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  • FAZENDEIRO DO AR (1952-1953)

  • HABILITAO PARA A NOITE

    Vai-me a vista assim baixandoou a terra perde o lume?Dos cem prismas de uma jia,quantos h que no presumo.

    Entre perfumes rastreioesse bafo de cozinha.Outra noite vem descendocom seu bico de rapina.

    E no quero ser dobradonem por astros nem por deuses,polcia estrita do nada.

    Quero de mim a sentenacomo, at o fim, o desgastede suportar o meu rosto.

  • NO EXEMPLAR DE UM VELHO LIVRO

    Neste brejo das almaso que havia de inquietopor sob as guas calmas!

    Era um susto secreto,eram furtivas palmasbatendo, louco inseto,

    era um desejo obscurode modelar o vento,eram setas no muro

    e um grave sentimentoque hoje, varo maduro,no punge, e me atormento.

  • BRINDE NO BANQUETE DAS MUSAS

    Poesia, marulho e nusea,poesia, cano suicida,poesia, que recomeasde outro mundo, noutra vida.

    Deixaste-nos mais famintos,poesia, comida estranha,se nenhum po te eqivale:a mosca deglute a aranha.

    Poesia, sobre os princpiose os vagos dons do universo :em teu regao incestuoso,o belo cncer do verso.

    Azul, em chama, o telrioreintegra a essncia do poeta,e o que perdido se salva...Poesia, morte secreta.

  • DOMICLIO

    ... O apartamento abriajanelas para o mundo. Crianas vinhamcolher na maresia essas notciasda vida por viver ou da inconsciente

    saudade de ns mesmos. A pobrezada terra era maior entre os metaisque a rua misturava a feios corpos,duvidosos, na pressa. E do terrao

    em solitude os ecos refluame cada exlio em muitos se tornavae outra cidade fora da cidade

    na garra de um anzol ia subindo,adunca pescaria, mal difuso,problema de existir, amor sem uso.

  • O QUARTO EM DESORDEM

    Na curva perigosa dos cinqentaderrapei neste amor. Que dor! que ptalasensvel e secreta me atormentae me provoca sntese da flor

    que no se sabe como feita: amor,na quintessncia da palavra, e mudode natural silncio j no cabeem tanto gesto de colher e amar

    a nuvem que de ambgua se diluinesse objeto mais vago do que nuveme mais defeso, corpo! corpo, corpo,

    verdade to final, sede to vria,e esse cavalo solto pela cama,a passear o peito de quem ama.

  • RETORNO

    Meu ser em mim palpita como forado chumbo da atmosfera constritora.Meu ser palpita em mim tal qual se foraa mesma hora de abril, tornada agora.

    Que face antiga j se no descoralendo a efgie do corvo na da aurora?Que aura mansa e feliz dana e redourameu existir, de morte imorredoura?

    Sou eu nos meus vinte anos de lavourade sucos agressivos, que elaborauma alquimia severa, a cada hora.

    Sou eu ardendo em mim, sou eu emborano me conhea mais na minha floraque, fauna, me devora quanto pura.

  • CONCLUSO

    Os impactos de amor no so poesia(tentaram ser: aspirao noturna).A memria infantil e o outono pobrevasam no verso de nossa urna diurna.

    Que poesia, o belo? No poesia,e o que no poesia no tem fala.Nem o mistrio em si nem velhos nomespoesia so: coxa, fria, cabala.

    Ento, desanimamos. Adeus, tudo!A mala pronta, o corpo desprendido,resta a alegria de estar s, e mudo.

    De que se formam nossos poemas? Onde?Que sonho envenenado lhes responde,se o poeta um ressentido, e o mais so nuvens?

  • A DISTRIBUIO DO TEMPO

    Um minuto, um minuto de esperana,e depois tudo acaba. E toda crenaem ossos j se esvai. S resta a mansadeciso entre morte e indiferena.

    Um minuto, no mais, que o tempo cansa,e sofisma de amor no h que venaeste espinho, esta agulha, fina lanaa nos escavacar na praia imensa.

    Mais um minuto s, e chega tarde.Mais um pouco de ti, que no te dobras,e que eu me empurre a mim, que sou covarde.

    Um minuto, e acabou. Relgio solto,indistinta viso em cu revolto,um minuto me baste, e a minhas obras.

  • VIAGEM DE AMRICO FAC

    Sombra mantuana, o poeta se encaminhaao inframundo deserto, onde a corolanoturna desenrola seu mistriofatal mas transcendente; queles paos

    tecidos de pavor e argila cndida,onde o amor se completa, despojadoda cinza dos contactos. Desta margem,diviso, que se esfuma, a esquiva barca,

    e aceno-lhe: Gentil, gentil esprito,sereno quanto forte, que me ensinasa arte de bem morrer, fonte de vida,

    uniste o raro ao raro, e compusestede humano desacorde, isento, puro,teu cntico sensual, flauta e celeste.

  • CIRCULAO DO POETA

    Nesta manh de trao fino e ardente,passei, caro Fac, por tua casa.Inda estavas dormindo (ou j dormias)o sono mais perfeito, mas vagavas

    na safira em que os seres se deliam,entre pardais bicando luz, e pombas,nesse contentamento vaporosoque a vida exala quando j cumprida.

    Senti tua presena maliciosa,transfundida na cr, no espao livre,nos corpos nus que a praia convidava.

    No sabiam de ti, que eras um deles,e levavam consigo, dom secreto,uma negrinha em flor, um verso hermtico.

  • CONHECIMENTO DE JORGE DE LIMA

    Era a negra Ful que nos chamavade seu negro vergel. E eram trombetas,salmos, carros de fogo, esses murmriosde Deus a seus eleitos, eram puras

    canes de lavadeira ao p da fonte,era a fonte em si mesma, eram nostlgicasemanaes de infncia e de futuro,era um ai portugus desfeito em cana.

    Era um fluir de essncias e eram formasalm da cr terrestre e em volta ao homem,era a inveno do amor no tempo atmico,

    o consultrio mtico e lunar(poesia antes da luz e depois dela),era Jorge de Lima e eram seus anjos.

  • O ENTERRADO VIVO

    sempre no passado aquele orgasmo, sempre no presente aquele duplo, sempre no futuro aquele pnico.

    sempre no meu peito aquela garra. sempre no meu tdio aquele aceno. sempre no meu sono aquela guerra.

    sempre no meu trato o amplo distrato.Sempre na minha firma a antiga fria.Sempre no mesmo engano outro retrato.

    sempre nos meus pulos o limite. sempre nos meus lbios a estampilha. sempre no meu no aquele trauma.

    Sempre no meu amor a noite rompe.Sempre dentro de mim meu inimigo.E sempre no meu sempre a mesma ausncia.

  • CEMITRIOS

    GABRIEL SOARES

    O corpo enterrem-me em So Bentona capela-mor com um letreiro que digaAqui jas um pecadorSe eu morrer na Espanha ou no marmesmo assim l estar minha campae meu letreiroNo dobrem sinos por mime se faam apenas os sinaispor um pobre quando morre

    CAMPO-MAIOR

    No Cemitrio de Batalho os mortos do Jenipapono sofrem chuva nem sol; o telheiro os protege,asa imvel na runa campeira.

    DOMSTICO

    O co enterrado no quintalTodas as memrias sepultadas nos ossosA casa muda de donoA casa olha foi destrudaA 30 metros no ar a guria v a gravura de um coQue isso mezinha

    e a me respondeEra um bicho daquele tempoAh que fabuloso

  • DE BOLSO

    Do lado esquerdo carrego meus mortos.Por isso caminho um pouco de banda.

    ERRANTE

    Urnaque minha tia carregou pelo Brasilcom as cinzas de seu amor tornado incorruptvelmisturado ao vestido preto, saia branca, boca morenaurna de cristal urna de silho urna praieira urna oitocentistaurna molhada de lgrimas grossas e de chuva na estradaurna bruta esculpida em paixo de andrade sem paz e sem remissovinte anos viajeiraurna urna urnacomo um grito na pele da noite um lamento de bichotalvez entretanto azul e com florinhasurna a que me recolho para dormir enrodilhadourna eu mesmo de minhas cinzas particulares.

  • MORTE DE NECO ANDRADE

    QUANDO MATARAM

    Neco Andrade, no pude sentir bastante emoo porque tinha de representar no teatrinho de amadores, e essa responsabilidade comprimia tudo.

    A faca relumiou no campo assim a vislumbrei, ao circular a notcia e Neco, retorcendo-se, tombou do cavalo, e o assassino se curva para verificar a morte, e a tarde se enovela em vapores escuros, edesce a umidade.

    Caminhei para o palco temeroso de no lembrar a frase longa e difcil que me cabia proferir. O mau amador vive rodo de dvidas. Receava a desa-provao do auditrio, e sua prvia reflexo em mim j frustrava o gesto, j tolhia a produo do mais autntico.

    O CAVALO

    erra alguns instantes na plancie, dedicao sem alvo. O assassino pondera o entardecer. E vela os despojos, enquanto mede as possibilidadesde fuga. Evm a os soldados, atrados pelo vento, pelo grito final do Andrade, pela secreta abdicao do criminoso, que, na medula, se sabe perdido. No podemos matar nosso patro; de ventre vasado, le se vinga.

    O cadver de Neco atravessa canhestramente o segundo ato, da esquerda para a direita, volta, hesita, sai, instala-se nos bastidores em baixo da escada. As deixas perdem-se, o dilogo atropela-se, Neco estse esvaindo em silncio e eu, seu primo, no sei socorr-lo.

    O ASSASSINO

    chega preso, a multido aode cadeia, todos o contemplam a um metro, nem isso, de distncia. Joana roa-lhe a manga do palet, sujo de terra. Est sentado, mudo. Na casa de Neco. em frente ponte, luzes se armam em velrio, e a escada toda sonora de botas e botinas rinchando.

    Agora o palco ficou vazio para caber a forma baia e ondulante que

  • progride, esmagando palavras. Da montaria de Neco pendem as caambas de Neco. Vai pisar em mim. Afastou-se, no trote deserto.

    SERIA REMORSO

    por me consagrar ao espetculo quando j o sabia morto? No, que o espetculo grande, e seduzia para alm da ordem moral. E nossos ramos de famlia nem se davam. Pena de perd-lo, nutrida de alguma velha lembrana particular, que floresce mesmo entre cls adversrios? Pena comum, que toda morte violenta faz germinar? Nem isso. Mas o ventre vasado, como se fosse eu que o vasasse, eu menino, desarmado. Intestinos de Neco, emaranhados, insolentes, vista de estranhos. Vede o interior de um homem, a sede da clera; aqui os prazeres criaram raiz, e o que obscuro em nosso olhar, encontra explicao.

    E TUDO

    se desvenda: sou responsvel pela morte de Neco e pelo crime de Augusto, pelo cavalo que foge e pelo coro de vivas pranteando. No possorepresentar mais; por todo o sempre e antes do nunca sou responsvel, responsvel, responsvel, responsvel. Como as pedras so responsveis, e os anjos, principalmente os anjos, so responsveis.

  • ESTRAMBOTE MELANCLICO

    Tenho saudade de mim mesmo, sau-dade sob aparncia de remorso,de tanto que no fui, a ss, a esmo,e de minha alta ausncia em meu redor.Tenho horror, tenho pena de mim mesmoe tenho muitos outros sentimentosviolentos. Mas se esquivam no inventrio,e meu amor triste como vrio,e sendo vrio um s. Tenho carinhopor toda perda minha na correnteque de mortos a vivos me carreiae a mortos restitui o que era delesmas em mim se guardava. A estrela d'alvapenetra longamente seu espinho

    (e cinco espinhos so) na minha mo.

  • ETERNO

    E como ficou chato ser moderno.Agora serei eterno.

    Eterno! Eterno!O Padre Eterno,a vida eterna,o fogo eterno.

    (Le silence eternel de ces espaces infinis m'effraie.)

    O que eterno, Yay Lindinha? Ingrato! o amor que te tenho.

    Eternalidade eternite eternaltivamenteeternuvamos

    eternicssimoA cada instante se criam novas categorias do eterno.

    Eterna a flor que se fanase soube florir o menino recm-nascidoantes que lhe dem nomee lhe comuniquem o sentimento do efmero o gesto de enlaar e beijarna visita do amor s almaseterno tudo aquilo que vive uma frao de segundomas com tamanha intensidade que se petrifica e nenhuma fora o resgata minha me em mim que a estou pensandode tanto que a perdi de no pens-la o que se pensa em ns se estamos loucos tudo que passou, porque passou tudo que no passa, pois no houveeternas as palavras, eternos os pensamentos; e passageiras as obras.Eterno, mas at quando? esse marulho em ns de um mar profundo.

  • Naufragamos sem praia; e na solido dos botos afundamos. tentao e vertigem; e tambm a pirueta dos brios.

    Eternos! Eternos, miseravelmente.O relgio no pulso nosso confidente.

    Mas no quero ser seno eterno.Que os sculos apodream e no reste mais do que uma essnciaou nem isso.E que eu desaparea mas fique este cho varrido onde pousou uma sombrae que no fique o cho nem fique a sombramas que a preciso urgente de ser eterno bie como uma esponja no caose entre oceanos de nadagere um ritmo.

  • ESCADA

    Na curva desta escada nos amamos,nesta curva barroca nos perdemos.

    O caprichoso esquemaunia formas vivas, entre ramas.

    Lembras-te, carne? Um arrepio telepticovibrou nos bens municipais, e dando volta

    ao melhor de ns mesmos,deixou-nos ss, a esmo,

    espetacularmente ss e desarmados,que a nos amarmos tanto eis-nos morridos.

    E mortos, e proscritosde toda comunho no sculo (esta espira testemunha, e conta), que restava

    das lnguas infinitasque falvamos ou surdas se lambiamno cu da boca sempre azul e co?

    Que restava de ns,neste jardim ou nos arquivos, que restavade ns, mas que restava, que restava?

    Ai, nada mais restara,que tudo mais, na alva,

    se perdia, e contagiando o canto aos passarinhos,vinha at ns, podrido e trmulo, anunciandoque amor fizera um novo testamento,e suas prendas jaziam sem herdeirosnum ptio branco e ureo de laranjas.

    Aqui se esgota o orvalho,e de lembrar no h lembrana. Entrelaados,insistamos em ser; mas nosso espectro,submarino, flor do tempo ia apontando,

  • e j noturnos, rotos, desossados,nosso abrao doa

    para alm da matria esparsa em nmeros.

    Asa que ofereceste o pouso raroe danarino e rotativo, clculo,

    rosa grimpante e finaque terra nos prendias e furtavas,

    enquanto a reta insigneda torre ia lavrando

    no campo desfolhado outras quimeras:sem ti no somos mais o que antes ramos.

    E se este lugar de exlio hoje passeiafaminta imaginao atada aos corvos

    de sua prpria ceva,escada, assuno,

    ao cu alas em vo o alvo pescoo,que outros peitos em ti se beijariam

    sem sombra, e fugitivos,mas nosso beijo e baba se incorporamde h muito ao teu cimento, num lamento.

  • ELEGIA

    Ganhei (perdi) meu dia.E baixa a coisa friatambm chamada noite, e o frio ao frioem bruma se entrelaa, num suspiro.

    E me pergunto e me respirona fuga deste dia que era milpara mim que esperavaos grandes sis violentos, me sentiato rico deste diae l se foi secreto, ao serro frio.

    Perdi minha alma flor do dia ou j perderabem antes sua vaga pedraria?Mas quando me perdi, se estou perdidoantes de haver nascidoe me nasci votado perdade frutos que no tenho nem colhia?

    Gastei meu dia. Nele me perdi.De tantas perdas uma clara viapor certo se abririade mim a mim, esteia fria.As rvores l fora se meditam.O inverno quente em mim, que o estou berandoe em mim vai derretendoeste torro de sal que est chorando.

    Ah, chega de lamento e versos ditosao ouvido de algum sem rosto e sem justia,ao ouvido do muro,ao liso ouvido gotejantede uma piscina que no sabe o tempo, e fiaseu tapete de gua, distrada.

  • E vou me recolherao cofre de fantasmas, que a notciade perdidos l no chegue nem auleos olhos policiais do amor-vigia.No me procurem que me perdi eu mesmocomo os homens se matam, e as enguias loca se recolhem, na gua fria.

    Dia,espelho de projeto no vivido,e contudo viver era to flamasna promessa dos deuses; e to rspidoem meio aos oratrios j vaziosem que a alma barroca tenta confortar-semas s vislumbra o frio noutro frio.

    Meu Deus, essncia estranhaao vaso que me sinto, ou forma v,pois que, eu essncia, no habitovossa arquitetura imerecida;meu Deus e meu conflito,nem vos dou conta de mim nem desafioas garras inefveis: eis que assistoa meu desmonte palmo a palmo e no me aflijode me tornar plancie em que j pisamservos e bois e militares em servioda sombra, e uma crianaque o tempo novo me anuncia e nega.

    Terra a que me inclino sob o friode minha testa que se alonga,e sinto mais presente quanto aspiroem ti o fumo antigo dos parentes,minha terra, me tens; e teu cativopasseias brandamentecomo ao que vai morrer se estende a vistade espaos luminosos, intocveis:em mim o que resiste so teus poros.Corto o frio da folha. Sou teu frio.

  • E sou meu prprio frio que me fecholonge do amor desabitado e lquido,amor em que me amaram, me feriramsete vezes por dia em sete diasde sete vidas de ouro,amor, fonte de eterno frio,minha pena deserta, ao fim de maro,amor, quem contaria?E j no sei se jogo, ou se poesia.

  • CANTO RFICO

    A dana j no soa,a msica deixou de ser palavra,o cntico se alongou do movimento.Orfeu, dividido, anda procuradessa unidade urea, que perdemos.

    Mundo desintegrado, tua essnciapaira talvez na luz, mas neutra aos olhosdesaprendidos de ver; e sob a pele,que turva imporosidade nos limita?De ti a ti, abismo; e nele, os ecosde uma prstina cincia, agora exangue.

    Nem tua cifra sabemos; nem capt-ladera poder de penetrar-te. Erra o mistrioem torno de seu ncleo. E restam poucosencantamentos vlidos. Talvezum s e grave, tua ausnciaainda retumba^ em ns, e estremecemos,que uma perda se forma desses ganhos.

    Tua medida o silncio a cinge e quase a insculpe,braos do no-saber. fabulosomudo paraltico surdo nato incgnitona raiz da manh que tarda, e tarde,quando a linha do cu em ns se esfuma,tornando-nos estrangeiros mais que estranhos.No duelo das horas tua imagematravessa membranas sem que a sortese decida a escolher. As artes ptreasrecolhem-se a seus tardos movimentos.Em vo: elas no podem.

    Amplovazioum espao estelar espreita os signosque se faro doura, convivncia,espanto de existir, e mo completacaminhando surpresa noutro corpo.

  • A msica se embala no possvel,no finito redondo, em que se crispauma agonia moderna. O canto branco,foge a si mesmo, vos! palmas lentassobre o oceano esttico: balanode anca terrestre, certa de morrer.

    Orfeu, refine-te! chama teus dispersose comovidos membros naturais,e lmpido reinaugurao ritmo suficiente, que, nostlgico,na nervura das folhas se limita,quando no compe no ar, que todo frmito,uma espera de fustes, assombrada.

    Orfeu, d-nos teu nmerode ouro, entre aparnciasque vo do vo granito linfa irnica.Integra-nos, Orfeu, noutra mais densaatmosfera do verso antes do canto,do verso universo, latejanteno primeiro silncio,promessa de homem, contorno ainda improvvelde deuses a nascer, clara suspeitade luz no cu sem pssaros,vazio musical a ser povoadopelo olhar da sibila, circunspecto.

    Orfeu, que te chamamos, baixa ao tempoe escuta:s de ousar-se teu nome, j respiraa rosa trismegista, aberta ao mundo.

  • A LUS MAURCIO, INFANTE

    Acorda, Lus Maurcio. Vou te mostrar o mundo,se que no preferes v-lo de teu reino profundo.

    Despertando, Lus Maurcio, no chores mais que um tiquinho.Se as crianas da Amrica choram em coro, que seria,

    [digamos, de teu vizinho?

    Que seria de ti, Lus Maurcio, pranteando mais que o necessrio?Os olhos se inflamam depressa, e do mundo o espetculo vrio

    e pede ser visto e amado. to pouco, cinco sentidos.Pois que sejam lpidos, Lus Maurcio, que sejam novos e comovidos.

    E como h tempo para viver, Lus Maurcio, podes gast-lo janelaque d para a Justicia del Trabajo, onde a imaginosa linha da hera

    tenazmente compe seu desenho, recobrindo o que feio, formal e triste.Sucede que chegou a primavera, menino, e o muro j no existe.

    Admito que amo nos vegetais a carga de silncio, Lus Maurcio.Mas h que tentar o dilogo, quando a solido vcio.

    E agora, comea a crescer. Em poucas semanas um homemse manifesta na boca, nos rins, na medalhinha do nome.

    J te vejo na proporo da cidade, dessa caminha em que dormes.Dir-se-ia que s o ano de Harrods, hoje velho, entre garotos enormes,

    conserva o disfarce da infncia, como, na sua imobilidade, esquina de Crdoba e Florida, s aquele velho pendido e sentado,

    de luvas e sobretudo, v passar ( cego) o tempo que no enxergamos,o tempo irreversvel, o tempo exttico, espao vazio entre ramos.

    O tempo que fazer dele? Como adivinhar, Lus Maurcio,o que cada hora traz em si de plenitude e sacrifcio?

  • Hs de aprender o tempo, Lus Maurcio. E h de ser tua cinciauma to ntima conexo de ti mesmo e tua existncia,

    que ningum suspeitar nada. E teu primeiro segredoseja antes de alegria subterrnea que de soturno medo.

    Aprenders muitas leis, Lus Maurcio. Mas se as esqueceres depressa,outras mais altas descobrirs, e ento que a vida comea,

    e recomea, e a todo instante outra: tudo distinto de tudo,e anda o silncio, e fala o nevoento horizonte; e sabe guiar-nos o mudo.

    Pois a linguagem planta suas rvores no homem e quer v-las cobertasde folhas, de signos, de obscuros sentimentos, e avenidas desertas

    so apenas as que vemos sem ver, h pelo menos formigasatarefadas, e pedras felizes ao sol, e projetos de cantigas

    que algum um dia cantar, Lus Maurcio. Procura deslindar o canto.Ou antes, no procures. le se oferecer sob forma de pranto

    ou de riso. E te acompanhar, Lus Maurcio. E as palavras sero servasde estranha majestade. tudo estranho. Medita, por exemplo, as ervas,

    enquanto s pequeno e teu instinto, solerte, festivamente se aventuraat b mago das coisas. A que veio, que pode, quanto dura

    essa discreta forma verde, entre formas? E imagina ser pensadopela erva que pensas. Imagina um elo, uma afeio surda, um passado

    articulando os bichos e suas vises, o mundo e seus problemas;imagina o rei com suas angstias, o pobre com seus diademas,

    imagina uma ordem nova; ainda que uma nova desordem, no ser bela?Imagina tudo: o povo, com sua msica; o passarinho, com sua donzela;

    o namorado, com seu espelho mgico; a namorada, com seu mistrio;a casa, com seu calor prprio; a despedida, com seu rosto srio;

    o fsico, o viajante, o afiador de facas, o italiano das sortes e seu realejo;o poeta, sempre meio complicado; o perfume nativo das coisas e seu arpejo;

  • o menino que teu irmo, e sua estouvada cinciade olhos lquidos e azuis, feita de maliciosa inocncia,

    que ora viaja enigmas extraordinrios; por tua vez, a pesquisah de solicitar-te um dia, mensagem perturbadora na brisa.

    preciso criar de novo, Lus Maurcio. Reinventar nags e latinos,e as mais severas inscries, e quantos ensinamentos,

    [e os modelos mais finos,

    de tal maneira a vida nos excede e temos de enfrent-la [com poderosos recursos.

    Mas seja humilde tua valentia. Repara que h veludo nos ursos.

    Informados e prisioneiros, em Palermo, eles procuram o outro lado,e na sua faminta inquietao algo se liberta da jaula e seu quadrado.

    Detm-te. A grande flor do hipoptamo brota da gua nenfar!E dos dejetos do rinoceronte se alimentam os pssaros. E o acar

    que ds na palma da mo lngua terna do co adoa todos os animais.Repara que autnticos, que fiis a um estatuto sereno, e como so naturais.

    meio-dia, Lus Maurcio, hora belssima entre todas,pois, unindo e separando os crepsculos, sua luz se consumam as bodas

    do vivo com o que j viveu ou vai viver, e a seu purssimo raioentre repuxos, os chicos e as palomas confraternizam na Plaza de Mayo.

    Aqui me despeo e tenho por plenamente ensinado o teu ofcio,que' de ti mesmo e em prpura o aprendeste ao nascer,

    [meu netinho Lus Maurcio.


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