Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017
ISSN 2236-1855 1392
ESCOLAS RADIOFÔNICAS E CONCEPÇÕES DE ALFABETIZAÇÃO (PETROLINA-PE, 1960-1965)
Manuela Garcia de Oliveira1
Virgínia Pereira da Silva de Ávila2
Este texto que se insere no campo de estudos da Historiografia da Educação,
especificadamente na História da Alfabetização, é fruto de pesquisa em fase de
desenvolvimento inicial que tem como objetivo identificar a concepção de Alfabetização
adotada pela escola radiofônica da Emissora Rural: A Voz do São Francisco, no município de
Petrolina-PE, no período de 1960 a 1965. Busca analisar, primeiramente, os princípios
pedagógicos e linguísticos que nortearam os documentos oficiais do Movimento de Educação
de Base (MEB) no âmbito nacional e regional, bem como seu material didático. Com isso, a
pesquisa visa a reconstituição de uma parte da história da alfabetização local, a fim de
compreender como se deu esse processo na região, contribuindo assim para os estudos
referentes à história da educação pernambucana.
Desse modo, considerando a amplitude do Movimento de Educação de Base, os
diversos setores sociais envolvidos na sua realização e os seus ideários, os assuntos tratados
neste trabalho viabilizará a expansão e aprofundamento sobre o movimento a partir de
múltiplas áreas de pesquisa, como na perspectiva da alfabetização, do sindicalismo voltado à
educação, da educação de jovens e adultos, da cultura escolar, educação popular, do modelo
administrativo educacional, educação à distância dentre outros.
Nos últimos anos os diagnósticos fornecidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística - IBGE (Censo Demográfico 2010) apontam que as políticas públicas educacionais
estão expandindo a educação e, consequentemente, diminuindo a taxa do analfabetismo de
13,63% em 2000 para 9,6% em 2010 garantindo a habilidade da leitura e da escrita, todavia a
conjuntura educacional outrora esteve próximo ao estado de inércia.
1 Mestranda em Educação do Programa de Pós-Graduação Formação de Professores e Práticas Interdisciplinares (PPGFPPI) da Universidade de Pernambuco –UPE. É integrante do Grupo de Estudos e Pesquisa em História da Educação no Sertão do São Francisco – Gephesf. E-mail: <[email protected]>
2 Doutora em Educação Escolar (UNESP, 2013). Professora do Colegiado de Pedagogia e do Programa de Pós-Graduação Formação de Professores e Práticas Interdisciplinares (PPGFPPI) da Universidade de Pernambuco –UPE, Campus Petrolina.É líder do Grupo de Estudos e Pesquisa em História da Educação no Sertão do São Francisco – Gephesf.E-mail: <[email protected]>.
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Na década de 50 do século XX os índices de analfabetismo ultrapassaram os 50%,
concentrando no Nordeste do país as mais expressivas taxas. Sob um contexto de
efervescência política, social e cultural, inicia os anos 1960 e a realidade do analfabetismo
persisti (PAIVA, 2003). Os resquícios do Pós-guerra (1944-1950) e as primícias da
bipolarização mundial (Guerra fria) acentuaram as desigualdades sociais e econômicas e, em
meio a isso, a necessidade de equiparar-se ao progresso, à industrialização e à modernização.
Além disso, a ideologia do populismo-desenvolvimentista (1945-1954) foi estratégica para
criar alianças com as diversas classes sociais e, ao mesmo, tensões. Tensões estas que em
1960, com as mudanças nas relações de trabalho no campo e o alto nível de desigualdade
social, desencadearam-se – sob o intermédio de estudantes, políticos, religiosos e intelectuais
- movimentos de luta por reformas de base, principalmente no que tange à educação da
população ruralista, para minorar disparidades econômicas e educacionais existentes entre a
elite dominante e o proletariado que, em sua maioria, eram campesinos. Além desses
promotores que lutaram por uma educação de base para a população desassistida, é preciso
considerar a mobilização dos líderes populares junto à Liga Camponesa no sentido de
pressionar os governantes a apoiar o MEB. Essa defesa era em razão de haver princípios em
comum entre os movimentos: uma educação que contemplasse a realidade do campo e do
adulto não alfabetizado.
Nesse contexto foram lançadas ao final dos anos cinquenta e início dos anos 1960
diversas campanhas3 e movimentos para reversão desse quadro que assolava principalmente
o território nordestino, sendo a de interesse deste estudo o Movimento de Educação de Base
– MEB com suas escolas radiofônicas.
O Rádio na Esfera Educacional e o MEB
De gênese centrada em um artifício bélico, o rádio não somente teve suas atribuições a
um armamento de apoio ao combate entre nações. Uma de suas potencialidades foi na
democratização da educação. Segundo Abreu (2004, p.66) “Desde os anos 20, a preocupação
em utilizar o rádio com finalidades educativas está presente na cabeça dos maiores
incentivadores e criadores do veículo”. Com isso, o rádio como dispositivo educacional no
Brasil foi idealizado por Edgar Roquette-Pinto, no qual teve o intuito de minorar as
desigualdades sociais. Após as experiências de radiodifusão de Roquette-Pinto, alguns
3 Centros de cultura Popular, organizados pela União Nacional dos Estudantes-UNE; Campanha de Educação de Adolescentes e Adultos (CEAA, 1947-1954); Campanha Nacional de Educação Rural (CNER- início 1852); Sistema Rádio educativo Nacional (SIRENA).
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sistemas radiofônicos educativos foram implantados, como por exemplo, o Movimento de
Educação de Base- MEB4 criado pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) em
parceria com o Governo Federal acordado pelo Decreto nº 50.370 de 21 de maio de 1961.
Inspirados pelo pioneirismo da rádio educativa - Rádio Sutatenzana Colômbia, em
1947-, a Igreja Católica vislumbrou a expansão de uma instrução popular massiva à distância,
por meio da tecnologia radiodifusora, uma vez que suas ações educacionais à época se
restringiam a um público abastado. No Brasil, a primeira experiência com esse modelo de
educação se deu no Rio Grande do Norte, desenvolvida sob a coordenação de D. Eugênio de
Araújo Sales, que era Bispo da Arquidiocese de Natal. Após verificar o funcionamento dessas
escolas no interior da Colômbia, D. Sales em 09 de agosto de 1958 inaugurou a emissora
rural da cidade de Natal, porém foi D. José Vicente Távora, arcebispo de Aracajú, que
formalizou e ampliou o projeto que servira de base para as demais escolas implantadas no
País (FÁVERO, 2004).
De acordo com Fávero (2004), a instrução de base era concebida como uma alternativa,
pois um projeto de transformação da realidade exigia um projeto de educação como forma de
“minorar” a longitude rural, o “atraso”, a miséria e diversos outros problemas que assolavam
a população que vivia na zona rural.
Em seu arcabouço, “o programa teria a duração de cinco anos, devendo ser instaladas,
no primeiro ano, 15 mil escolas radiofônicas, a serem aumentadas progressivamente”
(Fávero, 2004, p.1) e sua área de atuação deveria contemplar os estados do Norte, Nordeste e
Centro-Oeste. Com isso, o aceleramento da ampliação das emissoras católicas teve o apoio do
Ministério da Viação e Obras Públicas e toda a administração do dinheiro público ficava a
cargo do CNBB e da Representação Nacional das Emissoras Católicas – RENEC.
Os instrumentos para a formação de uma escola radiofônica eram simples. Com um
rádio cativo, um lampião, cadernos, lápis, giz, um quadro negro, flanelas e cartilhas, as aulas
eram ministradas por monitores voluntários em sala de aula ou casa de família ou alpendre.
A imagem abaixo é do artista Petrolinense Celestino Gomes, no qual representou em sua
pintura a ação do MEB na região de Petrolina-PE: o sertanejo estudando por meio do rádio
cativo, candeeiro para iluminar, papel e lápis à mão. A pintura eterniza a história do
Movimento e evidencia a sua importância para o desenvolvimento social e cultural da cidade.
4 Segundo Fávero e Freitas (2011) o MEB foi o único movimento que atuava exclusivamente no meio rural.
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Figura 1: Pintura de Celestino Gomes de 1962 representando o MEB na região de Petrolina-PE. Fonte: acervo Emissora Rural.
No que se refere aos recursos humanos, de acordo com o relatório do MEB de 1961 a
1965, a ser apresentado à CNBB no mês de Junho de 1966, a escolha do pessoal para
formação de equipes seguia regimento específico, no qual eram indicados pelo Bispo
Diocesano e o treinamento ficava sob a responsabilidade da equipe nacional e das regionais.
Ainda conforme o documento:
O trabalho do MEB tem características próprias, exigindo qualificações peculiares, que implicam numa visão de educação como promoção integral do homem e, em especial, no diálogo constante com as comunidades(Relatório MEB 1961-1965 p.2).
Inicialmente o conceito de educação de base fora aplicado a partir da percepção da
Unesco, porém em 1962 essa acepção sofre alterações (FÁVERO E FREITAS, 2011). Com
isso, os princípios se direcionam para uma educação emancipatória e libertadora, pautada em
múltiplas atividades: alfabetizar, politizar, promover uma educação sindical e conscientizar.
Dessa forma, o eixo norteador era a própria realidade dos campesinos.
As atividades educativas do MEB possibilitavam, em geral, ao camponês tornar-se o centro e o sujeito de sua educação. Era uma educação popular entendida como um processo criador, no qual os envolvidos estariam conscientes da importância do estar juntos, lutando pela superação das diferentes formas de dominação e opressão. (PAIVA, 2009, P.68)
A intenção do episcopado com o amparo às populações menos desassistidas
transcendia à instrução elementar e à evangelização. Segundo Fávero (2009), as Dioceses
(protagonizada pela de Natal) criticavam a tirania das oligarquias ruralista, a manipulação do
voto de ‘cabestro’, a configuração da estrutura agrária, principalmente do nordeste.
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O papel das escolas radiofônicas nesse Movimento foi fundamental, não só em termos da alfabetização dos que não tiveram e não tinham acesso ao ensino regular, como também de apoio à sindicalização rural e a sistematização e divulgaçãodas críticas à dominação econômica e política (FÁVERO, 2009, P.13).
Apesar de desenvolver ações exitosas e ter uma relevância social de impacto, as
atribuições que a igreja resolveu se responsabilizar, de uma educação popular de adultos e
adolescentes5 libertadora-politizadora, não teve uma aceitabilidade unânime. Primeiro,
devido às bases conservadoras da igreja católica, uma vez que uma parcela da comunidade
cristã seguia a Teologia da Libertação. Depois, pela ruptura de 1964, com o golpe militar que
concebia a ação do MEB uma ameaça à nova conjuntura política, tanto pela formação
conscientizadora do programa de alfabetização, como por considerarem o movimento uma
manifestação da política comunista e, como tal, deveria ser combatida. Esse acontecimento é
verificável em uma das cartas6 enviadas pela monitoria à supervisão regional, identificada
como Grossos, 18 de Abril de 1964.
Prezadas supervisoras, Agraços: [...] com estas noticias de comunismo, surgiu uns boatos que estas escolas radiofonicas vão ter algumas cumplicações por causa dos livros, eu recebi ordem do prefeito para recolher os livros e mandar para prefeitura, eu recolhi mais não mandei, pois recebi de suas mãos e só entrego a vocês, ao contrario com ordens de vocês, estou certa ou não? Os alunos estão assombrados, uns já até deixaram de frequentar as aulas [...].
O relato da monitoria indica que, com o discurso proveniente do regime militar, as
escolas radiofônicas eram relacionadas ao comunismo e, o seu alvo principal, foram as
cartilhas; além disso, por haver alianças entre os entes federados, as coibições não
necessariamente se davam via militares; depreende, também, que houve uma marca de
resistência e enfrentamento, por parte dos representantes do MEB frente às ameaças.
Com a repressão do golpe civil-militar de1964, toda e qualquer situação que remetesse
aos programas de Alfabetização da época era censurado sob a indicação de serem
“subversivos” à população. Com essa atitude, muitas cartilhas foram cassadas, houve registro
de perseguição de monitores, escolas fechadas, redução de emissora se o MEB, devido à
coação, passou por uma redefinição de propósitos para não se extinguir.
5 Para mais informações sobre educação de jovens e adultos por meio das escolas radiofônicas ver BARROS (1998).
6 Série correspondência entre as escolas radiofônicas. Natal, 1959. Fundo MEB. Acervo CEDIC. Usamos apenas trechos da carta. Optamos por deixar os erros de grafia das cartas. Grossos é tanto um município do Rio Grande do Norte, nas mediações de Mossoró como em Pernambuco, nas mediações de Verdejantes.
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Durante o tempo de funcionamento do MEB, os anos de 1962 e 1963 foram magnos
devido à expansão, em termos de criação de escolas, redefinição de princípios e novas
parcerias. Dos programas que foram tolhidos durante o regime militar, o MEB foi o único que
conseguiu dar continuidade, porém foi submetido a reformular suas concepções e até hoje7
promove ações.
A Aula Irradiada da Emissora Rural: a Voz do São Francisco
Em Petrolina, no Sertão Pernambucano, a primeira emissora de rádio da cidade foi
implantada pela igreja católica, a partir do Movimento de Educação de Base. Fundada em 28
de outubro de 1962 pelo 4º Bispo Dom Antônio Campelo de Aragão, a rádio foi batizada à
época com o nome de “Emissora Rural: A Voz do São Francisco”. Situada ao lado da Catedral
e da Praça Dom Malan, a rural tinha sua programação basicamente de noticiários sobre a
rotina da diocese, os acontecimentos a nível nacional e as aulas radiofônicas que eram
transmitidas de segunda a sexta-feira no horário das 18h00 às 19h00. Anos depois essa
programação foi se estendendo. Os programas dos finais de semana tiveram um caráter mais
interativo com o público, dedicando-se às leituras das cartas enviadas a radio, às respostas
das correspondências, instruções para monitores, convites para que novos estudantes se
inscrevessem e participassem das aulas, além de palestras, sugestões dos ouvintes dentre
outros assuntos. Essas ondas sonoras chegavam até os estudantes sertanejos via rádios que
eram entregues pelos supervisores do MEB junto a outros materiais escolares.
Figura 2- Rádio cativo do MEB.
Fonte: acervo Emissora Rural.
7 Para mais informação sobre as ações do MEB na atualidade acesse: http://www.meb.org.br/home/.
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Sob o governo do prefeito Luiz Augusto Fernandes, na qual seu mandato se deu de 1959
a 1963, Petrolina tinha apenas como meio de comunicação as cartas e o imprenso “O Pharol”
do jornalista João F. Gomes (PINHEIRO, 2010). No entanto, esses instrumentos
comunicativos não estavam ao alcance de toda a população, uma vez que uma parcela
significativa da zona urbana e, principalmente da zona rural, não dominavam os códigos de
leitura e escrita. Nesse sentido, a rádio emerge como um determinante no desenvolvimento
social, haja vista que o acesso à informação e à cultura da leitura e escrita é condição
substancial para participação ativa do cidadão na sociedade.
A equipe inicial convidada por D. Antônio Campelo foi: Raimunda Teixeira Coelho,
Maria Anete Rolim de Albuquerque, Elenita Dias, Padre Mansueto de Lavor e Maria Dinalva
Sá. Aos poucos, novos membros compuseram o grupo. Equipe completa e treinada, as
primeiras aulas tiveram início no mesmo dia da inauguração da rádio. Seguiam as instruções
nacionais de execução das aulas, no qual os monitores que eram escolhidos pela comunidade,
após a transmissão das aulas pelas professoras locutoras, repassavam os ensinamentos e
auxiliavam nas atividades. Segundo Alves (2016), ao pesquisar a implementação do MEB em
Pernambuco, aponta que as ações dos agentes do Movimento podem ser resumidas em:
orientação, coordenação, planejamento, treinamento e avaliação. Ainda segundo a autora, no
que se refere à distribuição dos sistemas, até dezembro de 1963 foram abertas 163 escolas
radiofônicas pela Emissora Rural: A voz do São Francisco e no primeiro semestre de 1964
estavam previstas aumentar para 170, sendo a terceira emissora mais abrangente de
Pernambuco.
Ademais, o estado de Pernambuco era o que mais possuía escolas radiofônicas abertas
e, devido a isso, “foi o maior sistema do movimento, com 895 escolas radiofônicas” (ALVES,
2016, p. 144). Com o golpe civil-militar e o consequente reajustamento das concepções do
MEB algumas escolas foram encerrando gradativamente suas atividades. Nessa conjuntura
repressiva, é possível perceber a relevância desse programa e seu impacto conscientizador na
população por, no mínimo, dois atos revolucionários: primeiro o fato de compreenderem o
teor libertário que a cartilha possuía e, por isso, protegê-la dos aparelhos repressivos, como
visto na carta mencionada anteriormente; Segundo, por ter a consciência do impacto da
escassez de escolas, de que independente ou não continuidade do MEB após o golpe, era
preciso dar sequência à educação, por meio da escolarização8.
8 Alves (2016) aborda a mobilização das comunidades na solicitação por mais escolas e no trato com as escolas existentes a ponto de atender a todos.
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A Alfabetização do MEB e suas Concepções
Falar de Alfabetização numa perspectiva histórica é considerar o seu instrumento de
ensino, a cartilha, haja vista que esse recurso tem acompanhado e mediado o ensino da
leitura e escrita no Brasil desde o século XIX (MORTATTI, 2000). Desse modo, tentamos
abordar nessa seção a alfabetização do MEB a partir de seus materiais didáticos, em especial
suas cartilhas.
“Lutamos para viver. Viver é Lutar!”. Esse é um fragmento da primeira lição contida na
cartilha Viver é Lutar de 1963. Ele é a base do pensamento que pautava o programa de
erradicação da alfabetização. Prover a alfabetização estava para além das decifrações
codificatórias de grafemas e fonemas, ou seja, era uma questão de promoção humana. Nesse
sentido, a percepção que se tinha da cartilha, apresentada em um dossiê sobre o instrumento
didático “Viver é Lutar” era que:
Um instrumento não tem fim em si mesmo. Um instrumento se avalia face a [sic] seus objetivos. Não é bom nem mau, mas adequado ou inadequado a seus objetivos. É assim que se coloca, prioritariamente, para nós o livro de leitura Viver é Lutar e os manuais que os acompanham: como instrumentos que julgamos adequados face aos objetivos de nossa ação educativa. Para nós, a validade dossê [sic] instrumento didático se põe na medida em que exprima a nossa visão de educação, atenda aos requisitos da didática, sirva aos objetivos de uma educação de adultos no Brasil de hoje (Dossiê da cartilha Viver é Lutar. Fundo MEB. Acervo: CEDIC).
A cartilha, desse modo, se trata de um recurso tecnológico de mediação da
comunicação humana na qual deve estar adequada aos fins educativos. Considerando isso, a
alfabetização sendo um processo de ensino para apropriação da língua materna se constitui
de uma cultura escolar que, por intermédio de seus diversos suportes pedagógicos, torna-se
um difusor de valores ideológicos e culturais. A cartilha, sendo um desses suportes
pedagógicos, a miúde no caso do Brasil, traz em si confluências de princípios (MACIEL,
2002). Assim, pode-se dizer que esse material didático confeccionado pelo MEB tanto teve
influência da igreja e, ao mesmo tempo, do estado.
Para Magalhães (1999), é preciso situar a concepção de alfabetização e de alfabetizado
em diferentes contextos históricos, pois foram atribuídas acepções distintas ao longo do
tempo. São nas modificações delineadas ideologicamente pelos interesses políticos, sociais,
econômicos que o processo de alfabetização se dá de forma multifacetada ao longo do tempo.
Isso posto, faz-se necessário mapear, primeiramente, as concepções de educação facultadas
pelo MEB e os seus princípios linguísticos.
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No documento MEB: sua origem, sua ação, seu conteúdo (1964, p. 3) é apresentado
suas principais razões de existência a partir da experiência de quase quatro anos de ação
educativa. Nele, “a educação, em um sentido lato, é um processo, uma ação que visa à
formação do homem. A ação humana, na medida em que atesta sua dimensão racional de ser
consciente e transcendente, surge como uma iniciativa original em face do mundo.” No
conjunto didático “Viver é lutar” é apresentada, de forma especificada, a dimensão de
educação.
A educação só atinge o seu significado mais autêntico, à proporção que deixa de ser meramente integrativa, para ser criadora. Isto é, na medida em que seus objetivos não se detêm em integrar a pessoa em seu contexto cultural previamente dado, mas procura situar o educando na plenitude se deu papel de sujeito da cultural. A educação visa, portanto, à ação. Ora, a ação humana tem três requisitos essenciais. Em primeiro lugar, o homem age diante de um fato que é real para ele; é portanto imprescindível que ele tome consciência da realidade sobre que vai agir. Ao lado disso, o homem assume uma atitude diante dessa realidade, atitude que surge a partir dessa consciência da realidade. Para que a atitude se concretize em ação, o homem parte sempre dos meios que lhe oferece a cultura (sejam esses meios instrumentos físicos, verbais etc). (Conjunto didático “Viver é lutar”, 1964, p.16).
A educação é concebida no sentido de ser parte integrante da vida do ser humano. É
uma mediadora no processo de autoconstrução e, como tal, é libertadora. Libertadora, pois
instrui o homem a emancipar-se da opressão e, essa instrução é viável pela apreensão da
consciência da realidade que ora está inserido. Nesse sentido, a ação educativa do MEB foi
pautada em três eixos apresentados no quadro abaixo.
QUADRO 1
EIXOS NORTEADORES DA PRÁTICA EDUCATIVA DO MEB (OBJETIVOS)
Conscientização Autoconscientizar, consciência crítica, sujeito histórico.
Mudanças de atitude Mudança crítica, de valorização, de mudança e de cooperação.
Instrumentalização das comunidades
Instrumentos de análise: Ler, escrever, interpretar textos diversos e uso de
palavras da realidade dos camponeses. Distinguir e identificar relações
entre instituições e estruturas sociais, políticas, econômicas e religiosas;
Instrumentos de produção: Saber utilizar: procedimentos básicos de higiene
e saúde; operações matemáticas na relação de produção e consumo;
legislaçãoe os costumes referentes às relações de produção e consumo;
potencialidades econômicas na comunidade onde vive;
Instrumentos de organização: conhecer as técnicas de trabalho em grupo,
legislação básica sobre associações (cooperativas, sindicatos etc.) e saber
fundar e dinamizar essas associações.
Fonte: Síntese baseada nos escritos de L. Wanderley9 (1985).
9 Quadro baseado no escritos de WANDERLEY (1984).
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Os três eixos – Conscientização, Mudanças de atitude e Instrumentalização das
comunidades – correspondem aos princípios pedagógicos adotados pelo MEB, princípios
esses que são movidos por uma ação estabelecida pelo homem para a transformação do seu
meio. O processo educativo basilado nessas três concepções não se dão de forma desconecta,
impositiva e irrefletida. Pelo contrário, seus pontos de partidas advêm do diálogo e da ação
refletida em grupo (FÁVERO, 2004).
As cartilhas “Viver é Lutar” e “Mutirão” foram pensadas para atender a educação de
adultos e adolescentes matriculadas no sistema radiofônico. Apresentam particularidades
díspares, no que concernem, principalmente, seus princípios. Isso é proveniente da
reestruturação que o MEB é pressionado a fazer após a instauração do regime de ditadura
militar.
Figura 3- 1º lição cartilha Viver é lutar (1963). Figura 4- capa cartilha Viver é lutar (1963). Fonte: Fundo MEB – Acervo CEDIC. Fonte: Fundo MEB – Acervo CEDIC.
A primeira, “Viver é Lutar”, rege uma crítica implícita a falta de assistência
básica do estado, demonstrando a veracidade da vida camponesa no Brasil; é
composta de trinta lições que são textos que apresentam uma proposta indagativa
para discussão, reflexão e ação trazendo na mesma página imagens reais referentes a
cada situação do homem do campo; na sequência são expostas noções gramaticais e
exercícios.
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Figura 5- 1º lição cartilha Mutirão (1965). Figura 6- capa cartilha Mutirão (1965). Fonte: Fundo MEB – Acervo CEDIC. Fonte: Fundo MEB – Acervo CEDIC.
Na segunda, intitulada de Mutirão, assume-se apenas um posicionamento de
cooperação e união entre os trabalhadores rurais; as lições além de abrandarem seu teor
crítico e conscientizador, os textos diminuíram no tamanho, não apresentaram uma pergunta
ou afirmação que propicia discussões e adotaram desenhos meramente ilustrativos; em sua
segunda edição esses desenhos, sob autoria de Ziraldo, ganham mais formas, porém a
representação da sociedade rural é romantizada, no sentido ocultar as adversidades da
comunidade.
As cartilhas, na sua totalidade, não seguem um único método de alfabetização, ou seja,
o sintético se mescla com o analítico. Por se basear na proposta de educação de adultos de
Paulo Freire, as atividades são desenvolvidas após a leitura e problematização do texto. Na
sequência, são escolhidas palavras geradoras, provenientes do universo linguístico do sujeito
aprendiz. Essa palavra geradora é separada em sílabas e, posteriormente, ao identificar os
fonemas, são criadas novas palavras. Em suma, partia-se de um diálogo inicial com temáticas
referentes ao contexto do educando para que houvesse o levantamento de vocábulos
geradores.
A circulação dessas cartilhas, a partir de uma base dialógica, cria entre os campesinos
hábitos e práticas de leituras antes limitadas pela falta de acesso ao ensino da leitura e escrita
e dos suportes pedagógicos. Considerando que tais práticas advêm de um processo de
construção sócio histórica (CHARTIER, 1996), uma questão que fornece novos caminhos
para conhecer e entender a prática do MEB é identificar como esses sujeitos se apropriavam
das leituras em um contexto de libertação e repressão, concomitantemente.
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Considerações Finais
Este texto é fruto de pesquisa em fase se desenvolvimento inicial que tem como objetivo
identificar a concepção de Alfabetização adotada pela escola radiofônica da Emissora Rural:
A Voz do São Francisco, no município de Petrolina-PE, no período de 1960 a 1965. Buscou-se
analisar os princípios pedagógicos e linguísticos que nortearam os documentos oficiais e as
cartilhas do Movimento de Educação de Base (MEB). A partir disso, percebemos que,
considerando o contexto histórico, a década 60 foi marcada por efervescências em diversas
esferas sociais e isso influenciou na busca por um sentido de alfabetização que contemplasse
as classes populares. Além disso, na conjuntura do Golpe Civil-militar é possível identificar
resistência e enfrentamento, por parte dos representantes do MEB, principalmente em defesa
das cartilhas. A emissora rural: A voz do São Francisco foi um dos sistemas mais abrangentes
do MEB-Pernambuco e a sua aliança com os sindicatos foi preponderante para efetivação da
ação do MEB na região. Depreendemos, também, que as cartilhas usadas para alfabetização
de adultos e adolescentes possuem diferenças em seu conteúdo e estrutura, provenientes da
reestruturação do Movimento, após a instauração da ditadura. Essas cartilhas seguem o
método analítico e sintético e suas atividades são desenvolvidas na proposta de Alfabetização
para adultos e adolescentes de Paulo Freire. Nesse sentido, a retomada desse período de
instabilidade política, econômica e social de 1960 nos levou a refletirmos o quanto os direitos
sociais, embora garantidos por lei, são frágeis. O MEB, enquanto garantia do direito à
educação de base e provedor da luta por reforma agrária, foi ceifado sob o pretexto de ser
“subversivo” e em virtude dos ajustes de gastos públicos. Semelhante a esse fato,
hodiernamente, convive-se a cada dia com desmontes das políticas sociais direcionadas às
camadas populares comprometendo, assim, no avanço de uma educação democrática.
Referências
ABREU JUNIOR, João Baptista. Rádio e formação de mentalidades: testemunha ocular da Guerra Psicológica na América Latina/ João Baptista de Abreu Junior 236 f Tese (Doutorado em Comunicação e Cultura) 2004. ALVES, Kelly L. Entre as cartas e o rádio: a alfabetização nas escolas radiofônicas do MEB em Pernambuco. 2016. 165 f. Tese (Doutorado em Educação) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC), São Paulo, 2016.
Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017
ISSN 2236-1855 1404
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Fontes
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