Universidade de São Paulo
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Departamento de Geografia Humana
Juliana Guilherme da Silva
TURISMO EM PICINGUABA:
COMENTÁRIOS SOBRE UMA (nova) REGIÃO TURÍSTICA
Trabalho de Graduação Individual Apresentado ao Departamento de
Geografia como parte dos requisitospara a obtenção do título de Bacharel
em Geografia.
Orientador: Prof. Dr. Carlos de Almeida Toledo
São Paulo – 2016
1
Resumo:
Este trabalho pretende ser uma singela contribuição sobre o turismo na região do
litoral norte de São Paulo. Mais especificamente é uma explanação sobre a regularização
fundiária do Parque Estadual da Serra do Mar na área correspondente ao Núcleo
Picinguaba e suas implicações sobre a população caiçara considerando o contexto de
expansão do turismo como possibilidade e realidade.
Teoricamente consideraremos uma abordagem que se centra na análise da divisão
regional do trabalho e suas variações, que mesmo diante do aspecto de homogeneização
do espaço econômico da produção capitalista, a região seria capaz de expor as
especificidades do capital mundial no litoral norte de São Paulo, tendo em mente, que
este lugar faz parte da totalidade do sistema reprodutor de mercadorias, mas enquanto
periferia desse sistema, carrega em si particularidades que teriam a capacidade de expor
os diversos movimentos contraditórios da expansão do capital.
Já o turismo será entendido a priori como um fenômeno / uma expressão da lógica
de reprodução do sistema capitalista e não como objeto de estudo da Geografia, pois tal
visão incorreria numa prática de mera descrição dos lugares e tipificações do turismo. Ao
contrário do que prega o discurso ambientalista que dá razão e vazão para o turismo em
sua forma “natural” supomos este enquanto um fenômeno do processo geral de
expropriação do homem de sua terra, seus meios de produção e sua forma de
compreensão do mundo que o cerca, sendo possível assim, perceber a continuidade do
processo de exclusão que é próprio do sistema capitalista.
Palavras – chave: Turismo. Litoral norte SP. Picinguaba. Caiçaras. Região. Parque
Estadual da Serra do Mar.
2
Abstract
This paper intends to be a simple contribution on tourism in the north coast region
of São Paulo. More specifically it is an explanation about the land regularization of the
Serra do Mar State Park in the area corresponding to the Picinguaba Nucleus and its
implications on the caiçara population considering the context of expansion of tourism as a
possibility and reality.
Theoretically we will consider an approach that focuses on the analysis of the
regional division of labor and its variations, that even in the face of homogenization of the
economic space of capitalist production, the region would be able to expose the
specificities of world capital in the north coast of São Paulo, bearing in mind that this place
forms part of the whole reproductive system of commodities, but as periphery of this
system, it bears in itself peculiarities which would have the capacity to expose the various
contradictory movements of the expansion of capital.
Tourism, however, will be understood a priori as a phenomenon / an expression of
the logic of reproduction of the capitalist system and not as an object of study of
Geography, since such a vision would incur a mere description of places and typifications
of tourism. Contrary to what the environmentalist discourse that gives reason and flow to
tourism in its "natural" form preaches as a phenomenon of the general process of
expropriation of the man of his land, his means of production and his way of understanding
the world that It is possible to perceive the continuity of the process of exclusion that is
proper to the capitalist system.
Key – words: Turism. North Coast SP. Picinguaba. Caiçaras. Region. Serra do Mar State
Coast.
3
Sumário
- Apresentação .................................................................................................................. 5
- Metodologia …................................................................................................................. 9
- Uma ressalva sobre o conceito de Região …................................................................. 11
- Breve trajetória da região do litoral norte com a lógica mercantil: Da chegada europeia
ao turismo moderno …...................................................................................................... 15
- O discurso da paisagem na Geografia …...................................................................... 24
- Da crise ecológica dos recursos naturais à natureza enquanto dádiva: A Vila de
Picinguaba e o Parque: processo de expropriação e discurso da paisagem: ................ 29
- Condições Lógicas: A (eterna) arte de expropriar o trabalhador: Suporte teórico para
uma discussão da crise ecológica: a natureza enquanto recurso natural ........................ 37
- A Falácia Do Tempo Livre …........................................................................................... 45
- Referências Bibliográficas ….......................................................................................... 51
4
Apresentação:
Para findar o curso de Geografia há a inevitabilidade do TGI, de sua pesquisa e
ainda de sua defesa diante de uma banca de acadêmicos muito mais familiarizados e
seguros com as ideias que lhe são apresentadas. Essa obrigatoriedade conflitua com a
construção da crítica sobre a produtividade do mundo da reprodução da mercadoria que
tanto li nas últimas disciplinas que cursei. Depois de inúmeros textos, posicionamentos e
ideias contra esse imperativo de se produzir em todas as instâncias que permeiam a vida
de uma pessoa, a academia entende o famigerado Trabalho de Graduação Individual
como um probatório necessário – o que acaba por gerar uma numerosa desistência no
departamento de Geografia, além de se tornar um processo extremamente
supervalorizado por parte dos alunos, que acaba por transformá-lo em uma quimera.
Superando isso, preciso dizer que este trabalho é apenas alguma tentativa de
compreensão das relações sociais absurdamente caóticas do mundo de hoje. Essa
tentativa se sustenta em especificidades extraídas justamente desse caos e que por isso
não chegam à porta ou aos pés de alguma compreensão realmente válida.
O primeiro momento que aparece no processo de escrever o TGI da Geografia é o
de escolher seu objeto de estudo – a primeira grande cancela que se tem a abrir: Como
delimitar um objeto de estudo sendo que no próprio histórico de cientifização da Geografia
não se soube por muito tempo qual era seu objeto?
A escolha que aparenta ser ao léu se deu principalmente pela experiência vivida na
disciplina de Geografia do Turismo: O curso foi ministrado com a tentativa de mostrar
como o turismo poderia ser uma potencial atividade econômica em que, por um lado, a
necessidade de lazer do turista era saciada e, por outro lado, aquelas localidades
passariam por uma nova oportunidade de desenvolvimento e crescimento econômico e
ainda, de brinde, essa potencialidade estaria de acordo com os novas exigências
ambientais dos nossos tempos que de cinzas deverão ser verdes.
Diante disso, o trabalho de campo da disciplina se sustentou na “experiência de ser
turista”; na nossa apreensão acerca da atividade turística enquanto aquele momento
vivido em 3 regiões litorâneas: Trindade, Parati (RJ) e Picinguaba (SP). Além disso, as
aulas foram literalmente um tutorial de como ser um turista: exercícios que exigiam
leituras de placas com informações de restaurantes, aeroportos, museus a serem
5
visitados e outros manuais oferecidos para os que viajam e o trabalho de campo era, a
princípio, uma possibilidade para reconhecermos níveis diferentes de organização e
planejamento turísticos: desde o turismo “mais bem estruturado” como o da cidade de
Paraty (que tem na atividade seu maior desenvolvimento econômico para além do turismo
de praia, já que é um lugar que tenta ser reconhecido pela gastronomia e pela FLIP –
uma feira literária que acontece nos invernos - recebendo não apenas incentivos por parte
do governo, mas também teve parte de sua hospedagens construídas com doações
privadas de famílias), passando pelo turismo selvagem/de aventura representado pelas
praias de Trindade e, nossa última visitação em Picinguaba nos serviria como exemplo de
uma forma de turismo que mantinha laços com sua comunidade mais antiga, os caiçaras
– figuras essas que não nos fora apresentadas em Paraty e em Trindade.
Quando chegamos em Picinguaba chovia muito, o que dificultou as entrevistas com
os moradores de lá, mas naquela situação um tanto adversa foi possível conversar com
um pescador que havia nascido na Vila. Ele disse que a pescaria havia sido sua forma de
trabalho desde sempre na pesca da tainha (bastante relevante nesse litoral) e que hoje, já
presenciando um número maior de turistas, ele começara a fazer passeios de barco na
alta temporada até as ilhas próximas. No decorrer da conversa quando perguntei se
considerava o turismo uma atividade boa ou ruim para ele, me respondeu que preferia
antes quando a praia de Picinguaba não recebia tantos turistas, e sua atividade era mais
diretamente relacionada a fornecer excedentes (de pescado) para as populações (cada
vez maiores) das praias maiores como Ubatuba e Santos e disse também que havia
recebido uma oferta de compra da sua casa, mas que não cogitava a mudança para longe
da praia.
Nesse momento final do trabalho de campo da disciplina de Turismo percebi que as
atividades pesqueiras das comunidades locais não foram completamente eliminadas (o
que possibilita a rotulação destes enquanto populações tradicionais) na região, mas se
expressam de maneira subordinada à função turística e de veraneio, seja em sua
materialidade com o fornecimento de insumos aos turistas e pousadas e restaurantes,
seja em seu caráter 'simbólico', também consumido como mercadoria nas trocas com os
turistas.
A partir desse momento foi possível realizar que há na Geografia um ramo que
defende o desenvolvimento do turismo como atividade econômica isenta de ser uma outra
organização que não aquela que apenas viabilize a manutenção das relações de
produção e reprodução capitalistas e, portanto, isenta de qualquer dano, e por fim fora da
6
possibilidade da crítica. O turismo – conforme um belo planejamento – traria um
desenvolvimento econômico em harmonia com o meio natural, além de dar razão aos
mais que desejados momentos de lazer dos moradores dos centros urbanos. Acredito que
esse turismo sustenta-se sobre uma noção específica de natureza que se limita à uma
ideia comum de paisagem, especificamente as classificadas como “naturais” e, na união
com o planejamento econômico estatal, foi defendido, ignorando assim tanto a crítica ao
conceito de paisagem enquanto uma mercantilização de uma dada configuração da
natureza, quanto a permanência de relações propriamente capitalistas, que se expressam
para além do fenótipo industrial dos séculos anteriores.
Esse primeiro contato com os caiçaras da Vila de Picinguaba trouxe à tona que o
turismo veio por mudar e não proteger a vida da população caiçara, expulsando-os da
orla marítima por via da especulação imobiliária ou, quando isso não acontecia, forçando-
os a marginalizarem inúmeras relações de reprodução antes praticadas em prol da
imposição de se adequarem às novas relações de trabalho que chegaram com a prática
turística.
Partindo dessa primeira impressão, a ideia deste TGI era retornar a Vila de
Picinguaba e destrinchar a relação entre os caiçaras e o parque que os legislou enquanto
moradores de uma área de reserva integral e, dentro deste invólucro, tentar perceber
como vem se tecendo essa nova relação entre terra, trabalho e a reprodução das
relações de produção capitalistas numa região que ainda não passou pelos processos
totalizantes de expropriação impostos às pessoas assalariadas dos centros urbanos.
A relação tecida neste trabalho sobre Geografia e o turismo entende este como
uma expressão de uma nova relação sociedade e natureza, aonde esta última não é
apenas recurso natural do processo produtivo industrial realizador de valor (produção de
mercadorias), mas passa a ser produto/resultado do processo social constituído
propriamente dentro das relações alienadas de trabalho e o turismo, além de expressar
essa nova relação, também atua nesta inversão da posição da natureza diante de tal
relação. Essa imposição metodológica de entender o turismo enquanto expressão de um
fenômeno e não enquanto objeto de estudo da Geografia se faz pertinente para evitar
uma análise meramente descritiva muito encontrada nas produções acadêmicas, visto
que ao entender o turismo enquanto fenômeno entendemos que este é resultado e
também condição de algo que pode estar além dele mesmo. O fenômeno do turismo
nessa relação passa a ser uma nova oportunidade para o capitalismo de tentar resolver
sua incapacidade de gerar valor. Para Alfredo, “se existe uma utopia urbana até nossos
7
dias de, uma sociabilidade não rompida com os ciclos naturais, a perspectiva turística põe
a mesma nos padrões de uma indústria lucrativa, o que, por si só, reproduz uma
hierarquia social própria do mundo da mercadoria.”1
É dentro um pouco desse círculo que colhi os pontos que julguei capazes de
revelar o que se supunha: o turismo enquanto um fenômeno do processo geral de
expropriação do homem de sua terra, seus meios de produção e sua forma de
compreensão do mundo que o cerca, ou seja, perceber a continuidade do processo de
exclusão que é próprio do sistema capitalista.
No geral, o que se tenta revelar é a universalidade da especificidade periférica da
reprodução ampliada do capital na localidade de Picinguaba. Para isso, se faz necessário
ver a simultaneidade (acumulação e crise de acumulação) do processo como um
elemento inerente à modernização do capital aonde a periferia deve ser colocada como
um momento da crise geral de valorização do valor. Entendendo como um processo
simultâneo de acumulação e não acumulação, a periferia deixa de ser aquele lugar
“atrasado”, que com o decorrer do tempo chegaria ao mesmo desenvolvimento dos
países centrais, e passa a ser partícipe comum do sistema produtor de mercadorias,
apenas apresentando as suas formas específicas nesse sistema mundial, ou seja, suas
particularidades.
E no particular a hipótese que parto é a de que o turismo em Picinguaba é um
fenômeno que permite a manutenção da lógica capitalista de reduzir qualquer homem
como pertencente apenas de sua força de trabalho. Cada vez mais a possibilidade de
viver minimamente independente das formas de produção e reprodução próprias do
capitalismo se esvai, ratificando na população caiçara deste litoral um processo de
mobilização para mão de obra que envolve a retirada dos meios de produção desse povo,
ações essas efetivadas pontualmente pela criação do Parque Estadual da Serra do Mar e,
numa escala mais abrangente, pelas determinações da lógica mercantil na sua forma
turística.
Através de uma síntese específica e correlata das relações entre política e
economia nessa região e seus principais desmembramentos, pretendo apresentar um
raciocínio que delineie nesse movimento de especificidade x universalidade uma crítica
(pouco tangível) ao turismo enquanto atividade economicamente sustentável, tentando
perceber algumas características reveladoras do contrário, ou seja, de uma atividade
1 ALFREDO, Anselmo. Geografia do Turismo: a crise ecológica como crítica objetiva do Trabalho, pág 39.
8
econômica própria do modo de produção capitalista, cuja síntese teria como base a
existência de relações de trabalho não assalariadas, ainda não homogeneizadas pela
separação completa entre o trabalhador dos meios de produção.
* * *
Metodologia
Nos anos de graduação são apresentadas diversas correntes de pensamentos
sobre alguns conceitos que se fazem presentes mais na Geografia do que em outras
ciências humanas. Dentro desse leque teórico há algumas escolhas que fazem sua
definição e distinção pragmática para o entendimento desse TGI e do que pretendo expor.
Dentro desses estreitamentos teóricos o conceito de região que será utilizado para
se referir às localidades aqui citadas é aquele considerado por Francisco de Oliveira2 ao
se discutir o planejamento da Sudene. Esse singular recorte conceitual se deu pelo
desmembramento do trabalho em uma parte mais histórica e uma outra que se propõe
apresentar alguns aspectos que seriam pressupostos da lógica do capital (propriedade
privada, natureza, trabalho, etc) encontrados no desenvolvimento do turismo e suas
formas especificas na periferia do sistema. Como não podemos autonomizar esse curso,
busquei um conceito que explicasse a territorialização do capital através principalmente
das ações das esferas políticas e econômicas que teriam o poder de “fechar” a região
para outras formas de produção e reprodução que não aquelas que sejam de interesses
desses agentes e por essa forma de pensar a região conseguiria analisar o fenômeno do
turismo em Picinguaba enquanto expressão da relação sociedade e natureza dentro da
reprodução ampliada do capital.
Esse trabalho não carrega em si a pretensão de mostrar como a atividade turística
pode, em associação com o planejamento estatal, ser uma atividade economicamente
(mais) benéfica em relação ao seu entorno, levando a crer no discurso de um2 OLIVEIRA, F. Elegia para uma re(li)gião.
9
desenvolvimento sustentável; não se pretende, portanto, construir uma práxis ou um
método promotor que seja voltado para uma racionalização do capital.
Há alguns sujeitos que serão apontados pela sua personificação no papel de
administrar as trocas entre o litoral norte com a lógica mercantil, como o Estado com seu
projeto rodoviário da ditadura e com a criação do Parque Estadual - que vêm como
medida ratificante dessas praias enquanto lugar turístico à medida da construção do
conceito de paisagem natural vendido enquanto mercadoria no turismo. Por outro lado,
não me aterei a buscar precisas definições ou mesmo me aprofundar no Plano de Manejo
do PESM, visto que independente das restrições impostas sobre os já moradores, o que
se pretende mostrar é que o fenômeno do turismo de massa vem por intensificar o
processo de expropriação do caiçara, imprimindo nessa região especificidades da
reprodução do capital.
Já o turismo será entendido a priori como um fenômeno / uma expressão da lógica
de reprodução do sistema capitalista e não como objeto de estudo da Geografia, pois tal
visão incorreria numa prática de mera descrição dos lugares e tipificações do turismo (no
site do Ministério do Turismo há um trabalho sobre “Marcos conceituais do Turismo” e
nele há 12 tipos possíveis de turismo e, portanto, de turistas desde turismo rural, de sol e
praia até um turismo de saúde) reduzindo o fenômeno à tentativa de uma pragmaticidade
benéfica revestida de planejamento.
Por outro lado, implica pensar que essa crítica do turismo enquanto expressão (e
não objeto) também se faz relevante, na medida em que comporta uma análise histórica
do processo econômico e social capitalista como um todo, abrangendo juntamente
pressupostos lógicos que nos permitem compreender quais as condições que ainda
direcionam nossa sociabilidade.
No segundo momento foi desenvolvida a parte empírica da análise, constando da
visitação da área, registro fotográfico e a realização de entrevistas semi-estruturadas com
os atores e agentes envolvidos sobre o tema proposto: caiçaras da Vila de Picinguaba.
Junto a essas teorias serão feitas conversas com os moradores mais antigos e mais
jovens da vila de Picinguaba com o intuito de (através de um recorte temporal construídos
nessas entrevistas) de descobrir mudanças na sua forma de reprodução.
Acho válido ressaltar que todos os conceitos aqui utilizados são de autorias de
outros. Tanto aqueles usados pela defesa do planejamento turístico quanto aqueles
conceitos da crítica que pretendem inclusive mostrar que este planejamento é viável
apenas para o bom proveito do capital. Há de um lado o arcabouço teórico colocado na
10
disciplina de Geografia do Turismo que será a base previamente refutada e há os autores
que entendem o mundo como uma troca de mercadorias e que fazem crítica da sociedade
organizada em torno do trabalho enquanto característica basilar de sua reprodução
contraditória.
Não pretendo comprovar nenhum lado e acredito que este trabalho não dará conta
de nenhuma comprovação, muito menos dará conta de abarcar o fenômeno do turismo e
as consequências possíveis que esse novo ramo econômico traz aos lugares que passa.
Isso aqui nada mais é do que uma tentativa de perceber a universalidade do sistema
produtor de mercadorias aqui na periferia dele entendendo suas particularidades como
possíveis revelações de seu funcionamento.
* * *
Uma ressalva sobre o conceito de Região:
Um dos conceitos mais estudados na graduação foi o de região - desde os tempos
da regione do Império Romano, quando a divisão regional é base para definição e
exercício do controle na administração de um dado espaço, às definições sob influência
da escola francesa lablachiana, passando pelos teóricos do desenvolvimento econômico
que baseavam seus modelos numa perspectiva de solucionar desequilíbrios espaciais. O
conceito de região permitiu, em grande parte, o surgimento das discussões políticas sobre
a dinâmica do Estado, da expansão das relações capitalistas de produção, e permitiu
também a incorporação da dimensão espacial nas discussões relativas à política e
economia, além de debates no que se refere às noções de autonomia, soberania, direitos,
etc. O conceito historicamente apresenta definições que, dadas as suas variações, são
interpretações acerca da relação entre centralização, uniformização territorial e poderes
políticos e econômicos e tentando se diferenciar do senso comum a Geografia tenta
adjetivar a noção de região surgindo assim conceitos como os de região natural, região
geográfica, região homogênea, entre outras. O resgate destes debates e discussões não
é objeto deste TGI, mas existem uma série de trabalhos que podem ser consultados.
Com um histórico vasto, a definição escolhida pra este trabalho é a que entende a
11
região não como “algo dado”, perceptível por sua natureza e que tem em si a
possibilidade de sozinha revelar algum entendimento da totalidade em que se insere, mas
aquela que caminha entre a especificidade e a universalidade, que pode revelar traços
específicos dos diferenciais da reprodução do capital aqui no Brasil. Podem existir um
sem – número de regiões, para isso basta selecionarmos os processos que nos
interessam desvendar, pois são esses fatores que particularizam e delimitam uma
chamada região de estudo.
Consideraremos uma abordagem que se centra na análise da divisão regional do
trabalho e suas variações, que mesmo diante do aspecto de homogeneização do espaço
econômico3 da produção capitalista, a região é capaz de expor as especificidades do
capital mundial no litoral norte de São Paulo, tendo em mente, que este lugar faz parte da
totalidade do sistema reprodutor de mercadorias, mas enquanto periferia desse sistema,
carrega em si particularidades que têm a capacidade de expor os diversos movimentos
contraditórios da expansão do capital no seu sistema periférico.
Para Chico de Oliveira uma região econômico e política é um dado da realidade
objetiva das formações econômico sociais e teria uma dimensão espacial cuja
especificidade pode ser determinada em um contexto teórico específico que adota o
resultado da divisão regional do trabalho e de suas transformações em uma economia de
âmbito nacional e que entende o processo de regionalização como sendo produto do
desenvolvimento desigual interno e do caráter e ritmo dos conflitos sociais desse espaço,
mas, por outro lado, teria sua especificidade determinada não apenas internamente mas
também pela sua inserção em um todo mais amplo, que se reproduz sob os esquemas
da reprodução ampliada do capital e que inclui outras regiões com níveis distintos de
reprodução do capital.
Como no Brasil a divisão territorial do trabalho se apresenta sob controle
hegemônico da produção capitalista através de seus setores de produção mais
avançados, mas hierarquicamente subordinados ao capital internacional, a especificidade
dessa região se daria pela síntese da dominação da forma de reprodução capitalista a
que traria como consequência uma estrutura de classe peculiar, delineando, por fim, uma
estrutura de dominação politica regional. Essa dominação por parte das classes
dominantes locais “fecham” o território à penetração de formas diferenciadas de geração
de valor e de novas relações de produção constituindo assim as especificidades do local.
A partir desse conceito de região, pode-se perceber que há a junção de fatores no
3 OLIVEIRA, Chico. Elegia para uma Re(li)gião . p. 146
12
âmbito da política e da economia. O autor se fundamenta na especificidade da
reprodução do capital, nas formas que o processo de acumulação assume, na estrutura
de classes peculiar a essas formas e, portanto, também nas formas da luta de classes e
do conflito social em escala mais geral. Para o autor a expansão do capitalismo
monopolista no país assinala, no limite, para a dissolução das regiões enquanto espaços
de produção e apropriação do valor, mas essa homogeneização do espaço ocorreria
plenamente com as relações de trabalho já assalariadas, o que ainda não se efetivou por
completo em Picinguaba, o que nos permite afirmar este espaço como propriamente uma
região que ainda vive o processo de expropriação.
Desta forma, o conceito de região apresentado por Oliveira se caracteriza por ser
econômico e político e dinâmico, pois está fundamentado no movimento de reprodução do
capital e das relações de produção. Assim, quando ocorre a estagnação de dada
economia regional é na verdade, uma nova forma de ampliação do capital e, foi
exatamente isso o que se sucedeu na relação entre as regiões nordeste e centro-sul do
Brasil, explicitado por Chico de Oliveira, mostrando o conceito de região como fruto da
fusão sucessiva de varias formas do capital e nos oferece a possibilidade metodológica
de entender as fases que o litoral de Picinguaba passou desde a colonização até o
desenvolvimento do turismo enquanto atividade econômica.
Por fim, entendemos a região não como um espaço singular com uma formação
histórico social única, isolada e incomparável, mas sim como espaços socioeconômicos
em que há uma forma especifica de realização do modo de produção capitalista. Essa
definição deve permitir perceber as diferenças do desenvolvimento capitalista que mesmo
tendo traços generalizantes de expansão, se desenvolve através de formas diferenciadas
de relação e será delimitada tanto quantos forem os processos específicos a serem
desvelados.
Essa região do litoral norte e de Picinguaba seria, portanto, uma região que teve
seu processo constitutivo norteado pelos moldes de produção capitalista e não outro. O
que se nota é que além de uma mesma área poder ser sucedida por diversas regiões,
estas apresentam especificidades da reprodução do capital e são essas especificidades
que expressam um processo de divisão regional do trabalho, ou seja, são particularidades
de um mesmo processo.
Essa compreensão baseada na leitura da divisão regional do trabalho em escala
nacional nos faz negar uma comparação entre Picinguaba e a cidade de São Paulo, ou
entre a região litorânea paulista e o Brasil como um todo, à medida que nega a o incentivo
13
à qualquer política desenvolvimentista de cunho integrador, ou seja, essa compreensão
de região não nos permite usá-la como base para um discurso de integração nacional e
sua abordagem de superação dos “desequilíbrios regionais”. Entender o processo de
diferenças na divisão regional do trabalho4 pode ajudar no entendimento das relações
entre as regiões do Brasil e deste com o processo global da lógica mercantil.
A ideia é entender Picinguaba pelo seu caráter próprio de reprodução do capital,
que, por um lado, responde ao comércio mundial de mercadorias e, concomitantemente,
mantêm formas de reprodução do valor próprias. É levando em consideração essa
relação com as demais regiões, tanto as da escala nacional quanto às da escala do
território econômico do capital, que entenderemos o processo de territorialização do
capital nesse local, visto que as regiões seriam constituídas por um mister entre leis de
reprodução mais geral e de especificidades de formas de reprodução do capital.
Colocar Picinguaba como esse conceito específico de região é tentar desvendar
nesse lugar um modo próprio de participação da divisão internacional do trabalho. É tentar
desvelar como a periferia do sistema capitalista se constitui perante o processo de
territorialização do capital mundial. Esse enfoque nas suas particularidades assim como
nas leis de movimento mais geral nos permitirá entender as regiões como diversas formas
de reprodução do capital, aonde uma delas irá prevalecer sobre as outras. A região,
portanto, só pode partir do modo de produção capitalista e os processos que levam às
suas especificidades estão relacionados às diferentes formas de produção e reprodução
do valor que são constituintes do capital não somente enquanto sistema econômico, mas
enquanto relação social.
* * *
4 Idem, pág. 149.
14
Breve trajetória da região do litoral norte com a lógica mercantil:
Da chegada europeia ao turismo moderno
Há desde o início deste trabalho a premissa de que essa região – assim como seu
conceito especifico aqui utilizado - esteve inserida na lógica mercantil de expansão da
territorialização do modo de produção e reprodução capitalista e como tal se constitui
como produto das relações e contradições capitalistas, mas assumir que esse processo
carrega algumas determinações históricas nos permite afirmar ser possível uma leitura
das particularidades desse processo que se encontra justamente na análise do modo de
produção da região do litoral norte e também de suas relações de reprodução.
O litoral norte de São Paulo (área entre as praias de Ubatuba, Caraguatatuba,
Ilhabela e São Sebastião) com a chegada dos portugueses, é inserido numa economia
totalmente diferente em comparação às práticas indígenas dos Tupys-Guaranis e a futura
população caiçara vai passar por todos os ciclos econômicos desde o século XVI,
tornando possível uma leitura de um processo de territorialização do capital pelas ações
da metrópole aqui e, posteriormente já enquanto Estado-nação, esse processo será ainda
regido pela lógica mundial da mercadoria, mas apresentando outros agentes, agora
nacionais.
Uma primeira região que podemos considerar foi a organização do território do
Estado por concessão de sesmarias para os estabelecimentos de engenhos de açúcar e
aguardente, fazendo parte das primeiras atividades praticadas no território. Nessa época
do açúcar como principal produto para exportação também se produzia fumo, farinha de
mandioca e arroz, mas, com a ascensão da região nordestina na produção açucareira
devido à localidade mais próxima do mercado europeu e às qualidades físicas do solo e
clima, o litoral norte paulista perde sua relevância no dinamismo econômico entre colônia
e metrópole.
Após a produção de açúcar perder para a ascensão do Nordeste açucareiro e o
posterior declínio da mineração, que antes passa a ser escoada por outros caminhos,
este litoral criará relações capitalistas de produção através de outra grande dinamização
econômica que se dará com sua participação no ciclo do café. Se o litoral norte perde sua
importância econômica para as plantations nordestinas, agora há a emergência de uma
nova região – a do café – que irá consolidar outras formas de produção. Há num primeiro
momento a manutenção da forma de produção escravista e a realização do valor continua
15
sendo efetivada pela determinação externa do capital, mas, na continuidade, a região
cafeeira irá ser o lócus da constituição interna da realização do valor. Nesse primeiro
contexto, Ubatuba e São Sebastião enquanto partes da região cafeeira chegam a produzir
mais de 14% do café da província paulista, e passam por um aumento populacional
considerável e o tráfico de escravos em seus portos também era prática rentável. Mas,
depois desse auge que proporcionou o crescimento de cidades do litoral norte, Ubatuba já
começava a ter uma produção menos significativa e, mais uma vez, deixava de fazer
parte dos grandes interesses lucrativos do capital internacional e entraria no novo
processo de constituição econômica do território do Estado brasileiro liderado agora pela
região Centro Sul, a região do café e da indústria e essa transformação irá definir a
divisão regional do trabalho nacional na escala da totalidade territorial do capital.
Esse momento de marginalização do litoral norte o levou a uma economia “familiar”
com poucos excedentes e voltada basicamente para a subsistência e excluiu os distritos
do litoral da expansão do café e da urbanização do século XIX, encerrando-o novamente
num cenário de retração enquanto outras regiões do Estado viviam fases
economicamente mais dinâmicas, principalmente a cidade de Santos que já atraía
consideravelmente a economia do litoral e também aumentava seu contingente
populacional.
O Núcleo de Picinguaba se caracterizaria nesse momento sobre novas relações de
produção e reprodução, que ao se solidificarem acabam por construírem uma outra
região, mas ainda em dependência com as crescentes regiões cafeeiras de São Paulo.
Saem as grandes fazendas e voltam as roças, a organização temporal também volta a ser
|mais independente das necessidades produtivas das sacas de café.
Fica nesse momento a dúvida se o litoral correspondente ao Núcleo de Picinguaba
se constitui enquanto uma nova região ou parte da região cafeeira em crise por causa do
declínio de sua participação na economia (pois ao mesmo tempo que a produção
realizada ali não era mais o café, os excedentes da lavoura e do pescado dos caiçaras
eram trocados em Santos, cidade em que a demanda por outros produtos crescia
justamente com a economia do café, que, por sua vez era o produto responsável pelo
movimento do porto desde sua inauguração), mostrando que por mais que as sacas de
café não saissem literalmente das antigas fazendas próximas às praias, Picinguaba ainda
estava minimamente dependente da economia do café que, o produto representativo da
territorialização nacional do capital.
Seguindo o século XIX até 1950 os distritos do litoral norte passam a ter na
16
produção de alimentos a base de sua economia. Há relatos5 que trazem a fartura das
roças e a troca desse excedente por ferramentas, roupas e outras consumos que não
conseguiam produzir. Enquanto o cafezal atingia grandes trechos que iam até as encostas
das montanhas com a presença de fazendas, a produção caiçara tinha sua ocupação
restrita à proximidade da praia com suas roças, e as antigas áreas designadas ao cultivo
do café apresentavam-se vazias e foram tomadas pela floresta. Foi mais ou menos até
esse período que a região do litoral norte deixou de ter principal relação com a lógica
mercantil mundial e passa a se relacionar com regiões mais próximas como a cidade de
Santos como parte constituinte do processo maior de divisão regional do trabalho
brasileiro.
Espacialmente vemos uma redução do espaço vivido quando a roça volta a ser
suficiente e as grandes fazendas passam a ser tomadas por outra vegetação. E no
cotidiano, os caiçaras teriam nesse momento de retração da economia cafeeira, uma
brecha para realizarem suas trocas nas praias vizinhas ou mesmo na vizinhança de
Picinguaba, configurando assim no nível local diferentes relações de produção e
reprodução, mas no nível nacional as trocas dos excedentes eram realizadas nas áreas
dinâmicas do café que reuniam uma população cada vez maior.
O que se tenta demonstrar aqui é uma tentativa de fugir do juízo romântico sobre a
população caiçara. Quero dizer que não há nesse trabalho uma visão que se diga secular
sobre essa população da praia de Picinguaba no sentido de cristalizar suas formas de
reprodução no tempo. A área que abrange este litoral passa por diversos momentos
desde seu período colonial, com diferentes agentes nacionais a partir da divisão territorial
do trabalho que impuseram inúmeras formas de produção e reprodução, o que justamente
lhe confere o caráter de ser delimitada enquanto uma região política econômica. Tento
demonstrar apenas que as práticas que moldaram o local eram diferentes daqueles
trazidos pela metrópole enquanto personificação do capital mundial e, desde seu
encontro, apresentavam princípios que se opunham; da mesma maneira que com a
chegada dos europeus essas transformações nas formas de produção e reprodução
também apresentam-se de formas diferenciadas ao longo do tempo.
Implica dizer, então, que o povo caiçara nunca existiu isoladamente com uma
economia fechada, estática, pelo contrário, ele é justamente a constituição dessas
relações econômicas complexas da lógica capitalista de circulação de mercadorias, que
em certos momentos teve uma participação relevante na dinâmica econômica sendo
5 Relatos encontrados nas teses de LUCHIARI.
17
efetivamente integrada ao comércio, e em outros momentos acabou por marginalizada (2o
momento do café), mostrando que no capitalismo desenvolvimento e estagnação fazem
parte do mesmo processo.
É interessante pontuar que esses momentos de retração econômica ou de perda
do dinamismo regional (especialmente o do café) levaram essas regiões a um relativo
isolamento no século XX, conferindo-lhe certos aspectos próprios, que hoje são
cooptados pela lógica de mercado aparecendo sob o invólucro de populações
tradicionais. E se hoje esse “tradicional” serve como marketing turístico, a sua constituição
histórica na realidade é resultante de um dinamismo econômico próprio do sistema
capitalista, visto que o tradicional só pode existir enquanto oposição ao moderno. Desta
forma, o que é designado por modo de vida tradicional resulta de um processo de
regressão econômica que possibilita o acesso desta população a meios de produção não
produzidos como a terra, conferindo às relações territoriais um aspecto de modo de vida,
que Chico de Oliveira poderia designar por regionais, não que não estejam conectadas à
reprodução da totalidade capitalista, mas por não ter sido imposta por completo a
separação entre trabalhadores e meios de produção.
Num processo histórico, na década de 50 a região de São Paulo emerge como
novo polo econômico brasileiro, e não só provoca o deslocamento da economia para o
eixo industrial centro-sul, como é a região que irá redefinir a divisão regional do trabalho
na economia brasileira, ou seja, começa a se definir nacionalmente as economias em
detrimento do antigo molde de “arquipélagos econômicos” voltado diretamente para suas
relações com o exterior. O desenvolvimento industrial burguês lidera o projeto de
unificação do Estado brasileiro e se constitui como centro capitalista nacional propondo
outras características às relações de produção e transformando a estrutura de classes e
poder brasileira.
Considerando esse histórico a ideia é mostrar que nas praias do norte paulista o
turismo, a partir da década de 60, foi o agente urbanizador que desarticula por completo o
“modo de vida caiçara” que já vinha sendo abalado. Se logo após o boom da região
cafeeira o litoral norte consegue manter um certo isolamento este é colapsado com a
construção das rodovias que irão espacialmente facilitar a reintegração deste litoral ao
desenvolvimento urbano da cidade de São Paulo. Se admitirmos que grandes
construções (como o plano rodoviário da ditadura) acabam por incorporar capital fixo à
terra que requerem a realização de seu valor, a BR Rio Santos tem como objetivo facilitar
a chegada dos turistas a essas praias.
18
Esse rompimento se acelera na década de 70 quando diminui o isolamento dos
caiçaras e eles se veem em contato maior com as populações dos centros urbanos, o que
influencia diretamente na mudança das atividades diárias pertencentes ao cotidiano
caiçara. Se antes eles eram praticamente auto suficientes enquanto pescadores -
lavradores na produção alimentar com suas roças beirando as casas, e o comércio de
bananas, agora eles se dedicam exclusivamente à pesca, respondendo à demanda do
(cada vez maior) consumo urbano e tendo na exclusividade desta atividade seu único
modo de troca mercantil pra aquilo que não produzem. Além da exclusividade da pesca, a
mecanização do setor agrícola – processo que abrange todo o Estado – acelerou o
processo urbano nessa região quando criou também mão de obra para as atividades
urbanas, à medida em que antigos lavradores passam a procurar empregos na cidade.
Há muitas pesquisas sobre a população caiçara e muitas dessas acabam fazendo
uma descrição romântica dessas populações, principalmente sobre o momento de
marginalização do café, quando a área fica economicamente menos interessante para as
fazendas de café. Esquecendo o histórico de constituição econômica dessa região e
ignorando esse “modo de vida” enquanto resultado de recessão econômica, essa
literatura traz esse momento antes do turismo como tradicional, o que, como já dito,
obnubila sob uma roupagem romântica. No entanto, essas mesmas literaturas muitas da
sociologia e da antropologia nos trazem alguns pontos dessa rotina que nos permitem
enxergar certas particularidades dessa constituição econômica. Essas particularidades da
reprodução do sistema produtor de mercadorias estão também no modo de produção
dessas comunidades que apresentam autonomia na confecção de suas ferramentas e no
seu transporte entre praias, além de terem um tempo de organização diferente daqueles
traçados na cidade.
O estudo de Luchiari, por exemplo, afirma que quando mais isolados
economicamente da ascensão das grandes regiões brasileiras, Picinguaba e as outras
praias menores viviam com a prática da pesca e lavoura apresentando sua auto
suficiência alimentar e realizando trocas comerciais dos excedentes com as praias
maiores de Santos, Ilhabela e Ubatuba. Essa troca de excedentes era realizada com a
Canoa de Voga, construída pelos caiçaras e de tradição indígena, essa embarcação para
no máximo duas pessoas, foi o transporte que colocou a população caiçara no processo
geral de circulação de mercadorias, caracterizando-se como o meio possível de
resistência ao isolamento econômico imposto pelo capital que, neste momento,
privilegiava o desenvolvimento do interior.
19
As teses da autora apontam que esse momento de 'certo isolamento' é quebrado
com a apropriação pelos centros urbanos da produção caiçara que agora passa a ter um
considerável mercado consumidor interno para vender e sua produção se torna irrisória
nos moldes quantitativos necessários. Essa imposição de formas de produção e
reprodução externos às práticas cotidianas levaram a constituição de uma rotina
totalmente diferente da então vivida. Se antes o caiçara não tinha uma divisão temporal
compartimentada como a nossa, com hora de trabalhar, hora de realizar tarefas pessoais
e hora descansar e de ter lazer, mas sim uma percepção cíclica do seu entorno que
orientava sua rotina, a mudança nas atividades econômicas a fim de responder à
crescente demanda urbana vão trazer esse novo calendário para o caiçara, afirmando
ainda mais o processo de subordinação ao capital comercial.
Na década de 60, a atividade pesqueira se firmou enquanto produção mercantil,
dissociando-se da lavoura e transformando-se na principal atividade econômica do litoral.
Esta especialização que levou os caiçaras a se tornarem exclusivamente pescadores,
acabou por desarticular a antiga autonomia decorrente da auto suficiência alimentar, o
saber secular através do qual eram produzidos artesanalmente os próprios meios de
produção, e acentuou no tempo o caráter de duplicidade (tempo natural x tempo mercantil
/ inverno x verão). A prática da pesca de subsistência foi incorporada pela economia de
mercado e com isso trouxe o desenvolvimento de outras técnicas como a pesca por cerco
flutuante – que veio com a comunidade japonesa da 2a guerra – a pesca de tresmalho e a
de arrastão, voltada para a pesca da tainha. Essas pescas costumavam ser designadas
para o fornecimento e abastecimento dos caiçaras (subsistência e excedente pra troca
direta entre as praias vizinhas e as maiores), mas com a maior entrada de capital passam
a ser colocadas em disputa com a indústria. Enquanto os caiçaras tentavam manter sua
produção, a troca passou a ser prejudicada pelos grandes barcos de pesca do Sul e pelos
barcos a motor de Santos que trariam uma competitividade colossal e os forçariam a
vender seu excedente não mais em uma troca direta, mas agora com a presença dos
atravessadores de pesca. Esse “desenvolvimento” das forças produtivas resultou numa
mudança brusca na vida dos caiçaras que se viam diante da necessidade de pescar o
ano todo, verão, inverno, e também começaram a prática de pesca oceânica, até então
não realizada. Os caiçaras que outrora praticavam suas atividades agrícolas e pesqueiras
de acordo com seu “calendário natural”, se veem transformados em pescadores
exclusivos devido ao turismo e outros fatores relacionados à urbanização, tendo nesse
“contato” uma aceleração da desintegração do antigo modo de produção caiçara que
20
incluía uma produção diversificada e integrada com os ciclos naturais. É possível
perceber que antes eles detinham o saber de como produzir seus próprios meios de
produção; seus barcos; suas ferramentas para a produção de farinha, além do
conhecimento dos ciclos e funcionamentos naturais da fauna e flora. Todo esse
conhecimento perde espaço de pratica e o desenho que se traça nessa trama é o da
alienação e do histórico de apartação inerente ao desenvolvimento da reprodução da
mercadoria no seu processo de territorialização.
“Atualmente, estes lavradores pescadores que possuíam uma visão de mundo,
valores e formas de relacionar com o tempo e com o espaço marcados pelas atividades
agrícolas e pesqueiras estão se transformando em pescadores exclusivos. Esta
transformação, impulsionada pela urbanização e seus processos específicos está
descartando e acelerando a desintegração de uma produção cultural baseada
fundamentalmente na reprodução e preservação dos recursos naturais.” (LUCHIARI, 38).
Por outro lado, o desenvolvimento da indústria automobilística, entre as décadas de
50 e 60, possibilitou às classes médias e altas dos centros urbanos o acesso à essas
praias, realizando o consumo de ter uma propriedade em meio à natureza preservada. O
rompimento do isolamento dessas áreas trouxe uma forte modificação no espaço, como a
construção cada vez maior de casas para veraneio, o desenvolvimento tecnológico nos
sistemas de comunicação e abastecimento, proporcionando uma ampliação do mercado,
despertando nas comunidades locais inúmeras transformações e atraindo cada vez mais
consumidores.
O turismo seria a continuidade do processo de desarticulação do povo caiçara dos
seus meios de produção que já se dava desde os grandes ciclos econômicos da época
colonial, é a expansão deste setor que levaria definitivamente o “modo de vida urbano”
para o litoral norte.
A expansão do urbano tem como consequência o fim da figura do lavrador e a
especialização do caiçara em pescador, mostrando que a expansão das relações de
reprodução do capital implica na alteração das formas de produção dos caiçaras, pois ao
abrirem mão da lavoura, acabam por ficarem ainda mais dependente da pesca enquanto
trabalho que irá substituir a outrora autonomia em relação aos meios de produção (terra)
por dinheiro. Essa expropriação dos meios de produção como vimos é própria da história
capitalista que através da lógica privatista tende a colocar sobre valor de troca
21
absolutamente tudo para assim expropriar o homem e forçá-lo a se reificar em mão de
obra.
Se a expansão do urbano pode ser relacionada com a especialização do caiçara
em pescador, a continuidade da malha rodoviária juntamente com a implantação do
parque estadual (ambos da década de 70: a BR 101 em 1971 e criação do parque em
1972) irá aprofundar o processo de expropriação, mas agora legalmente e, portanto,
ainda mais forçoso e violento, através da legislação do parque imposta sobre a população
ali residente.
No decorrer dos anos 70, a construção das rodovias se constituiriam como o meio
físico de concretização e expansão do processo de urbanização, facilitando o acesso do
fluxo turístico a essa região; a construção da BR – 101 realiza-se como o eixo concreto
possibilitador dessa expansão urbano capitalista. A rodovia Rio-Santos, ao colocar toda
essa área acessível fisicamente, colocaria todas as comunidades caiçaras deste trecho
dentro dos interesses econômicos do país, inclusive sua construção faz parte do
Programa de Integração Nacional – Ocupação dos Espaços Vazios6 e assim como a
Belém-Brasília tinha como subterfúgio interligar espacialmente diversas regiões
“afastadas e vazias” do país facilitando assim a entrada de capital nacional e
principalmente capital estrangeiro, que na época da ditadura teve nos planos rodoviários
sua principal possibilidade de efetivação.
O produto que passa a ser vendido no litoral norte não seria mais o café ou a
banana, mas sim o espaço desta região, entendido dentro do setor turístico como um
“recurso paisagístico”, sendo este agora o principal produto econômico da região. Se
antes as atividades econômicas do litoral norte se baseavam na exploração do natural
enquanto matéria prima monocultora da economia agrário exportadora, e, posteriormente,
na pesca exclusiva, agora sua exploração se dá sobre o natural visto enquanto paisagem
- fetiche este que se realiza sobre uma específica noção de natureza, assunto que será
tratado mais adiante.
O turismo aparece como uma possibilidade econômica de um desenvolvimento
sustentável e a fim de ratificar sua efetividade têm em seu discurso a preservação do
natural como condição de sua realização, mas na realidade, esse discurso demonstra
apenas uma outra relação fetichizada sobre este natural, aonde, anteriormente, este era
compreendido como recurso / matéria prima para a realização do valor especificamente
no setor industrial e agora, o natural passa a ser visto como uma dádiva carente de6 Projeto da ditadura dos militares para a construção de grandes rodovias que iriam interligar áreas distantes do
Brasil. Sendo a mais conhecida a Belém – Brasília.
22
cuidados e preservação. Segundo Alfredo7, o turismo deve ser lido como uma expressão
fenomênica de uma nova relação sociedade x natureza, aonde esta última não é apenas
entendida como recurso natural.
Acreditar que a expansão capitalista pelo setor turístico realmente pode ter alguma
relação que não seja exploratória com o ambiente que circunda o homem, é negar todo
seu ponto de vista histórico, já que foi a reprodução deste sistema que criou as condições
de extinção do natural (este que seria a natureza enquanto recuso natural). Foi o
desenvolvimento industrial que impediu a realização da reposição dos ciclos naturais – e
foi essa quase extinção (ou o seu vislumbramento) que hoje se realiza como argumento
concreto do possível desenvolvimento sustentável e que faz da atividade turística a sua
bandeira. Ver que a indústria turística mantêm os padrões de lucro como qualquer outra
atividade industrial é entender que a ideia de “retorno ao lúdico” nada mais é do que mais
uma tentativa de superar a crise de produção do valor do setor industrial em setores não
especificamente produtivos.
Ao colocar o turismo de massa enquanto fenômeno de um mesmo processo (e não
objeto de estudo) podemos elucidar que essa atividade é apenas uma outra maneira de
se tentar realizar a valorização do valor, ou seja, seria uma outra relação entre sociedade
e natureza, mas que traz em si aspectos básicos da reprodução capitalista no seu modo
industrial. Da mesma maneira que há a realização do natural enquanto mercadoria na sua
forma especifica de matéria-prima do setor reprodutivo industrial, há essa mesma
naturalização no setor turístico, mas agora se materializando como paisagem, mostrando
também que esta nova relação conta com mais uma concepção sobre a já aceita
natureza, concepção que põe esta como resultado do processo e não mais apenas como
produto.
Por fim, essa breve historicização tem como mote delinear a transformação da
região do litoral norte em conjunto com as idas e vindas do processo de expropriação
próprio da lógica capitalista. Picinguaba faria parte da região açucareira, da região
cafeeira e agora, talvez, esteja num novo processo de reorganização regional da
territorialização do capital enquanto região turística e necessária da preservação. Temos
como dado a relação com a reprodução ampliada do capital, mas as especificidades dos
sujeitos nacionais impuseram a essa região processos que cada vez mais expropriam o
homem da terra e dos outros meios de produção.
No caso deste trabalho, os caiçaras que na época da crise cafeeira voltam a ter a
7 ALFREDO,Anselmo, p. 40/41
23
terra enquanto meio de produção com a manutenção da pesca e da roça, nas últimas
décadas passam a ser impelidos à indústria turística como mão de obra ao passo que
sofrem um processo de expropriação da terra enquanto meio de produção imposto pela
legislação proibitiva do parque, proibições essas produzidas para respaldar aquela região
enquanto uma paisagem (o mais possível) natural.
Para esse processo de reconfiguração regional, agora voltado para o turismo, as
relações entre homem terra e capital se alteram e o percurso de expropriação faz-se
necessário e o parque é o braço do Estado, que a fim de promover uma racionalização
para a manutenção da reprodução capitalista em sua forma turística, atua efetivamente na
transformação privada da terra e dos meios de produção ao colocar como uma imposição
legal o fim da roça e da caça e também ao construir o discurso da paisagem natural
enquanto dádiva remanescente do urbano.
* * *
O discurso da paisagem na Geografia
A própria Geografia já se dedicou a desenvolver o conceito de recurso natural, mas
este acabou recaindo num posicionamento meramente descritivo e pouco analítico. Nesta
discussão a paisagem serviu como o recorte da Geografia que se mostrou capaz de
reunir todas os elementos que juntos construiriam o conceito mais abrangente de recurso
natural. Limitado a uma concepção fisicalista do espaço em que os esforços em se
diferenciar o que é materialidade e o que imaterialidade se restringiram a uma literal
percepção sensorial, os debates acerca da conceituação almejada fazia mister incluir a
imaterialidade também como um recurso natural e para isso, agarra-se ao conceito de
paisagem como exemplo de um recurso natural que seria imaterial e de apropriação
indireta.
Para esses teóricos o aproveitamento direto do solo para a plantação de soja no
centro do Brasil, por exemplo, não seria uma exploração, mas sim um uso imaterial de
apropriação indireta do relevo, já que a fertilidade e a produtividade daquela terra seriam
24
características naturais e intrínsecas que oferecem resultados sem que o homem interfira
(ignorando a renda natural da terra). Apresentando uma discussão que se importa em
definir o que é apropriação direta ou indireta,o que seria exploração ou o que seria
apropriação, o que seriam as necessidades físico materiais relacionadas às
condicionantes sociais da vida do homem moderno e aquelas necessidades relacionadas
“ às carências, aos desejos, aos anseios e, portanto, ao conjunto de valores culturais
(BITTAR, 2006) do homem, respondem essas questões construindo uma definição de
recurso natural que até hoje é muito considerada nos trabalhos de geografia:
“Recuso natural pode ser definido como qualquer elemento ou aspecto da natureza
que esteja em demanda, seja passível de uso ou esteja sendo usado pelo Homem, direta
ou indiretamente, como forma de satisfação de suas necessidades físicas e culturais em
determinado tempo e espaço.” (BITTAR, 2006).
Nesta definição de recurso natural há um posicionamento que naturaliza o conceito
de paisagem enquanto “um aspecto do mundo real que t em valor por si mesmo” –
defendendo que aí é que estaria a imaterialidade do conceito de recursos naturais, na
paisagem - e nessa consideração a apropriação sobre esta “percepção” de natureza
sobre o natural inclui a procura pela paisagem na busca por suprir uma demanda por
satisfação estética e recreacional, o que implica uma compreensão sobre a paisagem
enquanto o ultimo lócus capaz de se referir à primeira natureza, por manter um estado de
intocado e preservado das ações humanas, mostrando também que ignoram-se as
paisagens urbanas enquanto tais, - paisagens e natureza que também são socialmente
construídas.
Vê -se que a própria ciência geográfica coloca o natural enquanto objeto externo
passível de dominação à medida que entende o recurso natural ,em última instância,
como algo da natureza passível de uso, mostrando que valor de uso torna-se valor de
troca e que para um elemento da natureza tornar-se recurso basta estar em demanda
pela sociedade (e pelo capital), ou seja, na rotina de hoje em que a paisagem urbana
constitui-se como algo não apenas destoante, mas necessariamente como oposto da
paisagem natural, esta se coloca em demanda por uma população urbana “carente da
natureza” e dessa outra paisagem. Acreditar que o que diferencia o homem de outros
animais é mais do que apenas sua razão, mas também a constituição de um universo
simbólico cultural que estaria independente das análises marxistas de trabalho que
25
consideram recurso natural como objeto e meio de trabalho, incorre no risco de naturalizar
que a busca por uma vista para o mar sempre esteve presente na vida humana e é negar
que se é uma busca por algo só pode vir como resultado de um conjunto de exclusões e
exceções que instigam no homem um imaginário sobre as paisagens ditas naturais,
imaginário este que reflete uma sociabilização totalmente apartada do meio natural
enquanto pressuposto lógico da expropriação do capital.
Uma das ideias que se verificou no campo ao longo das conversas é que o atual
discurso de preservação da natureza (que ratifica a ação legal e violenta do parque e dá
sentido prático à atividade turística) apenas existe enquanto uma necessidade criada pelo
capitalismo e não porque o homem é um natural admirador da paisagem. Só se mostra
necessário preservar aquilo que está a beira da destruição. Só se mostra necessário
conhecer aquilo que lhe é desconhecido e misterioso. O exemplo da busca pela paisagem
praieira reflete a necessidade de uma sociedade que vive apartada do meio circundante e
a mobilização da população caiçara enquanto trabalhadores do turismo reflete mais uma
faceta do sistema capitalista em agregar mão de obra para sua reprodução através da
expropriação total do homem da terra. Se por um lado há os turistas em busca de saciar
sua carência de natureza, por outro, há os moradores de Picinguaba que entram nesse
processo como meio de suprir as suas carências de trabalho visto que é este o meio
agora de se manter, já que as imposições que o turismo trouxe se concretizam na
expropriação da terra e na proibição de manter sua autonomia sobre os meios de
produção.
Um outro aspecto considerado natural ou inerente ao conceito de paisagem seria o
seu caráter cientifico e educacional e nesta apropriação o turismo através dos parques e
das Unidades de Conservação seria uma forma de apropriação indireta deste recurso
natural – uma possibilidade de “usar” aquele lugar, mas de uma forma diferentemente
responsável que não alteraria fisicamente suas caraterísticas.
É claro que no nosso curso de Geografia a prática de realizar trabalhos de campo é
frequente e inclusive defendida enquanto metodologia de estudo, mas o que se tenta
criticar é a visão excludente que defende não haver uma apropriação do natural na forma
de paisagem nos trabalhos de campo, acreditando não estar reproduzindo as relações
capitalistas que estão presentes nas cidades ou não estar reproduzindo a consciência
desatreladora constituinte da nossa cosmogonia que entende o homem como algo
externo ao meio circundante e por isso há a natureza que enquanto externalidade pode
ser dominada e compreendida nos termos que circunscrevem a razão moderna.
26
Nesse texto específico da Geografia, recurso natural seria tanto os minérios
extraídos das minas quanto o potencial recreativo das praias e a sua diferenciação se
daria sobre as formas de apropriação, se se dá de maneira direta (no primeiro exemplo
das minas) ou indireta (nos exemplos do turismo e dos estudos científicos), entendendo
que nesses espaços dos parques e das reservas naturais a transformação em público do
espaço privado das casas dos caiçaras seria uma apropriação indireta deste espaço
porque não haveria materialidade de extração ou outra, ignorando que a apropriação do
Estado sobre o espaço privado induz sua exploração no ramo na indústria turística ao
tornar essas áreas parques e reservas.
Essa definição ignora a paisagem como um recorte do natural passível de ser
explorado pelo sistema produtor de mercadorias à medida que entende a busca pelas
paisagens naturais como calmante dos anseios decorrentes de uma constituição humana
que não se limitaria a fatores socioeconômicos, mas que haveria uma parcela cultural que
seria constituinte do homem, e que esta constituição cultural não teria relação nenhuma
com a forma de produção que baliza as relações próprias de trabalho no sistema
capitalista. Ao questionar sobre a finalidade dos recursos naturais, se estes estariam
vinculados às necessidades materiais do homem ou também aos desejos e carências do
seu âmago, alguma Geografia8 afirma que justamente a materialidade constituiria um fator
limitante e não revelador para uma definição abrangente do conceito de recurso natural.
Ao trazer a imaterialidade para a definição do conceito de uma forma ingênua que
acredita que não há como ter apropriação que não seja sobre algo material, acaba
também por naturalizar que no homem há outras necessidades além daquelas resultantes
de sua sociabilidade com a lógica mercantil e que estas seriam intrínsecas ao homem
enquanto ser natural e não social, como vemos no trecho abaixo de um texto que resume
uma discussão entre professor e alunos sobre o mais adequado e completo conceito de
recurso natural:
“Porém, os valores estéticos e educacionais da paisagem representam, ao serem
apropriados, a busca da satisfação de outras necessidades, além das físico materiais
relacionadas a sobrevivência do homem. Relacionam se as carências , aos desejos, aos
anseios, e, portanto, ao conjunto de valores culturais socialmente assimilados em um
determinado tempo e espaço”
8 VENTURI, Luís, A, B.
27
Essa naturalização de que há esferas distintas que compõem o pensamento e a
vontade humana incorre no risco de negar as relações camufladas presentes nas
relações de produção e reprodução próprias do capital na sua formas ampliada de
produzir mercadoria.
A conclusão deste texto muito se assemelha ao objetivo do parque de através do
turismo evitar a exploração da preciosa riqueza natural da paisagem, pois ao mesmo
tempo que afirma ser a paisagem um recurso natural (que por sua finalidade serviria
necessariamente como parte integrante de um processo produtivo) afirma também que
este recurso estaria ligado a uma necessidade cultural e não uma necessidade material e
por isso, nesse pensamento, a paisagem não estaria participando de uma relação de
exploração enquanto objeto externo ao homem.
* * *
“ O lobo não vira vegetariano, e o capitalismo não
28
vira uma associação para a proteção da natureza e para a filantropia.”
“Liberdade organizada é coercitiva.”
Da crise ecológica dos recursos naturais à natureza enquanto dádiva:
- A Vila de Picinguaba e o Parque: processo de expropriação e discurso da paisagem:
Enquanto a reprodução do modo de produção capitalista permanecia imprimindo
seu caráter destrutivo, sobre algumas áreas da cidade começavam a se planejar uma
proteção de viés exclusivista como uma nova forma de mercantilizar o natural. No
entanto, essas extensas áreas de “natureza selvagem” tendem a beneficiar essa mesma
população urbana que através da visitação desses lugares “paradisíacos” poderiam
reverenciá-los e se refazer perante o estresse do cotidiano vivido nas grandes cidades.
“A noção do mito naturalista, da natureza intocada do mundo selvagem, diz
respeito a uma representação simbólica, segundo a qual existiriam áreas naturais
intocadas e intocáveis pelo homem, apresentando componentes num estado “puro”, até
anterior ao aparecimento do homem. Esse nível de fetichismo sobre o natural assume
como dado que há, necessariamente, uma incompatibilidade entre as ações de quaisquer
grupos humanos e a conservação da natureza, colocando o homem como um intrínseco
destruidor do mundo natural e, que por isso, deveria ser mantido separado das áreas
naturais que necessitariam de uma “proteção total” (DIEGUES, 283).
Hoje, na forma de ecoturismo, de jardins botânicos, de produtos organicamente
corretos, de objeto de estudos acadêmicos, de paisagismos ou mesmo na forma de
paisagem, a natureza é mais um produto expandido como mercadoria. Nessa conjuntura,
o conceito de paisagem, não somente ganha a forma de mercadoria a exemplo do turismo
como também conquistará espaço teórico nas pesquisas geográficas.
O Brasil tem a criação da primeira Unidade de Conservação (Parque Nacional de
Itatiaia) em 1937 e após esse período passa a tratar com dificuldades na criação e
gerenciamento dessas “áreas naturais protegidas”. Dentro desse cenário e das reflexões
internacionais iniciou-se discussões sobre a possibilidade da permanência de populações
as quais convencionou-se chamar de “tradicionais”, referindo-se aos índios e outros
29
grupos populacionais como os caiçaras e os quilombolas. Ao se naturalizar o modo de
produção capitalista em que os grupos humanos se tornam agentes de destruição do
natural, deixam de ser consideradas populações que possuíam características
importantes como o conhecimento e o desenvolvimento de técnicas, que possibilitavam
uma reprodução menos invasiva sobre o meio com o natural.
O Plano de Manejo do Parque Estadual da Serra do Mar (2005/5006) apresenta
como tradicionais os moradores efetivos cujas famílias tenham origem de várias gerações
nestas mesmas localidades, e cuja ocupação ou sobrevivência esteja diretamente
relacionada às atividades de agricultura de subsistência, pesca artesanal, artesanato, ou
para alternativas econômicas compatíveis com o desejado desenvolvimento sustentável,
ou seja, como apontado na primeira parte deste trabalho essa população ao ser
enquadrada como “tradicional” remete ao tempo de regressão econômica de Picinguaba
enquanto participe da região cafeeira e usa desta contextualização particular argumentos
fetichizantes para atrair uma maior circulação de turistas no parque e assim também
poder circular um maior número de mercadorias.
A construção do conceito de paisagem natural também passa pelo parque, pois ao
ser o sujeito legal e político que institui a paisagem natural como tal, ratifica o discurso da
natureza verde enquanto dádiva, fazendo jus ao turismo enquanto único modelo
economicamente sustentável para “tal região e tais tradicionais populações”, firmando-se
assim como integrante fundamental do processo de reorganização regional dessa área
litorânea, pois além da mercantilização da natureza verde, também territorializa os
caiçaras enquanto população tradicional a fim de atrair turistas.
Tomemos como exemplo o discurso oficial do parque encontrado no site sobre o
Núcleo Picinguaba:
“Localizado na Região Hidrográfica da Vertente Litorânea, conta com paisagens que vão
desde a costa marinha até as escarpas da Serra do Mar, protegendo cinco belíssimas praias, na
região norte de Ubatuba: Brava da Almada, Fazenda, Picinguaba, Cambury e Brava do Cambury.
Além da riqueza natural, o núcleo tem como uma de suas principais características, a
presença de comunidades tradicionais como a Vila de Picinguaba, Cambury, Sertão da Fazenda e
Sertão do Ubatumirim, onde ainda é possível vivenciar as culturas tradicionais caiçara e
quilombola, seus estreitos laços com a mata e o mar e a busca da sustentabilidade por meio do
turismo.9
9 http://www.parqueestadualserradomar.sp.gov.br/pesm/nucleos/picinguaba/sobre/
30
- No trabalho de campo pude perceber que o PESM possui uma dupla função: esta
de contribuir com a construção do conceito de paisagem natural, limitando espacialmente
sua área para assim conseguir congelar uma paisagem “tradicional e intocada”.
E outra função, local e relacionada diretamente com a população caiçara. Uma
função legal que vai interferir na relação deles com a terra, não chegando no limite da
total expropriação e expulsão como ocorrem em outros parques e reservas, mas impondo
restrições ao uso da terra enquanto meio de produção, pois além da expropriação
causada pela crescente especulação imobiliária que leva as residências caiçaras morro
acima (área dos sertões) deixando a área mais próxima à praia para os veranistas e as
pousadas, estes também estão sendo expropriados de seus meios de produção pela
legislação do Núcleo que condicionou o território interditado para as práticas agrícolas, de
caça e de extração de madeira para a confecção das canoas. Se de um lado, as normas
do parque buscam frear alguns aspectos da expansão urbana com a restrição do
aumento da área construída, por outro lado, ela também restringe a utilização da 1a
natureza pela população caiçara, criando assim um conflito entre a nova política de
preservação ambiental e as formas de produção e reprodução dessas pessoas. Sem o
acesso à terra para a lavoura e caça e com a transformação da terra na praia em
mercadoria e da terra do parque em espaço público, esse antigo pescador-lavrador que
outrora havia se transformado em pescador profissional, hoje passa a ser funcionário
assalariado das casas de veraneio e pousadas da Vila como último recurso para manter a
propriedade.
O processo de expropriação imposto particularmente pelo parque interfere nas
formas de reprodução dessa população. Antes de sua efetivação era comum a existência
de roças de subsistência próximas às casas dos caiçaras. Além dessas roças, a caça
também era realizada como forma de subsistência e o extrativismo de madeira realizado
para fabricar as canoas de Voga, e todas passam a ser atividades proibidas passíveis
inclusive de altas multas e, no limite da punição, há a possibilidade legal da expulsão dos
moradores do parque.
Essas medidas legais acabam por gestar um processo de expropriação analisado
no Capital que seria a separação imposta entre o homem e seus meios de produção, pois
a partir do momento que se proíbe a roça e a caça - atividades fornecedoras dos
provimentos mais básicos para a sobrevivência do homem - , coloca-se o imperativo de
se comprar esse alimento e para se comprar é necessário ter a mediação do equivalente
31
geral dinheiro que, por sua vez, vai exigir do caiçara a sua transformação em trabalhador
livre que recebe salário.
Logo, mesmo o parque mantendo a propriedade da casa dos caiçaras (enquanto
posseiros), ele tende a longo prazo inviabilizar a sua permanência ao colocar tantos
empecilhos nas antigas formas de produção dos caiçaras. Soma-se a isso ofertas de
dinheiro para compra das casas e toda uma aproximação dos centros urbanos à essa
região através de uma infraestrutura voltada especificamente para o turista (oferta de
empregos essencialmente na área turística).
Em uma das entrevistas um caiçara relatou que sua casa tinha um pomar rico e
seu pai caçava e pescava com frequência. Disse que nessa época poucos produtos eram
trocados nos centros: algumas ferramentas, roupas e outros gêneros alimentícios que a
terra deles não dava.
“a roça dava tudo e os vizinhos também davam comida pra gente, se quisesse comer carne não
faltava, tinha porco, galinha e quem gostava era só entrar no mato que arrumava um bicho
quando não queria comer peixe.”
Contou que quando criança o pai ficava mais de um mês em alto mar
principalmente na pesca da sardinha (uma das principais espécies pescadas junto com a
tainha também em abundância no litoral e, nas épocas certas, a pesca de lula), a pesca
era realizada somente por homens e geralmente os mais experientes que organizavam a
temporada de pesca contratando as vezes um ajudante que não necessariamente
pescador, mas ele mesmo havia pescado pouquíssimas vezes, trabalhando
exclusivamente na construção civil para as pousadas e restaurantes da orla há décadas,
sem salário fixo vivendo de trabalhos temporários com os pagamentos definidos pelos
proprietários muitas vezes.
Já a partir dos anos 80 quando o parque cria condições estruturais para se efetivar,
com verba para funcionários (polícia ambiental), carros propícios e armamentos,
restrições passam a ser frequentes além da vigilância por parte dos funcionários que
diariamente percorriam cada residência caiçara, afim de controlar e cercear a roça e a
caça. E não somente isso, nessa época os caiçaras relatam que funcionários do parque
mapearam todas as casas de Picinguaba, inclusive a área de cada uma com a finalidade
32
de manter o controle total sobre a propriedade do caiçara, pois hoje nenhuma simples
reforma pode ser realizada sem prévia autorização do parque.
- As entrevistas realizadas com os moradores juntamente com as leituras
encontradas sobre a Vila de Picinguaba e sua relação com o Parque mostraram inúmeras
insatisfações por parte dos moradores, entre elas:
Com relação à educação, o principal descontentamento dos moradores se refere
ao oferecimento de ensino somente até a 4a série do ensino fundamental; nos problemas
ligados à saúde foram citados a precariedade no atendimento médico, a inexistência de
farmácias e o alcoolismo e o uso de drogas também foram destacados; No serviço de
transporte público foi citado um déficit no oferecimento de ônibus que liga a Vila ao centro
de Ubatuba. Além disso, o trânsito excessivo no período de alta temporada na região
central do município acarreta num atraso no horário dos ônibus e no aumento do tempo
de chegada ao extremo norte do município. A falta de postos de trabalho e os baixos
salários pagos, principalmente por proprietários de estabelecimentos na Vila foram os
principais problemas diagnosticados referentes ao trabalho e renda; relativos à moradia, a
regularização fundiária apareceu como uma necessidade imediata e as dificuldades de
realização de reparos e reformas nas casas, devido à necessidade de pedido de
autorização à administração do Parque foram citadas pela maioria dos participantes das
entrevistas.
A administração do Parque não admite interferências na área por se tratar de uma
Unidade de Conservação de Proteção Integral e a prefeitura também não possui esse
poder de ação em favor da população, fornecendo somente o mínimo como a coleta de
lixo, transporte coletivo e a escola dos primeiros anos do ensino fundamental. Sendo
assim, grande parte das reivindicações dos moradores passam pela administração do
Parque e pela prefeitura e seguem numa luta constante. Pode-se observar esse fato no
depoimento fornecido por uma participante da Associação de Moradores de Picinguaba:
“[...] você leva pra prefeitura e eles falam que não é lá que
tem que resolver, direcionam para o Parque. Inclusive tem coisas que você leva no
Parque e eles falam que é na prefeitura, aí você leva na prefeitura e eles falam que
depende do Parque, fica aquele empurra”.10
10 Alguns relatos são do trabalho de campo realizado pela autora, enquanto outros foram retirados de teses e pesquisassobre os caiçaras de Picinguaba e o Parque.
33
A principal reclamação provém justamente da necessidade de pedido de
autorização para a realização de qualquer reforma ou reparo em suas casas. O que pode
ser observado no relato de uma moradora:
[...] trocar telhado, pintar, rebocar, tudo isso tem que pedir autorização,
troca de porta, janela. Tem um problema que hoje os filhos casam e os pais querem pelo menos
dar, construir um quarto com cozinha e banheiro e não podem construir e os turistas constroem
sem autorização. A lei fica bem clara ou é pra todos ou não é para ninguém, porque nós tamos
fazendo tudo dentro dos conformes. O Parque pediu que para fazer uma reforma tem que fazer o
pedido de autorização. A maioria está fazendo, o cara que tem dinheiro não faz.
Proibido então a caça, a roça, o aumento da área residencial construída e a
derrubada de árvore para a confecção das canoas de transporte e comércio de
excedentes, mas legalizado a abertura de quiosques para comércio de alimentos e
artesanato na beira da praia, aluguel de barcos para passeios turísticos e serviço cobrado
de guia turístico – ou seja, as relações agora permitidas com aquela região só são
aquelas necessárias para a pratica do turismo e não mais (necessariamente) as
necessárias para a manutenção das relações de produção antes (do Parque) praticadas.
Essa específica proibição de reformas e construções de novas moradias foi uma
das grandes reclamações ouvidas no trabalho de campo. Um outro caiçara relatou que
estava com problemas na estrutura do telhado de sua casa e que enquanto estava
fazendo a reforma contra goteiras, funcionários ameaçaram aplicar uma multa no valor de
3 mil reais caso a reforma continuasse sem passar pelos trâmites legais da legislação do
parque. O caiçara, que não tinha esse dinheiro, interrompeu a reforma e entrou com o
pedido legal na sede do parque na praia da Fazenda. O processo está em trâmite desde
fevereiro desse ano e o caiçara como solução está morando em outra casa até conseguir
a liberação para a reforma.
Isso nos mostra como o parque consegue viabilizar o processo de expropriação tão
caro à reprodução dos modos de produção tipicamente capitalista, pois em seu discurso o
que valida a proibição do uso da terra é justamente a preservação da paisagem natural
que coloca a natureza enquanto necessária desta preservação e que entende as formas
de produção dos caiçaras como ambientalmente insustentáveis e esse discurso da
«riqueza natural e da sustentabilidade« abrem condições reais para o Estado mediante
34
violência ter o respaldo legal de expropriar os caiçaras de sua propriedade.
O campo também mostrou que a legalidade do parque só funciona para a
população mais pobre, visto que a maneira de impor tal legalidade é através da
financeirização mediante o pagamento de multas de mesmo valor tanto para um caiçara
reformando sua moradia como para um estrangeiro que comprou uma residência de um
local e está triplicando a área construída para sua pousada. Como Picinguaba reúne
turistas veranistas de alto poder aquisitivo a prática de multas se torna irrelevante e as
restrições acabam por se efetivarem sobre aqueles que menos interferem na configuração
da orla e praticamente ficam invisíveis no alto do morro diante das mansões e luxuosas
pousadas no contorno da orla.
Percebe-se que a criação do Parque por mais que inicialmente tivesse o propósito
de inibir a especulação imobiliária na região (principalmente na Vila), acabou por coibir o
morador do lugar, nos permitindo inferir que a Vila apresenta um cenário de enormes
conflitos: não é regularizada do ponto de vista fundiário, os moradores não possuem título
de propriedade das suas terras, sendo considerada uma área de posses, como outras
áreas do município de Ubatuba; os moradores não contam com serviços de infra-
estrutura, como o saneamento básico, já que a área está incluída numa Unidade de
Conservação de Proteção Integral, que somente permite o uso indireto de seus recursos
naturais; e os moradores vivem um atual processo de expropriação da terra enquanto
meio de produção juntamente com avanço contínuo das populações urbanas para a orla
da Vila, o que imbrica novas relações entre população local e turistas veranistas.
Além dos conflitos moradores x Parque relacionados ao uso da terra há também
uma conflituosidade ainda relacionada à terra, mas agora entre os moradores dos bairros
que compõem a Vila, pois há uma legislação diferente sobre aqueles titulados como
caiçaras e os integrantes quilombolas da Vila de Picinguaba moradores do bairro da Praia
da Fazenda e do Sertão da Fazenda.
Uma série de questões levaram a comunidade a reivindicar o reconhecimento de
um território quilombola entre a área do Sertão da Fazenda e a Praia de mesmo nome. O
pedido de reconhecimento do quilombo, encaminhado à Fundação Palmares e à FITESP
em 2006, gerou uma certificação pela Fundação, publicada em Diário Oficial, que já vem
garantindo um conjunto de direitos aos quilombolas tais como: energia elétrica facilitada,
telecentro (10 terminais de computadores em comunicação com a Internet, instalados na
35
antiga escola do Sertão), oficinas de música (Projeto Guri – Secretaria Estadual da
Cultura), capacitação para produção de artesanato; bolsas de estudo; projeto para
desenvolvimento do ecoturismo e artesanato (Associação de Remanescentes do
Quilombo captando recursos externos); projetos relacionados à produção de polpa de
juçara e a contratação de uma antropóloga para elaboração de um laudo antropológico.
“A primeira notícia que se tem da Fazenda Picinguaba remonta o final do século XIX, período em
que faleceu Maria Alves de Paiva, proprietária da Fazenda. Em 1884 ela falece e em testamento
declara o desejo que seus escravos sejam libertos e que possam habitar em certas áreas da
Fazenda. A Fazenda Picinguaba possuiu vários proprietários até que no ano de 1943 seu novo
dono Saint Claire adquire parte da Fazenda e nomeia o Sr. Leopoldo Braga o administrador da
Fazenda Picinguaba. Leopoldo recebe a autorização de trazer 12 famílias para trabalharem
através de usufruto, sendo proibidas de vender a arrendar suas terras.
Em 1951, a Fazenda Picinguaba foi hipotecada pela Caixa Econômica do Estado de São Paulo e
perdurou esse domínio até 1974, por isso, a Fazenda Picinguaba também é conhecida como
Fazenda da Caixa.
Em 1975, o trecho entre Ubatuba e Paraty (RJ) da rodovia Rio-Santos - BR 101 - foi construído e
no ano de 1979 para controlar as grilagens e invasões de terra a Fazenda é anexada ao Parque
Estadual da Serra do Mar.
No ano de 2005, a Fazenda Picinguaba recebeu o reconhecimento da Fundação Palmares como
sendo um remanescente de Quilombo.” 11
A gestão do uso da terra nas mãos do parque acaba por imprimir formas de uso e
de posse da terra de maneira diferenciada entre os moradores configurando
espacialmente também diferentes formas de expropriação: enquanto os quilombolas
mantêm seus meios de produção como a terra com o roçado e com a casa da Farinha, os
caiçaras mantêm apenas a propriedade da casa (já construída e sem liberação para
novas construções), sendo proibidos de extrair qualquer matéria-prima.
Isso nos permite inferir que há áreas diferenciadas dentro da mesma região
turística da Vila de Picinguaba e, como característica comum a todos os ditos Estados-
Nação, a gestão de seu território e população é um pressuposto, já que para ao gestor
cabe possibilitar que a terra enquanto propriedade esteja formada, que o trabalho como
força de trabalho possa ser explorado e que o capital possa circular livremente, permitindo
11 http://www.quilombodafazenda.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=75:historia&catid=47:historia
36
a (des)valorização do capital através da perpetuação de seu processo produtivo.
Por fim, o Estado enquanto viabilizador da reprodução ampliada de mercadorias
tem que expandir a área de territorialização do capital, para criar a possibilidade de
produzir novas mercadorias, assim como manter o consumo de outras através da
aceleração da circulação de turistas pela mercadoria paisagem. Em trabalhos com as
chamadas “populações tradicionais” ou “culturas populares” torna-se relevante analisar a
conexão desses grupos com os conflitos de classe e com as condições de exploração e
resistência, nas quais os mesmos se inserem, produzem e consomem. E, na
contemporaneidade, entender como os atores hegemônicos agem integrando às políticas
de dominação e resistência os grupos que almejam dominar com as submissões
respectivas de seus produtos culturais.
* * *
Condições Lógicas
A (eterna) arte de expropriar o trabalhador
- Suporte teórico para uma discussão da crise ecológica: a natureza enquanto recurso
natural
Partindo do consenso de que no modo de produção capitalista a interação
entre ser humano e natureza tende à ser eliminada e reduzida à relação monetária e de
que Marx teve boa parte de sua obra fundada na análise da relação entre economia e
natureza, podemos assumir a pertinência da tradição marxiana para essa análise e não
apenas através da obra de Marx, mas fundamentalmente através de seu método de
análise do capital e da constituição e desenvolvimento do modo de produção e dominação
capitalista, tornando assim possível a apreensão não só destes traços predatórios, mas
de todas as tendências à transformação das forças inicialmente e potencialmente
37
produtivas em forças destrutivas, já inscritas nos fundamentos do capitalismo desde sua
instituição.
A lógica insustentável de sociometabolismo do capital vem operando
historicamente uma separação entre homem e natureza e a crítica à essa lógica
predadora e destrutiva abrange toda a organização social, que vem sendo regida por
processos de aceleração da produção de riquezas materiais, voltadas para o consumo de
bens definidos pelo seu valor de troca que determina, por fim, a mercantilização da
própria vida. Destacando os conceitos de Marx de metabolismo social e de fissura
metabólica podemos perceber grandes perspectivas no método do materialismo histórico
que parte desses conceitos para explicar o processo por meio do qual a sociedade
humana transforma a natureza externa e, ao fazê-lo, transforma sua natureza interna.
Essa ação de transformar a natureza externa constituiria o processo de trabalho, e seu
efeito sobre a natureza interna se manifestaria na forma como se estabelecem as
relações sociais de produção, sendo possível assim analisar a hegemonia do
sociometabolismo do capital como determinante na produção das relações sociais
trabalhistas que imprimem a característica celular de nossa organização. Na relação entre
homem e terra apresentada pela economia política do Capital, a concepção materialista
de natureza alcança plena integração com a concepção materialista de história. Na
economia política desenvolvida de Marx, o conceito de “metabolismo” foi empregado para
definir o processo de trabalho como “um processo entre o homem e a natureza, um
processo pelo qual o homem, através de suas próprias ações, medeia, regula e controla o
metabolismo entre ele mesmo e a natureza”, mas este processo de metabolismo sofre
uma fissura irreparável em decorrência das relações de produção capitalistas que dentro
da problemática histórica e teórica acerca das “condições de reprodução dos seres
humanos” apresentam suas especificidades e particularidades relevantes à sua formação
social e constituição histórica. Marx utilizou o conceito de “falha” na relação metabólica
entre os seres humanos e a terra para captar a alienação material do homem dentro da
sociedade capitalista sobre as condições naturais que formaram a base de sua existência
– o que ele chamou “as perpétuas condições de existência humana imposta pela
natureza”. Afirmando que o sistema capitalista é incapaz de respeitar as condições de
sustentabilidade dos ciclos naturais e que “governar o metabolismo humano com a
natureza de modo racional” excede completamente as capacitações da sociedade
burguesa12, Marx aponta numa série de renomados estudos, as consequências negativas
12 Karl, Marx. O Capital, livro 1.
38
de modo intrínsecas ao capital que na sua relação objetivada se preocupa em sugar da 1a
natureza toda a forma possível de matéria-prima.
Nesta lógica, a crise ecológica pode ser lida, portanto, como uma expressão
resultante da relação sociedade x natureza que vem destruindo suas duas fontes de
riqueza: o trabalho e a 1a natureza e, pode ser também compreendida como resultado
próprio do modo de produção especificamente capitalista, e a análise de suas leis de
movimento e tendências podem orientar uma melhor compreensão para a discussão
acerca desse processo de escassez de recursos que vem nos dias de hoje a gestar uma
nova relação sociedade x natureza que, por sua vez, tem no turismo o meio social e
econômico de viabilizar uma nova indústria – a turística, que por trás da sua bandeira
verde e sem chaminés traz a mesma relação mercantilista e objetificada das relações
industriais “tradicionais” capitalistas (tradicionais, já que se busca escamotear a sua
presença nas atividades ditas turísticas).
É o modo de produção capitalista que tem como basilar a produção de bens sob a
forma de mercadorias como forma básica de funcionamento. O trabalhador aparece no
mercado como vendedor de mercadorias, pois sendo um trabalhador “livre”, resta ao
mesmo apenas vender a sua força de trabalho em troca de um salário. Os principais
sujeitos deste processo, o capitalista e o trabalhador assalariado, encarnam o capital e o
trabalho. Sendo assim, no processo de valorização das mercadorias, aonde se
expressam a forma mercadoria e seu fetiche, as relações de circulação subvertem as
relações sociais através de um processo de mistificação e reificação, transformando as
relações entre os homens em relações entre coisas.
Podemos analisar as consequências negativas desse sistema econômico uma vez
que a produção de mercadorias voltadas para o seu valor de troca é ilimitada e em função
do lucro e essa produção ilimitada de mercadorias, ao longo do desenvolvimento
capitalista, vem demandando a ampliação do volume de matérias-primas empregadas,
gerando resíduos numa proporção e num ritmo sem precedentes.
O conceito de metabolismo social de Marx compreendido como esse processo
através do qual a humanidade transforma a natureza externa e também a si mesma, situa
o comportamento humano como elemento constitutivo do mundo natural. Desta forma, há
a unidade do ser humano com a natureza enquanto parte desta. Mas Marx se dedicou em
analisar não a unidade, mas justamente a autonomização operada no processo histórico
que aliena o homem das condições naturais necessárias para a sua reprodução. Assim, a
análise marxista reside no entendimento desta separação/alienação que gera uma fissura
39
ou falha do metabolismo com a natureza, engendrada pelo modo de produção capitalista
que historicamente continuará a apartar o homem de seus meios de vida, uma separação
que é totalmente estruturada apenas na relação do trabalho assalariado com o capital, o
que nas palavras de Chico de Oliveira tenderia a uma homogeneização espacial, em que
não existiriam mais regiões, apenas “zonas de localização diferenciada”13. Ao elucidar as
formas de fissura com a natureza e as suas especificidades no capitalismo, Marx
estabelece que a relação de unidade entre homem e a 1a natureza foi substituída por um
processo de trabalho subordinado e alienado. E são essas as condições de existência da
propriedade privada, do trabalhador assalariado e da 1a natureza enquanto recurso
natural para indústria, que representam as condições essenciais para a reprodução do
sistema econômico capitalista e que, em seu limite, pode nos levar à uma compreensão
da situação (ou discurso) de crise ecológica enquanto uma ampliação da fissura
metabólica.
O conceito de metabolismo é uma importante categoria na definição do processo
de trabalho em que Marx o tornou central em todo o seu sistema de análise, enraizando
nele a sua compreensão, num desenvolvimento teórico que apresenta este em sua forma
mais geral (em contraposição às suas manifestações historicamente específicas) mediada
por uma relação entre homem e natureza mais direta com o meio, um trabalho que
produziria os valores de uso correspondentes a uma apropriação da natureza realizada a
fim de satisfazer as necessidades humanas, sendo, portanto, a atividade através da qual
o metabolismo entre homem e natureza é mediado. No capítulo do Processo de Trabalho
do volume 1 do Capital o autor tece uma especificação do que seriam os objetos e os
meios de trabalho desse “processo simples de trabalho” numa tentativa de mostrá-lo
enquanto uma categoria trans-histórica e que se organiza de maneiras específicas,
tentando assim opor às formas de trabalho intrínsecas do capitalismo.
“O processo de trabalho, como expusemos em seus momentos simples e
abstratos, é atividade orientada a um fim – a produção de valores de uso – apropriação
do elemento natural para a satisfação de necessidades humanas, condição universal do
metabolismo entre homem e natureza, perpétua condição natural da vida humana e, por
conseguinte, independente de qualquer forma particular dessa vida, ou melhor, comum a
todas as suas formas sociais.” (Marx, livro 1 do Capital, O processo de Trabalho).
13 Oliveira, Chico de. Elegia para uma religião, pág 143.
40
Há teorias que criticam e colocam esse momento do Marx enquanto uma
naturalização do trabalho ou mesmo dos valores de uso, mas vi nesse capítulo uma
tentativa de explicar a relação homem e natureza fora de sua organização capitalista e
por isso acredito ser pertinente para esse estudo sobre a população de Picinguaba que
perpassa, a partir da expansão do turismo e da institucionalização do parque, um
processo brutal e decisivo de exclusão dos seus meios de produção mais essenciais.
Ainda que a apresentação histórica do capítulo anterior afirme que esse processo se
desenvolve e se acentua desde a colonização com a acumulação primitiva de capital, a
partir da década de 60 em diante a “aproximação” dos centros urbanos às populações
caiçaras impuseram uma série de transformações não somente às relações produtivas,
como também às relações de re- produção social que cada vez mais absorvem, aceitam,
naturalizam e, portanto, fetichizam o mundo do trabalho especificamente capitalista,
relações essas que crescem nas especificidades desse “outro trabalho” que não é apenas
aquele gerador de valor de uso.
De acordo com Foster, Marx utiliza o conceito de metabolismo em todas as suas
obras, variando o contexto: em um momento, ressalta a centralidade do termo indicando
que o emprega como processo natural de produção da troca material entre o homem e a
natureza, colocando como atrelado o círculo econômico à troca material associada à
interação metabólica entre os seres humanos e a natureza. Já no momento do caráter
universal da troca material, da qual a troca formal dos equivalentes econômicos na
economia capitalista seria uma mera expressão alienada, Marx se referiria nos Grundrisse
ao conceito de metabolismo no sentido mais amplo de “sistema de metabolismo social
geral, de relações universais, de necessidades globais e capacidades universais ...
formado pela primeira vez” sob a produção generalizada de mercadorias. 14
Logo, o conceito de metabolismo foi empregado tanto para se referir à interação
direta metabólica entre a natureza e a sociedade através do “processo simples do
trabalho”, quanto, num sentido mais amplo, para descrever o conjunto complexo,
dinâmico e interdependente, das necessidades e relações geradas e reproduzidas de
forma alienada no capitalismo, tudo podendo ser visto como ligado ao modo como o
metabolismo humano com a natureza era expresso através da organização concreta do
trabalho humano e suas variações, permitindo assim expressar a relação humana com a
natureza como uma relação que abrange tanto as “condições impostas pela natureza”
quanto a capacidade dos seres humanos de afetar esse processo.
14 FOSTER, Jhon B. Cap. 5: O Metabolismo entre natureza e sociedade.
41
Mais do que isso, o conceito de metabolismo deu a Marx um modo concreto de
expressar a alienação da natureza e da sua ligação com a alienação do trabalho e,
durante algumas conversas no trabalho de campo deste TGI, pude perceber que a
efetivação desse processo ainda está em curso, visto que algumas mudanças importantes
ocorreram entre as últimas gerações dos pescadores de Picinguaba. Mudanças que se
dão tanto nas formas de produção que estão tendendo a um processo cada vez mais
incisivo de apartar os moradores da terra (seja pela proibição da roça e da caça ou pelo
poder de especulação imobiliária), que acaba por construir uma relação extremamente
competitiva entre os caiçaras e os veranistas, quanto mudanças na mentalidade dos
moradores que acabam por assumir o discurso da paisagem construído pelo parque e
pelo turismo no geral, legitimando assim a ideia da necessária preservação da natureza.
O caiçara ao assumir o discurso da paisagem natural, acaba por também enxergar
a natureza enquanto algo externo a ele, diferentemente dos tempos anteriores à
expansão urbana em que não havia essa ruptura tão claramente. E ao internalizar esse
discurso acaba correndo o risco de não perceber o papel dele nessa “necessidade de
preservação da natureza” de ser mão de obra para essa nova organização do trabalho a
qual ele está cada mais inserido. Essa inserção ocorre por exemplo de um lado pelo
parque que os proíbem de ter suas plantações e, do outro lado, as possibilidades que
aparecem para ele de suprir essa proibição são totalmente relacionadas ao turismo
(trabalhar como caseiro, como barqueiro levando os turistas até as outras praias ou outras
formas de freelance), que, por sua vez, só existe na medida em que consegue ratificar o
discurso da paisagem e o de preservação.
Na tese de Luchiari há entrevistas e fotos que mostram modos de produção um
pouco mais diretos com a terra como as roças para a subsistência e a pescaria que
muitas vezes era “paga” com a forma do quinhão, demonstrando que ainda não havia
perpetrado totalmente as relações capitalistas em sua forma salário.
O desenvolvimento do capitalismo como sistema mundial deveria ser
compreendido através dos aspectos globais implicados tanto na acumulação primitiva
quanto na fissura metabólica. O genocídio dos povos indígenas juntamente com a
apropriação de riqueza da América fora basilar para a constituição de grandes fortunas à
medida que proporcionaram a pilhagem dos recursos naturais da periferia do sistema e a
exploração da 1a natureza enquanto recurso. A criação de monoculturas como as de café
e de açúcar para exportação destinada à Europa com trabalho escravo ou semi escravo,
que inclusive estiveram presentes fortemente no litoral norte de São Paulo, operava o
42
roubo da periferia em favor dos países centrais e cicatrizava aqui as particularidades de
seu papel de periferia na divisão internacional do trabalho.
O capitalismo na sua fase industrial vem a reiterar o processo de separação entre
homem x natureza mediado pelo trabalho ao passo que aprofunda o desenvolvimento das
condições técnicas que ampliam o domínio humano sobre o natural. O desenvolvimento
do capitalismo nesta fase acelera a tendência de produção ilimitada de mercadorias,
demandando a concomitante ampliação do volume de recursos naturais necessários a
esta produção, verificando-se um processo de “criação de necessidades” (ou 2a natureza
por Kurz) que subordinam as necessidades humanas às da reprodução do capital. Tendo
como referência a produção de Marx, é possível ressaltar a diferenciação entre riqueza
material (valor de uso) e riqueza social (valor de troca) em que o processo do
metabolismo social é o que gera a riqueza material, ou seja, aquela natureza adaptada às
necessidades humanas. Mas este metabolismo, sob específicas relações sociais de
produção e outras formas de organização de consciência, opera a transformação da
riqueza material em riqueza social.
Portanto, é no modo de produção capitalista, através de suas relações sociais, que
o valor da natureza, dada pelo seu uso, se submete à valorização atribuída pela
sociedade. Neste sentido, o valor de uso é subordinado ao valor de troca, ou seja, a
valorização da natureza tanto externa ao homem, como a natureza transformada para seu
uso, é dada no capitalismo, pela sua capacidade de ser trocada por outra mercadoria ou
por dinheiro.
Considerar, então, que as raízes da atual questão ambiental se localizam no
período histórico da acumulação primitiva do capital, que através da expropriação das
terras de uso comum e da consequente expulsão dos produtores camponeses operou a
separação entre o homem e a natureza, demonstra que a pilhagem dos recursos naturais
é uma tendência intrínseca ao capital, que vem sendo reafirmada no seu curso e
agravada no atual processo de acumulação capitalista hegemonizado pela financeirização
em função da ampliação da escala e do ritmo cada vez mais acelerado de produção,
demandando novos espaços sociais e físicos.
Sendo assim, podemos pensar que a continuidade do modo de produção
capitalista, orientado prioritariamente pela maximização dos lucros, conduz,
tendencialmente, a uma crescente exploração, alienação e expropriação da força de
trabalho por um lado, e, por outro, à deterioração da base de produção econômica, da
fonte da riqueza, ou seja, da natureza, é ter como certo que não há como utilizar de modo
43
sustentável e mais duradouro seus recursos. Aliás, essa percepção do natural enquanto
recurso implica justamente uma relação de caráter exploratório sobre este, mostrando que
o problema consiste exatamente em considerar a natureza como mercadoria em potencial
e é essa relação de dominação mecanicista sobre a natureza que sempre esteve
presente no sistema de reprodução de mercadorias. O debate do cultual
“desenvolvimento sustentável” ignora a característica básica da manutenção do sistema
capitalista que é o caráter do princípio abstrato da valorização e do crescimento, que não
possui nenhum senso para as qualidades materiais ecológicas e sociais e, por isso, é
também completamente incapaz de tomá-las em consideração.15
Entender esse histórico que ratifica o discurso da atual crise ecológica se faz
pertinente para a análise do fenômeno do turismo na medida em que essa crise expõe
que o modo de reprodução capitalista tem no seu cerne uma lógica quantitativa em que a
natureza sempre foi entendida como recurso natural do processo produtivo realizador de
valor, portanto, produtor de mercadorias. Essa realização social da 1a natureza enquanto
recurso natural implicou, ao longo dos séculos, numa impossibilidade desta de repor seus
próprios ciclos servindo, no limite como pressuposto para uma nova percepção da
natureza, aonde esta agora se mostra rara e se coloca no imperativo da preservação,
mas que ainda se realiza como mercadoria.
Considerando ter existido uma união – ainda que relativa e variável – entre o
trabalhador e seus meios de vida, ou seja, entre o trabalhador e sua natureza externa, a
organização capitalista, por sua vez, é aquela que tende a separar de forma absoluta o
trabalhador de seus meios de vida. Este quando assalariado cumpre com todos os
requisitos de ruptura do metabolismo com a natureza: está separado da terra como
condição natural de produção e está separado dos instrumentos como intermediários de
seu corpo em relação à natureza externa – dependendo assim de vender sua força de
trabalho para comer; e está separado do próprio processo de produção como atividade
transformadora. É livre, mas essa liberdade pode ser entendida como isolamento,
alienação com respeito à natureza externa; é livre porque foram esgarçados os laços do
metabolismo com o meio ambiente. É livre porque suas condições de sobrevivência estão
cada vez mais dependentes desse trabalho moderno capitalista alienado, que o deixa livre
de tudo para poder ser livre para o trabalho.
Mesmo Marx construindo uma teoria trabalhista sobre o valor, ele também mostra
como a riqueza é, em primeira instância, natureza adaptada às necessidades humanas e
15 KURZ, Robert. O desenvolvimento insustentável da natureza.
44
essa natureza adaptada ele chama de valor de uso, que, por sua vez, se expressa
somente por meio do valor de troca na sociedade capitalista. Logo, a natureza é
valorizada no capitalismo somente se puder ser trocada por outra mercadoria, ou, mais
comumente, por dinheiro, mostrando que a natureza é valorizada em função da história
particular que a sociedade tem com o seu entorno. E é por isso mesmo que o sistema
capitalista tem de criar zonas de proteção ambiental, parques nacionais, áreas de
conservação etc., acobertando, assim, a natureza de sua apropriação. Essa legislação é a
demonstração mais clara de que a propriedade privada é a causa da depredação e
degradação da natureza e não a propriedade coletiva, como preferem dizer os defensores
do ambientalismo neoliberal. Quando o capital se apropria de condições naturais “virgens”
apropria-se da natureza gratuitamente.
* * *
A Falácia Do Tempo Livre:
Apesar da cidade ter locais designados para o lazer, há quem prefira sair dos
adensamentos urbanos nos seus momentos de folga do trabalho, buscando na relação
cidade-campo o contraste da satisfação. É no campo que julgamos encontrar a natureza
intocada, paisagem esta que historicamente e socialmente vem se constituindo como a
representação ideal do que seria uma paisagem verdadeiramente natural. Essa busca
vem como possibilidade de fugir do repetitivo, da rotina de trabalho, inclusive do espaço
da vida cotidiana, e as férias remuneradas vem, pelo outro lado, como a possibilidade real
garantida pelo Estado de efetivação dessa busca. É em uma agência de turismo dentro
de algum shopping que aceitará um financiamento para ser consumido na Amazônia, nas
praias ou mesmo na “gringa”.
O turismo é resultante de uma reprodução específica do modo de vida fundado no
consumo, que, por sua vez, é a reprodução do modo de acumulação capitalista baseado
na lógica mercantil de circulação de mercadorias. É possível entender que essa
circulação de mercadorias atinge todas as esferas da vida, e o turismo é o fenômeno que
vai permitir essa circulação num espaço e tempo para além daquele da fábrica. Para isso
45
são necessários e mantidos alguns fetiches que sustentam e colocam na pauta de hoje a
atividade turística. Entre eles o fetiche do tempo livre ou do tempo de não trabalho que
ideologicamente sustenta um imaginário de que nas visitas às paisagens naturais não
estariam sendo reproduzidas as mesmas formas de produção que se desenvolvem no
centros urbanos.
Picinguaba é uma das praias brasileiras que, se por um lado é reduto natural
protegido e transformado em parque estadual, por outro lado, é também uma praia que
nas ultimas décadas apresentou uma estruturação urbana totalmente voltada para a
indústria turística. Novas residências construídas como segunda casa daqueles mais
afortunados, as residências dos caiçaras sendo transformadas em casas de veraneio, a
pesca que quando praticada por eles se restringem à exclusiva troca por dinheiro, sendo
que cada vez mais os descendentes desses pescadores já tem seu primeiro emprego na
área de serviços para turistas. Somente ignorando todas as relações de produção que
envolvem essas mudanças que é possível acreditar na atividade turística como algo
independente das relações de produção mais “típicas” do capitalismo. Sendo assim, o
discurso da indústria de chaminé verde se mostra inviável. O turismo não pode ser
considerado como um momento de não trabalho à medida que somente se viabiliza
através da manutenção da lógica mercantil de circulação de mercadorias, o que, por sua
vez, implica na expropriação do homem sobre seus meios de produção, implica no caso
de Picinguaba expropriar efetivamente o caiçara de sua casas e da alguma autonomia
que ainda mantinha.
Para se dedicar um pouco à análise da expressão “tempo livre” é necessário partir
do princípio básico que o caracteriza que é o fato deste se constituir exatamente na
relação de oposição com o tempo de trabalho: “O tempo livre é acorrentado ao seu
oposto”16, é aquele momento de desejo de estar fora das imposições da massante rotina,
mas que por outro lado, esse desejo se realiza somente em oposição às características
do tempo conscientemente caracterizado como sendo do trabalho. É na sua oposição que
o tempo livre se efetiva, portanto, por mais independente que pareça o tempo livre
realizado no turismo, ele é nada mais que uma outra aparência do tempo “oficial” de
trabalho fetichizado sob as relações de reprodução capitalistas. A rígida delimitação do
tempo de trabalho do tempo livre não compete a uma diferenciação entre viver no
capitalismo e viver fora dele/no natural, isso tenta se realizar no campo da consciência
das pessoas, assim como a possibilidade de fuga dessa cotidianidade aparece apenas
16 Adorno Theodor. Ensaio sobre “tempo livre”.
46
como representação, já que a mais real delimitação vem praticamente a diferenciar o quê
e como será consumido, visto que a atividade turística é também organizada em função
do lucro.
Assim se repensa a correlação entre tempo de trabalho e tempo livre em sua forma
negativa. O crescimento do turismo (incluindo suas variações de ecoturismo, turismo
rural, selvagem, etc) associado ao tempo livre não pode mais ser lido e satisfeito dentro
da leitura positiva, visto que é resultado da crise da forma social e também componente
de sua manutenção fetichizada.
Cada vez mais o tempo livre é tempo do trabalho e vice-versa, tal qual produção é
imediatamente consumo. Posto pela lógica da valorização todo tempo é tempo do capital.
Já não há redutos muito menos fugas.
Se pelo lado do turista a própria necessidade de liberdade é funcionalizada e
reproduzida pelo comércio, pelo lado caiçara, apresentado nesse estudo, o comércio vem
para institucionalizar o oposto, o seu tempo de trabalho com suas novas organizações
temporais e espaciais. É o turismo que ratifica a organização em torno do trabalho e como
expressão de uma nova relação entre sociedade capitalista e natureza sua realização
implica em ter as mesmas características lógicas de expropriação da sociedade industrial
de mercadorias. Nesse sentido, o natural – já objetificado enquanto natureza – também se
constitui como fetiche à medida que continua sendo subsumido e coisificado enquanto
uma possível mercadoria, agora uma mercadoria verde.
1 o turismo e a manutenção do tempo de trabalho
Se por um lado o turista vive essa ilusão de que está em um momento alheio ao seu
oficial tempo de trabalho, aquele tempo que requer constantemente produtividade, por
outro lado, os pescadores de Picinguaba realizam cada vez mais variados serviços do e
para o turismo. Em um momento do trabalho de campo um caiçara disse que já tinha
saído da pesca há quase 10 anos quando começou a trabalhar como caseiro e barqueiro
de um italiano morador residente em Picinguaba. Além de trabalhar na casa à beira da
praia, o pescador também era responsável por cuidar de uma outra residência e de uma
escuna mantidos na Ilha das Couves indo para lá 2x por semana. Uma curiosidade das
relações de trabalho é que quase nenhum caiçara tem serviço registrado em carteira de
trabalho ou mesmo por contrato temporal; os pagamentos eram mensais, mas sem um
salário fixo, pois o dinheiro pago pelo proprietário da casa variava de acordo com os dias
trabalhados e as funções exercidas, visto que o caiçara também era responsável por fazer
47
passeios de barco com os amigos e familiares do gringo que os recebia frequentemente
e gostava de levá-los às praias próximas e também a sua residência na Ilha. Quando
questionei se havia a necessidade de voltar a pescar, respondeu que estava tentando
comprar um motor para o seu barco e daí conseguir “parar de trabalhar pros outros” e
trabalhar fazendo passeios de barco para a Ilha das Couves e as praias próximas
diretamente com os turistas. Além disso esperava que com o barco conseguisse vender
peixe, mas não para as peixarias das cidades, mas pescado voltado diretamente para os
proprietários dos restaurantes da orla de Picinguaba, onde um barco pequeno seria
fisicamente suficiente e “o dinheiro vem ali na hora”.
Uma outra curiosidade desse relato é que quem coloca o preço do pescado é o
proprietário do restaurante e não o pescador. Antônio disse que nas épocas próprias de
sardinha e de lula, quando as vezes ele participava (o que foi se tornando mais raro, pois
o trabalho exigido nas duas casas do italiano acabam por tomar muito do seu tempo) em
nenhum momento ele colocou preço mínimo no seu serviço. E isso ocorria são só nos
dias de hoje nessa relação “mais direta” com o dono do restaurante, como também há
décadas atrás quando ele praticava a pesca oceânica e chegava a ficar um mês em alto
mar, também não colocava preço mínimo, pois este era imposto pelo atravessador que
também impunha uma quantidade mínima e o dia certo do embarque que ia de
Picinguaba por carro levando o pescado dos caiçaras diretamente para os mercados
centrais e as peixarias do centro de Ubatuba e de Santos.
Nessa conversa foi possível perceber como a expansão do urbano vem a costurar
outras formas de produção diferentes daquelas presentes nos relatos das teses de
Luchiari, se antes esses lavradores pescadores viviam uma rotina menos segmentada,
agora esses pescadores trabalham dia e noite, verão e inverno, época de sardinha ou
lula, construindo uma noção temporal totalmente segmentada pela necessidade de
trabalhar.
Parece também que há uma necessidade em escolher ser pescador ou não, pois a
pesca para os grandes mercados exige dos pescadores a exclusividade da sua produção
e também praticamente exige um tempo maior de trabalho, às vezes meses em alto mar a
fim de se atingir uma grande quantidade de pescado. Além disso, foi relatado que se o
atravessador descobrir que o pescador está vendendo o pescado para os restaurantes ou
outros mercados menores, ele corta a relação trabalhista e deixa de comprar o pescado.
48
Ou seja, ou ele se torna um pescador exclusivo para os mercados centrais sendo vigiado
pelo atravessador que também lhe impõe as outras exigências já citadas, ou ele
abandona a atividade pesqueira para assim ter tempo disponível para os veranistas como
caseiro ou barqueiro nas luxuosas escunas.
Se à época da expansão do urbano para essa região (que se encontrava isolada
devido à regressão econômica de sua participação no café) os lavradores – pescadores
passam à função de pescadores exclusivos na tentativa de aumentar quantitativamente
sua produção e assim ser interessante para um atravessador; esse momento da
expansão da atividade turística caminha no processo de pescadores exclusivos para
trabalhadores do setor de serviços (turísticos). Em Picinguaba, pelo menos, os caiçaras
que conversei que ainda eram pescadores também trabalhavam ou para alguma pousada
ou para a propriedade residencial dos mais abastados como caseiro ou pedreiro, mas sua
maioria, falava da pesca enquanto uma atividade residual, que se tornou pontual com a
troca sendo realizada ali mesmo na praia diretamente com os proprietários dos
restaurantes.
Das conversas do trabalho de campo, nenhuma delas foi feita com um caiçara que
trabalhava apenas com a pesca.
Como resumo final, temos a perda da importância econômica como fator que
desloca o eixo do povoamento deixando a região em abandono, restando núcleos
populacionais isolados até a construção da BR-101. Isolamento este que culmina na
construção de uma “população tradicional”, aonde atualmente, no contexto da expansão
do turismo, tem grande parte da população caiçara e seus descendentes da Vila de
Picinguaba já ligados às atividades urbanas (como caseiros, na construção civil, órgão
público, pequenos comércios, etc). Com a intensificação do fluxo turístico a terra passou a
configurar uma mercadoria, fazendo com que muitos deles fossem, direta ou
indiretamente, expulsos de suas terras e embora o crescimento da Vila esteja assumindo
formas diferenciadas, há o predomínio da especulação imobiliária e especialização das
atividades econômicas centradas no turismo, influenciando, assim, na própria atividade do
caiçara que além da expansão turística com a especulação também tem o Parque como
agente proibitivo da manutenção da terra enquanto meio de produção.
A Vila, assim, apresenta uma configuração conflitiva na relação entre terra –
trabalho – capital e o trabalho de campo mostrou que a territorialização desse conflito
corresponde tanto à formas diferenciadas no espaço (como o acesso à terra enquanto
49
meio de produção no que concerne às especificidades da legislação do parque com os
moradores caiçaras e os quilombolas), quanto a um processo de homogeneização próprio
do capital dessas populações com a expansão do turismo.
Referências Bibliográficas:
50
ADORNO, Theodor. Tempo livre.
ALFREDO, Anselmo. A crise ecológica como crítica objetiva ao trabalho: O turismo
como “ilusão necessária”.
ALFREDO, Anselmo. Reprodução crítica, modernização contraditória: o tempo como
fetiche de razão na irracionalidade espacial do Capital.
ANDRIOLI, Antônio Inácio. A atualidade de Marx para o debate ambiental.
BESPALEC, Paula da Silva. A territorialidade caiçara e os conflitos na vila de
picinguaba (Parque Estadual da Serra do Mar – sp). Dissertação de mestrado -
Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Geociências. 2011.
FOLADORI, Guillermo. O Capitalismo e a crise ambiental. Artigo na revista Raízes, Ano
XVIII, No 19. maio de 1999.
FOSTER, John Bellamy. A ecologia de Marx: materialismo e natureza. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2005.
GOLDENSTEIN, Lea; SEABRA, Manoel. Divisão social do trabalho e nova
regionalização. Revista do Departamento de Geografia. PDF disponível em
http://www.revistas.usp.br/rdg/article/view/47065/50786. Acessado em outubro de 2016.
GROSSI, Mônica Aparecida. Capitalismo e questão ambiental: contribuições da
tradição marxista. Revista online Libertas, volume 9, número 1. Universidade Federal de
Juiz de Fora, 2009.
KURZ, Robert. O desenvolvimento insustentável da natureza. Artigo disponível no site
OBECO
KURZ, Robert. A privatização do mundo. Artigo disponível no site OBECO
KURZ, Robert. O colapso da modernização: da derrocada do socialismo de caserna
à crise da economia mundial. Paz e Terra, 6a edição. Rio de janeiro, 1992.
51
LUCHIARI, Maria Teresa D. P. O lugar no mundo contemporâneo: turismo e
urbanização em Ubatuba – SP. Tese do Doutorado da UNICAMP (Universidade Estadual
de Campinas). Campinas/SP: 1999
MARX, K. O Capital: crítica da economia política. Livro 1: O processo de produção do
capital. São Paulo: Boitempo, 2013.
MARX, K. Grundrisses: Elementos fundamentais para a crítica da economia política. São
Paulo: Boitempo, 2013.
OLIVEIRA, Francisco de. Elegia Para uma Re(li)gião. Sudene, Nordeste. Planejamento e
conflitos de classe. 5. ed. São Paulo: Boitempo, 2008.
______. A questão regional: a hegemonia inacabada. São Paulo: Novos Estudos, 7(18),
1993. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-
40141993000200003. Acessado em novembro/2016.
SILVA, Maria Beatriz Oliveira da. Crise ecológica e crise(s) do capitalismo: O suporte
da teoria marxista para a explicação da crise ambiental. Veredas do Direito, Belo
Horizonte, v.10 n.19 Junho de 2013.
VENTURI, Luis Antonio Bittar. Recurso Natural: a construção de um conceito. Revista
GEOUSP – Espaço e Tempo, SP, número 20. 2006.
52