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DOI: 10.4025/4cih.pphuem.714

FOLHETINS NOS ANOS 60: PRÁTICAS DE LEITURA E REPRESENTAÇÕES

Carla Kaori Matsuno (UEL) André Luiz Joanilho (UEL)

A leitura pertence às práticas que levam a reconhecer certo universo mental de uma

época e um determinado local; é uma das representações que marcam, de certa forma, a

identidade social de um grupo, de uma comunidade, de um gênero, de uma classe ou de uma

hierarquia, já que a construção destes é resultado da relação de força entre as representações;

na qual, existe uma rede em que uns obtêm o poder de classificar e outros acatam (cada qual

com seu próprio meio), ou resistem a tal classificação. A abordagem, portanto, dos folhetins

da década de 1960, da revista Capricho, como representação social significa a

instrumentalização do objeto folhetim em um objeto fundamental na análise cultural da

sociedade dos anos sessenta.

No Brasil, os folhetins vieram junto com a onda de urbanização do país. A década de

sessenta apresenta a idéia da superioridade citadina, quando o preconceito rural e a ilusão de

melhores oportunidades surgem, na cidade, difundidas pelo capitalismo.

(...) A vida da cidade atrai e fixa porque oferece melhores oportunidades e acena um futuro de progresso individual, mas, também, porque é considerada uma forma superior de existência. A vida do campo, ao contrário, repele e expulsa.1

No período de 1950-1980, a migração da zona rural para a zona urbana aproxima-se

dos 39 milhões de pessoas, dado retirado da História da Vida Privada no Brasil 4 –

Contrastes da intimidade contemporânea2, fato caracterizado, inclusive, pela industrialização

e, conseqüentemente, pela selvagem modernização da agricultura. Dentro dos instrumentos

conceptuais dos brasileiros na época, está uma moral individual e familiar, quando se torna

considerável o declínio da distância social entre a mulher e o homem e a posição central dos

filhos na vida doméstica, o romantismo também se torna cada vez mais presente, com um

acréscimo na valorização da mulher e na sua liberalidade, e a atenção aos agentes

moralizantes, como a família e a escola. Com tal mudança na sociedade brasileira, há também

uma transformação nas condições de existência, ou, como chama Bourdieu3, no estilo de vida.

Estas condições refletem nas práticas culturais, uma vez que, essas mudanças são resultantes

do jogo da relação de força entre as representações, além de considerar que as práticas

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culturais formam uma distintiva expressão de certo grupo. Nestes aspectos, o folhetim foi

encaixado na cultura popular.

Tais folhetins nasceram nos jornais franceses em torno de 1830 com o intuito de atrair

leitores. Feuilleton, designação francesa, era a localização do jornal onde se recheava de

recriações – como curiosidades e ficções – para a atração do público. Com o sucesso do

espaço, o qual se limitava ao lugar do rodapé, o feuilleton passa a ser um lugar de destaque

em alguns jornais que somado, também, ao sucesso da ficção em pedaços resulta nos

romances-folhetins, ou, no que entendemos aqui, basicamente, como folhetim. O folhetim, no

início do século XX, expandiu-se dos jornais às revistas e, mais tarde, à televisão. A

telenovela, segundo alguns autores (como Marlyse Meyer), é a tradução atualizada do

romance folhetinesco.

(...) Um produto novo, de refinada tecnologia, nem mais teatro, nem mais romance, nem mais cinema, ao qual reencontramos o de sempre: a série, o fragmento, o tempo suspenso que reengata o tempo linear de uma narrativa estilhaçada em tramas múltiplas, enganchadas no tronco principal, compondo uma “urdidura aliciante”, aberta às mudanças segundo o gosto do “freguês”, tão aberta que o próprio intérprete, tal como na vida, nada sabe do destino de seu personagem. (...) E sempre, no produto novo, os antigos temas: gêmeos, trocas, usurpações de fortuna ou identidade, enfim, tudo que fomos encontrando nesta longa trajetória se haverá de reencontrar nas mais atuais, modernas e nacionalizadas telenovelas. Até sua distribuição em horários diversos, correspondendo a modalidades folhetinescas diferentes: aventura, comicidade, seriedade, realismo. Sempre de modo a satisfazer o patrocinador.4

As principais características dos contos de folhetim ou romances-folhetins,

sobreviventes de 1830 até a década de 1960, são, principalmente, a estrutura em capítulos

mergulhada na sensação da expectativa, a composição de uma parte em que as tensões são

acaloradas, uma perspectiva de resolução e o suspense no senso de corte. Estas são as

influências das técnicas teatrais ou melodramas – já que vários precursores vieram do teatro,

como, exemplificando, Alexandre Dumas com o Conde de Monte Cristo. Além das principais

características já citadas, o teatro emprestou ao folhetim os diálogos vivos e os personagens

tipificados (como a mocinha e a vilã) entre outras influências.

Acrescentando as características ressaltadas, José Ramos Tinhorão aborda o folhetim

como um gênero o qual tem a preocupação de carregar uma estória prática, anulando qualquer

ato pensativo do leitor5. Considerando tal perspectiva, entretanto, estaremos caindo na

tradicional construção da oposição entre o letrado e o popular, usando os termos de Roger

Chartier, ou criação e consumo – ou, ainda, produção e consumo – na qual, a interpretação do

objeto é tida como universal, o receptor como passivo e o sentido como intrínseco no texto

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(ou na imagem) independente da apropriação pelo sujeito. Tal concepção rejeita uma das

deferências mais significativas do processo historiográfico. A rejeitada deferência relaciona-

se à importância da produção do próprio leitor ou o que Michel de Certeau define como

produção secundária.

A presença e circulação de uma representação (...) não indica somente o que ela é para os que dela se utilizam. É necessário ainda analisar a sua manipulação pelos que a praticam e que não são os fabricantes dessas representações. Então pode-se apenas apreciar o desvio ou a semelhança entre a produção da imagem e a produção secundária que se esconde nos processos de sua utilização.6

Tal discussão é devidamente abordada pelo historiador Roger Chartier. O autor

assume a ruptura com a abstração dos textos e da leitura. À abstração dos textos afirma que,

“(...) Ao contrário do que se costumava pensar, autores não produzem livros – e sim textos.

(...)”7 Para tal afirmação, Chartier argumenta citando duas consideráveis intervenções gráficas

na produção do livro, o mise en livre e o mise en texte. O primeiro refere-se às formas

tipográficas decididas pelos editores; o segundo diz respeito aos dispositivos lingüísticos e

estéticos utilizados pelo autor com a finalidade de interferir ao seu gosto na produção da

leitura. A oposição à abstração da leitura remete à idéia da qual nega a projeção dos

letrados/críticos das leituras como universal, a toda sociedade.

Roger Chartier propõe, assim, que se analisem as práticas de utilização dos materiais culturais, ou seja, as diferentes apropriações dos produtos culturais por distintos grupos ou indivíduos. (...) Propõe uma história da leitura que seja uma história dos diferentes modos de apropriação do escrito no tempo e no espaço – seja ele físico ou social – , tomando-se por referência a idéia de que a leitura é uma prática criativa e inventiva resultante do encontro das maneiras de ler e dos protocolos de leitura inscritos no texto. [mise em texte e mise em livre]8

A importância, então, da discussão dentro da análise dos folhetins está na,

conseqüente, atenção posta no consumo. O consumo cultural ou intelectual deve ser vista,

também, como uma produção, não necessariamente material, mas de representações que não

são idênticas às que o autor (ou artista) propõe. A distribuição das variadas leituras, portanto,

não pode ser identificada como entidade de valor universal, deve ser abordada dentro da rede

de representações a qual abrange as relações e as diferentes utilizações culturais

historicamente constituídas.

(...) é necessário relembrar que todo texto é o produto de uma leitura, uma construção do seu leitor: “este não toma nem o lugar do autor nem um lugar de autor. Inventa nos textos uma coisa diferente daquilo que era a intenção deles.

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Separa-os da sua origem (perdida e acessória). Combina os seus fragmentos e cria o desconhecido no espaço organizado pela capacidade que eles possuem de permitir uma pluralidade indefinida de significações.9

Outra importante questão a ser discutida, para a análise dos folhetins com fim

representativo, é a oposição da cultura popular e cultura erudita, já que o folhetim é

considerado pertencente daquela e tal dicotomia tida como um dos critérios para a análise de

algum produto cultural a torna limitada, são dois grupos, pois, os quais não se separam.

Uma tradicional divisão entende a cultura popular (ou a cultura da maioria) como

externa, coletiva e quantitativa, e interpreta a cultura erudita como interna, individualizada e

qualitativa. A definição mais conveniente – divergente dos tradicionais conceitos – do que é

cultura popular é construída a partir de algo que o popular não é, a cultura erudita. Esta, por

sua vez, não é constituída por produções que lhe são próprias, mas a cultura de elite apropria-

se de certos materiais. Ou seja, a descrição do que é o erudito e o popular é constituída através

do ato de referir-se ao outro. “É num mesmo jogo sutil de apropriação, de reempregos, de

desvios, que se apóiam, por exemplo, as relações entre Rabelais e a cultura popular da praça

ou entre os irmãos Perrault e a literatura oral.”10 A concepção de que o popular e o erudito se

imbricam, assim, tem como grande exemplo o letrado Rabelais:

Rabelais seria popular por tratar da carnavalização da vida, ou seria erudito por ser letrado e estar levando a cultura do povo para a elite? Ora, o que se tem é tanto um conjunto quanto outro se cruzando, se imbricando.11

Com a quebra da dicotomia entre o letrado e o popular, enfim, não há uma cultura

popular ou erudita pura e o folhetim, portanto, não deve ser visto como uma absoluta e

taxativa produção da cultura popular, analisado, todavia, dentro do movimento de encontros e

imbricações das diferentes formas culturais; tendo em consideração também que à venda

massiva do objeto folhetim não foi somente com a compra do “povo”, mas, principalmente

com a colaboração do “alto grupo” da sociedade cujo acesso à alfabetização,

consequentemente, à leitura era maior.

(...) Saber se pode chamar-se popular ao que é criado pelo povo ou àquilo que lhe é destinado é, pois, um falso problema. Importa antes de mais identificar a maneira como, nas práticas, nas representações ou nas produções, se cruzam e se imbricam diferentes formas culturais.12

O aspecto literário do folhetim coloca-nos outro debate, também bem explorado por

Roger Chartier. O debate em torno do par/oposição realidade e ficção – finalizando a

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apresentação da discussão sobre as principais reflexões pertencentes à maneira de olhar o

objeto – coloca em discussão a discriminação que os documentos literários passam em

comparação aos documentos de caráter econômico e social. Apesar da consciência de que seja

incapaz de existir uma relação entre o texto ou documento (a realidade apreendida) e a

realidade vivida, os objetos literários ainda sentem certo preconceito, dado pela história

econômica e social por falta de veracidade, uma vez que, os textos literários se constituem de

obras fictícias.

Os materiais literários, entretanto, não devem ser renegados como simples

documentos. Elas são as representações da realidade, pois, segundo as palavras do historiador

Chartier:

O texto, literário ou documental, não pode nunca anular-se como texto, ou seja, como um sistema construído consoante categorias, esquemas de percepção e de apreciação, regras de funcionamento, que remetem para as suas próprias condições de produção. a relação do texto com o real (que pode talvez definir-se como aquilo que o próprio texto apresenta como real, construindo-o como um referente situado no seu exterior) constrói-se segundo modelos discursivos e delimitações intelectuais próprios de cada situação de escrita.13

Chartier, conclui, assim, que através de tais deferências, o texto literário cria um novo sentido

para o real. O real torna-se a própria forma com que o texto o cria na historicidade da sua

produção e na intencionalidade da sua escrita14.

Com tais discussões, a viagem pelo mundo folhetinesco da revista Capricho, nos anos

sessenta, tende a alcançar, de maneira mais próxima, a mentalidade da época. Entender o

motivo da expansão do objeto folhetim, a causa de seu sucesso, a razão pela qual tantas

pessoas o liam e buscar a resposta de tantas outras perguntas futuramente geradas no decorrer

da pesquisa, iluminado pelas considerações do debate proposto, possibilitarão a compreensão

das identidades sociais definidas pelas práticas culturais, os grupos sociais, em geral, a

estrutura do mundo social dos anos sessenta.

Notas 1 SCHWARCZ, L. M. História da Vida Privada no Brasil. v. 4. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. 2 Cf. Idem, ibid. 3 Cf. BOURDIEU, Pierre. Gostos de Classe, Estilos de Vida. In: ORTIZ, Renato (org.). Pierre Bourdieu. São Paulo: Ática, 1983. 4 MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 387. 5 Cf. TINHORÃO, José Ramos. Os romances em folhetins no Brasil: 1830 à atualidade. São Paulo: Duas Cidades, 1994, passim. 6 CERTEAU, Michel. L’Invention du Quotidien – L’Arts de faire. Folio Gallimard, 1990. 7 ABREU, Márcia. Introdução. In: CHARTIER, Roger. Formas e sentido - Cultura escrita: entre distinção e apropriação. Campinas: Mercado de Letras, 2003. p. 9.

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8 Idem, ibid. In: Idem, ibid, p. 11. 9 CHARTIER, Roger. A História Cultural: Entre Práticas e Representações. Lisboa: DIFEL, 1990. p. 61. 10 Idem, ibid, p. 56. 11 JOANILHO, A. L. O jogo das possibilidades: ensaios em História da Cultura. Curitiba: Aos quatro ventos, 1997. p. 50 12 CHARTIER, Roger. op. cit., loc. cit. 13 Idem, ibid, p. 63. 14 Cf. Idem, ibid, loc. cit.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOURDIEU, Pierre. Gostos de Classe, Estilos de Vida. In: ORTIZ, Renato (org.). Pierre Bourdieu. São Paulo: Ática, 1983. CERTEAU, Michel. L’Invention du Quotidien – L’Arts de faire. Paris: Folio Gallimard, 1990. CHARTIER, Roger. Formas e sentido - Cultura escrita: entre distinção e apropriação. Campinas: Mercado de Letras, 2003. CHARTIER, Roger. A História Cultural: Entre Práticas e Representações. Lisboa: DIFEL, 1990. JOANILHO, A. L. O jogo das possibilidades: ensaios em História da Cultura. Curitiba: Aos quatro ventos, 1997. MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. SCHWARCZ, L. M. História da Vida Privada no Brasil. v. 4. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.


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