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FOLHA 19-04-2015

HÉLIO SCHWARTSMAN

Problema difícil?

SÃO PAULO - Tom Stoppard, um dos principais dramaturgos britânicos vivos, conhecido por levar aos palcos temas filosóficos e científicos, resolveu pegar pesado em sua última peça. O assunto de "The Hard Problem" (problema difícil), disponível em e-book, não é nada menos que a consciência humana.

Os elementos para uma obra-prima estão ali. Hilary é uma jovem psicóloga que acredita em realismo moral e reza para Deus antes de dormir. Convicta de que há mais do que apenas neurônios no fenômeno da consciência, ela se candidata a um emprego num importante instituto de neurociência. A heroína tem um relacionamento mais físico que romântico com seu tutor Spike, um materialista empedernido que descreve a "Madona com o Menino" de Rafael como "mulher maximizando a sobrevivência dos genes". Entram na trama ainda altruísmo, adoção, crise financeira, bilionários com seus modelos matemáticos de redução de risco, fraude científica e até amor lésbico.

Não dá para dizer que a peça seja ruim, mas, desta vez, Stoppard não compôs uma obra magistral. Tudo é maçantemente escolar. Os personagens despejam de forma robótica a minuciosa pesquisa do autor. Mesmo a disputa sobre a natureza da consciência não fica bem resolvida, nem em termos dramáticos, nem científicos. Stoppard não esconde sua simpatia para com o dualismo de Hilary, mas não o assume integralmente.

O interessante aqui é que, por algumas das visões antagônicas à de Stoppard, nem haveria um "problema difícil" a resolver. Para os eliminativistas, estados mentais, isto é, o que há de subjetivo na experiência da consciência, são uma categoria inexistente e que não deveria fazer parte de nenhum programa científico. As ideias sobre psicologia que nos fazem ter a ilusão da consciência são tão absurdas que um dia serão eliminadas do horizonte da ciência, assim como a astrologia o foi. Radical, mas será que está errado?

CARLOS HEITOR CONY

Impeachment

RIO DE JANEIRO - Pouco a pouco, a palavra vem sendo escrita e falada em todos os cantos onde se fala e escreve. Começou veladamente, em algum artigo ou comentário na mídia. Hoje, repetindo Nelson Rodrigues, ela é assunto em todas as partes, nos botecos e velórios. No início, parecia uma alucinação dos opositores do atual governo, ou de adversários históricos do PT.

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Agora, ela frequenta todos os veículos das mídias existentes. E citando o meu amigo Merval Pereira, até o Lula, discreto quando lhe interessa, não bota a boca no trombone, mas avalia os estragos que um impeachment da presidente Dilma pode trazer para seu partido e para seu projeto pessoal de volta ao poder.

Tudo bem (ou tudo mal). Há elementos bastantes para isso, mas há também a necessidade moral, política e jurídica de uma investigação isenta para a punição que, aparentemente, ela está merecendo. Não apenas pelos escândalos do mensalão e do petrolão, dos quais a presidente Dilma foi de certo modo a grande beneficiária.

Vamos com calma. No caso do impedimento de Collor, não havia o discutível preceito da delação premiada. Quem delatou o ex-presidente foi o próprio irmão, que não recebeu prêmio algum, a não ser um câncer que o matou logo após a delação.

Além do escândalo que me parece o maior de nossa história republicana, e talvez de todo o Império, a presidente está sendo justamente cobrada pelas retumbantes promessas da campanha eleitoral que a elegeu pela segunda vez. Em alguns pontos, não em todos, ela mentiu e enganou o eleitorado.

E uma vez eleita e empossada, está cometendo tudo o que condenou em seus antecessores, exceto o ex-presidente Lula, que está necessitado de um grande gesto que o absolva de alguns erros de seu passado. Afinal, quem nunca errou que atire a primeira pedra.

ELIO GASPARI

A Petrobras blindou a roubalheira da SBM

À estatal ainda falta limpar o acobertamento de suas tenebrosas transações com a companhia holandesa

A doutora Dilma disse que a Petrobras "já limpou o que tinha que limpar". Falso. Falta limpar o acobertamento das suas tenebrosas transações com a companhia holandesa SBM, a maior operadora de sondas flutuantes do mundo. Com sede em Mônaco, é a maior empregadora do principado, perde só para o cassino. Faturou 4,2 bilhões de euros em 2012 e 60% de seus negócios davam-se com a Petrobras. Desde 2012 a diretoria da empresa sabia que distribuíra US$ 139 milhões no Brasil, onde seu representante era Julio Faerman, um ex-funcionário da Petrobras que teve US$ 21 milhões numa conta do HSBC suíço e hoje vive em Londres. Homem discreto, só se conhece dele uma fotografia, com uma máscara veneziana cobrindo-lhe os olhos. O contrato de venda da plataforma P-57 (US$ 1,2 bilhão), por exemplo, gerou uma comissão de US$ 36 milhões.

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A essa altura, comissões pagas por Faerman ao "amigo Paulinho" e a Pedro Barusco já estão na papelada de Curitiba. Falta limpar a maneira como a Petrobras e a Controladoria-Geral da União lidaram com o caso. A Lava Jato começou em 2014, mas a faxina interna da SBM começou em 2012. Existe uma gravação de um encontro de seus diretores no aeroporto de Amsterdam lidando com o caso. Nela, a Petrobras é mencionada. O grampo partiu de Jonathan Taylor, um advogado da SBM que está em litígio com a empresa, que o acusa de chantagem.

Em outubro de 2013 apareceu na Wikipedia um texto (provalmente de Taylor) denunciando a rede internacional de propinas da SBM e dando nome a bois da Petrobras. Dias depois, sumiu, até que o assunto reapareceu em fevereiro de 2014 na revista holandesa Quote. A Petrobras abriu uma auditoria para examinar seus negócios com a SBM e mandou funcionários à Holanda, sem dizer o que fariam. Num comunicado oficial, informou que eles não encontraram anormalidades. A SBM, por sua vez dizia que pagara US$ 139 milhões em comissões por serviços legítimos e a petroleira fingiu que acreditou. Segundo Taylor, estava em movimento uma operação para abafar as propinas brasileiras. Ele parece ter razão, pois em novembro Graça Foster revelou que soubera das propinas em maio. E não contou ao mercado.

A conexão brasileira foi varrida para depois do segundo turno. Dezessete dias depois da reeleição da doutora a SBM fez um acordo na Holanda e pagou uma multa de US$ 240 milhões. Em seguida a Controladoria-Geral da União abriu um processo contra a SBM e Graça Foster fez sua revelação tardia.

Taylor contou ao repórter Leandro Colon que em agosto mandou à CGU um lote de documentos. No dia 3 de outubro ele se encontrou na Inglaterra com três funcionários da Controladoria. Essa reunião foi gravada, com consentimento mútuo. A conexão SBM-Petrobras ficou blindada de maio, quando a campanha eleitoral mal começava, até novembro, quando a doutora estava reeleita.

A CGU diz hoje que abriu o processo em novembro porque só então encontrou "indícios mínimos de autoria e materialidade". A ver. Isso poderá ser esclarecido se forem mostrados os documentos recebidos pela CGU em agosto e o que foi dito no encontro de outubro.

Há uma velha lenda segundo a qual o Brasil seria outro se os holandeses tivessem colonizado o Nordeste. Darcy Ribeiro matou essa charada respondendo: "Seria um Suriname". Talvez seja um exagero, mas em novembro do ano passado, quando a SBM e o governo holandês se entenderam, Robson Andrade, presidente da Confederação Nacional da Indústria, resumiu o que acontecera em Amsterdam e o que estava acontecendo no Brasil, onde as empresas apanhadas na Lava Jato negociavam acordos de leniência:

"Eu acho que o Brasil está amadurecido o suficiente para que não coloque essas empresas com esse selo (de inidôneas). Nós vemos, por exemplo, que aconteceu a mesma coisa com a empresa da Holanda, a SBM Offshore. Será que a Holanda vai colocar essa empresa como inidônea e não vai poder participar de mais nada no mundo?"

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O governo holandês e a SBM se entenderam e a Lava Jato está cuidando das propinas pagas a funcionários da Petrobras, que ficou com toda a conta. Falta limpar o silêncio da Petrobras a partir de maio e entender a rotina da CGU de agosto a novembro, depois da reeleição da doutora.

Serviço: Quem quiser, pode pegar na rede uma magnífica narrativa do caso na revista holandesa Vrij Nederland, intitulada "The Cover-Up at Dutch Multinational SBM", dos repórteres Ham Ede Botje, James Exelby e Eduard Padberg. Num sinal dos tempos, o trabalho da trinca foi amparado por uma fundação de estímulo à investigação jornalística.

VACCARI E O PT SABIAM QUE ELE IRIA PRESO

João Vaccari Neto sabia há mais de seis meses que seria preso. Desde janeiro a cúpula do PT sabia que sua situação era desesperadora. Um dia o comissariado aprenderá a lidar com a proteção que dá aos seus quadros acusados de corrupção. Até lá, arrastará as correntes do assassinato de Celso Daniel, do mensalão e do que se vê por aí. Pelas condições de hoje, mesmo que comece a fazer isso amanhã, ainda assim será tarde.

Aldeia em RR sediará o primeiro júri composto só por indígenas

Acusados responderão com base na legislação penal do Brasil

Normalmente, crimes que acontecem dentro dos territórios indígenas são decididos pelas lideranças locais

DE BELÉM

Uma aldeia no norte de Roraima sediará, na quinta (23), um júri popular integrado só por indígenas, o primeiro do Brasil. Com dois réus macuxis acusados de tentativa de homicídio, o caso será decidido segundo a legislação penal.

A novidade é elogiada pelo Judiciário, mas antropólogos afirmam que os índios estão apreensivos. O caso envolve um tabu nas comunidades: a entidade maligna Canaimé.

A tentativa de homicídio em um bar ocorreu porque os acusados desconfiaram que a vítima havia assassinado outros dois índios de forma brutal, crime atribuído a Canaimé. Ao tentar cortar o pescoço da vítima, foram presos.

Teme-se que a vítima seja jurada de morte ficar estigmatizada como Canaimé.

"Quando você mata um Canaimé, não vai a julgamento, porque está livrando a comunidade de um mal", explica a antropóloga Lêda Martins.

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Pode também haver conflitos entre lideranças indígenas. "Não será uma questão de consenso, como estão acostumados", diz ela, ao lembrar que a palavra final será dada por um branco.

O corpo de jurados tem 30 índios de quatro etnias. Sete serão sorteados para o júri.

Crimes em territórios indígenas são decididos pelas lideranças locais, sem passar pela Justiça brasileira. Geralmente são disputas que acabam em ferimento ou morte. As punições podem ser expulsão da aldeia, trabalhos comunitários ou proibição de participar de eventos.

Essas penas podem ser reconhecidas como legítimas se chegarem à Justiça.

O caso de Uiramutã, porém, ocorreu em território urbano. O juiz Aluizio Ferreira, que conduzirá o júri, já se absteve de sentenciar um índio acusado de homicídio sob o argumento de que ele havia sido punido pelos pares.

Estarão presentes no julgamento 150 líderes de 72 comunidades.

Boias-frias abandonam migração para o corte da cana em São Paulo

Neste ano, nenhum trabalhador de outro Estado chegou a Guariba, cidade símbolo do setor

Avanço da colheita mecanizada, que chega a 85% dos canaviais do Estado, faz cortadores desistirem da atividade

MARCELO TOLEDOENVIADO ESPECIAL A GUARIBA (SP)

Eles chegavam aos milhares em caravanas de ônibus, dormiam em abrigos para mais de 400 pessoas, ocupavam as praças, supermercados e quadras de esporte das cidades e fizeram, por décadas, parte da paisagem da região de Ribeirão Preto.

Mas, neste ano, os boias-frias desapareceram da mais tradicional região produtora de cana-de-açúcar do país.

Nesta época do ano, era comum a chegada de ônibus do Vale do Jequitinhonha (MG) ou de Codó e Timbiras, no Maranhão, com trabalhadores para o corte da cana na macrorregião de Ribeirão. Mas, com a assinatura do protocolo agroambiental entre as usinas e o Estado, em 2007, a mecanização de cana avançou muito, levando os migrantes a abandonar a área.

Segundo a Pastoral do Migrante de Guariba (SP), em 2015 não chegou à cidade um único migrante, fato inédito em 40 anos. Na década passada, eram ao menos 15 mil ao ano. Agora, buscam outras regiões para atuar na construção civil e na citricultura, ou ficam em seus Estados.

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Dos 1.200 boias-frias esperados no entorno de Guariba, no máximo cem devem ser migrantes, segundo o Sindicato dos Empregados Rurais da cidade. A mão de obra total já foi de 60 mil.

Guariba é uma cidade símbolo da luta dos boias-frias, graças a um levante ocorrido em 1984 que resultou em uma morte e iniciou mudanças nas relações trabalhistas.

"Hoje, quando ocorre, a migração é espontânea. Ônibus com centenas de migrantes chegando não há mais, nem haverá", disse a socióloga Maria Aparecida de Moraes Silva, que estuda essa dinâmica trabalhista no campo há mais de três décadas.

Dos 5,5 milhões de hectares com cana em São Paulo, 85% foram colhidos por máquinas em 2014, segundo o IEA (Instituto de Economia Agrícola). Em 2007, a mecanização alcançava 42%.

A cada 1% de aumento na colheita mecanizada, 702 postos de trabalho são extintos, segundo o instituto.

Podão é coisa do passado, afirma tratorista

DO ENVIADO A GUARIBA (SP)

Boa parte dos migrantes que ainda vivem na região de Ribeirão Preto (SP) teve de se adaptar à nova realidade dos canaviais, hoje repletos de máquinas agrícolas.

A mecanização ganhou força a partir de 2007, quando aumentou a restrição às queimadas, que facilitavam o corte manual, mas trazem riscos ambientais. Com a máquina, é possível colher a cana crua.

"Precisei me qualificar para deixar o podão, que é puxado. Isso é passado", diz o tratorista João Lindomar dos Santos, 43, que saiu do Paraná para viver na região de Ribeirão Preto nos anos 1990.

Ele recebe pouco mais de R$ 2.000 mensais, valor superior ao de muitos boias-frias, que não chega a R$ 1.500. Contudo, mais importante que o valor, diz, é que o serviço é menos extenuante.

Ainda no corte de cana, o ex-migrante Valdomiro Rodrigues, em Guariba desde 1987, disse ter visto desde então conterrâneos (é mineiro) irem embora, por não aguentar a jornada de trabalho.

"Muita coisa mudou. As condições de trabalho melhoraram bastante, mas, por outro lado, muitas usinas fecharam devido à crise e muitas pessoas ficaram desempregadas. Não são todos que sabem trabalhar com máquinas."

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Para o presidente do sindicato, Wilson Rodrigues da Silva, 48, é preciso que o trabalhador aceite que a mecanização engoliu os empregos no campo. "Nós sabíamos que esse dia [fim da migração] chegaria. Ainda há empregos, mas são poucos", diz.

Segundo Iza Barbosa, consultora em responsabilidade social corporativa da Unica (entidade das usinas), trabalhadores que perderam vagas no campo estão fazendo cursos do Pronatec, entre outros.

"As usinas estão requalificando cada vez mais. Funções como soldador, eletricista, mecânico e motorista são alvo das empresas. Não é só o trabalhador que precisa do emprego na usina, ela também precisa do funcionário."

O setor sucroalcooleiro perdeu 22.551 vagas em 2014, segundo dados do Ministério do Trabalho. No ano anterior, havia perdido 1.241.

"Hoje não vale a pena vir para São Paulo cortar cana. Com a mecanização, não há emprego", afirma Carlos Fredo, pesquisador do IEA.

ANTONIO PRATA

Indo embora

Eu sabia que esse dia iria chegar: o dia em que aquele bebezinho lindo iria me trocar por outro homem

Como em tantas outras madrugadas, acordo com um chorinho na babá eletrônica. É a Olivia, minha filha mais velha, de um ano e oito meses. Na maioria das vezes, ela vira pro lado e volta a dormir, sozinha. Em algumas noites, contudo --e é o caso desta aqui--, ela senta no berço e começa a gritar "Papai! Papai! Papai!" ou "Mamãe! Mamãe! Mamãe!" até que um de nós apareça para ouvir suas reivindicações. São dois filhos, duas babás eletrônicas, cujos sinais se embaralham, de modo que não ouço bem se é "Papai!" --e serei eu a sair tropeçando pela noite fria-- ou "Mamãe!" --e caberá à Julia explicar que não é hora de mamar, nem de ir pra escola, nem de brincar com o Senhor Batata, nem de ouvir Galinha Pintadinha, mas hora de dormir. "É papai ou mamãe?", balbucio, de olhos fechados, ao que minha mulher, sem nenhuma compaixão, sem nem sequer segurar a minha mão ou fazer um cafuné preparatório, dispara: "É 'Arthur'". Uma espada samurai atravessa o meu peito.

É claro que eu sabia que esse dia iria chegar: o dia em que aquele bebezinho lindo que embalei em meus braços, na maternidade, aquele serzinho indefeso que eu trouxe pra casa, a 30 km/h, com pisca alerta ligado, pela Raposo Tavares, aquele bumbunzinho rechonchudo que tantas vezes limpei, aqueles olhões deslumbrantes diante dos quais expliquei "esse é o leão", "essa é a lua", "esse é o manjericão", "essa é a chuva", iriam me trocar por outro homem.

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Achava, porém, que esse dia só viria lá por 2030 --2027, na previsão mais pessimista.

Pensando bem, nem havia pessimismo na previsão. Imaginava, não sei se do alto do meu narcisismo ou do fundo da minha ingenuidade, que iria encarar tal dia com satisfação. Afinal, eu haveria criado minha filha para o mundo. Que ela saísse por aí se apaixonando e namorando seria um sinal da sua saúde e do nosso acerto. Um pai enciumado? Coisa mais anos 1950 --e, no entanto, meus amigos, quando descubro que não é a mim que ela implora para salvá-la do escuro e da solidão, mas ao Arthur, colega da escola -- um rapaz mais velho, diga-se de passagem, já beirando os três anos-- um nó de marinheiro se forma na minha garganta.

Estirado na cama, trêmulo, me dou conta de que, nas últimas semanas, ela já vinha dando sinais daquela paixão, e, pior, eu os vinha recebendo com patente irritação. Eu pegava o "Marcelo, Marmelo, Martelo", a Olivia punha o dedo na capa e dizia: "Arthur!". "Não, Olivia, não é o Arthur, é o Marcelo!". Aparecia o irmão da Peppa, na TV, ela corria até a tela, sorrindo: "Arthur!". "Não, Olivia, não é o Arthur, é o irmão da Peppa!". Huguinho, Zezinho, Luizinho? "Arthur! Arthur! Arthur!". "Não, Olivia, eles são patos, não são o Arthur!".

"Se você não vai, eu vou!", resmunga a Julia, saindo da cama, surpreendentemente insensível ao meu cataclismo emocional. Só, vendo a Olivia na telinha da babá eletrônica, compreendo que não é ciúmes o que eu sinto, é solidão, uma solidão inédita e brutal: aquela menininha sentada no berço já começou a sair de casa, está indo embora, minuto a minuto, desde o dia em que a embalei no colo, na maternidade; logo, logo, ela parte, de braços dados com algum Arthur, depois eu fico velho, aí eu morro, então acabou-se o que era doce, ou agridoce, tão rápido, tão rápido, que coisa mais doida é isso tudo.

Ação de diretor eleva nota de escola pública

Coordenador de colégio estadual na Penha usa verba arrecadada em festas e doações para melhorar estrutura

Escola está entre as 15 melhores técnicas públicas da capital e saltou 2.000 posições no ranking do Enem

SABINE RIGHETTICOLABORAÇÃO PARA A FOLHA

No final de um corredor repleto de telas a óleo fica a sala de Wilson Neres de Andrade, 52. É de lá que, diante de uma parede vermelha, ele dirige a escola técnica estadual Tiquatira, na Penha (zona leste da capital). Telas e parede foram pintadas por ele mesmo. "Nem parece escola pública, né?", pergunta.

No comando da escola desde 2010, um ano após ter sido criada, Andrade começou o que chama de "pequena revolução", usando festas, mutirões e doações para melhorar a estrutura do colégio.

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No começo, os alunos não queriam assistir às aulas nem havia transporte público até o local. Hoje, com 1.200 estudantes, somando o ensino médio em período integral e os cursos técnicos (química, modelagem e comunicação visual), a escola está entre as 15 melhores técnicas públicas da capital.

"Sigo à risca a teoria do vidro quebrado, que diz que se há algo danificado em um espaço a tendência é de depredação, enquanto o que está preservado será mantido", diz Andrade, que é artista plástico de formação.

ENGAJAMENTO

Na Tiquatira, há um kit com vassoura, pá e produtos de limpeza em cada sala. Para manutenções maiores, a escola convoca pais e alunos para mutirões aos finais de semana. As iniciativas foram suficientes para acabar com as pichações, por exemplo.

Frequência, notas e o engajamento dos alunos melhoraram com o tempo. Foram eles quem, por conta própria, criaram um comitê para escolher o prestador do serviço de almoço na escola. O vencedor cobra R$ 8 pelo prato feito.

O colégio recebe do governo estadual R$ 4.800 mensais para gastos com pequenas reformas. Como não basta, Andrade resolveu arrecadar dinheiro extra por meio de festas esporádicas para os alunos, aos finais de semana.

Cada festa chega a render o mesmo montante que a escola recebe por mês do governo --tudo contabilizado no site da Tiquatira, que o próprio Andrade criou e alimenta.

Para os laboratórios, cujos equipamentos mais caros são comprados anualmente pelo governo via licitação, a solução foi pedir doações. Andrade e alguns docentes saíram batendo de porta em porta.

No laboratório de química, parte dos vidros veio da Ambev. "Fui com o meu carro pegá-los", conta o diretor.

O laboratório ficou tão bom que a escola recebeu um selo de qualidade do CRQ (Conselho Regional de Química) --feito inédito entre escolas públicas técnicas na capital.

SALTO NO ENEM

Só em 2013 a Tiquatira formou a primeira turma que fez todo o ensino médio durante a gestão de Andrade. Nesse mesmo ano, a escola obteve 577 pontos no Enem --acima da média da rede estadual paulista (542), mas abaixo das privadas do Estado de São Paulo (594). De 2012 para 2013, avançou mais de 2.000 posições no ranking nacional do Enem.

"Mas os melhores resultados virão daqui a uns anos, quando as turmas já tiverem iniciado na escola que temos hoje", projeta Andrade.

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E como os professores reagem ao se deparar com o modelo da escola? "Quem é bom fica. Quem não estava a fim de trabalhar sério pediu transferência", diz o diretor.

Cerca de 10% do corpo docente da escola saiu em busca de melhores salários na rede privada --nas técnicas estaduais, o salário é de R$ 17,15 por hora. "Gostaria de ter autonomia para dar aumento para os melhores docentes", afirma Andrade.

MARCELO LEITE

Brasil 2040

Governo despreza estudo sobre o futuro próximo do país, elaborado por suas melhores instituições

Ninguém em sã consciência jogaria no lixo um estudo sobre o futuro próximo do país realizado por algumas de suas melhores instituições. Não, em especial, se ele concluísse que a mudança climática previsível implica riscos graves para os setores de energia e agricultura.

Mas o novo ministro da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) se chama Roberto Mangabeira Unger. E este país é o Brasil, "Pátria Educadora" --pode chamar também de "Madrasta do Planejamento".

O estudo se intitula "Brasil 2040". Teve início em dezembro de 2013 sob a coordenação de Sérgio Margulis, economista que trabalhou duas décadas no Banco Mundial e chefiava a área de Desenvolvimento Sustentável da SAE.

Mangabeira Unger desmontou a equipe e truncou a pesquisa, que deveria estar pronta e acabada antes de junho. Margulis se aposentou e vai fazer outros trabalhos no Rio. Natalie Unterstell, diretora do estudo, pegou uma bolsa em Harvard e vai de veleiro para Cambridge.

Faltou pouco para o "Brasil 2040" ser finalizado. Ele partiu de cenários climáticos para o Brasil criados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, que utilizou quatro modelos de computador para calcular que a temperatura no país pode subir entre 3°C e 6°C em 30 anos.

Numa segunda fase, também já concluída, instituições como Coppe/UFRJ e Ipea partiram dessas projeções para estimar o impacto potencial sobre recursos hídricos, geração de energia, agricultura, saúde e infraestrutura.

Faltou completar a terceira etapa: reunir tudo num conjunto de propostas e prioridades para adaptar o país à mudança do clima. Ninguém sabe o que vai ser feito com essa pilha de informação, que contém coisas de arrepiar.

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Entende-se que ninguém em sã consciência goste de levar más notícias para a presidente Dilma Rousseff, menos ainda um ministro novato. Médio: Mangabeira já ocupou a pasta quando ela foi criada e as más línguas diziam que se chamaria Secretaria de Ações de Longo Prazo (Sealopra).

O ministro, se desse curso e consequência ao "Brasil 2040" --como deveria, para não desperdiçar recursos públicos--, teria de informar ao Planalto que o aumento de temperatura pode acarretar diminuição de chuvas de 15% no Sudeste/Centro-Oeste (SE/CO) e de 10% no Norte (N).

Nas regiões SE/CO se concentra 70% da geração de eletricidade no país. A região N é a única do território com potencial hidrelétrico pouco explorado, e nela as empreiteiras enrascadas na Lava Jato se dedicam a erguer colossos bilionários como Belo Monte (Xingu), Jirau/Santo Antônio (Madeira) e São Luís (Tapajós).

Menos precipitação implica vazão diminuída nos rios. A pesquisa abortada pela SAE avaliou vários cenários, e em alguns deles a afluência para usinas como Belo Monte, Serra da Mesa, Tucuruí, Xingó e Sobradinho pode diminuir até 30%, quiçá 60%.

No setor agrícola, o efeito seria diminuição das áreas de baixo risco para várias culturas: soja (até 39%), milho (até 16%), feijão (até 26%), arroz (até 24%)...

A SAE encolheu-se diante da responsabilidade de propor o que fazer a respeito e só tem olhos para a educação (errando na mosca, pode-se dizer). Falta saber o que fará com tais dados o Ministério do Meio Ambiente, cuja ministra se chama Izabella Teixeira.

TELEVISÃO

Astrofísico estreia talk show que une ciência e celebridades

Em 'Star Talk', cientista mira audiência que 'ainda não descobriu que gosta' da área e quem 'sabe que não gosta'

Neil deGrasse Tyson convidou fundador do Twitter e o Sulu de 'Jornada das Estrelas', mas sonha com Obama

GIULIANA VALLONEDE NOVA YORK

Para o astrofísico Neil deGrasse Tyson, o universo é um lugar hilário. E, se ele não pode fazer com que as pessoas riam disso, obviamente está fazendo algo errado.

É com essa premissa que Tyson estreia neste domingo (19) seu primeiro programa de TV no formato de "talk show", na NatGeo Brasil.

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"Ainda penso nisso como um experimento. Quero trazer a ciência para pessoas que ainda não descobriram que gostam disso e até para os que sabem que não gostam", diz em entrevista à Folha.

Essa tentativa de popularizar a ciência, e seu grande talento como comunicador, renderam a Tyson --diretor do planetário Hayden, em Nova York-- o status de popstar nos EUA. E, com o novo programa, ele quer aproveitar isso para atrair nova audiência.

"Star Talk - Falando com Estrelas" é inspirado em uma série de podcasts homônima produzida por ele. Na TV, a primeira temporada terá dez episódios de uma hora.

"Quero reverter o modelo do programa sobre ciência, em que o jornalista entrevista um cientista a cada semana", afirma. "Sou o cientista e o apresentador, e o convidado quase nunca vai ser um cientista. Vamos falar sobre como a ciência influencia suas vidas." O programa também terá sempre a participação de um comediante.

Nos EUA, o semanal vai competir com os clássicos do fim de noite da TV americana, como "The Daily Show", do humorista Jon Stewart. Mas Tyson nega que queira entrar na corrida pela audiência.

"Quando o programa foi anunciado, as pessoas piraram, como se eu estivesse me acotovelando com os outros para conseguir um espaço."

"Mas não é nada disso. Não seremos levados pelos acontecimentos diários, mas sim por uma mistura de cultura pop, ciência e comédia."

Entre os convidados das próximas semanas estão o ator George Takei, o Sulu de "Jornadas nas Estrelas", o diretor de "Interestelar", Christopher Nolan, e o cofundador do Twitter, Biz Stone.

QUE VENHA OBAMA

E, com a segunda temporada já encomendada pelo canal, Tyson sonha alto com os próximos entrevistados.

"Eu quero trazer o presidente [Barack] Obama para o show. Seria ótimo falar com ele sobre ciência, estou cansado de ouvir sobre o Oriente Médio ou o embargo do petróleo", diz o astrofísico.

A aproximação das eleições presidenciais de 2016 nos EUA também tornaria interessante a presença dos candidatos no "Star Talk", afirma.

Mas e se for Ted Cruz, o senador republicano que nega o aquecimento global? "Adoraria tê-lo no programa. Diria a ele: 'Essa é uma verdade urgente trazida a você por cientistas. Vá discutir suas visões republicanas a respeito disso, não debata a ciência, isso não é uma democracia'."

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"Acho que no final eu acabaria estapeando ele enquanto gritaria: o que você está fazendo?", diverte-se.

MAURICIO STYCER

O triunfo da infantilização

Com uma história bobinha, 'Alto Astral' tem superado o Ibope de 'Babilônia', a principal novela da Globo

Os péssimos números de audiência de "Babilônia", além de provocarem pânico na Globo, tiveram o efeito de chamar a atenção, involuntariamente, para uma outra novela, "Alto Astral", exibida no horário das 19h30.

Primeiro texto assinado por Daniel Ortiz, a comédia com temática espírita tem registrado números mais altos no Ibope do que o drama pesado, com ambição de crítica de costumes e social, de Gilberto Braga, Ricardo Linhares e João Ximenes Braga.

A derrota do produto mais importante da Globo para outros programas da casa é um fenômeno raro, mas não inédito. Neste caso, me chama a atenção que o fracasso de "Babilônia" ocorra diante de uma das novelas mais infantis exibidas nos últimos tempos.

Anunciada pelo diretor Jorge Fernando como "um produto de verão", "Alto Astral" estreou em novembro de 2014. Diferentemente de outras tramas que trataram do espiritismo, como a celebrada "A Viagem" (1994), de Ivani Ribeiro, a novela adotou um ponto de vista humorístico.

À moda de Hollywood, os espíritos do folhetim de Ortiz (seis no total) conversam e brigam entre si, atravessam paredes e atrapalham a vida dos seres deste mundo. Não menos importante, eles interagem com alguns personagens que, sendo "médiuns", são capazes de vê-los ou ouvi-los.

O centro da trama é uma disputa entre dois irmãos médicos, ambos adotados, filhos da família proprietária do principal hospital da fictícia Nova Alvorada. Caíque (Sergio Guizé), o médico bom, é médium e faz cirurgias espirituais em pacientes humildes. Marcos (Thiago Lacerda), o vilão, faz de tudo para prejudicar a vida do irmão e roubar o coração da mocinha, Laura (Nathalia Dill), naturalmente apaixonada por Caíque.

Argumento, roteiro, direção e interpretação canhestra enfatizam, a todo o momento, que se trata de uma história bobinha --puro entretenimento, absolutamente descartável.

A trajetória de uma das principais personagens ilustra bem o triunfo da infantilização em "Alto Astral". Samantha, dita "A Paranormal", foi apresentada

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como uma vilã típica, a vidente picareta, mas à medida que a novela avançava foi se tornando uma personagem exclusivamente cômica.

Em entrevista a Giselle de Almeida, do UOL, Claudia Raia fez uma interessante análise sobre a trajetória da personagem: "No começo era bem definida como vilã, mas não foi assim que o público viu. No primeiro grupo de discussão não lembraram que ela queria matar a mãe pra ficar com a herança dela, não é isso que fica para o público."

Praticamente uma personagem de "Zorra Total", caricata até não poder mais, a Samantha de Claudia Raia é vista pela própria atriz como um trabalho bem-sucedido.

"Recebemos crítica de um único jornal, dentro de tantos outros elogios que a gente está recebendo. Mas não quero saber disso, só do que gera no público, se ele gosta dessa nossa construção. Porque eu não estou fazendo sozinha: o autor escreveu, o diretor dirigiu e eu fiz. Funcionou horrores, e a Samantha é um sucesso."

O sucesso de "Alto Astral" e este fracasso inicial de "Babilônia" podem ser sintomas de um mesmo fenômeno, ou problema, dependendo do ponto de vista.

REPORTAGEM

Rastros de um trauma

A memória do genocídio sobrevive na Armênia

DIOGO BERCITO

RESUMO Na Armênia, em busca das reminiscências do massacre de armênios pelo Império Otomano, a reportagem encontrou narrativas variadas, de histórias dramáticas a críticas à "vitimização". No dia 24, a Armênia rememora os cem anos do genocídio, que a Turquia e outros países, como o Brasil, não reconhecem.

Em Ierevan, as flores brotam no vidro. De pétalas violáceas e miolo amarelo, nascem nas vitrines das lojas e nas janelas dos automóveis. São do gênero miosótis, cujo nome popular --não me esqueças-- tem ali um forte significado.

Os adesivos florais epidêmicos na capital armênia são parte de uma campanha do governo para marcar o centenário do genocídio de seu povo pelo Império Otomano.

Não que a Armênia precisasse recordar aos cidadãos essa história selvagem. Durante uma semana de viagem pelo país, entre a estrada e pequenos povoados,

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a "Ilustríssima" deparou-se com um monumento oral do que foram aqueles anos de violência e perseguição.

Os detalhes, transmitidos por sobreviventes, ainda estão na memória dos 3 milhões de habitantes do país. Mas com variações. A lembrança do genocídio aparece de diferentes maneiras entre as gerações mais antigas e as mais jovens, na cidade e no campo, entre membros do governo e da sociedade.

No subúrbio de Malatia-Sebastia em Ierevan, apelidado Bangladesh por concentrar uma parcela pobre da população, Armen Vardanian, 70, recebe a reportagem com docinhos para contar as histórias que ouvia da mãe. Ela morreu em 2009, aos 104 anos. De uma parede, seu retrato observa a sala.

A casa do eletricista parece um museu voltado para a memória do massacre. Ele mostra nas prateleiras os livros dedicados ao genocídio armênio --em um deles, está registrado o relato de sua mãe. Ele exibe também os DVDs em que guardou os depoimentos dela, em reportagens para a televisão.

"Não tenho filhos, então tento contar essa história para outras pessoas", diz. São relatos que, até recentemente, ele próprio não conhecia. Vardanian cresceu vendo a mãe reunir-se com outros sobreviventes e, a portas fechadas, conversar sobre o que aconteceu.

"Quando ela começou a falar, anos antes de morrer, me chocou. Entendi por que não tinha me contado. Não queria que uma criança participasse do sofrimento dela."

Através da janela do eletricista, o sol que escurece atrás dos picos do Ararat, montanha-símbolo da Armênia, dá um tom de realismo mágico às histórias narradas.

Sua mãe contava ter sido levada de Malatya, na atual Turquia, até Aleppo, na Síria, por uma caravana de camelos. Ali, conheceu quem mais tarde seria o pai de Vardanian e reencontrou-se também com uma vizinha de seu vilarejo.

A amiga, por sua vez, lhe narrou ter sido levada com outras mulheres para uma floresta onde eram mortas a machadadas por um turco. Os corpos, disse, eram jogados em um poço. Ela, no entanto, teria sobrevivido ao último golpe, sendo deixada, nua, em cima da pilha de cadáveres. Inicialmente confundida com um demônio por outro turco que ali passava, foi mais tarde resgatada por ele. "Ele a escondeu por uma semana. Depois, com medo de ser denunciado, pediu perdão e expulsou a jovem de casa, disfarçando-a e fazendo-a passar por turca."

As histórias da família de Vardanian integram a coletânea oral dos relatos dos sobreviventes dos massacres otomanos. No início do século 20, os armênios eram um dos mais importantes grupos cristãos na região --foram dos primeiros na história a converter-se a essa religião, antes mesmo de Roma.

MASSACRES A visão dos massacres como campanha sistemática para matar e deportar armênios de províncias imperiais é negada pela Turquia. O Brasil,

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como EUA e Reino Unido, entre outros, tampouco reconhece a existência de um genocídio armênio.

O marco oficial do episódio é 24 de abril de 1915, quando 250 intelectuais armênios foram detidos em Constantinopla, hoje Istambul, deportados e mortos.

Enquanto a Armênia conta 1,5 milhão de mortos, a Turquia estima o saldo entre 300 mil e 400 mil, que não teriam sido vítimas de perseguição étnica, mas de conflitos políticos, sobretudo por se alinharem à inimiga Rússia durante a Primeira Guerra Mundial.

Eram décadas de grave crise entre os otomanos, com a perda de território na atual Grécia e nos Bálcãs e a economia esfarelando-se. À época, a Europa referia-se ao império como seu "homem doente".

Narrativas como as de Vardanian têm se apagado. Há poucas testemunhas vivas, e essas são as que fugiram do terror ainda crianças. As lembranças mais sólidas são as registradas à época, também por diplomatas e missionários estrangeiros no império.

Parte do arquivo está reunido no Museu do Genocídio, em Ierevan, fechado durante a visita da reportagem, poucas semanas antes da efeméride --alimentando comentários irônicos, na cidade, de que o governo não se organizou, apesar do prazo de cem anos.

Mas a história ainda está presente em vilarejos como Yervandashat, na fronteira com a Turquia. As perseguições no Império Otomano foram a razão pela qual a família de Ruben Sargsyan, 80, cruzou o rio Arax, que naquela região divide a Armênia da Turquia, em 1921. A esperança de que a União Soviética entregasse aos armênios o povoado de onde haviam fugido, Bagaran, foi o motivo pelo qual permaneceram ali por quase cem anos. Eles ainda esperam esse dia.

"Conseguimos ver a nossa antiga casa da estrada. Há curdos vivendo nela", diz Sargsyan, que afirma descender do herói armênio Gevorg Marzpetuni, famoso por suas batalhas. O lar de sua família, afirma, está do outro lado da linha que divide os países. "Foi difícil perceber que não íamos voltar. Meu avô chorava quando olhava para a fronteira."

Ao longo do dia, reaparece em vários relatos a angústia de poder enxergar o que chamam de Armênia Ocidental --hoje, Turquia-- e saber que não podem cruzar aquela fronteira e visitar a terra de onde suas famílias vieram.

Tamanha deve ter sido a repetição desse pensamento enquanto o neto de Sargsyan crescia que há dois anos o menino, também chamado Ruben, entregou aos pais um caderninho surrado onde havia traçado pontos e setas em um complicado mapa.

Hoje com nove anos, ele explica os desenhos, guardados pela família como uma relíquia: representam uma estratégia militar para conquistar os territórios turcos, incluindo Istambul. "Eu enviaria as tropas e os turcos viriam defender-

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se. Então nós os surpreenderíamos pelo outro lado", diz. "Como somos poucos, teríamos que rodeá-los e destroçá-los."

Ruben sonha tornar-se embaixador armênio na Itália, cuja língua aprendeu sozinho assistindo ao canal Rai na TV. Ele ouviu desde cedo a história do desastre sofrido por seus antepassados. Na única escola do vilarejo, a diretora, Mariam Hovhanisian, diz não poupar nenhum de seus 82 alunos, crias das 600 famílias que moram ali. "São jovens, mas isso não nos impede de contar toda a história. Contamos como se eles fossem adultos. Precisam saber."

Yervandashat, como tantos outros povoados, parece viver ainda em décadas anteriores, esquecido não apenas pelo tempo mas principalmente pelo governo. O gás natural não chega até ali. Além dos empregos gerados pela escola ou pelo hospital, o único trabalho é na lavoura de damasco e pêssego.

"Sonho construir uma igreja aqui. Não temos nenhuma", diz a aluna Larissa Ghazarian, 13. "Assim, não ouviríamos o chamado para a reza que vem das mesquitas, do lado turco. Me incomoda."

ASFALTO A reportagem segue a estrada que liga Ierevan ao antigo templo pagão de Garni, que coroa a beira de um precipício. Já a poucos quilômetros da cidade o asfalto começa a falhar, e o cenário se transforma--as construções luxuosas do centro da capital, onde jovens desfilam jaquetas de couro, cedem lugar a casebres empobrecidos e camponeses em trapos.

Jania Hayrapetian, 65, vende legumes em conserva na beira da estrada. Ela diz que se lembra constantemente do genocídio, mesmo sem ter muitos detalhes, por não ter conhecido os avôs. "Mas a situação é tão difícil na Armênia que, quando acordamos, já estamos tentando sobreviver", afirma. "Não pensamos na Turquia."

Enquanto narra a morte de um de seus filhos, por falta de dinheiro para tratar uma hemorragia interna, Hayrapetian é abordada pela vizinha Rosa Melkonian, 68. De sorriso generoso, ela se senta no chão e mostra o resultado do seu dia de trabalho: raízes de uma erva chamada "sibekh", amontoadas dentro de um saco de lixo.

O desastre econômico armênio é, segundo a cientista política Irina Ghaplanyan, 31, o resultado do colapso de suas estruturas após o fim da União Soviética, da qual a atual Armênia fez parte de 1922 até 1991. "Somos reféns do passado --do distante, o do genocídio, e desse, recente."

A Armênia em sua forma presente existe apenas desde o início do século 20, estabelecida em uma pequena porção do que era seu território histórico. Armênios haviam tido um extenso reino por volta do início da era cristã --do Mediterrâneo ao Cáspio-- e outras variações territoriais ao longo do tempo, mas, à época da Primeira Guerra Mundial (1914-18), seu oeste era parte do Império Otomano, e seu leste, domínio russo.

Hoje, o país está em conflito com o Azerbaijão na sua fronteira leste e, a oeste, a passagem para a Turquia está fechada. Sem acesso ao mar, depende

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estrategicamente da Rússia. O PIB per capita do país, segundo o estimado pelo FMI para este ano, é de US$ 3.474 --o do Brasil é de US$ 11.527. Cerca de um terço dos habitantes vive em situação de miséria.

"A opinião da minha geração é de que há que consertar o país antes de exigir o reconhecimento do genocídio", afirma Ghaplanyan. "Sem um país democrático e inclusivo, nada importa. Precisa haver um projeto politicamente viável."

Nascida na Armênia, ela estudou entre EUA, Malta, Reino Unido e Alemanha, enquanto concluía seu projeto de doutorado sobre as elites locais. "Desde a soberania, nós esperamos um líder que esteja engajado na criação de uma narrativa histórica. O governo não age no interesse da nossa nação."

Jovens com instrução e qualificação repetem esse discurso à reportagem ao longo da semana. Um visto para morar nos EUA ou na Europa seduz uma geração ambiciosa. Nos vilarejos é comum que homens da família viajem por longos períodos para países como a Rússia, onde o trabalho é mais vantajoso. Há no país vilarejos habitados só por mulheres.

A cineasta Maria Saakyan fez o caminho inverso. Ela havia se mudado para Moscou com a família em 1992, aos 12 anos, mas voltou a seu país em 2008. Saakyan conta que sonhava regressar e o fez já estabelecida, mas não encontrou, em Ierevan, a recepção que esperava. "Em Moscou, todas as portas estavam abertas para mim. Aqui ninguém me ajuda, mesmo sabendo que represento o cinema local."

Ela diz que "queria criar uma indústria". "Mas não há lei de audiovisual. Não há patrocínio. O governo não sabe diferenciar o bom cinema do ruim. Meus amigos de fora do país fazem mais pelo cinema armênio do que os armênios."

Saakyan afasta com as mãos, enquanto fala, a ideia de filmar a história do genocídio. "Eu nunca vou fazer esse longa que esperam da gente, esse drama de época, com figurino", diz. "Estamos presos nessa questão. É uma dor, mas não podemos seguir com ela."

Embora o genocídio tenha se firmado como elemento central na identidade armênia --a cientista política Ghaplanyan menciona uma "característica de vítima" disseminada na população-- foi em busca de outros traços do passado que a americana Margurite Malikian, 52, desembarcou em Ierevan.

Sua família descende de armênios iranianos, expulsos do país pelo xá Abbas no início do século 17. "Criada como americana", ela se frustrava nos EUA quando outros membros da diáspora se aproximavam. "Percebi que eu não era o que eles procuravam em mim."

"Esperavam que eu fosse uma armênia de coração grande, e eu não era", diz, referindo-se à amabilidade que parece regra no país. "Hoje, tendo estado aqui, procuro a mesma coisa em outros armênios", afirma a professora de ioga.

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Malikian planeja ficar no país por cinco meses, a caminho da Índia. Ela diz que sua relação com a Armênia é de certa forma genética. "As pessoas tratam você como se estivesse voltando para casa, como o primo exótico."

Quando caminha nas ruas de Ierevan --cosmopolita, mas de sociedade conservadora, em que homens e mulheres fazem parte de grupos distintos no espaço público-- Malikian encontra olhos surpresos fincados nos seus dread- locks. "Outro dia uma mulher agarrou meu cabelo na rua, e um homem parou o carro e pediu para pintar meu retrato", diz.

O genocídio, para Malikian, "é parte de ser armênio". Embora sua família tenha emigrado muito antes dos massacres, ela conta ter sido abordada nos Estados Unidos por idosos que lhe diziam ter coletado dinheiro para "o seu povo". O massacre dos armênios, no início do século 20, foi um dos grandes temas humanitários americanos, motivo de inúmeras missões de beneficência. "Vem com o sobrenome" (facilmente reconhecível, pela terminação quase sempre em "ian"), conclui a americana.

Para Malikian, a definição dos massacres como genocídio não importa, diante dos fatos. O essencial, acredita ela, é o indulto. "O perdão beneficia quem perdoa, e não quem é perdoado."

RECONHECIMENTO A campanha do governo armênio, porém, é de insistência no reconhecimento por parte da Turquia de que houve, em seu império anterior, uma eliminação sistemática da etnia.

"Não temos direito de exigir nada", diz em entrevista à "Ilustríssima" Serj Sargsyan, presidente da Armênia, em sua residência oficial. O clima leve na sala, após um de seus assessores ter cantarolado "Canto de Ossanha" à reportagem, perguntando o nome do compositor (Vinicius de Moraes), contrasta com a gravidade da questão.

"O que esperamos é que os valores superem os interesses. É óbvio que diversos países com relações de comércio com a Turquia evitam discutir esse assunto, mas essa não é a postura moral correta. Um genocídio não é contra um povo, é contra a humanidade."

Essa lógica, diz o presidente, perpetua os massacres étnicos. "O genocídio dos judeus aconteceu porque ninguém impediu. Ninguém se lembrava do massacre dos armênios. O perpetrador pensa que está impune, e isso se repete em Ruanda, em Darfur."

O centenário é também uma celebração, diz Vigen Sargsyan, chefe de gabinete armênio.

Em primeiro lugar, de gratidão pela comunidade internacional, que acolheu a diáspora armênia, hoje de 5 milhões de pessoas (entre 20 mil e 40 mil delas no Brasil).

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Além disso, de comemoração pelo estabelecimento de um país armênio, contra as circunstâncias históricas. "Os sobreviventes saíram da fila da morte e criaram uma nova vida. Merecem a celebração."

Mas as histórias sobre a morte prevalecem. Esse é também o tema da artista Nazik Armenakyan, que em 2004 fotografou alguns dos sobreviventes do genocídio. Os retratos, em preto e branco, registram os rostos envelhecidos das poucas pessoas então vivas que haviam testemunhado os massacres. "Eram encontros com a morte, com o cheiro da morte."

Um dos retratos que Armenakyan mostra à reportagem é especialmente impactante. Uma mulher, aos seus cem anos, segura uma fotografia de si mesma quando jovem. "Ela não falava, ouvia ou se mexia quando a encontrei. Mas, quando fui fotografá-la, ela se tornou forte e agarrou a foto. Podia mostrar pela última vez quem ela foi. Depois do retrato, não conseguíamos tirar a imagem das mãos dela, como se ela quisesse ficar com o passado dela."

Armenakyan recorda que perguntava aos fotografados qual era o motivo para viverem tanto. "É incomum que pessoas vivam assim, cem anos, e em tais condições. Parecia que queriam ver, ouvir alguma coisa. Alguns me diziam que queriam ver o lago Van [na atual Turquia] e, então, morrer."

ESTRADA Tão fundamentais quanto os depoimentos desses sobreviventes são as histórias de que se lembram seus filhos e netos. Na estrada, a "Ilustríssima" visita vilarejos ao redor do país em busca dessas memórias, com a ajuda do motorista Ashot Kiragosian, 35.

Sisudo, ele só rompe seu silêncio e sorri quando encosta o carro à beira do caminho e pergunta a algum passante: "Tem 'tatik' aqui nessa vila?", usando o termo em armênio para "vovozinha". Passam-se dias sem que ele fale. Quando o faz, conta que sua bisavó, Aredik, havia sobrevivido ao genocídio. Dela, que morreu recentemente com mais de cem anos, recorda dois traços físicos.

Primeiro, o cabelo longo, que, pela tradição familiar, ela não cortava. "As mulheres só podem cortar o cabelo quando um irmão morre, para cobrir o caixão dele com os fios, e ela não tinha irmãos". Depois, as cicatrizes em todo o corpo, resultantes, segundo ela narrava, de quando uma família turca a escondeu em um forno para salvá-la de um massacre.

"Eu pedia que ela me contasse a sua história para me dar raiva e eu poder matar os turcos. Mas ela dizia que não. Que havia sido salva por uma família turca. Essas pessoas que colocaram a minha bisavó no forno permitiram que muitos armênios, como eu, existissem."

Em um casebre agarrado a uma colina rumo a Geghadir (a 20 km de Ierevan), a história de um resgate pelo suposto inimigo se repete, contada por Azganush Avetisian, 88. Sorridente em seu vestido azul de bolinhas, a anciã passa aos ataques de riso quando nota a dificuldade da tradutora para entender os termos arcaicos que usa.

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Seu pai, narra, sobreviveu escondido entre a vegetação e foi encontrado por um turco. "Ele o ajudou porque meu avô havia ajudado um turco antes", diz Avetisian. "Ele curou meu pai com ervas e o ajudou a fugir para a Rússia numa charrete."

Ela, porém, não se lembra dos detalhes, e repete a mesma história diversas vezes, enquanto sua nora nos serve suco de damasco. O pai veio da região de Khars. Ele carregou pelo resto da vida marcas de corte nos pulsos e na barriga, das quais nunca deixou de falar. Tinha seis irmãos, só resta um.

A cicatriz do genocídio corta longe. Chega ao Brasil, com os sobreviventes refugiados no país. "A existência de uma comunidade armênia no Brasil é uma prova do genocídio", diz Lusine Yeghiazaryan, 40, professora do curso de armênio da USP. Filha de um diplomata, ela visitou o Brasil acompanhando o pai e não retornou.

O curso de armênio foi fundado na USP em 1964 por Yessai Kerouzian, figura quase mítica entre os alunos, que ainda hoje recorrem a seus textos nos estudos. Segundo relatos, ele adaptou uma máquina de escrever, trocando letras latinas por armênias, para impulsionar o intercâmbio linguístico.

Yeghiazaryan define a Armênia como "um prato cheio" para os alunos que buscam "coisas diferentes". Ela frisa a riqueza de sua língua (indoeuropeia, como as línguas latinas ou o grego), de sua cultura (na qual a religião tem um papel central), de sua literatura (escrita em um alfabeto próprio) e de sua história (que acompanha os impérios da região por milênios).

A despeito da variedade de temas armênios ao alcance da pesquisa, o genocídio ainda é um dos principais motivos pelos quais alunos buscam as aulas de Yeghiazaryan e de Deize Pereira, que também ensina no curso --onde ela própria estudou.

"Eu me interessava pelo armênio porque era uma língua antiga, mas nunca pensei que fosse dar aula sobre isso", conta Pereira, que faz parte da terceira geração de professores do curso, hoje com 200 alunos entre suas diferentes disciplinas. "Nunca houve tanta gente interessada na Armênia."

PONTO CRÍTICO

CINEMA | "PARA SEMPRE ALICE" E " MAPA PARA AS ESTRELAS"

Dois filmes no divã

GIOVANNA BARTUCCI

Se há algo em comum entre "Para Sempre Alice", dos cineastas Richard Glatzer e Wash Westmoreland, e "Mapas para as Estrelas", de David Cronenberg, além de Julianne Moore (premiada por ambas atuações, incluindo o Oscar de melhor

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atriz com sua Alice), é o papel nuclear que experiências traumáticas e seus efeitos nos sujeitos ocupam nas tramas.

Enquanto no filme do diretor canadense os traumas infantis aos quais foram submetidos seus personagens são o cerne a partir do qual se irradiam práticas de abandono, humilhação, loucura e assassinato, em "Para Sempre Alice" é a vivência cotidiana do desterramento subjetivo e da degradação física que constitui o âmago de uma experiência aterradora para todos os envolvidos.

É verdade que o filme não deixa de lançar luz sobre a luta da protagonista --uma respeitada linguista da Universidade Columbia que sofre do mal de Alzheimer precoce-- para rastrear e ater-se à Alice que reconhece como si mesma.

Sua vitória, contudo, também depende daqueles que a cercam, sejam eles familiares ou amigos. E é nesse momento, mesmo optando por não se concentrar nos efeitos destrutivos da doença nas relações familiares, que "Para Sempre Alice" explicita a violência contra as pessoas submetidas a experiências dessubjetivantes --ao mesmo tempo que destaca, por outro lado, a importância das experiências subjetivantes.

É o caso do marido afetuoso (Alec Baldwin) que, se tornando quase cruel, distancia-se da mulher à medida que ela deixa, pouco a pouco, de "ser ela mesma" --não mais podendo acompanhá-lo em suas realizações. Ou da filha Anna (Kate Bosworth), de quem Alice é/era mais próxima, que termina por ver na mãe não mais que uma mulher debilitada, esvaziando-a de sua condição de sujeito.

Na outra ponta, cabe a Lydia (Kristen Stewart), a filha com quem sempre teve suas diferenças, a condição de creditar e validar, por meio do investimento amoroso necessário, as iniciativas de Alice no sentido de se reencontrar.

Já no caso de "Mapas para as Estrelas", situações traumáticas organizam distintas experiências subjetivantes --para o bem ou para o mal.

O dr. Stafford Weiss (John Cusack) é terapeuta de inúmeras celebridades, tem um programa de TV e mora, com a mulher, Cristina (Olivia Williams), e o filho, Benjie (Evan Bird), jovem astro de sucesso, numa casa ampla e confortável, cujas paredes são feitas de vidro. Mas a vida de Hollywood e a busca pelo sucesso, somados à exposição de seu cotidiano doméstico, contrastam com o fato de que um grave segredo organiza suas vidas.

Separados na infância e sem conhecimento anterior de sua ligação consanguínea, os irmãos Stafford e Cristina dão à luz Agatha (Mia Wasikowska) e Benjie. Filhos de relações incestuosas, a brincadeira de infância que organiza o delírio da menina esquizofrênica --rejeitada pelos pais-- dramatiza, não à toa, o seu casamento com o irmão. O destino trágico da família é selado, contudo, quando a filha, trazendo consigo o conhecimento do segredo que os une, retorna a Hollywood, após um período de internação em busca de reparação.

Também Havana Segrand (Julianne Moore), uma atriz decadente violentada na infância pela própria mãe, busca retomar a época de sucesso --e superar o

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trauma-- por meio de um remake em que viveria, de maneira ativa, uma personagem interpretada pela mãe quando jovem. Mas, o fato é que, em suas alucinações, Havana encontra-se absolutamente submetida à sua jovem e sádica mãe, e o seu destino trágico é selado quando conhece Agatha.

É possível pensar que o problema em considerar "Para Sempre Alice" algo mais que um filme de atriz está na dificuldade em entrever na trama em que estão envoltos os personagens coadjuvantes algo que não o risco do melodrama. "Mapas para as Estrelas", por outro lado, parece sinalizar que, para além do desejo exibicionista da vida de aparências, da necessidade imperiosa de controle, poder e sucesso, podem ser encontradas experiências traumáticas jamais superáveis.

AMBIENTE

Iluminismo estorricado

A razão arde no fogo do aquecimento global

MARCELO LEITE

RESUMO O escritor Jonathan Franzen, em ensaio na revista "The New Yorker", e o filósofo Dale Jamieson, no livro "Razão em Tempos Escuros", causaram polvorosa apontando o fracasso da luta contra o aquecimento global. Jamieson ao menos crê que a humanidade pode se adaptar, se banir o carvão e reciclar ideias morais corriqueiras.

Quando publicou o romance "Liberdade", em 2010, Jonathan Franzen incomodou a turma dos verdes ao narrar relações incestuosas de ambientalistas com magnatas da indústria. Agora se põe no ataque contra a própria "cause célèbre" do aquecimento global e caminha para se tornar, definitivamente, persona non grata no meio.

No centro da controvérsia está o ensaio "Carbon Capture -Has Climate Change Made it Harder for People to Care about Conservation?" (Captura de carbono "" A mudança do clima faz mais difícil que as pessoas se preocupem com conservação?). O texto saiu na edição de 6 de abril da revista "The New Yorker" e faz uma defesa apaixonada da fauna aviária, segundo ele relegada sob o imperialismo da questão climática.

O escritor colheu reações ácidas dos "climatistas", como a eles se refere. Uma das menos agressivas afirma que Franzen tem "cérebro de passarinho".

Seus críticos, no entanto, atiraram no que viram e erraram no que não viram: o fracasso da luta contra a mudança do clima. Parece mesmo bem limitada a dicotomia servida pelo romancista: ou salvamos o mundo e as futuras gerações

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do aquecimento global, ou preservamos os habitats e as espécies de pássaros sob risco de extinção ""hoje, não no fim do século.

Nada a estranhar, para quem abre o ensaio descrevendo-se como "alguém que se preocupa mais com pássaros do que [com] o próximo". O duplo sentido da frase parece proposital: Franzen declara nutrir um amor como o de são Francisco pelas criaturas presentes no seu campo de visão, ainda que focalizadas com um binóculo --e não tanto por seres humanos que ainda nem nasceram.

Sua irritação tem por alvo a National Audubon Society, organização ambientalista que se dedica à proteção de aves. Ele implicou com um comunicado à imprensa que fala na mudança do clima como "a maior ameaça" contra os pássaros americanos e divulga um estudo prevendo que, em 2080, quase metade das espécies estaria sob risco de perder seus habitats em consequência do aquecimento global.

Franzen enxerga aí um desvio de missão. A Audubon estaria afastando milhões de associados da tarefa de salvar as áreas de reprodução de pássaros de carne e osso e mobilizando-as num combate infrutífero. Para ele, o climatismo aliena: "A questão é se todos os que se preocupam com o ambiente estão obrigados a fazer do clima uma prioridade suprema".

"A mudança climática é sedutora para organizações que querem ser levadas a sério. Além de ser um meme pronto e acabado, é convenientemente imponderável", escreve. "A mudança do clima é culpa de todos --em outras palavras, de ninguém. Todos podemos nos sentir bem por deplorá-la."

NEGLIGÊNCIA Não faltaram "climatistas" para acusar o golpe. David Roberts, da revista "Grist", Joe Romm, da "Climate Progress", e Karl Mathiesen, do jornal britânico "The Guardian", se apegaram ao que consideram negligência jornalística de Franzen e da revista "The New Yorker" para atacar o ensaio e recusar a disjuntiva entre salvar o planeta ou salvar as aves.

Franzen teria lido só o "press release" da Audubon, não o estudo que não conseguiu achar (embora disponível na internet). Além disso, teria interesses ocultos: criticar a sociedade de observadores de pássaros para favorecer outra (American Bird Conservancy, ABC), de cujo conselho participa. Pior: a ABC também apontaria a mudança do clima como grave ameaça. E por aí vai.

Sintomaticamente, todos eles passam ao largo do que há de mais consistente e menos sentimental no ensaio de Franzen: as ideias que não são dele. No caso, o apoio para sua exasperação encontrado em "Reason in a Dark Time" [Oxford USA, R$ 44,45, à venda em formato e-pub no site da livraria Cultura] (Razão em tempos sombrios), do filósofo Dale Jamieson.

É uma base sólida, e talvez por isso tenha sido ignorada. Jamieson se atreve, já no subtítulo, a escrever sobre o combate ao aquecimento global com o verbo no passado --"falhou". A quem vive para (ou vive de) propagar que temos a obrigação moral de legar um mundo não devastado para futuras gerações, soa como uma heresia.

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QUIXOTE Em junho fará 23 anos que quase duas centenas de países tentam pôr de pé um acordo internacional capaz de frear as emissões de gases do efeito estufa. A empreitada quixotesca começou no Rio, em 1992, deu passos titubeantes em Kyoto, em 1997, e se estatelou em Copenhague, em 2009.

Todos os olhos se voltam agora para dezembro deste ano, em Paris. Dessa nova conferência de cúpula sobre o clima, a 21ª, deveria resultar um acordo de redução das emissões mundiais suficiente para impedir que a temperatura média da atmosfera ultrapasse 2 graus Celsius até o fim do século 21.

Não vai dar, como sabem todos que acompanham a questão. Mais alguns passos incrementais serão dados, quando muito.

E não poderia ser muito diferente, argumenta Jamieson, porque há demasiados obstáculos estruturais para a agenda do clima. O filósofo não se considera pessimista, mas realista. Afirma que não estamos num momento único da história e que não somos os primeiros nem seremos os últimos a tomar decisões e fazer coisas que afetarão o planeta e a vida de muitos, inclusive dos que não nasceram.

Jamieson não nega, veja bem, a realidade, o tamanho ou a importância da ameaça climática. Ele só considera que, por seu porte, ela esgota a ideia de que a razão nos faz senhores do destino da espécie e, vá lá, do mundo.

ILUMINISMO "A ação humana é o motor, mas parece que coisas, e não pessoas, detêm seu controle. Nossas corporações, governos, tecnologias, instituições e sistemas econômicos parecem ter vida própria. A sensação é a de vivermos em meio a uma perversão esquisita do sonho do Iluminismo."

A mudança climática não pode ser desfeita. Basta o carbono já lançado na atmosfera para que ele siga em transformação ao longo não só deste século mas deste milênio, pois os gases do efeito estufa ainda circularão por séculos a fio.

Podemos, se tanto, reduzir um pouco a velocidade da mudança e nos adaptar a ela. Contudo, transformar tal possibilidade em ações e políticas públicas, argumenta o autor, vai contra a natureza humana e as intuições morais com que a seleção natural nos equipou.

"A evolução nos construiu para responder a movimentos rápidos de objetos de porte médio, não ao acúmulo lento de gases imperceptíveis na atmosfera", alega Jamieson. E completa: "A maioria de nós reage dramaticamente ao que percebemos, não ao que pensamos. Como resultado, mesmo aqueles de nós preocupados com a mudança do clima temos dificuldade em perceber sua urgência."

Em outras palavras, o fracasso em prevenir ou conter significativamente a mudança do clima reflete o empobrecimento da razão prática, a paralisia da política e os limites da nossa capacidade cognitiva e afetiva, pondera o filósofo. "Nada disso tem chance alguma de mudar em breve."

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Além de adaptação (preparar a infraestrutura para efeitos do aquecimento global) e de se livrar tão cedo quanto possível da energia obtida do carvão, o mais poluente dos combustíveis fósseis, Jamieson tem poucas recomendações práticas a fazer.

ANTROPOCENO Mesmo isso dependeria de adequar à realidade alterada o sentido moral do senso comum, que lida tão mal com interesses alheios, não individuais e distantes. Só resta caminhar na direção do que ele chama de ética para o Antropoceno, "virtudes tradicionais, como humildade, virtudes reinterpretadas, como temperança, e novas virtudes, como consideração, simplicidade, cooperação e respeito pela natureza".

Não é muito diferente do que pediriam os críticos de Franzen, se não estivessem ofuscados pela miragem de um acordo messiânico na Cidade-Luz.

CRÍTICA

ENSAIOS

A condição humana

Duas visões do que é ser judeu

NOEMI JAFFE

RESUMO Dois livros abordam, segundo vias diferentes, a definição da identidade judaica. "Ser Judeu" reúne textos de Vilém Flusser, que destaca a gratuidade e o absurdo como traços comuns. Já "Os Judeus e as Palavras", de Amós Oz e de sua filha Fania-Oz Salzberger, considera a leitura aspecto essencial dessa identidade.

"Ser judeu", de Vilém Flusser (1920-91) e "Os Judeus e as Palavras", de Amós Oz e Fania-Oz Salzberger, são livros semelhantes em suas diferenças e diferentes em suas semelhanças.

O parágrafo acima, em seu aparente absurdo e controvérsia gratuita, já é bem judaico. Afinal, sou judia e, segundo os autores de "Os Judeus e as Palavras" [trad. George Schlesinger, Companhia das Letras, 256 págs., R$ 39,90; e-book R$ 27,90], judeu é qualquer um que goste de polemizar.

Já que ser judeu não é uma religião, nem um povo, nem uma raça, nem uma cultura, talvez a compulsão pela controvérsia seja uma síntese possível do perfil judaico.

Vilém Flusser era um pensador ligado ao existencialismo, com uma linguagem e uma interpretação do real poeticamente abstratas e metafísicas.

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"Ser Judeu" [trad. Murilo Jardelino e Marcelo Rouanet, Annablume, 246 págs., R$ 55] é uma coletânea de vários ensaios produzidos ao longo dos anos que o autor tcheco naturalizado brasileiro viveu no país (numa edição que, diga-se, tem o maior número de erros que já encontrei num mesmo livro) e é possível dizer, de forma breve, que Flusser lamenta, em sua condição incontornavelmente racionalista, não ser um simples "chassid", cumpridor feliz e sabiamente tolo dos rituais judaicos.

Sua leitura do real e do judaísmo é complexamente apegada a uma simplicidade impossível para um filósofo que já não pode mais sentir "a alegria espontânea de viver o absurdo". Absurdo que, segundo ele, é um dos fundamentos do judaísmo (inclusive em sua interpretação definitiva de Kafka).

Amós Oz e sua filha, a historiadora Fania Oz-Salzberger, ambos declaradamente ateus e seculares, identificam como traço definidor do judaísmo, só e simplesmente, a leitura. "Não é preciso ser arqueólogo, antropólogo, geneticista para traçar um continuum judaico. Não é preciso ser um judeu praticante. Não é preciso ser judeu. Ou, quanto a isso, ser antissemita. Basta ser um leitor." Para os dois, o lugar do judeu é o livro, e se você, leitor que se considera não judeu, for um leitor ativo e crítico, um comentarista da leitura, sinto dizer, mas, para os Oz, você é judeu.

Ocorre que essa defesa do livro como o espaço perene do judaísmo é narrada de forma simples e pé no chão, carregada de anedotas, piadas, casos talmúdicos e uma abordagem da realidade que, de tão prática (o judaísmo é também uma práxis), é quase pragmática.

Ou seja, o livro complexo se apega à gratuidade absurda do simples e o livro simples defende a elevação espiritual pela leitura.

PARADOXOS Nada mais judaico do que esses paradoxos complementares, ambos corretos, mas, referindo-se, talvez, a dois tipos diferentes de judeus --para Oz, a palavra "judeus", porque parte de indivíduos, é muito mais interessante como nomenclatura do que "judaísmo", um termo recente na história e que, atualmente, serve até a propósitos segregadores.

Flusser, a partir da observação de um de seus melhores amigos, Romy, estranha continuamente a alegria serena e inexplicável daqueles que, como esse amigo, são cumpridores rigorosos das festividades e dos rituais judaicos.

Como Romy, homem estudioso, racional, amante das artes seculares, pode seguir as cerimônias e regras com tanto fervor, sem se questionar e, ainda assim, permanecer em estado de contínua alegria?

A resposta de Flusser é só aparentemente simples.

Essas limitações seriam justamente a razão pela qual Romy podia atingir o êxtase impossível --ao menos para a maioria dos intelectuais cuja palavra de ordem é, quase sempre, a melancolia. "Compreendi que os inúmeros mandamentos e proibições do judaísmo não são limitações, mas aberturas para

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uma vida santificada, festiva. Pois isto é o ritual judaico: formalismo como abertura para o existencialismo verdadeiro."

Flusser compreende, na festividade, o que chama de "acte gratuit", a prática da existência, ou a existência prática, sem finalismos ou utilitarismos que a assombrem; gestos sem esperança de recompensa --e, o que é mais revolucionário, sem noção de sacrifício. A má ação é evitada não porque será punida, mas por ser ruim em si.

Nesse sentido, a visão flusseriana do judaísmo lembra alguns comentários de outro filósofo judeu, Lévinas, que, por sua vez, pensa o "eu" não em termos do Ser (como fazia Heidegger), mas em termos de bondade e gratuidade.

É principalmente na "finalidade sem fim" das festas e no bem desmesurado e desnecessário de sua prática que Flusser enxerga a condição alegremente absurda da vivência judaica. (Oz, aqui, poderia tranquilamente intervir com suas piadas ou histórias em que o próprio Deus discute com alguns rabinos e, para espanto do leitor crédulo, sai perdendo).

Já em "Os Judeus e as Palavras", pai e filha veem na combinação "pão e palavras", ou "pão e livros", a explicação para a sobrevivência tão longa e marginal dos judeus na diáspora, desde sua expulsão para a Babilônia. Foi em torno da mesa, comendo, lendo, estudando e discutindo a Torá (e assim, criando o Talmud) que os judeus mantiveram sua condição, mesmo que sempre instável (e por causa dela).

Discordar, obedecer compreendendo --por oposição à gratuidade do "chassid" de Flusser-- e mesmo, por que não, desobedecer respeitando são os caminhos que definem o ser judaico. Deus, para os autores, é mais uma das palavras criadas pelos judeus para compor sua história --embora, claro, seja uma das mais importantes.

Numa das parábolas contadas no livro um rabino chega aos céus para encontrar Deus, não em contemplação ou êxtase, mas estudando. "Por que Deus haveria de estar estudando? Bem, por que não? Não é ele a 'yid'? É isso o que faz um judeu. Estuda!"

Entretanto, é nas semelhanças entre os dois livros, embora tratem de dois tipos judaicos diferentes, que se perfaz mais profundamente a dialética que mais os une do que os separa e que, por sua vez, legitima a visão de ambos sobre o judaísmo como um conhecimento de alcance e interesse universais.

Para Flusser, a festa gratuita do judeu acontece na relação intersubjetiva de cada pessoa com seu semelhante e na aceitação do mistério e da impossibilidade de conhecer o outro.

"O rosto humano é a única imagem de Deus que conhecemos" e é eternamente impossível compreendê-lo. Por isso é preciso abrir-se a esse desconhecido e, segundo o autor, só há duas maneiras de assumir-se judeu: "para os outros judeus ou para o mundo".

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É claro que Flusser recomenda a segunda alternativa: "O que nos faz falta é o movimento diastólico que abre o judaísmo para os outros, ao se abrir para eles". Mas essa atitude de abertura para o outro, não só para os judeus, pode se conciliar com o cumprimento gratuito das regras judaicas? Para Flusser, sim. Aliás, do modo como ele interpreta as limitações, essa seria uma das formas mais poéticas de abrir-se, como conseguia fazer seu grande amigo Romy.

"O judaísmo pode reduzir-se a um mero gozo da sacralidade ou a uma vida que assume a responsabilidade da existência em mundo absurdo pelo reconhecimento do sacro em outro homem". No caso, qualquer outro homem, não só qualquer outro homem judeu.

Já Amós Oz e sua filha, ao depositarem nas palavras e na leitura o eixo da continuidade judaica (afinal, o judaísmo pode ser isso --nem religião, nem povo, nem cultura, mas uma continuidade), universalizam a ideia do judeu para qualquer pessoa que se dedique a comentar os textos sagrados e, ainda mais longe, os textos em geral.

Se a interpretação, para os Oz, é a palavra-chave do judaísmo, é na leitura que os autores fazem de alguns trechos da Torá e da Mishná que se revelam as afinidades fundas entre sua visão e a de Flusser: se "toda alma é um mundo inteiro" (...) "cada um de nós deve ser infinitamente importante para os outros e para o coletivo, porque cada um é uma variante única da imagem de Deus".

Um judaísmo que ama e respeita as possibilidades infindas das palavras é, afinal, um judaísmo que ama e respeita quem as cria e quem as pronuncia. Ou seja, todos. Se as histórias bíblicas são fatos ou parábolas, se foram escritas por homens ou por Deus, não diz tanto respeito aos autores. O que importa é que elas existem, são belas, construtivas e pedagógicas.

"Enquanto numerosas gerações de judeus devotamente acreditaram que sem deus não haveria netos, no fundo de seus corações também sabiam que sem netos não haveria nenhum deus." O tempo judaico, dizem os Oz, é tão importante quanto seu espaço. O tempo, aliás, pode ser a morada do judeu.

Se Flusser pede a abertura do ser judeu para o outro, também Oz relembra que quem quer que, como os judeus, tenha tido seu mundo desfeito não pode ser estranho aos judeus. "O lancinante sentimento de um mundo desfeito --não apenas perdido, desfeito-- permeia igualmente as calamidades palestina e judaica."

Termino a leitura dos dois livros, assim como este breve ensaio, ainda me perguntando: mas por que sou judia? Por que qualquer pessoa é um judeu?

Não tenho a resposta definitiva, embora essas leituras tenham me ajudado a esclarecer algumas coisas. Mantendo vivos o desejo e a prática de continuamente me abrir para o desconhecido, de me compadecer da dor alheia, de praticar gestos absurdos e gratuitos com quem quer que seja e de sempre respeitar a ambiguidade das palavras e das leituras, terei a bênção de dois dos judeus que mais respeito e admiro.


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