não ter medo é a atitude mais conservadora. Em
60
suma, é preciso construir uma teoria da personalidade assente na coragem de
ter medo” (SANTOS, 2005a, p. 81).
A outra estratégia reveste-se da revalorização da solidariedade como forma de
saber que se conquista sobre o colonialismo (incapacidade de ver o outro a
não ser como objeto) e nos torna cada vez mais capazes de reciprocidades. A
solidariedade caminha por meio da construção e do reconhecimento da
intersubjetivade e converte a comunidade num campo privilegiado do
conhecimento-emancipção.
A noção de comunidade interpretativa e de conhecimento-emancipação é
importante se pensarmos as escolas como espaço tempo de formação
continuada de professores por meio de grupos de estudo de professores
reunidos em torno de temas e/ou para pensarem sobre os problemas
cotidianos da escola, sobre os planos político-pedagógicos; para planejarem
ações e uma série de atividades que envolvem o estudo, o planejamento, a
resolução de problemas em processos decisórios dentro do ambiente escolar
de uma forma democratizada. Essas noções ajudam-nos a pensar a formação
continuada de professores em serviço como uma forma de gestão democrática
da formação docente, já que os processos de decisão nessas comunidades
interpretativas se fundam em virtualidades, tais como a argumentação, a
participação e a solidariedade, sendo, por isso, potencialmente produtora de
conhecimento-emancipação.
O princípio da comunidade foi negligenciado e não foi totalmente cooptado pela
ciência moderna é, por isso, um “[...] princípio menos obstruído por
determinações e, portanto, o mais bem colocado para instaurar uma dialética
positiva com o pilar da emancipação (SANTOS, 2005, p. 75).
Porque é uma representação aberta e incompleta, a comunidade é ela própria dificilmente representável – ou é-o apenas vagamente – e os seus elementos constitutivos, também eles abertos e inacabados, furtam-se a enumerações exaustivas. Têm, contudo, uma característica comum: todos resistiram à especialização e à diferenciação técnico-científica através das quais a racionalidade
61
cognitivo-instrumental da ciência moderna colonizou os outros dois princípios modernos de regulação: o mercado e o Estado. Ao contrário dos dois últimos, o princípio da comunidade resistiu a ser totalmente cooptado pelo utopismo automático da ciência e, por isso, pagou duramente com sua marginalização e esquecimento. Mas, pelo facto de ter ficado afastado, o princípio da comunidade manteve-se diferente, aberto a novos contextos em que a sua diferença pode ter importância (SANTOS, 2005a, p. 75).
Entre as virtudes epistemológicas do princípio da comunidade que não foram
totalmente colonizadas, o autor cita a participação e a solidariedade. Quanto à
participação, “[...] a colonização deu-se no contexto do que a teoria liberal
definiu, de forma bastante rígida, como sendo a esfera política (cidadania e
democracia representativa) [...]” (SANTOS, 2005a, p. 75), pelo voto e pela
eleição, ficando ainda alguns outros domínios da vida social em que a
participação continuou a ser uma competência não especializada e
indiferenciada da comunidade. No caso da solidariedade, a colonização
também se deu de forma incompleta, nos países desenvolvidos, por meio das
políticas sociais do Estado-Providência.
Já a respeito do pilar da emancipação, Santos (2005) defende que a
racionalidade estético-expressiva foi a que melhor resistiu à cooptação total da
racionalidade cognitivo-instrumental e performática-utilitária da ciência, sendo
“[...] por ‘natureza’, tão permeável e inacabada como a própria obra de arte e,
por isso, não pode ser encerrada na prisão flexível do automatismo técnico-
científico” (SANTOS, 2005a, p.76). No entender do autor, o caráter inacabado
da racionalidade estético-expressiva reside nos conceitos de prazer, autoria e
artefactualidade discursiva.
A colonização do prazer na modernidade, segundo Santos (2005a), deu-se
pela industrialização do lazer nos tempos livres, pelas indústrias culturais e
pela ideologia e prática do consumismo. Mas resistiu ao enclausuramento e
difunde o jogo entre os seres humanos, mantendo a irredutível individualidade
intersubjetiva do homo ludens.
62
Santos (2005) problematiza o conceito de autor como aquele que suscita a
noção de iniciativa, autonomia, criatividade, autoridade, autenticidade e
originalidade que se desenvolveu, sobretudo no domínio artístico e literário,
particularmente a partir do Romantismo, em que o autor era entendido como o
“oposto” da vida vulgar, o criador autônomo capaz de inventar novos mundos
culturais libertos do contexto material circundante, mas que, no entanto,
também está ligado à noção, igualmente moderna, de sujeito autônomo, que,
no pilar da regulação, se desenvolveu como cidadão e como agente do
mercado e, em ambos os casos, como microunidade na criação cotidiana e
normal da nova ordem das coisas.
Enquanto a autonomia do sujeito se baseia no desempenho de acções normativamente reguladas de acordo com os contextos, as limitações e as possibilidades criadas pela repetição de acções anteriores semelhantes, a autonomia do autor assenta na diferença irredutível entre a acção e as condições do seu desempenho. Estes dois tipos de autonomia são ambos precários, embora por razões diferentes: a autonomia do sujeito corre o risco de não se distinguir das condições que a tornam possível (alienação); a autonomia do autor corre o risco de se tornar irrelevante quando separada das condições que a tornam possível (marginalização) (SANTOS, 2005a, p. 77).
No entanto, Santos (2005a) diz que, graças ao caráter da diferença e da
descontinuidade, o autor se manteve como representação inacabada da
modernidade, resistindo à colonização. Ele questiona a morte do autor
anunciada pelo estruturalismo e pelo pós-estruturalismo pelo fato de desvendar
a repetição oculta que subjaz a discursos aparentemente “irrepetíveis” (o autor
mais como efeito do que como causa das formas institucionalizadas,
constantemente repetidas e normativamente reguladas): isso não representaria
toda a verdade porque “[...] nenhum autor pode ser efeito sem nunca ter sido
causa (a causa da própria produção artística ou literária)” (SANTOS, 2005a, p.
77). Mais à frente, ao falar sobre a distinção entre sujeito e objeto
convencionada na modernidade, vai sustentar que “[...] o conceito de autoria
resiste à distinção entre sujeito e objeto sem renunciar à dimensão activa do
sujeito. O autor é o originador, por muito discutível e secundária que a sua
originalidade possa ser” (SANTOS, 2005a, p. 92-93).
63
Como membro de uma comunidade interpretativa, podemos pensar o professor
resguardado na sua dimensão de autoria, de sujeito como autor.
O outro conceito organizador do domínio artístico e literário a ser trabalhado é
o de artefactualidade discursiva, que todas as obras de arte têm ao serem
criadas, construídas como ato construtivo, intencional.
A natureza, a qualidade, a importância e a adequação dessa intenção e dessa construção são estabelecidas por meio de um discurso argumentativo dirigido a um público alvo (as pessoas e as instituições que constituem o domínio artístico e literário). Como essa argumentação é potencialmente interminável, os momentos de fixação (o cânone, a tradição estética, as instituições de consagração e os prémios) são sempre precários porque os argumentos que os apóiam não mantêm o seu poder retórico por muito tempo. Entendida nestes termos, a racionalidade estético-expressiva une o que a racionalidade científica separa (a causa e intenção) e legitima a qualidade e a importância (em vez da verdade) através de uma forma de conhecimento que a ciência moderna desprezou e tentou fazer esquecer, o conhecimento retórico (SANTOS, 2005a, p. 77-78).
Então, a racionalidade estético-expressiva destaca-se por estar intimamente
ligada aos conceitos de prazer, autoria e artefactualidade discursiva, que, por
sua vez, estão relacionados à dimensão criativa, de autoridade, de autoria, de
autenticidade e de autonomia do autor e da obra de arte. Mesmo quando
“atacados” pelas indústrias culturais, pela ideologia e pela prática do
consumismo, resistiram e continuaram a difundir a individualidade
intersubjetiva entre os homens. Assim, ainda seriam capazes, segundo o
autor, de criar mundos libertos, mas não alienados, dos contextos materiais
circundantes.
As virtudes epistemológicas contidas no princípio da comunidade e na
racionalidade estético-expressiva, tais como a solidariedade, a participação, a
artefactualidade discursiva, o prazer, a autoria, a arte e a retórica, fazem com
que Santos (2005a) defenda a possibilidade de as comunidades interpretativas
funcionarem como espaços tempos na criação cotidiana de uma nova ordem
64
das coisas, reinventando a emancipação social, produzindo o conhecimento-
emancipação. Nessa linha de pensamento, é possível dizer que
[...] o conhecimento-emancipação é um conhecimento local criado e disseminado através do discurso argumentativo. Estas duas características (o caráter local e o caráter argumentativo) são inseparáveis, visto que só pode haver discurso argumentativo dentro de comunidades interpretativas, os auditórios relevantes da retórica (SANTOS, 2005a, p. 95).
Sendo assim, daremos enfoque ao conhecimento-emancipação e a algumas
estratégias defendidas pelo autor para a sua possível democratização, ou seja,
estratégias que contribuem para que o conhecimento-emancipação deixe de
ser uma epistemologia marginalizada.
Nesta forma de conhecimento a ignorância é o colonialismo e o colonialismo é a concepção do outro como objecto e consequentemente o não reconhecimento do outro como sujeito. Nesta forma de conhecimento conhecer é progredir no sentido de elevar o outro da condição de objecto à condição de sujeito. Esse conhecimento-reconhecimento é o que designo por solidariedade (SANTOS, 2005a, p. 30).
Como defende Santos (2005), essas comunidades interpretativas seriam
terrenos privilegiados na produção de conhecimento-emancipação, como um
conhecimento local criado e disseminado através do discurso argumentativo,
sendo essas características inseparáveis, visto que só há discurso
argumentativo em comunidades interpretativas.
Enquanto produto de comunidades interpretativas, o conhecimento emancipatório pós-moderno é retórico. Aí reside a sua proximidade com a racionalidade estético-expressiva. Enquanto a ciência moderna visa naturalizar o conhecimento através de verdades objectivas, de descrições e de regularidades, o conhecimento emancipatório pós-moderno assume a sua artefactualidade discursiva. Para essa forma de conhecimento, a verdade é retórica, uma pausa mítica numa batalha argumentativa contínua e interminável travada entre vários discursos de verdade; é o resultado sempre provisório de uma negociação de sentido realizada num auditório relevante que, na idade moderna, foi a comunidade científica ou, melhor dizendo, uma pluralidade de comunidades científicas. As regularidades são enclaves precários de caos latente em áreas onde existe um grande consenso sobre o que deve ser considerado anormal ou irrelevante (SANTOS, 2005a, p. 96).
65
Daí decorre a necessidade de se rever a noção de senso comum, já que
existem, potencialmente, tantos sensos comuns quantos são os domínios
tópicos. Como o domínio tópico é a matriz do senso comum de uma
comunidade retórica, haverá tantos domínios tópicos quantas forem as
comunidades interpretativas ou retóricas. E é por isso que, para que a
comunidade seja esse campo emancipatório, é necessário que não se limite a
ser a territoriedade própria do espaço contíguo (local) e a temporalidade
própria do tempo miúdo (o imediato), mas transforme o local numa forma de
percepção do global, e o imediato numa forma de percepção do futuro. O que
se pretende é, pois, “[...] uma concorrência epistemológica leal entre
conhecimentos como processo de reinventar as alternativas de prática social
de que carecemos ou que afinal apenas ignoramos ou não ousamos desejar”
(SANTOS, 2005b, p. 329).
O princípio da comunidade “[...] é um bem relativo, cujo valor depende da
profundidade e do alcance do conhecimento emancipatório que se consegue
produzir, ou seja, da medida em que elimina o colonialismo e constrói a
solidariedade” (SANTOS, 2005a, 95–96).
Este ponto de chegada depende do processo argumentativo no interior das comunidades interpretativas. O conhecimento do novo paradigma não é validável por princípios demonstrativos de verdades intemporais. É, pelo contrário, um conhecimento retórico cuja validade depende do poder de convicção dos argumentos em que é traduzido. Daí que o novo paradigma preste particular atenção à constituição das comunidades interpretativas e considere seu objectivo principal garantir e expandir a democracidade interna dessas comunidades, isto é, a igualdade do acesso ao discurso argumentativo (SANTOS, 2005b, p. 330, grifos nossos).
Nesse sentido, é preciso considerar, em primeiro lugar, que “[...] no sistema
mundial capitalista a realidade social não pode reduzir-se à argumentação e ao
discurso; em segundo lugar, [...] que a retórica não é libertadora por natureza”
(SANTOS, 2005a, p. 106).
66
Para além da argumentação e do discurso, há também trabalho e produção, silêncio e silenciamento, violência e destruição. Sem ter em conta a dialética entre momentos argumentativos e não-argumentativos é impossível entender a construção e a destruição sociais de auditórios e comunidades. Além disso, no sistema mundial capitalista, os auditórios e as comunidades possuem uma dimensão translocal que permite a interpenetração de conflitos e consensos mundiais com conflitos e consensos locais. No plano do discurso argumentativo, essa interpenetração é fruto da constante alteração de posições na polaridade orador-auditório, bem como da permanente questionação das premissas da argumentação (SANTOS, 2005a, p. 106).
Esses processos muitas vezes acarretam a destruição da comunidade, porque
o processo de emancipação social que parte da colonização para a
solidariedade emerge da tensão dialética entre o comunitarismo (que domina
nas relações intracomunitárias) e o contratualismo (que domina nas relações
intercomunitárias), ocorrendo, então, a reinvenção da comunidade. Isso quer
dizer que nesse processo se deve levar em conta não só as interações
solidárias (intracomunitárias), mas também as relações (intercomunitárias) e a
colonização que quase sempre as domina. Nesse sentido, uma comunidade
pode vir a colonizar outras comunidades, que, por sua vez, resistirão ou não a
essa investida, e assim por diante. O autor considera que os espaços
estruturais são as matrizes das principais comunidades interpretativas que
existem na sociedade; são terrenos em que se travam lutas sociais e entre
conhecimentos, numa constante tensão política e epistemológica, e onde, na
prática social, a retórica regulatória se confronta com a retórica emancipatória.
Dessa forma, o conhecimento-emancipação como fruto de um comunidade
interpretativa é aquele que não compactua com o silêncio e a diferença que
marginalizam e calam; que não se impõe como forma objetiva, neutra e
descontextualizada de saber, mas, como uma subjetividade rebelde, não se
conforma com as determinações que nos impedem de pensar num horizonte
de possibilidades emancipadoras. Ou seja, a questão do conhecimento e a sua
democratização estão intimamente ligadas às relações sociais que se
estabelecem entre os membros de uma comunidade interpretativa e à sua
capacidade de produzir conhecimento-emancipção.
67
Essas relações devem configurar-se como práticas de solidariedade
reconhecendo o outro como produtor de saber, que, como membro da
comunidade, participa do poder sempre compartilhado tanto na concepção,
quanto na articulação, e na aplicação do conhecimento. Não há, portanto,
espaço para imposições e coerções de um direito despótico ou de uma lógica
produtivista própria da colonização. A coerção e a produtividade legítimas são
o resultado de uma razoabilidade dos argumentos e do consenso.
Nesse sentido, as comunidades interpretativas dariam vazão ao princípio de
descentralização participativa (LINHARES, 2006), chave de todo processo
democrático, como um caminho que nos convidada ao exercício de uma
responsabilidade decisória, criadora e compartilhada por aqueles que, como
professores, se constituem membros da comunidade escolar, na contramão de
um processo avassalador de desqualificação dos servidores públicos, elo
importante na manutenção da governabilidade democrática.
Na opinião de Linhares (2006), o prestígio social dos professores, assim como
o de outras categorias profissionais, encontra-se numa situação de queda livre.
Essa situação agrava-se com o acúmulo de tarefas que se sobrepõem no
cotidiano das escolas, revelando-se nos pedidos de licenças, nas exonerações,
nos problemas de saúde que desafiam a gestão escolar; repercutindo
perversamente na sala de aula, com o desânimo do professor e dos
estudantes; obstruindo caminhos de aprendizagem e de ensino. Esse é um
quadro de desamparo e isolamento social do professor e de sua abrupta
desfiliação do Estado, revelado em pesquisas feitas nas ciências políticas, na
sociologia do trabalho, sobre a formação continuada de professores,
demonstrando a premência por constituir-se em comunidades escolares, onde
possa conviver com companheiros para enfrentar os riscos de embates
inéditos.
68
No entanto, é possível notar movimentos instituintes no sentido de ações
políticas produzidas historicamente, endereçadas a uma outra educação e
cultura, marcadas pela construção permanente de uma
[...] maior includência da vida, uma dignificação permanente do humano em sua pluralidade político-ética, uma afirmação intransigente da igualdade humana, em suas dimensões educacionais e escolares, políticas, econômicas, sociais e culturais (LINHARES, 2006, p. 33).
Tais movimentos têm surgido, e muitas vezes se estabelecido, tanto no
discurso acadêmico quanto em ações empreendidas por algumas secretarias
de educação, com compromissos populares, que assumem o caráter de
esgotamento das políticas centralizadoras e promovem a gestão participativa
intensa e extensa de seus profissionais, como uma espécie de tradução
desses processos instituintes no campo educacional.
É necessário que essas iniciativas que revelam “[...] o interesse permanente
em compartilhar ações e avanços, em institucionalizar aperfeiçoamentos, em
discutir outras possibilidades viáveis para garantir uma melhoria da escola”
(LINHARES, 2006, p. 33) não permaneçam inócuas ou como artefatos
retóricos e assim se traduzam em estruturas materializadas e culturais de
funcionamento. É preciso que vigorem como expansão da includência e
cooperação, alimentando ações compartilhadas, ainda que permeadas de
conflitos.
Nesse sentido, essas experiências estão sempre em devir, “[...] pisando em
terrenos movediços, sem certezas e comprovações da história, mas sempre
enfrentando e infiltrando-se nas tramas instituídas, para aproveitar frestas e
contradições e, assim, afirmar outridade” (LINHARES, 2006, p. 34). A autora
completa que, a despeito de profetas e agoureiros, a escola pode ser outra,
assim como outra pode ser a sociedade, as políticas e as racionalidades que a
organizam. No intuito de esclarecer a noção do que sejam “experiências
instituintes” como forma de conhecer e atuar na vida, respeitando o cosmo, os
viventes, incluindo pluralidades e contrapondo-se a desigualdades na
69
sociedade, que cada vez mais enriquecerá com includências de todas e todos
inteiros, a autora dispõe sobre elas alertando que não se limitam a acréscimos,
mas
• supõem subtrações, de formas opressivas de pensar; • rompem com binarismos do tipo: sujeito X objeto; certo X errado;
indivíduo X sociedade; matéria X espírito; verdade X mentira; • interligando múltiplas linguagens, espaços, tempos e formas de
subjetivação e singularização de modo a potencializar sujeitos; • [nutre] aprendizagens participantes, amorosas e solidárias; • [inclui] com os processos de autonomização a abertura para
acolher probabilidades, surpresas e, sobretudo, movimentos de curiosidade, compartilhamento de vida e esperança nela, não nos dando tréguas no empenho e no prazer de reinventá-la (LINHARES, 2006, p. 34).
Reforçando esse posicionamento, Oliveria (2006) destaca a importância e a
necessidade da reflexão argumentativa no coletivo do nosso caminhar
democrático, em função da idéia de que
[...] pensamos e agimos melhor, mais de acordo com o que temos como projeto de emancipação se, além de nos confrontarmos conosco na busca de ações mais democráticas, [pudermos] ser confrontados e alertados pelos demais sobre os desvios e as incoerências do nosso comportamento. Além disso, se entendemos a democracia como um sistema no qual as relações sociais se fundam em relações de autoridade compartilhada, é preciso que desenvolvamos práticas adequadas, ou seja, que pratiquemos, tanto quanto possível relações desse tipo (OLIVEIRA, 2006, p. 145).
Borba (1987, apud SANTOS, 2005a, p. 96), nos seus comentários sobre o
grande número de práticas político-culturais, afirma que a reinvenção
comunitária através de um conhecimento emancipatório visa habilitar os
membros de comunidade “[...] a resistir ao colonialismo e construir a
solidariedade pelo exercício de novas práticas sociais, que conduzirão a
formas novas e mais ricas de cidadania individual e coletiva”.
Nesse sentido, Santos (2005a) propõe a proliferação das comunidades
interpretativas, pois o potencial emancipatório da retórica se assenta na criação
70
de processos analíticos que permitem descobrir por que é que, em
determinadas circunstâncias, certos motivos parecem ser melhores, e certos
argumentos mais poderosos do que outros. Continuando, diz:
[...] a política epistemológica emancipatória consiste no desenvolvimento de uma tópica de emancipação nas diferentes comunidades interpretativas e nas redes que entre elas se estabelecem. Haverá senso comum emancipatório quando os topoi emancipatórios desenvolvidos numa dada comunidade interpretativa encontrarem tradução adequada nos topoi de outras comunidades e se converterem, assim, em topoi gerais. [...] Sublinhar a necessidade de uma tópica de emancipação significa que só pode haver emancipação através de significações partilhadas, através da invenção convincente de novos topoi emancipatórios. A única vanguarda legítima é o senso comum de vanguarda. É inerente ao discurso argumentativo o facto de essa invenção nunca ser completa e nunca atingir um ponto de irreversibilidade (SANTOS, 2005a, p. 110-111).
E completa:
O conhecimento emancipatório pós-moderno parte do princípio de que só haverá emancipação se, nestes domínios tópicos básicos, os topoi que exprimem as relações sociais dominantes forem substituídos por outros que exprimam a aspiração de relações sociais emancipatórias, assentes simultaneamente em políticas de reconhecimento (identidade) em políticas de redistribuição (igualdade). Não pode haver emancipação sem um tópica de emancipação (SANTOS, 2005a, p. 110).
Essas comunidades interpretativas têm um caráter político, portanto, torna-se
importante observar os processos pelos quais emergem, se desenvolvem e
morrem: por serem comunidades retóricas não existem isoladas, mas
constituem redes de comunidades, e os topoi gerais constituem os pontos de
vista compartilhados por comunidades da mesma rede; as comunidades não
existem aleatoriamente, assim como as redes a que se integram não são
fortuitas. Nesse sentido, a sua institucionalização, ou seja, a sua “legalização”
e, por conseqüência, o apoio estrutural por parte do Poder Público para que se
formem em nossas escolas não são, em si, garantia para que realmente
aconteçam. Entretanto, diante de tantos desafios e necessidades, isso já é um
bom começo.
71
Não temos dúvidas de que para ensinar e aprender nas escolas é indispensável que circule entre os professores o alento de uma confiança legitimada, com capacidade criadora que encontre condições de vicejar apoiada em tempos e espaços de convivência institucionalizados, onde os professores sejam estimulados a exercícios de teorização permanentes, sempre atentos para conectarem o local com o universal, os movimentos instituintes da escola com as forças progressivas da sociedade (LINHARES, 2006, p. 31).
Daí a importância de se pensar a formação de grupos de estudo
institucionalizados, no sentido de lhes reconhecer a importância e lhes
proporcionar condições de funcionamento na escola, em processos de
formação continuada de professores em serviço como uma oportunidade para
a criação dessas comunidades interpretativas. Elas trazem em si as
potencialidades para a construção de conhecimento-emancipação, que
encaminham possibilidades inéditas, “[...] revertendo estruturas teóricas e
libertando relações de alta complexidade, capazes de fortalecer novas lógicas
e concepções de racionalidade e de política, permeadas pela amorosidade e
pela includência” (LINHARES, 2006, p. 32). Essas comunidades interpretativas
também são capazes de proporcionar a autonomia docente e a valorização do
professor, que faz de sua atuação diária na escola uma fonte de
aprendizagem, implicando tanto o respeito e o reconhecimento do potencial
humano e social próprios, quanto no de seus alunos e dos estudantes. Assim,
devem revestir-se de um processo democrático e pedagógico de reflexão e
pesquisa sobre a problemática da escola.
2.2.3 A gestão democrática, conhecimento e emancipação
Como nesta pesquisa estamos trabalhando com a possibilidade de a formação
continuada de professores em serviço configurar-se como um processo de
gestão democrática da formação docente, que promova a autonomia e a
emancipação dos professores, faz-se necessário analisar o processo de gestão
72
democrática e suas possíveis contribuições para a emancipação social e assim
relacioná-lo aos processos de formação em serviço.
Até o momento, já introduzimos vários pensamentos sobre o que possa ser a
gestão democrática: aquela que se utiliza da democracia como princípio
regulador das relações, das práticas sociais, dos saberes e das redes de
subjetividades que tecemos e que nos tecem nos diversos espaços estruturais;
um processo que busca minimizar diferenças que impedem a participação
efetiva e cidadã; uma forma de gestão que se sustenta em processos
democráticos de autoridade partilhada.
Juntamente com essas noções, também mencionamos a impossibilidade de
controle absoluto sobre os processos de transformação social; daí a
necessidade de se realizarem, como margem de segurança, de forma
processualmente democratizada. Os processos de gestão democrática, a
exemplo da democracia, constituem-se a partir de condições epistemológicas e
políticas, e se deparam com a realidade e com a ação concreta dos sujeitos no
mundo. Para promoverem emancipação, precisam ser protagonizados por
subjetividades democráticas, rebeldes diante das condições que a realidade
lhes impõe como determinantes, ao mesmo tempo em que, não se deixando
abater pelos desafios, não desconsiderem o contexto em que se realiza a ação
proposta. Significa reconhecer, como diria Paulo Freire (2002, p. 21), que “[...]
somos seres condicionados mas não determinados. Reconhecer que a História
é tempo de possibilidade e não de determinismo, que o futuro [...] é
problemático e não inexorável [...]” e assim romper com o discurso neoliberal,
fatalista e imobilizante que “anda” pelo mundo.
Ao se aliar a Wallerstein no seu apelo a uma redução das pretensões
deterministas, por uma superação dos limites da teoria do sistema mundial tal
como ela se apresenta atualmente, Santos (2005a) propõe uma concepção
que vai mais longe no enfraquecimento da determinação estrutural com foco
nos horizontes e não nos mapas de determinação. Ao invés de basear-se
73
numa só macroestrutura e na divisão mundial do trabalho econômico, propõe
uma constelação de seis espaços estruturais para analisar a sociedade e o
sistema mundial capitalista, dos quais o espaço mundial é apenas um. Entre
esses espaços não há hierarquias, assimetrias ou primados que possam ser
estabelecidos como naturais ou normais. “Dentro de um tal horizonte, a
contingência e a criatividade são, simultaneamente, experiências vividas e
condições de inteligibilidade do que acontece às pessoas e do que elas fazem
acontecer” (SANTOS, 2005a, p. 312).
Então, para pensarmos a possibilidade de superação de processos de
dominação e de cerceamento da participação democrática, seguiremos a
sugestão dada por Santos (2005a), de fazermos um trabalho dobrado: por um
lado, tentar ver se os instrumentos hegemônicos podem ser utilizados de
maneira contra-hegemônica e se podemos desenvolver um conceito contra-
hegemônico de legalidade, de direitos humanos e de democracia; por outro
lado, ver se nas culturas e nas formas políticas que foram marginalizadas e
oprimidas pela modernidade ocidental podemos encontrar embriões, sementes
de coisas novas. Na opinião do autor, o caminho para essa superação deve
começar por conhecer bem a tradição e ao mesmo tempo contestá-la,
enfrentá-la e inovar a partir da teoria da tradução.
Santos (2005a, p. 273), ainda diz que, nos seis espaços estruturais das
sociedades capitalistas (o espaço doméstico, o espaço da produção, o espaço
de mercado, o espaço da comunidade, o espaço da cidadania e o espaço
mundial), se desenvolvem seis modos de produção de prática social, um
conjunto de relações sociais complexas cujas contradições internas lhe
conferem uma dinâmica endógena específica. Os espaços estruturais são
espaços tempos, formas de sociabilidade que implicam lugares, mas também
temporalidades, duração, ritmos. Segundo o autor, “[...] a especificidade de
cada um dos espaços estruturais reside no tipo de troca desigual que marca as
relações socais que nele se estabelecem” (SANTOS, 2005a, p. 277).
74
Essa lógica, embora específica e endógena, não está, enclausurada em si
mesma já que as relações sociais “[...] são tão determinadas pela sua
localização estrutural como pelas suas articulações (combinações,
interferências mútuas, interfaces e interpenetrações) com relações sociais
noutras localizações estruturais” (SANTOS, 2005a, p. 277). Acrescenta que,
em termos fenomenológico, essa é uma hibridização que não é nem arbitrária
nem infinita, porque os espaços são limitados em número e particulares quanto
à especificação interna.
É importante pensar sobre a idéia de mapa em Santos (2005a) e sobre suas
reflexões, pois, para o autor, os mapas são uma das formas de imaginar e
representar o espaço por meio de distorções reguladas da realidade. Os
mapas criam ilusões credíveis de correspondência, sendo, por isso, capazes
de instituir orientações por meio de mecanismos e operações determinados e
determináveis (a escala, a projeção e o simbolismo). Nesse sentido, Santos
(2005a) reflete que “[...] os mapas são sempre ‘uma versão miniatuarizada’
(Keates, 1982: 73) da realidade e, por isso, envolvem sempre uma decisão
sobre os detalhes mais significativos e suas características mais relevantes”
(SANTOS, 2005a, p. 202). Nesse sentido, destacamos que implicam decisão,
processos de gestão, na forma como interpretamos a realidade.
O autor diz que “[...] a principal característica estrutural dos mapas reside em
que, para desempenharem adequadamente as suas funções, têm
inevitavelmente de distorcer a realidade.” (SANTOS, 2005a, p. 200). Para o
mapa ser prático, a realidade não pode coincidir ponto por ponto. No entanto,
para que a distorção da realidade não seja arbitrária, são utilizados
mecanismos conhecidos e controlados: a escala, a projeção e a simbolização,
que são autônomos, envolvem procedimentos distintos e exigem decisões
específicas. Mas são também interdependentes. No entanto, aqui daremos
destaque apenas ao mecanismo da escala
A escala é o primeiro grande mecanismo de representação/distorção da realidade. A escala é “a relação entre a distância no mapa e a
75
correspondência no terreno” (Monmonier, 1981: 41) e, como tal, implica uma decisão sobre o grau de pormenorização da representação. Os mapas de grande escala têm um grau mais elevado de pormenorização que os mapas de pequena escala porque cobrem uma área inferior à que é coberta, no mesmo espaço de desenho, pelos mapas de pequena escala (SANTOS, 2005a, p. 201-202).
O autor afirma:
Porque medeia entre intenção e acção, o mecanismo da escala também se aplica à acção social. Os urbanistas e os chefes militares, tal como os administradores e os legisladores, definem as estratégias em pequena escala e decidem a actuação quotidiana em grande escala. O poder tende a representar a realidade social e física numa escala escolhida pela virtualidade para criar os fenômenos que maximizam as condições de reprodução do poder. A representação/distorção da realidade é um pressuposto do exercício do poder (SANTOS, 2005a, p. 202).
Assim, “[...] um mapa desenhado em pequena escala nos mostra pouco de
uma área grande, enquanto, ao contrário, um mapa de grande escala divulga
muito de uma pequena área selecionada” (OLIVEIRA, 2005, p. 90).
Aparentemente, a diferença entre as escalas é apenas quantitativa, mas, na
realidade é qualitativa, já que influencia na representação de certos fenômenos
que só são perceptíveis em determinada escala. Sendo assim, “[...] mudar a
escala implica em mudar o fenômeno” (SANTOS, 2005a, p. 202). Por isso seu
uso deve ser coerente para evitar falácias advindas de sobreposições de
fenômenos, como ocorre em certas correntes na Geografia.
Santos (2005a) alerta-nos quanto ao perigo da falsa equivalência de escalas,
no que se refere ao planejamento de ações, portanto, na forma como se
pretende gerir situações ou agir sobre elas. Esse processo consiste em “[...]
produzir e ocultar um desequilíbrio de escala entre a acção técnica e as
consequências técnicas. Por via desse desequilíbrio, a grande escala da acção
é posta em paralelo com a pequena escala das consequências” (SANTOS,
2005a, p. 31). Nesse sentido, a operacionalidade ou aplicação de um certo
conhecimento ou técnica é feita de forma descontextualizada, isto é,
independente das condições de aplicação.
76
Dado que a ciência moderna desenvolveu grande capacidade de agir, mas não
de prever, esse desequilíbrio entre as escalas torna-se essencial para o
desenvolvimento da ação, quando oculta e torna possível o heroísmo técnico
do cientista e a idéia da existência de uma escala dominante. Historicamente,
essa escala tem tido dois nomes: universalismo e, agora, globalização.
Segundo Santos (2007), o universalismo é toda idéia ou entidade que é válida
independentemente do contexto no qual ocorre. O que não é universal é
particular. Aliada a isso está a idéia de que sua aplicação independe
igualmente de todas as condições que não sejam necessárias para garantir a
operacionalidade técnica da aplicação.
A outra escala dominante é definida pelo autor como globalização, que é “[...]
uma identidade que se expande no mundo e, ao se expandir, adquire a
prerrogativa de nomear como locais as entidades ou realidades rivais”
(SANTOS, 2007, p. 31). Essas são formas de tornar invisíveis, descartáveis,
desprezíveis as experiências sociais locais em relação ao universal e ao global
que se apresentam como hegemônicos.
Levando em consideração o mapa estrutural elaborado por Santos (2005a),
podemos dizer que as formações sociais capitalistas são constituídas de seis
conjuntos de relações sociais que produzem seis formas de conhecimento, a
saber: no espaço doméstico, o familiarismo e a cultura familiar; no espaço da
produção, o produtivismo, o tecnologismo, a formação profissional e a cultura
empresarial; no espaço do mercado, o consumismo e a cultura de massas; no
espaço da comunidade, o conhecimento local, a cultura da comunidade e a
tradição; no espaço da cidadania, o nacionalismo educacional e cultural e a
cultura cívica; no espaço mundial, a ciência, o progresso universalístico, a
cultura global.
O autor aponta que a ciência moderna consolidou sua hegemonia como forma
de saber com a ajuda do Estado, a ponto de se transformar em conhecimento
oficial ensinado no sistema educativo público e desenvolvido em instituições de
77
investigação criadas ou financiadas, sendo legítimo pensar a ciência como
forma de conhecimento do espaço da cidadania. Por outro lado, a ciência
também serviu como força estratégica do Estado para acumulação, como
discurso da verdade, do bem-estar e da lealdade, nas estratégias de
hegemonia, e como recurso nacional (social e estatal), nas estratégias de
confiança. E desde a Revolução Industrial vem transformando-se em força
produtiva por excelência, como forma epistemológica do espaço da produção.
Nesse sentido, o autor prefere conceber a ciência moderna como forma
epistemológica do espaço mundial, como o mais bem sucedido dos localismos
globalizados da modernidade ocidental, ou seja, “[...] são modos culturais
próprios daqueles que têm o poder de se impor ao restante do planeta [...]”
(OLIVEIRA, 2006, p. 79), mas não se deixam reduzir nem a uma força
produtiva, nem a um saber oficial.
A visão da ciência moderna como forma epistemológica do espaço mundial
permite-nos, segundo o autor, apreender tanto a extensão de seu auditório
quanto os processos que utiliza para reforçar as hierarquias do sistema
mundial. No entanto, destaca que, em todas as formações do conhecimento, a
ciência é a componente dos contextos culturais cega ao contexto, residindo aí
as raízes mais profundas do seu funcionamento cósmico. Para Santos (2005a),
essa “[...] cegueira em relação ao contexto só se pode afirmar credivelmente
em contextos culturais específicos, é, ela própria, necessariamente
contextualizada pelos conhecimentos caósmicos com que a ciência se
constela” (SANTOS, 2005a, p. 307). À luz da crítica epistemológica desse
autor, no entanto, fica claro que a única exigência normativa específica que a
ciência faz é a pretensão de não fazer exigências normativas. Assim, como sua
verdade não é mais que um discurso da verdade,
[...] a ciência funciona cosmicamente por ser um conhecimento organizado, especializado e profissionalizado, susceptível de ser produzido ad infinitum em ambientes aparentemente alheios ao contexto, de acordo com metodologias formalizadas e reprodutíveis. Trata-se de uma forma de conhecimento capaz de intervenções poderosas e drásticas na natureza e na sociedade, mediante as quais
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a sua operacionalidade instrumental é, por seu turno, reforçada e dramatizada (SANTOS, 2005a, p. 306).
Santos (2001) argumenta que algumas das condições sociais da crise
paradigmática da ciência moderna estão relacionadas à perda progressiva do
poder de auto-regulação diante do fenômeno global da industrialização da
ciência, principalmente nas décadas de 1930 e 1940. Para o autor, isso “[...]
acarretou o compromisso desta com os centros de poder económico, social e
político, os quais passaram a ter um papel decisivo na definição das
prioridades científicas” (SANTOS, 2001, p. 34). Completando resumidamente
esse quadro, Oliveira acrescenta:
Essa industrialização provocou, ainda, dois efeitos. Por um lado, a comunidade científica estratificou-se, as relações de poder entre cientistas tornaram-se mais autoritárias e desiguais, gerando a proletarização de muitos no interior dos laboratórios e centros de pesquisa. Por outro lado, o acesso ao grande capital e aos equipamentos que ele permite comprar aprofunda o fosso dos diferentes níveis de desenvolvimento tecnológico entre os países centrais e os países periféricos (OLIVEIRA, 2006, p. 28).
Para Santos (2005a), vivemos um novo universalismo ou internacionalismo da
globalização neoliberal, de movimentos de desnacionalização do Estado; o fato
de que cada vez mais políticas internas parecem ser imposições externas; a
desestatização da regulação social, em que ocorre a substituição da regulação
centrada no Estado por uma outra, em que o Estado passa a ser um sócio. “A
debilidade do Estado é produzida por um Estado suficientemente forte para
produzir sua própria debilidade” (SANTOS, 2007, p. 67).
O Estado deixa de ter o controle da regulação social, criam-se institutos para isso, e o Estado passa a ser apenas um sócio, não tem o monopólio da regulação social. Por isso vamos ter o problema da relação entre reguladores e não-regulados, e freqüentemente os regulados são reféns dos reguladores [...] a emergência de um constitucionalismo global das empresas multinacionais que prevalece sobre as leis nacionais e as viola freqüentemente, mas tem prioridade sobre elas como antes a lei constitucional tinha prioridade sobre as leis ordinárias. E disso tudo resulta o que chamo uma democracia de
79
baixa intensidade: vivemos em sociedades de democracia de baixa intensidade (SANTOS, 2007, p. 89-90).
Esse é um problema que também atinge o Brasil assim como outros países da
América Latina, que têm cada vez mais sofrido influências de regulamentações
de órgãos internacionais, tais como o Banco Mundial e Fundo Monetário
Internacional (FMI), e de processos de gestão de empresas multinacionais que
“ameaçam” a soberania nacional. Mas essa situação agrava-se quando, como
argumenta Linhares,
O espaço instituído se orgulha de sua organização, instalada mediante percursos que vêm de um passado vencedor, que em algum momento prevalecem lampejos instituintes que se cristalizaram. Por isso mesmo, eles participam de um “cortejo triunfalista”, creditando a si mesmo o mérito de tantas vitórias. Sustentam conhecer o que pode dar certo e tributam aos movimentos instituintes ameaças de colocar a perder uma civilização que até agora deu certo. Deu certo? (LINHARES, 2006, p. 33).
Então, partindo do conceito de gestão democrática como o ato de gerir
democraticamente, ou como aquela gestão que atende aos requisitos de um
processo democrático, é que elevamos essa perspectiva à uma democracia de
alta intensidade,
[...] na qual a participação seja ampliada e o ideal democrático da igualdade se faça acompanhar do direito à diferença, condição para a construção de relações sociais que considerem e reconheçam as diferenças culturais, sem criar, a partir delas, uma hierarquia entre as diversas culturas. No que diz respeito ao exercício da cidadania, Santos (2001) a define como um encargo, uma missão pública, uma prioridade do serviço à comunidade, para além da cidadania passiva, reduzida a um conjunto de direitos pelos quais se luta (OLIVEIRA, 2003, p. 15 -16).
Chegaremos assim à conclusão relativamente óbvia de que a gestão
democrática dentro do paradigma emergente difere da proposta pelo
paradigma moderno, no sentido de que a gestão, neste último, é muito mais
técnica e “científica” do que propriamente democrática, contando, para isso,
80
com a proteção do direito. A lógica do paradigma moderno julgava ser possível
o equilíbrio harmonioso entre os pilares da regulação e da emancipação e
pretendia ver esse desenvolvimento traduzido na completa racionalização da
vida coletiva e individual. Via na ciência e na gestão científica da sociedade a
forma mais eficiente para alcançar as promessas e soluções dos problemas
modernos, separando a ação técnica da ação política.
Para o autor,
[...] a política se transformou num campo social de caráter provisório com soluções insatisfatórias para problemas que só poderiam ser convenientemente resolvidos se fossem convertidos em problemas científicos ou técnicos: a célebre transformação saint-simoniana da administração de pessoas numa administração de coisas [...] a gestão científica da sociedade teve de ser protegida contra eventuais oposições através da integração normativa e da força coerciva fornecida pelo direito. Por outras palavras, a despolitização científica da vida social foi conseguida através da despolitização jurídica do conflito e da revolta (SANTOS, 2005a, p. 51).
A gestão científica ou técnica da sociedade torna-se possível com a
despolitização dos problemas e soluções, caindo, então, naquela forma de
pensar que separa as ações técnicas das conseqüências técnicas, resultante
da falsa equivalência de escalas (Santos, 2005a), processo esse que é capaz
de ocultar o desequilíbrio entre a grande escala da ação e a pequena escala
das conseqüências; facilita a aplicação descontextualizada, ou independente
das condições de aplicação, de um certo conhecimento ou técnica.
No paradigma emergente, a ação de gerir desenvolve-se intimamente ligada à
ação política. Não é, portanto, apenas uma forma técnica ou científica de
gestão. Então, diante da impossibilidade de se determinarem os rumos dos
processos de transformação social e do pressuposto de que não há receitas
prontas para controle das ações, os processos de gestão democrática devem
desenvolver-se para promover a democracia em seu sentido amplo. Isto é,
para a ampliação da participação cidadã nos processos decisórios, tanto na
esfera do Estado quanto na esfera da vida cotidiana, “[...] ao mesmo tempo em
que se insurge contra os processos de dominação cultural sobre os quais se
81
erguem a exclusão social, a discriminação e, nesse sentido, a permanência da
lógica da dominação” (OLIVEIRA, 2003, p. 16). Seu objetivo último é a
emancipação social, por meio do diálogo, do consenso, da horizontalidade das
relações, da solidariedade, da prudência, ou seja, da democratização das
relações, do conhecimento e da ação de subjetividades democráticas.
Como já argumentamos anteriormente, o sucesso das sociedades
democráticas dependerá da garantia dessas condições epistemológicas e
políticas, sendo de extrema importância que os processos de gestão
democrática alcancem a educação, a escola e a formação como um dos mais
importantes espaços constitutivos de nossas redes de subjetividades, de
saberes e de práticas reais que tecemos e nos tecem.
Dessa forma, é preciso entender que as escolhas de visibilidade não
anulam a existência daquilo que se torna invisível; é a utilização
simultânea de diferentes escalas que vai “[...] permitir a superação da
invisibilidade do local e do particular. A importância dessa ecologia das
trans-escalas se manifesta na possibilidade que ela favorece de se pensar
a globalização contra-hegemônica” (OLIVEIRA, 2006, p. 90-91) e é de
extrema importância para a formulação de propostas democráticas e
democratizantes em todos os campos sociais, principalmente no interior
das políticas públicas e na educação. É importante também para
pensarmos na possibilidade de a formação continuada de professores em
serviço configurar-se como uma gestão democrática da formação
docente, em que o professor seria o gestor de sua formação. Nesse
sentido, é preciso que também conheça e leia os “mapas” e pense em
possibilidades de ação e emancipação.
Decorre daí que, quando pensamos na gestão de forma descontextualizada,
isto é, deixando de considerar uma série de “particularidades” aparentemente
invisíveis e descartáveis, estamos contribuindo não para a solução dos
82
problemas, mas para o seu agravamento, já que as soluções encontradas
passam a ser únicas para realidades diferentes, globalizadas e hegemônicas.
Diante desse novo internacionalismo em que vivemos e do despreparo de
nossas teorias sociais para o enfrentamento dos desafios daí decorrentes, o
autor sugere que produzamos teorias e práticas transescalares, ou seja,
que trabalhemos com a possibilidade de articular nossos projetos de
forma que as escalas locais se articulem com as nacionais e com as
globais, constituindo-se na possibilidade de ver no que o hegemônico
pode ser contra-hegemônico e entrar em conflito com o internacionalismo
da globalização neoliberal.
Essa noção é importante no trabalho de Santos (2007) que se concentra no
desenvolvimento de uma teoria política nova, de uma democracia de alta
intensidade, que ocorrerá, segundo o autor, com a democratização de todos os
espaços onde a democracia signifique: “[...] substituir relações de poder por
relações de autoridade compartilhada” (SANTOS, 2007, p. 62).
Para Oliveira (2006, p. 143), esse entendimento do autor, de que todas as
formas de poder têm caráter político, conduz à idéia de que a luta pela
transformação das relações de poder em relação à autoridade partilhada se
situa não apenas no campo especificamente reconhecido como político, mas
se estende a todos os espaços tempos estruturais, na luta pela emancipação
social. Ela deixa de restringir-se ao espaço tempo da cidadania para ser
pensada e tecida em todas as dimensões da vida, assim como a questão da
democracia deixa de estar restrita ao embate político em torno do Estado e do
controle da atividade estatal, mas passa a abranger o conjunto das relações
sociais nos diversos espaços estruturais.
Além disso, “[...] a horizontalização do conjunto das relações sociais e a sua
reformulação em processos de interação, e não mais nas hierarquias
apriorísticas seriam processos privilegiados de construção dessa democracia
83
[...]” (OLIVEIRA, 2006, p. 143), isto é, da democracia social. Essa
horizontalização entre diferentes incluiria a discussão a respeito das formas de
conhecimento existentes no mundo e o diálogo entre elas. Nesse sentido, “[...]
a luta política emancipatória pela transformação das relações entre as formas
de conhecimento [...] precisa assumir como fundamento ‘o caráter
epistemológico de todas as formas de conhecimento [...]” (OLIVEIRA, 2006, p.
144), já que a ciência não seria a única forma de saber. Assim, Santos (2005a,
p. 309) conclui que a prática social é sempre uma constelação de algumas ou
de todas as diferentes formas de ação, sendo impossível avaliar em abstrato
quais as constelações de prática social mais disseminadas e mais
determinantes. Por um lado, a ciência,
[...] na sua pulsão hegemônica, aspira a rejeitar e a substituir inteiramente os conhecimentos locais; a própria ideia de “comunidade cientifica” sugere que a ciência se considera o único valor indentitário moderno sobre a base do qual podem floresce os ideais comunitários. Por outro lado, sempre que a ciência opera em campos sociais concretos (que não seja a comunidade científica), recorre a outros conhecimentos locais para superar os conflitos, facilitar as intervenções, diminuir os custos, etc. Quando essa complementaridade não chega a acontecer, a constelação torna-se conflitual e o conhecimento científico pode ser confrontado, obstruído ou subvertido pelo conhecimento próprio do espaço da comunidade. Estas articulações são particularmente visíveis, e, por vezes dramáticas, à medida que nos deslocamos do centro para a periferia do sistema mundial, habitada por formas de conhecimentos não ocidental-cêntricos muito disseminados e respeitados (SANTOS, 2005a, p. 306).
Seguindo nessa linha de pensamento, Santos argumenta que “[...] quando a
ciência se constela com outros conhecimentos, é também transformada por
eles [...]” (SANTOS, 2005a, p. 307) e, mediante processos espontâneos,
intersticiais e relativamente caóticos, a ciência se deixa penetrar pela cultura de
massas, como forma epistemológica do espaço do mercado (a ciência popular,
a ficção científica) e no espaço da comunidade, o sentimento de comunidade
entre grupos de cientistas, a criação de tradições e identidades científicas.
84
O autor realça nos espaços estruturais, a exemplo das comunidades
interpretativas, o caráter retórico e local do conhecimento, pois considera os
seis campos estruturais como campos tópicos, círculos argumentativos e
auditórios unidos por conjuntos de topoi locais.
Cada espaço estrutural é um conjunto de argumentos, contra-argumentos e premissas de argumentação amplamente partilhadas, através dos quais as linhas de acção e as interacções definem a sua pertença e a sua adequação dentro de um determinado campo tópico. A coerência, a sequência e a articulação reticular dos argumentos, de par com as polaridades específicas entre oradores e auditórios, configuram uma retórica local, um estilo próprio de raciocínio, de persuasão e convencimento (SANTOS, 2005a, p. 303).
Podemos pensar, dessa forma, os espaços estruturais como grandes
comunidades interpretativas, e as questões da democratização dos
conhecimentos, das relações, do poder e do direito, como intimamente ligadas
às relações sociais que se estabelecem entre os membros de uma comunidade
interpretativa e a sua capacidade de produzir conhecimento-emancipação.
Como já sabemos, nessa trajetória as relações devem configurar-se como
práticas de solidariedade e não de colonização, em que se reconhece o
outro como membro da comunidade, produtor de saber, que participa do
poder sempre compartilhado, não havendo, portanto, espaço para
imposições e coerções de um direito despótico ou de uma lógica
produtivista, que não sejam o resultado de uma razoabilidade dos
argumentos e do consenso que eles tornam possível como produtividade
e coerção legítima.
O papel da teoria crítica pós-moderna é, segundo Santos (2005a) o de criar a
emergência de topoi e de argumentos emancipatórios, ou de sensos comuns
contra-hegmônicos para se expandirem a par dos auditórios argumentativos, a
fim de se tornarem conhecimento-emancipação. Para o autor, tal como o
conhecimento-regulação o conhecimento-emancipação só funciona em
85
constelações de conhecimentos. “Negligenciar este facto equivale a correr o
risco de a retórica emancipatória, conquistada numa das formas
epistemológicas, se constelar ‘ingenuamente’ com a retórica regulatória de
outra forma epistemológica” (SANTOS, 2005a, p. 308). Assim,
[...] o êxito das lutas anti-capitalistas e anti-sistémicas depende da capacidade que tenham de se organizar em constelações de práticas sociais emancipatórias, isto é, em constelações de trocas iguais contra constelações de poder, em constelações de juridicidade democráticas radicais contra constelações de juridicidade autoritárias, em constelações de conhecimentos emancipatórios contra constelações de conhecimentos regulatórios. Para fazer jus a tal programa, as reconstruções teóricas devem ser muito mais exigentes e inovadoras, e a prática social a que fazem apelo deverá ser muito mais criativa e complexa (tão consciente dos limites como das possibilidades), menos dogmática, dada a natureza parcial de todas as formas relevantes de acção, predisposta a alianças para superar a incompletude e, por último, epistemologicamente mais tolerante face aos vários conhecimentos parciais e locais e aos vários sensos comuns nela investidos (SANTOS, 2005a, p. 314).
Toda essa reflexão feita pelo autor pode ser transportada para a realidade
escolar e educacional, se pensarmos na leitura que essa realidade exige e nas
propostas que são impostas ou construídas democraticamente, materializadas
nas políticas públicas educacionais.
Podemos, também, questionar se os processos de gestão democrática, como
processos que envolvem o poder de gerir democraticamente as trocas sociais,
conseguiriam dar conta tanto da distribuição quanto da capacitação dos
sujeitos que se inserem em uma determinada comunidade, em uma escola, em
sociedades capitalistas, como a brasileira, com tamanha desigualdade social,
de acesso à informação, e com preconceitos diversos, já que, como sabemos,
as condições epistemológicas e políticas para a existência da democracia
precisam alcançar toda a sociedade.
Acrescente-se ainda que é preciso considerar que não somos capazes de
controlar totalmente os rumos das transformações sociais. No entanto, o
processo de emancipação precisa caminhar na busca por diminuir ou mesmo
86
extinguir processos de dominação. Essa busca por emancipação social, porém,
não deve instituir outros processos de dominação; deve pautar-se no respeito à
igualdade na diferença, na prudência diante dos desafios e do que queremos e
não queremos. Dessa forma, a gestão democrática, em seu sentido mais
amplo, tem-se apresentado como uma das melhores alternativas.
Cabe ainda destacar a escola como um importante espaço tempo de
transformação social. No Brasil, por exemplo, a escola recebeu principalmente
no período de redemocratização, com a promulgação da Constituição de 1988
e da LDB Lei n° 9.393/96, como instituição privilegiada para o desenvolvimento
do educando, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de
solidariedade humana, a incumbência legal de preparar o educando para o
exercício da cidadania. Torna-se importante pensá-la, também, como um
espaço tempo de luta política emancipatória na formação de nossas redes de
subjetividades.
Assim, podemos considerar as leis e as políticas públicas como tentativas do
Governo em organizar as relações e a prática social, apoiado no poder legal
que lhe é atribuído. No entanto, diante da falta de controle sobre os processos
de transformação social, essas tentativas encontrarão tanto resistências quanto
adesão na medida em que forem tomadas como forma de prescrição que todos
devem seguir, sem questionamentos, ou na medida em que traduzirem formas
de organização legítimas e legitimadas pelos membros da sociedade.
Nesse sentido, essas tentativas para a organização são tentativas de exercício
do poder legalizado, cujas possibilidades de ação sobre a realidade todos
devem conhecer, para que caminhem, como um exercício democrático e
solidário do poder, no sentido de ampliar o seu potencial emancipatório.
Para Linhares (2006), podemos pensar nas experiências instituintes como ação
política alternativa endereçada a um outra educação e a uma outra cultura na
construção permanente de includências. A esse respeito nos diz
87
O primeiro alerta que precisamos acender é que as experiências instituintes não se encontram sob nenhum tipo de redoma que as pudessem separar do que está instituído. Pelo contrário. Umas e outros estão ora juntas, ora em litígios, buscando expandir-se, ou seja, penetrar no espaço e tempo em confronto. Assim, se as experiências instituintes procuram desdobrar-se em movimentos criadores e estremecer o que já foi organizado pela história, o instituído também procura incorporar, o que ainda está se processando, ou seja, o instituinte (LINHARES, 2006, p. 33).
Como resultado da reflexão epistemológica e teórica no estudo de alternativas
produzidas por movimentos de luta contra a globalização neoliberal e o
capitalismo, Santos (2005a) nos fala da necessidade de se perceber que a
experiência social é mais ampla e variada do que aquela que a tradição
científica ou filosófica ocidental conhece e considera importante, que essa
experiência está sendo desperdiçada e que, para combater o desperdício, é
preciso um novo modo de racionalidade.
Dentre os vários desafios a serem vencidos pelo conhecimento-emancipação,
destaca:
O primeiro desafio é passar do monoculturalismo para o multiculturalismo, já
que a solidariedade é reconhecer o outro como produtor do conhecimento.
Conseqüentemente, terá que enfrentar duas dificuldades: a diferença e o
silêncio. A produção de um conhecimento multicultural tem no silêncio e na
diferença suas principais dificuldades, advindas do domínio global da ciência
moderna como conhecimento-regulação, que acarretou a destruição de muitas
formas de saber, sobretudo daquelas próprias dos povos que foram objeto do
colonialismo ocidental. “Tal destruição produziu silêncios que tornaram
impronunciáveis as necessidades de povos e grupos que foram objecto de
destruição” (SANTOS, 2005a, p. 30). Sob a “capa” de valores universais foi
imposta a razão de uma “raça”, de um sexo e de uma classe social.
O segundo desafio a ser vencido pelo conhecimento-emancipação é passar da
peritagem heróica ao conhecimento edificante, em que a falsa equivalência de
88
escalas, que oculta tanto o desequilíbrio entre ação técnica e conseqüências
técnicas quanto o heroísmo técnico do cientista e que permite a
descontextualização do conhecimento, tornando-o absoluto, deve ser
enfrentada a partir da distinção entre objetividade e neutralidade.
O terceiro desafio que o conhecimento-emancipação deve vencer é passar da
ação conformista para ação rebelde, pois devemos concentrar-nos no
horizonte de possibilidades como uma forma de nos libertar de uma maneira
preguiçosa de pensar quer na transformação social, quer na impossibilidade
desta, superando a determinação e a indeterminação como conceitos
filosóficos a fim de pensarmos as ações e as subjetividades para além da
determinação/contingência. Esses desafios estão entrelaçados, assim como as
alternativas propostas pelo autor.
Como, para Santos (2005a), a teoria crítica não tem conseguido responder a
esses desafios, é necessário investir em alternativas às alternativas. Aliado a
isso, as críticas do autor vão no sentido de considerar a ciência moderna como
uma razão indolente que se manifesta de duas formas: a razão metonímica e a
razão proléptica.
A razão metonímica é uma figura da teoria literária e da retórica que significa tomar a parte pelo todo. E essa é uma racionalidade que facilmente toma a parte pelo todo, porque tem um conceito de totalidade feito de partes homogêneas, e nada do que fica fora dessa totalidade interessa” (SANTOS, 2007, p. 25-26).
Assim, o desperdício se dá com a contração do presente, deixa invisíveis
muitas experiências.
A razão proléptica é a segunda forma. Prolepse é uma figura literária bastante encontrada em romances, nos quais o narrador sugere claramente a idéia de que conhece bem o fim mas não vai contá-lo. É conhecer no presente a história futura. Nossa razão ocidental é muito proléptica, no sentido de que já sabemos qual é o futuro: o progresso, o desenvolvimento econômico, é um tempo ideal linear que de alguma maneira permite uma coisa espantosa: o futuro é infinito. A meu ver, expande demais o futuro (SANTOS, 2007, p. 26).
89
Essas seriam duas características da razão indolente: contrair o presente e
expandir o futuro, para as quais o autor vai propor uma estratégia oposta:
ampliar o presente para incluir nele muito mais experiência, e contrair o futuro
para prepará-lo.
A razão metonímica traz em si a idéia de totalidade, que é muito reducionista
porque contrai o presente desperdiçando muita realidade. Baseia-se em duas
idéias: a hierarquia e a simetria dicotômica, tais como: homem/mulher,
norte/sul, cultura/natureza, branco/negro. Apesar de parecerem simétricas,
estas idéias escondem sempre uma hierarquia. A questão que se coloca é que
existem racionalidades mais complexas, daí que a idéia de transformação do
real sem a compreensão do real traz em si um problema: o transformar sem
compreender leva-nos a situações de desastre. Embora não seja fácil pensar
fora dessas totalidades de redução, Santos (2007) questiona: Como realizar
um diálogo multicultural quando algumas culturas foram reduzidas ao silêncio e
as suas formas de ver e conhecer o mundo se tornaram impronunciáveis? Ou,
como fazer falar o silêncio sem que ele fale necessariamente a linguagem
hegemônica que pretende fazê-lo falar?
Santos conclui: “[...] o silêncio é, pois, uma construção que se afirma como
sintoma de um bloqueio, de uma potencialidade que não pode ser
desenvolvida [...]” (SANTOS, 2005a, p. 30), e essa construção só pode ser
captada por uma Sociologia das Ausências, que compare os discursos
hegemônicos com os contra-hegemônicos.
A Sociologia das Ausências é um procedimento transgressivo, uma sociologia insurgente para tentar mostrar que o que não existe é produzido ativamente como não-existente, como uma alternativa não-crível, como uma alternativa descartável, invisível à realidade hegemônica do mundo. E é isso que produz a contradição do presente, o que diminui a riqueza do presente (SANTOS, 2007, p. 28-29).
90
Continuando, Santos passa a tratar da crítica à razão proléptica, feita pela
Sociologia das Emergências que “[...] é a que permite abandonar essa idéia de
um futuro sem limites e substituí-la pela de um futuro concreto, baseado
nessas emergências: por aí vamos construindo o futuro” (SANTOS, 2007, p.
38). O autor alerta-nos sobre não se tratar de um futuro abstrato, mas de um
futuro do qual temos pistas e sinais. Nesse sentido, “[...] a Sociologia das
Emergências produz experiências possíveis, que não estão dadas porque não
existem alternativas para isso, mas são possíveis e já existem como
emergência” (SANTOS, 2007, p. 38). O autor propõe um duplo procedimento:
ampliar o presente e contrair o futuro por meio de ferramentas já discutidas,
tais como a ecologia das transescalas e outras.
Para Santos (2007), a inversão dessa situação, que é produtora de ausências,
se dá pela substituição das monoculturas pelas ecologias que não
desperdiçam experiências. Resumidamente são a inversão: a) da monocultura
do saber para a ecologia dos saberes (que trabalha a idéia de ciência em
diálogo com outros conhecimentos); b) da monocultura do tempo linear para a
ecologia das temporalidades (que trabalha a idéia de história e progresso e a
existência de outros tempos além do linear); c) da naturalização das diferenças
para a ecologia do reconhecimento (que pensa as diferenças com igualdades,
rejeitando hierarquias que inferiorizam); d) da monocultura da escala
dominante para a ecologia da “transescala” (que trabalha com a possibilidade
de articulação, em nossos projetos, das escalas locais, nacionais e globais); e)
da monocultura do produtivismo capitalista para a ecologia das produtividades
(que trabalha na contramão da lógica produtiva, em que tudo o que não é
produtivo é estéril).
Nesse domínio, a Sociologia das Ausências
[...] consiste na recuperação e valorização dos sistemas alternativos de produção, das organizações econômicas populares, das cooperativas operárias, das empresas autogestionadas, da economia solidária etc., que a ortodoxia produtivista capitalista ocultou ou desacreditou (SANTOS, 2007, p. 36).
91
Então, diante dessa quantidade de qualidades que não “existiam” antes e que
foram “criadas” pela Sociologia das Ausências e pela Sociologia das
Emergências, diante dessa realidade mais rica, mais fragmentada, mais
caótica, e diante da nossa impossibilidade de permanecer com uma
fragmentação total, é preciso criar inteligibilidade recíproca no interior da
pluralidade, sem reduzir a heterogeneidade à homogeneidade. Para não
cairmos novamente numa totalidade que deixa de fora muitas outras coisas,
temos que criar uma nova maneira de entender e articular conhecimentos,
práticas, ações coletivas, articulando sujeitos coletivos. É nesse sentido que o
autor propõe o procedimento da tradução.
A tradução é um processo intercultural, intersocial. Utilizamos uma metáfora transgressora da tradução lingüística: traduzir saberes em outro saberes, traduzir práticas e sujeitos de uns aos outros, é buscar inteligibilidade sem “canibalização”, sem homogeinização. Nesse sentido, trata-se de fazer tradução ao revés da tradução lingüística [...] Esse procedimento de tradução é um processo pelo qual vamos criando sentido a um mundo que não tem realmente um sentido único, porque é um sentido de todos nós; não pode ser um sentido que seja distribuído, criado, desenhado, concebido no Norte e imposto ao restante do mundo, onde estão três quartos das pessoas. É um processo distinto, e por isso o chamo a Epistemologia do Sul, que tem conseqüências políticas – e naturalmente teóricas – para criar uma nova concepção de dignidade humana e de consciência humana (SANTOS, 2007, p. 39-41).
Trata-se de saber o que é comum entre os movimentos, onde há
distinções e semelhanças, e criar a inteligibilidade sem destruir a
diversidade. Assim, o procedimento de tradução pode atuar sobre a diferença,
que é a segunda dificuldade do conhecimento multicultural.
Só existe conhecimento e, portanto, solidariedade nas diferenças e a diferença sem inteligibilidade conduz à incomensurabilidade e, em última instância, à indiferença. Daí a necessidade da teoria da tradução como parte integrante da teoria crítica pós-moderna. É por via da tradução e do que eu designo por hermenêutica diatópica que uma necessidade, uma aspiração, uma prática numa dada cultura pode ser tornada compreensível e inteligível para outra cultura. O conhecimento-emancipação não aspira a uma grande teoria, aspira sim a uma teoria da tradução que sirva de suporte epistemológico às
92
práticas emancipatórias, todas finitas e incompletas e, por isso, apenas sustentáveis quando ligadas em rede (SANTOS, 2005a, p. 30–31).
Santos continua:
É necessário não preferir uma palavra a outra, mas traduzir dignidade e respeito por emancipação ou por lutas de classes, ver quais são as diferenças e quais as semelhanças. Por quê? Porque há muitas linguagens para falar da dignidade humana, para falar de um futuro melhor, de uma sociedade mais justa. Cremos que esse é o princípio fundamental da epistemologia do Sul, que se baseia nesta idéia central: não há justiça social global sem justiça cognitiva global, ou seja, sem justiça entre os sem conhecimentos. Portanto é preciso tentar uma maneira nova de relacionar conhecimentos; é por isso que lhes proponho o procedimento da tradução (SANTOS, 2007, p. 40).
O autor conclui que, num mundo em que não há uma cultura que seja
completa, é preciso fazer tradução para ver a diversidade sem relativismos,
pois, como cientistas sociais comprometidos, não podemos ser relativistas.
“Mas é preciso captar toda a riqueza para não desperdiçar a experiência, já
que só sobre a base de uma experiência rica não desperdiçada podemos
realmente pensar em uma sociedade mais justa” (SANTOS, 2007, p. 41).
Seguindo essa linha de pensamento, Oliveira (2006) ainda aponta que as
possibilidades de se chegar a essas condições dependem da democratização
do conjunto de práticas sociais, vinculadas e orientadas por saberes mais
democráticos e democratizados. Nesse sentido, conclui: “[...] a subjetividade
democrática é, portanto, uma subjetividade que se tece interativamente em
processos de troca que devemos lutar para que se tornem sempre mais
horizontalizados” (OLIVEIRA, 2006, p. 145).
Concluímos, então, como sugerem Santos (2005) e tantos outros autores que
nos auxiliarem nesta reflexão, que nessa busca por emancipação não nos
devemos ater tanto na estrutura de determinação, mas, no horizonte de
possibilidades, para além das fronteiras externas da limitação. Embora o
93
resultado seja incerto, no sentido da falta de controle sobre os processos de
transformação social, essa busca se faz no caminho da democratização das
subjetividades, dos saberes, das relações em todos os espaços estruturais.
Esse é um percurso que não se perfaz sozinho, daí a importância de nos
manter abertos ao diálogo e à multiplicidade de redes possíveis na combinação
dos processos de inserção social. É preciso ter cuidado para não cairmos em
processos de competição e de não-reconhecimento do outro, que nos levam à
solidão, à colonização, mas que, por isso, devem ser processos
democratizados, comunitários e solidários, tornando conhecidas as alternativas
locais e através de uma teoria da tradução criar inteligibilidades e
cumplicidades recíprocas. Nesse sentido, a emancipação pode ser uma “utopia
realista”, como iniciativa de “[...] grupos oprimidos que, num mundo onde
parece ter desaparecido a alternativa, vão construindo, um pouco por toda
parte, alternativas locais que tornam possível uma vida digna e decente [...]”
(Santos, 2005a, p. 36), num caminho em que é preciso ter cuidado sempre.
94
3 FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES EM SERVIÇO COMO
PROCESSO DE GESTÃO DEMOCRÁTICA DA FORMAÇÃO DOCENTE
“Redefinir o conceito de democracia, ampliando-o ao conjunto da vida social,
permite redefinir, politicamente, as ações sociais que podem favorecer a sua
construção enquanto sistema social fundado em ações democráticas em todas
as esferas da vida social. Assim sendo, essas ações, desenvolvidas por
subjetividades democráticas, supõem que estas últimas sejam tecidas através de
processos reais de aprendizagem, formais e cotidianos, de saberes e valores
democráticos”.
Inês Barbosa de Oliveira
A questão da formação continuada de professores é complexa e exige reflexão
sobre sua caracterização, significado e alcance. Ela tem-se estabelecido como
um tipo de formação docente que vem cada vez mais consolidando-se nas
propostas oficiais brasileiras como uma das alternativas às demandas por
profissionais habilitados a contribuir para a melhoria da qualidade da educação,
a autonomia e a gestão democrática da escola diante dos desafios de nosso
tempo. Esse também é um debate que envolve uma discussão paradigmática
da educação e das tendências teórico-práticas que fundamentam as propostas
dirigidas a essa formação e que não podem ficar à margem da análise desses
profissionais como se fossem meros consumidores do que lhes é oferecido.
Nesse capítulo, buscaremos correlacionar processos de gestão democrática e
de formação continuada de professores em serviço, a fim de analisar as
possibilidades de essa modalidade de formação configurar-se como processo
de gestão democrática da formação docente, proporcionando, assim,
condições para a emancipação e a autonomia desses profissionais.
95
3.1 A FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES COMO UM
PROCESSO
Começaremos nossa reflexão pela idéia de formação continuada docente
como processo. De um modo geral, podemos dizer que os processos de
formação docente começam antes da chamada formação inicial, ou seja, antes
do ingresso nos cursos de preparação para o magistério, e prossegue durante
o exercício da prática profissional. Os professores, antes disso, tiveram,
durante sua experiência escolar como alunos, condição de refletir sobre o
papel dos docentes, a escola, suas tarefas e funções. Depois disso, como
professores, também continuaram a vivenciar esse processo, ampliando suas
redes de saberes fazeres no cotidiano escolar e em outros espaços tempos de
formação.
Podemos ainda dizer que esses são processos dinâmicos que dizem respeito
aos chamados saberes práticos e da experiência, conhecimentos e habilidades
que o professor vai adquirindo, construindo, filtrando, gestando, de um modo
contínuo. Eles podem ser desencadeados por iniciativa própria, pessoal, do
grupo de professores ou do professor, em busca de respostas a situações da
vida profissional. Como exemplo de uma iniciativa pessoal de caráter
individual, podemos citar a iniciativa de um professor que busca cursos de
especialização por conta própria, fora do horário de trabalho. Como exemplo
de uma iniciativa pessoal coletiva, citamos a de um grupo de professores que
resolvem estudar em grupo um determinado tema com o objetivo de solucionar
problemas na sala de aula, às vezes com a ajuda de um especialista, um
profissional para dar acessoria técnica ou não. Nesses casos, ambas foram
iniciativas próprias.
O processo de formação continuada também pode desencadear-se a partir da
iniciativa institucional. Um exemplo dessa tentativa são os programas de
formação continuada de professores propostos pelo MEC, assim como os
propostos pelos diversos sistemas de ensino no Brasil. Nesses casos, cabe à
96
instituição a responsabilidade de financiar, organizar os espaços tempos de
formação, tais como os horários e locais específicos para estudo, as
modalidades e as estratégias de estudo, ou seja, cabe providenciar as
condições para que os processos de formação aconteçam.
Nesse sentido, Alves (2002) vem auxiliar-nos destacando alguns dos
importantes contextos em que se realizam os processos de formação docente.
A partir deles, analisaremos a possibilidade de ampliação desse conceito no
nosso estudo:
a) o da formação acadêmica, que se desenvolve nos diversos cursos existentes;
b) o das propostas oficiais, que não pode ser confundido com o anterior, pois o institucional muda, necessariamente, em cada espaçotempo concreto, a proposta feita e desenvolvida;
c) o das práticas pedagógicas cotidianas, no qual cada dia com uma ou muitas turmas vai (vão) ensinando a cada profissional a ser professor/professora e a cada aluno/aluna as possibilidades de sê-lo;
d) o das culturas vividas, entre as quais referências especiais devem ser feitas às práticas políticas coletivas, de variadas articulações, nas quais cada um/uma aprende a ser cidadão/cidadã, e aos contatos com as tecnologias – sempre presentes e tão variadas – mas pouco compreendidas até hoje;
e) o das pesquisas em educação que, cada vez mais acessível a professoras e alunos/alunas, por um claro esforço de extensão dos sujeitos da universidade, questionam os diversos contextos, inclusive o seu próprio, ouvindo os sujeitos dos tantos contextos e buscando compreender suas relações e fazendo-as públicas, com crescente freqüência (ALVES, 2002, p. 18, grifos da autora).
Como se observa, a autora não classifica a formação docente como inicial ou
continuada, permanente ou final, mas desloca sua atenção para o sujeito
dessa formação e para a formação como um continuum. Sendo assim, o
sujeito da formação está em constante processo de formação, ao se inserir
nesses vários contextos. Resumidamente, formação é um processo de
aprendizagens contínuas que se realizam durante toda nossa vida.
Em nosso estudo, estamos concentrando-nos na formação continuada de
professores em serviço, ou seja, naqueles processos de formação que ocorrem
97
em situação de trabalho e predominam no ambiente escolar, nas práticas
pedagógicas cotidianas, propostos pela iniciativa institucional e a serem
desenvolvidos coletivamente. Essas iniciativas são mais fáceis de investigar,
porque são de domínio público, de interesse dos professores e da sociedade,
no sentido de acompanharmos os passos que são dados na busca pela
melhoria da qualidade da educação e pela valorização do magistério.
No entanto, mesmo que as iniciativas sejam tomadas pelas instituições
públicas de educação, o que as torna responsáveis por providenciar as
condições para que esses processos aconteçam, os processos de formação
continuada de professores em serviço não estão sob total controle nem das
instituições, nem dos professores, já que não existe controle absoluto sobre os
rumos dos processos de transformação social. O que propomos, nesse caso,
a exemplo de Santos (2005a), é que esses processos sejam processualmente
democratizados, e possam contribuir para a existência de emancipação dos
sujeitos em formação, para a produção de conhecimento-emancipação. Nesse
sentido, a formação continuada de professores em serviço constitui-se em
processo de contínuas aprendizagens que se realizam na formação/gestão de
redes de subjetividades compartilhadas por sujeitos praticantes, no cotidiano
escolar, e que, se adotado como um processo de gestão democrática da
formação docente, apresenta grande potencial emancipador.
3.2 A FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES E A FORMAÇÃO DE
SUBJETIVIDADES
Vimos conduzindo uma linha de pensamento sobre a possibilidade de uma
democracia mais democrática, sob a perspectiva que une as três teses de
Santos de que não há democracia sem condições de democracia; há
necessidade de democratização das relações em todos os espaços estruturais;
a democracia das práticas sociais não é suficiente, se o conhecimento que as
orienta não é democrático. A discussão sobre a indissociabilidade entre essas
98
três teses, como sugere Oliveira (2006, p. 140), além de revelar que as
condições que se exigem são tanto políticas quanto epistemológicas, também
torna relevante pensar a questão da educação e de sua intervenção sobre a
formação das subjetividades individuais e coletivas mais democráticas.
Algumas dessas possibilidades podem ser pensadas com base na idéia de
Santos sobre a rede de sujeitos que somos
[...] em termos gerais, todos nós, cada um de nós, é uma rede de sujeitos em que se combinam várias subjectividades correspondentes às várias formas básicas de poder que circulam na sociedade. Somos um arquipélago de subjectividades que se combinam diferentemente sob múltiplas circunstâncias pessoais e colectivas (SANTOS, 2005b, p. 107).
Nesse sentido, a formação das subjetividades individuais e coletivas envolve
complexos processos de formação identitária, ao incorporar tanto “[...] os
‘saberes’ formais e cotidianos quanto valores e crenças com os quais entramos
em contato [...]” (OLIVEIRA, 2006, p. 117), definindo as possibilidades de ação
dos sujeitos sobre e no mundo. Conseqüentemente, dentro de um projeto
pedagógico emancipatório, esses processos devem desenvolver-se buscando
torná-las mais aptas a lutar pela emancipação social e pela democracia.
Segundo Oliveira (2006, p. 137), uma das teses de Boaventura de Souza
Santos para o fortalecimento da democracia e para a formação de
subjetividades mais democráticas aborda
[...] a formação de subjetividades mais ou menos democráticas como processos de enredamento e de negociação de sentidos entre as várias experiências vividas pelos sujeitos individuais e coletivos e as possibilidades de ação mais ou menos democráticas como resultado dessas negociações que – embora comportem e incluam um vasto conjunto de possibilidades, em função do imenso número de combinatórias existentes – permitem supor que determinados tipos de experiências práticas e cognitivas tendem a favorecer a formação de subjetividades mais democráticas, enquanto outros tipos de experiências tendem a dificultá-la. Isso porque, apesar da sua incontrolabilidade, esses processos obedecem a uma lógica cuja complexidade cria um leque amplo de possibilidades, mas que não é caótica (OLIVEIRA, 2006, p. 137-138).
99
Essa é uma possibilidade que assume a democracia como princípio regulador
das relações sociais nos espaços constitutivos de nossas redes de
subjetividades que, com o conjunto de saberes e de práticas reais que tecemos
e nos tecem, possibilitam pensar modos de intervenção sobre os processos de
aprendizagem com os quais convivemos e aos quais estamos submetidos.
Essa tarefa exige a compreensão ampliada de como isso ocorre dentro e fora
da escola.
É preciso deixar claro que a democratização dos saberes não é apenas a democratização do acesso a determinados saberes sistematizados e estruturados numa ordem reconhecida, que podem funcionar como auxiliares tanto na compreensão da realidade social como na respeitabilidade sócia, em função do valor que é socialmente atribuído a esses saberes, mas também, e sobretudo, a democratização das relações entre os diversos saberes numa perspectiva de revalorização social dos saberes chamados “não-formais”, “cotidianos” ou do “senso-comum” que integram nossas competências de ação social e que podem nos permitir pensar processos de tessitura do conhecimento-emancipação, ligado à idéia de solidariedade e a formas de relacionamento social fundadas não na ordem e na hierarquia, mas em possibilidades de criação de uma “ordem” social auto-organizada, a partir de processos de negociação mediados por relações de autoridade partilhada (OLIVEIRA, 2006, p. 150).
Para a autora, devemos reconhecer os limites de nossas subjetividades,
menos democráticas do que gostaríamos que fossem em termos de
competência para ação democrática, pela dificuldade de nos libertarmos de
alguns processos formadores das redes de subjetividades que somos. Esses
processos de aprendizagem social, pelos quais internalizamos valores e
práticas pouco democráticos durante nossas vidas, nem sempre são claros e
explícitos. É preciso avançar na criação de modos de ruptura com esses
valores insuficientemente democráticos, considerando duas suposições:
A primeira é que incorporamos os valores dominantes através das práticas sociais com as quais convivemos e dos “saberes” que nos chegam através de experiências da vida cotidiana ou de processos formais de aprendizagem, sob tutela da sociedade de dominação em que vivemos. A segunda repousa sobre a idéia de que agimos em função das possibilidades que essas aprendizagens nos proporcionam na medida em que formam nossas subjetividades (OLIVEIRA, 2006, p. 151).
100
A conclusão a que a autora chega é de que, se essas suposições são válidas,
também é válido vislumbrar a possibilidade de se criarem formas de
desenvolvimento desse mesmo tipo de processo no sentido da
democratização. Sendo assim, pensar na formação de subjetividades mais
democráticas, fundadas em saberes mais democráticos, que podem
desenvolver ações sociais mais democráticas, requer compreender o
enredamento da ação com a realidade mais ou menos democrática dos
diversos espaços tempos nos quais se inscreve, de modo que se
compreendam e se valorizem as reflexões e as ações daqueles que estão
envolvidos na circunstância e que pensaram suas possibilidades de ação em
diálogo com os limites e as possibilidades específicos dessa ação sobre essa
realidade. Assim, torna-se importante considerar a sua relação com um modelo
sociopolítico e econômico em que predominar o capitalismo neoliberal do
mundo globalizado.
3.3 A FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES EM SERVIÇO COMO
GESTÃO DEMOCRÁTICA DA FORMAÇÃO DOCENTE
Assim como Barros (2005), acreditamos em caminhos alternativos que se
abrem para forças comprometidas com a democracia e com a cidadania ativa,
na utopia de relações sociais e humanas de caráter solidário. A autora destaca
a importância de se introduzir a análise do currículo real e do trabalho real que
se forjam nas complexas redes do dia-a-dia da escola nos programas de
formação docente. Segundo Barros (2005, p. 74), essa análise “[...] não faz
parte dos processos de formação docente em suas diferentes dimensões,
priorizando-se o que está prescrito para o desempenho dos educadores/as e
os saberes formais/institucionalizados”.
É preciso levar em conta, como Ferraço (2002a), que, no ambiente escolar,
são tecidos diferentes currículos reais, fruto da diversidade de ações,
superações e ressignificações produzidas e compartilhadas por sujeitos
101
praticantes nos cotidianos escolares, que permitem processos de formação
continuada e que produzem subjetividades. Assim, é necessário considerar
que, em toda atividade humana há um “[...] debate de normas, gestão do
instante e, implica escolhas que se situam no plano dos valores que não pode
ser deduzida de uma generalização científica objetiva” (BARROS, 2005, p. 78).
A tentativa de prescrição esbarra nas histórias e valores, nas escolhas e
arbitragens de professores e alunos, uma vez que o trabalho na escola não se
reduz ao prescrito, ao realizado, envolvendo também “[...] o possível e o
impossível, a criação de normas de funcionamento coletivo, as atividades
suspensas, contrariadas, impedidas, ou seja, implica concepção e redefinição
da tarefa pelo docente” (BARROS, 2005, p. 74).
O trabalho real, assim como a “formação real”, resiste às prescrições, que
embora sejam importantes, não conseguem dar conta da sua complexidade.
“As situações de trabalho implicam, portanto, mobilização subjetiva para lidar
com coisas que não funcionam, para achar caminhos e, em função dos
fracassos, chegar a encontrar soluções” (BARROS, 2005, p. 87). Para isso, é
preciso que as pessoas que trabalham na escola e a fazem funcionar, não
apenas conheçam
[...] os procedimentos, os regulamentos, ou seja, as prescrições elaboradas pelas instâncias que administram as políticas públicas educacionais, mas que elas também os subvertam em algumas situações, que usem sua ‘inteligência prática’, que trabalhem com sua engenhosidade, que façam o sistema educacional beneficiar-se de sua potência de criação e que inventem, em suas relações cotidianas, a cooperação, uma vez que essa última não prescreve (BARROS, 2005, p. 87).
Nesse sentido, trabalhar, formar e gerir confunde-se com o próprio processo de
criação de si, em que “[...] trabalhar é gerir modos de si e de mundo, é
fabricação de determinadas formas-subjetividades. A gestão do trabalho abre a
possibilidade de produção de outros modos de subjetivação [...]” (BARROS,
2005, p. 80) que rompem com o instituído e com a prescrição, em consonância
com o processo vital e o fruto do trabalho vivo, que criam redes de cooperação
102
que se atualizam e que resistem às estratégias da gerência verticalizada e
tecnicista da educação no contemporâneo. Assim, podemos concluir que a
formação continuada de professores em serviço é um processo de contínuas
aprendizagens que se realiza privilegiadamente no cotidiano escolar e envolve
a formação identitária desse profissional da educação e a gestão criativa das
redes de subjetividades que somos.
Nossa pretensão de fazer uma correlação entre a formação continuada em
serviço e os processos de gestão democrática da escola desenha-se, então, da
seguinte forma: a formação continuada de professores em serviço é um
processo de contínuas aprendizagens que se realiza na formação/gestão de
redes de subjetividades compartilhadas por sujeitos praticantes, no cotidiano
escolar. É também uma modalidade de formação que, quando desenvolvida a
partir da formação de grupos de estudo e para a solução de problemas por
meio da solidariedade e da argumentação entre seus membros tendo em vista
projetos locais, se aproxima da noção de comunidades interpretativas
(SANTOS, 2005a). Nesse sentido, esses grupos são potencialmente
produtores e/ou articuladores de conhecimento-emancipação, que progride da
colonização para a solidariedade, assumindo, assim, uma relevância nos
processos tanto de formação docente como de gestão democrática da escola.
Para que esse processo de formação de professores se estabeleça como um
processo de gestão democrática da formação docente, precisa adotar a
democracia como princípio organizador de suas relações. Por sua vez, a
democratização exige condições epistemológicas e políticas para seu
funcionamento, relacionadas à democratização das relações, dos saberes e
das subjetividades. Se levarmos em consideração essas questões dentro de
um quadro de transição paradigmática, com o proposto por Santos (2005a),
veremos que elas estão relacionadas à sensocomunicação da ciência como
condição epistemológica e à solidariedade como condição política, modificando
a visão de gestão para além da gestão “cientifica”. O sucesso que esses
grupos terão ou não como alternativa democrática de formação docente
103
dependerá do sucesso que obtiverem em manter essas condições tanto
internamente quanto externamente ao grupo. Esses grupos são comunidades
interpretativas (SANTOS, 2005a).
É preciso considerar que esses grupos de estudo estão inseridos num contexto
social e político que os tenta regular, seja por meio de políticas públicas
educacionais seja por outras formas de regulação não formais que contribuem
ou não para a maior ou menor autonomia dos sujeitos em formação e
influenciam e sofrem influências no seu desenvolvimento.
3.4 USO, TÁTICA, ESTRATÉGIA, SUJEITOS PRATICANTES: UMA
POSSÍVEL AÇÃO POLÍTICA DOS PROFESSORES NOS ESPAÇOS TEMPOS
DO COTIDIANO ESCOLAR
Trazendo essa discussão para o campo da formação de professores,
introduzimos o pensamento de Carvalho (2002), para quem “[...] o professor
como qualquer dos cidadãos de uma comunidade, está inserido numa
formação histórico-social que ele engendra, mas é, também, engendrado”. A
autora completa seu raciocínio defendendo que “[...] ressuscitar ou deixar
morrer a sabedoria, a criação, o projeto, a alegria na escola envolve a omissão
à vivência participativa do professor e, em qualquer dos casos, à sua ação
política” (CARVALHO, 2002, p. 27).
A autora busca em Castoriadis (1982) o argumento de que qualquer
transformação ou possibilidade de instauração de uma prática inovadora não é
possível em si mesma nem compreensível a nós, se não for colocada em
relação ao magma de significações imaginárias sociais que o sistema
sociopolítico, econômico e cultural gera e que faz com que permaneça em nós.
Para Castoriadis, a sociedade se estabelece e se institui (instituições) sobre as dimensões do econômico-funcional, mas também pela dimensão do simbólico. Assim, o real, o racional e o simbólico se entrecruzam e interpenetram na formação do imaginário social que
104
fornece identidade a dada sociedade pelo magma de significações (CARVALHO, 2002, p. 28).
Carvalho (2002) acrescenta que o sistema de representações traduz um
sistema de crenças e valores que, em última instância, legitima a ordem social
vigente, numa complexa rede de sentidos, na luta pela hegemonia. Esse poder
hegemônico manifesta-se na forma como a sociedade se institui, pela natureza
de suas instituições. No entanto, no caso da escola e da prática pedagógica
dominante, por exemplo, “[...] o uso, a presença e a articulação de uma
representação (ensinada por pregadores, vulgarizadores ou educadores) não
indicariam, de modo algum, o que ela é para os seus usuários” (CARVALHO,
2002, p. 28). Isso porque, ao chegarem à escola, o professor e o aluno não
abandonam os mitos, crenças e idéias próprias. Eles carregam consigo
processos de subjetivação instituídos a partir de um sistema sociopolítico,
econômico e cultural, sendo então possível dizer da existência não da Escola,
mas de escolas, pela multiplicidade de representações e significações.
A autora conclui que, para investigar o imaginário, é preciso adentrar pelas vias
da linguagem, dos ritos, dos mitos, e admiti-lo como algo que se institui,
instituindo sentido à vida humana e social. Faz-se então necessário analisar a
manipulação da representação (seu uso) pelos fabricantes, que não a fabricam
para apreciar a diferença entre a produção primária e secundária que se
esconde nos processos de sua utilização.
À medida que os professores deixam de ser responsáveis pela produção dos objetivos, conteúdos, métodos de seu trabalho (transferidos para equipes técnicas, livros didáticos e outros), ocorre um estranhamento entre os professores e a sua produção/trabalho, com conseqüências evidentes para o uso por parte dos alunos. Nesse processo, tanto professores como alunos tendem a ser consumidores e/ou usuários de saberes e lógicas alienígenas para eles. Isso, porém, não ocorre de modo sempre passivo. Muitas vezes, alunos fazem das ações rituais, representações ou leis que lhes são impostas outra coisa que não aquela que o doutrinador julgava obter. Os alunos as subvertem, não as rejeitando diretamente, mas pela sua maneira de usá-las para fins e em função de referências estranhas ao sistema do qual não podem fugir. O mesmo pode acontecer em relação ao professor e à tecnoburocracia escolar. Supõe-se, assim, que os usuários “[...] façam uma bricolagem com e na economia
105
cultural dominante, usando inúmeras e infinitesimais metamorfoses da lei, segundo seus interesses próprios e suas próprias regras [...]. Desta atividade de formigas é mister descobrir os procedimentos, as bases, os efeitos, as possibilidades” (CERTEAU, 2001) (CARVALHO, 2002, p. 29).
Nessa reflexão, Carvalho (2002) utiliza-se de noções de Certeau (2005) que
são fundamentais para se compreender a gestão como um processo criativo,
ligado às maneiras de uso para fins e “em função de”, isto é, uso criativo,
gestão criativa feita por sujeitos praticantes, numa possível ação política que
pode ser exercida pelo professor.
As noções de Certeau (2005) tiveram grande repercussão internacional no
campo dos estudos culturais, especialmente os que se referem ao cotidiano, à
sociedade de consumo e aos usos midiático-culturais. Sua obra amplia o
entendimento sobre a relação individual das pessoas com as tecnologias;
possibilita a análise sobre o tempo e as dinâmicas das aprendizagens como
fator essencial da apropriação e estabilização dos usos nos hábitos e/ou nas
rotinas; e, especialmente, destaca o caráter fundamentalmente imprevisível e
criativo das pessoas comuns com as “artes de fazer” e nas “maneiras de fazer”
uso dos produtos que lhe são impostos, apropriando-se deles para inventarem
diariamente seu cotidiano.
Então, essas noções tornam-se importantes em relação a todas as propostas
que são feitas para a educação, se considerarmos os professores como seus
usuários. Observamos que a noção de uso se distancia da noção de consumo
passivo, mas aposta na reelaboração/subversão, na gestão dessas propostas
por esses sujeitos praticantes; também especulamos que a ação desses
sujeitos pode aproximar-se da noção de subjetividades rebeldes (SANTOS,
2005a), na luta contra a dominação, em prol da emancipação.
Nas palavras de Ferraço (2002b, p. 125), Certeau
106
[...] advoga a favor de uma antidisciplina articulada por redes de astúcias, táticas, maneiras e artes de fazer que, entre outras coisas, subvertem a ordem imposta através de microdiferenças, desvios sutis e criações anônimas, que irrompem com vivacidade o dia-a-dia e não se capitalizam. Nesta abordagem, por efeito, o conceito de consumo que denota uma certa passividade por parte de quem consome, seria substituído pelo conceito de uso, que implica numa ação mais consciente e ativa.
Podemos perceber Michel de Certeau um elã otimista, uma generosidade da
inteligência e uma confiança depositada no outro, de sorte que nenhuma
situação lhe parece a priori fixa ou desesperadora. Sua posição resume-se
numa tira que se deve levar a sério:
“Sempre é bom recordar que não se devem tomar os outros por idiota”. Nesta confiança posta na inteligência e na inventividade do mais fraco, na atenção extrema à sua mobilidade tática, no respeito dado ao fraco, sem eira nem beira, móvel por ser assim desarmado em face das estratégias do forte, dono do teatro de operações, se esboça uma concepção política do agir e das relações não igualitárias entre um poder qualquer e seus súditos (GIARD, apud CERTEAU, 2005, p. 19-20).
O autor reconhece a capacidade dos indivíduos para a autonomia e a liberdade
perante ao universo construído pelas indústrias tecnológicas e de consumo
cultural e busca compreender os mecanismos pelos quais, em um conjunto
muito grande de práticas da vida cotidiana, eles manifestam suas capacidades
criativas, “astúcias” e “engenhosidades”, para caminhar de maneira própria,
seja transformando, seja se distanciando-se dos serviços e tecnologias que
lhes são propostos. Nesse sentido, o autor tenta mostrar como as práticas dos
usuários marcam um fosso, uma diferença, nesses programas que as
tecnocracias e as indústrias culturais tentam impor. Para Certeau (2005), os
sujeitos comuns, os usuários, manifestam uma forma de resistência moral e
política ao fazer “bricolagens”, “caças furtivas”, colocando em ação um jogo
sutil de táticas pelo controle do tempo, das oportunidades de se opor às
estratégias das grandes instituições assegurados por sua colocação no
espaço.
107
Uma de suas idéias centrais é a de cotidiano:
O cotidiano é aquilo que nos é dado cada dia (ou que nos cabe em partilha), nos pressiona dia após dia, nos oprime, pois existe uma opressão do presente. Todo dia, pela manhã, aquilo que assumimos, ao despertar, é o peso da vida, a dificuldade de viver, ou de viver nesta ou noutra condição, com esta fadiga, com este desejo. O cotidiano é aquilo que nos prende intimamente, a partir do interior. É uma história a meio-caminho de nós mesmos, quase em retirada, às vezes velada. Não se deve esquecer este “mundo memória”, segundo a expressão de Péguy. É um mundo que amamos profundamente, memória olfativa, memória dos lugares da infância, memórias do corpo, dos gestos da infância, dos prazeres. Talvez não seja inútil sublinhar a importância do domínio desta história “irracional”, ou desta “não-história”, como diz ainda A. Dupront. O que interessa ao historiador do cotidiano é o Invisível [...] (LEUILLIOT, apud CERTEAU; GIARD; MAYOL, 2003, p. 31).
É importante destacar que examinar essas práticas cotidianas não implica um
regresso dos indivíduos ao atomismo social, que serviu de postulado histórico
para a análise da sociedade durante o período da Idade Moderna, quando o
indivíduo era visto como uma unidade elementar a partir da qual seriam
compostos os grupos e à qual sempre seria possível reduzi-los. Isso implica
mostrar que a relação social determina seus termos e que cada individualidade
é o lugar onde atua uma pluralidade incoerente e contraditória de
determinações relacionais.
Para Certeau (2005, p. 41) “[...] essas ‘maneiras de fazer’ constituem as mil
práticas pelas quais usuários se reapropriam do espaço organizado pelas
técnicas da produção sócio-cultural [...]”, alterando o seu funcionamento. Ao
procurar viver da melhor forma possível, com astúcias anônimas das artes de
fazer, o homem ordinário (FREUD, apud CERTEAU, 2005, p. 63) vai criando,
inventando o cotidiano, escapando silenciosamente ao lugar que lhe é
atribuído. Esse homem ordinário remete-nos à idéia de sujeitos praticantes,
pessoas comuns. Nos espaços tempos escolares, professores e alunos fazem
da escola um lugar praticado, ou seja, não são consumidores passivos de uma
gama de propostas que lhes são endereçadas, mas usuários delas, num
constante criar do cotidiano.
108
Ampliando ainda mais o pensamento de Certeau (2005), é preciso introduzir
outras idéias: espaço e lugar, tática e estratégia. A idéia de lugar e espaço tem
como possibilidade definir um campo específico, entendendo o cotidiano como
esse espaço praticado pelos sujeitos.
Um lugar é a ordem (seja qual for) segundo a qual se distribuem elementos nas relações de coexistência. Aí se acha, portanto excluída a possibilidade, para duas coisas, de ocuparem o mesmo lugar. Aí impera a lei do “próprio”: os elementos considerados se acham uns ao lado dos outros, cada um situado num lugar “próprio” e distinto que define. Um lugar é portanto uma configuração instantânea de posições. Implica uma indicação de estabilidade. Existe espaço sempre que se tomam em conta os vetores de direção, quantidades de velocidade e a variável tempo. O espaço é um cruzamento de móveis. É de certo modo animado pelo conjunto dos movimentos que aí se desdobram. Espaço é o efeito produzido pelas operações que o orientam, o circunstanciam, o temporalizam e o levam a funcionar em unidade polivalente de programas conflituais, ou de proximidades contratuais (CERTEAU, 2005, p. 201-203, grifos nossos).
Nesse contexto discutido pelo autor, o espaço é modificado pelas
transformações devidas a proximidades sucessivas. Não tem, portanto, nem a
univocidade nem a estabilidade de um lugar. Dessa forma, espaço é o lugar
praticado: a rua, o aeroporto, uma praça ou uma escola são transformadas em
espaço pelas pessoas (pedestres, viajantes, alunos, e outros) que nele
circulam e a ele dão vida. São as ações dos sujeitos que definem os espaços.
Já os lugares estão ali, estáticos, na inércia.
Examinando as práticas do dia-a-dia a partir da experiência de oposição entre
lugar e espaço, Certeau (2005) remete-nos aos relatos como possibilidades de
transformar lugares em espaços ou espaços em lugares. Nos relatos há duas
espécies de determinações: uma, por objetos estanques, fixos, outra, por
operações que, atribuídas a um objeto, especificam os espaços pelas ações
dos sujeitos históricos.
109
Carvalho (2002), ao considerar os espaços como ações de sujeitos históricos,
vê que a escola, geométrica e arquitetonicamente definida, é transformada em
espaço pelos professores, alunos e outros agentes, por meio de práticas
discursivas que transformam incessantemente lugares em espaços e espaços
em lugares. Passamos a pensar e entender a escola como espaço, portanto,
como lugar praticado onde os sujeitos cotidianos inventam o dia-a-dia, criam
formas novas de lidar com situações e dão vida aos lugares. São os sujeitos
professores, alunos, serventes, merendeiras, pais, que fazem da escola um
lugar onde a vida pulsa e as invenções e criações podem ser percebidas.
Seguindo nessa discussão sobre o pensamento de Certeau (2005),
destacamos a distinção entre táticas e estratégias. Para esse autor, na vida
cotidiana estamos o tempo todo envolvidos com essas artimanhas e burlas. É
através delas e por elas que lidamos com as situações complexas do cotidiano
e são elas que nos fazem enfrentar o movimento da vida.
O autor define estratégia da seguinte forma:
Chamo de estratégia o cálculo (ou a manipulação) das relações de forças que se torna possível a partir do momento em que um sujeito de querer e poder (uma empresa, um exército, uma cidade, uma instituição cientifica) pode ser isolado. A estratégia postula um lugar suscetível de ser circunscrito como algo próprio a ser a base de onde se podem gerir as relações com uma exterioridade de alvos ou ameaças (os clientes ou os concorrentes, os inimigos, o campo em torno da cidade, os objetivos e objetos da pesquisa etc.). Como na administração de empresas, toda racionalização “estratégica” procura em primeiro lugar distinguir de um “ambiente” um “próprio”, isto é, o lugar do poder e do querer próprios. Gesto cartesiano, quem sabe: circunscrever um próprio num mundo enfeitiçado pelos poderes invisíveis do Outro. Gesto da modernidade científica, política ou militar (CERTEAU, 2005, p. 99).
Nesse sentido, coloca em evidência como a estratégia é vinculada ao poder
hegemônico e dominante, um gesto cartesiano da modernidade que tentou
dominar usando a estratégia como forma de convencimento, de argumentação
e de intimidação dos fortes sobre os fracos. Os que usam as estratégias são
aqueles que dominam o tempo para conquistar e preparar expansões e obter,
110
assim, uma independência em relação ao outro; aqueles que dominam os
lugares a partir da observação e medida para melhor controlar, prever e
antecipar leituras do espaço; finalmente, aqueles que definem o poder do saber
por essa capacidade de transformar as incertezas da história em espaços
legíveis. A estratégia é aqui comparada à gestão de relações com uma
exterioridade de alvos ou ameaças; à administração de uma empresa. Pode,
também, ser transportada para a realidade escolar como gestão escolar e da
educação, abrangendo as políticas educacionais de formação, por exemplo.
De acordo com Certeau (2005, p. 101), “[...] a tática é a arte do fraco”. Ela é
determinada pela ausência de poder, ao contrário da estratégia que está ligada
ao poder. Na tática, quanto menor o poder, maior a possibilidade de produzir
efeitos de astúcia. Assim, para Certeau (2005, p. 101), citando Clausewitz
(1955, p. 212-213): “Quanto mais fracas as forças submetidas à direção
estratégica, tanto mais esta estará sujeita à astúcia”.
Sobre o conceito de tática o autor ainda diz:
Chamo de táticas a ação calculada que é determinada pela ausência de um próprio. [...] A tática não tem por lugar senão a do outro. E por isso deve jogar com o terreno que lhe é imposto tal como o organiza a lei de uma força estranha. Não tem meios para se manter em si mesma, à distância, numa posição recuada, de previsão e de convocação própria: a tática é movimento “dentro do campo de visão do inimigo”, [...] e no espaço por ele controlado. Ela não tem portanto a possibilidade de dar a si mesma um projeto global nem de totalizar o adversário num espaço distinto, visível e objetivável. Ela opera golpe por golpe, lance por lance. Aproveita as “ocasiões” e delas depende, sem base para estocar benefícios, aumentar a propriedade e prever saídas (CERTEAU, 2005, p. 100).
Seguindo o pensamento de Certeau (2005), vemos que o autor relaciona a
tática à arte de “dar um golpe”, que se introduz por surpresa, pelo senso de
ocasião, estabelecendo uma relação entre estratégia e tática com a sofística e
a retórica, em que a palavra destaca a relação de forças que está no princípio
de uma criatividade intelectual tão “[...] tenaz como sutil, incansável, mobilizada
à espera de qualquer ocasião, espalhada nos terrenos da ordem dominante,
111
estranha às regras próprias da racionalidade e que esta impõe com base no
direito adquirido de um próprio” (CERTEAU, 2005, p. 102). Portanto, as
estratégias são ações que, “[...] graças ao postulado de um lugar de poder (a
propriedade de um próprio), elaboram lugares teóricos (sistemas e discursos
totalizantes), capazes de articular um conjunto de lugares físicos onde as
forças se distribuem” (CERTEAU, 2005, p. 102).
As táticas são procedimentos que valem pela pertinência que dão ao tempo - às circunstâncias que o instante preciso de uma intervenção transforma em situação favorável, à rapidez de movimentos que mudam a organização do espaço, às relações entre momentos sucessivos de um “golpe”, aos cruzamentos possíveis de durações e ritmos heterogêneos etc. [...] As estratégias apontam para a resistência que o estabelecimento de um lugar oferece ao gasto do tempo; as táticas apontam para uma hábil utilização do tempo, das ocasiões que apresenta e também dos jogos que introduz nas fundações de poder. Ainda que os métodos praticados pela arte da guerra cotidiana jamais se apresentem sob uma forma tão nítida, nem por isso é menos certo que apostas feitas no lugar ou no tempo distinguem as maneiras de agir (CERTEAU, 2005, p. 102, grifos nossos).
No entanto, táticas e estratégias em Certeau (2005) apontam lugares
diferentes que os sujeitos praticantes ocupam na relação cotidiana: ora lugares
de poder, ora lugares de ausência de poder, porém, em nenhum momento
apontam a submissão desses sujeitos, pelo contrário, a todo tempo os sujeitos
praticantes estão criando formas de burlar o poder estabelecido e fazer valer
suas vontades, desejos e sentimentos.
Oliveira (2003) faz uma importante observação ao refletir sobre a complexa
relação entre as propostas curriculares (que aqui também podem ser
entendidas como propostas oficiais para a educação, de modo geral, voltadas
para a gestão da escola e para a formação docente) e as práticas reais dos
professores no cotidiano:
Lamentavelmente, é comum, entre pesquisadores “progressistas” em educação, entender as propostas ditas inovadoras como emancipatórias e atribuir a sua não-efetivação nas escolas à incapacidade e desinteresse dos professores, supostamente
112
“resistentes” à novidade por estarem, na sua infinita ignorância teórica e repetitividade prática, irremediavelmente vinculados à regulação dos chamados “currículos tradicionais” e dos valores dominantes. Por outro lado, e de modo igualmente parcial e dicotomizante, outros pesquisadores louvam os professores que estão nas salas de aula como os “verdadeiros lutadores” pela emancipação, que buscam sempre reduzir o caráter regulatório das propostas curriculares através de práticas emancipatórias que desenvolvem em seus cotidianos. Ambas as posturas partem de um parti pris, favorável ao saber formal e às grandes propostas no primeiro caso, e à criatividade e comprometimento docente no segundo, ambos desconsiderando a complexidade que envolve tanto os processos de formulação de propostas curriculares e políticas educacionais como o desenvolvimento das práticas docentes (OLIVEIRA, 2003, p. 80–81).
Para a autora, é preciso ver que
[...] os professores tecem suas práticas cotidianas a partir de redes, muitas vezes contraditórias, de convicções e crenças, de possibilidades e limites, de regulação e emancipação. Do mesmo modo, as propostas curriculares formais que chegam às escolas são formuladas no seio das mesmas contradições, assumindo um caráter mais ou menos regulatório ou emancipatório em suas diferentes proposições (OLIVEIRA, 2003, p. 81).
Oliveira acrescenta, ainda, que, na visão de Boaventura de Souza Santos, a
busca pela emancipação se dá pela busca de superação da dominação por
meio do estabelecimento de relações mais igualitárias.
Nessa busca por superar dicotomias hierarquizantes fundamentadas na
redução do real a modelos de comportamento monolíticos, Oliveira (2003)
considera que não há nem propostas nem práticas que possam ser
inequivocadamente identificadas com a regulação ou com a emancipação, e
propõe que
[...] o preto e o branco não são as cores que nos permitem captar a complexidade e a riqueza desses processos. Em primeiro lugar, porque propostas de inspiração emancipatórias não implicam necessariamente práticas regulatórias. Em segundo lugar porque a tensão entre regulação e emancipação não representa uma dicotomia, nem mesmo uma gradação linear. São apenas pólos
113
analiticamente estabelecidos para nos auxiliar na tarefa de busca de práticas e de saberes mais emancipatórios do que aqueles que hoje se apresentam como dominantes. A regulação e a emancipação devem, portanto, ser entendidas como formulações modelares e não como dados absolutizados de uma realidade qualquer (OLIVEIRA, 2003, p.82-83).
Podemos argumentar que a formulação tanto dos processos de gestão quanto
das propostas político-pedagógicas, englobando aí as propostas para formação
docente endereçadas à escola, aos professores e aos alunos, pode ser
portadora de um potencial emancipatório se e quando for fundamentada “[...]
em uma epistemologia crítica e suficientemente flexível para manterem abertas
as possibilidades reais dos professores que a utilizarão, respeitando-lhes os
saberes e subjetividades, bem como a de seus alunos [...]” (OLIVEIRA, 2003,
p. 83), considerando, desse modo, o potencial desse homem ordinário que
escapa silenciosamente a essa conformação com as suas artes de fazer,
inventando o cotidiano.
As idéias de Certeau (2005) trazidas para o campo da pesquisa educacional
apontam para o cotidiano escolar como espaço/lugar de invenção e
criatividade. Os estudos podem revelar pistas, possibilidades e alternativas
para pensarmos uma educação emancipatória e transformadora, descrevendo
esse espaço a partir dos sujeitos praticantes.
Há um modo de fazer e de criar conhecimentos no cotidiano, diferente daquele aprendido na modernidade, especialmente, mas não só, com a ciência. Para poder estudar estes modos diferentes e variados de fazerpensar, nos quais se misturam agir, pensar, lembrar, criar e dizer, em um movimento a que podemos denominar práticateoriaprática, é preciso nos dedicarmos a questionar os caminhos já sabidos e a indicar a possibilidade de traçar novos caminhos (ALVES; GARCIA, 1997, p. 257).
Carvalho (2002) afirma que a pesquisa das práticas alternativas tecidas no
cotidiano das escolas por professores e alunos pode apontar a intensa
atividade cultural dos “não” produtores de cultura e tirá-los da marginalidade.
Ou seja, pode dar visibilidade ao movimento de criação e inventividade de
114
professores e alunos que, embora inscritos num “coletivo anônimo”, fazem da
escola um espaço praticado e de cultura.
Nesse sentido, a autora discute a formação docente considerando as
estratégias e as táticas como possibilidades de ação política dentro de um
projeto de profissionalização dos professores – como profissionais necessários
aos espaços tempos da escola pública brasileira. Afirma que, nas escolas, as
estruturas tecnocráticas são alteradas por “maneiras de fazer” e/ou por
multiplicidade de “táticas” disseminadas no “miudinho” do cotidiano, com
formas operacionais quase invisíveis, que são assumidas por professores e
alunos em grupos ou individualmente. Nessas operações existem lógicas com
regras e formalidades que precisam ser captadas para análise.
Ainda baseada em Certeau (2005), Carvalho (2002) provoca-nos, instiga-nos a
pensar a escola como um espaço tempo ocupado por estratégias (lugares de
poder, lugares teóricos, lugares físicos, onde as forças se distribuem) e táticas
(hábil utilização do tempo, ocasiões que se apresentam e jogos que introduzem
nas fundações de um poder/saber), observando que o “[...] estudo de algumas
das táticas cotidianas presentes não deve, no entanto, esquecer o horizonte de
onde vêm e, no outro extremo, nem o horizonte para onde deveriam ir”
(CERTEAU, 2001, apud CARVALHO, 2002, p. 38-39). Daí a necessidade de se
observar a estreita relação entre estratégias e táticas quando se pensa “[...] um
projeto estratégico/tático de criação coletiva contextualizada e problematizada,
enfim, enraizada no princípio da comunidade” (CARVALHO, 2002, p. 36-38).
nas discussões sobre a formação docente, Oliveira (2005, p. 43) aproxima as
noções de Certeau (2005) ao campo escolar, ressaltando que a prática
docente não é uma mera repetição de fazeres previstos e/ou planejados de
fora da sala de aula e que a reflexão sobre a prática cotidiana representa uma
instância de autoformação continuada potencializadora de diferentes currículos
praticados tanto na formação quanto no cotidiano do exercício da docência.
Assim, serve-se do pensamento de Certeau (2005) para entender que as
115
inovações produzidas cotidianamente, embora não caracterizem uma grande
inovação, representam uma horizontalização das relações entre aqueles que,
histórica e socialmente, por meio de “táticas desviacionistas” e de “astúcias
cotidianas”, produzem saberes e desfrutam do direito de ser reconhecidos
como seus produtores.
Michel de Certeau estuda essa produção cotidiana de saberes e de formas de sobrevivência dos grupos sociais subalternizados buscando evidenciar os processos pelos quais os “participantes da vida cotidiana” burlam e usam de modo “não-autorizado” as regras e produtos que os poderosos lhes impõem. É com esses grupos subalternizados que vamos identificar nossos educadores e educadoras que estão nas escolas, sendo criticados e desvalorizados tanto pela maior parte dos acadêmicos e pesquisadores quanto pelas chamadas “autoridades educacionais”. Criando “maneiras de fazer” (caminhar, ler, produzir, falar), “maneiras de utilizar”, tecendo redes de ações reais, que não são e não poderiam ser meras repetições de uma ordem social/de uma proposta curricular ou de formação preestabelecidas e explicativas no abstrato, os educadores e educadoras que estão nas escolas tecem redes de práticas pedagógicas que, através de ‘usos e táticas’ de participantes que são, inserem na estrutura social/curricular criatividade e pluralidade, modificadores das regras e das relações entre o poder instituído e a vida dos que a ele estão, supostamente, submetidos (OLIVEIRA, 2005, p. 44-45).
Desse modo, a autora propõe-nos ir além do que foi aprendido na
modernidade, questionando a razão técnica ou científica que acredita saber
como organizar do melhor modo possível as pessoas e coisas, atribuindo-lhes
um lugar, um papel e produtos a consumir. Torna-se importante confrontá-la
com o argumento de que
[...] eliminar o imprevisto ou expulsá-lo do cálculo como acidente ilegítimo e perturbador da racionalidade, é interdizer a possibilidade de uma prática viva e “mítica” da cidade. Seria deixar a seus habitantes apenas os pedaços de uma programação feita pelo poder do outro e alterada pelo acontecimento (CERTEAU, 2005, p. 311-312).
A esse respeito, Oliveira (1999, p. 30) alerta sobre a luta atual contra
processos de dominação muitas vezes legitimados na escola:
116
A principal forma de legitimação do sistema de dominação da sociedade atual é a criação e legitimação de regras e mecanismos de interação supostamente consensuais, mas que permitem e perpetuam a dominação, na medida em que produzem e difundem a idéia de que o sistema é democrático. A escola é uma das instituições da sociedade destinada a assegurar a manutenção desse consenso e a conseqüente reprodução do sistema sendo, deste modo, um lugar onde as relações e práticas sociais dominantes excluem determinados segmentos da comunidade dos processos decisórios internos. É, portanto, pela efetivação de discussões e debates abertos a todos os segmentos da escola, a respeito das formas de interação e de inserção de cada um nelas, bem como dos processos de trabalho internos que se pode agir em prol da ruptura desta forma de dominação. Não negligenciando os mecanismos e instrumentos de repressão existentes na escola, a ação política democratizante prioriza a luta pelo questionamento e transformação dos processos decisórios excludentes e pela criação de condições institucionais e individuais de participação efetiva nesses processos renovados, por ser este tipo de mudança democratizante em si mesma.
Ainda segundo a autora, para que haja o “[...] alvorecer de novas relações
sociais baseadas na participação efetiva e equânime de todos os atores
sociais na escola na busca de um verdadeiro consenso em torno das
regras de integração sobre as quais se erguem essas relações [...]”
(OLIVEIRA, 1999, p. 30-31), é preciso que haja a democratização das
práticas sociais e, portanto, a transformação da ação pedagógica e
metodológica em forma de ações concretas que revalorizem as relações
interpessoais de solidariedade e de cooperação, que reconheçam o
caráter coletivo dos processos de tessitura de conhecimentos e de
construção de identidades, priorizando o desenvolvimento da autonomia
intelectual, psíquica e social.
Desse modo, encontramos mais evidências que nos levam a ponderar sobre a
viabilidade de os processos de formação em serviço funcionarem como
processos de gestão democrática da formação docente no cotidiano escolar,
fruto da ação de sujeitos praticantes, “gestores”/criadores usuários de suas e
de quaisquer outras propostas de formação.
117
Destacamos ainda que pensar a formação continuada em serviço como um
processo de gestão democrática da formação docente também contribui para
que a ação política democratizante no interior da escola ocorra
[...] pela transformação das práticas sociais reais que se desenvolvem em seu interior, tendo em vista a necessidade de se ampliar os espaços de participação, de se ampliar os debates respeitando-se as diferenças de interesse entre os diversos sujeitos e grupos em interação, e criando condições para uma participação autônoma dos diversos segmentos, viabilizando, neste processo, a horizontalização das relações de força entre eles (OLIVEIRA, 1999, p. 31).
As perspectivas para a democratização das relações no interior da escola
apontam para maior participação de todos os envolvidos nos processos de
formação, aumentando, assim, o poder de voz dos que quase se calam,
abrindo espaço para debates, promovendo a autonomia (individual e coletiva)
para decidir, criando espaços para o exercício da cidadania dentro de
princípios e valores democráticos, prezando pelo respeito à diversidade, à
tolerância, à cooperação e pela horizontalização de forças existentes em toda
relação pedagógica, num verdadeiro diálogo que amplia a ação política e
emancipa os sujeitos.
118
4 A ANÁLISE BIBLIOGRÁFICA DOCUMENTAL NO PERÍODO DE
REDEMOCRATIZAÇÃO DO BRASIL
“O professor, como profissional da educação, a quem compete participar da elaboração da proposta pedagógica da escola, zelar pela
aprendizagem dos alunos, participar efetivamente do planejamento e das avaliações das atividades escolares e de articulação com
a comunidade, deve também ser sujeito de seu próprio desenvolvimento profissional. Isto é,
compete a este profissional participar ativamente dos programas, projetos e ações de
formação continuada que visam qualificar o trabalho docente. Para garantir o cumprimento
a essas orientações legais, compete aos sistemas de ensino instituir políticas voltadas à
garantia das condições de trabalho dos profissionais da educação”.
(BRASIL, 2006, p.17)
Neste capítulo buscamos analisar os documentos e propostas oficiais e as leis
nacionais que abordam a formação continuada de professores em serviço e a
gestão democrática da escola, a fim de identificar seus fundamentos políticos e
epistemológicos e as possibilidades de essa modalidade de formação
estabelecer-se como um processo de gestão democrática da formação para
uma possível emancipação docente.
Tendo em vista que as propostas e as política públicas educacionais que
pretendemos abordar foram geradas no período de redemocratização do
Brasil, procuramos fazer uma retrospectiva do contexto sócio-histórico e
político nacional relativo a esse passado recente.
4.1 CONTEXTO SÓCIO-HISTÓRICO E POLÍTICO
Os processos de redemocratização do Brasil desenvolveram-se com o fim da
ditadura militar (1964 – 1985), caracterizando uma época em que havia a
possibilidade de se efetivar a eleição direta para presidente. O
desencadeamento dos fatos culminou com a promulgação da Constituição
119
Nacional de 1988. Conseqüentemente, houve uma reação em cadeia de
reelaborações legais harmonizadoras em relação à nova Lei Maior. Ocorreu,
então, a promulgação das várias constituições estaduais.
Essa época caracterizou-se, assim, por um sentimento de esperança de
emancipação política, social e cultural que, no entanto, esbarrava em muitos
desafios e limites impostos à implantação de políticas públicas
verdadeiramente democratizantes, fossem elas educacionais ou não. Levando-
se em conta a realidade brasileira, podemos citar algumas dificuldades quanto
aos recursos públicos federais, estaduais e municipais para a implantação de
uma política unitária, porém descentralizada, que transformasse nossa
realidade educacional de forma a garantir uma educação de qualidade a todos;
à vontade política de nossos governantes, já que uma política nesse nível se
estenderia por mais de um mandato; ao apoio de toda a sociedade, incluindo
os educadores, os partidos políticos, os Poderes Executivo, Legislativo e
Judiciário, os movimentos sociais e organizações não governamentais, entre
outros, em torno de metas educacionais, no combate à corrupção que desvia
verbas públicas da educação.
Com relação à realidade externa (internacional), podemos citar limites que
envolvem nossas relações com outros países; a globalização da economia e as
políticas de cunho neoliberal e financiamento da educação adotadas por
instituições, como o Banco Mundial e o FMI, baseadas no desenvolvimento do
“capital humano”, e que muitas vezes desprezam ou desconhecem os recursos
naturais, materiais, culturais das diversas localidades onde se encontram
nossas escolas; além de situações particulares, não desvinculadas das
realidades anteriores, que influenciam o resultado final de nossas ações.
Ainda podemos acrescentar que temos cada vez mais sofrido influências
externas e sido submetidos a processos de regulamentação desses órgãos
internacionais (Banco Mundial e FMI) e de empresas multinacionais, que
“ameaçam” a soberania nacional ao imprimir sua forma de gestão nos diversos
120
campos, entre eles o educacional. Esses são processos a que Santos (2007)
tem chamado de “desnacionalização do Estado” e “desestatização da
regulação social”:
[...] a desnacionalização do Estado, por um lado – ou seja, o Estado cada vez mais gerindo as pressões globais –, e a desestatização da regulação social, por outro lado. O Estado deixa de ter o controle da regulação social, criam-se institutos para isso, e o Estado passa a ser apenas um sócio, não tem o monopólio da regulação social. Por isso vamos ter o problema da relação entre reguladores e não-regulados, e freqüentemente os regulados são reféns dos reguladores [...] a emergência de um constitucionalismo global das empresas multinacionais que prevalece sobre as leis nacionais e as viola freqüentemente, mas tem prioridade sobre elas como antes a lei constitucional tinha prioridade sobre as leis ordinárias. E disso tudo resulta o que chamo uma democracia de baixa intensidade: vivemos em sociedades de democracia de baixa intensidade (SANTOS, 2007, p. 89-90).
O autor conclui que é necessário fazer um esforço muito grande e conjunto,
nesse momento de transição em que nos encontramos, para reinventarmos a
emancipação social assim como as soluções que realmente nos levem a isso.
Então, destaca-se a importância da participação social como um mecanismo
materializador, um fenômeno essencial nos processos de gestão democrática
nos diversos campos sociais, que, decisivamente, pode alterar o quadro
educacional, e da gestão democrática da escola, de seus processos decisórios,
não só por aqueles que, por força dos deveres profissionais, são atuantes, mas
também para que se incluam os que ainda são deixados de lado por diversos
argumentos.
4. 2 O PROCESSO DE REDEMOCRATIZAÇÃO NACIONAL NA DÉCADA DE
1980 E A EDUCAÇÃO NA CONSTITUIÇÃO DE 1988
Iniciando nosso caminhar nos anos 1980, podemos dizer que nessa época o
Brasil “sonhava” com eleições diretas para a presidência do País. Porém, em
1985, manobras políticas frustraram a expectativa da grande maioria, e
Tancredo Neves, acabou sendo eleito indiretamente. Com o falecimento de
121
Tancredo Neves, em 21 de abril desse mesmo ano, tomou posse, então, como
presidente da República José Sarney para governar no período de 1985 –
1990, assumindo os compromissos políticos de Tancredo Neves.
O presidente Sarney encontrou o País envolto em grandes problemas sociais
referentes às condições de saúde, de moradia, e com uma altíssima inflação,
que, segundo os economistas, precisava ser controlada, sob pena de nenhuma
política social dar bons resultados. As tentativas para solucionar o problema
vieram por meio de planos econômicos: Cruzado, Cruzado II, Bresser e Verão,
apesar das críticas de alguns parlamentares, como as do Partido dos
Trabalhadores. A euforia vivenciada pela população brasileira causada pelo
congelamento de preços durou pouco e acabou por minar-se pela falta de
mercadorias, pelas longas filas na compra de produtos essenciais, pela
cobrança de ágio e pelo sumiço de mercadorias das prateleiras dos
supermercados e lojas por parte de empresários.
No âmbito político, o compromisso de Sarney referia-se à criação de uma
Assembléia Nacional Constituinte, que foi instalada em 1º de fevereiro de 1987,
para elaborar uma nova Constituição brasileira.
Na educação, destacou-se a influência dos movimentos sociais ligados à área,
ocorridos no final da década de 1970 e década de 1980, principalmente após o
fim do regime militar. Houve a construção de novos referenciais para a
administração escolar e para a reformulação de políticas educacionais que
apontavam a gestão democrática como um princípio necessário à superação
da lógica capitalista excludente e do ideário tecnoburocrático e repressor,
instalado nas escolas brasileiras durante a ditadura.
Esses movimentos, que contribuíram para a existência de um terreno mais fértil
para a implantação de políticas baseadas na gestão democrática, tinham, em
sua maioria, três eixos comuns: a questão salarial, a qualidade de ensino e a
democratização da estrutura de poder no interior do sistema escolar.
122
Para Mendonça (2000), essa foi uma época de experiências administrativas
municipais que incluíram mecanismos de participação e descentralização na
gestão educacional, como os de Boa Esperança – ES, Lages e Blumenau –
SC, Piracicaba – SP, por exemplo, e experiências estaduais, como as do Rio
de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo e Paraná, que ocorreram entre 1977 e
1987.
Data, dessa época, a formação do Fórum de Secretários Estaduais de
Educação, com o apoio dos governadores eleitos em 1982, transformado
depois em Conselhos Estaduais de Educação. Esse processo acabou por
provocar uma espécie de renovação do quadro de conselheiros aparentemente
compromissados com a gestão democrática e fazendo frente a algumas
imposições do MEC.
Paralelamente, os educadores organizaram-se em sindicatos e associações
acadêmico-científicas, em função do processo de redemocratização do País e
em torno de lutas específicas dos profissionais da educação. Entidades
representadas pela Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em
Educação (ANPEd), fundada em 1977, pelo Centro de Estudos Educação &
Sociedade (CEDES), fundado em 1978, e pela Associação Nacional de
Educação (ANDE), fundada em 1979, dedicaram-se à luta pela escola pública
de qualidade aberta a todos, principalmente para as camadas não dirigentes,
voltando-se para a produção acadêmica e científica e para a proposição e
análise de políticas públicas. Já a Confederação Nacional dos Trabalhadores
da Educação (CNTE) e a Associação Nacional de Docentes do Ensino
Superior (ANDES) expressavam preocupações com o caráter sindical.
Mais adiante, em 1980, 1982, 1984, 1986, 1988 e 1991, aconteceram as
Conferências Brasileiras de Educação (CBEs), organizadas pelas três
primeiras entidades acima citadas. Essas conferências aglutinaram educadores
de todo o Brasil, organizando politicamente a democratização da educação. A
IV CBE (1986) foi a que mais produziu efeito sociopolítico, pois tinha o objetivo
123
de “[...] chamar à participação e explicitar convergências e divergências para
estabelecer consensos e organizar a energia política para o exercício
democrático de pressão aos constituintes [...]” (MENDONÇA, 2000, p. 86), com
a aprovação da Carta de Goiânia. Essa carta tratava
[...] de pontos que foram identificados com a democratização da gestão da educação: o funcionamento autônomo e democrático das universidades; a garantia de controle da política educacional em todos os níveis pela sociedade civil, por meio de organismos colegiados democraticamente constituídos; formas democráticas de participação garantidas pelo Estado para controle social efetivo das obrigações referentes à educação pública, gratuita e de boa qualidade (MENDONÇA, 2000, p. 86).
O processo constituinte foi organizado em comissões temáticas. A Comissão nº
8 dedicou-se a Família, Educação, Cultura, Esportes, Ciência, Tecnologia e
Comunicação, subdividiu-se em três, uma das quais aglutinou Educação,
Cultura e Esportes. De acordo com Silva (2004), os diferentes projetos
apresentados à educação nacional no processo constituinte foram propostos
por dois grupos principais: os que buscavam mobilizar a sociedade civil e os
parlamentares, em torno das bandeiras de defesa da educação pública, crítica,
laica, democrática e de qualidade, em todos os níveis; e os que buscavam
defender o ensino privado, que, mesmo apresentando divergências internas,
pregavam a liberdade de ensino e o apoio do poder público para suas
iniciativas no campo educativo. Foi do confronto entre esses diferentes projetos
na sociedade brasileira que ocorreu no Congresso Constituinte a aprovação do
texto constitucional.
Assim, a ANDES propôs que as entidades se juntassem em torno de uma
posição comum para o capítulo da Constituição sobre Educação e Cultura, o
que fez surgir o Fórum Nacional da Educação na Constituinte em Defesa do
Ensino Público e Gratuito. As primeiras dificuldades dessa ação coletiva
estavam ligadas à falta de princípios explícitos dessas entidades, a não ser os
relativos à gratuidade, à laicidade, à qualidade da escola pública em todos os
124
níveis, e ao consenso sobre o dever do Estado com a educação e às
divergências quanto à questão de verbas públicas para que ela se efetivasse.
Além das dificuldades previsíveis nos encaminhamentos de trabalhos com
entidades de diferentes pontos do País, das pressões do Congresso Nacional,
e da falta de quorum para se aprovarem as propostas por parte dos
representantes das entidades, que nem sempre atribuíam importância
suficiente ao momento das votações, também houve uma reação no interior do
Parlamento, representada por um grupo autodenominado “Centrão”, que julgou
o projeto apresentado ao plenário demasiadamente socializante e conseguiu
uma mudança regimental.
A emenda do Centrão conseguiu livrar as escolas privadas de ter que se submeter a alguns avanços reclamados pelas entidades de educação, tais como planos de carreira e piso salarial para o magistério e a própria gestão democrática. O Centrão minimizou o princípio da gestão democrática reconhecendo-o para o ensino público e substituindo-o pela expressão “função participativa dos mestres, pais e comunidade”. No entanto, a despeito da emenda coletiva do Centrão a expurgar a expressão gestão democrática do ensino, o texto final aprovado acabou por incorporá-la, ainda que com restrições ao seu campo de atuação, limitando-a ao ensino público (MENDONÇA, 2000, p. 104).
Dessa forma, após vinte meses de debates e discussões, a Carta Magna de
1988 foi promulgada, estabelecendo para a educação uma série de princípios,
entre eles o de gestão democrática, constando em seu Título VII, Da Ordem
Social, Capítulo III, referente à educação, à cultura e ao desporto, a concepção
de educação como direito de todos:
Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho (BRASIL, 1988, grifos nossos).
Como direito de todos e dever do Estado e da Família, a educação deveria ser
garantida pelo Estado, com acesso obrigatório e gratuito ao ensino
125
fundamental, inclusive para os que não haviam tido oportunidade na idade
própria, e pela extensão da obrigatoriedade e gratuidade gradativa ao ensino
médio. A Carta Constitucional também diz:
Art. 206. O ensino será ministrado com base em princípios: I – igualdade de condições para acesso e permanência na escola; II – liberdade de aprender e ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; III – pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas, com a coexistência de instituições públicas e privadas de ensino; IV – gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais; V - valorização dos profissionais do ensino, garantidos na forma da lei, planos de carreiras para o magistério público, com piso salarial profissional e ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos; VI – gestão democrática do ensino público, na forma da lei; VII – garantia de padrão de qualidade (BRASIL, 1988, grifos nossos).
Esses são, portanto, princípios democráticos que se estabeleceram como
norteadores para as leis subseqüentes. Os princípios relativos à valorização do
magistério prevêem o piso salarial e o ingresso por concurso público, mas não
abordam a formação de professores, embora seja esta uma questão implícita
na valorização docente. Já o princípio da gestão democrática foi abordado na
LDB (Lei n° 9.394/96). No entanto, se unirmos os dois artigos (205 e 206),
podemos inferir que a formação docente em ambiente escolar é direito do
professor, visto ser ele também um cidadão.
A Constituição Federal trata ainda da irregularidade na oferta do ensino
obrigatório pelo Poder Público, que passou a importar em responsabilidade
para a autoridade competente. Por sua vez, o Art. 214 da Constituição Federal
dispõe sobre a criação em lei do Plano Nacional de Educação.
Ao refletir sobre o tema em estudos realizados sobre a realidade escolar, após
a promulgação da Constituição de 1988, Mendonça (2000) diz que a Carta
Magna inovou, incluindo o princípio de gestão democrática no ensino público, o
que já ocorria em alguns sistemas de ensino municipais e estaduais, inclusive
126
com o apoio legal de suas respectivas Assembléias Legislativas, numa espécie
de adaptação à realidade social.
O autor afirma que a gestão democrática tratada na Constituição Federal de
1988 trouxe consigo conteúdos implícitos tanto de caráter formal, pois
inscreveu-se num sistema normativo-institucional, passando a ser uma
determinação a que todos os sistemas de ensino deveriam submeter-se, no
poder Executivo, Legislativo e Judiciário e nos diversos níveis federal, estadual
e municipal (inclusive no domínio particular), quanto de caráter material, já que
é o resultado de uma luta política precedente, numa lógica congruente com a
vontade expressa pela sociedade brasileira.
No entanto, embora essas conquistas legais tenham sido positivas, Mendonça
reflete sobre o grau de atraso da democratização da educação no País, pela
demora de cerca de sessenta anos de luta para incorporar a educação pública
como direito de todos, aliados a uma desmobilização política da sociedade, já
que, em outros países, essas bandeiras sociais, tais como a universalização de
matrículas, a ampliação da rede física escolar, a distribuição de material e
merenda, já foram superadas. Apesar perceber que, no Brasil, democratizar a
educação tenha significado, e ainda pode significar, permitir o acesso universal
à escola para todas as crianças, o autor diz:
Compreendeu-se, então, que não bastava apenas a universalização das matrículas no ensino fundamental pois o mesmo Estado que expandiu enormemente o acesso à escola pública brasileira, permitiu que ela se degradasse ao longo do tempo, não aplicando recursos financeiros adequados à manutenção da rede física e ao desenvolvimento do ensino e, particularmente, não investindo na formação, na capacitação e na condigna remuneração dos docentes, reduzindo os profissionais da educação a condição aviltante (MENDONÇA, 2000, p. 81).
Concluindo sua reflexão, Mendonça (2000, p. 82) assevera:
O insucesso da escola pública brasileira na tarefa de ofertar ensino de qualidade para todos ampliou o espectro do significado da democratização da educação, incluindo em sua pauta de discussão a
127
necessidade de alterar a estrutura de poder no interior das escolas e dos sistemas de ensino pela incorporação de mecanismos de democratização da gestão escolar.
A Constituição Federal, nesse sentido, cumpre um caráter prescritivo de
princípios organizadores do ensino, ao estabelecer o princípio da gestão
democrática, mas ainda não toca na questão da formação continuada de
professores. Dessa forma, sua contribuição maior para evidenciar a
possibilidade da correlação que estamos investigando está apenas no fato de
ter prescrito princípios democráticos.
4.3 A DÉCADA DE 1990 E A GESTÃO DEMOCRÁTICA NA LDB
A década de 1990 inaugurou uma nova era na história dos brasileiros, que
passaram quase trinta anos sem poder participar de eleições diretas para
presidente da República. Nessa década, Fernando Collor de Mello, do PRN, foi
eleito presidente (em primeiro e segundo turnos), deixando o candidato do PT,
Luiz Inácio Lula da Silva, em segundo lugar.
O Governo Collor (1990 – 1992) “[...] tinha como programa de governo
privatizar empresas estatais, combater os monopólios, abrir o país à
concorrência internacional e desburocratizar as regulamentações econômicas,
entre outras propostas” (COUTRIN, 2002, p. 573). Nessa linha, implantou o
Plano Collor, que causou grande impacto social ao bloquear contas e
aplicações financeiras nos bancos, confiscando cerca de 80% do dinheiro
circulante no País, inclusive de cadernetas de poupança, e mudando a moeda
vigente, restabelecendo o Cruzeiro.
Entretanto, Collor envolcu-se em denúncias de corrupção que resultaram num
processo de “impeachment”, amplamente apoiado pela população na figura
dos “caras pintadas”. Assumiu então, a presidência o vice, Itamar Franco, para
128
governar no período de 1992 a 1994, período que teve de enfrentar os velhos
problemas socioeconômicos de nosso País. O presidente Itamar Franco
[...] convidou para compor seu ministério figuras de várias tendências ideológicas, vindas de diversos partidos políticos, como o Partido dos Trabalhadores (PT), o Partido da Social-Democracia Brasileira (PSDB), o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) e o Partido da Frente Liberal (PFL). Entre esses políticos estava o senador Fernando Henrique Cardoso, nomeado ministro das Relações Exteriores e, meses depois, ministro da Fazenda (COUTRIN, 2002, p. 574).
Nesse cargo, Fernando Henrique iniciou o Plano Real que tinha como objetivo
acabar com a inflação e estabilizar a economia, e fez entrar em vigor no País
uma nova moeda, o Real. Embora os brasileiros tivessem recebido o Plano
com desconfiança, aos poucos os resultados positivos fizeram com que a
população o apoiasse. Nessa oportunidade, Fernando Henrique candidatou-se
a presidente do Brasil, ganhando em primeiro turno, deixando, mais uma vez, o
candidato Luiz Inácio Lula da Silva em segundo lugar.
O plano de governo de Fernando Henrique (1995 – 2002) envolvia reformas na
Previdência Social, na administração pública, e pregava a privatização
econômica, esta última muito criticada pelos partidos políticos, como o PT, o
PDT e o PSB.
No cenário educacional, dava-se a discussão sobre a nova lei de diretrizes e
bases da educação nacional, já que a Constituição de 1988 fixava a
competência da União em legislar sobre elas. Essa foi a oportunidade de se
reformular a legislação brasileira educacional, que na época, era regida por
“[...] quatro legislações educacionais, originadas em períodos distintos da
história brasileira – antes e durante a ditadura militar – que tratavam a
educação de forma fragmentada, desconsiderando a idéia de sistema nacional
de educação (SNE)” (ZANETTI, 1997).
Nesse âmbito, o contexto sócio-histórico e político da década de 1990
caracterizou-se pela consolidação da gestão democrática como princípio na
129
LDB e pela incidência de várias reformas educacionais influenciadas por ideais
neoliberais.
Apesar dos estudos realizados antes da promulgação da nova Constituição nas
X e XI Reuniões da ANPEd (1987 e 1988), que tiveram como temática a
“Educação Brasileira, dos Dispositivos Constitucionais às Diretrizes e Bases” e
“Por Novas Bases e Diretrizes da Educação Nacional”, respectivamente, e na V
CBE, em 1988, com o tema “LDB”, foi apresentado, por iniciativa do deputado
Octávio Elísio (PSDB – MG), um projeto de lei sobre a educação nacional com
base em estudos de Dermeval Saviani, publicados na Revista da ANDE (1988).
Esse processo de tramitação da nova LDB, iniciado na Câmara Federal em
dezembro de 1988, quebrava a estratégia dos educadores progressistas de
não partir de um documento já elaborado, mas de convocar os representantes
da comunidade educacional para redigirem um esboço de projeto a ser
aprovado pela Comissão de Educação e Cultura, fazendo com que o
Congresso Nacional se transformasse em espaço de convergência dos vários
segmentos interessados no tema.
Nesse projeto em andamento, foram considerados como desafios a serem
vencidos: a universalização da educação básica e a construção de um sistema
nacional de educação unificado e de qualidade para a superação das
desigualdades. Não havia, no entanto, nenhuma referência à gestão
democrática, mesmo depois de a nova Constituição prescrevê-la como um
princípio para o ensino público. Essa lacuna teria raiz no artigo de Saviani, que
não abordava o princípio, embora baseasse sua argumentação na necessidade
de uma nova LDB progressista sobre as relações da educação com a
sociedade, reconhecendo que, numa sociedade burguesa marcada por
desigualdades estruturais, também existiria uma escolarização desigual.
No entanto, apesar dessa lacuna, o projeto trazia seis artigos que falavam
sobre a administração da educação e dos conselhos de educação, em que o
130
Conselho Federal de Educação atuaria como órgão normativo em nível federal,
prevendo autonomia econômica, financeira e administrativa, sobre os
processos de indicação dos membros pelo MEC, pela Câmara Federal e pelas
entidades representativas do magistério, e sobre os Conselhos Municipais
como órgãos normativos dos respectivos sistemas de ensino, organizados
pelas leis estaduais.
O processo de ampla participação na elaboração da LDB foi reativado com a
mesma sistemática da constituinte; no entanto, foi desenvolvido em meio a
impasses advindos dos embates de grupos que queriam boicotá-lo. Daí a
importância que assume a continuidade da mobilização da comunidade
educacional por meio do Fórum em Defesa da Escola Pública.
Em 28 de junho de 1990, o substitutivo, que ficou conhecido como substitutivo
Jorge Hage, foi aprovado por unanimidade. Sobre ele, comenta Mendonça:
Todo um capítulo é dedicado aos princípios da educação escolar, dentre os quais o da gestão democrática. Mantendo a criação de um Sistema Nacional de Educação concebido no projeto original, adotou como instância de consulta e articulação com a sociedade o Fórum Nacional de Educação, institucionalizando na lei o que, na prática já vinha ocorrendo desde a Constituinte. Coordenado pelo Conselho Nacional de Educação enquanto órgão normativo, o Fórum Nacional, sempre que possível precedido de fóruns locais e regionais, reunir-se-ia qüinqüenalmente para preparação do Plano Nacional de Educação ou sempre que motivo relevante o justificasse. Prevendo maior grau de liberdade às unidades escolares, estabeleceu o substitutivo que os órgãos normativos dos sistemas de ensino deveriam assegurar a autonomia pedagógica, administrativa e de gestão financeira, incluindo, nesta, a competência para o ordenamento e a execução de gastos de manutenção e custeio, excetuados os de pessoal, além de determinar que os sistemas de ensino deveriam descentralizar as decisões e os controles de caráter pedagógico, administrativo e financeiro (MENDONÇA, 2000, p. 110).
Tudo isso revelou as resistências entre os setores conservadores e privados e
o movimento de mobilização do Fórum, na busca de caminhos regimentais
para instituir o processo de construção participativa na LDB.
131
No entanto, uma nova correlação de forças instalou-se a partir de 1991, tendo
em vista a não-eleição de alguns parlamentares e os novos mandatos. Então,
assumiu a relatoria a deputada Angela Amin (PPR-SC), que submeteu seu
relatório a um Fórum de Partido, do qual participavam representantes de todos
os partidos e membros constantes do Fórum Nacional em Defesa da Escola
Pública. Desse relatório resultou o projeto que foi ao Plenário e retornou às
Comissões da Câmara. Embora não contemplasse totalmente as propostas
dos diferentes segmentos que integravam o Fórum Nacional em Defesa da
Escola Pública, foi aprovado, em maio de 1993, o Projeto da Câmara, sob o n°
1.258/88, e encaminhado depois ao Senado para aprovação.
Nessa luta, os educadores enfrentaram entraves que iam desde a possibilidade
de arquivamento, por decurso de prazo, de relatórios da comissões, até a
apresentação surpresa de um substitutivo, levado ao Senado pelo senador
Darcy Ribeiro (PDT-RJ), antes da aprovação do Projeto da Câmara. Esse
projeto, que acomodava os interesses dos empresários do ensino, foi
apreciado e aprovado pela Comissão de Educação do Senado.
O projeto do senador Darcy Ribeiro não fazia menção ao Sistema Nacional de
Educação e ao Conselho Nacional de Educação, e ainda reduzia a educação
básica à velha estrutura de primário e ginásio, com cinco anos para cada nível
de ensino. Esse projeto, diferentemente do projeto da Câmara, que se formulou
a partir de uma concepção de gestão participativa, compartilhando decisões
com autoridades governamentais e da comunidade escolar organizada, teve
por base a gestão representativa limitada à escolha dos “governantes” por
meio do voto.
Por força regimentar, esse documento deveria ser apreciado juntamente com o
Projeto da Câmara. O Senado, então, incumbiu-se de analisar o projeto
aprovado pelo Plenário da Câmara Federal e o originado na própria casa,
ficando como relator dos dois o senador Cid Saboya que, voltando ao processo
de consultas, inclusive ao Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública,
apresentou o substitutivo que foi aprovado em novembro de 1994. Este, no
132
entanto, foi apreciado em um outro período de exercício do Poder Legislativo.
Porém, em manobra regimental, pediu-se o retorno do substitutivo Cid Saboya
à Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, assumindo como relator o
senador Darcy Ribeiro que apresentou um substitutivo próprio, o qual foi
aprovado, apesar de manifestações desfavoráveis dos organismos de defesa
do ensino público.
Zanetti (1997) argumenta que houve grande indignação, por parte de alguns
parlamentares e das entidades do Fórum Nacional, por tamanho desrespeito a
um processo de seis anos, de ampla e democrática construção de uma LDB.
“Atos públicos, caravanas, visitas aos gabinetes de parlamentares, dentre
outras ações, foram envidados, demonstrando o desacordo da sociedade para
com a LDB-DR que retornou à Câmara, após ter sido aprovada no Plenário do
Senado” (ZANETTI, 1997). Segundo a autora, iniciou-se, então a luta das
entidades integrantes do Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública, não
mais pela "aprovação imediata da LDB", mas pela "rejeição ao Substitutivo
Darcy Ribeiro" e pela "aprovação do Substitutivo Cid Sabóia".
Aos poucos, incorporaram-se emendas atenuadoras das resistências
instaladas, e a última versão foi aprovada no Plenário do Senado em fevereiro
de 1996, voltando à Câmara Federal onde recebeu pequenas alterações.
Assim, a nova LDB (Lei n.º 9.394) foi sancionada pelo presidente da República
e promulgada em 20 de dezembro de 1996. Essa lei estabelece, em seu Art.
1º:
Art. 1° - A educação abrange processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais (BRASIL, 1996, p. 1, grifos nossos).
Os §§ 1º e 2º desse artigo delimitam a abrangência dessa Lei aos processos
formativos da educação escolar, predominantemente do ensino em instituições,
vinculada ao mundo do trabalho e à prática social. Como um de seus primeiros
princípios, destacamos em seu Art. 2°:
133
Art. 2º A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho (BRASIL, 1996, p. 1).
Percebe-se aí uma inversão nos termos Estado e família em relação à
Constituição Federal, que traz o Estado antes da família no que diz respeito ao
dever para com a educação. Embora a educação, de modo geral, seja um
processo que começa antes da escolarização, não podemos descuidar do
direito à educação, garantido pela Constituição como dever do Estado no que
se refere à educação escolar.
A LDB dispõe em seu Art. 3º:
Art. 3º O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: I – igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; II – liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber; III – pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas; IV – respeito à liberdade e apreço à tolerância; V – coexistência de instituições públicas e privadas de ensino; VI – gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais; VII – valorização do profissional da educação escolar; VIII – gestão democrática do ensino público, na forma desta lei e da legislação dos sistemas de ensino; IX – garantia de padrão de qualidade; X – valorização da experiência extra-escolar; XI – vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais (BRASIL, 1996, p. 1-2, grifos nossos).
Ao interligarmos os três primeiros princípios da LDB, destacamos duas noções
importantes que envolvem os processos de formação continuada de
professores em serviço e gestão democrática da escola: a educação como um
processo que se desenvolve em vários contextos formativos de nossas
redes de subjetividades (na família, no trabalho, na convivência humana, nos
movimentos sociais, nas manifestações culturais, na escola); e a educação
como processo que deve desenvolver-se de acordo com princípios
134
democráticos (liberdade e solidariedade humana) que vão organizar o ensino
nos diversos níveis e instâncias.
A interligação entre essas noções, ou seja, processos formativos organizados
por princípios democráticos, leva-nos a pensar em gestão democrática da
escola. Por sua vez, gerir democraticamente, dentro dos princípios de
liberdade e solidariedade humana, leva-nos a relacionar essa gestão aos
processos que produzem conhecimento-emancipação nas comunidades
interpretativas (SANTOS, 2005a). Desse modo, há possibilidade de
considerarmos a comunidade escolar como uma comunidade interpretativa,
assim como os grupos de formação continuada em serviço, que se formam
com o intuito de pensar modos de intervenção sobre os processos de
aprendizagem com os quais convivemos e aos quais estamos submetidos.
Nesse sentido, esses processos formativos desenvolveriam o educando (o
professor) no exercício da cidadania (já que a escola se apresenta como
ambiente formativo não só para o aluno cidadão, mas também, para o
professor cidadão), “qualificando-o” para o trabalho.
A LDB prescreve, no seu Título IV, da Organização da Educação:
Art. 8º A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios organizarão, em regime de colaboração, os respectivos sistemas de ensino. § 1º - caberá à União a coordenação da política nacional de educação, articulando os diferentes níveis e sistemas e exercendo função normativa, redistributiva e supletiva em relação às demais instâncias educacionais. § 2º Os sistemas de ensino terão liberdade de organização nos termos desta lei (BRASIL, 1996, p. 3, grifos nossos).
Por outro lado, prescreve como incumbência dos Estados, do Distrito Federal e
dos Municípios:
Art. 10. Os Estados incumbir-se-ão de: I – organizar, manter e desenvolver os órgãos e instituições oficiais dos seus sistemas de ensino;
135
II – definir, com os Municípios, formas de colaboração na oferta do ensino fundamental, as quais devem assegurar a distribuição proporcional das responsabilidades, de acordo com a população a ser atendida e os recursos financeiros disponíveis em cada uma dessas esferas do Poder Público; III – elaborar e executar políticas e planos educacionais, em consonância com as diretrizes e planos nacionais de educação, integrando e coordenando as suas ações e as dos seus Municípios; IV – autorizar, reconhecer, credenciar, supervisionar e avaliar, respectivamente, os cursos das instituições de educação superior e estabelecimentos do seu sistema de ensino; V – baixar normas complementares para o seu sistema de ensino; VI – assegurar o ensino fundamental e oferecer, com prioridade, o ensino médio. Parágro Único – Ao Distrito Federal aplicar-se-ão as competências referentes aos Estados e aos Municípios. Art. 11 – Os Municípios incumbir-se-ão de: I – organizar, manter e desenvolver os órgãos e instituições oficiais dos seus sistemas de ensino, integrando-os às políticas e planos educacionais da União e dos Estados; II – exercer ação redistributiva em relação às suas escolas; III – baixar normas complementares para o seu sistema de ensino; IV – autorizar, credenciar e supervisionar o estabelecimento dos seus sistemas de ensino; V – oferecer a educação infantil em creches e pré-escolas, e, com prioridade, o ensino fundamental, permitida a atuação em outros níveis de ensino somente quando estiverem atendidas plenamente as necessidades de sua área de competência e com recursos acima dos percentuais mínimos vinculados pela Constituição Federal à manutenção e desenvolvimento do ensino. Parágrafo Único – Os Municípios poderão optar, ainda, por se integrar ao sistema estadual de ensino ou compor com ele um sistema único de educação básica (BRASIL, 1996, p. 4-5).
Nesse sentido, os Estados e Municípios têm liberdade relativa à União e às
diretrizes constantes no Plano Nacional de Educação para elaborar e executar
planos e políticas públicas educacionais.
Segundo Zanetti (1997), a estrutura fragmentária apresentada na Lei n.º
9.394/96 inviabiliza a idéia de sistema nacional de educação, pois, nela, as
diretrizes não são contempladas. A articulação e coordenação entre os
sistemas de ensino, que seriam exercidas pelo Conselho Nacional de
Educação, enquanto órgão normativo, e pelo Ministério, como órgão executivo
136
e de coordenação, ficam restritas ao Poder Executivo, impossibilitando a
participação dos segmentos organizados da sociedade civil.
Zanetti prossegue em sua crítica, dizendo que o caráter que se buscava atribuir
à gestão da educação brasileira, na perspectiva da valorização do ensino
público, a partir da articulação entre Ministério da Educação, Conselho
Nacional de Educação, Fórum Nacional de Educação, com funções avaliativa e
propositiva, foi substituído pela centralização das decisões no MEC e pela
descentralização da execução. Nesse sentido, caberia ao MEC o papel
político-estratégico, aos estados e municípios, atuar no nível estratégico-
gerencial, e à escola, no nível gerencial-operacional. Segundo a autora, o MEC
teria elaborado um documento chamado Planejamento Político-Estratégico,
expressando que é na escola que estão os problemas e é na escola que está a
solução. A isso o MEC chamaria, nesse mesmo documento, de "modernização
gerencial em todos os níveis e modalidades de ensino e nos órgãos de
gestão".
Segundo Penin e Vieira (2002), a LDB de 1996 é a primeira de nossas leis que
estabelece atribuições para os estabelecimentos de ensino. Nela percebe-se a
escola vista como um todo responsável pelo cumprimento de uma série de
atribuições, conforme o artigo abaixo:
Art. 12. Os estabelecimentos de ensino, respeitadas as normas comuns e as do seu sistema de ensino, terão a incumbência de: I – elaborar e executar sua proposta pedagógica; II – administrar seu pessoal e seus recursos materiais e financeiros; III – assegurar o cumprimento dos dias letivos e horas-aula estabelecidas; IV – velar pelo cumprimento do plano de trabalho de cada docente; V – prover meios para a recuperação de alunos de menor rendimento; VI – articular-se com as famílias e a comunidade, criando processos de integração da sociedade com a escola; VII – informar os pais e responsáveis sobre a freqüência e o rendimento dos alunos, bem como sobre a execução de sua proposta pedagógica (BRASIL, 1996, p. 5-6).
137
Isso nos leva a pensá-la como um corpo, uma comunidade formada por seus
diversos membros, entre eles os professores, que deverão trabalhar
conjuntamente para obter sucesso em suas incumbências. E assim, mais
adiante, encontramos as atribuições dos professores no Art. 13 da LDB:
Art. 13. Os docentes incumbir-se-ão de: I – participar da elaboração da proposta pedagógica do estabelecimento de ensino; II – elaborar e cumprir o plano de trabalho, segundo a proposta pedagógica do estabelecimento de ensino; III – zelar pela aprendizagem dos alunos; IV – estabelecer estratégias de recuperação para os alunos de menor rendimento; V – ministrar os dias letivos e horas-aula estabelecidos, além de participar integralmente dos períodos dedicados ao planejamento, à avaliação e ao desenvolvimento profissional; VI – colaborar com as atividades de articulação da escola com as famílias e a comunidade (BRASIL, 1996, p. 6).
No entanto, todo esse processo exige condições técnicas, pedagógicas e
administrativas, tais como tempo, disposição e um planejamento conjunto, uma
articulação, uma definição e distribuição de tarefas.
O que estamos acolhendo é a idéia de que, para se cumprir tantas
incumbências, é preciso que a comunidade escolar tenha condições de
discutir, planejar, estudar soluções, de forma a materializar a gestão
democrática da escola. Se não há esse tempo determinado em calendários
escolares, como usufruir o tempo sem ferir os direitos uns dos outros? É
preciso considerar que os horários de planejamento não sejam suficientes para
responder a todas as expectativas quanto ao desempenho da unidade escolar
e do professor. Nesse sentido, há uma lacuna a preencher como condição de
trabalho: a determinação de tempo e espaço para o cumprimento de uma série
de incumbências que foram distribuídas e endereçadas à escola e ao
professor. Até porque a escola e o professor podem ser penalizados se essas
incumbências não forem cumpridas.
138
Destacamos, então, os Arts. 14 e 15 da LDB, que tratam da definição de
normas para a gestão democrática, levando em consideração que todas as
incumbências contidas no Arts. 12 e 13 da LDB deverão segui-las:
Art. 14. Os sistemas de ensino definirão as normas da gestão democrática do ensino público, na educação básica, de acordo com as suas peculiaridades e conforme os seguintes princípios: I – participação dos profissionais da educação na elaboração do projeto pedagógico da escola; II – participação das comunidades, escolar e local, em conselhos ou equivalentes. Art. 15. Os sistemas de ensino assegurarão às unidades escolares públicas de educação básica que os integram progressivos graus de autonomia pedagógica e administrativa e de gestão financeira, observadas as normas gerais de direito financeiro público (BRASIL, 1996, p. 6, grifos nossos).
A participação dos professores e da comunidade escolar na gestão
democrática da escola, tal como prevista nessa lei, fica concentrada na
elaboração do projeto político-pedagógico e na participação em conselhos, que
com a direção escolar e mediante progressivos graus de autonomia
pedagógica e administrativa, procederão à gestão financeira da escola, o que,
no entanto, não deve caracterizar abandono por parte do Poder Público, já que
há uma gama de problemas que chegam à escola os quais não estão no seu
âmbito de solução, ou pelo menos exigiriam uma contrapartida do Poder
Público, uma parceria com outras instituições para isso. Além disso, é preciso
observar que os ideais a serem alcançados em cada unidade escolar são,
também, ideais nacionais, o que implica a responsabilidade de todos.
Podemos ponderar sobre o prejuízo que causa a falta de um tempo previsto
em calendário e no horário escolar para a participação do professor no
planejamento da proposta pedagógica da escola, que é um dos mecanismos
de gestão democrática previsto com atuação do professor. Como cumprir essa
incumbência sem prejudicar o direito do aluno quanto à sua carga horária e
dias letivos? Como agrupar a comunidade escolar para participar dessa
elaboração, já que a proposta é para a escola? Dentro de um princípio de
139
participação democrática não se deve admitir uma proposta pedagógica sem a
participação da comunidade escolar a que ela se destina.
Nesse sentido, é possível questionar se a lei, que trouxe avanços no que diz
respeito à participação dos membros da comunidade escolar nos processos
decisórios, deixou de sustentar esses avanços com uma série de lacunas que
serão preenchidas com soluções improvisadas e de efeito duvidoso quanto à
promoção desse princípio. Um exemplo disso configura-se em escolas que
contrataram especialistas para planejarem seus projetos político-pedagógicos.
Qual foi a participação da comunidade escolar nesse processo? Apenas o
prestar informações? Outro exemplo está na adesão dos membros do conselho
de escola, nem sempre escolhidos por seu engajamento nas questões político-
pedagógicas, mas por sua disponibilidade de tempo. Como garantir essa
qualidade na participação? Então, para que a escola possa construir sua
proposta pedagógica e mesmo um regimento escolar adequados à sua
realidade, é necessário condições técnicas, administrativas e pedagógicas. É
neste sentido: a escola como uma utopia, mas como uma realidade
democrática e de qualidade, organizada e equipada para atender as
diferenças, onde os princípios de participação, da descentralização e da
administração participativa saiam do papel.
Todo esse debate atinge em cheio uma outra característica da LDB, que é a
flexibilidade prevista no que se refere às formas de organização escolar,
permitindo que se atenda às peculiaridades regionais e locais, às diferentes
clientelas e necessidades do processo de aprendizagem (Art. 23); às formas de
progressão parcial (Art. 24, inciso III); à aceleração de estudos para alunos
com atraso escolar, aproveitamento de estudos e recuperação (Art. 24, inciso
V, b, d, e e). Essa característica da LDB permite-nos pensar que sendo comum
a finalidade da escola “[...] promover o pleno desenvolvimento da pessoa –
cada unidade pode ter características e formas de organização próprias,
dependendo de sua localização geográfica, clientela e outros aspectos”
(PENIN; VIEIRA, 2002, p. 21).
140
Isso significaria dizer que o que está em jogo é a possibilidade de a escola
investir e vislumbrar o desenvolvimento e a formação de subjetividades mais
democráticas, fundadas em saberes mais democráticos, que podem
desenvolver ações sociais mais democráticas. Essa é uma questão crucial, que
requer compreender o enredamento da ação com a realidade nos diversos
espaços tempos nos quais se inscreve. Essa flexibilidade permite que se
compreendam e valorizem as reflexões e as ações daqueles que estão
envolvidos na circunstância, e que pensaram suas possibilidades de ação em
diálogo com os limites e as possibilidades específicos dessa ação sobre essa
realidade. Ela recupera, assim, a multiplicidade de redes possíveis na
combinação dos processos de inserção social, nos quais é preciso ter o
cuidado de sempre se manter o diálogo entre os diferentes, não se admitindo
processos de competição e de não-reconhecimento do outro, como na maior
parte das realidades.
Dessa forma, analisando a questão da gestão democrática na LDB, concluímos
que ela se baseia no princípio da descentralização participativa (LINHARES,
2006, p. 29), chave de todo processo democrático e de gestão democrática da
escola. Mas se, de um lado, esse é um caminho que nos convida ao exercício
de uma responsabilidade decisória, criadora e compartilhada por aqueles que
constituem o corpo permanente do Estado, os professores em especial, e que
contribui para a autonomia e emancipação desses profissionais da educação,
de outro lado, devemos estar alerta, ao papel da legislação que tem sido
exercido de forma marcante no cenário educacional brasileiro, tanto no sentido
de promover reformas necessárias quanto num processo de desorganização
do sistema escolar. E assim, mesmo que a democracia seja um consenso
entre os brasileiros, sendo um valor reafirmado pela Constituição de 1988 e
pela legislação educacional, expressa-se por sua vez, como valor e como
processo. “Ou seja, de um lado, afirma ideais, intenções e desejos – aquilo que
se quer – de outro, requer formas de manifestação que a concretizem – aquilo
que se pratica” (PENIN; VIEIRA, 2002, p. 32).
141
Apesar de a escola ser um espaço por excelência para o exercício da
democracia como valor e processo, isso não significa dizer que a luta está
terminada, pois, assim como a democracia potencializa a emancipação, a
gestão democrática implica possibilidades de conflitos de interesse, oposições,
lutas políticas entre os diversos segmentos da comunidade escolar. Essas
lutas se darão com influências dos fatores socioeconômicos e culturais de cada
realidade local, em constante relação com fatores da realidade global, podendo
resultar em avanços ou retrocessos no processo de emancipação.
A promulgação da LDB não pôs fim a mobilização dos educadores por uma
educação pública, gratuita e de qualidade. Encontramos em Mendonça o
seguinte texto do Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública, contidos em
seu relatório de atividades nos dias 16, 17 e 18 de dezembro de 1996:
Todo o trabalho político ao longo dos últimos oito anos na construção e tramitação democrática da LDB, principalmente na Câmara Federal foi autoritariamente desconsiderado, o que exigirá, mais do que nunca, das entidades do Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública o trabalho de denúncia, resistência e organização na defesa dos princípios historicamente construídos para a Educação Brasileira (FÓRUM NACIONAL EM DEFESA DA ESCOLA PÚBLICA, 1996, apud MENDONÇA, 2000, p. 115).
Podemos concluir, com auxílio desse autor, que a LDB Lei nº 9.394/96 não
incorporou as demandas apontadas na Carta de Goiânia, fruto principal da IV
CBE, que mobilizou educadores no ordenamento da educação brasileira a ser
incluído na Constituição de 1988. Nessa Carta, defendia-se a execução das
políticas educacionais pela sociedade civil nos níveis federal, estadual e
municipal, cabendo ao Estado garantir esse controle com a criação de
organismos colegiados democraticamente constituídos, além de defender
formas democráticas de participação e o controle social das obrigações do
Estado, como garantia da educação pública, gratuita e de qualidade em todos
os níveis. Isso nos faz supor que o princípio da gestão democrática não se
dará na força da lei e da legislação dos sistemas de ensino, mas por sua
aplicação na prática cotidiana, na participação ativa dos membros da
142
comunidade escolar, ainda que de uma forma desfavorecida na questão de
tempo e espaço concedidos para esse fim.
De modo geral, também podemos concluir que os professores, como membros
tradicionalmente atuantes e reivindicadores dentro da comunidade escolar,
construíram sua participação em torno de suas associações, sindicatos e
movimentos de paralisação por melhoria de condições de trabalho e salariais.
Nesse sentido, sua participação foi e tem sido essencial a esse processo. Mas
é necessário ainda que outros segmentos atuem mais ativamente, sempre
cuidando para que os interesses defendidos sejam comunitários e para a
melhoria da qualidade da educação, dentro de uma estrutura de poder cada
vez mais democratizada e organizada, certamente influenciando, assim, as
políticas públicas e a gestão da educação.
Quanto aos processos que se seguiram após a aprovação da LDB,
destacamos ainda que, nesse período, o PNE foi aprovado pelo Congresso
Nacional em dezembro de 2000 e sancionado pelo Presidente da República,
em janeiro de 2001, revelando-se juntamente com o FUNDEF, criado na
Constituição Federal de 1988 e instituído pela Lei nº 9.424, de 24 de dezembro
de 1996, como importante instrumento na reforma do sistema escolar recente
no Brasil.
De volta ao cenário político, após a promulgação da LDB, os noticiários não
deixaram de registrar o trabalho de bastidores para a aprovação da Lei Darcy
Ribeiro, chegando o presidente Fernando Henrique Cardoso a falar que se
deveria chamar a “Lei do Darcy e do Renato”, referindo-se ao ministro da
Educação de seu Governo. Mas, apesar de essas declarações demonstrarem
desconsideração com relação ao esforço e às lutas travadas entre os diversos
segmentos sociais envolvidos na criação da LDB, principalmente no que se
refere aos movimentos sociais e de mobilização docente, esse fato se refletiu-
se de forma favorável aos interesses do Governo quando, em 1997, foi
aprovada pelo Congresso a Emenda Constitucional que previa a reeleição para
143
presidente, governadores e prefeitos. Mesmo sob suspeita de troca de favores
por votos dos parlamentares, Fernando Henrique reelegeu-se em 1998, em
primeiro turno, com a influência positiva do triunfo contra a inflação e
estabilização da economia. Seu mandato concluiu-se em 2002.
Na eleição seguinte, José Serra, ex-ministro da Saúde de Fernando Henrique,
tentou substituí-lo. Porém, Luiz Inácio Lula da Silva, representante do Partido
dos Trabalhadores, em sua terceira tentativa à Presidência da República,
venceu em primeiro e segundo turnos. No entanto, a situação de estabilidade
econômica e o baixo índice de inflação não foram suficientes para acabar com
todas as dificuldades do País, ainda envolto em uma grande desigualdade
social.
4.4 A POLÍTICA DE FORMAÇÃO E VALORIZAÇÃO DOCENTE A PARTIR DA
LDB
Podemos dizer que, em matéria de LDB, demos maior atenção até aqui aos
processos de gestão democrática. Nesta parte, porém, buscaremos tratar da
formação de professores, mais especificamente da formação continuada.
Segundo Nóvoa (1987, apud CATANI, 2003, p. 584), “[...] a história da
profissão docente é indissociável do lugar que seus membros ocupam nas
relações de produção e do papel que desempenham na manutenção da ordem
social”. A participação dos professores na grande operação histórica da
escolarização não seria possível sem a conjugação de vários fatores de ordem
econômica e social, empreendimento em que os professores foram agentes.
Assim, ao estudar a história da formação docente em Portugal, Nóvoa
identificou quatro momentos iniciais que marcaram esse processo: a atividade
docente exercida como a principal ocupação dos que nela trabalham, o
estabelecimento de um suporte legal para o exercício da profissão, a criação
144
de instituições específicas para a formação de professores e a constituição de
associações profissionais de docentes.
Esses são aspectos históricos importantes a considerar na análise das políticas
públicas que pretendem organizar o funcionamento dos sistemas educacionais
e que vão tentar regulamentar as instituições, os saberes e atividades dos
professores, a categoria do magistério, sua formação. Nesse sentido, a LDB
oferece, como suporte legal do funcionamento da educação no Brasil, muitas
“pistas” para refletirmos sobre a formação continuada de professores em
serviço e sua relação como o processo de gestão democrática da escola, se
levarmos em conta que a gestão da educação também engloba a gestão da
formação docente, seus processos, amplitude, objetivos, regras, financiamento,
modalidades, conteúdos, avaliações, entre outros.
Com relação à formação e à valorização de professores propriamente ditas, a
LDB em seu Art. 67, diz:
Art. 67 – Os sistemas de ensino promoverão a valorização dos profissionais da educação, assegurando-lhes, inclusive nos termos dos estatutos e dos planos de carreira do magistério público: I – ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos; II – aperfeiçoamento profissional continuado, inclusive com licenciamento periódico remunerado para esse fim; III – piso salarial profissional; IV – progressão funcional baseada na titulação ou habilitação, e na avaliação do desempenho; V – período reservado a estudos, planejamento e avaliação, incluído na carga de trabalho; VI – condições adequadas de trabalho. Parágrafo único – A experiência docente é pré-requisito para o exercício profissional de quaisquer outras funções de magistério, nos termos das normas de cada sistema de ensino (BRASIL, 1996, p. 20-21, grifos nossos).
Dentre esses aspectos gerais da formação e valorização docente que podem
influenciar diretamente na correlação entre formação continuada de
professores em serviço e a gestão democrática da escola, destacamos o que
se refere ao aperfeiçoamento profissional continuado, inclusive com
145
licenciamento periódico remunerado para esse fim, e ao período reservado a
estudos, planejamento e avaliação incluído na carga de trabalho. Esses
destaques dão uma idéia geral da possibilidade de se instituir a formação
continuada de professores em serviço com a destinação de tempo e espaço
para isso dentro do horário e do ambiente escolar.
Podemos dizer que, em termos de prescrição, a LDB contemplou aspectos
importantes para a democratização do acesso dos professores aos cursos que
são oferecidos fora do ambiente escolar, inclusive com licenciamento periódico
remunerado para esse fim, o que se pode reverter em valorização profissional
como fruto das lutas do magistério. Mas não tratou em pormenores a formação
de professores em ambiente escolar. Institui, no entanto, programas de
capacitação a distância para professores em exercício, como está disposto, em
seu Art. 87, que cria a Década da Educação, no § 3º, inciso III, ao determinar
que cada Município e, supletivamente, o Estado e a União, deverá: “[...] III -
realizar programas de capacitação para todos os professores em
exercício, utilizando também para isto, os recursos da educação a
distância; […]” (BRASIL, 1996, p. 26, grifos nossos ).
Concluímos que o recurso da educação a distância nos programas de
capacitação de professores em exercício se apresenta como uma das
possibilidades para a formação continuada, portanto, não é a única.
Concluímos, também, que a LDB não considerou a possibilidade de “estudos,
planejamento e avaliação” no cotidiano escolar significarem “aperfeiçoamento
contínuo”, e, nesse sentido, previu “dois tempos” separados para essas
atividades, como se o aperfeiçoamento contínuo só se realizasse para além do
ambiente escolar, em cursos de mestrado, doutorado e outras experiências
que enriquecem a formação docente. No entanto, não fechou a questão sobre
a impossibilidade de, na elaboração de propostas de formação continuada de
professores, unir-se parte desses dois tempos. Essa possibilidade torna-se
importante já que as atividades de “estudos, planejamento e avaliação” podem
resultar em “aperfeiçoamento contínuo” do professor no ambiente escolar.
146
Nesse sentido, é válida a idéia de se pensar um tempo espaço para a
formação em serviço exclusivo para o “desenvolvimento formativo profissional”.
Isto é, tempo para que os professores possam estudar, trocar experiências
com seus pares, pensar as soluções de problemas da escola, da
aprendizagem, de modo solidário, criativo e conjunto, a fim de cumprir da
melhor forma possível as incumbências que lhes cabem e melhorar seu
desempenho como profissional comprometido com a qualidade da educação.
Assim, não seria uma atividade a mais, mas um espaço tempo com carga
horária prevista dentro do horário de trabalho. Até porque a Lei n° 11.738, de
16 de julho de 2008, que instituiu o piso profissional nacional para os
profissionais do magistério público da educação básica, determina, em seu do
Art. 2°, § 4°, a composição da jornada de trabalho do professor:
§ 4o Na composição da jornada de trabalho, observar-se-á o limite máximo de 2/3 (dois terços) da carga horária para o desempenho das atividades de interação com os educandos.
Sendo assim, 1/3 dessa carga horária seria para atividades dos professores
sem interação com os educandos, mas certamente em interação com seus
pares. Constituiu-se uma oportunidade de estudo, planejamento,
aperfeiçoamento contínuo sem prejuízo para os alunos, calendários e carga
horária previstas em lei. Talvez, em algumas redes e sistemas de ensino fosse
uma questão apenas de se melhorar a qualidade desse tempo. Em outras
situações seria necessário criá-lo mesmo, pois essa situação que sobrecarrega
de atividades a escola desfavorece a participação ativa dos membros da
comunidade escolar nos processos decisórios, prejudica a possibilidade de
atuarem tanto técnica quanto politicamente, sobre sua realidade, impedindo
que se faça valer o princípio de gestão democrática para o fortalecimento da
autonomia.
Destacamos outros pontos que ainda poderão ser de grande utilidade em
nossa reflexão. De um lado, a união entre formação e valorização docente –
ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos, piso salarial
147
profissional (dando a entender que não é qualquer profissional que pode
exercer a função de professor); período reservado a estudos, planejamento e
avaliação incluído na carga de trabalho (levando em consideração que o
trabalho do professor não se resume ao tempo que passa ministrando suas
aulas), e condições adequadas de trabalho (desde a infra-estrutura escolar e
de sistema até a autonomia político-pedagógica para exercer sua função).
De outro lado, uma combinação, que pode ser “explosiva”, entre
aperfeiçoamento profissional continuado e exigências do mercado de trabalho
e imposições de políticas públicas de cunho neoliberal. Nesse sentido, a
formação continuada poderia ser questionada como uma estratégia que, ao
invés de contribuir para a melhoria da educação e para a valorização docente,
responderia como um mecanismo de sobrevivência dos professores aos
ditantes do mercado de trabalho, que exige aperfeiçoamento contínuo; a
progressão funcional baseada na titulação ou na habilitação poderia funcionar
apenas como um mecanismo de melhoria salarial dos professores, que têm
salários aviltantes, com a busca de diplomas e certificados que serviriam
apenas como critério de promoção e não de formação em si; a avaliação do
desempenho poderia funcionar não para melhorias no processo de formação
dos professores, mas como critério para recompensa e premiações que levam
à competição e que desfavorecem a solidariedade; e programas de
capacitação a distância que, ao invés de interligar professores em formação,
por meio de redes nacionais, estaduais, municipais, democratizando o acesso
a informações, promovendo a troca de experiências por meio de aparatos
tecnológicos, poderiam, pelo contrário, assumir um caráter “aligeirado e
massificador” diante da urgência por professores habilitados.
A todos esses riscos acrescentam-se os que decorrem de processos de
modelização promovidos pelos cursos que são oferecidos baseados em
padrões independentes das situações vividas e que ignoram a especificidade
dos saberes e as redes de subjetividade locais. Dessa forma, acabam por criar
um discurso competente que é acompanhado das regras de interdição e
148
exclusão (CHAUI, 2006) que pesam sobre o saber, no sentido de interpor um
discurso competente (científico?) entre o que sabe e o que não sabe, e no de
interditar, excluir e desqualificar os sujeitos em formação. Desse modo,
interpõe-se entre o professor e o aluno, por exemplo, o saber pedagógico,
revistas de divulgação cultural, a televisão “educativa”, os livros de “ciência”, os
programas de formação em massa.
Esses são exemplos que não só reforçam a idéia de competência como
intimidam violentamente a “massa” dos incompetentes, dos imperfeitos, dos
incapazes, pois ser não-competente é ser a-social, em contraposição da
condição de autoria na construção do conhecimento-emancipação e de
autonomia no sentido de decidir sobre ele e sobre as trajetórias a seguir. Os
perigos potencializam-se quando, com o auxílio da tecnologia nas
comunicações, se acrescenta uma terceira regra: a do monopólio da
informação e, conseqüentemente, do saber e sua manipulação.
Nesse sentido, é preciso ir além do que está proposto na LDB, porque, embora
seus princípios nos levem a compreender como possível correlacionar
formação continuada de professores em serviço com processo de gestão
democrática da formação docente, como um processo potencializador da
autonomia e da emanciapação docente, pois não há uma interdição expressa,
um impedimento explícito, pelo contrário, nota-se um estímulo discursivo aos
processos formativos e democráticos, esses princípios serão mais bem
avaliados na prática proposta no PNE.
4.5 A FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES EM SERVIÇO E O
PLANO NACIONAL DE EDUCAÇÃO
O PNE, Lei nº 10.172/2001, foi decretado pelo Congresso Nacional e
sancionado pelo Presidente da República Fernando Henrique Cardoso, em 9
de janeiro de 2001 (publicado no Diário Oficial da União em 10 de janeiro de
149
2001). Projetado para durar dez anos e ser avaliado após seus quatro
primeiros anos, o PNE prevê a instituição de um Sistema de Nacional de
Avaliação e a existência de planos plurianuais da União, dos estados, do
Distrito Federal e dos municípios, elaborados de modo a dar suporte às metas
constantes do Plano e dos respectivos planos decenais. Juntamente com o
FUNDEF, revelaram-se importantes instrumentos na reforma do sistema
escolar recente no Brasil.
Este Plano Nacional de Educação define por conseguinte: . as diretrizes para a gestão e o financiamento da educação; . as diretrizes e metas para cada nível e modalidade de ensino; . as diretrizes e metas para a formação e valorização do magistério e demais profissionais da educação, nos próximos dez anos (BRASIL, 2001, p. 8-9, grifos nossos).
Nesse sentido, é um documento que se propôs estabelecer diretrizes e metas
para a educação brasileira durante os próximos dez anos que se seguiram a
partir de sua aprovação.
Em seu texto, consta um histórico que relembra o surgimento das primeiras
idéias de um plano que tratasse da educação para todo o território nacional,
desde a instalação da República no Brasil, quando a educação começava a se
impor como condição fundamental para o desenvolvimento do País. Menciona
o Manifesto dos Pioneiros da Educação em 1932, a Constituição Brasileira de
1934, e o primeiro PNE, que surgiu em 1962, elaborado já na vigência da
primeira LDB, Lei nº 4.024, de 20 de dezembro de 1961. Também cita algumas
modificações ocorridas em 1965, quando foram instituídas regras para a
elaboração de planos estaduais, e chega aos nossos tempos analisando como
a preocupação com a instrução, nos seus diversos níveis e modalidades e nas
várias reformas educacionais, ajudou no amadurecimento da percepção
coletiva da educação como um problema nacional.
150
O documento também cita a Constituição Federal de 1988 como sendo a que
oficializa (Art. 214), após cinqüenta anos da primeira tentativa oficial, a idéia de
um plano nacional de longo prazo, com força de lei, capaz de conferir
estabilidade às iniciativas governamentais na área de educação.
Por outro lado, a Lei nº 9.394, de 1996, que "estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional", determina nos artigos 9.º e 87, respectivamente, que cabe à União, a elaboração do Plano, em colaboração com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, e institui a Década da Educação. Estabelece ainda, que a União encaminhe o Plano ao Congresso Nacional, um ano após a publicação da citada lei, com diretrizes e metas para os dez anos posteriores, em sintonia com a Declaração Mundial sobre Educação para Todos (BRASIL, 2001, p. 6).
Seu discurso de introdução defende a idéia de que a construção desse Plano
atendeu aos compromissos assumidos pelo Fórum Nacional em Defesa da
Escola Pública, desde sua participação nos trabalhos da Assembléia Nacional
Constituinte; consolidou os trabalhos do I e do II Congresso Nacional de
Educação (CONED) e sistematizou contribuições advindas de diferentes
segmentos da sociedade civil. Destaca assim, a importância desse documento-
referência, pois contempla as dimensões e problemas sociais, culturais,
políticos e educacionais brasileiros, embasado nas lutas e proposições
daqueles que defendem uma sociedade mais justa e igualitária.
Além disso, assume como eixos norteadores do ponto de vista legal a
Constituição Federal de 1988, a LDB de 1996 e a Emenda Constitucional nº 14,
de 1995, que instituiu o FUNDEF, assim como considera o Plano Decenal de
Educação para Todos, preparado de acordo com as recomendações da
reunião organizada pela Organização das Nações Unidas para a educação
(UNESCO) e realizada em Jomtien, na Tailândia, em 1993, e as consultas
feitas pelo MEC ao Conselho Nacional de Secretários de Educação (CONSED)
e à União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME).
Em síntese, o Plano tem como objetivos: • a elevação global do nível de escolaridade da população;
151
• a melhoria da qualidade do ensino em todos os níveis; • a redução das desigualdades sociais e regionais no tocante ao
acesso e à permanência, com sucesso, na educação pública; • a democratização da gestão do ensino público, nos
estabelecimentos oficiais, obedecendo aos princípios da participação dos profissionais da educação na elaboração do projeto pedagógico da escola e a participação das comunidades escolar e local em conselhos escolares ou equivalentes (BRASIL, 2001, p. 7, grifos nossos).
Os grifos já destacam o princípio de gestão democrática, revelando a
importância da participação dos profissionais da educação e da comunidade
escolar dentro de um planejamento global para a melhoria da qualidade da
educação.
As prioridades foram estabelecidas nesse Plano segundo o dever
constitucional e as necessidades sociais, considerando que os recursos
financeiros limitam a capacidade para responder ao desafio de oferecer uma
educação compatível, na extensão e na qualidade, à dos países
desenvolvidos. São elas, com destaque para o que diz respeito à valorização
dos profissionais da educação:
1. Garantia de ensino fundamental obrigatório de oito anos a todas as crianças de 7 a 14 anos, assegurando o seu ingresso e permanência na escola e a conclusão desse ensino. [...] 2. Garantia de ensino fundamental a todos os que a ele não tiveram acesso na idade própria ou que não o concluíram. [...] 3. Ampliação do atendimento nos demais níveis de ensino – a educação infantil, o ensino médio e a educação superior. [...] 4. Valorização dos profissionais da educação. Particular atenção deverá ser dada à formação inicial e continuada, em especial dos professores. Faz parte dessa valorização a garantia das condições adequadas de trabalho, entre elas o tempo para estudo e preparação das aulas, salário digno, com piso salarial e carreira de magistério. [...] 5. Desenvolvimento de sistemas de informação e de avaliação em todos os níveis e modalidades de ensino. (BRASIL, 2001, p. 8, grifos nossos).
É preciso destacar que só nos concentramos no que diz respeito às prioridades
do número 4, que trata da formação e valorização do magistério. Quanto a isso
o PNE faz o seguinte diagnóstico:
152
10. FORMAÇÃO DOS PROFESSORES E VALORIZAÇÃO DO MAGISTÉRIO 10.1 Diagnóstico A melhoria da qualidade do ensino, que é um dos objetivos centrais do Plano Nacional de Educação, somente poderá ser alcançada se for promovida, ao mesmo tempo, a valorização do magistério. Sem esta, ficam baldados quaisquer esforços para alcançar as metas estabelecidas em cada um dos níveis e modalidades do ensino. Essa valorização só pode ser obtida por meio de uma política global de magistério, a qual implica, simultaneamente, . a formação profissional inicial; . as condições de trabalho, salário e carreira; . a formação continuada. A simultaneidade dessas três condições, mais do que uma conclusão lógica, é uma lição extraída da prática. Esforços dos sistemas de ensino e, especificamente, das instituições formadoras em qualificar e formar professores têm se tornado pouco eficazes para produzir a melhoria da qualidade do ensino por meio de formação inicial porque muitos professores se deparam com uma realidade muitas vezes desanimadora. Ano após ano, grande número de professores abandona o magistério devido aos baixos salários e às condições de trabalho nas escolas. Formar mais e melhor os profissionais do magistério é apenas uma parte da tarefa. É preciso criar condições que mantenham o entusiasmo inicial, a dedicação e a confiança nos resultados do trabalho pedagógico. É preciso que os professores possam vislumbrar perspectivas de crescimento profissional e de continuidade de seu processo de formação. Se, de um lado, há que se repensar a própria formação, em vista dos desafios presentes e das novas exigências no campo da educação, que exige profissionais cada vez mais qualificados e permanentemente atualizados, desde a educação infantil até a educação superior (e isso não é uma questão meramente técnica de oferta de maior número de cursos de formação inicial e de cursos de qualificação em serviço), por outro lado é fundamental manter na rede de ensino e com perspectivas de aperfeiçoamento constante os bons profissionais do magistério. Salário digno e carreira de magistério entram, aqui, como componentes essenciais. Avaliação de desempenho também tem importância, nesse contexto. Em coerência com esse diagnóstico, o Plano Nacional de Educação estabelece diretrizes e metas relativas à melhoria das escolas, quer no tocante aos espaços físicos, à infra-estrutura, aos instrumentos e materiais pedagógicos e de apoio, aos meios tecnológicos, etc., quer no que diz respeito à formulação das propostas pedagógicas, à participação dos profissionais da educação na elaboração do projeto pedagógico da escola e nos conselhos escolares, quer, ainda, quanto à formulação dos planos de carreira e de remuneração do magistério e do pessoal administrativo e de apoio (BRASIL, 2001, p. 73-74, grifos nossos).
153
Aqui o PNE une formação e valorização docente e deixa claro a importância
dessa união para bom andamento de todo um planejamento em nível nacional.
Assume condições de trabalho adequadas como essenciais para a valorização
do magistério: tempo para estudo e preparação das aulas, salário digno, com
piso salarial e carreira de magistério. E faz referência a “curso de qualificação
em serviço”, mas ainda não discorre sobre a possibilidade de essa formação
se realizar dentro do espaço tempo da escola e fora do formato de curso tal
como estamos acostumados a ver (com objetivos, conteúdos, desenvolvimento
e avaliações planejadas a priori, de forma descontextualizada). No entanto,
como na LDB, eleva o nível de participação do professor para além da sala de
aula quando faz menção à elaboração de planos e propostas pedagógicas.
Ainda se pode destacar a importante lição extraída da prática: investir em
formação inicial apenas não tem garantido as melhorias almejadas. É preciso
garantir a simultaneidade das três condições: a formação profissional inicial; as
condições de trabalho, salário e carreira; a formação continuada.
O PNE coloca a qualificação docente como um dos maiores desafios a que o
Poder Público precisa dedicar-se com a implementação de políticas públicas
de formação inicial e continuada dos profissionais da educação. Essa deve ser
vista como uma condição e um meio de promover o avanço tecnológico e
científico de nossa sociedade, da qual dependem a formação de pessoas, a
qualidade de ensino da população brasileira e o pleno acesso à cidadania.
Sendo assim, a valorização do magistério tem um papel decisivo no processo
educacional e deve ser um compromisso da Nação.
A valorização do magistério deve seguir os seguintes requisitos:
* uma formação profissional que assegure o desenvolvimento da pessoa do educador enquanto cidadão e profissional, o domínio dos conhecimentos objeto de trabalho com os alunos e dos métodos pedagógicos que promovam a aprendizagem; * um sistema de educação continuada que permita ao professor um crescimento constante de seu domínio sobre a cultura letrada, dentro de uma visão crítica e da perspectiva de um novo humanismo;
154
* jornada de trabalho organizada de acordo com a jornada dos alunos, concentrada num único estabelecimento de ensino e que inclua o tempo necessário para as atividades complementares ao trabalho em sala de aula; * salário condigno, competitivo, no mercado de trabalho, com outras ocupações que requerem nível equivalente de formação; * compromisso social e político do magistério (BRASIL, 2001, p. 77, grifos nossos).
Os grifos mostram que a pretensão de melhoria da qualidade da educação
passa pela valorização do professor como pessoa, educador, cidadão e
profissional, necessitando que se trate de sua formação e valorização não
apenas na dimensão técnica, no sentido de domínio e aplicação de
conhecimentos e métodos pedagógicos que provocam a aprendizagem; mas
admite-se que também é preciso investir constantemente no seu crescimento,
considerando a amplitude das redes de subjetividades que se entrecruzam na
formação do professor no campo social, ético e político. Em contrapartida e a
partir desses investimentos por parte do Poder Público na formação e
valorização do magistério, os quais também abrangem mudanças salariais e
nas condições de trabalho, espera-se que o professor corresponda com o
compromisso social e político de lutar pela melhoria da educação pública.
Poderíamos dizer que o que se busca é uma parceria.
O documento conclui:
Os quatro primeiros precisam ser supridos pelos sistemas de ensino. O quinto depende dos próprios professores: o compromisso com a aprendizagem dos alunos, o respeito a que têm direito como cidadãos em formação, interesse pelo trabalho e participação no trabalho de equipe, na escola. Assim, a valorização do magistério depende, pelo lado do Poder Público, da garantia de condições adequadas de formação, de trabalho e de remuneração e, pelo lado dos profissionais do magistério, do bom desempenho na atividade. Dessa forma, há que se prever na carreira sistemas de ingresso, promoção e afastamentos periódicos para estudos que levem em conta as condições de trabalho e de formação continuada e a avaliação do desempenho dos professores (BRASIL, 2001, p. 77, grifos nossos).
155
É preciso ressaltar aqui que o investimento na formação e valorização do
magistério é um investimento de mão dupla: exige o empenho do Poder
Público e dos profissionais da educação e faz parte de um projeto maior ainda,
o de melhoria da qualidade da educação no Brasil. Além disso, diante da
imprevisibilidade de todos os processos de transformação social, destaca-se a
importância de que se estabeleçam como processos de gestão democrática e
de solidariedade, como formas de relacionamento social fundadas não na
ordem e na hierarquia, mas em possibilidades de criação de uma “ordem”
social auto-organizada, a partir de processos de negociação mediados por
relações de autoridade partilhada (OLIVEIRA, 2006, p. 150), sendo, assim,
processos potencialmente produtores de emancipação. Então, o que mais nos
chama a atenção nesse quadro é a interdependência entre os requisitos e
partes envolvidas nesse projeto que é coletivo e que exige por isso parcerias. E
parcerias se constroem com cooperação e reciprocidades. Nesse sentido, o
compromisso social e político que se exige para a construção de uma melhor
educação no Brasil é um compromisso de todos, e não só dos professores.
O PNE estabelece as seguintes diretrizes para a formação dos profissionais
da educação e sua valorização:
Os cursos de formação deverão obedecer, em quaisquer de seus níveis e modalidades, aos seguintes princípios: a) sólida formação teórica nos conteúdos específicos a serem ensinados na Educação Básica, bem como nos conteúdos especificamente pedagógicos; b) ampla formação cultural; c) atividade docente como foco formativo; d) contato com a realidade escolar desde o início até o final do curso, integrando a teoria à prática pedagógica; e) pesquisa como princípio formativo; f) domínio das novas tecnologias de comunicação e da informação e capacidade para integrá-las à prática do magistério; g) análise dos temas atuais da sociedade, da cultura e da economia; h) inclusão das questões relativas à educação dos alunos com necessidades especiais e das questões de gênero e de etnia nos programas de formação; i) trabalho coletivo interdisciplinar; j) vivência, durante o curso, de formas de gestão democrática do ensino;
156
k) desenvolvimento do compromisso social e político do magistério; l) conhecimento e aplicação das diretrizes curriculares nacionais dos níveis e modalidades da educação básica (BRASIL, 2001, p. 78, grifos nossos).
Dentre as diretrizes propostas pelo PNE que nos podem servir para pensarmos
a correlação entre os processos de formação continuada de professores em
serviço e os processos de gestão democrática da escola, destacamos a que se
refere às “vivências, durante o curso, de formas de gestão democrática do
ensino”. A começar por essa diretriz, podemos dizer que o PNE admite a
possibilidade de a gestão democrática ser vivenciada como uma experiência
de formação docente. E mais, é uma prioridade que isso aconteça como a
concretização de um dos princípios organizadores da formação de professores.
Nesse sentido, ela se aproxima da correlação que estamos a investigar: a
possibilidade de a formação continuada de professores em serviço se
configurar como uma gestão democrática da formação docente.
Se relacionarmos a expressão “vivências” a “experiências” e seguirmos a tese
de Santos (2005a), de que experiências democráticas podem favorecer a
formação de subjetividades democráticas, poderemos também dizer que
vivenciar experiências de gestão democrática nos processos de formação
docente pode resultar na democratização das subjetividades que se encontram
em formação, isto é, a dos professores. Como subjetividades mais
democráticas, podem alimentar esse ciclo de formação. No entanto, é preciso
observar que a gestão democrática da formação docente não significa que
essa se dê sem um “rumo”, sem parâmetros. Significa dizer que a formação se
dará por processos decisórios a que os sujeitos em formação terão acesso
mais amplo, com mais autonomia para decidir sobre as trajetórias que
implementarão nesse percurso.
Daí a importância de considerar as outras diretrizes nesta reflexão: “atividade
docente como foco formativo”, “contato com a realidade escolar desde o início
até o final do curso, integrando a teoria à prática pedagógica”, “pesquisa como
157
princípio formativo”. Poderíamos dizer que a formação continuada de
professores em serviço é um processo formativo que se dedica a pesquisar a
prática docente em contato permanente com a realidade escolar, unindo a
teoria e a prática pedagógica, a partir da formação de grupos de estudo no
cotidiano escolar.
Podemos ainda combinar outras diretrizes assim: a formação continuada de
professores em serviço realiza-se por meio do “trabalho coletivo
interdisciplinar”, que ocorre em grupos de professores que se reúnem em
ambiente escolar com o objetivo de alcançar uma “ampla formação cultural” e
promover uma “sólida formação teórica nos conteúdos específicos a serem
ensinados na educação básica, bem como nos conteúdos especificamente
pedagógicos” por meio da “análise dos temas atuais da sociedade, da cultura e
da economia”, tais como o “domínio das novas tecnologias de comunicação e
da informação e a capacidade para integrá-las à prática do magistério”; a
“inclusão das questões relativas à educação dos alunos com necessidades
especiais e das questões de gênero e de etnia nos programas de formação”;
“conhecimento e aplicação das diretrizes curriculares nacionais dos níveis e
modalidades da educação básica”; e outros eleitos democraticamente pelo
grupo em vista de seus projetos locais, propiciando, assim, maior
“desenvolvimento do compromisso social e político do magistério”.
Ressaltamos que não se trata de uma “brincadeira” entre as concepções de
formação continuada e as diretrizes eleitas no PNE para a formação de
professores, mas, de realçar que essas diretrizes nos permitem correlacionar a
formação continuada de professores em serviço com processos de gestão
democrática da formação docente, assim como pensar em processos que
conduzam à emancipação e autonomia dos professores sujeitos dessa
formação.
Quanto às necessidades de formação, o PNE prevê que sejam analisadas as
especificidades ou/e etapas (pré-escola, alfabetização, séries iniciais e finais
158
do ensino fundamental, educação indígena, educação especial, ensino médio,
educação de jovens e adultos, e outros) em cada Estado para que seja feito
um plano com o objetivo de se alcançar o exigido nas metas nele fixadas.
O documento ainda destaca que, na formação inicial, é preciso superar a
dicotomia entre teoria e prática e entre formação pedagógica e formação nos
campos de conhecimentos específicos. A formação inicial dos profissionais da
educação básica deve ser responsabilidade principalmente das instituições de
ensino superior, nos termos do Art. 62 da LDB, onde as funções de pesquisa,
ensino e extensão e a relação entre teoria e prática podem garantir o patamar
de qualidade social, política e pedagógica que se considera necessário.
Quanto à formação continuada, o documento defende que é preciso
reconhecer sua particular importância diante dos avanços tecnológicos e
científicos, que exigem um nível de conhecimentos sempre mais amplo e
profundo na sociedade moderna. A esse respeito, argumentamos que também
é indispensável que a remuneração dos docentes corresponda aos níveis mais
elevados de qualificação profissional e de desempenho que lhes são cobrados,
mesmo porque os professores também precisam ter acesso às novas
tecnologias (computadores e seus equipamentos periféricos) como meios para
melhor desempenhar sua profissão. E aqui destacamos como o PNE trata a
questão da formação permanente (em serviço) dos profissionais da educação.
A formação continuada do magistério é parte essencial da estratégia de melhoria permanente da qualidade da educação, e visará à abertura de novos horizontes na atuação profissional. Quando feita na modalidade de educação a distância, sua realização incluirá sempre uma parte presencial, constituída, entre outras formas, de encontros coletivos, organizados a partir das necessidades expressas pelos professores. Essa formação terá como finalidade a reflexão sobre a prática educacional e a busca de seu aperfeiçoamento técnico, ético e político. A formação continuada dos profissionais da educação pública deverá ser garantida pelas secretarias estaduais e municipais de educação, cuja atuação incluirá a coordenação, o financiamento e a manutenção dos programas como ação permanente e a busca de parceria com universidades e instituições de ensino superior. Aquela relativa aos professores que atuam na esfera privada será de
159
responsabilidade das respectivas instituições (BRASIL, 2001, p. 78-79, grifos nossos).
O PNE prevê uma especial atenção à formação continuada como uma das
estratégias essenciais à melhoria permanente da educação. Destacamos a
expressão entre parêntese “em serviço” que se segue a “formação
permanente”, utilizada pela primeira vez no texto legal do documento original.
Destacamos, também, a previsão de cursos a distância como uma das
estratégias possíveis de formação permanente, sempre ligada à revolução e à
necessária introdução das tecnologias nas práticas docentes em tempos de
avanços tecnológicos.
No entanto, ressaltamos, assim como o próprio documento, que esses cursos
(que não são a única alternativa de formação continuada de professores) têm
de manter uma carga horária presencial, a fim de promover encontros coletivos
a partir das necessidades expressas pelos professores, revelando a
necessidade de uma interação para além daquela possível por meio de
computadores e de outras tecnologias. Nesse sentido, a formação continuada
de professores em serviço pressupõe a reflexão sobre a prática e o
crescimento não só técnico, mas também ético e político, não sendo
necessário que isso ocorra apenas nos cursos de formação a distância, mas
apesar deles. Isto é, estamos aqui a defender a existência de outras
possibilidades de formação que não sejam apenas na modalidade a distância,
visto que a formação continuada de professores em serviço é justamente esse
encontro interativo, intersubjetivo que envolve a reflexão, a gestão democrática
e a construção social e solidária do conhecimento, tendo em vista as
necessidades locais, como ocorre nas comunidades interpretativas (SANTOS,
2005a).
O que questionamos aqui é como atender as necessidades locais com a
implantação de cursos a distância, planejados de forma descontextualizada, ou
160
seja, de forma tão “distante” das realidades locais “receptoras” dos programas
de formação.
Ainda dentro da parte que trata da valorização e formação do professor e no
que se refere à remuneração, o PNE faz a seguinte avaliação:
No campo da remuneração, o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério está fazendo uma extraordinária mudança naqueles Estados e Municípios onde o professor recebia salários muito baixos, inferiores ao salário mínimo. Devem ser aplicados, obrigatoriamente, pelo menos 60% dos recursos do FUNDEF na remuneração do pessoal de magistério em efetivo exercício de suas atividades no ensino fundamental público (Lei 9.429/96, art. 7.º). Nos Estados e Municípios onde o salário já era mais alto do que o possibilitado pelo FUNDEF, não houve melhoria para os professores, antes, dificuldades adicionais para certos Municípios manter o padrão anterior de remuneração. A avaliação do FUNDEF vem apontando as falhas e sugerindo revisões com vistas a solucionar os problemas que vêm ocorrendo. Em alguns lugares, os professores de educação infantil, de jovens e adultos e de ensino médio, ficaram prejudicados. Se os 10% dos mínimos constitucionalmente vinculados à manutenção e desenvolvimento do ensino não postos no FUNDEF forem efetivamente destinados, nos Municípios, à educação infantil e, nos Estados, ao ensino médio, os problemas ficarão em parte minimizados (BRASIL, 2001, p. 76).
É possível notar avanços e retrocessos nesse campo. Quanto aos planos de
carreira do magistério, o PNE diz ainda que estão sendo reformulados em
cumprimento à LDB na expectativa de que isso constitua um passo para a
valorização do magistério.
Retornando à nossa análise, o PNE estabelece 28 objetivos e metas que, em
resumo, têm como previsão:
- garantir a implantação, já a partir do primeiro ano, dos planos de carreira
para o magistério, elaborados e aprovados de acordo com as
determinações da Lei nº 9.424/96, e a criação de novos planos, segundo
aquela lei, bem como os novos níveis de remuneração em todos os
sistemas de ensino, com piso salarial próprio, de acordo com as diretrizes
161
estabelecidas pelo Conselho Nacional de Educação, assegurando a promoção
por mérito;
- estabelecer diretrizes e parâmetros curriculares para os cursos superiores
de formação de professores e de profissionais da educação para os diferentes
níveis e modalidades de ensino, definir diretrizes e estabelecer padrões
nacionais para orientar os processos de credenciamento das instituições
formadoras, bem como a certificação, o desenvolvimento das competências
profissionais e a avaliação da formação inicial e continuada dos professores;
- incluir, nos currículos e programas dos cursos de formação de profissionais
da educação, temas específicos da história, da cultura, dos conhecimentos,
das manifestações artísticas e religiosas do segmento afro-brasileiro, das
sociedades indígenas e dos trabalhadores rurais e sua contribuição na
sociedade brasileira, assim como incluir conhecimentos sobre educação das
pessoas com necessidades especiais, na perspectiva da integração social;
- a partir do PNE, somente admitir professores e demais profissionais de
educação que possuam as qualificações mínimas exigidas no Art. 62 da
LDB;
- identificar e mapear, nos sistemas de ensino, as necessidades de
formação inicial e continuada do pessoal técnico e administrativo,
elaborando programas de formação dando início à respectiva implementação,
no prazo de três anos a partir da vigência do PNE;
- generalizar, nas instituições de ensino superior públicas, cursos regulares
noturnos e cursos modulares de licenciatura plena, assim como incentivar as
universidades e demais instituições formadoras a oferecer, no interior
dos estados, cursos de formação de professores, no mesmo padrão dos
cursos oferecidos na sede, de modo a atender à demanda local e regional
por profissionais do magistério graduados em nível superior nas diversas áreas
162
de ensino e, em particular, mas de educação especial, gestão escolar,
formação de jovens e adultos e educação infantil;
- onde ainda não existam condições para formação em nível superior de
todos os profissionais necessários para o atendimento das necessidades
do ensino, oferecer cursos de nível médio, em instituições específicas, que
observem os princípios definidos e preparem pessoal qualificado para a
educação infantil, a educação de jovens e adultos e as séries iniciais do ensino
fundamental, prevendo a continuidade dos estudos desses profissionais
em nível superior;
- criar, no prazo de dois anos, cursos profissionalizantes de nível médio
destinados à formação de pessoal de apoio para as áreas de
administração escolar, multimeios e manutenção de infra-estruturas
escolares;
- identificar e mapear portadores de diplomas de licenciatura e de
habilitação de nível médio para o magistério, que se encontrem fora do
sistema de ensino, com vistas a seu possível aproveitamento, nos Municípios
onde a necessidade de novos professores é elevada e é grande o número
de professores leigos.
Na prática profissional:
- implementar, gradualmente, uma jornada de trabalho de tempo integral,
quando conveniente, cumprida em um único estabelecimento escolar, e
destinar entre 20 e 25% da carga horária dos professores para preparação
de aulas, avaliações e reuniões pedagógicas;
- garantir que, no prazo de dez anos, todos os professores de ensino médio
tenham formação específica de nível superior;
163
- garantir que, no prazo de cinco anos, todos os professores em exercício na
educação infantil e nas quatro primeiras séries do ensino fundamental,
inclusive nas modalidades de educação especial e de jovens e adultos,
tenham, no mínimo, habilitação de nível médio (modalidade normal), específica
e adequada às características e necessidades de aprendizagem dos alunos.
Quanto à formação continuada e em serviço:
- ampliar, a partir da colaboração da União, dos Estados e dos Municípios, os
programas de formação em serviço que assegurem a todos os professores a
possibilidade de adquirir a qualificação mínima exigida pela LDB, observando
as diretrizes e os parâmetros curriculares, assim como promover a avaliação
periódica da qualidade de atuação dos professores como subsídio à
definição de necessidades e características dos cursos de formação
continuada;
- desenvolver programas de educação a distância que possam ser utilizados
também em cursos semipresenciais modulares, de forma a tornar possível o
cumprimento da meta anterior;
- garantir, já no primeiro ano de vigência do Plano, que os sistemas estaduais e
municipais de ensino mantenham programas de formação continuada de
professores alfabetizadores, contando com a parceria das instituições de
ensino superior sediadas nas respectivas áreas geográficas;
- ampliar a oferta de cursos de mestrado e doutorado na área educacional
desenvolver a pesquisa neste campo e criar programas de pós-graduação
e pesquisa nessa área como centros irradiadores da formação profissional em
educação, para todos os níveis e modalidades de ensino.
Quanto ao acompanhamento e à avaliação, o PNE diz:
164
Será preciso, de imediato, iniciar a elaboração dos planos estaduais em consonância com o Plano Nacional e, em seguida, dos planos municipais, também coerentes com o plano do respectivo Estado. Os três documentos deverão compor um conjunto integrado e articulado. Integrado quanto aos objetivos, prioridades, diretrizes e metas aqui estabelecidos. E articulado nas ações, de sorte que, na soma dos esforços das três esferas, de todos os Estados e Municípios mais a União, chegue-se às metas aqui estabelecidas (BRASIL, 2001, p. 97).
E faz a seguinte observação:
Os objetivos e as metas deste plano somente poderão ser alcançados se ele for concebido e acolhido como Plano de Estado, mais do que Plano de Governo e, por isso, assumido como um compromisso da sociedade para consigo mesma. Sua aprovação pelo Congresso Nacional, num contexto de expressiva participação social, o acompanhamento e a avaliação pelas instituições governamentais e da sociedade civil e a conseqüente cobrança das metas nele propostas, são fatores decisivos para que a educação produza a grande mudança, no panorama do desenvolvimento, da inclusão social, da produção científica e tecnológica e da cidadania do povo brasileiro (BRASIL, 2001, p. 98).
De modo geral, o PNE caracteriza-se como um plano que traça objetivos,
metas e diretrizes com a intenção de providenciar uma formação inicial e
continuada de professores em nível nacional, tentando atender as
necessidades locais, dentro das diretrizes e parâmetros curriculares, e de
promover avaliações periódicas e estabelecer padrões nacionais, que
orientem os processos de credenciamento das instituições formadoras, o
desenvolvimento das competências profissionais, bem como a certificação
de desempenho docente.
Então, o que se percebe em relação à formação continuada de professores é
que as diretrizes que continham uma proposta ampla e aberta foram
direcionadas a uma aplicação estreita e fechada a cursos de qualificação
profissional oferecidos por instituições credenciadas para o desenvolvimento
de competências profissionais e certificação do desempenho docente. Não se
observam nem impedimentos nem incentivos para que se realizem fora da
estrutura de cursos regulares e em ambiente escolar, a não ser pelo fato de em
165
nenhum momento ser mencionada uma forma alternativa ao que foi
constantemente proposto.
Nesse sentido e em nosso humilde entendimento, permanece a possibilidade
legal de que aconteçam processos de formação continuada de professores em
serviço fora da estrutura de cursos regulares planejados a priori, como um
caminho evidente. Não se pode negar que o ambiente escolar seja um dos
contextos de formação de professores no exercício de sua função e que os
processos de formação ultrapassam a estrutura de cursos, antes, porém, são
percursos, dos quais os cursos fazem apenas parte, como um caminho
alternativo, em relação ao proposto constantemente pelo PNE.
No entanto, se existirem propostas alternativas de formação em serviço sendo
implantadas, geridas, democraticamente praticadas pelos sujeitos praticantes,
professores em suas diferentes escolas e realidades, essas propostas sempre
serão alvo de processos de regulação e da tentativa de submetê-las à
regulação dos sistemas de ensino, na busca por enquadrá-las como programas
de formação. Resta-nos saber se esse enquadramento permitirá a existência
de, como defende Oliveira (2003, p. 83), “[...] uma epistemologia crítica e
suficientemente flexível para manterem abertas as possibilidades reais dos
professores que a utilizarão, respeitando-lhes os saberes e subjetividades, bem
como a de seus alunos [...]” assim como as realidades locais e seus projetos,
considerando o potencial desse homem ordinário, sujeito praticante que
escapa silenciosamente a essa conformação com as suas artes de fazer,
inventando o cotidiano na luta por resistir aos processos de dominação.
4.6 A FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES EM SERVIÇO E A
REDE NACIONAL DE FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES DE
EDUCAÇÃO BÁSICA
Segundo a apresentação desse documento, a Rede Nacional de Formação
Continuada de Professores de Educação Básica, constituída em julho de 2004,
surgiu como resposta à necessidade de articular a pesquisa, a produção
166
acadêmica à formação dos educadores, processo que não se completa por
ocasião do término de seus estudos em cursos superiores. Houve para isso a
concretização de uma parceria entre a SEB/MEC, o DPE e a COPFOR que
promoveu diversos cursos, e a produção de múltiplos materiais destinados aos
educadores em salas de aula do ensino fundamental e da educação infantil,
divulgados e publicados em março de 2005, no “Catálogo 2005”.
A Rede Nacional de Formação Continuada constituiu-se por meio da celebração de convênios com Universidades selecionadas nos termos do Edital 01/2003/MEC. Segundo o convênio firmado, a execução será gerenciada pelo MEC e acompanhada, em cada Centro, por um Comitê Gestor constituído por três membros: o coordenador do Centro, um representante da Universidade indicado pelo Reitor e um representante da SEB/ MEC (BRASIL, 2006, p. 29).
Sendo o convênio um ato administrativo firmado entre diferentes
representantes do poder público, presume-se que seja legítimo e legal, assim
como válidas as intenções nele manifestadas.
Essa parceria foi mantida em 2006, resultando no “Catálogo 2006”, documento
que enfocaremos e que sofreu algumas alterações quanto às universidades
conveniadas e aos produtos oferecidos, como resultado de avaliação do
trabalho já realizado. Como na etapa anterior, esse documento tornou pública a
Rede Nacional de Formação Continuada aos sistemas estaduais e municipais
de ensino, às universidades, aos professores e a todos os envolvidos no
processo de formação de profissionais da educação no País, visando divulgá-la
e buscando a adesão de Secretarias Municipais e Estaduais de Educação.
O presente documento trata das diretrizes, ações e processo de implementação da política e do sistema de formação continuada que vem sendo desenvolvido pelo MEC/SEB desde 2003. Nesse sentido, foi instituída a Rede Nacional de Formação Continuada de Professores da Educação Básica com a finalidade precípua de contribuir com a qualidade do ensino e com a melhoria do aprendizado dos estudantes por meio de um amplo processo de articulação dos órgãos gestores, dos sistemas de ensino e das instituições de formação, sobretudo, as universidades públicas e comunitárias. A Rede é formada pelo MEC, Sistemas de Ensino e os Centros de Pesquisa e Desenvolvimento da Educação, que são
167
parceiros no desenvolvimento e oferta de programas de formação continuada, bem como na implementação de novas tecnologias de ensino e gestão em unidades escolares e sistemas estaduais e municipais (BRASIL, 2006, p. 9, grifos nossos).
Nesse sentido, com suas orientações, o MEC pretende institucionalizar a
formação docente, articulando a formação continuada à pesquisa e à
produção acadêmica desenvolvida nas universidades e em conformidade
com o sistema federativo brasileiro, propondo a adesão dos sistemas de
ensino a essa formação, visto que a formação continuada no mundo atual
passa a ter papel central na atividade profissional: o educador necessita
constantemente repensar e aperfeiçoar sua prática docente.
Com relação aos princípios, diz o texto:
A atual política parte dos seguintes princípios: a formação do educador deve ser permanente e não apenas pontual; formação continuada não é correção de um curso porventura precário, mas necessária reflexão permanente do professor; a formação deve articular a prática docente com a formação inicial e a produção acadêmica desenvolvidas na Universidade; a formação deve ser realizada também no cotidiano da escola em horários específicos para isso, e contar pontos na carreira dos professores (BRASIL, 2006, p. 1).
Além de destacar a pretensão de considerar os professores como sujeitos de
formação e ressaltar que a formação no cotidiano da escola deve ser realizada
em horários específicos, o documento reforça:
A Rede busca, portanto, contribuir com os sistemas de ensino e, particularmente, com a formação dos professores como sujeitos do processo educativo. Tal compreensão, pautada em uma concepção de formação de professores, inicial e continuada, que contemple a tematização de saberes e práticas num contexto de desenvolvimento profissional permanente, implica em considerar os estudantes como sujeitos nesse processo (BRASIL, 2006, p. 10, grifos nossos).
168
Destacamos, ainda, a noção de formação permanente em contraposição à de
formação pontual. Seria uma idéia que caminha na tentativa de superar a
concepção de cursos como uma experiência pontual? Em complemento a essa
idéia, destacamos o importantíssimo princípio que traz esse documento para a
possibilidade da correlação que estamos a investigar: “[...] a formação deve
ser realizada também no cotidiano da escola em horários específicos para
isso, e contar pontos na carreira dos professores”. Seria essa idéia o
reconhecimento, por parte do MEC e de seus parceiros, de que é totalmente
(legal e legitimamente) possível que a formação aconteça fora dos limites de
um curso (pontual), dentro do horário e ambiente escolar e de trabalho do
professor (não o sobrecarregando como uma tarefa a mais, mas como uma
atividade prevista dentro de sua carga horária de trabalho), elevando essa
experiência à categoria “oficial” de formação a ponto de ser considerada para
pontuação na carreira dos professores?
Continuando, vemos que o documento se encontra estruturado nos seguintes
itens: A Formação Docente no Passado Recente: Concepções e Práticas; Base
Legal para Institucionalização da Formação Continuada; A Política da
SEB/MEC, a Rede Nacional de Formação Continuada e os Sistemas Públicos
de Ensino; A Rede Nacional de Formação Continuada; Leitura Complementar;
Equipe - Colaboradores; Catálogo e Contatos.
Quanto ao primeiro item “A Formação Docente no Passado Recente:
Concepções e Práticas”, consideramos importante destacar a reflexão crítica
(ou seria uma autocrítica?) sobre o próprio desempenho do Governo Federal e
do MEC a partir da década de 1980, na condução de políticas públicas
educacionais pautadas em critérios individualistas e imediatistas, sintetizadas
na área de formação docente pela adoção de um modelo curricular por
competências. Dessa forma, não teceremos muitos comentários, apenas
destacaremos algumas palavras ou frases.
169
O documento parte de uma reconstituição histórica do que representou a
década de 1980 para o Brasil, na busca por romper com o pensamento
tecnicista que até então dominava a educação. Retrata, também, a busca por
estabelecer, na prática, uma concepção emancipadora de educação e de
formação docente ligada aos movimentos dos educadores, até o
desencadear da Constituição de 1988 e a aprovação da LDB n° 9.394/96, que
assumidamente não contemplou plenamente os ideários críticos que
norteavam os debates da época.
No âmbito do movimento dos educadores, o debate produziu e evidenciou concepções sobre formação do professor, profissional da área de educação dos diversos campos do conhecimento, destacando o caráter sócio-histórico dessa formação, a necessidade de formação de um profissional com ampla compreensão da realidade de seu tempo, portador de uma postura crítica e propositiva que lhe permitisse interferir na transformação das condições da escola, da educação e da sociedade e com ela contribuir. Com esta concepção emancipadora de educação e formação, o movimento avançou no sentido de buscar superar as dicotomias presentes na formação acadêmica entre professores e especialistas, pedagogia e licenciaturas, especialistas e generalistas, acompanhando a escola na busca da democratização das relações de poder em seu interior e na construção de novos projetos coletivos. Como parte importante desta construção teórica, a partir das transformações concretas no âmbito da escola, emergiu a concepção de profissional da educação que tem na docência e no trabalho pedagógico a sua particularidade e especificidade. Nessa perspectiva, foram implementadas no país experiências significativas e inovadoras no campo da formação docente, ao mesmo tempo em que os professores, juntamente com outras categorias de trabalhadores, intensificavam sua participação, de modo organizado, nos debates e movimentos que culminaram com a promulgação da nova Constituição Brasileira de 1988 e com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1996. É oportuno ressaltar, no entanto, que dimensões importantes do ideário crítico que norteava a proposição de um projeto nacional de educação, de acordo com os debates e experiências em curso no país, não foram plenamente contempladas na LDB (BRASIL, 2006, p. 11, grifos nossos).
Nesse caminhar histórico, o documento ressalta a ação do Governo Federal,
que, seguindo a tendência das reformas “liberalizantes” que se estendiam para
toda a América Latina, buscou adequar as políticas educacionais às exigências
da reforma do Estado e redefiniu o sistema educacional, tendo como referência
170
central a pedagogia das competências para a empregabilidade, assumindo o
ideário do mercado como perspectiva geral prática. Destaca que essa
perspectiva,
[...] de caráter individualista e imediatista em relação ao mercado de trabalho, norteou também as iniciativas no plano da formação inicial e da formação continuada e em serviço, no âmbito da reforma educacional que então se efetivava no país (BRASIL, 2006, p. 12).
Sendo a formação de professores da educação básica considerada pelos
reformadores como estratégica para os fins pretendidos dessa reforma, foram
delineadas mudanças na organização acadêmica do sistema de ensino
superior com a criação de novas instâncias para a formação de professores,
como o Instituto Superior de Educação (ISE) e o Curso Normal Superior,
introduzindo-se novas concepções quanto à identidade do professor e sua
formação, privilegiando como base curricular o modelo de competências
profissionais.
Nesse sentido, os ISEs foram regulamentados pela Resolução nº 01/99, do
Conselho Nacional de Educação (CNE), vindo a integrar o conjunto de
alterações no ensino superior brasileiro formuladas no âmbito do Governo,
configurando-se como locus privilegiado para a formação de professores, que
passou a ser oferecida, preferencialmente, em instituições de ensino superior
não universitárias, não requerendo “[...] padrão universitário de pesquisa e de
produção de conhecimento. Dessa forma, fica em um segundo plano o ideário
do movimento de educadores de ter a formação universitária como o horizonte
de formação dos professores” (BRASIL, 2006, p. 13).
Destaque-se, ainda, que essas iniciativas encontraram resistência de parte das
entidades acadêmicas e sindicais do campo educacional que, mobilizadas,
tentaram influir na definição das Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Formação de Professores da Educação Básica, em Nível Superior, Curso de
Licenciatura, de Graduação Plena, aprovadas em 2002 (Resolução CNE/CP nº
1/2002), tendo por base o Parecer do CNE/CP nº 009/2001.
171
Assim, o documento conclui que, situando a formação inicial
[...] nesses parâmetros e associando-a às condições de precariedade ainda vigentes no sistema educacional no que toca ao ambiente de trabalho e remuneração dos profissionais da educação, não há de causar espécie, as dificuldades e os desafios encontrados nos processos de formação continuada (BRASIL, 2006, p.13).
A partir disso, o documento defende que a proposição de políticas efetivas
para a formação de professores implica
- garantir a articulação entre formação inicial, formação continuada e
profissionalização, o que significa que as políticas e as instituições envolvidas
devem atuar de modo articulado no sentido de melhor qualificar a profissão e o
exercício da docência nos diferentes níveis e modalidades da educação básica,
visando à garantia de um processo ensino-aprendizagem de qualidade
socialmente referenciada;
- a compreensão de que os saberes pedagógicos também são
desenvolvidos ao longo do processo de construção e constituição da
identidade e do exercício profissional do professor, uma vez que a
natureza do trabalho pedagógico requer domínio de saberes específicos das
diferentes áreas do conhecimento, bem como aqueles relativos às
metodologias e à compreensão dos processos presentes no planejamento,
organização curricular, avaliação e gestão da educação escolar;
- a compreensão de que o contexto da formação inicial e continuada requer
uma ampla articulação entre os agentes envolvidos (Ministério da
Educação, Conselhos de Educação, Universidades, Secretarias de
Educação, Escolas etc.), no sentido de efetivar um sistema nacional de
formação que possa colaborar efetivamente na melhoria da
aprendizagem, de modo a redimensionar os indicadores atuais de
desempenho.
172
Quanto à base legal para a institucionalização da rede de formação
continuada, o documento cita:
1 – A LDB (Lei nº 9.394/96),
- em relação à formação inicial – que no Art. 87, § 4º, institui a “Década da
Educação” estabelece a necessidade de habilitação ou formação por
treinamento em serviço e a exigência de cursos superiores de licenciatura
plena para os professores da educação básica, o que fez com que os cursos
de formação desses profissionais se expandissem significativamente a partir da
segunda metade da década de 1990.
Sobre isso, o documento questiona a qualidade de alguns cursos de formação
que desqualificam a formação inicial, “[...] o que pode vir a ocasionar uma
deformação da concepção de formação continuada, considerando-a uma forma
de corrigir problemas da má formação inicial” (BRASIL, 2006, p. 14). O
posicionamento que se assume é que “[...] é preciso pensar a formação
docente (inicial e continuada) como momentos de um processo contínuo
de construção de uma prática docente qualificada e de afirmação da
identidade, da profissionalidade e da profissionalização do professor”
(BRASIL, 2006, p. 15).
- em relação à formação continuada - que no inciso III, do Art. 63, define que as
instituições formativas deverão manter “programas de formação
continuada para os profissionais de educação dos diversos níveis”, e
estabelece, no inciso II, Art. 67, “que os sistemas de ensino deverão promover
aperfeiçoamento profissional continuado, inclusive com licenciamento periódico
remunerado para esse fim”. Tal perspectiva amplia o alcance da formação
continuada, incluindo os cursos de pós-graduação em nível de mestrado
e doutorado.
173
2 – A Lei nº 9.424/96,
- que institui o FUNDEF e estabelece 60% dos recursos subvinculados para
o ensino fundamental deveriam ser aplicados na remuneração e
capacitação de professores, sobretudo nos cinco primeiros anos de vigência
do Fundo. Essa lei exigiu a criação de planos de carreira e de remuneração do
magistério em todos os sistemas de ensino e alertou para o fato de que um
padrão de qualidade do ensino no que tange à definição de custo aluno
inclui a “capacitação permanente dos profissionais da educação”.
3 – A Resolução nº 03/97, do Conselho Nacional de Educação,
- que define, no Art. 5º, que os sistemas de ensino “envidarão esforços para
implementar programas de desenvolvimento profissional dos docentes
em exercício, incluída a formação em nível superior em instituições
credenciadas, bem como em programas de aperfeiçoamento em serviço”.
Desse modo, os planos de carreira deveriam incentivar a progressão, por meio
da qualificação inicial e continuada dos trabalhadores da educação.
4 – O Plano Nacional de Educação – PNE- (Lei n° 10.172/2001),
- que, ao estabelecer os objetivos e metas para a formação inicial e continuada
dos professores e demais servidores da educação, enfatiza que se faz
necessário criar programas articulados entre as instituições públicas de
ensino superior e as secretarias de educação, de modo a elevar o “padrão
mínimo de qualidade de ensino”.
Nesse sentido, o documento caracteriza a importância da ação do Poder
Público tanto para a articulação quanto para as garantias de condições de
trabalho e de recursos necessários à implementação de políticas na área
da formação docente, e, ainda, no caso da Rede Nacional de Formação,
ressalta a necessidade de esforço integrado e colaborativo que objetive
174
institucionalizar a formação continuada de professores e demais profissionais
da educação.
O documento afirma:
A União desempenha papel fundamental nesse processo, uma vez que deve coordenar a “política nacional de educação, articulando os diferentes níveis e sistemas e exercendo função normativa, redistributiva e supletiva, em relação às demais instâncias educacionais” (Art. 8º da LDB – Lei nº 9.394/96). No entanto, a mesma lei atribui aos Estados e Municípios a responsabilidade pela organização dos respectivos sistemas de educação (Art. 10 e 11) e, às instituições escolares a incumbência de elaborar sua própria proposta pedagógica (Art. 12), na qual os docentes deverão ter participação ativa (Art. 13). Nesse sentido, o professor, como profissional da educação, faz jus a um plano de carreira, condições de trabalho e formação inicial e continuada, objetivando a produção de uma educação de qualidade. Além disso, a mesma Lei estabelece normas para a “gestão democrática do ensino público na educação básica” e, no artigo 15, determina que os sistemas de ensino assegurem “às unidades escolares públicas de educação básica que os integram, progressivos graus de autonomia pedagógica e administrativa e de gestão financeira, observadas as normas gerais do direito financeiro público” (BRASIL, 2006, p. 16–17).
De outro lado, não se pode deixar de destacar a importância da ação e do
comprometimento do professor com a causa educacional, que, assim, fica
caracterizada como uma ação de mão dupla: investimento do e no professor.
A ação do MEC, ao estabelecer uma política nacional de formação continuada
em regime de colaboração com as secretarias de Estados e Municípios, tem,
segundo o documento, a intenção de promover uma articulação efetiva entre
esses parceiros e as universidades, de modo a possibilitar maior interação
entre estas instituições para redimensionar a formação inicial e continuada do
professor e demais profissionais da educação e dar a ela maior ogranicidade.
Quanto às universidades, o documento aponta a estrutura criada a partir da
reforma universitária proposta pelo MEC em dezembro de 2004, que define
175
que a educação superior compreenderá os cursos de graduação, abrangendo
licenciaturas, bacharelados e cursos superiores de tecnologia; os programas
de pós-graduação, envolvendo cursos de mestrado e doutorado; os programas
e atividades de extensão; os programas de formação continuada, abertos a
candidatos que atendam aos requisitos estabelecidos pelas instituições de
educação superior. Estes últimos, abrangendo: a) cursos de estudos
superiores posteriores ao ensino médio ou equivalente, que não configurem
graduação; b) cursos seqüenciais por campo do saber, de diferentes níveis de
abrangência; c) cursos de especialização, destinados a graduados; d) cursos
de aperfeiçoamento e de treinamento, destinados a graduados.
Segundo o documento, toda essa estrutura advinda da base legal
constituída aponta para um amplo sistema nacional de formação
continuada de professores, que poderá colaborar para a qualificação
pedagógica da ação docente, tendo em vista garantir uma aprendizagem
efetiva condizente com os fins da educação escolar e com o efetivo
direito à educação e à escola de qualidade.
A terceira parte do documento trata da política da SEB/MEC, sua relação com
a Rede Nacional de Formação Continuada e os Sistemas Públicos de Ensino.
Nela o MEC caracteriza a sua atuação:
O Ministério da Educação (MEC) vem investindo na Educação Básica, elegendo a qualidade como parâmetro de suas diretrizes, metas e ações e conferindo a essa qualidade uma dimensão sócio-histórico-política e, portanto, inclusiva. Nesse sentido, o Ministério assume o compromisso com a qualidade social da educação, o que implica assegurar-lhe eficiência, eficácia e efetividade social, de modo a contribuir efetivamente com a aprendizagem dos educandos e com a melhoria das condições de vida e bem-estar da população (BRASIL, 2006, p. 18).
Para a execução de políticas prioritárias para o Governo Federal e o MEC, a
SEB destaca quatro eixos principais de atuação: redefinição e ampliação do
financiamento da educação básica; inclusão social; democratização da
gestão; e formação inicial e continuada dos profissionais da educação.
176
O documento aponta que o MEC vem redimensionando a questão do
financiamento da educação escolar considerando a centralidade e articulação
dos processos de organização e gestão da educação básica à política de
financiamento. Para a ampliação do financiamento da Educação Básica são
citados o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de
Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB) em substituição ao atual
FUNDEF, o que deverá prover um aporte de recursos condizente com a
progressiva universalização do ensino aliada ao incremento da sua qualidade.
Outro eixo prioritário de atuação compreende a democratização da gestão
“[...] entendida como um processo político-pedagógico e administrativo
por meio do qual se orienta, organiza e viabiliza a prática social da
educação, devendo ser, portanto, compartilhado por todos os que
compõem a comunidade local e escolar [...]” (BRASIL, 2006, p. 19), assim
como se entende que há uma vinculação orgânica entre a gestão e a
melhoria da qualidade da educação.
Esse eixo organizador aproxima-se da correlação que investigamos no sentido
de que a formação continuada de professores em serviço pautada pelo
princípio da gestão democrática da formação acaba por se configurar em
processos político-pedagógicos e “administrativos” com que todos que
compõem a comunidade local devem compartilhar, tal qual em comunidades
interpretativas (SANTOS, 2005a).
Nesse processo, o documento aponta dois programas que a SEB/MEC vem
desenvolvendo, voltados para a participação popular na gestão e o controle
social das políticas educacionais desenvolvidas no âmbito dos municípios e
das escolas: o Programa de Capacitação de Conselheiros Municipais da
Educação – Pró-Conselho e o Programa de Fortalecimento dos Conselhos
Escolares.
177
No entanto, não se faz menção à eleição direta para os diretores de escola, em
que a participação da comunidade poderia ser intensificada, numa relação
direta entre eleitores e eleito, na qual a competição entre diversas propostas de
gestão poderia contribuir para maior grau de reflexão da comunidade escolar,
contribuindo assim para seu “amadurecimento” democrático, ao invés de essa
decisão ser tomada por meio de indicações de governadores estaduais,
secretários estaduais e outros, distanciando a comunidade dos meios de
decisão e participação.
Continuando na exploração do documento, encontramos a formação inicial e
continuada dos profissionais da educação como o último eixo norteador das
políticas do MEC para a melhoria da qualidade da educação. Segundo o
posicionamento assumido no documento, trata-se de um desafio que não pode
ser enfrentado sem a qualificação dos professores e demais trabalhadores em
educação, o que implica uma política que envolva parcerias com as instituições
que atuam na formação docente. Além de uma educação de qualidade dos
profissionais da educação, fruto da formação inicial e continuada de qualidade,
faz-se necessário que haja planos de cargos e salários que promovam maior
profissionalização.
Para promover a formação inicial de professores em exercício, sem habilitação
exigida, estão sendo desenvolvidos os programas: PROINFANTIL,
PROFORMAÇÃO e PRÓ-LICENCIATURA. Destacamos a característica de
curso a distância comum aos três programas. Eles são assim definidos:
O PROINFANTIL é um programa de formação a distância de professores, oferecido em nível médio, modalidade normal, com habilitação em Educação Infantil, e duração de dois anos. Destina-se aos professores que atuam em creches e pré-escolas e que não possuem a formação exigida pela legislação vigente. Seu objetivo é aprimorar a prática pedagógica e elevar o nível do conhecimento dos que atuam nesse segmento, contribuindo para a qualidade social da educação oferecida nas instituições de educação infantil. O PROFORMAÇÃO é um programa de formação de professores a distância, oferecido em nível médio, com habilitação ao magistério. É realizado pelo MEC em parceria com estados e municípios. Destina-se a professores que ainda não possuem habilitação e que
178
atuam nos anos iniciais do ensino fundamental, classes de alfabetização ou na educação de jovens e adultos das redes públicas de ensino do país. O MEC está estendendo sua abrangência para todas as regiões, uma vez que até 2003 eram atendidos apenas professores das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. O PRÓ-LICENCIATURA é um programa de formação de professores a distância, oferecido a profissionais que exerçam a função docente nos anos finais do ensino fundamental e no ensino médio e que não possuam habilitação específica na área de atuação (licenciatura) (BRASIL, 2006, p. 20-21, grifos nossos).
Segundo o documento, essa Rede conta com a participação dos Centros de
Pesquisa e Desenvolvimento da Educação, com os sistemas de ensino público
e a participação e coordenação da SEB/MEC. Esses Centros, atualmente
situados em dezenove universidades no País, articulados entre si e com outras
IES, produzirão materiais instrucionais e orientação para cursos a distância,
semipresenciais, atuando em rede para atender as necessidades e demandas
dos sistemas de ensino. O MEC coordena o desenvolvimento desse programa,
implementado por adesão, em regime de colaboração, pelos estados,
municípios e Distrito Federal, oferecendo suporte técnico e financeiro.
Como objetivos apresenta:
4.1. Objetivos São objetivos da Rede Nacional de Formação Continuada: • Institucionalizar o atendimento da demanda de formação continuada. • Desenvolver uma concepção de sistema de formação em que a autonomia se construa pela colaboração, e a flexibilidade encontre seus contornos na articulação e na interação. • Contribuir com a qualificação da ação docente no sentido de garantir uma aprendizagem efetiva e uma escola de qualidade para todos. • Contribuir com o desenvolvimento da autonomia intelectual e profissional dos docentes. • Desencadear uma dinâmica de interação entre os saberes pedagógicos produzidos pelos Centros, no desenvolvimento da formação docente, e pelos professores dos sistemas de ensino, em sua prática docente. • Subsidiar a reflexão permanente na e sobre a prática docente, com o exercício da crítica do sentido e da gênese da sociedade, da cultura, da educação e do conhecimento, e o aprofundamento da
179
articulação entre os componentes curriculares e a realidade sócio-histórica. • Institucionalizar e fortalecer o trabalho coletivo como meio de reflexão teórica e construção da prática pedagógica (BRASIL, 2006, p. 22, grifos nossos).
Para isso, propõe organizar as ações a partir de alguns princípios e diretrizes
adotados pelo MEC para implementar a Rede Nacional de Formação
Continuada:
a) A formação continuada é exigência da atividade profissional no mundo atual.
A formação inicial exigida para a habilitação ao exercício da profissão, estruturada por meio de uma sólida formação teórico-prática, se complementa com saberes construídos na reflexão do cotidiano. O conhecimento adquirido na formação acadêmica se reelabora e especifica, entre outros, na atividade profissional para atender a mobilidade, a complexidade e a diversidade das situações que solicitam intervenções diversas. A formação de professores há de observar a adequação às diversidades que caracterizam o país. A comunidade indígena é atendida de forma mais adequada por professores índios que deverão ter acesso a cursos de formação inicial e continuada, especialmente planejados para o trato com as comunidades indígenas. As comunidades Quilombolas possuem dimensões significativas que devem ser resgatadas na formação de professores. Além disso, é preciso pensar no atendimento das necessidades especiais dos estudantes, criando uma cultura de respeito em contraposição ao estigma do preconceito. Portanto, é preciso pensar a formação docente (inicial e continuada) como momentos de um processo de construção de uma prática qualificada e de afirmação da identidade e profissionalização do professor. Exigência do mundo atual, a formação continuada não pode ser reduzida a paliativo compensatório de uma formação inicial aligeirada (BRASIL, 2006, p. 23, grifos nossos).
Esse é um princípio que relaciona formação docente a processos de formação,
afirmação de identidade e profissionalização do professor, que podemos
entender como processos de formação de subjetividades. Nesse sentido, esse
princípio orientador para a implementação da Rede não desconsidera as
dimensões pessoais e profissionais e aspectos concernentes à subjetividade,
que permitem aos professores a apropriação, a construção de saberes ao
longo de um percurso de formação, num processo contínuo que envolve a
180
reelaboração teórico-crítica da prática cotidiana. Se a essa noção
acrescentarmos a noção dialógica e interativa entre as redes de subjetividades
e de diferentes saberes, podemos aproximar esse princípio do princípio da
comunidade interpretativa (SANTOS, 2005a), potencialmente produtora de
conhecimento-emancipação.
b) A formação continuada deve ter como referência a prática docente e o
conhecimento teórico.
A articulação teoria e prática, necessária na formação inicial, é fundamental na formação continuada, pois favorece a retroalimentação do conhecimento consagrado com observações do cotidiano escolar, levando à construção de novos saberes. Assim, a prática passa de mero campo de aplicação a campo de produção do conhecimento, à medida que a atividade profissional envolve aprendizagens que vão além da simples aplicação do que foi estudado e os saberes construídos no fazer passam a ser objeto de valorização sistemática. A formação continuada deve voltar-se para a atividade reflexiva e investigativa, incorporando aspectos da diversidade e o compromisso social com a educação e a formação socialmente referenciada dos estudantes (BRASIL, 2006, p. 22).
Esse princípio orientador para a implementação da Rede aproxima-SE da
noção de um novo senso comum (SANTOS, 2002, 2005), que revaloriza os
conhecimentos produzidos no cotidiano, muitas vezes considerados pelo saber
da ciência, A exemplo do senso comum, como superficiais, ilusórios e até
falsos. Nesse sentido, esse princípio orientador possibilita reabilitar o saber
produzido pelos professores no cotidiano por meio de um diálogo com o
conhecimento consagrado como científico, enriquecendo assim a relação que
têm com o mundo. Mas o que seria torná-los objetos de valorização
sistemática? Seria reconhecer os processos de aprendizagens realizados no
cotidiano como “cursos” para sistematizá-los? E, se assim for, essa
sistematização não implicaria a destruição das redes de subjetividades que
produziram tal conhecimento? Ou a gestão democrática daria conta de
respeitar os processos, as trajetórias, a diversidade?
181
c) A formação continuada vai além da oferta de cursos de atualização ou
treinamento.
Vê-se que a concepção de formação continuada tem uma dimensão relacionada à complementação da formação inicial e à reelaboração teórico-crítica da prática cotidiana, ao longo de toda a carreira profissional. [...] uma vez que o saber é construído ao longo do percurso. A noção de experiência e de construção do conhecimento mobiliza uma pedagogia interativa e dialógica, considerando os diferentes saberes e a experiência docente. Assim, a formação continuada não pode ser reduzida à atualização, menos ainda a um treinamento ou capacitação para a introdução de inovações ou compensação de deficiências da formação inicial. Devido a experiências anteriores, é comum entre os professores considerar programas institucionais como pacotes a serem executados, gerando uma atitude refratária a eles e comprometendo propostas de formação continuada. Por isso, torna-se urgente desenvolver uma cultura de formação alicerçada na reflexão crítico-teórica, considerando os determinantes sociais mais amplos e as suas implicações no cotidiano do professor e no seu processo profissional. Se a formação continuada supõe cursos, palestras, seminários, atualização de conhecimentos e técnicas, ela não se restringe a isso, mas exige um trabalho de reflexão teórica e crítica sobre as práticas e de construção permanente de uma identidade pessoal e profissional em íntima interação, como também das dimensões individual e social dos atores envolvidos no processo educativo. Deve-se considerar o professor como sujeito, valorizando suas incursões teóricas, suas experiências profissionais e seus saberes da prática, permitindo que, no processo, ele se torne um investigador capaz de rever sua prática, atribuir-lhe novos significados e compreender e enfrentar as dificuldades com as quais se depara (BRASIL, 2006, p. 24-25, grifos nossos).
Na análise desse princípio tão compatível com a nossa investigação, ficamos
só nos questionamentos: A formação continuada de professores
necessariamente supõe cursos, palestras, seminários, atualização de
conhecimento e técnicas? Ou ela pode romper com essa idéia? Se a formação
continuada não se restringe a isso, como o próprio documento defende, onde
estão as propostas alternativas? Como valorizar os sujeitos da formação sem
criar um “discurso competente”, próprio dos “pacotes”, com mais uma proposta
de curso a distância?
182
d) A formação para ser continuada deve integrar-se no dia-a-dia da escola.
A dinamização da formação pedagógica, bem como a sua integração no dia-a-dia da escola requer reuniões dos professores em conjunto com o(a) diretor(a) e pessoas do apoio pedagógico da escola para realizar estudos, partilhar dúvidas, questões e saberes num processo contínuo e coletivo de reflexão sobre os problemas e as dificuldades encontradas e o encaminhamento de soluções. Para que isso ocorra são necessárias algumas condições concretas de trabalho na unidade escolar, além de uma nova interação das escolas com os órgãos dos sistemas de educação e destes com as instituições formadoras dos docentes. O envolvimento da equipe gestora tem sido apontado como um dos fatores decisivos para o bom desenvolvimento de programas de formação continuada com amplo envolvimento dos profissionais da educação. Nessa direção, o diretor e os demais componentes da equipe gestora enquanto docentes vivenciam e estimulam a participação de seus pares nos processos de formação. O fortalecimento dos conselhos escolares coloca-se como um aporte fundamental nas políticas de gestão, organização e democratização das relações no dia-a-dia da escola. Ainda, as Secretarias de Educação devem prever na carga horária do professor tempo para essas reuniões e/ou freqüência a cursos e palestras, além de respaldar as escolas em suas necessidades e apoiar e acompanhar suas atividades pedagógicas. Já as Instituições formadoras devem oferecer recursos mobilizáveis para as ações de formação continuada e de melhoria da escola à medida que conheçam as suas necessidades. Isso não significa limitar suas ações a meras demandas pontuais das escolas ou dos sistemas, mas supõe a noção de redes articuladas de parceria em que a escuta mútua e mais prolongada que a realização de um curso permita o trabalho coordenado e voltado para a efetivação do direito de todos a uma educação de qualidade. Pretende-se que, com a Rede Nacional de Formação Continuada, a necessidade de articulação entre as Universidades e os Sistemas se concretize tanto no sentido de socializar o avanço do conhecimento produzidos nas IES como no de revisitar e ampliar suas teorias, considerando, nesse processo, a profícua interlocução com os professores da rede pública de educação básica. Nesse movimento de experiências e de saberes, todos ganham e todos passam a fazer parte de uma rede maior de intercâmbio. Nesse contexto as modalidades de cursos a distância, sobretudo os semipresenciais, resguardada a garantia de qualidade social, surgem como mais uma alternativa de ampliação das ações formadoras (BRASIL, 2006, p. 25-26, grifos nossos).
183
Dessa forma, mais uma vez argumentamos que, para realizar estudos, partilhar
dúvidas, questões e saberes num processo contínuo e coletivo de reflexão
sobre os problemas e as dificuldades encontradas e o encaminhamento de
soluções, não há necessidade de participarmos de cursos, ou seja, isso já é
um curso. Concordamos, no entanto, que para que isso ocorra são necessárias
algumas condições concretas de trabalho na unidade escolar, além de uma
nova interação das escolas com os órgãos dos sistemas de educação e destes
com as “instituições formadoras” dos docentes. Argumentamos a favor dessa
nova interação entre os próprios docentes no contexto escolar, ao participarem
de uma formação continuada em serviço. Assim, é preciso que as secretarias
de educação prevejam, na carga horária do professor, tempo para essas
reuniões, além de respaldar as escolas em suas necessidades e apoiar e
acompanhar suas atividades pedagógicas. Nesse contexto, concordamos que
as modalidades de cursos a distância, sobretudo os semipresenciais,
resguardada a garantia de qualidade social, surgem como mais uma alternativa
de ampliação das ações formadoras, mas não a única.
Nesse aspecto, o desenvolvimento dessa Rede na prática causa grande
expectativa e merece um estudo mais profundo quanto aos seus impactos na
realidade educacional, com o intuito de obtermos mais informações sobre o
que foi proposto e realizado, dada a dimensão do desafio que é, num país de
proporções continentais e com tanta diversidade e tamanhas desigualdades
sociais, implantar uma Rede Nacional de Formação de Professores.
e) A formação continuada é componente essencial da profissionalização
docente.
Não se pode perder de vista a articulação entre formação e profissionalização, entendendo que uma política de formação implica o encaminhamento de ações efetivas no sentido de melhorar as condições de trabalho, bem como a estruturação do trabalho pedagógico da escola. Desse modo, os planos de carreira devem incentivar a progressão por meio da qualificação inicial e continuada do trabalho docente, visando à valorização dos professores (BRASIL, 2006, p. 26).
184
É necessário destacar não só a importância do aspecto de carreira, mas
também o do crescimento pessoal que se adquire no desenrolar das
aprendizagens.
Quanto ao funcionamento da Rede, pode-se dizer, resumidamente, que parte
da parceria feita por meio de convênio celebrado entre o MEC e os Centros de
Formação nas universidades, pelo qual cabe ao MEC coordenar e dar apoio
técnico-financeiro e aos Centros, produzir, entre outros, pesquisas, materiais
didático-pedagógicos impressos e multimídia, bem como softwares para a
gestão de escolas e sistemas. Também cabe às universidades, por meio de
seus Centros, fazer articulações internas e externas, como parcerias com
outras IES, organizar acordos ou outros instrumentos legais com os sistemas
estaduais e municipais de educação, bem como fazer com que seus produtos
tenham flexibilidade e possam, além de atender à demanda nacional, apoiar
pedagogicamente iniciativas voltadas para a educação indígena, a educação
especial e a educação em regiões de fronteira.
Assim, está prescrito:
A execução dos programas dar-se-á por meio da articulação dos Centros com os sistemas de educação estaduais, municipais e do Distrito Federal. Cada Sistema deverá analisar as necessidades de formação dos seus professores, elaborar um programa de formação continuada que atenda a essas necessidades e firmar convênio com os Centros de Pesquisa e Desenvolvimento da Educação para a sua realização. O Programa de Formação Continuada de cada sistema de educação definirá seus objetivos, as prioridades de atendimento, o cronograma de execução, a forma e as condições de participação dos professores e as possíveis vinculações das ações de formação com os programas de valorização docente. Para que a formação continuada não se reduza a um evento, mas seja realmente um processo permanente, os sistemas de educação devem envolver os professores, assegurando-lhe: a) o tempo para formação, preferencialmente na carga horária de trabalho, sem prejuízo das 800 horas com os alunos; b) o local de realização; e, c) pessoal que se responsabilize pela articulação institucional (entre Secretaria de Educação/MEC/Centros/Escolas) e pela coordenação das atividades e a interlocução permanente com os Centros(BRASIL, 2006, p. 29-30, grifos nossos).
185
Aqui destacamos a responsabilidade do sistema de educação no diagnóstico e
no planejamento e execução de um programa de formação continuada para
seus professores, levando em consideração as condições que são previstas
como necessárias para tal empreitada, como, por exemplo, o tempo para
formação dentro da carga horária de trabalho, colocadas pelo documento como
fatores condicionantes para o sucesso das ações no campo da formação de
professores em exercício:
• Existência de ambiente propício e de momentos de reflexão coletiva entre pares e construção do conhecimento a partir da articulação entre teoria e prática. • Garantia de acompanhamento, suporte e retorno sobre resultados das atividades de formação. • Vinculação do plano de formação com o projeto político pedagógico da escola. • Vinculação do programa de formação com os planos de carreira. • Condições de infra-estrutura. • Constituição e implicação de quadros locais para as atividades de formação. • Previsão de carga horária para formação. • Envolvimento dos dirigentes institucionais locais: secretários de educação e diretores de escola. • Regularidade das atividades de formação. • Medidas estimuladoras da formação que incidam sobre carreira e salário (BRASIL, 2006, p. 30-31).
O documento ainda ressalta que a gratuidade dos cursos de formação
continuada “[...] deve ser assegurada a professores, diretores e equipe gestora
por meio de recursos próprios dos sistemas e também, se necessário, contar
com apoio financeiro das transferências operadas pelo MEC” (BRASIL, 2006,
p. 30), e, ainda, que “[...] é importante não perder de vista o fortalecimento
institucional dos sistemas de ensino por meio da criação e/ou consolidação de
espaços municipais e estaduais de formação em articulação com a REDE”
(BRASIL, 2006, p. 30).
Assim são descritas as ações dos Centros apoiadas pelo MEC (item 1.9, tabela
2, do edital 01/2003-SEIF/MEC):
186
1. Desenvolvimento de programas e cursos de formação continuada de professores e gestores para as redes de educação infantil e fundamental, a distância e semipresenciais, incluindo a elaboração de material didático para a formação docente (livros, vídeos, softwares). 2. Desenvolvimento de projetos de formação de tutores para os programas e cursos de formação continuada. 3. Desenvolvimento de tecnologia educacional para o ensino fundamental e a gestão de redes e unidades de educação pública. 4. Associação a instituições de ensino superior e outras organizações para a oferta de programas de formação continuada e a implantação de novas tecnologias de ensino e gestão em unidades e redes de ensino (BRASIL, 2006, p. 27).
O documento segue apresentando um mapa do Brasil apontando os dezenove
Centros de Formação instalados nos estados, assim distribuídos no “Catálogo
2006”, com seus respectivos cursos, conforme consta na página 28.
Duas observações são feitas nesse item: 1 - Embora organizados por áreas de
formação e sediados em regiões diversas, cada Centro deverá consolidar a
sua ação visando atender à demanda nacional em sua área de formação e à
demanda da diversidade das áreas em sua região, criando formas de relação
com os demais Centros e com outras IES. Nessa malha de articulações é que
se vai tecendo a capilaridade que o SEB/MEC espera da Rede Nacional de
Formação Continuada. 2 - Para acionar os Centros, é importante que o
sistema de ensino e as escolas definam um programa de formação
articulado e coerente, que contemple a diversidade do conhecimento
exigido para a função docente. Independentemente da localização
geográfica, os sistemas de ensino poderão solicitar programas de formação em
todas as áreas, recorrendo a qualquer um dos Centros.
Segundo o documento, visando assegurar tais condições, a Rede supõe
responsabilidades a serem assumidas em cada uma das instâncias envolvidas:
a) Sistemas de Ensino – A realização do programa depende da adesão do
sistema de ensino, dentro do regime de colaboração, com a decisão de garantir
a seu pessoal, entre outros, um ARTICULADOR INSTITUCIONAL e um
COORDENADOR DE ATIVIDADES, denominado tutor no edital.
187
ARTICULADOR INSTITUCIONAL é o profissional indicado pela Secretaria de Educação para tomar decisões com implicações administrativas, financeiras e logísticas. Cabe-lhe garantir condições materiais e institucionais necessárias para o desenvolvimento do programa. É importante que esse profissional tenha vínculos com a secretaria de educação e boas relações com as unidades escolares. TUTOR ou COORDENADOR DE ATIVIDADES é o profissional da área de formação, cabendo-lhe organizar e coordenar os grupos de estudo. É importante que seja uma pessoa com reconhecimento profissional, receba orientação programada pelos Centros e com eles mantenha contato permanente. Sua atuação é no sentido de dinamizar a discussão nos grupos de estudo, incentivar a participação e garantir a interlocução com os Centros sobre questões de fundamentos/conteúdo ou organização das atividades. Sua atuação é formativa e não pode ser confundida com o de um repassador de conteúdo ou multiplicador de cursos (BRASIL, 2006, p. 31, grifos nossos).
Muito importante aqui é destacar o caráter da participação ativa do professor
que se deseja implantar nesse processo de formação, que não se caracterize
na figura do “multiplicador” dentro de um programa que realmente esteja
comprometido com a valorização do professor.
b) Centros de Pesquisa e Desenvolvimento da Educação (Universidade) – o
Centro é vinculado a uma universidade, tem um coordenador que organiza os
trabalhos com uma equipe de professores e colaboradores e é gerido por um
Comitê Gestor. Sua função é desenvolver pesquisas, articular-se com outras
universidades e com as secretarias de educação, produzir materiais didáticos
para cursos de formação semipresenciais, preparar/orientar o coordenador de
atividades de cada Secretaria.
c) SEB/MEC - no MEC, a Coordenação Geral de Política de Formação
COPFOR/DPE/SEB é constituída pelo coordenador e pela equipe técnica e
pedagógica, que deve acompanhar a execução do convênio, estabelecer
diretrizes, sistematizar dados e fazer o acompanhamento técnico-financeiro, o
pedagógico e o da efetividade do processo de implementação. Também fica
definido no documento que as questões omissas serão encaminhadas e
coordenadas pela SEB, por meio da COPFOR/DPE/SEB/MEC (BRASIL, 2006,
p. 32).
188
O acompanhamento do funcionamento da Rede é definido como um
instrumento indispensável de gestão de políticas, que permite uma visão dos
processos, resultados e impactos da implementação, a quem cabe reforçar as
“[...] capacidades institucionais de avaliar as condições de êxito da ação
planejada, examinar a curto e médio prazo seus avanços, bem como analisar a
necessidade de correção no curso do processo de sua implementação”
(BRASIL, 2006, p. 32-33). São três as dimensões consideradas interligadas
nesse acompanhamento:
• Acompanhamento físico-financeiro que consiste no monitoramento clássico de produtos e recursos (eficiência). Os Comitês gestores previstos no convênio atendem a tal especificação. • Acompanhamento pedagógico que visa assegurar qualidade e fidelidade dos materiais aos objetivos a que se propõem (eficácia). Especialistas da área e de Educação a distância estarão analisando os produtos entregues e realizando seminários por área de formação. • Acompanhamento do processo que consiste no monitoramento do efetivo cumprimento dos objetivos (efetividade), por meio de instrumentos encaminhados aos atores envolvidos (Universidades, sistemas de ensino, escolas) e visitas, por amostragem, analisando o impacto na ação pedagógica e conseqüentemente na qualidade de ensino (BRASIL, 2006, p. 33, grifos nossos).
Destacamos aqui o uso dos termos eficiência, eficácia e efetividade e a
importância de eles não serem usados pela lógica de mercado, em que os
fatores financeiros se sobrepõem aos demais e têm grande impacto sobre os
objetivos pretendidos em qualquer projeto educacional.
O documento ainda traz uma lista com sugestões de leitura complementar
assim como identifica seus colaboradores. De modo geral, nota-se a
preocupação dos colaboradores em refletirem criticamente sobre a participação
dos educadores brasileiros e do Poder Público na proposição de soluções para
os problemas educacionais, sobre a situação educacional no Brasil atual; e
sobre a necessidade de se criar uma rede nacional de formação continuada
para professores. Esse documento caracteriza-se, portanto, por essa
proposição: a formação de uma rede nacional de formação continuada de
189
professores como o resultado de um esforço coletivo com o objetivo de
melhorar a qualidade da educação, de forma integrada com as universidades,
sistemas de ensino e MEC.
Nesse sentido, essa reflexão não se esgota na definição de responsabilidades,
o que já seria um avanço, tendo em vista as dificuldades para se estabelecer a
competência de ação no campo de políticas públicas educacionais, mas
avança e propõe a modalidade de formação em serviço como uma das formas
de se alcançarem tais objetivos, num país continental e com alto índice de
desigualdades, como o Brasil.
No entanto, talvez pela grandiosidade do desafio que é elevar a qualidade da
educação no Brasil, tendo a melhoria da formação dos professores como uma
das estratégias para se alcançar o sucesso, e a necessidade da flexibilidade
que tal empreitada exige, diante de realidades tão diversas no contexto
nacional, e a vantagem que as novas tecnologias nos permitem alcançar como
um instrumento potencializador na formação de redes, a proposição dos cursos
a distância tenha sido colocada não como a única solução, mas com a única
proposição, embora o próprio documento considere que não seja a única
opção para a formação continuada de professores.
O documento não aborda iniciativas locais de formação em serviço dentro da
própria escola que não estejam dentro dos cursos oferecidos pelos Centros de
Formação e, assim, também não prevê uma série de providências que
facilitariam ou mesmo seriam essenciais para que essas iniciativas fossem bem
sucedidas, como condições de trabalho e funcionamento (tempo e espaço no
ambiente escolar e dentro do horário de trabalho), recursos, acompanhamento
e avaliação, assim como o reconhecimento oficial (diplomas, certificados), a
exemplo dos que são previstos nessa proposição para os cursos a distância.
Porém, a discussão que se estabeleceu sobre os princípios organizadores para
a formação das Redes revelou-se um campo fértil para outras discussões que
190
abarquem outras propostas para a formação continuada de professores em
serviço e para a criação e fortalecimento de redes que se podem formar
nessas experiências.
O documento propõe-se a adotar princípios que nos levem a compreender a
formação continuada de professores em serviço como uma formação
permanente e não apenas pontual, que se realiza na necessária reflexão
permanente do professor sobre sua prática no cotidiano escolar e na
articulação entre a prática e a teoria, entre o local e o universal, promovendo
diálogos com outros saberes e realidades. Além disso, deixa expressa a
necessidade de os sistemas de ensino providenciarem condições (com o
auxílio necessário da União) para que isso aconteça no cotidiano da escola,
em horários específicos, dentro da carga horária de trabalho do professor, sem
prejuízo para os alunos, e considerar essa atividade como válida para
contagem de pontos na carreira dos professores (BRASIL, 2006, p. 2).
Essa proposição é acrescida do princípio da gestão democrática como
princípio organizador e como prioritário de atuação, que compreende a
democratização da gestão como “[...] um processo político-pedagógico e
administrativo por meio do qual se orienta, organiza e viabiliza a prática social
da educação, devendo ser, portanto, compartilhado por todos os que compõem
a comunidade local e escolar [...]” (BRASIL, 2006, p. 19), que entende que há
uma vinculação orgânica entre a gestão e a melhoria da qualidade da
educação e que nos coloca diante de uma proposição de princípios que
reúnem a possibilidade de a formação de professores em serviço configurar-se
como um processo de gestão democrática da escola. Além disso, essa
proposição também contempla a idéia de comunidade interpretativa, de
formação de redes de subjetividades, que, na autonomia dos sujeitos em
formação, pode produzir conhecimento-emancipação.
Dessa forma, a implantação de uma Rede Nacional de Formação Continuada
de Professores deve levar em conta que as experiências de aprendizagem
191
docente no contexto escolar acontecem apesar dos cursos e da estrutura de
cursos “regulares” tal qual conhecemos. Isso pode significar conflito e a
destruição das redes de subjetividades, das comunidades interpretativas que já
se encontram formadas e se formando no contexto escolar. Esses processos,
que envolvem a reinvenção das comunidades, requerem levarmos em conta
não só as interações solidárias intracomunitárias, mas também as relações
intercomunitárias a fim de evitarmos a colonização que quase sempre as
domina. Nesse sentido, é preciso estar atentos aos processos de silenciamento
que restringem o acesso ao poder argumentativo que permite a “[...] constante
alteração de posições na polaridade orador-auditório, bem como da
permanente questionação das premissas da argumentação [...]” (SANTOS,
2005, p. 106), e que acaba por empobrecer as possibilidades de ação e de
emancipação docente.
192
5 A FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES EM SERVIÇO NA
PESQUISA ACADÊMICA BRASILEIRA
A formação docente, tão importante para a consecução dos objetivos
propostos em diversas políticas educacionais, apresenta-se como uma questão
complexa, necessitando ser compreendida em seus múltiplos contextos, entre
eles o da pesquisa acadêmica.
Neste capítulo, buscaremos apreender o conceito de formação continuada em
serviço dentro de um panorama da pesquisa brasileira, com a finalidade de
buscar evidências que nos permitam correlacionar o processo de formação de
professores em serviço com o processo de gestão democrática da escola.
Sendo assim, dentre tantos estudos, destacamos, por sua relevância e
abrangência, dois grandes trabalhos de pesquisa intitulados:
1 – “Estado da arte da formação de professores no Brasil (1990 – 1998)” –
organizado por Marli André (2002), que analisou a produção acadêmica do
período de 1990 a 1998; 2 – “Formação de Profissionais da Educação (1997-
2002)”, sob a coordenação e organização de Iria Brzezinski (2006) com a
colaboração de Elsa Garrido.
5.1 A FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES EM SERVIÇO E O
“ESTADO DA ARTE DA FORMAÇÃO DE PROFESSORES NO BRASIL (1990
– 1998)”
Esse trabalho de pesquisa intitulado “Estado da arte da formação de
professores no Brasil (1990 – 1998)” organizado por Marli André (2002) inclui a
análise do conteúdo de 115 artigos, publicados em dez periódicos nacionais,
sob a responsabilidade das professoras doutoras Janete Magalhães Carvalho
e Regina Helena Simões do Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Federal do Espírito Santo (UFES); de 284 dissertações e teses
193
produzidas nos programas de pós-graduação em educação, sob a
responsabilidade da professora Marli André, da Faculdade de Educação da
Universidade de São Paulo (FEUSP) e da professora Joana Paulin
Romanowski, da Universidade do Paraná (UFPR), e doutoranda na FEUSP; e
de 70 trabalhos apresentados no Grupo de Trabalho Formação de Professores
da ANPED, na década de 1990, sob a responsabilidade da professora Iria
Brzezinski, titular da Universidade Católica de Goiás (UCG), e da professora
Elza Garrido, titular da UCG, oferecendo-nos um panorama nacional sobre as
pesquisas na área da formação de professores. Para efeito de consulta, os
trabalhos acadêmicos aqui citados e analisados pelas autoras estão
referenciados no ANEXO A.
Esse trabalho de pesquisa foi divido em três partes. Na primeira parte, faz-se a
análise de 284 resumos das teses e dissertações do período de 1990 – 1996.
Nele, a distribuição da produção discente foi feita segundo os três temas mais
enfatizados nos trabalhos: formação inicial, formação continuada e identidade e
profissionalização docente. O primeiro grupo reúne os estudos que focalizam a
Licenciatura, a Escola Normal e o curso de Pedagogia. O segundo grupo
compreende os estudos que abordam as propostas, programas e cursos de
formação dos docentes em serviço. O terceiro grupo inclui os estudos sobre
condições de trabalho do professor, sindicalização e organização profissional,
identidade, questões de gênero e competências, saberes e práticas culturais.
Carvalho e Simões (2002) puderam constatar que os estudos sobre formação
continuada analisam propostas de governo ou de secretarias de educação
(43%), programas ou cursos de formação (21%), processos de formação em
serviço (21%) e questões da prática pedagógica (14%). Argumentam que
embora o número de estudos sobre formação continuada seja relativamente
pequeno, abrangendo 14,8% do total de trabalhos sobre formação docente, os
aspectos focalizados são bastante variados, incluindo diferentes níveis de
ensino (infantil, fundamental, adultos), contextos diversos (rural, noturno, a
distância e especial), meios e materiais diversificados (rádio, televisão, textos
194
pedagógicos, módulos, informática), revelando dimensões bastante ricas e
significativas dessa modalidade de formação.
No entanto, André e Romanowski (2002) chamam a atenção para temas pouco
abordados e aspectos silenciados
A formação política do professor, suas condições de trabalho, formas de associação profissional, questões salariais e de carreira são conteúdos muito pouco investigados. A formação de professores para atuar em movimentos sociais e com crianças em situações de risco é totalmente silenciada. Ainda que se encontre algumas pesquisas sobre a formação do professor para o ensino superior e para cursos profissionalizantes, para atuar junto aos portadores de dificuldades especiais e no ensino rural, é evidente que estes conteúdos mereceriam muito mais atenção nas pesquisas. A educação a distância na formação continuada também é outro conteúdo pouquíssimo pesquisado. A relação do professor com as práticas culturais é outro conteúdo quase esquecido (ANDRÉ; ROMANOWSKI, 2002, p. 31).
Advertem para o fato de que conhecer propostas, programas e cursos de
formação em serviço, avaliar seu impacto e identificar seus pontos positivos e
suas falhas são tarefas extremamente importantes para o fortalecimento da
área e para a orientação de ações e de políticas públicas.
Também identificam temas emergentes, como a identidade e a
profissionalização docente, abrindo perspectivas para questões de grande
interesse e atualidade, como a busca da identidade profissional do docente, a
relação do professor com as práticas culturais, questões de carreira,
organização profissional e sindical, e questões de gênero.
No campo metodológico, o estudo apontou que, de modo geral, utiliza-se o
estudo de caso, seja de um curso, uma disciplina, uma turma, seja de um
professor. Dessa forma, está voltado para um aspecto muito particular da
formação docente. Também aparecem com freqüência a análise de
depoimentos, em que o pesquisador faz levantamento de dados com
questionário ou entrevista, visando conhecer opiniões, pontos de vista ou
195
representações dos informantes, e os relatos de experiência. Em menor
número, aparecem os estudos teóricos, as pesquisas históricas, a pesquisa-
ação e as análises da prática pedagógica. Muito raros são os estudos do tipo
survey, a pesquisa experimental, os estudos de validação de material e os
estudos longitudinais.
Numa visão geral dos conteúdos abordados pelas pesquisas dos discentes, os
estudos se concentram em análises pontuais de um curso, de uma disciplina,
de um programa ou de uma proposta específica de formação. Outros se voltam
para a avaliação do currículo desses cursos ou para seu funcionamento, e
coletam opiniões e pontos de vista de diferentes agentes, por meio de
questionários e entrevistas. Entretanto, defendem as autoras, como são
estudos voltados ao conhecimento de realidades locais, baseados em opiniões
de um grupo restrito de sujeitos, deixam abertas muitas indagações sobre
aspectos abrangentes da formação docente, como, por exemplo, que
processos e práticas de formação seriam mais efetivos no contexto atual da
educação brasileira e que políticas deveriam ser formuladas para aperfeiçoar
cada vez mais tais práticas e processos.
A segunda parte desse estudo realiza a análise dos artigos publicados em
periódicos. Na categoria formação continuada, estão incluídos os textos que
abordam a atuação do professor nas escolas de ensino fundamental e médio;
os conceitos e significados atribuídos à formação continuada; o uso da
tecnologia de comunicação; a educação continuada e o desenvolvimento
social; o levantamento da produção científica sobre o tema; o ensino superior;
o papel da pesquisa na formação; e as políticas públicas.
Nessa categoria, os conteúdos dos textos giram em torno de três aspectos: a
concepção de formação continuada, propostas dirigidas ao processo de
formação continuada e o papel dos professores e da pesquisa nesse processo.
Segundo as autoras, não se podem notar distinções marcantes no que se
refere aos pressupostos assumidos com relação ao processo de formação
continuada e às ações propostas, mas percebe-se a ênfase na necessidade de
196
se valorizar e implementar a cooperação e a integração entre o mundo
acadêmico e as escolas, no desenvolvimento de parcerias.
Os artigos conceituam predominantemente a formação continuada como um
processo crítico-reflexivo sobre o saber docente em suas múltiplas
determinações e apresentam propostas ricas e abrangentes, indo além da
prática reflexiva, envolvendo o enfoque político-emancipatório ou crítico-
dialético. Neles, o professor aparece como centro do processo de formação
continuada, atuante como sujeito individual e coletivo do saber docente e
participante da pesquisa sobre a própria prática.
De modo geral, os autores dos diferentes artigos tendem a recusar o conceito de formação continuada significando treinamento, cursos, seminários, palestras, etc., assumindo a concepção de formação continuada como processo. Alguns a definem como prática reflexiva no âmbito da escola, e outros, como uma prática reflexiva que abrange a vida cotidiana da escola e os saberes derivados da experiência docente; estes a concebem como uma prática reflexiva articulada com as dimensões sociopolíticas mais amplas, abrangendo da organização profissional à definição, execução e avaliação de políticas educacionais (CARVALHO; SIMÕES, 2002, p.172, grifo nosso).
Há, também, o grupo que conceitua a formação continuada como aquisição de
informações e/ou competências, advogando o uso da telemática (teleducação,
educação a distância, etc.) e vislumbrando a possibilidade de utilização desses
recursos para a capacitação através do ensino por módulos ou de outras
modalidades.
No entanto, para as autoras existem os que, como Kramer (1989), argumentam
contra os “pacotes de treinamento”, baseados na concepção do “efeito
multiplicador” ou “efeito de repasse” através de instâncias intermediárias
(especialistas que repassam aos professores), e que têm acarretado baixa ou
nula compreensão das propostas, aversão à inovação, entre outros problemas,
assim como contra os chamados “encontros de vivência”, que, centrando-se
197
em aspectos socioafetivos, se revelam superficiais e aligeirados no tempo
espaço para produzir novas atitudes docentes.
Para Carvalho e Simões (2002), entre os que defendem a necessidade de se
problematizar a expressão “capacitação de recursos humanos”, encontram-se
Fusari e Rios (1995), já que não consideram o ser humano como um recurso,
mas como um possuidor e criador de recursos. Nessa linha de pensamento,
Marin (1995) enfatiza a exigência de uma análise permanente de termos como
reciclagem, treinamento, aperfeiçoamento, capacitação, educação permanente
e formação continuada, argumentando que
1) o termo reciclagem revela implicações derivadas do sentido descartável atribuído à atualização dos conhecimentos, com opção para cursos rápidos, descontextualizados e superficiais; 2) o treinamento volta-se para a modelagem de comportamentos, embora a metáfora dos moldes (algo prefixado) seja incompatível com a atividade educacional; 3) o aperfeiçoamento pode significar tornar capaz, habilitar ou convencer, persuadir, combinando o primeiro significado com a idéia de educação continuada, rompendo, inclusive, com a idéia de vocação nata para o magistério, mas o segundo, não; 4) a educação permanente e a formação continuada são tomadas como componentes de um conjunto de ações caracterizadas pela valorização do conhecimento docente e pela proposição de dinâmicas institucionais. Ressalta, ainda, os avanços derivados da concepção de educação continuada, principalmente quando aponta o local de trabalho como a base do processo, levando em conta as vivências e os saberes profissionais presentes no cotidiano escolar, o que possibilita a compreensão da educação como prática social mobilizadora (MARIN apud CARVALHO; SIMÕES, 2002, p. 172 - 173).
Assim, as autoras consideram, como Pereira (1993), que os costumeiros
cursos esporádicos e/ou sessões de estudo ocasionais refletem uma visão
limitada, centrada mais no produto que no processo de formação contínua, que
compreenderia duas fases: 1) educação durante o curso de formação; e 2)
educação em serviço. Para esse autor, a educação em serviço é aquela que
concerne às atividades planejadas e estruturadas em direção ao crescimento
pessoal e coletivo do profissional da educação visto como agente ativo de sua
formação e da melhoria educacional.
198
Segundo as autoras, os estudos realizados por Reale e outros (1995) apontam
o caráter voluntário dos cursos, com diferentes durações e estruturação em
torno de temáticas específicas e destinados a professores de diversas
instituições, como características dos programas de formação continuada
realizados na América Latina. Citam duas questões que emergem desse tipo
de ação: o professor definindo o currículo da sua própria capacitação,
individualmente, muitas vezes interessado em recompensas funcionais, e o
professor permanecendo individualmente responsável pela transposição
didática do que foi supostamente aprendido.
Existem, no entanto, argumentações que defendem a conceituação de
formação continuada como prática reflexiva e de formação continuada para
além da prática reflexiva.
Caravalho e Simões (2002) defendem que nos estudos de André (1994),
baseandos em Nóvoa (1992), se identificam três eixos centrais ao processo de
formação continuada: 1) a pessoa e a experiência do professor; 2) a profissão
e seus saberes; 3) a escola e seus projetos, onde se incluem a dimensão
social mais ampla e o conceito de formação continuada como prática reflexiva,
apoiado em referencial da fenomenologia, do pragmatismo e do construtivismo
piagetiano.
Carvalho e Simões (2002) destacam que a importância das dimensões
individual e coletiva na construção da prática pedagógica é levantada por
Chakur (1995b), cujo estudo aponta o exercício profissional coletivo, fruto da
intersubjetividade compartilhada, como o principal fator de desenvolvimento
profissional, entendido como autoconstrução e construção permanente da
realidade, tendo a prática refletida no ponto de chegada.
Identificam em Darsie e Carvalho (1996), que a formação do professor deve
passar pela reflexão sobre seu saber e seu saber fazer. Assim, esses estudos,
que se apóiam em Schön (1992ª, 1992b), Perrenoud (1993), Zeichner (1992,
199
1993), Nóvoa (1992), Garcia (1988, 1992, 1995), Perez Gómez (1992), entre
outros, destacam a importância da reflexão sobre e na prática em programas
de formação de professores. As autoras concluem:
De modo geral, na literatura visitada, esses são os autores que fornecem a base para o conceito de formação continuada como prática reflexiva, destacando-se a obra de Schön, que distingue três conceitos que integram o pensamento prático reflexivo: 1) o conhecimento-na ação (tácito); 2) a reflexão-na-ação (pensar sobre a ação); 3) a reflexão sobre a ação e sobre a reflexão-na-ação, que pressupõe um conhecimento de terceira ordem, pois analisa os anteriores em situações problemáticas do contexto (CARVALHO; SIMÕES, 2002, p. 174, grifos nossos).
Assim, segundo as autoras, Reale e outros (1995) definem formação
continuada como um processo nucleado na própria escola, dentro da espiral
ação-reflexão-ação, que contempla: 1) a articulação com o projeto da escola;
2) a valorização da experiência profissional dos participantes; 3) as
potencialidades da comunidade escolar e as especificidades da instituição e do
trabalho desenvolvido; 4) as formas de trabalho coletivo e a ação autônoma
das escolas.
Mais à frente, as autoras destacam que
[...] o conceito de formação continuada para além da prática reflexiva inclui os pressupostos acima destacados, mas procura visualizá-los em integração com o contexto sócio-políticoeconômico-cultural mais amplo. Essa perspectiva, apoiada em referencial de análise emancipatório político e/ou em autores como Castoriadis (1982), Giroux (1986), Giroux e Maclaren (1994), Apple (1991), entre outros, predomina nos artigos analisados (CARVALHO; SIMÕES, 2002, p.173, grifos nossos).
Para Carvalho e Simões (2002), autores como Alarcão (1996) apontam a
tendência pragmatista da proposta de Schön, que não contempla a análise dos
pressupostos ético-políticos que envolvem o próprio conceito de educação.
Caminhando nesse sentido, outros autores, como Alves (1995), afirmam que o
conceito de capacitação, além de contemplar a socialização do conhecimento
200
produzido pela humanidade, as diferentes áreas de atuação, a relação ação-
reflexão-ação, o envolvimento do professor em planos sistemáticos de estudo
individual ou coletivo, as necessidades concretas da escola e dos seus
profissionais, a valorização da experiência do profissional, também deve
integrar a continuidade e a amplitude das ações empreendidas, a explicitação
das diferentes políticas para a educação pública, o compromisso com a
mudança, o trabalho coletivo, a associação com a pesquisa científica
desenvolvida em diferentes campos do saber.
As autoras seguem dizendo que pesquisadores como Barbieri e outros (1995)
argumentam que o fazer pedagógico, por estar no domínio da práxis, é por
natureza histórico e inacabado, dependendo, portanto, de investigação crítica
permanente. Para além do aperfeiçoamento da prática docente, Demo (1992)
indica a necessidade de recriação da própria profissão docente e da educação
como processo emancipatório, visto que o processo educativo se incorpora ao
mundo produtivo como parte do dinamismo econômico, na confluência
estabelecida entre a capacidade de participar (cidadania) e de produzir
(trabalho).
Chamando a atenção para a articulação entre o individual e o coletivo, as
autoras destacam Fusari e Rios (1995), que apontam como fundamental
assumir o educador brasileiro como cidadão concreto, considerando o conjunto
de fatores estruturais e conjunturais que agem sobre sua prática, delimitando
seu espaço real de possibilidades; articular o intra-escolar à realidade social
mais ampla; considerar a participação efetiva dos professores e seus
problemas como ponto de partida e de chegada do processo, garantindo-se
uma reflexão alicerçada em sólida fundamentação teórica.
Diante da necessidade de se superarem os aspectos burocráticos da ação
docente, as autoras identificam em Mediano (1992) um estudo que propõe um
trabalho conjunto que discuta a prática pedagógica e busque soluções para os
problemas a partir da adoção de três princípios básicos: converter as próprias
201
experiências em situações de aprendizagem, fazer uma reflexão crítica da
própria prática, e orientar a análise e o estudo de problemas diagnosticados na
escola, considerada em sua inserção no contexto social mais amplo.
Nos estudos feitos, Carvalho e Simões (2002) enfatizam a opinião de André
(1994) que considera que a formação continuada deve incentivar a apropriação
dos saberes pelos professores, rumo à autonomia profissional contextualizada
e interativa, levando em conta o contexto institucional e a organização
profissional.
Com base nessas perspectivas, as autoras concluem que o conceito de
formação continuada predominante nos artigos de periódicos analisados é o de
um processo crítico-reflexivo sobre o fazer docente em suas múltiplas
determinações.
Fazendo uma síntese das propostas para formação continuada de cada grupo,
as autoras destacam que os autores inseridos no primeiro grupo, o da
conceituação da formação continuada comoo aquisição de
informações/competências, advogam o uso de tecnologia educacional para
cursos, treinamento, seminários, palestras, e outras modalidades. Nessa
perspectiva, o uso de tecnologia permitiria o desenvolvimento cognitivo e
garantiria acesso educacional a um maior número de pessoas. O processo de
capacitação e atualização de docentes por meio da teleducação é destacado
pelo aspecto dinamizador e multiplicador, que ampliaria as oportunidades de
formação, atualização e oferta de possibilidades ao professor, para,
concomitantemente ao seu trabalho, discutir suas dúvidas com outros docentes
do País, em rede nacional, compartilhar problemas e buscar soluções
alternativas. No entanto, a capacitação docente através da educação a
distância se dá pela utilização de metodologia de estudo individualizado, em
módulos de ensino, juntamente com o auxílio do tutor e de encontros
pedagógicos.
202
Afirmam ainda as autoras:
Os autores identificados com o segundo grupo (conceito de Formação Continuada como prática reflexiva) e com o terceiro grupo (para além da prática reflexiva) apresentam pontos básicos de convergência, distinguindo-se pela perspectiva e/ou visão da necessidade de um “olhar ampliado” para além do docente, da sala de aula e da escola. Assim, temos que ambos partem da necessidade de uma formação continuada mais crítica e reflexiva, baseando-se em conceitos-chave, como: a) saberes docentes; b) conhecimento-na-ação; c) reflexão-na-ação; d) reflexão sobre a reflexão-na-ação; e) reflexão dialogante entre o observado, o vivido e o sabido; f) construção ativa do conhecimento segundo uma metodologia do aprender a fazer fazendo e/ou da pesquisa da própria prática (CARVALHO; SIMÕES, 2002, p. 175).
Porém destacam que a grande maioria das propostas nos artigos analisados
se situa no grupo que define a formação continuada para além da prática
reflexiva, trazendo propostas muito ricas e abrangentes, permeadas pelo
enfoque emancipatório-político ou crítico-dialético.
Na conceituação da formação continuada como prática reflexiva e da formação
continuada para além da prática reflexiva, são predominantes os discursos que
desqualificam estratégias de formação continuada propostas de forma vertical,
como cursos, seminários, vivências, e outras.
De acordo com as autoras, os aspectos mais valorizados para a formação
continuada ressaltam a formação em serviço a partir das práticas pedagógicas
dos professores e da problematização da realidade, numa prática coletiva
(MEDIANO, 1992); a colaboração e parceria entre professores e pesquisadores
(MATTOS,1995); a pesquisa etnográfica crítica para o estudo e a compreensão
da prática docente (ANDRÉ, 1994); o resgate da dimensão coletiva,
institucional, do trabalho desenvolvido na escola numa proposta que alia
pesquisa e formação continuada (COLLARES e MOYSÉS, 1995); a
consideração da prática social, como ponto de partida e de chegada, e da
ressignificação dos saberes na formação de professores, a pesquisa da própria
prática como princípio formativo na docência, a formação de professores como
203
um continuum de formação inicial e continuada, a formação como
autoformação e processo coletivo de troca de experiências e práticas
(PIMENTA, 1996); a perspectiva dialética entre conhecimento e prática,
passando pela reflexão conjunta e pelo aprofundamento teórico a partir de
questões-base, em que é preciso, segundo Kramer (1989), em primeiro lugar,
haver decisão política, delineamento de prioridades e destinação de recursos
financeiros, em segundo, a formação de uma rede de formadores, ou seja, o
fortalecimento dos níveis intermediários, mas situados na escola e trabalhando
com os professores, em terceiro, a elaboração e concretização de políticas de
acesso à escrita, de modo que o professor seja produtor e consumidor do
conhecimento escrito.
Sendo assim, apontam a visão de Fusari e Rios (1995), os quais afirmam que
os processos de formação continuada dos profissionais do ensino devem ser
sempre planejados como ações coletivas, com decisões compartilhadas;
ressaltam a dimensão utópica de um projeto como Idea, no sentido de algo
ainda não realizado, e destacam que a elaboração de projetos de formação
continuada demandam a consideração crítica dos limites e possibilidades do
contexto de trabalho, a definição dos princípios norteadores, estratégias e
avaliação contínua. Mencionam também Pereira (1993), para quem a
educação em serviço precisa ter pelo menos três objetivos, a saber: a)
implementar atividades que promovam a melhoria da educação dirigida para as
necessidades específicas dos alunos; b) aperfeiçoar os objetivos de
desenvolvimento profissional de modo a levá-los a níveis mais altos de
instrução; c) alcançar os próprios objetivos de crescimento pessoal. Dentro
dessa perspectiva, a educação em serviço para o professor deve motivá-lo a
participar da pesquisa de sua própria prática pedagógica, como agente, visto
que o ensino é, também, um exercício de gestão.
Continuando, as autoras ainda destacam o posicionamento de Pereira (1995) e
Alves (1995), para quem a educação em serviço deve ser descentralizada e,
para isso, devem ser criados Núcleos de Estudos Pedagógicos, aos quais
204
competem a elaboração, a execução e a avaliação de programas de educação
em serviço, numa ação conjunta com os docentes, enfatizando sua
responsabilidade no seu próprio desenvolvimento pessoal e profissional e no
desenvolvimento da sociedade. Ressaltam o trabalho de Pereira (1994) sobre
a formação em serviço: a) os programas de educação em serviço nos quais os
professores compartilham experiências e prestam assistência mútua têm maior
possibilidade de alcançar seus objetivos do que aqueles nos quais o professor
trabalha isoladamente; b) os professores são mais beneficiados pelas
atividades de educação em serviço que estão ligadas ao esforço conjunto da
escola do que pelos programas esporádicos que não fazem parte do plano
geral de desenvolvimento do pessoal da escola; c) a educação em serviço
deve ser descentralizada, com ênfase nos problemas reais da escola, nas suas
metas, necessidades e planos, devendo ser conduzida, sempre que viável, nas
instalações da escola.
As autoras concluem que, de maneira geral, o discurso dos periódicos é
bastante ideologizado e politizado, abrangendo aspectos amplos e variados da
formação docente, definindo concepções, práticas e políticas de formação.
Neles ficou evidenciada a importância do professor como centro do processo
de formação continuada – atuando como sujeito individual e coletivo do saber
docente de experiência feito em sua relação com o saber científico, e, neste,
do saber pedagógico – assim como a importância da pesquisa nesse processo.
Outro destaque é a valorização da participação de professores na pesquisa da
sua própria prática, nos últimos anos, ganhando o professor voz sobre o que
deve ser pesquisado, exercendo o papel de ator social nas investigações.
Dizem as autoras
Entretanto, a ação reflexiva dos professores pesquisadores sobre a prática e a colaboração entre professores e pesquisadores, ainda que fundamentais para a transformação consciente e deliberada da realidade escolar, oferecem grandes desafios. Por um lado, deve-se ter clareza de que não se pode esperar que a pesquisa solucione problemas pedagógicos; na perspectiva dos pesquisadores, trata-se de reconhecer os limites explicativos da pesquisa da sala-de-aula e/ou da escola, tendo em vista a complexidade e abrangência do fenômeno educacional. Outro desafio diz respeito às negociações necessárias no dia-a-dia do trabalho investigativo, no desenrolar das
205
relações estabelecidas entre professores e pesquisadores e/ou entre o professor-reflexivo e o professor pesquisador, marcadas pelo diálogo, pela confiança e pelo risco (CARVALHO; SIMÕES, 2002, p. 180).
Alguns conceitos-chave predominantes são destacados no discurso expresso
nos periódicos analisados: a articulação dos saberes docentes; o processo de
conhecimento-na-ação, a reflexão-na-ação e a reflexão sobre a reflexão-na-
ação; a pesquisa da própria prática docente; a relação entre os níveis da
prática na sala de aula, na escola e no contexto sócio-histórico mais amplo.
Segundo as autoras, eles sugerem a complexidade de uma tarefa que, não
sendo simples e demandando competência, constitui desafio para o qual se
apresentam inúmeras propostas convergentes.
A terceira desse estudo faz a análise de 70 trabalhos apresentados no GT
Formação de Professores da ANPEd, no período 1992-98, que fazem
referência a resultados de pesquisas teóricas ou empíricas, evidenciando
elaboração teórica e rigor conceitual de análise. As autoras observam que a
formação continuada é concebida como formação em serviço,
enfatizando o papel do professor como profissional e estimulando-o a
desenvolver novos meios de realizar seu trabalho pedagógico com base
na reflexão sobre a própria prática. Sendo assim, os estudos argumentam
que a formação deve estender-se ao longo da carreira e desenvolver-se,
preferencialmente, na instituição escolar.
Finalmente, as autoras concluem que seus estudos identificam uma
significativa preocupação com o preparo do professor para atuar nas séries
iniciais do ensino fundamental; evidenciam o silêncio quase total em relação à
formação do professor para o ensino superior, para a educação de jovens e
adultos, o ensino técnico e rural, bem como para atuar nos movimentos sociais
e com crianças em situação de risco; mostrando que raros são os trabalhos
que focalizam o papel das tecnologias de comunicação, dos multimeios ou da
informática no processo de formação, e que mais raros ainda são os que
206
investigam o papel da escola no atendimento às diferenças e à diversidade
cultural.
Além disso, argumentam que, embora os trabalhos da ANPEd enfatizem a
necessidade de articulação entre teoria e prática, tomando o trabalho
pedagógico como núcleo fundamental desse processo, a análise das
pesquisas revelou um tratamento isolado das disciplinas específicas e
pedagógicas, dos cursos de formação e da práxis, da formação inicial e da
continuada. Dessa forma, as fontes analisadas mostraram um excesso de
discurso sobre o tema da formação docente e uma escassez de dados
empíricos para referenciar práticas e políticas educacionais.
5.2 A FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES EM SERVIÇO E A
“FORMAÇÃO DE PROFISSIONAIS DA EDUCAÇÃO (1997 – 2002)
Partindo para análise do segundo documento, organizado por Iria Brzezinski
(2006), em colaboração com a professora Elsa Garrido, observamos que esse
trabalho buscou dar continuidade ao trabalho realizado anteriormente,
resultando no volume 10 da série Estado do Conhecimento do Instituto
Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP/MEC).
Nele são apresentados os primeiros resultados da pesquisa “Estado do
Conhecimento sobre a Formação de Profissionais da Educação”, que consistiu
do mapeamento e de um balanço crítico (metanálise) da produção científica
discente, “teses e dissertações” defendidas no período 1997-2002, em
programas de pós-graduação em educação credenciados pela Fundação
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e
Sócios Institucionais da ANPEd.
207
Segundo a organizadora, esse processo contínuo permitiu estabelecer
relações e fazer comparações relevantes com a pesquisa anterior, sobretudo
porque foram mantidas algumas categorias de análise comuns aos dois
períodos, 1990-1996 e 1997-2002, embora se tenha clareza de que os
momentos históricos sejam diferentes. O movimento evolutivo da ciência é
ininterrupto e a produção discente dos programas de pós-graduação reflete os
paradigmas científicos, as tendências da área da Educação, os referenciais
teóricos e metodológicos predominantemente utilizados no período histórico
em que as teses e dissertações foram elaboradas.
Assim, diante da abrangência da investigação realizada em 2004, foi
necessário congregar um grupo de pesquisadores e de bolsistas de iniciação
científica para fazer o levantamento do material empírico, a leitura integral das
teses e dissertações e a elaboração dos resumos expandidos de acordo com o
Modelo da Red Latinoamericana de Información y Documentación en
Educación (Reduc), executando-se um balanço crítico decorrente da análise de
cada produção discente que compôs a amostra de 742 trabalhos.
O detalhado relatório de pesquisa está configurado em um artigo de autoria da
organizadora e de sua colaboradora, em dois anexos. O primeiro consiste de
um Quadro Geral das teses e dissertações por título, nível de formação do
discente, autores e pertencimento ao programa de pós-graduação. O outro,
Anexo 2, trata da publicação em CD-ROM dos 742 Resumos Analíticos, como
parte integrante desse volume 10.
As autoras esclarecem que, apesar de seguirem as tradicionais convenções de
comunicação de resultados de pesquisa, os resultados foram apresentados na
condição de “primeiros”, pois deverão suscitar outros, à medida que a riqueza
do material empírico coletado for analisada em outra perspectiva, permitindo a
emergência de novas e diversificadas categorias de análise, assim como
poderão servir de base para a continuidade a outro Estado do Conhecimento
da mesma natureza, mas em período subseqüente ao de 1997-2002.
208
Na primeira parte do estudo, as autoras fazem aproximações conceituais entre
as concepções de formação de profissionais da educação e de formação de
professores e destacam que o campo da investigação sobre “Formação dos
Profissionais da Educação no Brasil” no período (1997-2002) se alarga, tanto
quantitativa quanto qualitativamente, quando comparado ao período anterior
(1990-1996).
Nesse sentido, a própria denominação “Formação de Profissionais da
Educação” é mais abrangente do que “Formação de Professores”, e a definição
encontrada na Resolução CNE nº 3, de 8 de outubro de 1997, que “fixa
diretrizes para os novos planos de carreira e de remuneração para o magistério
dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”, é bastante esclarecedora,
pois nela os profissionais da educação são identificados como “os profissionais
que exercem atividades de docência e os que oferecem suporte pedagógico
direto a tais atividades, incluídas as de direção e administração escolar,
planejamento, inspeção, supervisão e orientação educacional” (Art. 2º).
Sendo assim, os enfoques e linhas teóricas sobre a temática diversificaram-se
nos estudos, cobrindo
a) novas demandas da educação e a reforma do ensino superior, bem como do campo da formação dos profissionais da educação, a partir da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394), em vigor desde 20.12.1996; b) políticas de formação de professores, a concepção de base comum nacional de formação e valorização do magistério e a articulação entre os loci de formação – Centros/Núcleos/Faculdades/Departamentos de Educação, os Institutos e Centros de Conteúdos Específicos das disciplinas da educação básica (licenciaturas), Institutos Superiores de Educação – e os sistemas da educação básica; c) diretrizes curriculares nacionais dos cursos de formação de professores e dos demais profissionais da educação; d) perspectivas curriculares alternativas em desenvolvimento para a formação inicial e continuada de professores em cursos presenciais, semipresenciais e a distância; e) práxis pedagógica e organização do trabalho docente em todos os níveis de ensino, incluindo a pós-graduação lato e stricto sensu; f) identidade e profissionalização do profissional da educação (BRZEZINSKI; GARRIDO, 2006, p. 11).
209
Segundo as autoras, os processos de mudança e seus efeitos nas
experiências formativas espelham as profundas e rápidas mutações culturais
da sociedade do conhecimento, da ciência, da educação, das tecnologias, do
setor produtivo, do mundo do trabalho e das formas de poder e de saber
ocorridas neste momento histórico. Nesse sentido, afirmam:
Tais transformações na sociedade implicam mudanças radicais nas organizações educativas e nos sistemas de formação. São mudanças de toda ordem na área da educação: políticas educacionais neoliberais de formação de profissionais de educação induzem reformas institucionais; novas diretrizes requerem reformulações curriculares; surgem loci, e propostas alternativas de formação, particularmente em cursos semipresenciais ou em cursos a distância, alcançam êxito. Essas reformulações redesenham os espaços e as concepções de formação docente, delineiam a criação de novos saberes e novas competências profissionais, configurando outras “identidades”, ou uma “pluralização de identidades” (Hall, 2004), bem como provocam transformações no paradigma de ciência e nas práticas pedagógicas, desnudando a complexidade do trabalho docente (BRZEZINSKI; GARRIDO, 2006, p. 12).
A pesquisa realizou-se em três etapas: a) levantamento documental: teve por
objetivo localizar os resumos das dissertações e teses sobre a temática em tela
nos 50 Programas objeto de estudo; b) leitura integral de uma amostra da
produção discente acima levantada e elaboração de Resumos Analíticos no
Modelo Reduc1 sobre cada uma delas; c) mapeamento dos resumos analíticos
segundo categorias e subcategorias, de modo a oferecer uma visão geral
organizada da produção, possibilitando o registro de tendências ou lacunas nas
temáticas investigadas e da tipologia de pesquisas, permitindo fazer
comparações com a produção no período 1990-1996.
Ao percorrerem as etapas buscando obedecer a critérios e vencer as
dificuldades encontradas, das 50 Instituições e Programas apenas 23 foram
selecionados; e das 755 obras, de início consideradas pertinentes à Formação
de Profissionais da Educação, foram eliminadas 13, por não focalizarem o
tema da investigação, mencionando-o em um ou outro momento, ou apenas
nas conclusões.
210
Dentro da terceira etapa, a análise de conteúdo resultou na seguinte
categorização da temática: a) Concepções de Docência e de Formação de
Professores; b) Políticas e Propostas de Formação de Professores; c)
Formação Inicial; d) Formação Continuada; e) Trabalho Docente; f) Identidade
e Profissionalização Docente; g) Revisão de Literatura.
As autoras ressaltam a relatividade das comparações entre resultados de
pesquisas pertencentes a períodos diferentes, pois, embora tais comparações
sejam relevantes para dar uma visão geral sobre o movimento, os avanços e
as tendências da pesquisa em uma determinada área do conhecimento, é
preciso ter clareza de que as categorias usadas em diferentes estudos e
momentos não têm o mesmo significado, ainda que tenham mantido a mesma
denominação. Como exemplos, citam o entendimento e a extensão do campo
denominado “formação continuada”, “prática docente” e “trabalho docente”,
pois eles têm sentidos diversos daqueles apresentados em estudos conduzidos
em períodos anteriores ou realizados em diferentes sociedades.
Com relação às concepções de Docência e de Formação de Professores,
observam-se que durante o período 1997-2002 o sistema educacional
brasileiro foi marcado por profundas mudanças.
Por um lado, a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1996, acarretou um amplo conjunto de reformas políticas visando modificar substancialmente o sistema brasileiro de educação, a concepção de práticas pedagógicas e, em decorrência, a formação dos professores. Por outro lado, o próprio movimento da pesquisa sobre a docência e o trabalho docente colocou em cheque o paradigma da racionalidade técnica que caracterizava a formação inicial e continuada do professor. Essas transformações exigiam, por isso, um profundo repensar sobre as Concepções de Docência e de Formação de Professores, categoria que engloba 47 autores no conjunto de 742 dissertações que empreenderam o estudo da questão. Parte deles considerou os fundamentos antropológicos, epistemológicos, filosóficos ou sociológicos da docência; a outra parte dos investigadores discentes buscou examinar a contribuição da literatura sobre os aspectos didático-metodológicos para o exercício da docência nas diferentes disciplinas da educação básica e suas implicações na formação do futuro professor. No primeiro grupo, um número expressivo de dissertações e teses apresenta análises acerca do novo papel e o novo perfil do professor nas sociedades
211
contemporâneas; a maioria desses trabalhos, entretanto, tratou dos pressupostos do novo paradigma da racionalidade prática e suas conseqüências para a formação de professores. Apesar dos diferentes enfoques, houve concordância sobre a valorização e complexidade do trabalho docente, a respeito da qualificação da formação de professores a ser realizada em nível superior e sobre a necessidade de formação contínua. Nesses trabalhos foram considerados como indicadores de qualificação dos cursos de licenciatura os seguintes aspectos: a) efetiva articulação entre teoria e prática; b) formação do professor pesquisador capaz de refletir e pesquisar sua prática, de investigar as dificuldades de aprendizagem e de propor alternativas; c) preparo político-pedagógico para a compreensão crítica e questionadora de projetos políticos para a educação e para a construção de projetos político-pedagógicos institucionais e/ou de cursos de formação comprometidos com a participação e inclusão (BRZEZINSKI; GARRIDO, 2006, p. 28-29, grifos nossos).
Mais especificamente, relatam a dificuldade para distinguir as categorias
Formação Inicial e Formação Continuada na produção docente examinada e
na concepção vigente na LDB (Lei n.º 9.394/96), já que se acentua a unidade
do processo de desenvolvimento profissional do professor. Dessa forma,
formação inicial e formação continuada seriam consideradas etapas que
se sucedem em um continuum (desenvolvimento profissional) e em um
processo de configuração de identidades docentes.
Outra questão que se colocou para essas categorizações
[...] diz respeito à polêmica interpretação dos gestores de políticas educacionais diante das propostas de formação emergencial, que desconsideraram as organizações curriculares e os níveis de ensino convencionalmente aceitos e que foram reconhecidas pelos órgãos oficiais como propostas alternativas de formação de profissionais da educação. Para o Ministério da Educação, proponente convicto da certificação, os professores atuantes nos sistemas de ensino que iniciavam sua primeira formação não deveriam ser identificados como “leigos”, pois, consoante as políticas educacionais, eram portadores de “saberes tácitos” adquiridos pela experiência em sala de aula e no convívio institucional. Essa concepção é contestada pelas associações científicas e políticas da área educacional (ANPEd e Anfope 3, entre outras) que não admitem o ingresso e permanência de professores leigos nos sistemas de ensino e, por isso, não reconhecem vários programas e experiências de formação continuada desenvolvidos por Secretarias de Educação, de forma bastante aligeirada, em “módulos especiais”. Os embates ideológicos da
212
área introduzem contradições na tentativa de categorizar tal produção (BRZEZINSKI; GARRIDO, 2006, p. 18, grifos nossos).
Na categoria Políticas e Propostas de Formação de Professores foram
computados 64 trabalhos dos discentes da pós-graduação. Na opinião das
pesquisadoras, tal recorrência tem sentido porque, como já foi adiantado,
vivemos no Brasil um período intenso de redefinição de políticas educacionais,
de reformas em todos os níveis de ensino, de reformulações curriculares dos
cursos do ensino superior, de criação de novos espaços institucionais e virtuais
de formação de professores, mudanças impulsionadas notadamente pela
implantação da nova LDB/1996 e pelo processo de reforma universitária que se
arrasta por quase uma década (1996-2006). A esse respeito dizem:
É lícito lembrar que essas políticas educacionais não resultam somente de decisões internas ao País. Ao contrário, o movimento reformista na esfera educacional faz parte de um projeto global de universalização do capitalismo atingindo toda a América Latina. Em todo o continente as reformas guardam semelhanças, porque capitaneadas pelo órgão financiador, o Fundo Monetário Internacional, sob a tutela dos Estados Unidos da América (BRZEZINSKI; GARRIDO, 2006, p. 30).
Segundo as autoras, nessa categoria a dispersão temática foi grande,
dificultando o agrupamento das pesquisas na matriz analítica. As autoras
observaram que as análises do impacto dos programas, projetos e propostas
de formação de profissionais da educação nos diversos níveis de formação ou
por segmentos de professores ofereceram argumentos para defender ações
governamentais com vistas a responder às exigências dos financiadores
externos, e em relação à necessidade de aumento quantitativo de professores
capacitados e certificados, nas regiões periféricas do País, embora algumas
dessas dissertações e teses tenham feito uma análise crítica em relação a
essas mesmas decisões políticas. Em razão dessas políticas, foram definidos
novos loci de formação, como os Centros Universitários, os Institutos
Superiores de Educação e as Escolas Normais Superiores, estudados em sete
(10,9%) trabalhos. São também emergentes os estudos sobre desenhos
213
curriculares inovadores traçados em diferentes cursos de formação de
professores.
As autoras sinalizam a continuidade da elaboração de trabalhos críticos sobre
políticas de valorização dos profissionais da educação, iniciados nos anos
1980, e afirmam que nesses trabalhos são enfatizados os programas de
formação inicial e continuada de professores, articulando-os à
profissionalização docente, melhoria das condições de trabalho,
desenvolvimento da carreira do magistério e reivindicação de salários dignos.
Também há os trabalhos que se dedicam ao estudo das novas diretrizes
curriculares para a formação de professores, processo que vem sendo
implantado no ensino superior desde 1997, e investigações que têm como
tema a importância das políticas de educação a distância, com a utilização das
tecnologias de informação e comunicação (TIC) e o aperfeiçoamento do uso do
computador como recurso didático em ambientes formativos de professores.
Com relação à categoria “Formação Continuada”, foram classificados 115
teses e dissertações, expressas em uma multiplicidade de sete subcategorias,
número bastante superior aos das 36 pesquisas sobre formação continuada
registradas no período 1990-1996. Como concepção de “Formação
Continuada”, as autoras assumiram o entendimento das associações que
congregam profissionais da educação, que, de modo geral, vêm adotando o
que se definiu no VIII Encontro Nacional da ANFOPE para essa modalidade de
formação. Para esses educadores, a formação continuada
[...] deva proporcionar novas reflexões sobre a ação profissional e novos meios para o desenvolvimento do trabalho pedagógico, considerado que o conhecimento produzido e adquirido na formação inicial, na vivência pessoal e no saber da experiência docente, deve ser repensado e desenvolvido na carreira profissional (ANFOPE, 1996, apud BRZEZINSKI; GARRIDO, 2006, p. 34).
As autoras caracterizam o período 1997-2002 como marcado pelo investimento
nas políticas educacionais e em programas de formação continuada,
214
envolvendo grande número de professores da escola básica, desenvolvidos
pelas secretarias estaduais e municipais de educação, por sindicatos ou por
meio de parcerias entre Centros de Formação e secretarias de educação, e
projetos de pesquisa de caráter colaborativo centrados na escola.
Nestes casos, o processo de reflexão sobre as práticas docentes e de mudança da cultura escolar contou com a assessoria de pesquisadores. Houve ainda parcerias pontuais entre pesquisadores e professores da rede pública. Em geral, este último grupo de projetos foi constituído por pesquisadores e professores de uma mesma disciplina, e os encontros se deram no Centro de Ensino Superior. Nos últimos anos do período surgiu um novo tipo de parceria entre pesquisadores, em que um deles exerceu o papel de colaborador da formação continuada de seu colega de ensino superior. Esse conjunto de ações, desenvolvidas para promover a formação continuada nas mais diferentes modalidades de qualificação de professores, foi objeto de estudo da produção discente dos cursos de pós-graduação stricto sensu no período 1997-2002 (BRZEZINSKI; GARRIDO, 2006, p. 34-35).
O estudo também assinala a importância da mudança de paradigma que
fundamentou os programas de formação continuada no final dos anos 1990.
Enquanto no primeiro Estado do Conhecimento, que abrange o período 1990-1996, dominou o paradigma da racionalidade técnica, operacionalizado por meio de programas de curta duração, em forma de “treinamento” ou cursos de atualização, neste segundo Estado do Conhecimento, que cobriu o período 1997-2002, registramos o predomínio do paradigma da complexa relação entre Educação, Universidade, Sociedade do Conhecimento e Mundo do Trabalho, caminhando pela lógica da reflexão, como fundamento para a grande maioria dos programas em que os Centros Formadores, em particular, e as Universidades atuaram como parceiros ou colaboradores (BRZEZINSKI; GARRIDO, 2006, p. 35).
Outra mudança registrada deu-se no modus faciendi da educação continuada
de profissionais da educação,
[...] pois se antes era indispensável o professor se afastar do lugar de trabalho para dar continuidade à sua profissionalização em cursos de capacitação e aperfeiçoamento, alternativa relevante para conhecer novas propostas de ensino e melhorar sua prática, na atualidade penetra na literatura e nas práticas pedagógicas o conceito de professor reflexivo e, por analogia, de escola reflexiva, que estimula a
215
formação continuada no próprio ambiente de trabalho. Não são poucos os autores que defendem a formação continuada em situações de trabalho dimensionada pela lógica da reflexibilidade e não pela lógica da “reciclagem”. Sob a lógica da reflexibilidade são criadas “condições de interação fecunda entre uma via simbólica [conhecimento] e uma via experiencial de aprendizagem [saberes], emergem de forma concomitante, os conceitos de trajetória profissional e de percurso de formação” (CANÁRIO, 1997, apud BRZEZINSKI; GARRIDO, 2006, p. 35).
Para a professora Brzezinski essa nova prática de formação docente se dá
[...] no momento atual de implementação da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/96) em que a escola, e em particular cada escola pública, deve ter como objetivo a construção de seu projeto político-pedagógico-curricular e o exercício de sua autonomia, mesmo que relativa, cabe a ela buscar condições para qualificar melhor seus profissionais. A prescrição em lei de formação continuada dos professores abriu caminhos para a organização escolar promover a formação de profissionais em situação de trabalho. Essa modalidade de qualificação que não retira o professor de seu locus profissional coincide com as preocupações já mencionadas por Alarcão (2001a) sobre a escola que está em permanente avaliação e formação: a escola reflexiva e qualificante onde professores ensinam e aprendem (BRZEZINSKI, 2001, apud BRZEZINSKI; GARRIDO, 2006, p. 35).
No estudo de Brzezinski e Garrido (2006), a Tabela 8 mostra dados da
categoria “Formação Continuada” e expressa a variedade e a freqüência dos
diferentes enfoques examinados, apontando que, dos 115 trabalhos, 42
(36,5%) são dedicados a analisar e divulgar pesquisas colaborativas entre
investigadores voluntários e professores da educação básica; 25 (22%) das
investigações examinam projetos desenvolvidos em parceria entre instituições
formadoras e secretarias de educação municipais ou estaduais; e um
expressivo número de 40 trabalhos (35%) acompanha mudanças surgidas nas
práticas pedagógicas e na cultura escolar, resultantes de experiências de
formação continuada em serviço com o uso da metodologia de avaliação de
impacto desses programas na melhoria do ensino e da aprendizagem.
Como iniciativa ainda tímida dos discentes de pós-graduação estão as teses e
dissertações que focalizam a Formação de Formadores (apenas 8), realizadas
216
em instituições de ensino superior, fruto da parceria entre pares da própria
instituição. Configura-se como temática emergente a avaliação de impacto dos
programas de formação a distância com uso de novas tecnologias (19
trabalhos realizados na década de 2000).
Assim, também, foi possível, para as autoras, identificar que os programas de
formação continuada com pesquisa colaborativa voluntária entre
pesquisadores e professores se destinaram quase que exclusivamente aos
profissionais que atuam no ensino fundamental, abrangendo doze (10,5%)
dissertações e teses, deles sobressaindo seis (50%) estudos inovadores que
enfocam a escola rural. Dizem ainda as autoras:
Relatos de formação continuada centrada na escola básica que optam pela continuidade da formação em situação de trabalho aconteceram sobretudo nos últimos anos do período. Por serem projetos mais complexos e com tempo de duração mais longo foram menos freqüentes, mas abrangeram 10,5% dos 115 trabalhos que se abrigam nesta categoria. O impacto desses programas e dessas parcerias sobre a qualidade do ensino e da aprendizagem ainda está pouco investigado. As primeiras avaliações têm levantado a percepção dos professores cursistas sobre o curso de formação que tiveram. As pesquisas colaborativas e aquelas centradas na escola têm sido consideradas altamente necessárias pelos participantes (BRZEZINSKI, GARRIDO, 2006, p. 37).
Também se constatou, no fim do período, o surgimento de pesquisas
envolvendo professores de nível superior em projetos colaborativos de
formação continuada voltados para a melhoria do ensino superior. Segundo as
autoras, essa nova linha de pesquisa revela preocupação com a qualidade da
docência, até recentemente pouco valorizada nos ambientes universitários,
tendo baixa credibilidade o movimento do professor reflexivo, investigador de
sua prática no meio acadêmico e da escola reflexiva.
As autoras acabam concluindo que é grande o leque de aspectos a serem
cobertos pela pesquisa sobre formação continuada para de fato esclarecer as
complexas exigências de qualificação profissional com vista ao exercício da
217
docência e ao tempo que uma formação qualificada exige. Assim, apesar de o
número de pesquisas sobre a questão ter aumentado significativamente em
relação ao período anterior, ainda é imprescindível investir nesse campo.
Em suas considerações finais sobre o estudo realizado, as autoras fazem
algumas comparações como o Estado do Conhecimento sobre o tema no
período 1990-1996:
a) houve uma mudança de eixo nos objetos pesquisados, pois a produção
discente sobre a categoria Trabalho Docente foi muito maior do que a
que se refere à Formação Inicial;
b) pode-se afirmar que os discursos sobre a prática dão lugar a reflexões,
análises e avaliações do trabalho docente com vistas a redimensionar
as práticas pedagógicas, tentando oferecer respostas às limitações
detectadas;
c) houve uma quebra de silêncio nos trabalhos acerca do uso de novas
tecnologias, embora, ao avaliar os cursos de formação, alguns autores
denunciem que a prática pedagógica permanece tradicional;
d) emergem estudos sobre formação de professores a distância e sobre a
formação de profissionais da educação infantil;
e) no que tange à formação pedagógica do professor do ensino superior,
ainda permanecem caladas as vozes dos pesquisadores em relação a
essa temática, “campo minado” notadamente para a área de formação
de professores das ciências exatas, apesar de as autoras reconhecerem
que algumas experiências já constam dos trabalhos do atual momento,
inclusive com propostas de formação de formadores, o que pode inspirar
os legisladores para que se instale no País uma política nacional de
formação de formadores que atuem no ensino superior;
f) parece ser mais intenso, neste período do que no anterior, o silêncio
sobre a formação do profissional da educação para os ensinos
profissionalizante e médio, assim como, desafortunadamente, o silêncio
quase que total dos trabalhos em relação à violência na escola e ao
218
preparo do profissional da educação para lidar com situações de risco
que invadem o espaço escolar.
Assim, terminam anunciando a emergência de uma cultura de pesquisa na
modalidade de Estado do Conhecimento ou da Arte, sendo importante destacar
que, no conjunto dos 742 trabalhos estudados, um bom número revela o
compromisso dos autores com a investigação, com referencial teórico
densamente tecido e com objeto de pesquisa bem definido, ainda que seja
surpreendente, em alguns trabalhos, a dificuldade que os autores têm para
descrever com clareza o método de pesquisa e a modalidade da investigação
utilizada em seus estudos.
Fazendo uma análise do conceito de formação continuada nos dois
documentos, podemos notar que o primeiro estudo demonstrou que os
pesquisadores rejeitavam a idéia de formação continuada com o conceito de
treinamento, cursos, seminários, palestras, por exemplo, assumindo a
concepção de formação continuada como processo. Alguns a definem como
prática reflexiva no âmbito da escola, e outros, como uma prática reflexiva que
abrange a vida cotidiana da escola e os saberes derivados da experiência
docente; estes a concebem como uma prática reflexiva articulada com as
dimensões sociopolíticas mais amplas, abrangendo da organização profissional
à definição, execução e avaliação de políticas educacionais (CARVALHO;
SIMÕES, 2002, p.172).
Quanto à formação continuada em serviço, as pesquisas giravam em torno dos
conceitos e significados atribuídos à formação continuada, ao uso da
tecnologia de comunicação, à educação continuada e ao desenvolvimento
social, à produção científica sobre o tema, ao ensino superior, ao papel da
pesquisa na formação, e as políticas públicas, não se notando distinções
marcantes entre os pressupostos assumidos para as propostas de formação
continuada e as ações propostas, mas percebe-se a ênfase na necessidade de
se valorizar e implementar a cooperação e a integração entre o mundo
acadêmico e as escolas no desenvolvimento de parcerias.
219
Nessa pesquisa, pudemos encontrar uma concepção de formação
continuada em serviço como aquela que enfatiza o papel do professor
como profissional e o estimula a desenvolver novos meios de realizar seu
trabalho pedagógico com base na reflexão sobre a própria prática. Os
estudos argumentam que a formação deve estender-se ao longo da carreira
e desenvolver-se, preferencialmente, na instituição escolar.
As autoras concluem que os artigos conceituam a formação continuada como
um processo crítico-reflexivo sobre o fazer docente em suas múltiplas
determinações e apresentam propostas ricas e abrangentes, indo além da
prática reflexiva, envolvendo o enfoque político-emancipatório ou crítico-
dialético. Neles, o professor aparece como centro do processo de
formação continuada, atuante como sujeito individual e coletivo do saber
docente e participante da pesquisa sobre a própria prática.
Destacamos alguns aspectos importantes relativos à pesquisa acadêmica para
a análise que estamos a fazer sobre a formação continuada de professores em
serviço em sua correlação com os processos de gestão democrática:
- a recusa do conceito de formação continuada significando treinamento,
cursos, seminários, palestras, entre outros significados;
- a argumentação contra os “pacotes de treinamento”, baseados na concepção
do “efeito multiplicador”, ou “efeito de repasse”, e contra os chamados
“encontros de vivência”, que, centrando-se em aspectos socioafetivos, se
revelam superficiais e aligeirados no tempo espaço para produzir novas
atitudes docentes;
- a problematização da expressão “capacitação de recursos humanos”
(humano como um recurso);
- a análise de termos como reciclagem (ligado ao descartável); treinamento
(ligado à modelagem de algo pré-fixado); aperfeiçoamento; capacitação;
- o questionamento da “capacitação” individual com vistas a recompensas;
- a concepção de educação continuada que aponta o local de trabalho como a
base do processo, levando em conta as vivências e os saberes profissionais
220
presentes no cotidiano escolar, o que possibilita a compreensão da educação
como prática social mobilizadora;
- a conceituação da formação continuada como um processo de formação para
além da prática reflexiva, que contempla a articulação com o projeto da escola,
a valorização da experiência profissional dos participantes, as potencialidades
da comunidade escolar e as especificidades da instituição e do trabalho
desenvolvido, as formas de trabalho coletivo e a ação autônoma das escolas,
uma visão que integra o contexto sociopolítico-econômico e cultural mais
amplo, apoiada em referencial de análise político-emancipatório;
- a elaboração de projetos de formação continuada que consideram
criticamente os limites e possibilidades do contexto de trabalho, a definição dos
princípios norteadores, estratégias e avaliação contínua.
- os processos de formação continuada planejados como ações coletivas, com
decisões compartilhadas, que ressaltam a dimensão utópica de um projeto
como ideal e no sentido de algo ainda não realizado.
Percebe-se então, que as pesquisas vão questionando as propostas
pragmáticas que não unem a prática reflexiva à continuidade e à amplitude das
ações empreendidas; à explicitação das diferentes políticas para a educação
pública; ao compromisso com a mudança; ao trabalho coletivo; à associação
com a pesquisa científica desenvolvida em diferentes campos do saber, que
nos levam a separar a práxis do contexto e que poderiam servir de base para
se pensar a recriação da própria profissão docente e da educação como
processo emancipatório, uma vez que o processo educativo se incorpora ao
mundo produtivo como parte do dinamismo econômico, na confluência
estabelecida entre a capacidade de participar (cidadania) e de produzir
(trabalho).
O educador brasileiro é realçado como cidadão concreto, devendo-se
considerar o conjunto de fatores estruturais e conjunturais que agem sobre sua
prática, delimitando seu espaço real de possibilidades, articular o intra-escolar
à realidade social mais ampla, considerar a participação efetiva dos
221
professores e seus problemas como ponto de partida e de chegada do
processo, garantindo-se uma reflexão alicerçada em sólida fundamentação
teórica.
Ressaltamos também as conclusões que Brzezinski e Garrido destacam em
Pereira (1994) sobre a formação em serviço: a) os programas de educação em
serviço nos quais os professores compartilham experiências e prestam
assistência mútua têm mais possibilidade de alcançar seus objetivos do que
aqueles nos quais o professor trabalha isoladamente; b) os professores são
mais beneficiados pelas atividades de educação em serviço que estão ligadas
ao esforço conjunto da escola do que pelos programas esporádicos que não
fazem parte do plano geral de desenvolvimento do pessoal dessa instituição; c)
a educação em serviço deve ser descentralizada, com ênfase nos problemas
reais da escola, nas suas metas, necessidades e planos, devendo ser
conduzida, sempre que viável, nas instalações escolares.
No segundo trabalho de pesquisa, nota-se a influência dos processos de
mudanças culturais da sociedade do conhecimento e as profundas e rápidas
mutações da ciência, da educação, das tecnologias, do setor produtivo, do
mundo do trabalho e das formas de poder e de saber ocorridas nesse
momento histórico e seus efeitos nas experiências formativas, alcançando as
organizações educativas e os sistemas de formação. Nesse sentido, destaca-
se, no Brasil, a aprovação da nova LDB de 1996, e o amplo conjunto de
reformas políticas que visaram modificar substancialmente o sistema brasileiro
de educação, a concepção de práticas pedagógicas e a formação dos
professores.
Os debates desse período envolveram a influência das políticas neoliberais na
educação e que induzem reformas institucionais na formação de profissionais
da educação; as novas diretrizes curriculares; o surgimento de novos loci de
formação e propostas alternativas de formação (a distância), reformulações
dos espaços e das concepções de formação docente, a criação de novos
222
saberes e novas competências profissionais. Por outro lado, o próprio
movimento da pesquisa sobre a docência e o trabalho docente colocou em
xeque o paradigma da racionalidade técnica que caracterizava a formação
inicial e continuada do professor, desnudando a complexidade do trabalho
docente. Essas transformações exigiam, por isso, um profundo repensar sobre
as concepções de docência e de formação de professores.
A comparação entre os dois trabalhos demonstrou que, no primeiro Estado do
Conhecimento (1990–1996) as pesquisas estavam relacionadas
predominantemente ao paradigma da racionalidade técnica, operacionalizado
por meio de programas de curta duração, em forma de “treinamento” ou cursos
de atualização; e que, no segundo Estado do Conhecimento (1997-2002),
houve predomínio do paradigma da complexa relação entre Educação,
Universidade, Sociedade do Conhecimento e Mundo do Trabalho, caminhando
pela lógica da reflexão, como fundamento para a grande maioria dos
programas em que os Centros Formadores, em particular, e as universidades
atuaram como parceiros ou colaboradores (BRZEZINSKI; GARRIDO, 2006, p.
35).
Essas mudanças refletiram no modus faciendi da educação continuada de
profissionais da educação influenciados pela concepção de professor reflexivo
e de escola reflexiva, não sendo indispensável que o professor se afastasse do
lugar de trabalho para dar continuidade à sua profissionalização em cursos de
capacitação e aperfeiçoamento. Essa proposta estimulava a formação
continuada no próprio ambiente de trabalho, sob a lógica da reflexibilidade em
que são criadas “[...] condições de interação fecunda entre uma via simbólica
[conhecimento] e uma via experiencial de aprendizagem [saberes], emergem
de forma concomitante, os conceitos de trajetória profissional e de percurso
de formação” (CANÁRIO, 1997, apud BRZEZINSKI; GARRIDO, 2006, p. 35).
As autoras dessa pesquisa afirmam que a prescrição em lei da formação
continuada dos professores abriu caminhos para a organização escolar
223
promover a formação de profissionais em situação de trabalho. Embora o
impacto desses programas e dessas parcerias sobre a qualidade do ensino e
da aprendizagem ainda seja pouco investigado, as primeiras avaliações dos
professores “cursistas” sobre a formação que tiveram em pesquisas
colaborativas e naquelas centradas na escola demonstram que estas têm sido
consideradas altamente necessárias pelos participantes (BRZEZINSKI;
GARRIDO, 2006, p. 37) o que confirma o posicionamento favorável do estudo
anterior sobre a formação continuada que se realiza coletivamente no contexto
escolar.
Por fim, podemos dizer que as concepções de formação continuada como
formação para além da prática reflexiva sobre o fazer docente em suas
múltiplas determinações, envolvendo o enfoque político-emancipatório ou
crítico-dialético, em que o professor aparece como centro do processo de
formação continuada, atuante como sujeito individual e coletivo do saber
docente e participante da pesquisa sobre a própria prática, tem contemplado a
possibilidade de a formação continuada em serviço realizar-se no contexto
escolar, num processo de contínuas aprendizagens que se realizam na
formação/gestão de redes de subjetividades compartilhadas por sujeitos
praticantes no cotidiano escolar, o qual, se adotado como um processo de
gestão democrática da formação docente, apresenta grande potencial
emamcipador.
A pesquisa acadêmica tem contribuído para uma visão de formação continuada
de professores em serviço como uma modalidade de formação que institui a
pessoa do professor como um profissional capaz de refletir criticamente e
pesquisar sua prática, as dificuldades de aprendizagem, e de propor
alternativas, assim como capaz de assumir um posicionamento crítico e
questionador sobre os projetos políticos que são propostos para a educação e
para a construção de projetos político-pedagógicos institucionais e/ou de
cursos de formação, que se desejam, comprometidos com a participação e
inclusão (BRZEZINSKI; GARRIDO, 2006, p. 29).
224
6 A FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES EM SERVIÇO NA
POLÍTICA PÚBLICA EDUCACIONAL DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO
Neste capítulo, buscaremos analisar a proposta para a política pública
educacional estadual em seus aspectos relevantes para a formação continuada
de professores em serviço e para a gestão democrática da escola, a fim de
evidenciar as possibilidades que esses documentos oferecem de
correlacionarmos os processos de formação continuada de professores em
serviço e os processos de gestão democrática da formação docente, de modo
a potencializar e emancipação dos professores.
Antes, porém, de começarmos a análise em si, faremos alguns comentários
sobre a Constituição Estadual de 1989, promulgada em 5 de outubro de 1989,
um ano após a promulgação da Constituição Federal de 1988 e sete anos
antes da aprovação da LDB n° 9.394/96, que dedica o Capítulo III, Seção I, à
educação. Nela é reforçada a educação como direito em vários artigos, assim
como a educação para a cidadania e para a qualificação para o trabalho (Art.
168 e 169). Os princípios estabelecidos na Constituição Federal, em seu Art.
206, são garantidos conforme consta no Art. 170 da Constituição Estadual:
Art. 170. O ensino será ministrado com obediência aos princípios estabelecidos no art. 206 da Constituição Federal e aos seguintes: I - flexibilidade da organização e do funcionamento do ensino para atendimento às peculiaridades locais; II - valorização dos profissionais do magistério, garantido o aperfeiçoamento periódico e sistemático; III - respeito às condições peculiares e inerentes ao educando trabalhador, com oferta de ensino regular noturno, ao portador de deficiência e ao superdotado; IV - valorização dos profissionais do ensino, garantidos, na forma da lei, planos de carreira para o magistério público, com piso salarial profissional e ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos; V - remuneração dos profissionais do magistério público, fixada de acordo com a maior habilitação adquirida, independentemente do grau de ensino em que atue; VI - efetiva participação, em todos os níveis, dos profissionais de magistério, dos alunos, dos pais ou responsáveis, na gestão administrativo-pedagógica da escola; VII - liberdade e autonomia para organização estudantil; VIII - instituição de órgão colegiado nas unidades de ensino em todos os níveis, como instância máxima das suas decisões, com
225
o objetivo de fiscalizar e avaliar o planejamento e a execução da ação educacional nos estabelecimentos de ensino (ESPIRITO SANTO, 1989, p. 44, grifos nossos).
Esses princípios ressaltam a importância da autonomia para gerir, por meio de
órgãos colegiados, com participação da comunidade escolar na gestão
democrática da escola, a valorização do magistério por meio de
remuneração digna e plano de cargos e salários e pelo aperfeiçoamento
periódico e sistemático para a categoria.
Também podemos dizer que, embora a Constituição Estadual de 1989 tenha
sido promulgada antes da LDB, se encontra harmonizada quanto ao que é
previsto no Art.10 desta Lei sobre as incumbências determinadas aos Estados:
organizar, manter e desenvolver os órgãos e instituições oficiais dos seus
sistemas de ensino; definir, com os Municípios, formas de colaboração na
oferta do ensino fundamental, as quais devem assegurar a distribuição
proporcional das responsabilidades, de acordo com a população a ser atendida
e os recursos financeiros disponíveis em cada uma dessas esferas do Poder
Público; elaborar e executar políticas e planos educacionais, em
consonância com as diretrizes e planos nacionais de educação,
integrando e coordenando as suas ações e as dos seus Municípios;
autorizar, reconhecer, credenciar, supervisionar e avaliar, respectivamente, os
cursos das instituições de educação superior e estabelecimentos do seu
sistema de ensino; baixar normas complementares para o seu sistema de
ensino; assegurar o ensino fundamental e oferecer, com prioridade, o ensino
médio. A esse respeito, diz a Constituição Estadual:
Art. 179. A lei estabelecerá o plano estadual de educação, de duração plurianual, compatibilizado com os diagnósticos e necessidades apontadas nos planos municipais de educação, respeitadas as diretrizes e normas gerais estabelecidas pelo plano nacional de educação. Parágrafo único. Fica assegurada, na elaboração do plano estadual de educação, a participação da comunidade científica e docente, de estudantes, pais de alunos e servidores técnico-administrativos da rede escolar.
226
Art. 180. Será garantido o caráter democrático na formulação da política do órgão colegiado responsável pela avaliação e encaminhamento de questões fundamentais da educação estadual e pela autorização e fiscalização do funcionamento das unidades escolares que ministram o pré-escolar e os ensinos fundamental e médio, com a representação paritária entre a administração pública, a comunidade científica e entidades da sociedade civil representativas de alunos, pais de alunos, sindicatos e associações de profissionais do ensino público e privado, na forma da lei; Parágrafo único. Os Municípios instituirão, na forma da lei, órgão colegiado para a formulação e o planejamento da política de educação (ESPÍRITO SANTO, 1989, p. 46, grifos nossos).
Destacamos aqui o aspecto fiscalizador “acrescentado” pela Constituição
Estadual de 1989 ao que prevê o Art. 14 da LDB, que prescreve a criação de
conselhos escolares ou equivalentes, já que a Lei Nacional não lhes atribui
função fiscalizadora. Importa pensar se esse acréscimo pode desviar a atenção
dos órgãos colegiados de seu potencial político de atuação, uma vez de que
esse potencial supera em muito a função fiscalizadora, já que abarca a
participação, o diagnóstico da realidade escolar e comunitária, o planejamento
e a execução de ações no campo político-educacional estadual e nos
estabelecimentos de ensino.
Destacamos ainda a revogação do Art. 177 pela Emenda Constitucional nº
19/99, que tratava da eleição de diretores de escolas por meio do voto direto
da comunidade escolar. É válido destacar que essa revogação se deu em meio
ao protesto de toda a comunidade escolar estadual, demonstrando que,
naquele momento político, a voz do povo não foi a voz ouvida e respeitada por
nossas autoridades parlamentares. Esse fato acabou por significar um
retrocesso nesse processo de redemocratização em que o Brasil estava
mergulhado, no qual o Espírito Santo figurava entre os mais avançados.
De modo geral, podemos dizer que a Constituição Estadual de 1989 incorporou
os princípios constitucionais federais, tratando de maneira ampla tanto a
questão da gestão democrática no que se refere à participação da comunidade
escolar por meio de órgãos colegiados e à autonomia para gerir
democraticamente a escola dentro dos padrões legais, quanto a formação e
227
valorização do magistério, ao prever a garantia do aperfeiçoamento periódico e
sistemático, piso salarial profissional e ingresso exclusivamente por concurso
público de provas e títulos. Os princípios organizadores contidos no Art. 170
também nos permitem pensar a formação continuada de professores como um
processo de gestão democrática da formação docente, e, ainda a possibilidade
da formação de grupos de estudo por professores, que podem garantir o
aperfeiçoamento periódico e sistemático desses profissionais e a sua efetiva
participação, em todos os níveis, nas decisões, planejamento e execução da
ação educacional nos estabelecimentos de ensino, configurando-se, assim,
como um processo de gestão administrativo-pedagógica da escola, tendo em
vista o atendimento às peculiaridades locais e a valorização desses
profissionais. Mais uma vez, se acrescentarmos a esses princípios o princípio
da gestão democrática como organizador desses processos, podemos
vislumbrar a possibilidade de que se estabeleçam processos emancipatórios.
Nesse sentido, como a Constituição Estadual cumpre a função de prescrever
princípios, buscaremos trazer para o enriquecimento desta reflexão a iniciativa
da SEDU/ES em propor uma nova política pública educacional para o nosso
Estado, por meio de um amplo debate que estabeleceu com a comunidade
escolar sobre o Documento Base “Política Pública Educacional para o Estado
do Espírito Santo: A Educação é um Direito” (ESPÍRITO SANTO, 2003).
6.1 O DOCUMENTO BASE “POLÍTICA EDUCACIONAL DO ESTADO DO
ESPÍRITO SANTO – A EDUCAÇÃO É UM DIREITO”
Esse importante documento sobre políticas públicas educacionais de nosso
Estado foi elaborado e implementado nos anos de 2003 e 2004, por iniciativa
do Governo Estadual, com a ativa participação da comunidade escolar.
Conforme expresso na apresentação desse documento, após um primeiro
esforço de organização das escolas estaduais, a nova administração, iniciada
em janeiro de 2003, acreditou ser a hora de se criar um movimento de
228
definição de políticas públicas que contemplassem as aspirações e as
necessidades da população do estado do Espírito Santo. E para que se
estabelecesse um debate com a comunidade escolar, a Secretaria de
Educação Estadual elaborou um Documento Base citado, com estratégias
básicas e as intenções pretendidas para a política pública na educação da rede
estadual.
O Documento Base vem apresentado e assinado pelo Secretário de Educação
e reforça em seu discurso a educação como direito. Traz a democracia como
valor fundamental para a garantia da pessoa humana e o exercício da
cidadania, ressalta a importância de um trabalho coletivo no fortalecimento da
educação e para a criação de um futuro Plano Estadual de Educação, e
contém diretrizes e metas políticas educacionais.
De modo geral, o documento faz um breve histórico sobre o estabelecimento
da educação como direito, um panorama da educação no Estado,
apresentando os seguintes princípios e compromissos gerais, retirados, cada
um, das páginas 27, 36 e 60, respectivamente:
- o compromisso em viabilizar condições técnicas, políticas e financeiras para uma educação pública de qualidade; [...] - formação continuada e valorização do magistério no sentido do fortalecimento da autonomia escolar; [...] - gestão democrática dos sistemas de ensino e das unidades escolares (ESPÍRITO SANTO, 2003, p. 27, 36 e 60).
Esses princípios subsidiam os textos que vêm devidamente acompanhados de
referências bibliográficas, de sugestões e diretrizes, relacionados a seguir: 1 –
Projetos Sócioeducacionais: a necessária (re)significação da educação frente
às demandas sociais; 2 – Gestão Democrática; 3 – Gestão Compartilhada; 4 –
Formação e Valorização do Magistério; 5 – O Currículo Escolar; 6 – Educação
de Jovens e Adultos; 7 – Educação do Campo; 8 – Educação Especial e
Educação Inclusiva: do que estamos falando?; 9 – Avaliação Escolar; 10 –
Educação Profissional.
229
O conjunto de princípios, diretrizes e sugestões contidos no Documento Base
estão entrelaçados. A intenção expressa em suas páginas aponta interesse em
resgatar a educação como práxis, apoiando-se em estratégias práticas e
metodológicas alternativas e inovadoras, defendendo a pluralidade de idéias e
a diversidade cultural, a consolidação da gestão democrática por meio da
participação da comunidade escolar em órgãos colegiados, e outras ações que
visavam melhorar a educação oferecida. No entanto, gostaríamos de voltar
nossa atenção, dentro do possível, apenas aos itens que se referem
especificamente à promoção da valorização do magistério através da formação
continuada e em serviço com o objetivo de alcançar uma autonomia escolar.
6.1.1 A formação continuada e a valorização do magistério no Documento
Base
É possível ver, no Documento Base, a formação continuada e a valorização do
magistério no sentido do fortalecimento da autonomia escolar colocadas como
um dos três princípios gerais para as políticas traçadas. Nela encontramos o
seguinte texto:
PRINCIPÍCIOS GERAIS • Formação continuada e valorização do magistério no sentido do
fortalecimento da autonomia escolar;
A autonomia, assim como a qualidade, é um termo de muitos significados. Se falarmos de autonomia na lógica do mercado, a concepção de questão democrática subjacente é aquela que se esgota na institucionalização das regras do jogo, visando à maior eficácia administrativa, ou seja, a democracia tem um caráter formal instrumental, é somente uma estratégia, um meio. Dessa forma, persiste o grande obstáculo à democracia substantiva que é a separação entre as esferas de decisão e execução, porquanto pais, alunos e profissionais da escola são desconsiderados enquanto sujeitos históricos, são tidos como meros objetos manipuláveis para se atingir as finalidades dos órgãos centrais e do diretor, tomado como preposto desses órgãos (COSTA, 1997). Nesse caso, a democracia é reduzida ao agrupamento de pessoas para a execução de tarefas triviais do cotidiano escolar que, fetichizada pelo discurso “da ação, da dinâmica, capaz de operar mudanças” em contraposição ao debate “improdutivo, moroso e gerador de conflitos”, faz com que o imediatismo das necessidades se transforme no projeto pedagógico da escola. Assim, o coletivo visto como somatório (cada qual fazendo
230
sua parte) se torna responsável pela operacionalização de um projeto decidido fora da unidade escolar e pelo qual será avaliada na dimensão da concorrência com outras unidades escolares (COSATA, 1997). A formação continuada de professores que defendemos parte da idéia que autonomia é resultado da organização e participação dos trabalhadores da escola, dos pais e dos alunos, considerados atores e autores coletivos da construção do projeto político-pedagógico. Dessa forma, a formação continuada dos professores que o Governo do Estado do Espírito Santo propõe ao mesmo tempo que seria articulada e formulada democraticamente, estaria, também, baseada nas especificidades, necessidades, contradições, dificuldades e problemas das instituições escolares a fim de superá-los (ESPÍRITO SANTO, 2003, p. 36, grifos nossos).
Fechando essa parte introdutória, encontramos a proposta assumida pelo
Governo do Estado do Espírito Santo, por meio da SEDU, de articular e
promover a formação continuada dos professores democraticamente, além de
baseá-la nas especificidades, necessidades, contradições, dificuldades e
problemas das instituições escolares a fim de superá-los. Então, até aqui já
encontramos muito pontos em comum com nossa proposta de correlacionar os
processos de formação continuada de professores em serviço e de gestão
democrática da formação docente: processos de participação ativa e
democrática dos sujeitos individuais e coletivos na tomada de decisões, no
planejamento do projeto político-pedagógico da escola, configurando-se como
um processo de gestão democrática no exercício da autonomia escolar dos
profissionais da educação.
Introduzindo a parte específica sobre a formação e a valorização do magistério
(páginas 37 a 40), são apresentadas algumas formas genéricas de formação
continuada que, grosso modo, são usadas em diversos países e no Estado,
como cursos de curta duração no interior da escola ou fora dos seus espaços,
ou cursos não-presenciais de curta ou longa duração. O Programa de
Capacitação de Professores (PROCAP), o Programa de Formação de
Alfabetizadores (PROFA) e o processo de formação para a implementação dos
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) são exemplos de programas
231
federais oferecidos como cursos pela rede estadual aos professores nos
últimos anos.
Numa breve avaliação, essa metodologia adotada foi considerada como uma
forma compartimentada de trabalho, com equipes executoras dos programas
utilizando o princípio metodológico de multiplicação de conteúdos para
profissionais, localizados em Superintendências Regionais ou escolas, em
horários extra-escolares, sem a necessária interlocução entre os programas.
Nesse sistema, programas são planejados de forma centralizada, sem a
participação da equipe técnico-pedagógica da SEDU. Assim, “[...] como
resultado desse processo, a escola, como locus de formação do cidadão, tem
sido o lugar da reprodução dos modos de fazer e pensar a educação, na
perspectiva da racionalidade técnico-instrumental” (ESPÍRITO SANTO, 2003,
p. 37).
Na seqüência da análise, o documento ainda “diz”:
A análise empreendida pela gestão atual da Secretaria de Educação entende a formação continuada dos educadores como fundamental no processo de garantia do direito à educação e na sua melhoria. Mas entende a formação continuada como uma das dimensões importantes dentro da política global de formação em serviço dos educadores, concebendo a educação como práxis social que conduz à emancipação dos profissionais, proporcionando maiores e aprofundadas reflexões sobre o campo de ação social, político e pedagógico imanente à instituição educacional. Em outras palavras, isso significa garantir, no tempo e espaço escolar, a formação dos educadores em sua coletividade, a partir de sua realidade e sem perder de vista a universalidade do contexto que está inserida, condições de estudo, diálogos, dúvidas perpassadas pela complexidade que remete a educação escolar (ESPÍRITO SANTO, 2003, p. 37, grifos nossos).
Nesse discurso, a SEDU acaba por assumir a formação dos educadores como
uma das dimensões importantes de uma política educacional, concebendo a
educação como práxis social que conduz à emancipação dos profissionais.
Também assume o compromisso de garantir tempo e espaço para formação
dentro do ambiente escolar, sob o nome de formação em serviço. E isso se
232
revelou uma grande novidade na rede estadual, um verdadeiro avanço nas
antigas reivindicações da categoria, no que se refere a formação e valorização
do magistério e às melhorias de condições de trabalho, assim como para os
processos de autonomia e emancipação docente. Diante desse
posicionamento da SEDU com relação à formação e à valorização do
magistério, fica fácil entender o nosso interesse nesse Documento Base e os
motivos que nos levaram a procurar aprofundar nosso entendimento sobre a
formação continuada de professores em serviço, pois trata-se de uma proposta
emancipatória no sentido de considerar a necessidade de, diante dos enormes
desafios que se apresentavam na realidade escolar de nosso Estado e diante
da impossibilidade de resolvê-los sozinho, na falta de uma “receita pronta” que
desse conta dessa complexidade, resolveu-se democratizar os processos,
buscar alianças e dialogar com a comunidade escolar.
Mais à frente, o texto trata das transformações no mundo do trabalho e das
concorrências entre racionalidades sociais, das novas tecnologias e suas
implicações na educação e no perfil dos profissionais. Levanta questões
importantíssimas, tais como: Que formação devemos implementar? Que
professores queremos formar? O que deve subsidiar o debate sobre o tema da
formação de professores no cenário político-educacional?
De maneira clara, o texto dispara:
Pensamos a formação na sua ampla dimensão, em sua relação com o tempo, que exige paciência no processo e, progressivamente, introduz o profissional no passado de sua cultura, despertando-o para a realidade presente. Enfim, a formação pressupõe o desenvolvimento de uma obra apreendida pela interrogação, pela reflexão, pela crítica radical (no sentido de ir à raiz do problema) e de conjunto. Portanto, não podemos mais conceber a formação dos educadores de forma fragmentada, distribuídas em “pacotes” entregues de forma centralizada. Ao contrário, os processos de formação inicial e continuada devem centrar-se em um desenvolvimento profissional que envolva a construção e a valorização de uma identidade epistemológica (que legitima a docência como campo de conhecimentos específicos) e uma identidade profissional (campo de intervenção profissional) para que o trabalho docente seja avaliado política e socialmente, de modo a contribuir para o desenvolvimento e transformações das práticas pedagógicas, das condições de trabalho e do desenvolvimento
233
pessoal e profissional do professor (ESPÍRITO SANTO, 2003, p. 38, grifos nossos).
O documento assume a posição defendida pela pesquisa acadêmica quanto à
rejeição da idéia de cursos pontuais para a formação docente, já que não se
resume aos pacotes entregues de forma centralizada, planejados de forma
descontextualizada e que a fragmentam. Nesse documento, a formação de
professores é abordada como um processo de reflexão de dimensão individual
e coletiva que deve centrar-se no desenvolvimento profissional, exigindo tempo
e paciência na construção de identidades (epistemológica e profissional).
No tocante à situação brasileira, o Documento Base traz alguns aspectos
resultantes do processo de reforma desenvolvido na década de 1990. Dentre
os muitos paradigmas que dominam os debates acadêmicos e a prática
educativa, destaca-se a importância de quatro perspectivas, conforme o
trabalho desenvolvido por Carvalho (2002), que intermedeiam a prática
docente, muitas vezes sem um conhecimento sobre suas implicações sociais e
pedagógicas. As perspectivas são as seguintes: 1) o professor como
profissional competente; 2) o professor como profissional reflexivo; 3) o
professor como profissional orgânico-crítico; e 4) o professor como profissional
pós-crítico. Passa-se, então, a discorrer sobre cada perspectiva.
Assim, o Documento Base segue afirmando a necessidade de se conhecerem
as tendências que pensam o professor como um profissional em formação,
para o encaminhamento de uma proposta política de formação que valorize os
sujeitos nela envolvidos: o educador e o aluno. Outra necessidade é discutir o
modelo sociopolítico e econômico adotado no Brasil afirma:
O professor, como qualquer dos cidadãos de uma comunidade, está inserido numa formação histórico-social que ele engendra, mas é, também, por ela engendrado. Ressuscitar ou deixar morrer a sabedoria, a criação, o projeto, a alegria na escola envolve a omissão à vivência participativa do professor e, em qualquer dos casos, à sua ação política (CARVALHO, 2002, apud ESPÍRITO SANTO, 2003, p. 39).
234
Então, além de lembrar que a formação inicial de professores no Espírito Santo
ainda é um desafio, o Documento Base reafirma o professor como um
profissional em desenvolvimento, exigindo, dessa forma, um investimento do e
no sujeito docente, com direito ao trabalho responsável e consciente, sendo
necessário entender a identidade profissional como um processo permeado por
conflitos e por construções individuais e coletivas, e a escola como um centro
de formação para todos os que nela convivem, incluindo os professores. Para
isso, a escola deve ser vista como um tempo a não desperdiçar, tempo de
curiosidade, a desenvolver capacidades, como a memória, a observação, a
convivência e a cooperação, organizada de forma a viver em conjunto o seu
projeto de formação e o enfrentamento dos desafios historicamente
estabelecidos.
Essas são as sugestões e diretrizes, contidas na página 40 do Documento
Base, com relação à formação e valorização do magistério:
• Garantia e valorização do espaço e tempo no interior da escola para a prática da formação em serviço;
• Difundir a relação professor-professor, isto é, incentivar o trabalho coletivo de forma que os professores adotem um perfil de gestores escolares;
• Utilizar materiais como do PROCAP, PCN, PROFA, PAA, TV ESCOLA para formação em serviço dos professores;
• Formação continuada para intercâmbio de experiências coletivas e individuais;
• Incentivo ao desenvolvimento de pesquisa; • Estabelecer parceria com a Universidade Federal do Espírito
Santo para desenvolvimento de formação dos professores; • Difundir as inovações tecnológicas como ferramenta para o
desenvolvimento do trabalho docente; • Ampliar e melhorar a qualidade das bibliotecas escolares como
mecanismo de desenvolvimento da pesquisa e da leitura; • Concurso público em 2004. (ESPÍRITO SANTO, 2003, p. 40,
grifos nossos).
Diante do exposto, podemos destacar algumas impressões sobre os
pressupostos em que se firmam o texto e as sugestões e diretrizes com
relação à formação e à valorização do magistério no Documento Base que
podem auxiliar-nos para pensar a correlação entre a formação continuada de
235
professores em serviço e os processos de gestão democrática da formação
docente:
• “formação e valorização do magistério”, como idéias interligadas
intimamente, numa complementaridade de ações, onde a formação
inicial e continuada devem centrar-se em um desenvolvimento
profissional que envolva a construção e a valorização de uma identidade
epistemológica (que legitima a docência como campo de conhecimentos
específicos) e uma identidade profissional (campo de intervenção
profissional);
• a formação continuada como uma das dimensões importantes dentro
da política global de formação em serviço dos educadores, concebendo
a educação como práxis social que conduz à emancipação dos
profissionais, proporcionando maiores e aprofundadas reflexões sobre o
campo de ação social, político e pedagógico imanente à instituição
educacional;
• comunidade escolar formada por sujeitos históricos com autonomia para
organizar e participar das decisões, não sendo considerados apenas
meros executores de planos elaborados fora do ambiente escolar;
• construção coletiva e democrática do projeto político-pedagógico da
escola pelos membros da comunidade escolar, observando-se as
especificidades, necessidades, contradições, dificuldades e problemas
das instituições escolares a fim de superá-los;
• professores e alunos como sujeitos praticantes de sua própria formação;
• escola como locus de formação de professores e alunos;
• ampliação da idéia de formação como processo e desenvolvimento de
uma obra apreendida pela interrogação, pela reflexão, pela crítica
radical (no sentido de ir à raiz do problema) e de conjunto;
• a necessidade de investimento no e do sujeito em formação;
• formação docente para autonomia escolar.
236
O Documento Base caminha na direção de reconhecer que a formação do
professor tem uma dimensão político-pedagógica e instituir o professor como
um profissional capaz de atuar, decidir, intervir, gerir os processos de
formação. Nesse sentido, os processos de formação são, também, processos
de formação/gestão de subjetividades individuais e coletivas, que, dentro de
um projeto emancipatório, requer sejam “rebeldes” (SANTOS, 2005a), que
lutem contra a dominação, isto é, que caminhem na trajetória da colonização
para a solidariedade, que produzam conhecimento-emancipação, contribuindo,
assim, para o desenvolvimento e as transformações desejadas no campo
educacional de nosso Estado.
Pode-se dizer que, em termos de proposição, o Documento Base possibilita a
correlação entre a formação continuada em serviço e o processo de gestão
democrática da formação docente, sendo assim potencialmente emancipador
como proposta.
6.2 LIVRO COLETÂNEA DE TEXTOS “POLÍTICA EDUCACIONAL DO
ESTADO DO ESPÍRITO SANTO – A EDUCAÇÃO É UM DIREITO”
Esse segundo documento denominado Livro de Coletânea de Textos “Política
Educacional do Estado do Espírito Santo: A Educação é um Direito”
(ESPÍRITO SANTO, 2004, v. 1) resultou da sistematização das idéias
debatidas pelos professores e outros membros da comunidade escolar nos
seminários, em especial no Seminário Estadual, realizado no Teatro da UFES,
em Vitória-ES, em setembro de 2003.
Foi elaborado após a realização dos Seminários Regionais (Norte e Sul) e do
Seminário Estadual (Vitória-ES) e agrupou dez artigos correspondentes à
sistematização das discussões de cada GT, das quais abordaremos apenas a
referente à Formação e Valorização do Magistério, que se encontra na página
237
55. Esse GT foi coordenado pela professora doutora Janete Magalhães
Carvalho, que é, também, a autora do artigo.
O artigo começa explicando a participação dos professores no GT de
Formação e Valorização do Magistério que envolveu inicialmente 60
delegados. Esse número, no entanto, aumentou para 330 participantes, dos
quais 297 estavam inscritos. O GT foi constituído por pedagogos, diretores,
professores de vários níveis e áreas de conhecimento, representantes do
sindicato dos professores, professores universitários, superintendentes e
técnicos da SEDU/ES. Logo após, explicita a metodologia e o objetivo do artigo
produzido:
Visando a sistematizar, aprofundar e complementar a discussão a partir do Documento-Base (Espírito Santo, 2003) e das propostas apresentadas nos Seminários Regionais, a metodologia envolveu a condução dos trabalhos, buscando dar voz aos educadores e, nesse sentido, entremeando a fala da coordenação dos trabalhos com a fala dos participantes em três momentos: apresentação de pressupostos político-epistemológicos sobre a temática; síntese comparativa das propostas dos Seminários Regionais, considerando os três espaços/tempos em que foram realizados; síntese dos posicionamentos no Seminário Estadual (CARVALHO, 2004, p. 56).
O artigo estruturou-se em três movimentos. No “1º Movimento: Dos
Pressupostos Político-Pedagógicos”, a autora fala da enorme pressão social
sobre a educação e sobre os professores, atribuindo-lhes uma
responsabilidade e um papel central na dinâmica da sociedade tecnocrática
competitiva, cobrando-lhes a formação de pessoas para se integrar às
exigências dessa sociedade. Acrescenta ainda que, no Brasil, esse sentido e
significado devem ser dados pelo compromisso com os milhões de crianças
que se encontram fora da escola, que evadem, assim como os jovens e adultos
que não tiveram escolarização formal ou foram excluídos da escola.
Continua sua exposição, apresentando dados oficiais diversos de um quadro
educacional no Brasil, declarando que
238
[...] qualquer proposição de formação e valorização do magistério, para não soar ingênua, passa pela discussão do modelo sociopolítico e econômico adotado em sua interface com o capitalismo neoliberal do mundo globalizado, assim como envolve a discussão paradigmática da educação em sua interface com as tendências e/ou perspectivas teórico-práticas que fundamentam as propostas dirigidas à formação e valorização do profissional da educação (CARVALHO, 2004. p. 58).
Também retoma a discussão sobre as diferentes perspectivas da profissão
docente na atualidade e reafirma que à medida que os professores deixam de
ser “[...] responsáveis pela produção dos objetivos, conteúdos, métodos de seu
trabalho (transferindo para equipes técnicas, livros didáticos e outros), ocorre
um estranhamento entre os professores e a sua produção/trabalho”
(CARVALHO, 2004, p. 64). Como conseqüência desses processos, tanto
professores quanto alunos tendem a ser consumidores e/ou usuários de
saberes e lógicas alienígenas para eles.
Mas, como isso não ocorre de modo sempre passivo, supõe-se que os
professores e alunos, como usuários dessa tecnocracia escolar, a subvertam
por meio de processos de bricolagem, não a rejeitando diretamente, mas
utilizando-a para outros fins segundo seus interesses próprios e suas próprias
regras. É importante que se descubra os procedimentos, as bases, os efeitos,
as possibilidades (CERTEAU, 2005, p. 40), não para se estabelecerem novos
processos de dominação, mas para que as proposições contribuam para a
emancipação dos que as utilizam.
No entanto, ainda segundo a autora, a escola moderna assumiu uma forma de
organização que, mesmo não sendo a única, foi a que historicamente lhe foi
dada: baseada em ritos, exercícios, invocação de autoridade, silêncio e
imobilidade, relações impessoais, formais e burocráticas que despersonalizam
os papéis e/os atores sociais, produzindo alienação do professor e do aluno
com relação aos fins de seu trabalho.
239
Some-se a isso a competição que é estimulada entre professores por títulos;
entre alunos, por notas; havendo uma socialização escolar baseada
sistematicamente no individualismo, na competição e na falta de solidariedade,
o que implica uma especialização estreita do acadêmico-profissional como um
obstáculo quase intransponível para a percepção e compreensão do conjunto
dos processos sociais e produtivos.
Outro ponto levantado pela autora refere-se ao papel da escola como lugar de
cisão entre trabalho mental e manual, teoria e prática; entre planejamento e
execução, seriação e compartimentação do conhecimento em disciplinas
estanques; ausência de interdisciplinaridade, transversalidades entre saberes;
falso generalismo da formação de professores (soma de fragmentos);
individualismo no trabalho e outros, evidenciando que a escola da modernidade
se efetiva na dicotomia entre lugares da criação e os espaços/tempos da
criação e da ação política.
A autora destaca que, mesmo em face de um atomismo social (o indivíduo
como unidade elementar da sociedade), que durante três séculos serviu como
postulado para a análise da sociedade, a escola estranhamente consegue não
levar em consideração o indivíduo, mas o corpo social anônimo. Assim, “[...]
professores são tratados e tratam seus alunos a partir não de uma
individualidade e/ou características próprias (‘lugar próprio’), mas a partir de um
coletivo anônimo e/ou da abstração de um aluno ‘idealizado’” (CARVALHO,
2004, p. 66).
Porém, essa situação começa a ser alterada quando o “homem ordinário” se torna o narrador (voz), quando redefine o lugar (comum) do discurso e o espaço (anônimo) de seu desenvolvimento. Dessa forma, se o lugar-comum remete para um espaço anônimo, o “lugar próprio” de criação/autonomia individualizada deve remeter aos espaços/tempos de criação coletiva/autonomia política. [...] A dicotomia entre o fazer e o pensar deve, portanto, ser substituída pela função assumida pelo professor de pensar e fazer coletivamente o cotidiano escolar (CARVALHO, 2004, p. 67).
240
Segundo a autora, estes seriam alguns dos pressupostos subjacentes a essa
análise:
• a relação entre prática e teoria, teoria e prática; • a superação das sombras que encobrem as condições sociais
concretas de produção do conhecimento da escola e da docência;
• o fazer dialogar conhecimentos formais e atividades acadêmico-científicas com a experiência do trabalho educativo produzido nas escolas de ensino fundamental e médio;
• o confronto, porque igualmente fundadas em razão social, da visões de mundo de professores das escolas de ensino fundamental e médio e da produção acadêmico-científica na área;
• a superação da dificuldade representada pela visão pré-formada da escola nas disciplinas dos cursos de formação de educadores, calcada nos modelos teóricos explicativos dominantes sobre a realidade escolar e/ou uma ‘[...] compreensão pré-construída’ (CERTEAU, 2001a);
• a busca na prática do princípio de que, na vivência das relações sociais “com” os sujeitos do cotidiano escolar, significados e sentidos sobre o trabalho docente vão sendo construídos pelos educadores em formação, bem como saberes conjecturais, nascidos do fazer, vão sendo apreendidos e reelaborados à luz da formação teórica e da formação técnica;
• a reflexão coletiva sobre os lugares sociais ocupados nas relações que se produzem no cotidiano escolar;
• o questionamento do não-lugar ocupado pelos educadores (AUGÉ, 1994) e a busca de construção desse “lugar” nas relações de que deverão participar;
• a problematização, no coletivo escolar, das trajetórias dos educadores nesse processo de construção de “algum lugar” para “espaços/tempos” coletivamente compartilhados;
• a visão de que trabalhar na escola implica usar estratégias/táticas de negociação de um lugar e a consideração que ocupar algum lugar implica enxergar a possibilidade dos percursos que nele se efetuaram;
• a percepção de que a leitura não idealizada da escola, alicerçada em formação dos fundamentos do conhecimento, em sua relação com o ensino e a pesquisa, juntamente com a negociação dos espaços e dos modos de participação, têm auxiliado na transformação do cotidiano escolar (CARVALHO, 2004, p. 67-69).
Podemos dizer que esses pressupostos, de uma maneira geral, são
compatíveis com a correlação que estamos investigando, porque falam da
possibilidade de uma reflexão crítica, coletiva e compartilhada pelos
professores no cotidiano escolar sobre suas práticas e trajetórias, e que
241
relacionam a teoria e a prática e o local com o global. Nesse sentido, falam da
possibilidade de ação política dos professores sobre sua ação e formação, num
processo de gestão que, se estabelecido como democrático, tem grande
potencial emancipador.
A autora conclui nesse primeiro movimento:
Evidentemente, os pressupostos destacados implicam uma forma de representar o conhecimento, a prática pedagógica e o processo de formação e valorização do magistério que se traduz nos discursos práticos de educadores em sua relação com complexas redes socais, econômicas e culturais e/ou com as condições concretas de trabalho e remuneração. Segundo Nunes (2002), a perspectiva de formação e valorização do professor equivale ao processo de ressignificação do conhecimento e das práticas de formação, a partir das condições dos contextos específicos de sua realização, de um conhecimento situado nos espaços/tempos de formação inicial, formação continuada e de prática profissional. Assim, a perspectiva de formação e valorização do magistério fundamenta-se, sobretudo, numa dimensão política e epistemológica que propõe a ressignificação de formas de poderes e saberes. Isso quer dizer da necessidade de que o educador, como coletivo organizado, se assuma como agente pedagógico e político. Para Santos (1989), esse campo de possibilidade caracteriza-se por determinações teórico-científicas e pela incessante interrogação sobre a relação entre as condições teórico-científicas e as condições culturais, sociais e econômicas da formação e valorização do magistério como tal (CARVALHO, 2004, p. 69).
O “2º Movimento: Das Vozes dos Educadores” compreendeu as falas dos
educadores e a sistematização delas em grupos temáticos a partir das
sugestões/diretrizes apresentadas no Documento Base (ESPÍRITO SANTO,
2003, p. 40). Notamos que transcrevê-las na íntegra no corpo do trabalho
resultaria em uma citação de tamanho gigantesco. Por isso, optamos por
relatar algumas conclusões da autora sobre as falas nesse movimento. Uma
delas diz que se observou um entrelaçamento entre propostas relativas às
condições consideradas necessárias para desencadear os processos de
formação e propostas dirigidas aos modos de efetivar essa formação.
242
Apesar do agrupamento em unidades e subunidades temáticas básicas, elas não se apresentaram com características de uma categorização mutuamente exclusiva. Pelo contrário, as propostas relativas à política salarial e às condições de trabalho foram recorrentes, não deixando, porém, de fora dois pontos básicos: a) a importância e a necessidade de processos formativos; b) a indicação da perspectiva de processos de formação continuada combinada com processos de reflexão e pesquisa, coletivamente orientados, envolvendo multimeios e/ou multiplicidade de formas e tendo como lócus privilegiado o espaço e tempo escolar (CARVALHO, 2004, p. 77-78, grifos nossos).
Essas conclusões são totalmente compatíveis com a nossa investigação,
sendo necessário apenas transcrevê-las.
Carvalho (2004) destaca que, no debate coletivo do GT “Formação e
Valorização do Magistério”, ficou clara a centralidade da dimensão política, isto
é, “[...] as discussões e as propostas decorrentes pareceram implicar a
subordinação da questão pedagógica à política ou, dito de outra forma, da
questão da formação à questão da política de valorização do magistério”
(CARVALHO, 2004, p. 78). Elas foram enfocadas em três vertentes: 1 –
condições de trabalho; 2 – carreira; 3 – política de gestão da educação.
Com relação às condições de trabalho, foram apresentadas as seguintes
propostas:
• diminuição do número de alunos em sala de aula; • ampliação da carga horária para planejamento e formação
continuada; • manutenção do regime de 25 horas semanais, com 16 horas-
aula, 3 horas para planejamento e 4 horas para formação continuada do/no cotidiano escolar;
• implementação de espaços/tempos para debates e reflexões dos profissionais da educação;
• superação das dificuldades para o trabalho coletivo do/no cotidiano escolar, removendo as exigências burocráticas do sistema educacional – ‘É preciso haver uma modificação do Sistema em relação às cobranças que são feitas ao professor [...] (ESPÍRITO SANTO, 2003, apud CARVALHO, 2004, p. 78-79, grifos nossos).
243
Nesse sentido, é possível concluir que, embora a proposição tenha sido feita
por iniciativa da SEDU, era também desejo do professor estabelecer condições
de trabalho que favorecessem as reuniões de formação continuada em serviço,
dada a relevância dos processos formativos de que se tem necessidade.
Também fica clara a necessidade de a SEDU, como órgão propositor e
coordenador da política educacional, providenciar as devidas condições para
que aconteçam.
Com respeito à carreira, as propostas foram estas:
• valorização do magistério como forma de melhorar a auto- estima do professor;
• inclusão do plano de carreira e de outras formas de avanço, com destaque para a valorização do processo de atualização do professor;
• oferta de formação continuada para todos os profissionais da educação;
• oferta de licença remunerada e bolsa de estudos para realização de cursos de mestrado e doutorado (CARVALHO, 2004, p. 79-80, grifos nossos).
Os professores reafirmam a necessidade e a vontade de participarem de
processos de “atualização” e de formação continuada. Poderíamos concluir
que esse posicionamento traduz a postura ética e política a que se referia o
PNE como um compromisso que se espera do professor na parceria para a
melhoria da qualidade da educação?
Com relação à política de gestão de educação, as propostas foram as
seguintes:
• concurso público de imediato e promoção permanente de
concurso público; • chamada imediata dos aprovados no concurso de 2002; • facilitação do acesso do sindicato à SEDU em audiências com o
Secretário de Educação; • valorização do diálogo entre Secretário de Educação e o
Conselho do Fundo (FUNDEF), visando à garantia e ao respeito às leis do Fundo;
• discussão com o sindicato para definição da correção das perdas salariais;
• apresentação com urgência do cronograma de pagamento dos atrasados, enquadramento e mudança de nível desde 1999;
244
• discussão com o sindicato sobre o resultado/qualidade dos programas de formação continuada já implementados pela SEDU – PROCAP, PROGESTÃO, PROFA, etc.;
• diminuição do autoritarismo de alguns superintendentes municipais que inviabilizam a possibilidade de diálogo entre os professores;
• eliminação da política partidária na educação para melhoria da implementação da política da educação do Estado (CARVALHO, 2004, p. 78-80, grifos nossos).
Outras falas foram registradas quanto à desvalorização do magistério. De
modo geral, expressam insatisfação com relação ao sucateamento das escolas
e às condições precárias de trabalho; fragilidade emocional de alguns
professores em decorrência da violência e do “stress” da jornada tripla de
trabalho; baixos salários; desprestígio como cidadão crítico e atuante na
sociedade, conseqüência de como são tratadas as questões da educação;
descontentamento com o comportamento de autoridades que não dão
continuidade à política de valorização da classe docente.
É preciso mencionar o desabafo dos professores ao responsabilizar a
administração pública pela descontinuidade nos processos de gestão
democrática e no desenvolvimento de políticas públicas na educação. O
percurso que temos feito até aqui nos tem permitido perceber possibilidades de
gestão mais e menos democráticas da educação, o que revela a importância
de conhecermos, como profissionais da educação, os “mapas” e as
possibilidades de ação democrática sobre a realidade, sempre na busca por
emancipação, sem ferir a lei e os direitos dos outros, em especial os dos
alunos, com muitas condições para o estabelecimento de processos
democráticos de formação continuada.
Na parte referente ao “3º Movimento: Da Tessitura entre os Pressupostos e as
Vozes dos Educadores”, a autora faz um trabalho de articulação entre os
pressupostos e as vozes dos educadores, começando por uma rápida análise
do momento atual de transformações em nível mundial representadas pela
globalização e pelo projeto neoliberal, que provocam reconfigurações no
245
campo educacional em busca de sua hegemonia sobre outras ideologias. Isso
se dá em um movimento contraditório que enaltece o potencial da educação e,
ao mesmo temo, retira de seu campo e dos educadores as condições
concretas de seu potencial transformador.
No entanto, como a globalização não é um movimento acabado, mas em
curso, ressalte-se a importância desse momento vivido no estado do Espírito
Santo, em que a vez e a voz dos atores sociais, no caso dos professores da
rede, puderam intervir na lógica que pretende determinar as políticas
educacionais. Torna-se importante que haja novos estudos, debates,
articulações, negociações que visem a uma proposição para formação e
valorização do magistério e conseqüente melhoria da educação pública do
Estado.
Destacam-se, nessa análise, com respeito à atual discussão paradigmática do professor como profissional, as vozes dos educadores dirigidas predominantemente ao professor como intelectual orgânico-crítico, visto seus enunciados remeterem à perspectiva da necessidade do desenvolvimento de uma linguagem pública voltada para o desenvolvimento de uma política de luta democrática (ocupando os espaços e os tempos e apontando alternativas) que vá além da crítica, redefinindo-se, propositivamente, dentro e fora das escolas, em união com os movimentos sociais organizados ou em organização (CARVALHO, 2004, p. 84-85).
A autora, no entanto, aponta algumas contradições:
a) Quanto ao perfil dos professores como gestores:
[...] as falas dos educadores, ao mesmo tempo em que afirmam a necessidade de incentivação do trabalho coletivo de forma que os professores adotem um perfil de gestores escolares e a necessidade de valorização do professor e de sua autonomia, transferem esse potencial de ação para o outro, no caso, o pedagogo e o especialista [...] a questão da autonomia política e pedagógica aparece ao mesmo tempo como um reivindicação e uma contradição, ou seja, ainda posta em xeque, visto que permanece na dependência de agentes formativos externos que propiciem aos professores instrumentos teóricos e práticos, pedagógicos e políticos, para o seu saber, fazer e poder (CARVALHO, 2004, p. 85).
246
Podemos supor, pela conclusão da autora, que, embora os professores
almejem assumir um perfil de gestor de sua própria prática e formação ainda
não conseguem visualizar-se assim e acabam por “perder de vista” a condição
de agentes formadores de si próprios. Além disso, não percebem a dimensão
ativa que têm sobre os próprios processos de formação.
b) Quanto à utilização de materiais e/ou pacotes de ensino direcionados à
formação continuada:
[...] também parecem transferir para as equipes técnicas a responsabilidade pela produção dos objetivos, conteúdos e métodos de seu trabalho, ou seja, parecem considerar positivo o uso de materiais e a manipulação da representação expressa nos pacotes de ensino posicionando como consumidores [...] Não o fazem, porém, de modo inteiramente passivo, visto que acrescem à qualidade do “pedagogicamente rico” a necessidade de serem contextualizados, ampliados a associados a outras fontes e/ou materiais pedagógicos (CARVALHO, 2004, p. 86).
Continuando nossa reflexão sobre as conclusões da autora, argumentamos
que, como não se vêem na condição de autores que teorizam suas
práticas/teorias no cotidiano escolar, os professores “necessitam” ser
intermediados por um “discurso competente” (científico?) para a solução de
seus problemas. Essas soluções estariam nos “profissionais competentes” que
elaboram propostas, cursos a priori e descontextualizados, no sentido de terem
sido planejadas apesar da realidade, projetos, dificuldades e potencialidades
locais. É sempre necessário ressaltar a condição de usuários desses sujeitos
praticantes do cotidiano escolar.
c) Quanto à forma de organização da escola moderna:
As falas conduzem, ainda, de forma intensa, ao “não-lugar” praticado e ao individualismo do “lugar’ da autoria marcada, assim como à dicotomia entre os lugares marcados e os espaços e tempos da criação e ação coletiva. [...] Como dito, a visão de especialização estreita e restrita ao acadêmico confere ao conjunto das vozes dos profissionais da educação uma visão estratificada sobre a instituição escolar com cisão entre teoria e prática, adoção de linguagens distintas e especializadas, com possíveis repercussões entre
247
planejamento e execução. Por outro lado, a este atomismo que produz um coletivo anônimo, porquanto individualizado, contrapõe-se a visão da necessidade da ultrapassagem do espaço anônimo ou de autoria marcada para espaços e tempos de criação coletiva e autonomia política, por meio de proposições que reivindicam garantia de espaço e tempo para o trabalho coletivo, com centralidade dos processos desenvolvidos na formação em serviço e/ou no espaço escolar; incentivação à participação de todos os professores nos processos formativos; promoção de formação continuada para intercâmbio de experiências coletivas, etc. (CARVALHO, 2004, p. 87-88).
Como não conseguem manter firme a visão de que são sujeitos praticantes
desse cotidiano, admite-se o discurso competente (científico?) e
descontextualizado como guia inquestionável para a solução de problemas e
proposição de ações, em que os professores são os executores, assim como
se mantém a noção científica da gestão da escola como lugar de execução.
Nesse sentido, são processos que contribuem para a desmobilização da ação
política e coletiva desses autores sobre suas trajetórias formativas e de gestão
criativa e coletiva de suas subjetividades.
A autora inicia sua conclusão dizendo que, de modo geral, “[...] sobressai nas
vozes a importância de o “homem ordinário” recuperar a voz, redefinir o seu
lugar, o espaço e tempo de seu desenvolvimento inserido no coletivo dos
profissionais da educação” (CARVALHO, 2004, p. 88).
Ela também enfatiza a necessidade de maior compromisso das autoridades em
dar continuidade às ações que buscam superar as sombras que encobrem as
condições de produção do conhecimento nas escolas. Também destaca as
propostas dirigidas ao incremento do diálogo entre conhecimentos formais e
atividades acadêmico-científicas com o saber prático dos educadores, como
registro de atividades escolares, realização de congressos e resguardo da
memória das experiências pedagógicas do Estado.
Chega, então a importantes conclusões:
No conjunto das proposições, observa-se, apesar das contradições apontadas, a predominância de uma perspectiva que enfatiza a
248
preocupação com o fomento do diálogo entre as representações e/ou visões de mundo dos professores e a produção acadêmico-científica na área; o princípio de que é na vivência das relações sociais que saberes experienciais são reelaborados à luz de formação teórico-técnica; a importância da reflexão coletiva sobre os lugares sociais ocupados nas relações que se produzem no coletivo escolar; o questionamento do “não-lugar” ocupado pelos educadores; a necessidade de construção coletiva de “algum lugar” com evolução para espaços e tempos coletivamente compartilhados; a visão de que uma leitura não idealizada da escola combinada com tática/estratégias de negociação associada a uma formação ampliada são vitais para a transformação da realidade escolar; a clareza de que a formação do profissional da educação não se dá no vazio, mas no âmbito das condições concretas de trabalho e remuneração, e que formar o magistério significa valorizá-lo em termos de carreira, condições de trabalho e gestão coletiva da educação pública estadual (CARVALHO, 2004, p. 89)
A autora encerra o artigo com uma fala que parabeniza a iniciativa de se abrir
espaço para debate e reflexão, e destaca a presença de um princípio básico ao
longo do trabalho, que parece traduzir-se em quatro eixos, a saber:
Valorizar o magistério possibilitando sua participação no processo de gestão política do sistema estadual de educação e garantindo espaço e tempo para sua formação continuada por meio da oferta adequada de condições de trabalho e remuneração. Como eixos do processo, destacam-se: • geração, pelos educadores, de processos de reflexão, ação e
expressão no coletivo do cotidiano escolar em sua concreticidade (projetos e ações de desenvolvimento profissional e de qualidade do ensinar/aprender);
• criação de pólos de apoio aos profissionais da educação; • criação de uma comunidade em rede, entre educadores, para
troca e disseminação de conhecimentos; • criação de parceria SEDU/UFES e/ou ... para formação
continuada dos profissionais da educação, com objetivos e metodologia voltados por escola, assim como a seleção dos participantes (programa/s de formação continuada com inserção por escola e por representação das áreas de ciências humanas, ciências naturais e matemática, linguagens e códigos) (CARVALHO, 2004, p. 90, grifos nossos).
A conclusão a que chegamos, ao analisar esses importantes documentos que
propõem políticas públicas educacionais para a formação de professores em
249
nosso Estado, está relacionada às teses de Santos quanto às experiências
democráticas e a formação de subjetividades democráticas. Como esse autor
defende, os processos formativos englobam a formação de nossas redes de
subjetividades. Suas teses levam-nos a supor que subjetividades democráticas
têm mais chances de se formarem em contato com experiências e práticas
mais democráticas. Nesse sentido, faz-se necessário, como propõe Oliveira
(2006), que exercitemos cada vez mais a democracia como princípio
organizador de nossas práticas individuais e coletivas nos diversos espaços
tempos formativos de nossas redes de subjetividades, dentre eles a escola, a
educação.
As falas dos professores, sistematizadas pela autora, revelam contradições
que possivelmente só serão superadas com contínuos processos de gestão
democrática na educação, ou seja, com o contínuo contato com políticas
públicas educacionais mais democráticas e democratizantes de nossas redes
de subjetividades.
A proposta de formação continuada de professores em serviço, com a
formação de grupos de professores, comunidade em rede, entre educadores,
para troca e disseminação de conhecimentos, com a geração de processos de
reflexão, ação e expressão no coletivo do cotidiano escolar, com objetivos e
metodologia voltados por escola e em torno de projetos, problemas e soluções
locais, aproxima-se, portanto, dessa proposição, no sentido de caminhar para a
formação de comunidades interpretativas, que são potencialmente produtoras
do conhecimento-emancipação. Nesse sentido, é um espaço tempo propício ao
exercício da democracia, da solidariedade, da crítica, das relações entre o local
e o global, enfim, espaço tempo de autonomia e emancipação docente. Nessa
proposição política para a implementação de políticas públicas educacionais,
encontramos várias evidências que nos permitem correlacionar a formação
continuada de professores em serviço com processos de gestão democrática
da formação docente.
250
No entanto, se não há democracia sem condições de democracia, isso nos
remete à necessidade de democratização das relações sociais em todos os
espaços estruturais e, se a democratização das práticas sociais não é
suficiente, se o conhecimento que as orienta não é democrático, e essas teses
de Santos caminham num círculo contínuo, torna-se importante concentrar
nossos esforços na busca por condições que sustentem essas alternativas
mais democráticas de formação. Como temos visto, essas condições são
epistemológicas e políticas. Assim, para que as políticas educacionais de
formação de professores sejam mais democráticas e democratizantes, é
necessário que nossos esforços sejam conjuntos, recíprocos, cuidadosos e
éticos, para que possamos permanecer em caminhos cada vez mais
democráticos e democratizados, que mantenham abertas as possibilidades
reais dos professores que as utilizarão, respeitando-lhes saberes e
subjetividades, de modo a se movimentarem na trajetória da colonização para
a solidariedade, tal qual em comunidades interpretativas (SANTOS, 2005a),
argumentativas, de diálogo entre os diferentes na horizontalidade de relações
que buscam emancipação, que nos levem com mais segurança e respeito ao
outro, como propõe esse autor, a um conhecimento prudente e uma vida
decente.
251
7 CONSIDERAÇÃOES FINAIS
Ao final dessa caminhada iniciada em 2003, na busca por melhor compreender
o que significaria a formação continuada de professores em serviço, e agora
acrescentando a ela a suposição de que se pode configurar como um processo
de gestão democrática da formação docente, chegamos cansados, mas
contentes. Cansados porque, como diz José Pacheco (2008), educador
português, “[...] é fácil conceber e começar projectos. Difícil é mantê-los sem
que degradem”. Continuando seu raciocínio, esse educador vai dizer que, por
isso, todos os projetos estão no “ano zero”, no tempo de recomeçar, porque o
projeto humano é sempre um ato coletivo. E essa é a angústia daqueles que
querem sempre acertar e que acreditam em possibilidades sempre melhores
de se pensar em escolas que a todos garantam o acesso e as condições de
sucesso, dentre eles ao professor.
Construir uma escola democrática será sempre preciso, visto que não são
muitos os caminhos para a emancipação social. E porque os processos de
dominação se reinventam, também é preciso pensar a reinvenção da
emancipação, como nos convida Boaventura de Souza Santos. Consideramos,
nesse sentido, que são válidas as “[...] táticas emancipatórias que trazem para
o cotidiano usos astuciosos das regras estabelecidas, reorganizando-as de
acordo com as possibilidades inscritas em cada situação” (OLIVEIRA, 2006, p.
147). Esses usos, no entanto, precisam ganhar contorno coletivo como forma
de proteção até contra nós mesmos, no reanimar um, no chamar a atenção de
outro, no confortar e nos confrontarmos cordialmente, num caminhar que não
se faz sozinho, de nos formar e formarmos democraticamente.
Nesse sentido, não é pensar a escola como redentora, como aquela que vai
resolver todos os problemas de nossa sociedade desigual e diversa; é pensar
que ela pode ser um ponto de encontro de diálogos solidários e compartilhados
entre os saberes e os fazeres, entre o local e o global, entre os diversos
espaços tempos que influenciam a formação de nossas subjetividades, num
252
projeto coletivo, que rompe com a solidão que às vezes assola o professor. É
pensarmos a escola como espaço tempo formativo também do professor, que
se forma no cotidiano apesar dos cursos e percursos, pois a aprendizagem não
se prende em lugar algum. Pensar a escola assim é pensar em democratizar o
saber, as relações, as subjetividades, é pensar a possibilidade de que nela se
estabeleçam comunidades interpretativas, potencialmente produtoras do
conhecimento-emancipação, se considerarmos que o professor pode se utilizar
delas para encontros, estudos, trocas de experiências, de planejamentos e
lazer. Basta ter condição.
No entanto, se não há democracia sem condições de democracia, a
democratização das relações e das práticas sociais em todos os espaços
estruturais não é suficiente, se o conhecimento que as orienta não é
democrático, e se essas teses de Santos caminham num círculo contínuo,
torna-se importante concentrar nossos esforços na busca por condições que
sustentem essas alternativas mais democráticas de formação.
No que se refere ao proposto para formação continuada em serviço, chegamos
a uma conclusão relacionada às teses de Santos quanto às experiências
democráticas e a formação de subjetividades democráticas. Como esse autor
defende, os processos formativos englobam a formação de nossas redes de
subjetividades. Suas teses levam-nos a supor que subjetividades democráticas
têm mais chances de se formarem em contato com experiências e práticas
mais democráticas. Nesse sentido, faz-se necessário, como propõe Oliveira
(2006) que exercitemos cada vez mais a democracia como princípio
organizador de nossas práticas individuais e coletivas nos diversos espaços
tempos formativos de nossas redes de subjetividades, dentre eles a escola, a
educação.
Como temos visto, essas condições são epistemológicas e políticas. Nesse
sentido, ao propormos políticas educacionais de formação de professores mais
democráticas e democratizantes, é necessário conhecermos os “mapas”, as
253
oportunidades de ação, as possibilidades legais e contra-hegemônicas; é
preciso concentrar nossos esforços para que sejam conjuntos, recíprocos,
cuidadosos e éticos, no sentido de permanecermos em caminhos cada vez
mais democráticos e democratizados, que mantenham abertas as
possibilidades reais dos professores que as utilizarão. Assim, é preciso
respeitarmos saberes e subjetividades, de modo a se movimentarem na
trajetória da colonização para a solidariedade, tal qual em comunidades
interpretativas (SANTOS, 2005a), argumentativas, de diálogo entre os
diferentes na horizontalidade de relações, que buscam emancipação, que nos
levem com mais segurança e respeito ao outro, como propõe esse autor, a um
conhecimento prudente e uma vida decente.
A partir da análise documental, observamos que o movimento dos educadores
brasileiros enfrentou dificuldades internas e externas relacionadas à resistência
oferecida pelos setores conservadores e neoliberais quanto à defesa de seus
interesses; à falta de princípios explícitos e em comum entre as diversas
entidades educacionais envolvidas; à falta de domínio sobre estratégias
políticas importantes para a garantia da educação de qualidade para todos.
Mas, apesar dessas dificuldades, a Constituição de 1988 adotou princípios
democráticos orientadores para a organização do ensino no País, dos quais
destacamos a “valorização dos profissionais do ensino”, garantidos na forma
da lei, em planos de carreira para o magistério público, com piso salarial
profissional e ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos,
bem como a “gestão democrática” do ensino público, atendendo assim, aos
anseios democráticos.
Por sua vez, a nova LDB, Lei n° 9.394/96, reafirma princípios democráticos
instituídos pela Constituição de 1988, tais como a valorização do profissional
da educação escolar e a gestão democrática do ensino público, na forma da lei
e da legislação dos sistemas de ensino. Traz uma interessante concepção de
educação em seu Art. 1° expressando que a educação abrange processos
254
formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no
trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e
organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais. Se
acrescentarmos a isso os princípios do seu Art. 2°, veremos que a educação,
dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais
de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do
educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o
trabalho (LDB/96). Esse educando também é o professor no seu processo de
contínuas aprendizagens.
Destacamos, de um lado, uma abertura à gestão democrática da escola na
importância dada ao princípio da participação (a participação dos profissionais
da educação na elaboração do projeto pedagógico da escola e a participação
das comunidades escolar e local em conselhos ou equivalentes), de outro lado,
destacamos a sobrecarga de atividades que foi endereçada à escola e ao
professor, a abrangência das incumbências e a descentralização da gestão
administrativa, pedagógica e financeira da escola. Somos levados a questionar
a viabilidade de a gestão democrática ser exercida em termos ideais. Ou seja,
essa é uma situação contraditória e de desequilíbrio entre as intenções e as
condições para a formação e valorização do magistério, que não colabora para
a valorização das reflexões e das ações daqueles que estão envolvidos na
circunstância, que pensaram suas possibilidades de ação em diálogo com os
limites e as possibilidades específicos dessa ação sobre essa realidade; e que
recupera a multiplicidade de redes possíveis na combinação dos processos de
inserção social, de forma solidária e contra os processos de dominação. Nesse
sentido, há uma lacuna a preencher: a determinação de tempo espaço para o
cumprimento de uma série de incumbências dentro do horário escolar, como
condição que favorece, reconhece e viabiliza a formação continuada de
professores no desenvolvimento de seu trabalho no cotidiano escolar, como
sujeito de sua própria formação.
255
Com relação à formação e à valorização do magistério, destacamos que a LDB
não considerou a possibilidade de os “estudos, planejamento e avaliação” no
cotidiano escolar significarem “aperfeiçoamento contínuo”, prevendo dois
“tempos” para cada um desses itens. Mas, não impossibilita a elaboração de
propostas de formação continuada de professores que unam parte desses dois
tempos. Institui, também, programas de formação a distância como uma das
possibilidades para formação de professores. No entanto, se essa modalidade
for adotada como única proposta de formação continuada acarretará o
empobrecimento das possibilidades de formação desses profissionais.
O PNE, que tem como objetivo a melhoria da qualidade do ensino, estabeleceu
uma série de metas educacionais que, se bem-sucedidas, provocariam uma
verdadeira transformação da educação brasileira em dez anos. Essa melhoria
se efetivaria com uma política global de valorização do magistério que
promovesse simultaneamente a formação profissional inicial, as condições de
trabalho, salário e carreira, e a formação continuada. Levou-se em
consideração uma lição extraída da prática e da pouca eficácia de outras
iniciativas em qualificar professores, bem como da realidade muitas vezes
desanimadora com que os professores se deparam, tornando a formação
docente apenas uma parte da tarefa de criar condições para manter o
entusiasmo inicial, a dedicação e a confiança nos resultados do trabalho
pedagógico. Outros aspectos foram considerados: a necessidade de os
professores vislumbrarem perspectivas de crescimento profissional e de
continuidade de seu processo de formação; a instituição de um Sistema de
Nacional de Avaliação; a existência de planos plurianuais da União, dos
Estados, do Distrito Federal e Municípios, elaborados de modo a dar suporte
às suas metas e às dos respectivos planos decenais.
A formação do magistério deveria ser assumida como compromisso da Nação
em assegurar o desenvolvimento da pessoa do educador como cidadão e
profissional; o crescimento constante no domínio da cultura letrada e de uma
visão crítica; a jornada de trabalho de acordo com a jornada dos alunos, num
256
único estabelecimento de ensino e com tempo previsto para atividades
complementares ao trabalho de sala de aula; um salário condigno e
competitivo no mercado com outras ocupações de nível equivalente; o
compromisso social e político do magistério. Pode-se resumir em investimento
no e do professor.
Dessa forma, podemos perceber que, ao mesmo tempo em que essas
iniciativas destacam a formação continuada de professores em serviço como
uma das principais estratégias de mudança no panorama educacional,
apresentam, como única proposição, a modalidade a distância. Além disso,
atribuem aos municípios e estados, por meio de suas secretarias, a
responsabilidade por sua garantia, incluindo financiamento, coordenação,
busca por parcerias com universidades e a manutenção de programas
permanentes.
Nesse sentido, a responsabilidade sobre a formação docente apregoada como
compromisso da Nação é redistribuída pelo MEC para estados e municípios. O
que aparentemente poderia possibilitar na valorização das iniciativas locais
pode, no entanto, não resultar em avanços se o processo de avaliação se der
apenas com base em um padrão nacional de formação de professores
estabelecido em avaliações periódicas nacionais para o credenciamento das
instituições formadoras; para a certificação do desempenho docente de forma
meritocrática, tendo como critérios o atendimento às diretrizes e parâmetros
curriculares e o desenvolvimento de competências profissionais.
No entanto, é importantes dizer que, neste estudo, de modo geral, não
encontramos evidências que nos proibissem a criação de grupos de estudo de
professores, que funcionassem como comunidades interpretativas, com a
finalidade de promover o desenvolvimento político-pedagógico desses
profissionais da educação. Ao contrário, os princípios orientadores do ensino
no Brasil têm contribuído para pensarmos em processos alternativos aos
cursos, vivências, seminários, capacitações, aperfeiçoamentos, e tantos outros
257
títulos, que muitas vezes desqualificam ou não instituem o professor como
gestor de sua formação.
A iniciativa do Estado, ao propor políticas educacionais com a participação
ativa da comunidade escolar, demonstra uma das possibilidades de se buscar
democratizar as relações que se estabelecem entre os membros de uma
comunidade que têm o mesmo objetivo: melhorar a educação oferecida aos
alunos capixabas, valorizando seus profissionais, os professores, que estão,
juntamente como seus alunos, no processo de se formar no ambiente escolar.
Nesse sentido, estamos contentes de pensar que não estamos
desacompanhados; outros nos acompanham nessa caminhada por
estabelecermos processos de emancipação na solidariedade. Assim, fazemo-
nos acompanhar de Cecília Meireles, para quem “[...] aprender é sempre
adquirir uma força para outras vitórias, na sucessão interminável da vida”.
Como os projetos são todos coletivos, é válido que argumentemos a favor de
que pensar e buscar realizar o processo de formação continuada em serviço
como um processo de gestão democrática da formação docente.
258
9 REFERÊNCIAS
1 ALVES, Nilda. A experiência da diversidade no cotidiano e suas conseqüências na formação de professoras. In. VICTORIO FILHO, Aldo; MONTEIRO, Solange (Org.). Cultura e conhecimento de professores. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. p.13–30.
2 ______. A necessidade da orientação coletiva nos estudos sobre o
cotidiano: duas experiências. In: GARCIA, Regina Leite; ALVES, Nilda. A Bússola do escrever. Rio de Janeiro: DP&A, 1997, p. 255-295.
3 ANDRÉ, Marli Eliza Dalmazo Afonso de; LÜDKE, Menga. Pesquisa em
educação: abordagens qualitativas. São Paulo: EPU, 1986. 4 ANDRÉ, Marli Eliza Dalmazo Afonso de; ROMANOWSKI, Joana Paulin. O
tema formação de professores nas dissertações e teses (1990-1996). In: ANDRÉ, Marli Dalmazo Afonso de. (Org.). Formação de professores no Brasil (1990 – 1998). Brasília: INEP/ANPED/COMPED, 2002 (Série Estado do Conhecimento n.º 6). p.17-34.
5 BARROS, Maria Elizabeth Barros de. Formação de professores/as e os
desafios para a (re)invenção da escola. In: FERRAÇO, Carlos Eduardo (Org.). Cotidiano escolar, formação de professores(as) e currículo. São Paulo: Cortez, 2005. p. 68–93.
6 BRASIL. Constituição (1988). Constituição [da] República Federativa do
Brasil. Brasília: Senado, 1988. 7 ______. Lei n.º 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as Diretrizes
e Bases da Educação Nacional. Brasília. Ministério da Educação. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/sesu/arquivos/pdf/ lei9394.pdf>. Acesso em: 28 fev. 2005.
8 ______. Lei n.º 10.172, de 9 de janeiro de 2001. Aprova Plano Nacional de
Educação (PNE) e dá outras providências. Brasília. Ministério da Educação. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/pne.pdf>. Acesso em: 22 maio 2008.
9 ______. Ministério da Educação. Rede nacional de formação continuada
de professores de educação básica, 2006, Brasília, 2006. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/Rede/catalg_rede_06.pdf>. Acesso em: 29 out. 2008.
10 ______. Lei 11.738, de 16 de julho de 2008. Regulamenta a alínea “e” do
inciso III do caput do art. 60 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para instituir o piso salarial profissional nacional para os profissionais do magistério público da educação básica. Diário Oficial [da]
259
República Federativa do Brasil, Brasília, 16 jul. 2008. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Lei/L11738.htm>.
Acesso em: 29 out. 2008. 11 BRZEZINSKI, Iria (Org.); GARRIDO, Selma. Formação de profissionais
da educação (1997 – 2002). Brasília: INEP/ANPED/COMPED, 2006. (Série Estado do Conhecimento n.º 10).
12 CARVALHO, Janete Magalhães; SIMÕES, Regina Helena Silva. O
processo de formação continuada de professores: uma construção estratégico-conceitual expressa nos periódicos. In: ANDRÉ, Marli Eliza Dalmazo Afonso de. (Org.). Formação de professores no Brasil (1990 – 1998). Brasília: INEP/ANPED/COMPED, 2002 (Série Estado do Conhecimento n.º 6), p. 171-201.
13 CARVALHO, Janete Magalhães; SIMÕES, Regina Helena Silva. A prática
pedagógica como forma social ou conteúdo institucionalizado: o que dizem os periódicos brasileiros. In: ANDRÉ, Marli Eliza Dalmazo Afonso de. (Org.). Formação de professores no Brasil (1990 – 1998). Brasília: INEP/ANPED/COMPED, 2002 (Série Estado do Conhecimento n.º 6), p. 205-214.
14 CARVALHO, Janete Magalhães. Do projeto às estratégias/táticas dos
professores como profissionais necessários aos espaços/tempos da escola pública brasileira. ______. (Org.). Diferentes perspectivas da profissão docente na atualidade. Vitória: EDUFES, 2002, p. 10-45.
15 ______. Formação e valorização do magistério. In: ESPÍRITO SANTO.
Secretaria de Estado da Educação e Esportes. Subsecretaria de Educação Básica e Profissional. Política Educacional do Estado do Espírito Santo: A Educação é um Direito. Vitória: SEDU/ES, 2004. (Livro Coletânea de Textos, volume 1, p. 55-91).
16 ______. O não-lugar dos professores nos entrelugares de formação
continuada. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, n. 28, p. 96-107, jan./abr. 2005.
17 CATANI, Denice Bárbara. Estudos de história da profissão docente. In:
LOPES, Eliane Marta Teixeira; FILHO, Luciano Mendes Faria; VEIGA, Cynthia Greive. (Org.) 500 anos de educação no Brasil. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. p. 585–599.
18 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano 1: artes de fazer. 11.
ed. Petrópolis: Vozes, 2005. 19 CERTEAU, Michel de; GIARD, Luce; MAYOL, Pierre. A invenção do
cotidiano 2: morar, cozinhar. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 2003.
260
20 CHAUI, Marilena. Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. 11. ed. São Paulo: Cortez, 2006.
21 COUTRIN, Gilberto. História global: Brasil e geral. 6. ed. São Paulo:
Saraiva, 2002. 22 ESPÍRITO SANTO (Estado). Constituição [do] Estado do Espírito Santo
1989. Vitória: Assembléia Legislativa, 1989. 23 ______. Secretaria de Estado da Educação e Esportes. Subsecretaria de
Educação Básica e Profissional. Política educacional para o estado do Espírito Santo: a educação é um direito. Vitória: SEDU/ES, 2003. (Documento Base).
24 ______. Secretaria de Estado da Educação e Esportes. Subsecretaria de
Educação Básica e Profissional. Política educacional para o estado do Espírito Santo: a educação é um direito. Vitória: SEDU/ES, 2004. (Livro de Coletânea de Textos, v. 1).
25 FERRAÇO, Carlos Eduardo. Currículo Real, formação continuada e
cotidiano escolar: questões para debate. PPGE/UFES/CNEp, Cadernos de textos do projeto Programa de Formação em Saúde e Trabalho. 2002a. (mimeo).
26 ______. Currículos e conhecimento em redes: as artes de dizer e escrever
sobre a arte de fazer. In: ALVES, Nilda; GARCIA, Regina Leite. (Org.). O sentido da escola. Rio de Janeiro: DP&A, 2002b. p. 122-150.
27 ______Currículo, formação continuada de professores e cotidiano escolar:
fragmentos de complexidade das redes vividas. In: _______(Org.). Cotidiano escolar, formação de professores (as) e currículo. São Paulo: Cortez Editora, 2005. p. 15–42.
28 FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática
educativa. 24. ed. São Paulo: Paz & Terra, 2002. 29 LINHARES, Célia. Políticas hegemônicas: implicações à formação docente.
In: X SEMINÁRIO CAPIXABA DE EDUCAÇÃO INCLUSIVA, 2006, Vitória. Anais. Vitória: UFES, 2006. p. 24–34.
30 MENDONÇA, Erasto Fortes. A regra e o jogo: democracia e
patrimonialismo na educação brasileira. Campinas: FE/UNICAMP, 2000. 31 OLIVEIRA, Inês Barbosa. Sobre a democracia. In: ______. (Org). A
democracia no cotidiano da escola. Rio de Janeiro: DP&A, 1999. p. 11-33.
261
32 ______. Currículos praticados: entre a regulação e a emancipação. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
33 ______. Criação curricular, autoformação e formação continuada no
cotidiano escolar. In: FERRAÇO, Carlos Eduardo (Org.). Cotidiano escolar, formação de professores(as) e currículo. São Paulo: Cortez, 2005. p 43-67.
34 _______. Boaventura e a Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. 35 PACHECO, José. Ano zero. Revista Educação, São Paulo, ano 12, n° 139,
p. 22, nov. 2008. 36 PENIN, Sônia Sousa; VIEIRA, Sofia Lerche. Refletindo sobre a função
social da escola. In: VIEIRA, Sofia Lerche (Org.). Gestão da escola: desafios a enfrentar. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. p. 13-43.
37 SANTOS, Boaventura de Souza. Um discurso sobre as ciências. 12. ed.
Porto: Afrontamento, 2001. 38 ______ . A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência.
5. ed. São Paulo: Cortez, 2005a. 39 ________. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade.
10ª ed. São Paulo: Cortez, 2005b. 40 ______. Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social. São
Paulo: Boitempo, 2007. 41 SILVA, Andréia Ferreira da. A formação de professores para a educação
básica no Brasil: projetos em disputa. 2004. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal Fluminense. Niterói-RJ. Disponível em: < htto://www.uf.br/pos-educacao/joomla/stories/Teses/andreiaf04.pdf>. Acesso em: 04 nov. 2008.
42 ZANETTI, Maria Aparecida. Política Educacional e LDB: algumas
reflexões. Trabalho apresentado no Ciclo de Palestras Encontrovérsia, Curitiba, 1997. Disponível em: <http://www.ifil.org/Biblioteca/zanetti.htm>. Acesso em: 04 nov. 2008.
262
ANEXO
263
ANEXO A
REFERÊNCIAS UTILIZADAS PELOS AUTORES DO ESTADO DO
CONHECIMENTO N° 6 E CITADAS NESSE TRABALHO
1 ANDRÉ, Marli Eliza Dalmazo Afonso de. Formação de professores em serviço: um diálogo com vários textos. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 89, p. 72-25, maio 1994.
2 ALARCÃO, Isabel. Reflexão crítica sobre o pensamento de Donald Schön e
os programas de formação de professores. Revista da Faculdade de Educação, São Paulo, v. 22, n. 2, p. 11-42, jul./dez. 1996.
3 ALVES, Maria Leila. A política de capacitação SEE/FDE. Cadernos
Cedes, Campinas, n. 36, p. 57-64, 1995. 4 BARBIERI, Marisa Ramos et al. Formação continuada dos profissionais de
ensino: algumas considerações. Cadernos Cedes, Campinas, n. 36, p. 29-35, 1995.
5 CHAKUR, Cilene Ribeiro de Sá Leite. Profissionalização docente: uma
leitura piagetiana de sua construção. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, v. 76, n. 184, p. 635-664, set./dez. 1995b.
6 COLLARES, Cecília Azevedo Lima; MOYSÉS, Maria Aparecida Affonso.
Construindo o sucesso na escola: uma experiência de formação continuada com professores da rede pública. Cadernos Cedes, Campinas, n. 36, p. 95-111, 1995.
7 DEMO, Pedro. Formação de formadores básicos. Em Aberto, Brasília, v.
12, n. 54, p. 23-42, abr./jul. 1992. 8 DARSIE, Marta Maria Pontin; CARVALHO, Anna Maria Pessoa de. O início
da formação do professor reflexivo. Revista da Faculdade de Educação, São Paulo, v. 22, n. 2, p. 90-108, jul./dez. 1996.
9 FUSARI, José Cerchi; RIOS, Terezinha Azerêdo. Formação continuada dos
profissionais do ensino. Cadernos Cedes, Campinas, n. 36, p. 37-46, 1995.
10 GARCIA, C. Marcelo. A formação de professores: novas perspectivas
baseadas na investigação sobre o pensamento. In: NÓVOA, António (Coord.). Os professores e sua formação. Lisboa: Dom Quixote, 1992. p. 51-76.
264
11 KRAMER, Sônia. Melhoria da qualidade do ensino: o desafio da formação de professores em serviço. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, v. 70, n. 165, p. 189-207, maio/ago. 1989.
12 MATTOS, Carmen Lúcia Guimarães de. Etnografia crítica de sala de aula:
o professor pesquisador e o pesquisador professor em colaboração. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, v. 76, n. 182/183, p. 98-116, jan./ago. 1995.
13 MARIN, Alda Junqueira. Educação continuada: introdução a uma análise
de termos e concepções. Cadernos Cedes, Campinas, n. 36, p. 13-20, 1995.
14 MEDIANO, Zélia Domingues. A formação em serviço do professor a
partir da pesquisa e da prática pedagógica. Tecnologia Educacional, Rio de Janeiro, v. 21, n. 105/106, p. 31-36, mar./jun. 1992.
15 NÓVOA, António (Coord.). Os professores e sua formação. Lisboa: Dom
Quixote, 1992. 16 PEREIRA, Ruth da Cunha. Educação em serviço para o professor:
conceitos e propósitos. Tecnologia Educacional, Rio de Janeiro, v. 22, n. 110/111, p. 37-41, jan./abr. 1993.
17 ______. Educação em serviço para o professor: dimensões de sua
estrutura operacional. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, v. 75, n. 179/180/181, p. 33-63, jan./dez. 1994.
18 PEREZ GÓMEZ, A. O pensamento prático do professor: a formação do
professor como prático reflexivo. In: NÓVOA, Antônio. (Coord.). Os professores e sua formação. Lisboa: D. Quixote, 1992. p. 93-114.
19 PIMENTA, Selma Garrido. Formação de professores: os saberes da
docência e a identidade do professor. Revista da Faculdade de Educação, São Paulo, v. 22, n. 2, p. 72-89, jul./dez. 1996.
20 REALE, Aline M. et al. O desenvolvimento de um modelo “construtivo-
colaborativo” de formação continuada centrado na escola: relato de uma experiência. Cadernos Cedes, Campinas, n. 36, p. 65-76, 1995.
21 SCHÖN, Donald. Formar professores como profissionais reflexivos. In:
NÓVOA, Antôino. (Coord.). Os professores e sua formação. Lisboa: D. Quixote, 1992a.
22 ______. La formación de profesionales reflexivos: hacia un nuevo
diseño de la enseñanza u el aprendizaje en las profesiones. Barcelona: Paidós, 1992b.
265
23 ZEICHNER, L. Formação reflexiva de professores. Lisboa: Educa, 1993. 24 ______. Novos caminhos para o practicum: uma perspectiva para os anos
90. In: NÓVOA, A. (Coord.). Os professores e sua formação. Lisboa: D. Quixote, 1992. p. 115-138.