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    ESCRAVOS EM ANGRA NO SCULO XVIIuma abordagem a partir dos registos paroquiais

    porMaria Hermnia Morais Mesquita*

    Resumo

    Na ausncia de estudos sobre os escravos em Angra e na impos-sibilidade de conhecermos com exactido o seu peso demogrfico, vamostentar algumas abordagens, a partir dos registos paroquiais, que permitamchegar a algum conhecimento sobre este segmento da populao da cida-de. Sabemos que os paroquiais so uma fonte manifestamente insuficien-te para responder a questes tais como: quantos eram? em que se ocupa-vam? como se relacionavam? o que lhes era permitido? que consideraomereciam? O nosso propsito , no entanto, explorar essa fonte e dar con-ta do que ela nos pode esclarecer relativamente ao conhecimento sobre osescravos em Angra para o perodo de 1583-1699. Perodo para o qual dis-pomos de bases de dados organizadas segundo a metodologia da recons-tituio de parquias.

    Introduo

    sabido que, desde cedo, a presena de escravos foi uma realida-de no seio da populao de Angra. Essa presena insere-se, de uma formageral, no contexto scio-econmico em que os arquiplagos atlnticossurgiram. A Madeira e os Aores, espaos inabitados aquando da sua des-

    * Ncleo de Estudos da Populao e Sociedade (NEPS), Universidade do Minho.

    ARQUIPLAGO HISTRIA, 2 srie, IX (2005) 209-230

  • coberta, precisaram de recorrer mo-de-obra escrava para suprir a faltade gentes necessrias ao seu aproveitamento econmico. A presena deescravos na ilha Terceira referida por autores como o Padre AntnioCordeiro, entre outros. Na sua Histria Insulana, ao mencionar as coisasque Ilha Terceira iam dar, vindas das mais diversas partes, este autor re-fere os escravos de Angola e de Cabo Verde1. Naturalmente que o maiorou menor fluxo de escravos dependia da facilidade ou dificuldade comque se chegava s fontes fornecedoras (fundamentalmente a costa africa-na) e da maior ou menor necessidade que se tinha desse tipo de mo-de--obra. Os registos paroquiais que trabalhamos, no mbito de um estudoque fizemos sobre as gentes de Angra no sculo XVII2, confirmam, comum nmero no desprezvel de registos, a existncia e a reproduo de es-cravos nesta cidade.

    De facto, ao reconstituir as cinco parquias que compunham a ci-dade de Angra no sculo XVII3, verificmos que em todos os registos pa-roquiais baptizados, casamentos e bitos h assentos referentes a escra-vos. O maior nmero desses assentos encontra-se nos livros de baptismo.Tido, vulgarmente como mercadoria que se podia comprar e vender, o es-cravo era, contudo, por parte dos seus donos, objecto de cuidados quevisavam garantir-lhe a sobrevivncia fsica e a salvao da alma. Efectiva-mente o baptismo dos escravos era obrigatrio para os seus senhores. Se-gundo as Ordenaes Manuelinas4, sob pena de os perderem para quem os

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    1 Pe. Antnio CORDEIRO, Histria Insulana, p. 306.2 As Gentes de Angra no sculo XVII, tese de doutoramento, policopiada, que defendemos

    na Universidade do Minho em Maio de 2004.3 No se sabendo precisar a data da fundao de cada uma das cinco parquias, sabe-se,

    no entanto, que todas estavam criadas antes de findar o sculo XVI. A da S (igreja ca-tedral desde 1535), era j paroquial de S. Salvador antes da criao da diocese; a de Nos-sa Senhora da Conceio (no se sabendo a data da sua fundao, Drumond d comocerta a sua existncia j no ano de 1521); a de S. Pedro, elevada a parquia por alvarde 20 de Maio de 1574; a de Santa Luzia, com alvar de criao datado de 2-2-1585,consta num alvar de 23-5-1595 como descarregada da parquia da S por ter maisde 1200 fogos, e 5000 e tantas almas de confisso, afora 2000 soldados do presdio, e ha-ver muita gente que vinha nas embarcaes por escala, que a maior parte corriam a de-sobrigar-se dos preceitos da Quaresma na S; S. Bento, parquia extra-muros, a suaigreja paroquial tem alvar de fundao datado de 9 de Maio de 1573. Veja-seDRUMMOND, Francisco, Apontamentos Topogrficos, Polticos Civis e Eclesisticospara a Histria das Nove Ilhas dos Aores servindo de suplemento aos Anais da IlhaTerceira, Angra do Herosmo, IHIT, 1990, pp. 209-220.

    4 Ordenaes Manuelinas, Liv. 5, Tt. 99, Lisboa, Fund. C. Gulbenkian, 1984, pp. 300-301.

  • acusasse, aqueles que adquirissem escravos deviam mand-los baptizar. Is-so devia ser feito dentro de prazos determinados: o prazo de um ms, quan-do o cativo era de idade igual ou inferior a dez anos, era alargado para seismeses quando o escravo fosse maior do que essa idade. E os nascidos emcasa dos donos deviam receber esse sacramento dentro do tempo determi-nado para os demais recm-nascidos5. O cumprimento desta obrigao me-receu da Igreja especial ateno, pois as Constituies Sinodais, acautelan-do eventuais incertezas quanto aos escravos que vinham de fora, estipula-vam que se baptizassem condicionalmente os adultos que vm de fora, co-mo so escravos, quando deles se duvidar se foram baptizados, ou se o fo-ram na forma da igreja. E o vigrio ou cura que o sobredito no cumprir,pagar por cada vez um cruzado, para a nossa S e Meirinho6.

    Com presena tambm nos assentos de casamento e bito, veja-mos o que nos revela cada uma das fontes relativamente aos escravos.

    Nos assentos de baptismo, quando se trata de crianas recm--nascidas, alm da data em que ocorre o baptismo, o proco menciona onome da criana, o nome da me e a sua condio de escrava e por ve-zes o nome do dono a quem esta pertence. Quando o pai conhecidotambm identificado pelo nome e refere se escravo e a quem perten-ce. No caso dos escravos adultos referido, frequentemente, a quem per-tencem e, por vezes, mencionam a sua provenincia geogrfica e a corda pele. Efectivamente, o baptismo, receberam-no tanto escravos recm--nascidos como adultos.

    Os assentos de casamento referem, nos poucos casos encontrados,a identificao dos cnjuges de forma algo varivel: indicam os nomesdos nubentes, raramente os apelidos, a sua condio de escravos e a quempertencem.

    Os assentos de bito so os mais escassos e os mais parcos de in-formao relativamente aos escravos.

    Entre os baptizados realizados no longo perodo de 1583 a 1699constam os de 1.258 crianas filhas ilegtimas de mulheres escravas cuja

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    5 Observando-se o estipulado nas Constituies Sinodais, o baptismo devia ser recebidoat aos primeiros 8 dias aps o nascimento. Na Constituio quinta do ttulo terceiro re-za o seguinte: Conformandonos com ho antigo costume deste nosso Bispado, aindageral de todo o Reyno: Mandamos que do dia que a criana nacer ao mais atee oytodias primeiros seguintes, seu pay ou may, o quem dela o cargo tiuer, a faa baptizar naygreja em cuja freiguezia viuer (), pp. 8-9

    6 Constituies Sinodais, pp. 6-7

  • identificao se ficava pelo nome prprio e, em no raros casos, acresci-da do nome do senhor ou da senhora a quem a dita me escrava pertencia.Para algumas destas crianas ilegtimas tambm se conhece o nome dopai, quase sempre um escravo. O interessante verificar que, quando in-dicado o nome de ambos os progenitores escravos, o pai e a me podiampertencer a senhores diferentes. Alguns casos, como o dos pais de Maria,baptizada em Fevereiro de 1611, ilustram bem tais situaes: o pai era es-cravo de Ferno Feio e a me pertencia ao padre Mateus Peres. Alm dosnascimentos ilegtimos contmos mais 107 crianas escravas, filhas depais que se haviam recebido em casamento (foram 98 os registos de ca-sais escravos, recebidos em matrimnio, que tiveram filhos em Angra).Encontrmos, ainda, 163 escravos adultos que foram apresentados pelosseus donos para serem baptizados.

    O casamento tambm lhes era permitido. Encontrmos um nme-ro, minoritrio, de casamentos em que um ou ambos os cnjuges so iden-tificados como escravos. Estes casamentos fizeram-se entre escravos domesmo senhor, entre escravos de senhores diferentes e entre escravos e in-divduos forros ou indivduos que parece terem sido sempre livres. Assim,entre 1583-1699, contmos 71 casamentos em que o cnjuge masculino referenciado como escravo, 42 em que essa referncia feita em relaoao cnjuge feminino e 34 casamentos em que ambos os cnjuges so re-feridos como escravos. Que significado atribuir ao facto de haver casosem que apenas um dos cnjuges era referido como escravo? O cnjugeno referido como escravo seria algum ou filho de algum que j o haviasido e que ganhara a liberdade? Ou haveria mesmo casos em que um doscnjuges nunca havia sido escravo? Que pensar de casos como o do casa-mento de Andr Melo com gueda Teixeira realizado em 16-11-1692 emque ele referido como sendo escravo do bispo D. Frei Clemente Vieirae ela como filha de Sebastio Dias Teixeira e de Maria Gonalves, j fa-lecidos, fregueses de S. Roque dos Altares?

    Quanto aos bitos de escravos, o seu nmero relativamente pe-queno: at 1699 apenas encontramos nos registos de bito 51 escravos e59 escravas. E o nmero dos que morrem com a indicao de forros ain-da menor (apenas um homem forro e 24 mulheres que so mencionadascomo mulher livre, preta ou negra forra e escrava livre). Este nmero re-duzido de sadas por bito poder dever-se a uma incompleta identifica-o por parte do proco.

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  • Dados quantitativos

    impossvel calcular o nmero de escravos existente em Angra,como em qualquer outra rea geogrfica do nosso pas. Tidos como elemen-to marginal na composio da populao, os escravos no constam das con-tagens de fogos e moradores7. No caso de Angra, para o sculo XVII, tam-bm no podemos contar com os Ris de Confessados. Assim, todas as con-tagens que se apresentam baseiam-se apenas nos registos paroquiais.

    Comeamos, a partir dos registos de baptismo e bito das cincoparquias da cidade, por contabilizar a presena de escravos nesse pero-do de 1583-1699 como consta do quadro 1.

    Quadro 1Escravos em Angra: baptizados e defuntos

    (1583-1699)

    Baptizados

    Legtimos Ilegtimos Adultos Defuntos

    Dcadas Masc Fem Masc. Fem Masc Fem Masc Fem

    1583-1589 2 0 12 16 3 5 1 1

    1590-1599 12 7 43 60 7 5 2 1

    1600-1609 13 6 48 36 3 1 0 1

    1610-1619 10 9 55 44 1 0 0 2

    1620-1629 4 7 83 86 2 3 1 0

    1630-1639 3 4 68 94 1 2 0 2

    1640-1649 4 4 60 50 3 3 1 1

    1650-1659 0 1 40 40 3 1 2 0

    1660-1669 1 0 31 40 11 2 1 1

    1670-1679 4 4 66 55 14 18 12 16

    1680-1689 3 6 49 67 27 24 9 18

    1690-1699 0 3 59 56 4 20 22 16

    Sub-total 56 51 614 644 79 84 51 59

    TOTAL 107 1258 163 110

    Fonte: bases de dados de Angra (ficheiro de indivduos, ficheiro de escravos adultos e fi-

    cheiro de defuntos)

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    7 Exemplo disso o Numeramento de 1527-1532, onde no constam. Cf. Fernando deSousa, Histria da estatstica em Portugal, Lx, INE, 1995, p. 71-73.

  • Este quadro, nas colunas dos baptizados, apresenta o nmero decrianas legtimas e ilegtimas, cuja me e ou pai so escravos e o nme-ro de escravos adultos que foram baptizados, em cada dcada, no conjun-to das cinco parquias. Na coluna dos defuntos consta o nmero de bi-tos em que se faz referncia condio de escravo do defunto.

    Como se pode verificar, 1365 o total de crianas nascidas emAngra que, pelo nascimento, tero a condio de escravas. Nmero beminferior, 163, o dos escravos adultos que foram apresentados pelos res-pectivos donos para receberem o baptismo.

    Quanto aos defuntos, um total de 110, parece-nos um nmero bas-tante baixo. A exemplo do que acontecia para o resto da populao, nesteperodo, em que no se fazia o registo de bito dos menores de sete anos,tambm no h registo do bito das crianas escravas. Mesmo assim, es-te nmero, apontando para um subregisto, poder dever-se, entre outrasrazes, a uma incompleta identificao por parte do proco que, no con-siderando importante este tipo de distino morte, no referia a condi-o de escravo do defunto. Tambm poder esconder um subregisto inten-cional: morte o escravo, por norma, nada tem, logo no h disposiesnem obrigaes pias a registar. O acto de fazer o registo do bito tambmencerrava este aspecto prtico: dar conta das obrigaes a cumprir parasalvao da alma. Poder, ainda, ser o reflexo de uma forte mobilidadedeste segmento da populao: os senhores de escravos seriam propriet-rios fundirios, cujas terras ficariam fora da cidade. Tambm h a consi-derar a hiptese da venda de escravos.

    Os nmeros referentes aos baptizados remetem-nos para a ques-to da reproduo do prprio sistema. Considerando o volume de baptiza-dos de crianas escravas recm-nascidas e de escravos adultos fica claroque para suprir as necessidades de escravos, muito contribuindo a repro-duo das prprias escravas, continuava a ser necessrio recorrer aqui-sio e portanto importao de escravos.

    Qual o peso dos escravos no conjunto da populao? No podendo chegar totalidade dos escravos existentes, procur-

    mos fazer uma aproximao, calculando o peso dos nascimentos escravosno conjunto de todos os nascimentos ocorridos na cidade. O quadro que sesegue mostra, dcada a dcada, todos os nascimentos registados na cidadede Angra, distinguido os nascimentos escravos. Assim, na coluna total dacidade contam-se todos os nascimentos legtimos e ilegtimos, livres e es-cravos. E da coluna Escravos Leg.+ Ileg. constam s os filhos dos escra-vos, fossem legtimos(Leg) ou ilegtimos (Ileg). Vejamos o quadro.

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  • Quadro 2Nascimentos de escravos - 1583-1699

    (% em relao ao total)

    Baptizados

    Perodos Total da cidade Escravos Leg + Ileg %

    1583-1599 5195 152 2,9

    1600-1609 2710 103 3,8

    1610-1619 2523 118 4,7

    1620-1629 2909 180 6,2

    1630-1639 3160 169 5,3

    1640-1649 2685 118 4,4

    1650-1659 2655 81 3,1

    1660-1669 2617 72 2,8

    1670-1679 2974 129 4,3

    1680-1689 2622 125 4,8

    1690-1699 2690 118 4,4

    1583-1699 32740 1365 4,2

    Apesar da irregularidade, quer do nmero de baptizados registados,quer das respectivas percentagens, constata-se que o peso dos filhos das escra-vas no conjunto dos nascimentos foi sempre considervel. Variando entre os2,8% de 1660-1669 e os 6,2% de 1620-1629, ao longo deste perodo de maisde cem anos, em cada mil crianas nascidas, em mdia, 42 eram escravas.

    Maioritariamente filhas apenas de me conhecida, havia, no en-tanto, crianas escravas ilegtimas que tinham no seu registo a indicaodos nomes do pai e da me. No quadro 3 quantifica-se, com base no cru-zamento de registos de casamento e baptizado, o nmero de escravos e deescravas que constam como progenitores legtimos e ilegtimos.

    Quadro 3Escravos com famlia constituda (legtima ou ilegtima)

    (famlia da qual se conhece a data de baptizado de filhos e ou a data do casamento)

    Com data de

    Dcadas 1583-1599 1600-1619 1620-1639 1640-1659 166-1679 1680-1699 Total casamento

    (1583-1699)

    Escravos 14 30 26 16 22 17 125 76

    Escravas 22 37 16 10 8 10 103 42

    Fonte: bases de dados de Angra (ficheiro de Famlias)

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  • Este quadro d-nos conta, em cada dcada, das famlias escravas(em que ambos os progenitores so indicados, independentemente de es-tarem matrimoniados ou no e de serem ambos ou apenas um deles iden-tificados como escravos). E na ltima coluna, reportando-se a todo o pe-rodo, consta o nmero de casamentos nos quais, conhecendo-se a data dasua realizao, indicada a condio de escravatura para os noivos. Odesfasamento entre os efectivos masculinos e femininos deve-se ao factode aparecerem assentos em que apenas um dos nubentes referido comoescravo. A mesma razo explica a diferena observada entre os nmerosque se referem s famlias contabilizadas para cada um dos decnios refe-ridos. Efectivamente, pelo ficheiro de famlias, contabilizamos 125 casaisem que o elemento masculino, o pai, referenciado como escravo e ape-nas 103 em que o elemento feminino, a me, tem expressa a condio deescrava. Dos 125 escravos com ficha de famlia s 92 so famlias legti-mas, conhecendo-se a data de casamento para 76. Das 103 escravas, s 61vivem em situao matrimonial reconhecida, conhecendo-se apenas a da-ta de casamento para 42. Todos os outros, apesar de serem reconhecidoscomo pais da criana que levaram a baptizar, mantm uma relao queno foi legitimada pelo casamento.

    No se conhece descendncia para todos os casais, em que um ouambos os cnjuges tinham a condio de escravos. Apenas de 98 dessasfamlias foram baptizados filhos: 107 rapazes e raparigas, como consta doquadro 1.

    O facto de, nos registos, quer de casamento, quer de baptismo, acondio de escravo nem sempre estar expressa, em simultneo, para am-bos os elementos do casal leva-nos a pensar que o casamento ou o vivermaritalmente era consentido entre escravos e livres. Por outro lado, a di-ferena entre o nmero de escravas com descendncia ilegtima e o dasque tm filhos legtimos aponta para que, normalmente, as relaes entreescravos se estabeleciam num quadro margem do casamento. Sabe-seque a Igreja defendia que se (o dono) tem escravos e sabe que estoamancebados, deve permitir que se casem e isto no lho podem impedir(...) e pecam gravemente os que impedem o tal, porque fazem contra a ca-ridade8. Na prtica, em Angra, apesar da realizao de alguns casamen-tos de cativos, parece que os senhores, mesmo quando representantes daIgreja, no tinham em considerao tal recomendao e aceitavam que assuas escravas se reproduzissem num quadro de relaes extra-matrimoniais.

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    8 Manual de Confessores e Penitentes, Coimbra, 1549.

  • O prprio bispo, D. Manuel Gouveia, tinha uma escrava, Catarina, aquem, em 25-6-1588, se baptizou um filho, Antnio, cujo pai foi dado co-mo desconhecido. Mais significativos so, ainda, casos como os das es-cravas dos cnegos Francisco Correia e Antnio Oeiras Fernandes. Mariada Graa, escrava do primeiro, baptizou duas filhas e um filho, entre 1680e 1688, todos filhos de pai no sabido. Do cnego Antnio Oeiras Fernandesconhece-se a escrava Maria que, na S, na dcada de 1670, baptizou duasfilhas e um filho, a escrava Maria Ferreira, me de um casal de gmeosque foram baptizados, em 1682, em S. Pedro e a escrava rsula dosPrazeres que, na S, baptizou, em 1691, uma filha. Em todos os casos noh indicao do pai.

    Pelos nmeros encontrados, constatamos que a paternidade difi-cilmente era assumida e que o casamento posterior ao nascimento de ile-gtimos era praticamente uma impossibilidade para as escravas (apenasem 49 casos indicado o nome do pai e somente em dois casos, em queambos os progenitores so escravos, houve posterior casamento).

    margem, portanto, dos preceitos da Igreja, esta situao era, po-rm, vantajosa para os proprietrios dos cativos. Escravos pelo nascimen-to, os filhos destas relaes pertenciam ao mesmo dono da me. Alm deaumentarem, por esta via, o nmero de escravos de que eram propriet-rios, os senhores no eram confrontados com a dificuldade que eventual-mente poderia surgir se quisessem vender apenas um dos progenitores, nocaso de estes serem casados.

    Independentemente das motivaes o certo que a grande maio-ria dos nascimentos escravos ocorrem em situao de ilegitimidade, ca-bendo tambm s escravas a esmagadora maioria dos nascimentos ilegti-mos registados na cidade.

    Acompanhar as mes de ilegtimos, sobretudo quando se trata deescravas, torna-se tarefa difcil. A insuficiente identificao destas mulhe-res no nos permite apurar todos os casos em que cada uma delas tinhamais do que um filho. A ttulo indicativo registe-se que entre as 955mes escravas identificamos 229 como tendo dois ou mais filhos.

    Assim, continuando a considerar o perodo de 1583-1699 e con-tando todas as mes para quem se registou a data de nascimento de umprimeiro filho, verificmos que das 1772 mes de ilegtimos (2.210 nasci-mentos), 955 so escravas, incluindo duas baas e uma mulata (1.258 nas-cimentos). As restantes, apesar de poucas serem referenciadas em relao sua filiao ou sua situao de vivas, aceitamos, dado o cuidado com

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  • que os procos especificavam se a me era escrava ou mulher livre, quese tratava de mulheres no-escravas. Quanto s mes com filhos legti-mos, contabilizamos, entre as 9.740 mulheres , apenas 58 mes escravas.

    Com base nestes nmeros pudemos, como consta do quadro 4,calcular a percentagem de mes que so declaradas escravas em relao,quer ao total de mes ilegtimas, quer ao total de todas as mes (legtimase ilegtimas, escravas e livres).

    Quadro 4Mes escravas - % em relao ao total

    (1583-1699)

    Mes Ilegtimas Mes legtimas Total das mes

    Total Escravas % Total Escravas % Total L+ I Escravas %

    1772 955 53,9 9740 58 0,6 11512 1013 8,8

    Se no conjunto das mes ilegtimas, as escravas representavam53,9%, no conjunto de todas as mes essa percentagem ficava aqum dos10% (8,8%). Se considerarmos a ilegitimidade (sabendo que entre 1583 e1699 o nmero total de nascimentos registados foi de 32740 e que o deilegtimos foi de 2210), verificamos que para a percentagem total de ile-gtimos de 6,8%, os escravos contriburam com 3,8% (1258 nascimentos).Significa isto que os nascimentos escravos constituam 56,9% do total dailegitimidade.

    Distribuio geogrfica dos escravos na cidade

    Sabe-se que as parquias da cidade apresentavam, entre si, dife-renas, nomeadamente, quanto ao nmero de fregueses e qualidade econdio dos seus moradores. Segundo Maldonado, a da S e a daConceio eram as mais importantes, no s do ponto de vista demogr-fico9, mas tambm do ponto de vista social. Segundo o mesmo autor, osmoradores da Conceio que se chamavam do bando de cima, acrri-mos contendores com os de So Salvador que chamavam do bando de

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    9 A S e a Conceio tinham 760 e 638 fogos respectivamente, em 1700, contra os 326 deS. Pedro, os 302 de Santa Luzia e os 136 de S. Bento. Ver MALDONADO, Pe. ManuelLus, Fenix Angrence, 3 vol., pp. 141-142.

  • Baixo; e uns e outros procediam com notabilssimos empenhos nas elei-es dos que haviam ser nomeados nos cargos do governo publico, emque muitas vezes disparavam em renhidssimas pendncias10. Eram asduas freguesias, segundo o padre Cordeiro, com muito grande numerode fregueses, e muitos deles fidalgos, e morgados muito ricos, contras-tando, por exemplo, com a de S. Pedro, que ficando no fim do grandecumprimento da Cidade e tendo nela algumas casas nobres, o mais somareantes, e se estende a muitas partes fora da cidade, e da sua porta,que chamam de S. Catarina11

    O total de nascimentos registados em cada uma das parquiasconfirma realmente que, do ponto de vista demogrfico, as freguesias daS e a de Nossa Senhora da Conceio eram as mais importantes.

    Quanto aos escravos, homens e mulheres pertena de algum, quemais se pode saber, atravs dos registos paroquiais, sobre este segmentoda populao angrense?

    Partindo do princpio de que os senhores de escravos teriam queser gente de posses ser interessante procurar ver atravs do registo debaptismo de escravos, tanto de recm-nascidos como de adultos se se con-firma, por esta via, a importncia scio- econmica destas parquias.

    Pelos dados que recolhemos, alm de se conhecer a distribuiodos escravos pelas diferentes freguesias da cidade, conhecem-se tam-bm os donos da maior parte deles: sabe-se a quem pertenciam 892 das1013 escravas que compunham o conjunto reprodutor de escravos: 159eram propriedade de mulheres e 733 tinham como dono homens. Quan-to aos escravos adultos sabe-se a quem pertenciam 158 dos 163 que fo-ram baptizados: 18 eram propriedade de mulheres e 140 eram-no de ho-mens.

    O Quadro seguinte apresenta, em nmeros absolutos e em percen-tagens, a distribuio pelas diferentes parquias dos escravos baptizadosadultos e das escravas que a tiveram filhos.

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    10 MALDONADO, ob. cit., 3 vol., pp. 141-142. As disputas tomavam tal dimenso que,segundo este autor, foi precisa a interveno do Rei em 1623, ano at quando dura-ro estas desordes. em que El Rey foi seruido a fim de atalhar estas contendas man-dou viessem nomeados do Reino pela Meza do Dezembargo do Passo os que hauioseruir de Juizes Ordinarios Vreadores, e Procurador do Conselho na Republicad Angra; e outrosi pessoa que tivesse o cargo de Provedor da Mizericordia em quehauia a major contenda.

    11 CORDEIRO, Pe. Antnio, ob. cit., p. 280

  • Quadro 5Escravos: distribuio geogrfica na cidade

    1583-1699

    Baptizados adultos Mes escravas

    Parquias N Abs. % N Abs. %

    S 115 70,6 714 70,5

    Conceio 35 21,5 214 21,1

    S. Pedro 4 2,5 31 3,1

    Santa Luzia 8 4,9 50 4,9

    S. Bento 1 0,6 4 0,4

    Total 163 100,0 1013 100,0

    Fonte: bases de dados de Angra (ficheiro de Famlias e ficheiro de escravos)

    Os nmeros encontrados para as 3 ltimas parquias, mesmo evi-denciando o subregisto, resultante da no existncia de livros em algunsperodos, no deixam de apontar para que a S e a Conceio fossem asparquias onde se concentrava o maior nmero de escravos. Pelo nmerode casamentos escravos realizados essa ordem de grandeza no se altera:37 registaram-se na S, 10 na Conceio, 7 em Santa Luzia, 3 em S. Pedroe 1 em S. Bento. Esta distribuio est certamente relacionada com a reade residncia onde moravam aqueles que mais podiam ser senhores de es-cravos. Lembremos que estas eram as duas maiores freguesias e aquelasonde residiam os notveis locais, a gente de posses e condio: membrosdo clero, do funcionalismo, fidalgos, mercadores.

    Como se pode observar, estes valores confirmam a parquia daS como a mais importante, aquela que rene a maioria dos escravos dacidade. As outras freguesias, eram por ordem de grandeza, a Conceio,onde havia uma percentagem significativa (mais de 21%) seguida delonge pelas freguesias de St Luzia (4,9%), de S. Pedro (entre os 2,5%e os 3%) e por fim numa percentagem bastante residual a de S. Bento(cerca de 0,5%).

    De facto foi na parquia da S que se baptizaram mais de 70%dos escravos que chegaram adultos cidade e foi a, tambm, que omaior nmero de escravas baptizou os seus filhos recm-nascidos. Eracertamente nesta parquia que se concentrava o maior grupo detentor deescravos. Vejamos o que os registos paroquiais nos podem dizer acercados donos dos escravos.

    MARIA HERMNIA MORAIS MESQUITA

    220

  • Os donos dos escravos

    Apesar de tanto homens como mulheres se apresentarem comoproprietrios de escravos, o certo que, maioritariamente, os escravos,de ambos os sexos, so referidos como pertencendo a homens. Entre asproprietrias aparecem sobretudo mulheres que so referenciadas comovivas e ou como donas. D. Maria Luz do Canto disso exemplo: em1684, sendo casada com Incio de Castelo Branco da Cmara, apresen-ta uma escrava adulta que tinha um filho, j crescido, para serem bap-tizados.

    Os dados que encontramos para os proprietrios homens, almde nos permitirem conhec-los pelos nomes, indicam, em nmero signi-ficativo, a sua profisso/ocupao ou condio. Assim, podemos saberquantos escravos so referenciados por cada proprietrio e conhecer ca-tegorias sociais predominantes no recurso mo-de-obra escrava. Entreos proprietrios conhecidos, dos 140 escravos adultos, contamos 123com 1 escravo e 17 com 2 ou mais escravos. O maior nmero de escra-vos adultos apresentado, para baptizar, foi de dez (5 homens e 5 mu-lheres), entre 1678 e 1697, por Guilherme Fisher, um mercador ingls,que casara em 1658 com uma angrense. A seguir, os proprietrios que seapresentaram com maior nmero foram: o Provedor da Fazenda,Agostinho Borges Sousa que mandou baptizar 3 escravos e uma escra-va, o cnego Guilherme Pereira, o governador Francisco Ornelas Cmara,o mercador francs, Antnio Sienne, Manuel do Canto Castro e LusFernandes Gramaxo, cada um com trs escravos.

    Embora os registos paroquiais no sejam a melhor fonte para seconhecer a composio social do grupo de proprietrio de escravos, per-mitem-nos, contudo, alguma abordagem a esta questo. Assim, o quadroque se segue d-nos conta de quem eram os senhores de escravos tendopor base as referncias encontradas no conjunto das escravas cujos fi-lhos foram baptizados (coluna A) e no dos escravos baptizados adultos(coluna B).

    ESCRAVOS EM ANGRA NO SCULO XVII

    221

  • Quadro 6Donos de escravos referidos em registos de baptismo (1583-1699)

    N de Donos Ocupao / condio N de Escravos

    A (mes) B(adultos) A (mes) B(adultos)

    55 9 Eclesisticos: 63 11

    1 bispo 1

    13 4 cnego 18 6

    1 meirinho-eclesistico 1

    1 mestre-escola 1

    34 5 padre 37 5

    5 reverendo 5

    137 28 Notveis: 195 38

    27 7 Dona, Dom, fidalgo, morgado, burgus 37 9

    44 12 Com cargos na administrao: 65 14

    1 almoxarife 1

    3 contador 8

    1 corregedor 1

    21 4 licenciado/doutor/cirurgio 27 4

    6 escrivo (alfndega, correio, fazenda, rfos) 10

    1 feitor da alfndega 1

    1 meirinho 2

    1 mordomo 1

    1 2 provedor 1 4

    1 tabelio 1

    3 tesoureiro (mor e dos defuntos) 3

    1 ouvidor 1

    9 vereador 14

    66 9 Com cargos militares: 93 15

    1 ajudante do castelo 1

    1 alcaide da cidade 1

    10 alferes 12

    39 7 capito 60 11

    1 1 general 1 1

    3 1 governador do castelo 3 3

    1 mestre-maior do castelo 1

    3 pagador do castelo/pagador do tero 3

    7 sargento/ sargento-mor/ sargento- mor do tero 11

    48 15 Outros: 68 28

    MARIA HERMNIA MORAIS MESQUITA

    222

    (continua)

  • Quadro 6Donos de escravos referidos em registos de baptismo (1583-1699)

    N de Donos Ocupao / condio N de Escravos

    A (mes) B(adultos) A (mes) B(adultos)

    12 3 viva 15 3

    4 militares: 7

    1 artilheiro 1

    3 soldado 6

    15 3 dos ofcios: 20 3

    2 carpinteiro 2

    2 mareante 3

    4 mestre 6

    1 oleiro 1

    1 2 ourives 1 2

    1 pedreiro 1

    1 piloto 1

    2 sapateiro 4

    1 1 tanoeiro 1 1

    17 9 do comrcio 26 22

    14 8 mercador 23 21

    2 boticrio 2

    1 vareira 1

    1 vendeira 1

    Sem indicao de ocupao ou condio 566 81

    240 52 Total 892 158

    Este quadro permite inferir que os senhores de escravos, consti-tuindo certamente uma minoria populacional, formavam um grupo comalguma heterogeneidade profissional e sociocultural. Em termos quantita-tivos o grupo dos senhores seria mesmo menor do que o dos escravos,pois, apesar de na sua maioria os donos de escravos aparecerem referen-ciados apenas a um escravo, h proprietrios que tm um nmero de es-cravos que varia, normalmente, entre um e dois, e que excepcionalmentevaria entre quatro e dez.

    Tinha escravos gente de posses, certamente. Posses no s para osadquirir, mas tambm para os manter. Gente que tinha onde e como usara mo-de-obra dos escravos. A heterogeneidade do grupo bastante am-

    ESCRAVOS EM ANGRA NO SCULO XVII

    223

  • pla em termos de ordens sociais em que podemos integrar os donos de es-cravos. Nobres (fidalgo e morgado), eclesisticos (bispo, deo, cnego,padres, curas), gente da administrao pblica e militar (desembargador,provedor da fazenda, ouvidor, governador, almoxarife, tesoureiro-mor, ca-pito, sargento-mor, alferes, tesoureiro dos defuntos, general, pagador dotero), notveis (licenciado, doutor, Dom e Dona), mercadores e outros li-gados sobretudo aos ofcios mecnicos (boticrio, mestre, piloto, tanoei-ro, sapateiro, carpinteiro, pedreiro, mareante).

    No quadro que se segue apresenta-se, em percentagem, o peso re-lativo de cada grupo de donos de escravos.

    Quadro 7Donos de escravos

    (referidos em registos de baptismo com indicao de ocupao/condio -1583-1699)

    %

    N de Donos Ocupao / condio N de Escravos

    A (mes) B(adultos) A (mes) B(adultos)

    22,9 17,3 Eclesisticos: 19,3 14,3

    57,1 53,8 Notveis: 59,8 49,4

    11,3 13,5 Dona, Dom, fidalgo, morgado, burgus 11,3 11,7

    18,3 23,1 Com cargos na administrao: 19,9 18,2

    27,5 17,3 Com cargos militares: 28,5 19,5

    20,0 28,8 Outros: 20,9 36,4

    5,0 5,8 viva 4,6 3,9

    1,7 0,0 militares: 2,1 0,0

    6,3 5,8 dos ofcios: 6,1 3,9

    7,1 17,3 do comrcio 8,0 28,6

    100,0 100,0 Total 100,0 100,0

    Os notveis, especialmente os detentores de cargos na administra-o e de cargos militares (uma constante durante todo o perodo dada aimportncia militar de Angra por fora do castelo de S. Filipe, chamadode S. Joo Baptista depois, com a Restaurao), juntamente com os ecle-sisticos constituem mais de 70% dos proprietrios e so, grosso modo,donos de igual percentagem de escravos. Interessante verificar quequando se trata de escravas, mes de recm-nascidos, os notveis e oseclesisticos constituindo 80% dos proprietrios controlam mais de 79%

    MARIA HERMNIA MORAIS MESQUITA

    224

  • das escravas reprodutoras, mas quando se trata de escravos baptizadosadultos (cremos que se trata de escravos cuja aquisio ocorreu pouco an-tes de serem baptizados), os 70% de proprietrios apenas so responsveispela aquisio de cerca de 64% desses escravos. O maior peso relativo deoutros proprietrios, quando se trata de escravos adultos, dever-se- cer-tamente presena de mercadores neste grupo de proprietrios. A diferen-a entre a percentagem de escravas que os mercadores mantinham (8%) ede escravos que adquiriam (28,6%) pode apontar para a actividade de re-venda por parte destes proprietrios. Os oficiais mecnicos, ligados sprofisses artesanais, tm um peso relativamente reduzido, quer no con-junto dos proprietrios, quer nos quantitativos de escravos de que eramdonos. Mais reduzido ainda o peso dos proprietrios que eram simplessoldados. Isto deve-se certamente fraca capacidade econmica que unse outros tinham para adquirir e depois manter um escravo.

    A composio social dos proprietrios de escravos, que resultados dados que retiramos das fontes paroquiais de Angra, apresenta apenasalguns traos em comum com a que foi encontrada por Jorge Fonseca, pa-ra os sculos XVI-XVII no Sul de Portugal, a partir de fontes notariais12.Este autor, trabalhando uma realidade que no se confina a um espao ur-bano, encontrou, em termos numricos, em primeiro lugar os detentoresde cargos eclesisticos, seguindo-se o grupo dos proprietrios nobres.Quanto s profisses artesanais, verificou que estas tambm tinham umpeso numrico reduzido (6,63%) no conjunto dos donos de escravos. Im-portante era, no entanto, o grupo constitudo por proprietrios ligados agricultura e pecuria, actividades, onde certamente usavam mo-de-obraescrava, e que eram predominantes nessa regio do pas.

    Consciente de que os elementos fornecidos pelos registos paro-quiais no nos do total segurana nem quanto aos quantitativos dos pro-prietrios nem dos escravos, parece-nos, no entanto, aceitvel afirmar queem Angra, no perodo em observao, a posse de escravos se concentravafundamentalmente na mo de gente de condio social ou econmica ele-vada: os eclesisticos, maioritariamente cnegos e padres; os nobres, comdireito ao Dom, fidalgos e morgados; os altos funcionrios com cargosquer na administrao municipal, quer na administrao central; os deten-tores de cargos militares, como o de governador do castelo; os mercado-res estrangeiros, instalados na cidade com ligaes ao comrcio internacio-

    ESCRAVOS EM ANGRA NO SCULO XVII

    225

    12 Ver FONSECA, Jorge, Escravos no Sul de Portugal. Sculos XVI-XVII, Editora Vulgata,2002, pp. 35-39.

  • nal, como o caso de Guilherme Fisher, a cujo nome encontramos refe-renciado o maior nmero de escravos.

    Os escravos e os outros

    Seriam os escravos um grupo margem da sociedade? Comoseriam tratados pelos seus senhores? Muito provavelmente a sorte no eraigual para todos, nem na dureza dos trabalhos que lhes cabia fazer nem notrato que recebiam. Haveria alguns que certamente ganhavam a estima dossenhores que at lhes deixavam usar os apelidos de famlia como o casode Fernando Fonseca Chaco, servo de Diogo Fonseca Chaco, que emDezembro de 1654 baptiza uma filha ilegtima de uma mulher preta livre.Ou o caso de Gaspar, escravo de Antnio Toledo, que ao casamento, em1623, tambm usava o apelido Toledo. Outros conseguiam a liberdade, con-tinuando no entanto a serem referenciados aos antigos donos como o casode Rodrigo Pereira, escravo forro de Jorge Dias S e o de Catarina Castro,negra forra de Manuel Castro que em Novembro de 1686 casam entre si.

    Isabel S referindo-se aos Aores, afirma que o nico elementoracial a considerar a presena de escravos assinalada para a Terceira eS. Jorge, o que tambm se verificava no continente e que a presso queestas populaes exercem parece ser mnima, a ponto de no obrigar ascomunidades locais a nenhum esforo de segregao13.

    Os nossos dados apontam efectivamente como elemento racial apresena de escravos. Se exceptuarmos a postura 144, que estipula queos negros da Guin se alojaram dos muros para fora e alojando se dentro(da cidade) pagara o dono dos negros coatro mil ris de couma14, nodescortinmos indcios de segregao. Sabe-se tambm que na ermida deNossa Senhora da Natividade existia uma confraria do mesmo nome cu-jos confrades eram todos os negros e negras da Cidade, e nella tinho seujazigo todos os que morrio com a clauzula que nella se no admeterioMulatos, em que os negros se hauio com notauel constancia15.

    As preocupaes com a moralizao e a preservao dos bons cos-tumes patentes nas posturas municipais e nos livros de vereao no respei-

    MARIA HERMNIA MORAIS MESQUITA

    226

    13 S, Isabel dos Guimares, Quando o rico se faz pobre: Misericrdias, caridade e po-der no imprio portugus 1500-1800, CNCDP, Lisboa, 1997, pp. 258

    14 Cf. RIBEIRO, Lus da Silva, Obras II Histria, IHIT- SREC, 1983, p. 375.15 MALDONADO, ob. cit., 3 vol., p. 207

  • tam exclusivamente aos escravos. Nas posturas probe-se, sob determinadaspenas, que pessoa alguma jogue jogo algum com escravos cativos e que ne-nhum moo nem escravo joguem nos adros16. Nas vereaes encontramos,em 11-4-1654, a preocupao com a grande devassido de moos e homensvadios que jogam. Entendendo que convinha remediar a situao assentaramque o quadrilheiro passasse a vigiar os jogos e que prenderia na cadeia aque-les que achasse jogando a quem tiraria o dinheiro em jogo que depositariadando de tudo conta a qualquer juiz da cidade. Mais de dois anos volvidos,em 11-10-1656, temos eco dos efeitos prticos dessa deciso: foi posta penaa Sebastio Gonalves, vendeiro, que com pena de 4 mil ris para a casa doscativos no consinta negros nem mosos a jugar em sua casa17.

    Apesar de restries, como a que mandava que nenhuma peoaque venda vinho ou outra couza consinta negros captivos em caza18 ouainda a que por ser captivo e no ter nem poder tomar juramento justi-ficava que se pedisse aos oficiais da cmara que no consentissem quecontinuasse um negro cativo cortando carne no aougue dos mesteres19,as relaes dos escravos com a comunidade dos homens livres no dia-a--dia no se restringiam relao de dono e propriedade. No raras vezesso homens e mulheres fora da comunidade dos escravos que servem depadrinhos s crianas e at aos adultos escravos que se baptizam. Os mu-latos e mulatas seriam muitos deles filhos de amores no assumidos comescravas. Mas havia tambm os que assumiam, no os amores mas, os fi-lhos desses amores ilcitos. o caso de Diogo, soldado do mestre de cam-po, que assume a paternidade de Diogo seu filho ilegtimo com Joana,uma escrava de Beatriz Negroa. Quando em 24-5-1592 baptizam o filhoapresentam para padrinhos, Antnio Fernandes, mercador e CatarinaJorge, mulher de Bartolomeu Gonalves.

    Ocupao dos escravos

    Reportando-se aos Aores em geral, Vitorino Magalhes Godinhodiz, referindo uma fonte de 1575, que nos Aores os portugueses tinhamnos escravos fora para trabalhar e cultivar a terra, especialmente os campos

    ESCRAVOS EM ANGRA NO SCULO XVII

    227

    16 Cf. RIBEIRO, Lus da Silva, ob. cit., pp. 366 e 374.17 Cf. BPAAH, Vereaes, Livro 13, pasta 2 e Livro 14, pasta 3.18 Posturas in RIBEIRO, Lus da Silva, ob. cit., p. 36919 Cf. BPAAH, Vereaes, Livro 13, pasta 2 e Livro 9, pasta 1.

  • de trigo20. E em Angra, a Lisboa pequena, teriam os escravos, imagemdo que acontecia na capital do Reino, uma utilizao industrial (nas ferrarias o exemplo lisboeta), andariam tambm pelas ruas com cestos s costasvendendo ou acartando coisas? E as escravas ganhariam de comer em lim-par e lavar os servios de casa? A nossa fonte pouco nos adianta sobre a uti-lizao dos escravos em Angra. Pelo ficheiro de Defuntos apenas o caso deFilipa, escrava que morreu na S em 24-6-1685 sendo sepultada com todosos sacramentos na Casa da Misericrdia, refere que lavava aos padres daCompanhia. A utilizao nos servios domsticos era certamente o destinode muitas das escravas e possivelmente de alguns escravos. O Pe. Cordeirona Histria Insulana ao descrever o nobre trato da cidade onde abundam li-teiras (do bispo, dignidades eclesisticas, governador do castelo, capito--mor da cidade e ricos morgados) e carruagens, refere que as mulheres, asmais nobres, quando saam de casa (para a igreja ou visitas sociais) eramtransportadas em ricas cadeiras, as cadeiras de mulheres, que eram levadaspor dois negros e s ilhargas a p hio os criados e criadas 21. Aqui, comoem outros meios, os escravos tambm serviam para dar lustro condio so-cial dos seus senhores. Outros cativos seriam utilizados em tarefas confor-mes s necessidades das ocupaes dos respectivos donos. Na medida emque eram proprietrios de terras bem possvel que fosse tambm nos tra-balhos do campo onde os senhores urbanos utilizassem os escravos.

    Origem geogrfica dos escravos

    Alm dos nascidos em Angra, so poucos os casos em que menci-onada a origem geogrfica dos escravos. No podemos, assim, estimar de on-de provinham, maioritariamente, aqueles que entravam na cidade. Podemossaber, no entanto, com base nas raras referncias, que os escravos que chega-vam cidade tinham provenincias bem escala do imprio portugus:Cabo Verde, S. Tom, Guin, Etipia, Argel, Angola, Brasil, costa da ndia.

    As referncias cor da pele tambm so escassas. As que maisaparecem so as de preto e preta, pardo, bao e baa, mulato e mulata. Poruma s vez (em 1628 ao baptizado de um filho ilegtimo) referida umaescrava mourisca que pertencia ao governador do castelo.

    MARIA HERMNIA MORAIS MESQUITA

    228

    20 GODINHO, Vitorino Magalhes, Os Descobrimentos e a Economia Mundial, Vol. IV,2 edio, Editorial Presena, 1983, p. 201.

    21 Cf Pe. CORDEIRO , ob. cit., p. 292.

  • Fontes e Bibliografia

    Fontes manuscritas

    LIVROS DAS VEREAES DA CMARA DE ANGRA

    Pasta 1, Livro 9 (17-Jan-1602 a 13-Dez-1602) e Livro 10 (9-Jan-1608 a 16-Nov-1609);

    Pasta 2, Livro 11 (3-Jan-1628 a 6-Jun-1628), Livro 12 (22-Mai-1647 a 12-Dez-1648) e Livro 13 (1-Jul-1648 a 28-Mar-1651);

    Pasta 3, Livro 14 (20- Abr?-1652 a 26-Jan-1657) e Livro 15 (28-Abr-1699 a 2-Out-1706).

    2. Fontes impressas e bibliografia

    AMORIM, M. Norberta B., Uma metodologia de reconstituio de parquias,Universidade do Minho, Braga, 1991

    CONSTITUIES SYNODAES DO BISPADO DE ANGRA, feitas pelo Exmo. eRvdmo. Sr. Bispo D. Jorge de Santiago e aprovadas em Synodo Episco-pal celebrado na S Cathedral no anno de 1559, Typographia do Correioda Terceira, Angra do Herosmo, 1881.

    CORDEYRO, Antnio, Pe., Histria Insulana das Ilhas a Portugal Sugeytas noOceano Occidental, fac-smile da edio princeps de 1717, SREC.,Angra do Herosmo, 1981

    DRUMOND, Francisco, Apontamentos Topogrficos, Polticos Civis e Eclesis-ticos para a Histria das Nove Ilhas dos Aores servindo de suplemen-to aos Anais da Ilha Terceira, Angra do Herosmo, IHIT, 1990.

    FONSECA, Jorge, Escravos no Sul de Portugal. Sculos XVI-XVII, Editora Vul-gata, 2002

    GODINHO, Vitorino Magalhes, Os Descobrimentos e a Economia Mundial, 4vols., Ed. Presena, Lisboa, 1983

    MALDONADO, Pe. Manuel Lus, Fnix Angrence, 3 volumes, I.H.I.T., Angra doHerosmo, 1997

    MANUAL DE CONFESSORES E PENITENTES, Coimbra, 1549MESQUITA, M Hermnia Morais, As Gentes de Angra no sculo XVII, tese de

    doutoramento, policopiada, que defendemos na Universidade do Minhoem Maio de 2004

    ESCRAVOS EM ANGRA NO SCULO XVII

    229

  • ORDENAES FILIPINAS, edio fac-smile da edio de Cndido Mendes deAlmeida, Rio de Janeiro, 1870, 5 livros., Fundao Calouste Gulbenkian,Lisboa, 1985

    ORDENAES MANUELINAS, edio fac-smile da edio de 1797, 5 livros.,Fundao Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1984

    RIBEIRO, Lus da Silva, Obras II Histria, IHIT- SREC, 1983.SOUSA, Fernando de, Histria Estatstica em Portugal, Lisboa, INE, 1995.

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